documentÁrio poÉtico e subjectividade: a estÉtica expressionista em transmutaÇÃo

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Propomos discutir neste texto o subgênero do documentário chamado de “poético” por Bill Nichols (2005) a partir da análise de Transmutação (2013), de Torquato Joel, documentário de curta-metragem que trabalha na sua narrativa uma estética visual expressionista tradicionalmente empregada no campo ficcional.

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  • Doc On-line, n. 17, maro de 2015, www.doc.ubi.pt, pp. 82-99.

    DOCUMENTRIO POTICO E SUBJECTIVIDADE: A ESTTICA

    EXPRESSIONISTA EM TRANSMUTAO

    Bertrand Lira

    Resumo: Propomos discutir neste texto o subgnero do documentrio chamado de

    potico por Bill Nichols (2005) a partir da anlise de Transmutao (2013), de Torquato Joel, documentrio de curta-metragem que trabalha na sua narrativa uma esttica visual

    expressionista tradicionalmente empregada no campo ficcional.

    Palavras-chave: documentrio potico, subjetividade, esttica expressionista,

    Transmutao.

    Resumen: Proponemos discutir en este texto el subgnero de documental llamado

    potico por Bill Nichols (2005) a partir del anlisis de Transmutao (2013), de Torquato Joel, cortometraje documental que trabaja en su narracin una esttica visual expresionista

    tradicionalmente empleada en el campo ficcional.

    Palabras clave: documental potico, subjetividad, esttica expresionista,

    Transmutao.

    Abstract: In this work I propose to discuss the documentary sub-genre named

    poetic by Bill Nichols (2005), taking into account the analysis of Transmutao (2013), by Torquato Joel, a short film documentary, which in its narrative works an expressionist

    visual aesthetics, traditionally used in the fictional cinema.

    Keywords: poetical documentary, subjectivity, expressionist aesthetics,

    Transmutao.

    Rsum: Nous nous proposons, dans ce texte, de discuter le sous-genre du

    documentaire appel potique par Bill Nichols (2005) partir de l'analyse de Transmutao (2013), de Torquato Joel, court mtrage documentaire qui travaille, dans sa

    dimension narrative, une esthtique visuelle expressionniste traditionnellement employe

    dans le champ de la fiction.

    Mots-cls: documentaire potique, subjectivit, esthtique expressionniste,

    Transmutao.

    Universidade Federal da Paraba UFPB, Departamento de Mdias Digitais, Programa de

    Ps-Graduao em Comunicao. 58051-900, Joo Pessoa, Brasil.

    E-mail: [email protected]

    Submisso do artigo: 06 de novembro de 2014. Notificao de aceitao: 28 de fevereiro de 2015.

  • Documentrio potico e subjetividade

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    A produo dominante de documentrios tem sido, historicamente,

