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Artigo de Luiza Garnelo e Robin Wright

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(2):273-284, mar-abr, 2001

ARTIGO ARTICLE

Doença, cura e serviços de saúde.Representações, práticas e demandas Baníwa

Sickness, Healing, and Health Services: social representations, practices, and demandsamong the Baníwa

1 Núcleo de Estudos em Saúde Pública,Departamento de SaúdeColetiva, Universidade do Amazonas.Rua Dr. Afonso Pena 1053,Manaus, AM 69020-160, Brasil.2 Departamento de CiênciasSociais, UniversidadeEstadual de Campinas.Cidade UniversitáriaZeferino Vaz, C. P. 6110,Campinas, SP 13081-970, Brasil.

Luiza Garnelo 1

Robin Wright 2

Abstract The research for this paper was conducted in São Gabriel da Cachoeira, in the north-western Amazon, with the Baníwa indigenous people, in partnership with indigenous organiza-tions, seeking to understand the relations among the group’s cosmology, their system of represen-tations of sickness and healing practices, and their transformation through inter-ethnic contact.The recording of myths showed the origin of the diseases and demonstrated the existence of sev-eral traditional categories of sickness, guiding traditional healing practices and the incorpora-tion of biomedical knowledge. The Baníwa’s cosmology operates like a reception system for bio-medical information, which the people grasp according to the logic of mythical thought. Similarcognitive strategies are used to generate the demands that indigenous leaders submit to theHealth Councils and Health Services.Key words Health Services; Social Representations; Baníwa; South American Indians

Resumo A pesquisa foi realizada no Município de São Gabriel da Cachoeira, noroeste amazôni-co, junto ao povo indígena Baníwa, em parceria com as organizações indígenas, visando com-preender a correlação entre a cosmologia do grupo, seu sistema de representações de doença epráticas de cura e sua dinâmica de transformação em situação de contato interétnico. O levan-tamento dos mitos explicativos da origem da doenças demonstrou a existência de diversas cate-gorias tradicionais de doença que orientam as práticas tradicionais de cura e a incorporação dossaberes biomédicos. A cosmologia Baníwa opera como sistema de acolhimento das informaçõesde biomedicina, que são apropriadas e ressignificadas segundo a lógica do pensamento mítico;estratégias cognitivas similares são utilizadas para a geração das demandas que as liderançasindígenas encaminham aos Conselhos de Saúde e Serviços de Saúde.Palavras-chave Serviços de Saúde; Representações Sociais; Baníwa; Índios Sul-Americanos

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Introdução

Os Baníwa são um povo de língua Aruák quehabita a região do Alto Rio Negro, Noroeste daAmazônia Brasileira. Sua população atual estáestimada em 4.220 pessoas, distribuídas em 84aldeias (ISA/FOIRN, 1998) nas áreas ribeiri-nhas dos rios Içana e Aiari, afluentes do RioNegro. A Figura 1 evidencia a distribuição geo-gráfica dos Baníwa no território rionegrino.

Tal como outros povos indígenas do AltoRio Negro, sua organização social está baseadaem unidades de descendência patrilinear e pa-trilocal, as quais obedecem à disposição hie-rárquica dos sibs – o sib congregaria os descen-dentes de um único ancestral –, que organizaminternamente essa sociedade (Wright, 1992).Eles empregam também critérios lingüísticospara a demarcação de identidade, o que facilitao reconhecimento das relações de parentesco eo estabelecimento de laços de solidariedade,alianças e trocas matrimoniais (Jackson, 1983).

Esses grupos praticam a agricultura de coi-vara e desenvolveram grande habilidade napesca, que constitui um dos principais recur-sos alimentares disponíveis. Apesar do longocontato com as sociedades nacionais brasilei-ra, colombiana e venezuelana, esse povo pre-serva suas tradições e limita, sempre que pos-sível, as intrusões do processo civilizatório emsuas aldeias.

O povo Baníwa dispõe de complexo sistemade saberes míticos que orienta sua organizaçãosocial, bem como as atividades da vida cotidia-na que garantem a reprodução da sociedade.Dentre tais saberes, as concepções de doença eas práticas terapêuticas – realizadas por diver-sos agentes de cura – adquirem especial rele-vância para a resolução de seus problemas desaúde. Os principais agentes de cura são os xa-mãs, os conhecedores de plantas medicinais eos donos de cânticos, um tipo de especialistaque trabalha com cânticos religiosos nos ri-tuais de cura, de passagem etc. A eles devemsomar-se hoje os agentes indígenas de saúde,os profissionais de biomedicina dos serviçosde saúde do Brasil e da Colômbia e a autome-dicação com remédios industrializados. Todosesses elementos formam um conjunto de es-tratégias terapêuticas acessíveis a esse grupoindígena.

A cosmologia Baníwa é essencial ao enten-dimento da origem e reprodução das doenças.Nesse contexto surgem personagens comoNhiãperikuli, herói criador da humanidade eresponsável por boa parte da organização dacultura Baníwa; Amaru, a primeira mulher, as-sociada às ferramentas fabricadas pelos bran-

cos, ao calor e às doenças febris; Kuwai, filhode Nhiãperikuli e Amaru, um ser dotado de po-deres mágicos simultaneamente construtivos edestrutivos, exilado por Nhiãperikuli do mun-do ancestral em função de sua periculosidade.

Nos ciclos míticos, o poder mágico de Ku-wai – expresso através da música – é gradativa-mente socializado e transferido aos humanos –mediante os rituais de passagem e o aprendi-zado das músicas e canções terapêuticas – porDzuli, um dos irmãos de Nhiãperikuli, que setorna o “dono” das rezas, das plantas medici-nais, do tabaco e do paricá, ou seja, dos princi-pais instrumentos de cura Baníwa. Umáuali ouUliámali é uma serpente ancestral, pai dos pei-xes, a qual – para os informantes – representa adesordem, a sexualidade irrefreada e a pericu-losidade de uma natureza ancestral selvagem ehostil à permanência da humanidade no mun-do (Hill, 1993).

