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76 ROLLING STONE BRASIL, JUNHO 2008 GUTTER PHOTO CREDIT ROLLING STONE BRASIL, JUNHO 2008 77 GUTTER PHOTO CREDIT AOS 73 ANOS, JOÃO DONATO, UM DOS MAIORES MESTRES DA MPB, SE PREPARA PARA LANÇAR O SUCESSOR DE SEU DISCO MAIS EXPERIMENTAL, O CLÁSSICO A BAD DONATO. INCANSÁVEL E GENIAL, COMPÕE A TODO MOMENTO E TRANSFORMA QUALQUER OBJETO EM INSTRUMENTO PARA SUA MÚSICA – ATÉ MESMO UMA INOFENSIVA POLTRONA DE MASSAGENS H á um ano, o maestro Laércio de Freitas anco- ra à casa de João Dona- to – vista para a Baía da Guanabara, costas para o Morro da Urca, quase colada à cobertu- ra de Roberto Carlos – e se acomoda na poltrona da sala de ensaios. O móvel não é ordinário, nota-se pelo nome: Shiatsu Massaging Cushing. Do- nato, compositor de “A Paz”, o trouxe de Denver (Colorado), em 2001, em seu colo, ao fim da temporada de shows no Vartan’s Jazz Club. Acionado por controle remoto e ligado à tomada, funciona por estímulo de vibrações eletromagnéticas. Produto fino e, pelo preço, uma baga- tela. Por US$ 199 (por volta de R$ 350), as oscilações reproduzem técnicas da massagem japonesa surgida nos ester- tores da era Meijim, em 1800. Sem o saber, os fabricantes da HoMedics Inc. não apenas adequaram medicina orien- tal à traquitana: a tecnologia passou ao estado de arte pela maestria de João Do- nato de Oliveira Neto – um dos maiores da música popular brasileira –, que fez samba brotar do aparelho e, por tanto, nem cobrou royalties. Só para relaxar, Laércio senta-se na pol- trona que – fora a musicalidade reinante – virou atração residencial à parte. Como gueixa eletrônica, massageia braços, per- nas, cabeça, tronco, o corpo inteiro, até os dedos dos pés e mãos. Pode-se escolher a velocidade: lo, high ou speed. Quem tem o privilégio de visitar Donato e passar um fim de semana conhecendo de perto de sua vida e trabalho, sempre ensaia um relax na shiatsu machine, o carinhoso apelido doméstico do aparelho. Das incontáveis combinações de vibra- ções disponíveis, o maestro Laércio – res- peitado arranjador e pai da atriz e canto- ra Thalma de Freitas – cismou com uma “vibração melódica” em especial. Freitas escuta música nas minúcias, “ouvido de tu- berculoso”, e selecionou sua opção de mas- sagem: primeiramente, pelo som; a seguir, pela terapia. O timbre da shiatsu machine é vagamente próximo ao das baterias eletrô- nicas setentistas – datado e bacana como as texturas de Giorgio Moroder, o mago italiano dos sintetizadores. Para Donato, o “som da poltrona” é o de menos – “O que importa é a sugestão rítmica”, parodia. A massoterapia de Laércio foi breve. Alarmado com o compasso musical da sessão que escolhera, ergue-se sobressal- tado e anuncia: “Essa poltrona tem músi- ca!”. E, entusiasmado com a descoberta auditiva, passa a reproduzir, no meio da sala de estar, a “batida”. Ao piano Gold- mann, Donato e Laércio a repetiram e testaram. O resultado foi uma base ins- trumental primitiva. A cantora Vini Kjaergaard Iuel, dina- marquesa arrebatada pelo universo musi- cal de Donato, estava no Rio e foi visitá-lo. Exausta de um longo vôo, sentou no musi- cal assento, enquanto o via ensaiar com o guitarrista Ricardo Silveira. Medita, afundada em tranqüilidade: “Massagem ao som de Donato? Isso é perto do paraíso...” Nesse dia, ela tam- bém foi agraciada com um insight shiás- tico: escolheu sua modalidade e saiu espontaneamente a cantarolar o ritmo da massagem. Ao piano, Donato – mais um “ouvido de tuberculoso” – pede que repita as notas. A vocalização se encaixa na base instrumental criada meses antes por Laércio e Donato. Enquanto torna- va a cantar, ela lembra, ele harmonizava a melodia ao piano: “Não adianta, se derem uma máquina de escrever para o Donato, alguma melodia vai sair dali”. Por CRISTIANO BASTOS DOM NATURAL O REI E SEU TRONO João Donato descansa na shiatsu machine em sua casa, na Urca (Rio de Janeiro): musicalidade à flor da pele

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Perfil sobre o músico João Donato. Rolling Stone.