    associada esfera da objetividade, no obstante as experincias pioneiras,

    ainda nos anos 20 do sculo passado, terem colocado o gnero no campo da

    experimentao e da poesia, a exemplo de dois filmes do holands Joris

    Ivens: A ponte (1928) e A chuva (1929). Ecos desse pioneirismo chegam

    com fora na produo documental contempornea brasileira com

    documentrios ditos no narrativos. Nossa proposta discutir esse

    subgnero do documentrio chamado de potico por Bill Nichols (2005) a

    partir da anlise de Transmutao (2013), de Torquato Joel, documentrio

    de curta-metragem que lana mo de uma esttica visual expressionista

    tradicionalmente empregada no campo ficcional, seguindo uma inclinao

    do documentrio de abordar o real pelo vis da subjetividade. A anlise da

    obra em questo se fundamentar nas reflexes de Nichols (2005), no modo

    documental que o autor denomina de potico, procurando identificar no

    tratamento imagtico e sonoro do filme Transmutao uma abordagem

    marcadamente potica e no narrativa. Sem perder de vista, no entanto,

    que qualquer imagem figurativa chama narrao e que filmes

    pretensamente no narrativos sempre trazem algo de narrativo. O que

    esses filmes compartilham um desvio da nfase que o documentrio d

    representao realista do mundo histrico para licenas poticas, estruturas

    narrativas menos convencionais e formas de representao mais subjetivas

    (Nichols, 2005: 169-70). Esse tipo de narrativa documentria se estrutura

    em narrativas frouxas, articulando mais livremente o real e o imaginado,

    numa perspectiva marcadamente pessoal e expressiva. Para a leitura da

    narrativa do documentrio de nossa investigao, buscamos aporte terico

    na antropologia do imaginrio investigada por autores como Gilbert Durand

    (2002) e Gaston Bachelard (1999).

    Com o objetivo de discutir questes concernentes narrativa

    cinematogrfica, recorremos s proposies de Gaudreault e Jost (2009). Os

  • Bertrand Lira

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    autores vo buscar em Christian Metz (Remarques pour une

    phnomnologie du narratif, 1968) suporte para a compreenso do

    fenmeno narrativo. Nessa obra, citada por Gaudreault e Jost, Metz levanta

    cinco critrios, aqui resumidos, que nos levam a reconhecer qualquer

    narrativa: toda narrativa traz um comeo e um fim; apresenta uma sequncia

    com duas temporalidades (a da coisa narrada e a da narrao ela mesma);

    toda narrativa obrigatoriamente um discurso; a conscincia de que se trata

    de uma narrativa desrealiza a coisa narrada; e, finalmente, a narrativa

    constituda de uma sequncia de acontecimentos.

    Aplicando esses critrios ao filme Transmutao, identificamos que

    a obra de Joel tem incio e fim, ou seja, tem um primeiro e um ltimo plano

    que fecha a narrativa; tem duas temporalidades, o tempo do acontecimento

    narrado (a durao e a poca em que ocorre a transformao de peas

    morturias desgastadas em novos objetos para o adorno de outros tmulos),

    e o tempo da narrao (o tempo de que o diretor disps para contar esse

    procedimento - uma escolha pessoal que raramente coincide com o tempo

    do evento narrado). Vimos que a narrao pressupe uma instncia

    discursiva que lana mo de recursos para elaborar um relato. Como

    espectador, temos cincia de que se trata de uma narrativa e, por isso,

    entendemos que o que vemos e ouvimos no a coisa narrada que est

    aqui e agora diante dos nossos olhos, mas a sua representao em imagens

    e sons, o que a desrealiza. Por ltimo, mas no menos importante, nos

    apresenta uma sequncia temporal de acontecimentos, pequenos, mas

    ainda acontecimentos, isto , as etapas sucessivas para fundio de um

    velho objeto e sua transmutao em outro.

    Partindo do entendimento de Marc Vernet (1995: 90) de que

    qualquer figurao, qualquer representao chama a narrao, mesmo

    embrionria, pelo peso do sistema social ao qual o representado pertence e

    por sua ostenso, seguiremos a grafia no narrativos, entre aspas,

    conforme Teixeira (2012), para nos referir a filmes que no tm uma intriga

  • Documentrio potico e subjetividade

    - 85 -

    definida. No campo documental, estamos tratando de filmes que lanam

    mo de estratgias de abordagem que configuram um subgnero do

    documentrio nomeado potico, entre as seis modalidades de

    representao do real identificados por Nichols (2005). As demais so os

    modos expositivo, observativo, participativo ou interativo, reflexivo e

    performtico) de acordo com o modo dominante de organizao que o

    diretor faz do seu material de expresso extrado do mundo histrico.

    O modo potico sacrifica as convenes da

    montagem em continuidade, e a ideia de localizao

    muito especfica no tempo e no espao derivada

    dela, para explorar associaes e padres que

    envolvem ritmos temporais e justaposies

    espaciais. (...) Esse modo enfatiza mais o estado de

    nimo, o tom e o afeto do que as demonstraes de

    conhecimento ou aes persuasivas. (2005: 138).