No início, o mundo ancestral é pequeno einacabado: pré-cultural, pré-sexual e tempo-ro-espacialmente indiferenciado. O domínioproto-humano é reduzido a uma só aldeia, e ospersonagens que a habitam vivem em estadopermanente de hostilidade e canibalismo, com-petindo entre si pelo controle do cosmo. Elesguerreiam com os mais diversos tipos de ani-mais/espíritos – em particular, com as serpen-tes/peixes – que garantirão a principal fonte dealimentação dos futuros humanos. Por meio deseu canto mágico, Kuwai expande o mundo e opovoa ao nominar as espécies animais e vege-tais. Gradativamente, ele e Nhiãperikuli esta-belecem os fundamentos da vida humana e daorganização da sociedade Baníwa. Como mar-co essencial deste processo, assinalamos a ins-tituição do ritual masculino de passagem, feitapor Kuwai. Esse ritual é reproduzido para asfuturas gerações humanas. Os símbolos da ini-ciação masculina são as flautas mágicas que,segundo o mito, surgiram de uma palmeira quecresceu sobre as cinzas de Kuwai, após este seratirado em uma fogueira por seu pai.

As flautas sagradas tornam-se símbolos davida, da morte e das regras da sociabilidadehumana na cultura Baníwa. Depois do assassi-nato de Kuwai, instaura-se uma guerra entrehomens e mulheres em busca do controle dasociedade humana. Essa luta de gênero mate-rializa-se na disputa pela posse dos instrumen-tos musicais que orientarão as regras de socia-lização das futuras gerações. As mulheres, lide-radas por Amaru, roubam de Nhiãperikuli asflautas sagradas e, ao tocá-las, conferem aomundo sua forma atual. Por sua vez, as flautassão retomadas por Nhiãperikuli, que restaurao domínio masculino na sociedade, e, em re-

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presália, exila Amaru, que, transmutada magi-camente em quatro seres, se desloca na dire-ção dos quatro pontos cardeais, para fora daterra Baníwa, onde se tornam mães ancestraisdos brancos, a quem ensinam o segredo da fa-bricação dos bens industrializados (Hill, 1993;Wright, 1993).

Esse contexto mítico é essencial ao enten-dimento das concepções da origem e reprodu-ção da doença. O mundo ancestral é um caóti-co palco de condutas violentas, as quais invia-bilizam a vida humana. Como em muitas ou-tras sociedades, os mitos falam de incesto, ca-

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nibalismo, assassinato e de outras situações deviolência extrema que devem ser dominadas esuperadas para que se instale o mundo queatualmente conhecemos. O relato dos mitostanto permite evidenciar o movimento transi-cional de instauração da ordem social huma-na – a superação da violência perpétua do in-diferenciado mundo ancestral – quanto as con-dições geradoras de doença, estreitamente li-gadas ao caos, ao comportamento anti-social,à sujeira, à putrefação, às transgressões das re-gras alimentares, de higiene pessoal e de obe-diência às gerações mais velhas.

Figura 1

Área Baníwa – Alto Rio Negro.

terra indígena Baniwa

sede da comunidade

Oicai

Acira

Oibi

Rio Aiari

Unibi

Rio IçanaAciri

Aibri

Cucui

Iauaretê

Foirn

São Gabriel da Cachoeira

Rio

Neg

ro

T. I. Alto Rio Negro

Rio Uaupês

Colômbia

Fonte: mapa – ISA, 1998.

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Wright (1993, 1996) – que tem estudado oxamanismo, o trabalho dos donos de cânticose a construção semântica dos cânticos de curae de rituais de passagem dos Hohodene, umafratria Baníwa do rio Aiari – demonstra a ínti-ma articulação, na produção mítica do grupo,entre a atividade xamânica, a manutenção daordem do cosmos, da sociedade, da identidadee territorialidade dos Hohodene.

Por sua vez, Hill (1993) – trabalhando entreos grupos Baníwa da Venezuela, denominadosWakuenai – tem investigado os cânticos de cu-ra e prevenção de doenças, os malikai, carac-terizados como um complexo conjunto de ora-ções, cânticos e canções cantados nos rituaisde nascimento, ritos pubertários femininos ede cura. Segundo o autor, estes conformam umsofisticado sistema musical em que se articu-lam os processos microcósmicos do corpo hu-mano com as transformações da natureza notempo-espaço mítico dos seres ancestrais.

O mesmo autor sustenta que os processosmetafóricos da narrativa mítica não devem serencarados como uma ordem lógica rígida e for-mal que programa o pensamento e a ação co-letivos, mas devem ser vistos como a expressãode parâmetros de orientação para a ação coti-diana, que pode ser dinamicamente recons-truída segundo as necessidades do contexto edo momento atual da sociedade. Os Baníwa nãoestão isolados temporal e espacialmente; aocontrário, mantêm estreitas relações com outrospovos do Alto Rio Negro e com agentes de trêssociedades nacionais. Embora os saberes regula-dos pelos mitos permaneçam como referênciaprimordial da cognição, da ética e dos princípiosde ação, eles são redimensionados na dinâmicahistórica a que estes povos estão submetidos. É apartir dessa perspectiva que buscaremos traba-lhar aqui suas representações de doença e cura.

Referencial teórico-metodológico

A pesquisa vem sendo realizada no Municípiode São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas,mediante um trabalho desenvolvido em parce-ria com as organizações indígenas, visandotanto à investigação dos fundamentos míticose cosmológicos das representações de doençae práticas de cura Baníwa e Kuripáka – e sua di-nâmica de transformação em situação de con-tato interétnico – quanto ao estímulo do uso damedicina tradicional entre as gerações mais jo-vens – em particular, pelos agentes indígenasde saúde. As informações foram colhidas juntoa homens e mulheres idosos conhecedores deplantas medicinais e das doenças por elas tra-

tadas, benzedores, “donos de cânticos”, e xa-mãs, “capitães” (líderes indígenas), Agentes deSaúde e lideranças de organizações indígenas.

O referencial teórico utilizado apoia-se emperspectiva interdisciplinar, propiciada pelosestudos de Antropologia Social dirigidos aospovos do Alto Rio Negro, pela produção cientí-fica sobre a teoria das Representações Sociais,assim como pelo trabalho de autores ligados àAntropologia da Doença. Laplantine (1987),Augé (1986), Zempléni (1985) e Buchillet (1991,1995), entre outros, contribuem para o enten-dimento das categorias de interpretação dedoença e cura do povo estudado.