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AOS 73 ANOS, JOÃO DONATO, UM DOS MAIORES MESTRES DA MPB, SE PREPARA PARA LANÇAR O SUCESSOR

DE SEU DISCO MAIS EXPERIMENTAL, O CLÁSSICO A BAD DONATO. INCANSÁVEL E GENIAL, COMPÕE A

TODO MOMENTO E TRANSFORMA QUALQUER OBJETO EM INSTRUMENTO PARA SUA MÚSICA – ATÉ MESMO

UMA INOFENSIVA POLTRONA DE MASSAGENS

Há um ano, o maestro Laércio de Freitas anco-ra à casa de João Dona-to – vista para a Baía da Guanabara, costas para o

Morro da Urca, quase colada à cobertu-ra de Roberto Carlos – e se acomoda na poltrona da sala de ensaios.

O móvel não é ordinário, nota-se pelo nome: Shiatsu Massaging Cushing. Do-nato, compositor de “A Paz”, o trouxe de Denver (Colorado), em 2001, em seu colo, ao fi m da temporada de shows no Vartan’s Jazz Club. Acionado por controle remoto e ligado à tomada, funciona por estímulo de vibrações eletromagnéticas.

Produto fi no e, pelo preço, uma baga-tela. Por US$ 199 (por volta de R$ 350), as oscilações reproduzem técnicas da massagem japonesa surgida nos ester-tores da era Meijim, em 1800. Sem o saber, os fabricantes da HoMedics Inc. não apenas adequaram medicina orien-tal à traquitana: a tecnologia passou ao estado de arte pela maestria de João Do-nato de Oliveira Neto – um dos maiores da música popular brasileira –, que fez samba brotar do aparelho e, por tanto, nem cobrou royalties.

Só para relaxar, Laércio senta-se na pol-trona que – fora a musicalidade reinante – virou atração residencial à parte. Como gueixa eletrônica, massageia braços, per-nas, cabeça, tronco, o corpo inteiro, até os dedos dos pés e mãos. Pode-se escolher a velocidade: lo, high ou speed.

Quem tem o privilégio de visitar Donato e passar um fi m de semana conhecendo de perto de sua vida e trabalho, sempre ensaia um relax na shiatsu machine, o carinhoso apelido doméstico do aparelho.

Das incontáveis combinações de vibra-ções disponíveis, o maestro Laércio – res-peitado arranjador e pai da atriz e canto-ra Thalma de Freitas – cismou com uma “vibração melódica” em especial. Freitas escuta música nas minúcias, “ouvido de tu-berculoso”, e selecionou sua opção de mas-sagem: primeiramente, pelo som; a seguir, pela terapia. O timbre da shiatsu machine é vagamente próximo ao das baterias eletrô-nicas setentistas – datado e bacana como as texturas de Giorgio Moroder, o mago italiano dos sintetizadores. Para Donato, o “som da poltrona” é o de menos – “O que importa é a sugestão rítmica”, parodia.

A massoterapia de Laércio foi breve. Alarmado com o compasso musical da

sessão que escolhera, ergue-se sobressal-tado e anuncia: “Essa poltrona tem músi-ca!”. E, entusiasmado com a descoberta auditiva, passa a reproduzir, no meio da sala de estar, a “batida”. Ao piano Gold-mann, Donato e Laércio a repetiram e testaram. O resultado foi uma base ins-trumental primitiva.

A cantora Vini Kjaergaard Iuel, dina-marquesa arrebatada pelo universo musi-cal de Donato, estava no Rio e foi visitá-lo. Exausta de um longo vôo, sentou no musi-cal assento, enquanto o via ensaiar com o guitarrista Ricardo Silveira.