    Cada modo de representao do real apresenta um conjunto de

    nfases e consequncias que conferem obra uma voz prpria, uma

    marca, uma distino, um ponto de vista. Esses modos, ressalta Nichols, no

    se excluem, podendo um documentrio trazer caractersticas de mais de um

    modo, mas usualmente um deles predomina. Portanto, um documentrio

    tipo expositivo pode conter em determinados trechos de sua narrativa

    fragmentos poticos sem, no entanto, se caracterizar como tal.

    Transmutao: O fogo liquefaz o que slido

    O curta-metragem Transmutao, objeto de nossa investigao, trata

    da atividade de um arteso de peas funerrias cujo nome s vamos

    conhecer nos crditos finais do filme. Nas estratgias de representao do

    real adotadas por Torquato Joel, a narrativa prescinde de dois dos cinco

    materiais de expresso (dilogos e menes escritas) identificados por

  • Bertrand Lira

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    Gaudreault e Jost (2009) na narrativa cinematogrfica. Os demais so

    imagens, rudos e msica. Com exceo da cartela inicial (letras douradas

    sobre fundo preto com o ttulo do filme) e dos crditos finais, nenhuma

    legenda usada para identificar tempo e espao na narrativa.

    O primeiro plano se descortina com cmera em plonge

    enquadrando num plano fechado a abertura de um telhado com caibros

    enegrecidos. Gradativamente uma fumaa escapa pela abertura e aumenta

    de intensidade enchendo a tela. Corte para o interior de um ambiente

    iluminado por feixes de luz que descem do teto, fora do quadro, e

    traspassam a densa fumaa que no permite a visualizao de detalhes do

    ambiente. Nos planos sucessivos, visualizamos um fogareiro de onde

    brotam chamas; um travelling da direita para a esquerda descreve um

    telhado precrio de onde jorram intensos feixes de luz; h, ento, um corte

    para um plano fixo onde a composio divide a imagem em duas partes

    quase simtricas: esquerda, uma pequena escultura em metal de um Cristo

    crucificado suspenso em uma grade de ferro e iluminado por um feixe de luz

    em diagonal que vem detrs num visual que nos remete a uma catedral

    gtica por cujos vitrais coloridos a luz divina abenoa seus fiis; direita,

    blocos de ao empilhados. As imagens, somadas ao gorjeio de um pssaro,

    uma msica minimalista pontual e rudo no identificado (o rumor do fogo),

    criam um clima de mistrio. Em meio fumaa, a cmera revela, pela

    primeira, vez uma gaiola iluminada por uma luz que vem de cima onde se

    encontra o pssaro. Corte para um plano fechado de uma placa morturia,

    possivelmente de mrmore, onde visualizamos o retrato de um homem

    numa paisagem buclica ao fundo. O texto informa seu nome, data de

    nascimento e morte e a frase saudades familiares. O rumor do fogareiro

    aumenta de intensidade e no plano seguinte somos apresentados ao

    personagem arteso (Chico do Bronze), iluminado fantasticamente por um

    jorro de feixes de luz. um senhor magro, de pele enrugada, mos negras

    de fuligem que fazem medies duma pea de metal.

  • Documentrio potico e subjetividade

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    Essa atmosfera lgubre e misteriosa, mostrada em mais ou menos

    oito planos, se completa com uma descrio mais detalhada do ambiente e

    dos objetos que o compem. A cmera executa um passeio em travellling

    desvelando peas funerrias: esculturas (uma delas, a de uma mulher de

    aspecto sinistro), imagens sacras e crucifixos numa parede de tijolos

    mostra e enegrecidos pela fuligem. Numa caixa empilhada, l-se P. So

    diversos planos em travellling que do continuidade ao movimento anterior

    e que terminam num breve fade out (escurecimento).