Representações sociais são aqui concebidascomo categorias de pensamento, formas de co-nhecimento elaborado e partilhado por grupossociais, que os auxiliam a interpretar, questio-nar, atribuir sentido e intervir na realidade (Jo-delet, 1989). Embora de natureza abstrata, asrepresentações sociais auxiliam a organizar asrelações sociais dos homens entre si e com anatureza, favorecendo a mobilização dos meiosmateriais que possibilitam a (re)produção dasociedade. Tais estruturas cognitivas permitema construção de sentidos a respeito de realida-des inicialmente ininteligíveis para os atoressociais, os quais estabelecem pontes de racio-cínio analógico entre os saberes prévios de quedispõem e as situações novas que exigem a for-mulação de sentidos adicionais para que pos-sam tornar-se manejáveis pela razão. Seme-lhantes estratégias são utilizadas para a incor-poração de novos saberes de saúde com osquais os Baníwa vêm travando relação ao lon-go do contato histórico, como as práticas bio-médicas a eles acessíveis.

Cabe ressaltar a íntima interação entre re-presentações e práticas sociais. Sua interde-pendência exigiu uma investigação simultâneada influência das representações de saúde edoença sobre as práticas de cura e do redimen-sionamento que as ações concretas dos sujei-tos podem provocar em sistemas de represen-tação de dada realidade.

Orlandi (1993) parte da premissa de que alinguagem expressa no discurso dos sujeitos ésimultaneamente instrumento de construção/reprodução da realidade e mediação das rela-ções socialmente travadas; é uma forma de tra-balho, de produção simbólica e ação socialconstituída em processo histórico determina-do, no qual a linguagem constitui e se constituina sociedade. Neste sentido, representações epráticas são elementos indissociáveis de umasó realidade, pertencendo ao domínio das rela-ções de poder vigentes e podendo operar tantocomo meios de manutenção como de transfor-

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mação das relações sociais. A abordagem nãodissociada de linguagem/pensamento e açãopermite situar as práticas discursivas comofrutos de uma produção social e não apenascomo elaborações de subjetividades indivi-duais (Spink, 1995).

Representações tradicionais de doenças Baníwa

O termo “doenças tradicionais” está explicitan-do simultaneamente as categorias de doençasindígenas – reconhecidas como tal pelos infor-mantes – e as representações nativas acercadas doenças trazidas pelo contato, que nãoeqüivalem necessariamente aos diagnósticosbiomédicos.

Os Baníwa dispõem de amplo conjunto derepresentações de doença, cuja lógica internaé inteligível a partir da conexão estabelecidapelas disposições míticas que ordenam sua so-ciedade. Dentre as principais categorias dedoença podemos citar:

Mánhene

Esse vocábulo, traduzido para o português co-mo “veneno da região”, refere-se às práticas decolocação de substâncias venenosas na comi-da, bebida, objetos pessoais e orifícios naturaisde um inimigo, visando matá-lo. Algumas for-mas de envenenamento vegetal podem gerarquadros mórbidos de efeito agudo e morte rá-pida, ao passo que outras substâncias provo-cam um processo de doença crônica que enfra-quece gradativamente o doente, tornando-opálido, astênico e com distúrbios de comporta-mento caracterizados pela adoção de compor-tamento animal e incapacidade de realizar ati-vidades da vida cotidiana. Para os informantes,essa é a mais grave e freqüente das doenças tra-dicionais. Sua importância pode ser aquilatadapelo fato de a primeira morte no mundo ances-tral ter sido provocada por veneno. A origemdos venenos remete a Kuwai, que os deixou nomundo como vingança por seu assassinato.

Hiuiathi

São rezas/cânticos do mal enviados por pes-soas que desejam causar dano aos seus inimi-gos. Podem ser feitas por pajés, benzedores oupessoas comuns que conheçam seus conteú-dos. Os sopros seguem a mesma lógica doscânticos, seus opostos simétricos; eles nomi-nam objetos do mal (pássaros/espíritos, pei-xes, plantas venenosas, espíritos dos mortos

etc.), visando causar dano à vítima; seu veículoessencial é a fumaça do cigarro soprada no ar.Existem diversos tipos de hiuiathi, mas umgrupo especial deve ser assinalado, aquele queprovoca as doenças da feminilidade. Hemorra-gias pós-parto, excesso de menstruação, mortepré e pós natal do feto, infertilidade, falta deleite materno são condições geradas por so-pros que “estragam” a mulher, em geral devidoa ciúme de pretendentes desprezados.

Doenças e infortúnios provocados por Iupinai

Os Iupinai são seres espíritos da floresta, daságuas e do ar; foram proto-humanos que usa-ram paricá de forma indiscriminada e irres-ponsável; enlouqueceram sob seu poder e fo-ram punidos, adquirindo permanentemente aforma animal. Permanecem em estado de guer-ra latente com os humanos. Esses seres exercema função de censores sociais no mundo Baníwa,pois o não cumprimento de regras tradicionaisde higiene, pensamentos e sonhos libidinosos,a falta de sobriedade e de cumprimento das res-trições alimentares, desobediência e inveja sãocomportamentos passíveis de atrair seu ata-que. Os Iupinai podem causar diversas doen-ças de pele, cegueira e tumores, mas são res-ponsáveis igualmente por tempestades e alte-rações climáticas passíveis de causar dano aosseres humanos. Podem alvejar os humanos comflechinhas walama, causando igualmente essetipo de doença. Boa parte das doenças oriundasdo contato (doenças de branco) pode ser clas-sificada como um subgrupo dentro desta cate-goria, pois elas derivam do cheiro do combus-tível, produto dos Iupinai da terra, utilizadopara fabricar as mercadorias. Cabe lembrar queas “doenças de branco” são simultaneamenteligadas a Amaru que, na condição de mãe an-cestral dos brancos, é também a origem das fá-bricas e das máquinas movidas a combustível.