Medita, afundada em tranqüilidade: “Massagem ao som de Donato? Isso é perto do paraíso...” Nesse dia, ela tam-bém foi agraciada com um insight shiás-tico: escolheu sua modalidade e saiu espontaneamente a cantarolar o ritmo da massagem. Ao piano, Donato – mais um “ouvido de tuberculoso” – pede que repita as notas. A vocalização se encaixa na base instrumental criada meses antes por Laércio e Donato. Enquanto torna-va a cantar, ela lembra, ele harmonizava a melodia ao piano: “Não adianta, se derem uma máquina de escrever para o Donato, alguma melodia vai sair dali”.

Por CRISTIANO BASTOS

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O REI E SEU TRONO João Donato descansa na shiatsu machine em sua casa, na Urca (Rio de Janeiro): musicalidade à flor da pele

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barbear, leite condensado – só besteira. Experimentou a poltrona várias vezes antes de comprá-la”, entrega.

Pelotense tresloucada de olhos azuis-orbitais, Ivone fala do relaciona-mento com o marido. Seu jeitão “meio maluca-para-quem-não-conhece” foi das coisas que, de cara, chamou a aten-ção do quieto observador Donato – que na rubrica amor não é marinheiro de primeira viagem. Foi namorado de Dolores Duran. Ela costurava os seus pijamas e morreu no mesmo dia em que ele embarcou para os Estados Unidos. Lá, engraçou-se por Patrícia, mulherão de quase 2 metros, atriz e fi lha de lati-nos, com quem teve a fi lha Jodel. Fica-ram juntos sete anos. Casou-se depois com Ana Maria, uma das mulatas do Sargentelli. Nasceu Joana. O matri-mônio com Leila, mulher presenteada com mais de 30 canções (entre as quais “A Paz” e Leilíades, álbum gravado em 1986), foi o mais conturbado.

Ivone e Donato se conheceram em Brasília. Ele foi lançar o songbook orga-nizado pelo músico Almir Chediak (as-sassinado em 2003). Ela, acompanhar uma amiga que preparava reportagem sobre “o mito da bossa nova”. Em ple-no show no Carpe Diem, Donato mal a avistou e não se fez de rogado: abando-nou o piano, foi à mesa e tascou-lhe um beijo na boca, relembra a mulher. Foi amor à primeira vista.

No primeiro encontro, em dezem-bro de 1999, o experiente coração não segurou a emoção do novo amor e teve um infarto. Passou dez dias no Hospi-tal de Base de Brasília. Em retribuição à atenção de médicos, enfermeiros e

pacientes, após ganhar alta, deu um show no auditório do hospital.

A casa de Donato esconde musicali-dades sortidas em cada canto: o som do piano, o piar da natureza. No quintal, o calopsita Elvis assovia a linha meló-dica de “Bananeira” para os passan-tes – ensinada por Donato. Há anos imemoriais não muda hábitos. Sempre disposto, as horas ao piano são à noite. Ao largo do dia, o descanso. Na inti-midade de um dos mais altos espíritos da MPB, decodifi cador da bossa nova, visionário da discoteca, “o homem que levou o Acre mais longe”, à noite a casa recolhia-se para dormir – menos Do-nato. Madrugada adentro, ao piano, dedilhou amenamente seu Debussy.

Muitas dessas histórias a cineasta Te-tê Moraes vai rodar no documentário Simplesmente João Donato, em fase de captação de recursos. “Será revelada a chave do pensamento musical donatea-no: as pinceladas sinfônicas, a imersão na salsa, a fusão do partido alto com a bossa, o flerte constante com o jazz”, enquadra a diretora. Ela conta que o projeto nasceu do desejo, expresso pe-lo artista, de assistir sua vida adaptada à linguagem cinematográfica. O filme parte de sua primeira composição, aos 6 anos, no Acre. Navega por sua explo-são de genialidade criativa, no Rio de Ja-neiro, e deságua na consagração inter-nacional. Os parceiros Caetano, Chico Buarque, Gal Costa, Henri Salvador, Joyce, João Gilberto, Nana Caymmi e Paulo Moura dão seu testemunho. Nasci para Bailar: João Donato ao Vivo em Havana é outro projeto de Tetê Mo-raes – e realização de antigo sonho de

camente com o nome Irmãos Oliveira) freqüentaram o Sinatra-Farney Fan Clube, na Tijuca, Zona Norte do Rio. Por quase dois anos, o clube – das pri-meiras escolas da geração bossa-nova, fundado por Johny Alf – foi um dos poucos redutos cariocas consagrados às audições de jazz.