    Desta forma, o documentrio introduz o espectador ao trabalho do

    arteso, imagens banhadas, na maioria dos planos, por uma luz solar,

    superior, projetada em feixes por entre as frestas do telhado. Essa luz, to

    cara aos fotgrafos, aqui usada exausto ao logo de toda a narrativa,

    contribuindo para um clima de mistrio e terror j que a morte

    representada amide nos objetos manipulados pelo arteso e distribudos

    pelo cenrio. Mesmo se tratando de uma luz solar, com todas as

    significaes benfazejas que o imaginrio social tem lhe atribudo ao longo

    da presena humana no mundo, no traz aqui os sentimentos confortantes a

    ela associados. Seu uso empregado para delimitar superfcies e objetos que

    se quer destacar cuja informao necessria narrativa, e mergulhar na

    sombras uma grande rea da imagem para demonstrar o aspecto sombrio e

    mrbido do ambiente. O contraste luz e sombra arquitetado nas imagens

    de Transmutao para se obter o mximo de impacto emocional, porque

    estruturada na narrativa pela simbologia to cara teoria antropolgica do

    imaginrio que tem em Gilbert Durand um dos seus maiores expoentes. O

    Sol, segundo Durand (2002: 77), pode se apresentar valorizado

    negativamente, no enquanto luminria terrestre, mas no seu aspecto

    malfico, pois o Sol no um arqutipo estvel e as intimaes climticas

    podem muitas vezes dar-lhe um ntido acento deletrio. O que

    corroborado por Christinger, quando questiona:

  • Bertrand Lira

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    o astro do dia que ilumina os vivos ou o astro

    desaparecido no horizonte que caminha no outro

    mundo antes de reaparecer a Leste? Noutros termos,

    o Sol pode ser o guia dos vivos ou dos mortos e os

    smbolos que lhe so atribudos [associados]

    segundo o caso, vida ou morte, ao dia ou noite.

    (1973: 26).1

    No reino por excelncia da objetividade, o diretor Torquato Joel

    imprime nas imagens de Transmutao uma arquitetura de luz e sombra que

    marcou uma cinematografia de vanguarda dos anos 20, o expressionismo

    alemo. Desse, digamos, movimento cinematogrfico, vamos nos ater

    apenas ao magistral trabalho de iluminao (em estreita consonncia com

    sua temtica) investigado por ns em Luz e Sombra: significaes

    imaginrias na fotografia do expressionismo alemo (Lira, 2013). O

    movimento expressionista se deu como uma continuidade do romantismo do

    sculo XIX com a retomada de valores como a intuio, emoo e

    imaginao, num contexto de grande efervescncia cultural e com a

    apario de diversos movimentos de vanguarda. Sua temtica gravitava em

    torno do horror, do caos, da morte e do funesto e reverberava no sofisticado

    tratamento visual com sua construo imagtica em preto e branco e de forte

    contraste de luz e sombra. Nessa cinematografia, o mistrio da alma alem,

    segundo Kracauer (1988), parece se aprofundar no cinema do ps-guerra,

    quando a morbidez de sua temtica, tratada com uma iluminao

    apropriada, confere aos filmes do perodo uma atmosfera visual peculiar que

    viria a influenciar a cinematografia mundial ulterior. Uma morbidez que s

    poderia ser expressa em imagens deformadas que figurassem um universo

    material e espiritual em desalinho.

    O teatro alemo, segundo Lotte Eisner (1985), legou a concepo

    esttica mais significativa ao cinema expressionista, com seus dramaturgos,

    autores, iluminadores, cengrafos e atores. A concepo revolucionria de

    1 Traduo nossa.

  • Documentrio potico e subjetividade

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    iluminao de Max Reinhardt ir impregnar a tela demonaca, fazendo do

    claro-escuro uma caracterstica marcante dessa cinematografia. Para a

    concepo esttica de Transmutao, Torquato Joel vai buscar nessas

    imagens o conceito de fotografia e sua luz metafisica. A luz solar e os

    smbolos diairticos (relativos ao dia), que compem a constelao em torno

    do Regime Diurno da Imagem, tm como anttese a simbologia

    nictomrfica (relativa noite) que se agrupa no Regime Noturno a

    Imagem com significaes antagnicas encontradas na antropologia do

    imaginrio de Durand (2002).