Walama

Walama é o grupo de doenças causadas por fle-chinhas mágicas que podem ser atiradas porpajé, pelos Iupinai ou pelas estrelas. Sua carac-terística mais essencial é dor súbita e aguda, ti-po perfurante. O meio de difusão do Walama éo ar, mas os trovões podem ser mobilizados pe-los pajés para causar formas graves de Wala-ma. Existe certa confusão diagnóstica entreWalama e Mánhene de tipo agudo. Nesse caso,o diagnóstico pode ser confirmado apenas pe-la ação xamânica ou por tentativa e erro de ou-tras opções terapêuticas.

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Doenças causadas pelo não cumprimento de regras alimentares

O representante mais expressivo deste grupo éifiukali, termo que congrega um conjunto demanifestações diarreicas, oriundas de uma as-sociação entre preparação inadequada de ali-mentos (o peixe ou caça incompletamente lim-pos ou mal cozidos mantêm seu cheiro especí-fico, o pitiú, que provoca essa doença) e a faltade rituais pós-parto kalidzamai, que visam pro-teger o recém-nascido e sua família da pericu-losidade dos alimentos. Dentro desse grupopodem ser situadas outras doenças do contato,como a diarréia com sangue (iraithuli) queacomete pessoas insuficientemente protegidaspelos malikai.

Doenças do Cosmos

Chamadas em Baníwa de hekuapi ipua, sãodoenças provocadas pelos poderes de serescósmicos, como as estrelas. Tais doenças estãocorrelacionadas ao ciclo de maturação das fru-tas e das estações do ano, eventos demarcadospelo surgimento de constelações no horizonte,a quem são atribuídos poderes de agressão aosseres humanos.

As “doenças de branco”

Não constituem categoria diferenciada; ao con-trário, elas se distribuem entre as diferentes ca-tegorias mais inclusivas identificadas acima.Para os Baníwa, o traço distintivo das doençasde branco é seu caráter de transmissibilidade,ao contrário das doenças tradicionais, que nãocostumam gerar epidemias. As principais “doen-ças de branco” reconhecidas pelos Baníwa são:sarampo, malária (kooname), gripe (hfétchi),diarréia de sangue (iraithuli), varíola (ibichi-kan), catapora (karaka ibichikan = varíola pe-quena) e coqueluche (iitsipemi). São reconhe-cidas ainda a praga ou vela (macumba feita porfeiticeiro branco) e a tuberculose (dzéfemi).

Vale enfatizar, porém, que os informantesclassificam as doenças decorrentes do contatosegundo sua própria lógica, não havendo rela-ção de correspondência direta com as nosolo-gias biomédicas. Assim, qualquer quadro febrilque acometa vários indivíduos em espaço cur-to de tempo, acompanhado ou não de outrossintomas, é susceptível de ser classificado co-mo kooname. Igualmente, toda manifestaçãocrônica de tosse pode ser classificada comoiitsipemi; embora os informantes caracterizemcom muita precisão a diferença entre esta pa-tologia, de curso prolongado e as manifestações

mais agudas (coriza, espirros, febre, mal estarde curta duração) de hfétchi. Essas classifica-ções seguem a lógica intrínseca ao pensamen-to mítico e não as premissas da microbiologia.

A origem das “doenças de branco” está liga-da à morte de Kuwai e ao surgimento das flau-tas sagradas que ordenam o ritual de passagemmasculina. O roubo das flautas pelas mulheresprovoca seu exílio para fora do território indí-gena, onde Amaru se torna mãe ancestral dosbrancos, a quem ensina a produzir mercado-rias em fábricas. O cheiro do combustível em-pregado para movimentar as máquinas queproduzem os bens industrializados é conside-rado como causador de boa parte das doençastrazidas pelo contato. Da mesma forma, o calorgerado pela fabricação dos produtos industria-lizados remete a Amaru, a “dona” do calor queaparece na forma de febre das doenças trans-missíveis trazidas pelo contato.

Por sua vez, a proveniência da malária(kooname) é contada em um mito que explicatambém o surgimento do timbó, a partir docorpo despedaçado de um ser venenoso, Kuná-feri, que é espalhado pelos rios da região e de-positado em “panelas” (isto é, buracos) de pe-dra. No período de transição entre verão e in-verno, seu veneno mistura-se aos cursos deágua, provocando a doença. Neste sentido, amalária pertence simultaneamente ao domíniodos Iupinai – que exercem o controle sobre suadisseminação no meio ambiente – e ao domí-nio das doenças provocadas por pajés – quepodem liberá-las para causar dano a alguémpor vingança. A origem da diarréia com sangueaparece em uma variante do mito, que explicaa procedência da noite.

Dzéfemi, que é traduzida como tuberculo-se, é categoria mutável que ora pode ser classi-ficada como mánhene ora como hiuiathi. Osinformantes mais velhos rejeitam a idéia deque esta seja doença do contato, não a classifi-cando como doença do branco. Muitos duvi-dam da existência dessa entidade nosológicadenominada de tuberculose pela biomedicina.Os informantes agrupam sob o nome de Dzéfe-mi todas as manifestações crônicas de fraque-za, emagrecimento, astenia e dificuldade deexecutar trabalhos cotidianos; tosse e vômitosou escarro de sangue podem estar presentes ounão. Essas manifestações, quando crônicas, ten-dem a ser classificadas como mánhene e trata-das como tal através de plantas medicinais edieta própria para veneno. Quando o quadronão se resolve, o doente pode recorrer ao pajé,caso tenha meios de pagar pelo seu trabalho.Se os tratamentos utilizados não forem bemsucedidos há tendência em reclassificá-la co-

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mo hiuiathi e tratá-la com rezas e dieta. Mui-tos doentes completam o tratamento biomédi-co para tuberculose, mas mantêm o tratamen-to para mánhene simultânea ou seqüencial-mente àquele. Para os informantes, a origem deDzéfemi é referida à origem geral de todos osmánhene, remetendo, portanto, à Kuwai. Tam-bém não descartam a eventual participaçãodos Iupinai, que podem provocar tumores den-tro do peito do doente, gerando tosse crônica.