No rol dos associados ilustres, es-tavam o futuro parceiro de Donato, o clarinetista Paulo Moura, e as canto-ras Nora Ney, Dolores Duran, Doris Monteiro e Silvia Telles. E os novos compositores: Luís Bonfá, Billy Blanco e o imortal Tom Jobim. “O pessoal se reunia para ouvir Frank Sinatra e Dick Farney, porque os discos ainda eram escassos no Brasil”, recorda Eneyda.

Nos laureados anos 50, novidades fonográfi cas de jazz norte-americano aportavam no Brasil com meses de atraso, na cadência engatinhante da infância da bossa. O jovem Donato era inquieto. Para se atualizar, não per-dia os musicais da Metro Goldwyn-Mayer no cinema, sessões direto das 2 às 4 e das 4 às 6. Chegava em casa à tardinha e ia ao piano reproduzir as trilhas sonoras dos filmes, para não esquecê-las. “Um recorde!”, orgulha-se Eneyda. À meia-noite, o adolescen-te lançava os temas hollywoodianos, furando as gravadoras, no programa Ritmos da Panair no Ar, gravado na Boate Meia-Noite do Hotel Copaca-bana Palace. “João fazia isso tudo aos 15 anos de idade, escondido de pa-pai”, dedura, 50 anos depois, a irmã.O crítico musical Tárik de Souza quali-fi ca João Donato como peça-mestra na engrenagem da MPB. A regionalida-

de, pontua, é porto de partida para se abranger o colossal caminho percorri-do pelo compositor. No caso, a música nordestina dominante na mídia do fi -nal dos anos 40 e início dos 50: “A bor-do de uma sanfona, Donato chegou a se apresentar no programa de Alfredo Ri-cardo do Nascimento, o Zé do Norte, autor de ‘Mulher Rendeira’ e das com-posições do fi lme O Cangaceiro”, situa.Rápido, se engajou nas transições esté-ticas que desaguariam na bossa nova. Em 1951, aos 17 anos, participou do his-tórico disco precursor de Luiz Bonfá. Toca acordeom e estréia como compo-

sitor em parceria com João Gilberto, com “Minha Saudade”. Pela primeira vez, a avançada percepção harmônica fazia-se perceber no acetato.

No outro lado do Atlântico, o pia-nista tingiu-se da infl uência caribenha, atuando com os músicos Mongo San-tamaria e Tito Puente. Grava com Bud Shank, saxofonista, e inicia-se na mes-tiçagem MPB & jazz em três discos, a partir de 1953. Nos Estados Unidos, deixa a trinca formidável de álbuns:

Piano of Joao Donato – The New Sound of Brazil, com o alemão Claus Ogerman (arranjador do álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim), em 1965; Donato/Deodato, em 1968; e o antecipador A Bad Donato – em que inaugura o instrumental eletrônico que começava a ser usado em 1970.

De volta ao Brasil, em 73, lança Quem É Quem, marco de sua carreira, no qual os instrumentais recebem letras. Dois anos depois, sai Lugar Comum, marca-do pela parceria com Gilberto Gil, que assina a maioria das faixas. É a fase da expansão do repertório e das parcerias

João, que há tempos queria registrar um álbum ao vivo com músicos cubanos. O material foi gravado no Festival In-ternacional de Jazz Plaza, em Havana. Em duas apresentações, Donato fez uma jam session com o pianista Chucho Valdés. Os shows em Cuba antecede-ram a renúncia de Fidel Castro, que retirava-se da presidência após 49 anos no comando. O brasileiro estampou os jornais cubanos do dia 15 de fevereiro; e a carta de Fidel foi assinada no dia 18 – embora a notícia tenha saído na edição especial do dia seguinte. Por isso, antes mesmo de ser lançado, Nasci para Bailar já é gravação histórica.