    A luz solar e seus efeitos subjetivos na psique humana so discutidos

    por Henri Alekan, em Des Lumires et des Ombres, que destaca suas

    funes na representao imagtica:

    A iluminao solar unidirecional uma luz

    partidria, que ao modelar as formas e contornos,

    desenha o objeto, insiste, separa, fatia, cinzela e sublinha o essencial das formas, empurrando o

    secundrio a um valor menor. uma luz

    hierarquizante, classificadora: uma luz engajada.

    (1979: 38; grifos do autor).2

    com essa primeira funo que a iluminao de Transmutao

    estruturada, isto , permitir o registro de objetos e personagens num cenrio

    marcado por sombras. A luz aqui cumpre seu papel de destacar os objetos

    em cena, revelar seu volume, cor, textura, dimenso etc., que, igualmente,

    no deixa de ser uma funo esttica. Sua concepo visa tambm uma

    funo simblica. A luz solar penetrando o ambiente em doses controladas

    pelas brechas no telhado se transforma em feixes luminosos que, em choque

    com a densa fumaa do fogo, cria uma atmosfera estranha, ora medonha ora

    premonitria. Num ambiente de atmosfera funesta no filme em questo, essa

    luz de origem superior, e por isso portadora de significaes imaginrias

    2 Traduo nossa.

  • Bertrand Lira

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    que remetem ascenso e pureza, traz a promessa de redeno.

    Contribuem para essa ambincia assustadora esculturas metlicas de Cristo

    crucificado com membros amputados e estrutura corroda, iluminadas de

    forma a enfatizar uma viso incomum e terrificante.

    No uma prtica comum ao documentrio a concepo de uma

    iluminao para criar atmosfera, impregnando sua narrativa de

    subjetividade. Um exemplo notvel o filme 33 (2004), de Kiko Goifman,

    onde o diretor opta por um conceito fotogrfico inteiramente inspirado no

    cinema noir americano para contar sua prpria histria em busca de sua me

    biolgica. O ambiente claustrofbico da oficina de Chico do Bronze

    acentuado pelos repetidos movimentos da cmera que descrevem o lugar e

    as aes do personagem sem abandonar o espao circunscrito dessas

    pequenas aes e gestos.

    Num determinado momento, a cmera (aparentemente na mo)

    avana rapidamente no ambiente quase obscuro em sua totalidade,

    visualizado apenas por uma luz em diagonal de origem superior sobre a

    parede, mas, ao guinar para a esquerda, nos revela a figura espectral do

    fundidor a observar, imvel e fascinado, uma forte chama que parece brotar

    do cho. O fogo traz as simbologias diversas que o homem lhe tem dado

    desde tempos imemoriais. Em La magie du feu, Gaston Malherbe (1973)

    faz um inventrio da relao ancestral do homem com o fogo e constata que

    a natureza mesma do fogo engendrou incontveis especulaes. Para os

    gregos, ele est entre os quatro elementos primordiais formadores do

    universo. Os alquimistas acreditavam que o fogo, princpio macho,

    emanao divina, fecundou a matria, princpio fmea, fazendo nascer, de

    incio, os elementos primordiais e, depois, os diversos corpos formados a

    partir desses elementos (1973: 122).3 A figura de Chico do Bronze, envolto

    em fumaa e num iluminao conflitante como a luz solar e a do fogo nos

    3 Traduo nossa.

  • Documentrio potico e subjetividade

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    remete a um desses alquimistas nas suas tentativas de obteno da pedra

    filosofal. A prpria atividade do arteso se constitui numa metfora da

    morte e do renascimento. O fogo liquefaz o metal, matria-prima das

    esculturas fnebres. Velhos crucifixos so mortos sob a ao do fogo para

    renascer com nova aparncia.