Segundo Wright (1993/1994), o cosmosBaníwa deve ser pensado em dois eixos: um,vertical, que trata da linha de continuidadetemporal dos ciclos de vida que se iniciam nasgerações de ancestrais míticos e se reprodu-zem entre os humanos que os sucedem, per-manecendo até os dias atuais. Outro, o eixo ho-rizontal, trata da reprodução das relações deguerra, aliança, consangüinidade e afinidadeentre grupos sociais humanos e destes com anatureza; trata-se aqui do âmbito das relaçõesde reprodução da sociedade, no qual a caça, apesca, a roça, os casamentos, nascimentos, astrocas e as guerras são elementos constitutivos(Wright, 1996). Situamos a origem da doença edas estratégias de prevenção e cura no eixovertical do cosmos e sua perpetuação no mun-do no plano de reprodução da vida social, ouseja, no eixo horizontal.

No eixo vertical/temporal, o surgimento dadoença e infortúnios diversos estão intima-mente conectados aos mitos de Nhiãperikuli,Amaru, Kuwai e Umãuali, que fornecem umsubstrato explicativo lógico para esses eventose subsidia a elaboração das categorias a priori(Sindzingre & Zempléni, 1981) de reconheci-mento das doenças anteriormente descritas. Alógica explicativa da origem geral das doençasdemonstra que não devem ser tomadas comocategorias estáticas, sendo freqüentes as mu-danças de diagnósticos em função do fracassode uma eventual terapêutica instituída. A trans-figuração de uma categoria nosológica em ou-tra encontra explicação na dinâmica de suaorigem mítica; assim, quadros de walama po-dem confundir-se com doenças provocadaspor Iupinai e/ou pelas estrelas. O que pareceser uma confusão no âmbito do diagnóstico re-cobre a origem comum de todos esses perso-nagens que, no tempo ancestral, constituíamgrupos de parentes e afins, capazes de perpe-trar agressões mútuas com zarabatanas e ou-tros meios mágicos. Doenças aparentementedíspares recobrem uma rede de relações parti-lhadas e reproduzidas no mundo dos ances-trais e dos humanos.

A reprodução social da doença no mundoBaníwa deve ser entendida no plano horizontal

através da movimentação dinâmica dos agen-tes e vítimas da doença no interior e nas fron-teiras sócio-geográficas da sociedade Baníwa.A lógica subjacente enfatiza o movimento “cen-tro” da cultura Baníwa versus “periferia”, que érecorrente em vários relatos míticos. Esse pla-no de análise remete às relações de troca, alian-ças e disputas entre grupos de parentes e deafins, em que se situam as doenças que se re-produzem no interior das fronteiras da socie-dade, isto é, nas relações travadas entre huma-nos. Nesse plano podem ser agrupadas doen-ças como mánhene e hiuiathi, que são formasde agressão dos homens entre si, inscrevendo-se no circuito das tensas relações entre consan-güíneos e afins que comportam vinganças, in-veja e desentendimentos de todos os tipos, tra-vados sempre no interior das fronteiras da so-ciedade. As doenças de origem cósmica repre-sentam os conflitos potenciais estabelecidosentre seres humanos e cósmicos. Remetem àíntima interação que humanos, animais e espí-ritos partilhavam nos tempos ancestrais. Aquise situam as Hekuape Ipua, o grupo especial desopros (hiuiathi) provocados pelos espíritosdos mortos Inyaime e as doenças decorrentesde alterações climáticas e cósmicas desenca-deadas por pajés poderosos. Esse nível de cau-salidade mais abrangente representa tambéma idéia de que todos os agravos ocorridos nosoutros níveis estão aqui contidos. Todo eventopatológico, longe de ser ocorrência individual,é evento de âmbito simultaneamente social,sobrenatural e cósmico, ameaçando a estabi-lidade e a ordem deste e do “outro mundo”(Wright, 1996; Zempléni, 1985).

O grupo de doenças Walama decorre simul-taneamente de conflitos entre humanos, situa-ção em que a doença é mandada pelo pajé, ede flechas de Iupinai e/ou das estrelas, ambosantigos humanos transfigurados em animais eastros. As doenças de branco ocupam posiçãofronteiriça, mas sua origem ocorre fora dasfronteiras da cultura Baníwa, apesar de media-da por elementos a ela pertencentes.

Representações sociais sobre biomedicina e serviços de saúde

As produções míticas e representações tradi-cionais de doenças operam como sistema deacolhimento que permite “ancorar”, ressignifi-cando-os, os saberes biomédicos que perpas-sam o mundo Baníwa. O conceito de “ancora-gem” foi cunhado por Moscovici (1989) paraexpressar um processo do pensamento queconsiste em classificar, nomear e inteligir – a

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partir de categorias, imagens e juízos já conhe-cidos – aquilo que é novo e desconhecido parao sujeito. Utilizando este tipo de estratégia cog-nitiva, o pensamento Baníwa pode gerar idéiassobre “doenças de branco” e serviços de saúdeque só adquirem inteligibilidade plena quandocontextualizadas no âmbito da cosmologia aci-ma descrita.

Essa discussão remete às mútuas intera-ções entre representações e práticas sociais. Asrepresentações geradas no âmbito da cosmolo-gia produzem elementos cognitivos que orien-tam a ação. Tais ações comportam hoje nãoapenas práticas sociais orientadas pela tradi-ção, mas igualmente aquelas engendradas pe-las relações de contato interétnico, capazes deredimensionar a produção mítica que operacomo estruturante do “ethos” Baníwa.

O estudo de representações sociais eviden-cia que elas são simultaneamente estáveis e di-nâmicas. São fruto de consenso coletivo, po-rém apresentam, da mesma forma, fortes va-riações individuais. Tais características contra-ditórias deve-se à coexistência entre o que édenominado núcleo central e elementos peri-féricos de um sistema de representações so-ciais (Abric, 1994). Este autor, investigando es-ta curiosa contradição das representações so-ciais, desenvolveu a idéia de que os sistemas derepresentações sociais contêm um núcleo cen-tral, capaz de organizar e unificar a memóriacoletiva, ademais de dar sentido de continui-dade aos saberes partilhados, garantindo assima perenidade e estabilidade das representaçõesde um grupo social. Segundo Sá (1996), o nú-cleo central estrutura e atribui sentido a outrasrepresentações não consensuais e não hege-mônicas presentes no grupo.