Entre os parceiros mu-

sica is de Donato, Cl i f-ford Everett “Bud” Shank p o d e s e r c o n s i d e r a -

do um dos mais signif icantes. Recém-chegado nos Estados Unidos, o acreano fazia périplo pelas gravadoras tentando emplacar sua música pouco aceita no Brasil. Acabou na Pacific Jazz, onde foi recebido pelo diretor musical Richard Bock, que dele gosta-va por tê-lo ouvido no álbum João Do-nato e Seu Trio Muito à Vontade (1962). Bock se encontraria com Bud Shank, artista contratado da Pacifi c Jazz, pa-ra tratar da gravação de novo disco e prometeu que mostraria a música de Donato ao saxofonista. “Shank gos-tou tanto que marcou uma gravação inteira com as minhas composições”, conta Donato. Bud Shank & His Bra-zilians Friends é o álbum resultante desse encontro: “Desde a escolha do repertório, tudo foi feito por Donato”,

A rapsódia donatiana tem raízes na Selva Amazô-nica. Em Rio Branco, no Acre, veio ao mundo em

17 de agosto de 1934, perto do meio-dia. Seu pai, João Donato, era major da Aeronáutica e foi o primeiro piloto de aviação acreano. Chegou a sofrer nove acidentes aéreos em sua carreira mili-tar, mas teve morte natural em casa, ao lado da família.

Sem nunca ter freqüentado a escola, Donato desde 7 anos compunha. Nos anos 40, em Rio Branco, a irmã mais velha, Eneyda, acordava o menino ao som dos estudos do método de piano Hannon. Rapazote, passou a praticar o Hannon sem encarar a regularidade e a disciplina cobrados pelo virtuoso método. Em estações esparsas da vida, a irmã vasculha na lembrança, Dona-to estudou com professores no Rio de Janeiro: “Absolutamente dispensável. Ele era indisciplinado. Dezenas de ca-dernos mostram um autodidata no sen-tido exato – na sanfona ou no piano, no trombone e noutros instrumentos. O que mais se vê nas suas anotações são estudos de Debussy e Ravel”, revela.

Certa vez, por volta de 1946, a famí-lia passava o dia na casa do brigadeiro carioca Thomas Gedwürd – “Papai disse que João tocava qualquer coisa”, rememora a irmã. Surpreso, o briga-deiro quis saber se o fi lhote do aviador também era capaz de “pilotar um vio-lino”. O menino respondeu “sim” – no entanto, só o conhecia “por fotografi a”. Rogou cinco minutos a sós com o ins-trumento; na volta, anunciou, malan-dro: “Pode escolher a música”. “E tocou maravilhosamente o violino para o bri-gadeiro. João toca qualquer coisa – só precisa saber onde fi ca dó-ré-mi-fá-sol-lá-si”, descreve a testemunha ocular.

Lysias Ênio é parceiro-irmão – o poeta de Donato. A consangüinidade artística verte fácil nas abundantes composições da dupla. São deles “Ama-zonas”, “Até Quem Sabe”, “Café com Pão”. Donato entra com o som, Lysias traz a poesia. Declara a irmandade, versejando: “Volúvel, comparsa indis-solúvel na harmonia do DNA e na par-ceria de vida. Somos águas do mesmo rio. Meu irmão, nas ondas da música; eu, no balanço da poesia. A musicali-dade está em tudo”.

Compor com Donato, conta Lysias com a franqueza de família, é bom. “Mas às vezes é chato. A afi nidade é mais es-tética do que genética”, diz. A memória musical mais antiga com o irmão, arma-zenada ad eternum, é a de uma sanfona de brinquedo: “Uma, não, duas! Uma minha, outra dele. Na minha, meti a te-soura pra ver o que tinha dentro. Onde eu ouvi ruído, ele ouviu som”.

Até o começo dos anos 50, João Do-nato e Eneyda (que debutaram artisti-

QUEM É QUEM

1. O jovem Donato, nos anos 60, em imagem de divulgação utilizada nos Estados Unidos. 2. Com Gal Costa, na década de 70, com quem compôs e gravou o álbum Cantar (1974). 3. Com o amigo João Gilberto, em 1957, no Rio de Janeiro

– de Gil e Caetano Veloso a Martinho da Vila e o irmão Lysias.