    Diversos mitos explicam o surgimento do fogo e lhe imprimem parte

    de sua conotao deletria, o mais conhecido deles o de Prometeu. Em

    muitas dessas lendas a possesso do fogo fruto de um roubo. Apangio e

    fonte de poder dos deuses, sua aquisio indevida acarreta trgicas

    consequncias, relata Malherbe (1973) para quem o fogo, fonte de vida,

    nasce e vive de sua destruio. Esse paradoxo encontra-se ilustrado em

    lendas de diversas sociedades.

    O fascnio e o terror so sentimentos que convivem no seio da

    humanidade em sua relao com o fogo. Ele , entre os quatro elementos, o

    nico cujo contato fsico danoso. Da, explica Malherbe (1973: 118), o

    mesmo terror irracional e primordial, os mesmos sentimentos,

    violentamente contraditrios, de atrao e repulso, de fascinao e medo.

    A argumentao de Malherbe corroborada por Gaston Bachelard (1999)

    em A psicanlise do fogo, onde investiga a ambiguidade na valorizao

    daquele que considera o mais idolatrado entre os quatro elementos. O autor

    acredita que nem mesmo o esprito cientfico contemporneo se desvencilha

    de sua alma primitiva quando o objeto de sua investigao o fogo. Para

    Bachelard (1999: 11-12), Dentre todos os fenmenos, realmente o nico

    capaz de receber to nitidamente as duas valorizaes contrrias: o bem e o

    mal. (...) um deus tutelar e terrvel, bom e mau. Pode contradizer-se, por

    isso um dos princpios de explicao universal.

    A cena descrita acima, onde o personagem parece hipnotizado pelo

    fogo, emblemtica desse fascnio. Seu estado de contemplao quebrado

    por um rudo, ele olha e vemos uma porta que se abre inundando o ambiente

    de luz que vem do exterior. Um segundo personagem (um coveiro, veremos

  • Bertrand Lira

    - 92 -

    depois) adentra o lugar. Curiosamente, ele desce alguns degraus de uma

    pequena escada nos remetendo ao significado (negativo) desse objeto no

    cinema expressionista alemo e noir americano, como lugar por excelncia

    da descida e da queda e de sentimentos a ela associados.

    Os planos que se seguem pem em relevo esse universo mrbido e

    aterrador. Esculturas metlicas de Cristo crucificado so lanadas no cho

    negro de fuligem para depois serem despedaadas a marteladas pelo arteso.

    Outros planos fechados revelam mais esculturas mutiladas e gastas pela

    ao do tempo - no esqueamos aqui as relaes isomrficas entre tempo e

    morte que constituem a constelao de smbolos do Regime Noturno da

    Imagem elencados por Durand (2002), onde tambm gravitam a sombra e

    os smbolos catamrficos (da queda e da descida). A representao da

    descida (derrocada, queda, morte etc.), em Transubstancial, est

    perfeitamente figurada em dois momentos: na imagem do piso enegrecido

    que destaca o Cristo largado de ponta-cabea e quando no fogo, agora bem

    maior porque mostrado em detalhe (e rudo mais intenso), vemos Cristo

    mutilado, e suspenso por uma pina na altura dos ps, descer aos infernos.

    A imagem sui generis, pois jamais imaginada. Por ser documental, tem

    forte impacto emocional, com uma significao radicalmente oposta

    imagem mtica da ressurreio e ascenso aos cus (imagem 1).

  • Documentrio potico e subjetividade

    - 93 -

    Imagem 1: A representao da descida. Frame de Transmutao (2013), de

    Torquato Joel, gentilmente cedido pelo autor.