Além disso, por serem dinâmicas, as repre-sentações sociais freqüentemente são contra-ditórias e sofrem transformações históricas.Essa constatação levou Jean Claude Abric aidentificar que, além do núcleo central, exis-tem elementos periféricos, mais permeáveis àsmudanças do contexto social. Embora estrutu-rados pelo núcleo central, eles são a expressãoindividualizada de diferentes formas de apro-priação, pelos sujeitos, da dinâmica da realida-de concreta, que nem sempre é congruentecom as produções consensuais da tradição. Oselementos periféricos de um sistema de repre-sentações sociais promovem a interface entre arealidade social e o conjunto de elementos cog-nitivos que formam o núcleo central do gruposocial (Sá, 1996).

Tais características são aplicáveis aos sabe-res da tradição Baníwa, em que o pensamentomítico opera como núcleo central, ordenando

e atribuindo significado às idéias e práticas re-ferentes à saúde, doença e cura. A memória co-letiva reproduz certos níveis de consenso sobreo tema, apesar dos percalços do contato e dasmudanças introduzidas pela modernidade nomodo indígena de viver. A produção mítica des-se povo agrega atualmente tanto as informa-ções oriundas da cultura tradicional quanto asde biomedicina. A partilha de idéias a respeitodos diversos sistemas médicos que nela coexis-tem é bastante rica, variando conforme a posi-ção que os sujeitos ocupam na cena social. Mu-lheres, Agentes de Saúde, xamãs, liderançasetc. expressam, através dos elementos periféri-cos de seu cogito, diferentes formas possíveis deapropriação dos saberes tradicionais e daquelesdecorrentes das relações de contato interétnico.

No momento atual da história das relaçõesde contato no Alto Rio Negro, as informaçõesda biomedicina parecem formar parte dos ele-mentos periféricos do sistema de representa-ções Baníwa, caracterizando-se como um tipode representação emancipada, isto é, um con-junto de saberes que, embora apropriados pormembros do grupo social, ainda não se disse-minaram pelo tecido social em intensidade ca-paz de redimensionar o conjunto de represen-tações hegemônicas, mesmo sendo passíveisde influenciá-lo (Sá, 1996). Embora os povosindígenas do Alto Rio Negro tenham bastantefamiliaridade com idéias e conceitos biomédi-cos veiculados em interações diversas com asagências de contato, como os serviços de saú-de, a escola, as relações comerciais, veículos decomunicação de massa e o processo de capaci-tação dos agentes indígenas de saúde, as for-mas de apropriação dessas idéias caracteri-zam-se como bricolage, pautadas pela lógicado pensamento mítico, que promove conside-rável ressignificação do sentido original comque foram enunciados no discurso científico.

Analisando as representações indígenas so-bre a tuberculose pode-se observar que os ca-sos identificados pelos indígenas como tuber-culose ou Dzéfemi recobrem amplo conjuntode sinais e sintomas crônicos de fraqueza, as-tenia, emagrecimento, tosse, escarros com san-gue e palidez que podem ser classificados tan-to como mánhene ou como hiuiathi. A trans-missibilidade da tuberculose é conhecida entreos informantes, porém não é atribuída a ação debactérias. O adoecimento por Dzéfemi decorreda deliberação de outro ser humano, que enviaum sopro ou um veneno para a vítima. O doen-te também não é isento de responsabilidade naeclosão da doença, pois ele torna-se suscetívelao veneno ou ao sopro porque não realizouadequadamente seus rituais de liminaridade,

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desobedeceu regras de conduta ou algo simi-lar. Existe responsabilidade compartilhada en-tre o doente e o agressor. A interpretação nati-va rejeita a idéia de acaso ou transmissão alea-tória própria da explicação microbiológica.

O mánhene povoa todos os espaços; todosestão sob risco constante de envenenamento,qualquer episódio de doença pode ser inter-pretado como a ação de veneno. Essa idéiaorienta grande parte das demandas de atendi-mento de saúde tradicionais ou biomédicas. Odeslocamento para a cidade com permanênciana Casa do Índio é evento temido, já que lá exis-tem funcionários de outros grupos étnicos –em particular, as cozinheiras –, colocando osdoentes em situação de extrema vulnerabilida-de. As pessoas temem o alimento preparadopor membros de grupos inimigos. À fragilidadedo estado de doença soma-se o perigo de en-venenamento da comida.

Dentre as demandas levadas para os Con-selhos de Saúde, pode-se observar a propostade retirada de funcionários indígenas da Casado Índio – em especial, de pessoas oriundas doUaupés, consideradas ameaça maior que aque-la representada pelos brancos. As reivindicaçõespela melhoria do atendimento priorizam a iden-tidade clânica ao propor a alocação de funcio-nários que não representem ameaça de enve-nenamento. Neste contexto, a alocação de mãode obra indígena nos serviços pode adicionarnovos elementos de tensão inter e intraétnica.

Ao medo de ser envenenado soma-se o re-ceio de não seguir a dieta adequada nos servi-ços de saúde. Os Baníwa praticam uma dietéti-ca bastante restritiva para os doentes – em par-ticular, aos acometidos de mánhene, a quem évetado o consumo da maioria das fontes de pro-teína animal, diversos tipos de frutas e pimenta.A internação no hospital e/ou na casa do Índioimplica em ruptura com essas regras, gerandoverdadeiro pavor de morrer devido a estas trans-gressões. O mánhene também orienta boa par-te da demanda por exames laboratoriais. Os in-formantes reivindicam a realização periódicade exames de sangue e “do fígado”, a fim de quepossam avaliar se há presença de veneno emseu corpo e tomar as medidas cabíveis ao caso.

Uma das características clínicas essenciaisdo mánhene crônico é a fraqueza, sendo fre-qüente a prática de automedicação, na qualremédios considerados “fortes”, como os anti-bióticos, ou que “dão força”, como os suplemen-tos vitamínicos e o sulfato ferroso, vêm sendoutilizados para o tratamento desta nosologiaindígena.