Caetano repartiu com o amigo Do-nato “A Rã”, “Surpresa” e “O Fundo”. O tem como beatífi co: “Donato é um santo da música. Nele, a precisão matemática é como se fosse um aroma. E a forma concisa da canção se mostra capaz de enfrentar a grande arte geral da com-posição. Tocando piano, vai fundo no terror da existência – densidade e am-plitude na harmonia – e sobe à tona da delicadeza de um brinquedo – soltura nas melodias e ritmos. Sempre foi velho sábio e menino esperto. Sempre será”.

Notória pela voz e laços de família (irmã de Chico Buarque, casada com João Gilberto, mãe de Bebel Gilberto), Heloísa Maria Buarque de Hollanda, a Miúcha – que compartilhou da músi-ca e amizade de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, também se derrete em elo-gios: “Donato vai direto ao ponto. Sua leveza e humor são enormes, na música ou na personalidade. Sou muito fã”.

Gilberto Gil, por sua vez, brinca com a poesia do nome: “João é dó natural, é dom natural”, simplifi ca.

Voltando à magical mis-

tery chair, preterindo a sa-grada prática de Debussy, Donato passou a madruga-

da inteira montando a poltrona. “Seu Trono”, caçoa a gaúcha Ivone Belém, 42, esposa, que em 2005 trocou o Planalto Central para viver com ele na Urca. Ela administra sua carreira dentro e fora dos palcos: “O João tem mania de ir aos supermercados dos outros países. Com-pra biscoitos, pasta de dente, creme de

escreve Shank na contracapa do disco. Em seguida, fi zeram uma série de apre-sentações por São Francisco – “Foi quando as portas dos Estados Unidos se abriram para Donato”, contextuali-za o músico norte-americano.

O cantor Henri Salvador, francês nascido na Guiana Francesa, tinha forte ligação com o Brasil. Sua canção “Dans Mon Île”, de 1957, segundo catedráticos, teria infl uenciado Tom Jobim na gênese da bossa nova. Seu último álbum antes de morrer, Révérance (2006), foi arran-jado por Jacques Morelenbaum e teve a participação de Donato.

“Quando Henri me procurou, que-rendo dar sabor brasileiro ao disco, imediatamente pensei no sotaque musical de Donato”, ilustra Morelen-baum. “Concluí que seria a escolha perfeita para o disco, além de deliciosa oportunidade de conviver e aprender com ele.” Próximo dos 90 anos de ida-de, Salvador declinou de vir ao Brasil para fazer a gravação das bases de Ré-vérance. Sabendo da maestria de Do-nato e confi ando na reputação de Mo-relenbaum, o músico francês deixou a responsabilidade nas mãos dos dois – só apareceu no estúdio mais tarde, nas gravações das partes orquestra-das com cordas e sopros. “As sessões foram enormemente ricas, pois a cada passada das canções novas pérolas se criavam – e Donato, com o desprendi-mento dos verdadeiros gênios, estava sempre pronto e disposto a experimen-tar”, lembra o regente.

Porém, de todos os músicos com quem tocou, Donato descreve Chet Baker como um dos mais afáveis. Os dois se conheceram nos nigthclubs de Los Angeles nos anos 60. Baker o tinha visto uma noite qualquer, conta Dona-to. “Um bom menino”, comprova.

Na época, admite, seu conjunto era ruim, a ponto de o gerente do Clube Trident, em Salsalito, dizer-lhe:

– “Puxa, esse trio está horrível!” E sugeriu: – “Você não conhece nenhum jazzista para botar na banda?”

– “Conheço, sim: Chet Baker”, res-pondeu Donato.

O grupo foi reformado para apresen-tar Chet, convidado especial. “A gente tocava coisas dele e nossas, brasilei-ras”, dedilha o pianista. Anos antes, o trompetista conhecera fama e tornara-se mito com “My Funny Valentine” – que, recorda Donato, interpretaram nas poucas datas em que tocaram juntos. Não durou muito: “Certo dia, Chet apareceu ensangüentado no ho-tel. Dentes quebrados, dizia ter sido agredido na Broadway Street. Intro-vertido, falava pouco e desaparecia. As pessoas me perguntavam: ‘Cadê Chet?’ Todos os dias, a mesma dúvida: apare-ceria ou não? Nunca mais apareceu e esse foi o fi m da história”.