As noções de parasitas intestinais e de mi-croorganismos disseminadas pelos professores

e profissionais de saúde são, da mesma forma,ressignificadas. Para muitos informantes, elessão, na verdade, Iupinai. As características deação descritas para os micróbios são identifi-cadas como as formas de atuação dos Iupinai,que atacam as pessoas mais vulneráveis. Emtermos biomédicos, essa vulnerabilidade podeeqüivaler, por exemplo, à baixa resistênciaimunológica; para os Baníwa, trata-se de pes-soas enfraquecidas pelo descumprimento deregras alimentares, de liminaridade ou de con-duta. Graças à capacidade de transformaçãodinâmica de seus termos, própria do pensa-mento mítico, pode haver transmutação de mi-cróbios em parasitas intestinais e vice-versa.Igualmente, as afecções que provocam podemser doenças de Iupinai e/ou, em caso de mani-festações digestivas com sintomas consumpti-vos, o diagnóstico pode ser mudado para Ifiu-kali. Os vermes/micróbios podem acometer osseres humanos através de sua presença na co-mida – em particular, aquelas com cheiro forte(pitiú) como peixes e caças –; neste caso, ocheiro é indicativo da capacidade agressora doser. O cheiro, a parte que magicamente repre-senta o todo, é capaz de gerar o processo mór-bido mesmo que o verme/micróbio, em si, nãoesteja presente no alimento. Parasitas encon-trados em frutas concretizam esta idéia, asso-ciando a doença à putrefação (atual ou poten-cial) dos alimentos. A goiaba, por exemplo, éconsiderada uma fruta de alto grau de patoge-nicidade, dada a freqüência de “vermes” que jácontém mesmo sem estar putrefata.

Tais representações influenciam a adoçãoou, pelo menos, a recomendação de práticasde higiene individual, que só superficialmentese assemelham às prescrições higienistas dabiomedicina. Em muitas aldeias existe fortecobrança de que os Agentes de Saúde fiscali-zem o grau de limpeza dos utensílios usadosno preparo do alimento e as condições de lim-peza corporal das mulheres que os preparam.Essas medidas visam evitar a proliferação deodores nas mulheres e/ou vasilhas propiciató-rios de ataques e Iupinai e favorecedores deIfiukali. O bom desempenho do Agente de Saú-de, neste caso, nada tem a ver com os preceitoshigienistas veiculados em seu treinamento. Tra-ta-se de exigir que ele faça cumprir regras decomportamento congruentes com costumes eprescrições míticas. Assim, sob aparente iden-tidade, nas práticas de higiene convivem lógi-cas muito díspares entre si.

Os vermífugos são desvalorizados porqueas pessoas os tomam, mas “não botam verme”;os informantes tecem comparações com mani-festações visíveis de cura dos antigos “purgan-

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tes”, que eliminavam os parasitas intestinais, ecom a extração de pêlos, pedras e outras subs-tâncias retiradas do corpo do doente nas ses-sões de pajelança.

Uma das mais freqüentes reivindicações in-dígenas é a de realização de viagens periódicasde assistência à saúde nas aldeias. Os discursosdos informantes evidenciam a apropriação deum modelo assistencial voltado para a atençãomédica curativa à demanda espontânea, prati-cado historicamente pela FUNAI, missionáriose militares, que se situa como hegemônico emrelação a outras práticas sanitárias centradasem modelos preventivos e de determinação so-cial da doença. Apesar disso, a apropriaçãodesse modelo deve ser problematizada. Existea expectativa de que os doentes sejam atendi-dos, mas, similarmente às terapêuticas tradi-cionais, os tratamentos deveriam ser estendi-dos aos familiares. Espera-se igualmente queas equipes de saúde cumpram as regras de con-vivência social Baníwa, que incluem a partilhade alimentos, a troca de gentilezas e informa-ções com as lideranças locais, os ritos de higie-ne corporal, enfim, as atitudes que caracteri-zam as regras de boa convivência social. Deacordo com essa óptica, os profissionais de saú-de devem inserir combustível e medicamentosno circuito de troca de presentes, distribuindo-os com generosidade. Observa-se que as práti-cas sanitárias assumem a forma de normas decomportamento social e de mercadorias, obje-tivadas em produtos, como os remédios, exa-mes e combustível.

A demanda por medicamentos industriali-zados é bem conhecida por todos os que traba-lham com a prestação de serviços de saúde pa-ra populações indígenas. Lideranças, Agentesde Saúde, professores indígenas, todos pressio-nam para obter o maior número e quantidadepossível para suas aldeias. A investigação de-monstra que medicamentos e outras mercado-rias têm funções simbólicas semelhantes, as-sociadas ao poder mágico do branco. O consu-mo de medicamentos deve ser analisado à luzdo uso geral de bens industrializados, em pro-cesso de consumo de símbolos não apenas desaúde, mas também de padrões ocidentalizan-tes de comportamento. Historicamente, os me-dicamentos têm sido parte das estratégias dealiciamento dos agentes civilizatórios, que osofereciam como meio de viabilizar as relaçõesde contato, entre outras mercadorias, abrindocaminhos para a subsequente exploração demão-de-obra nativa. O desejo dos medicamen-tos pela população deve ser analisado à luz des-se contexto, pois, como em outras realidadesnão indígenas, a atribuição de sentido ao me-

dicamento é mais ampla que sua dimensão te-rapêutica: seu consumo sempre comporta múl-tiplas dimensões, simbólicas, mágicas, de mer-cadoria etc. (Lefèvre, 1991). Na realidade estu-dada, para além dos aspectos de eficiência eeficácia terapêutica, o desejo/consumo de me-dicamentos e de outras mercadorias – como ga-solina e vestuário – simbolizam o acesso ao pro-cesso civilizatório, que é vivenciado por muitaslideranças como objetivo bastante desejável,embora cresça no seio do movimento indígenaa negação dessa forma de socialização.

O manejo de medicamentos pode repre-sentar também uma forma de prestígio nas re-lações comunitárias. Entre as práticas de curacoexistem graus de esoterismo diversos, va-riando em função do tipo de estratégia tera-pêutica adotada. Observa-se uma expectativasocial de que o Agente Indígena de Saúde dete-nha a exclusividade de certos saberes; a “caixade remédio”, que simboliza a capacidade decurar do Agente de Saúde, materializa um sa-ber não partilhável com outras pessoas da al-deia. Entre os Agentes de Saúde é generaliza-do o desejo de aprender um número cada vezmaior de medicamentos para serem usados emsuas práticas de cura.

Embora reconheçam a resolutividade dosmedicamentos industrializados nos quadrosde doença trazidas pelo contato – em especial,em situações epidêmicas –, a faceta mais valo-rizada desta eficácia situa-os no âmbito do po-der mágico dos brancos apontado reiterada-mente nos mitos Baníwa. Ao aprender as regrasde uso dos remédios do branco, os Agentes deSaúde habilitam-se a uma partilha parcial des-se poder. Os medicamentos parecem ser assi-milados aos instrumentos do pajé. O controlede maior número de espíritos e de poder é sim-bolizado, na sessão xamânica, pelo uso do ma-racá, pedras, tabaco e paricá, elementos queexpressam materialmente este poder. Similar-mente, o uso dos medicamentos industrializa-dos caracteriza o poder de cura do Agente deSaúde. Mesmo que sejam capazes de usar sorocaseiro, organizar reuniões e atividades deeducação em saúde, participar da vacinação oudos conselhos de saúde, encaminhar reivindi-cações e levar pacientes para o hospital, ne-nhuma dessas habilidades é capaz de superaro prestígio conferido pela capacidade de nomi-nar doenças e oferecer remédios para tratá-las.Sem eles, os Agentes se declaram impotentes esão reconhecidos como tais nas comunidades.

Apesar da oposição dos profissionais desaúde, é inegável que os medicamentos estãoinseridos no circuito de trocas comunais. Sem-pre que se medica um doente, este retribui

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com uma fruta, um beijú, ou outro objeto. Ape-sar dos esforços dos Agentes de Saúde para res-tringir a distribuição de remédios aos casos emque haja indicação farmacológica, mantendo-os fora dos circuitos de reciprocidade, eles ce-dem freqüentemente às pressões comunitá-rias. Nestes casos, tentam evitar a distribuiçãode remédios perigosos, oferecendo placebosou vitaminas nas relações de troca que são for-çados a estabelecer.

Além de ser um bem de prestígio, o medi-camento industrializado também representauma comodidade quando comparado às tera-pêuticas tradicionais. Boa parte delas exige tra-tamentos prolongados e, às vezes, penosos, co-mo a adoção de dietas que, por vezes, reduzemo doente à ingestão de mingau, de beijú e de al-guns poucos tipos de peixe. O uso de remédiosde branco gera a possibilidade de resolver adoença sem fazer os sacrifícios e restrições ali-mentares e sexuais inerentes às prescrições tra-dicionais. Atualmente é bastante freqüente queo medicamento industrializado se coloque co-mo primeira escolha, mesmo para o tratamen-to de doenças reconhecidas como indígenas. Adinâmica do processo de contato interétnicogera necessidades de consumo de produtos desaúde que se mostrem congruentes com ascondições atuais de vida; fatores como os des-locamentos para a cidade, a necessidade de pro-duzir para o mercado e as obrigações escolaresdificultam a aderência aos tratamentos tradi-cionais. Embora não haja abandono da basemítica que rege as representações de doença eas práticas de cura, estas últimas já não se colo-cam como a primeira escolha entre os Baníwa.

No estudo que realizou junto aos Zoró, Bru-nelli (1989) assinala que a compreensão das es-colhas terapêuticas de um povo depende do en-tendimento do contexto social que confere in-teligibilidade às concepções de seus sistemasmédicos e/ou daqueles que não lhe pertenciamtradicionalmente, mas com os quais são colo-cados em contato em decorrência da dinâmicadas interações sociais do mundo atual. Estascomplexas relações não são necessariamentede oposição ou de exclusão, mas podem enco-brir interações que ultrapassam as concepçõespróprias do campo da saúde ou aquelas do in-vestigador. São influenciadas por fatores so-ciais, econômicos, políticos e outros que nãocostumam ser reconhecidos como pertencen-tes ao campo da saúde, quando considerados apartir da óptica biomédica.

Embora não controlem o processo de dis-tribuição e circulação dos recursos terapêuti-cos industrializados, os Baníwa gozam de con-siderável autonomia de escolha, inclusive de

rejeitá-los, dentro do leque de opções terapêu-ticas para eles disponibilizado. Dificuldades deacesso aos medicamentos simbolizam, para aslideranças indígenas, seu prolongado processode exclusão dos benefícios sociais; elas sabemque os melhores e mais eficazes recursos tera-pêuticos ficam nas cidades, não chegando atésuas aldeias. O sentido de exclusão incrementaas tensões e desconfianças em relação aos bran-cos e define o perfil das demandas de saúde.Com freqüência, as reivindicações visam maisa redução do processo de desigualdade socialatravés da busca progressiva de maiores quan-tidades de bens de saúde do que a efetiva me-lhoria da qualidade dos serviços de saúde.

Considerações finais

Nas páginas acima buscamos uma perspectivaêmica para efetuar uma análise dos camposdiscursivos em saúde no Alto Rio Negro, ondese evidencia um espaço de negociações de sen-tido na construção de estratégias de ação embusca de posições hegemônicas na cena social.No contexto estudado, a apropriação do dis-curso autorizado – seja o tradicional/mítico ouo científico para subsidiar e legitimar as práti-cas e demandas de saúde – é uma das estraté-gias valorizadas pelos sujeitos sociais comoforma de cumprir suas próprias finalidades po-líticas e sociais e não para atender os desígniose prioridades das agências de contato. As expli-cações biomédicas são aproveitadas quandoapresentam relações de congruência com ossaberes preexistentes e quando se adaptam àsnecessidades determinadas pelas condiçõesatuais de vida. Tais produções sociais operamsimultaneamente no âmbito da vida cotidiana,orientando as condutas e as relações de comu-nicação entre os indivíduos no campo afeti-vo/cultural – exercendo funções de legitimaçãoda identidade indígena – e no campo cogniti-vo – criando mecanismos de entendimento darealidade e propiciando meios para a familiari-zação dos elementos novos trazidos pela dinâ-mica do contato interétnico (Spink, 1993). Nes-se processo de transformação constante, as re-presentações sociais orientam práticas e sãopor elas influenciadas. Os sujeitos sociais – in-seridos em um processo de transformação his-tórica e em contato com diversas formas de sa-ber e de organização de atitudes frente ao fe-nômeno de doença – desenvolvem práticas econcepções científicas, míticas e de senso co-mum, que se imbricam e se reproduzem emprocesso de interferência mútua e retroali-mentação contínuas.

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