“NUNCA TENHO IDÉIA DA IMPORTÂNCIA DAS COISAS. NADA É PRETENSIOSO OU

AMBICIOSO. FAÇO FAZENDO. TUDO É TÃO SIMPLES”

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Donato encomendou sua biografia ao jornalista carioca Antonio Carlos Miguel. A idéia partiu do próprio bio-grafado, com o desejo de contar sua vida em detalhes. A história de ambos, entretanto, inicia-se em 1974, quando Miguel o “descobriu” no disco Cantar, de Gal Costa – no qual toca piano e compõe: “Fui atrás do LP que lançara pouco antes, Quem É Quem, e confi r-mei o quanto sua música era especial”, afirma Miguel. Donato ligou certa noite, em 1985, relembra o jornalista, e disse que teria um show em São Paulo na semana seguinte: precisava de um texto biográfi co para a divulgação. Mi-guel disse que tudo bem, teria o maior prazer em redigi-lo – poderiam combi-nar um encontro no dia seguinte.

A proposta não foi aceita. “Me disse que viajaria cedo para São Paulo e que só sobrara aquela noite. Era perto das 22h e não tive alternativa. Donato pe-gou um táxi, chegou em casa e, enquan-to eu escrevia, sentou no piano e fi cou conversando comigo e minha mulher, que esperava nosso primeiro filho. Depois, disse que não tinha como me pagar, mas escreveria uma música pa-ra Kati e o bebê. Até hoje a música não nasceu – Marlon tem 21 anos e também adora Donato e sua obra. Além do ído-lo próximo, ganhei um amigo para toda a vida”, homenageia o amigo.

Quando pára pra pensar em Donato, a história mais mar-cante que vem à cabeça do músico Marcos Valle é a dos

tempos de Quem É Quem. “O Donato me ligou um dia, de passagem pelo Rio. Estava em busca de um amor perdido e, como não o achou, disse estar de malas feitas para voltar aos Estados Unidos. Quis saber por que não fi cava mais um pouco. Explicou nada mais ter a fazer no Brasil, a não ser que lhe conseguisse algo. Pedi um tempo – meu objetivo era gravar um disco dele pela Odeon, gra-vadora com a qual eu possuía contrato como intérprete.”

Valle foi conversar com o amigo Milton Miranda, diretor artístico da gravadora, e lançou a idéia. Entretan-to, por mais que Milton gostasse de Donato, recusou-se totalmente – pelo trabalho, sabia que o acreano daria. O músico, porém, não desistiu. Conver-sou com o amigo por horas, até vencê-lo pelo cansaço: “Milton disse que, se produzisse o disco, se tomasse conta, liberava para gravação”, conta.

O maestro Lindolf Gaya, integran-te da diretoria, também precisava ser convencido. Sua reação foi idêntica à de Milton, ou seja, um “não” bem grande.

“Mas insisti até convencê-lo. Pronto, gravaríamos Quem É Quem”.

Imediatamente, Marcos Valle ligou para Donato, deu-lhe as boas-novas e ordenou que desfizesse as malas: “Marcamos o primeiro encontro do álbum lá em casa. Nesse dia, por aca-so, o cantor Agostinho dos Santos fa-zia uma visita. Ouvimos umas fi tas do Donato com músicas inacabadas – to-das sem letra – e comecei a organizar aquilo tudo”.

Valle e Donato foram escolher letris-tas e arranjadores para o novo disco. Ao ouvir Donato cantarolar “umas coisas estranhas” nas fi tas, Valle teve a idéia de anotar as frases. Depois, pediu para o músico as repetir no estúdio. “Visava manter o clima das fi tas, e assim foi fei-to em Quem É Quem. Fico feliz em ter mantido o Donato no Brasil, vendo-o trabalhar, compor e gravar.”

Ficar no país, de fato, só fez bem a Do-nato. Não esconde seu entusiasmo com Quem É Quem na carta a João Gilberto, de 13 de setembro de 1973: “É meu me-lhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo que demo-rou, o que demonstra o máximo cuida-do com o que tudo aconteceu. E o resul-tado é um disco que acho adorável”.

Nos fi nal dos anos 60, Sérgio Mendes levou Donato ao Japão pela primeira vez, acompanhando o grupo Bossa Rio. A viagem, revê Mendes, foi a semente que frutifi caria na gravação do mitológico A Bad Donato. Bob Krasnow, diretor do se-lo californiano Blue Thumb, foi junto na turnê, viu o “Goldfi nger” do Acre em ação e saiu de lá alucinado. O resto é história. As afi nidades musicais entre Mendes e João cruzaram o tempo. Timeless e En-canto, os últimos blockbusters de Men-des, têm cinco canções de Donato. Foi o acreano quem o acolheu em Los Angeles, ainda na década de 50: “Ele já morava lá e encontrou o meu primeiro apartamento”, faz justiça. E complementa: “É um dos ar-tistas mais incríveis que conheço. Como pianista, sou grande fã. É o ‘piano econô-mico do bom gosto’”, escolhe as palavras.

Antes de falar sobre seu disco mais psicodélico, o criador anuncia a novidade – a gravação de A Bad Do-

nato 2, prevista para este ano. Ele expli-ca como será produzida: “A metodologia será a mesma de 38 anos atrás, mas com tecnologias e sonoridades atuais. A ca-beça é a mesma de sempre”, constata.

– E a música de A Bad 2?

JOÃO DONATO– “Só precisa ter suingue, balanço,

ritmo, animação, sei lá como é. Senão fi co meio sem graça”, descontrai.

– “A Good Donato”, arrisco.Ivone rebate prontamente: “A God!”.

E todos desabam em gargalhadas.Lá pelos idos de 1970, Donato não

desconfi ava da atemporalidade do dis-co: “Nunca tenho idéia da importância das coisas. Nada é pretensioso ou am-bicioso. Faço fazendo. Tudo é tão sim-ples”, desmistifi ca.

– Como foi gravar A Bad Donato? – quero detalhes.

– “Entrei no estúdio e saí tocando com os camaradas. Busquei o estilo funk de James Brown, que me entu-siasmava na época e ainda hoje”, diz com a peculiar simplicidade.

– E a malvadeza do nome?– “Partiu do pessoal da companhia.

Deveria ser João Donato & sua Or-questra, mas era muito careta. Alguém pensou em A Bad Donato e ficou” – narra o protagonista.

Ano passado, Donato foi convidado para fazer o show inédito – no Brasil e no mundo – de seu disco mais expe-rimental. Topou. Recrutou os músicos de sua banda – Robertinho Silva (bate-ria), Luiz Alves (contrabaixo), Jessé Sa-doc (trompete) e Ricardo Pontes (sax e fl auta) –, chamou o reforço de Bocato (trombone) e alistou o fi lho, Donatinho (23, tal qual o pai, autodidata do piano), para cuidar dos efeitos siderais do es-petáculo A Bad Donato.

A experiência foi testada no projeto Virada Cultural. “Foi sensacional”, diz Donatinho. “O público urrava quando meu pai adentrou o palco vestindo ca-saco com capuz, boné e óculos escuros. Donato pai aprova e quer repetir a do-se: “Deu vontade de tocar mais”.

Só para constar: Donato tem 198 ga-vetas abarrotadas de fi tas cassete com gravações autorais, de todas as suas fases – ora organizadas pelo jornalista Marcelo Froes, proprietário do selo f luminense Discobertas. Talvez, um dia, essa preciosidade ganhe edições.

No apartamento na urca,

diante da fi el Shiatsu Mas-saging Cushing, João Dona-to – homem cuja musicali-

dade fala no lugar das palavras – repete ao piano a harmonia composta a partir dos ruídos emitidos pelo assento musi-cal. Indago se a criação incidental tem nome. Me diz que não.

Ouso propor: “Que tal ‘Samba da Poltrona Magnética’?”.

Ri, quase aprova e, sorridente: “Samba da Cadeira de Massagem”, re-faz, satisfeito.

O jornalista Cristiano Bastos é co-au-tor do livro Gauleses Irredutíveis (Edito-ra Sagra Luzzatto).

Confi ra vídeos, fotos e depoimentos de músicos e produtores sobre João Donato. www.rollingstone.com.br

DE OUVIDO De pijama, em casa, Donato, 73 anos, reproduz no piano os ruídos musicais de sua poltrona mágica