    A simbologia deletria do fogo tem associao ntima morada do

    Diabo. Este poder malfico da chama, geradora de sofrimento e de morte,

    encontrou sua expresso imagtica nas representaes tradicionais do

    Inferno. O fogo a substncia mesma do mundo infernal. (Malherbe, 1973:

    120). Sua representao em Transubstancial, medida que o filme avana

    para o seu desfecho, se torna mais funesto. A labareda aumenta de

    intensidade, como um vulco em erupo, acompanhada de um rumor

    inquietante. O arteso entorna uma pequena lava incandescente no orifcio

    de um molde de ao. Numa elipse, vemos o arteso abrir um molde em

    formato de atade funerrio repleto de cinzas que, ao serem removidas,

    deixam surgir uma nova escultura (Cristo crucificado em metal brilhante). O

    jato de fogo se torna mais intenso parecendo tomar todo o ambiente. O

    arteso est mais uma vez a contemplar, circunspecto, a labareda. A luz do

    fogo reflete na sua figura, conferindo-lhe uma aparncia diablica.

    O fogo, luz antissolar, arbitrrio no sentido de que no mantm

    nenhuma analogia com a iluminao do Sol, no que concerne direo e

  • Bertrand Lira

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    aos movimentos, no obedecendo aos ciclos cotidianos e inexorveis do seu

    nascer e se pr com os quais os seres vivos esto profundamente

    familiarizados no decorrer da sua existncia. uma iluminao

    desconcertante, com direes inesperadas e imprecisas, que engendra

    sensibilidades negativas. A iluminao aqui prima pelo claro-escuro, com o

    uso de uma luz com direo antissolar (e seus efeitos perturbadores)

    produzida pelo fogo com uma funo quase metafsica.

    Esta a ltima viso que temos do interior da oficina, um ambiente

    sufocante e de atmosfera funesta. Apenas o passarinho na gaiola alivia o

    cenrio de sua morbidez. O pssaro, smbolo da ascenso e da pureza, assim

    como a luz e a espada, esto na conta da teoria do imaginrio como

    smbolos ascensionais e verticalizantes (em torno do qual gravitam os

    smbolos diairticos ou da diviso, distino e purificao) que se opem

    aos esquemas da queda, da descida, da interioridade e das trevas, como

    constata Durand (2002). A asa e a espada verifica o autor, so

    representaes da verticalidade e da ascenso, valorizadas positivamente

    porque so promessas da elevao, do voo, da limpidez, da correo, da

    aurora e da luz, numa constelao de smbolos benfazejos, que possibilitam

    o acesso esfera do celestial e do divino. Presena marcante ao longo do

    filme pelo som intermitente do seu trinado, em Transmutao, todavia, esse

    smbolo de redeno, preso numa gaiola, encontra-se impedido de voo.

    No plano seguinte, voltamos a ver o ambiente exterior com a sada

    do visitante. Nesse momento, conclumos que o atelier morturio contguo

    a um cemitrio e que o visitante um coveiro. A cmera desliza para a

    direita, revelando tmulos de um cemitrio mal cuidado, e sobe

    descortinando uma sequncia de telhados que se estendem em profundidade.

    Gorjeios de pssaros se fundem com a msica que vem pontuando o filme

    desde as primeiras imagens, reforando o tom enigmtico da cena. H um

    corte para um cu flamante recortado por dezenas de cruzes negras em

    contraluz (imagem 2). O rudo de lava borbulhante aumenta de intensidade e

  • Documentrio potico e subjetividade

    - 95 -

    no plano seguinte temos a impressionante imagem do Sol (produzida pela

    Nasa) com flamas incandescentes, jatos gigantes de lavas borbulhantes da

    exploso solar. Enfim, uma viso aterradora do inferno. ainda Malherbe

    (1973: 120) quem observa: O inferno de Dante reserva aos seus hspedes

    recintos de fogo vermelho, chuvas de fogo, sepulcros abrasadores, pntanos

    de breu e rios de sangue borbulhante.

    Imagem 2: A atmosfera sombria continua no espao externo oficina do

    arteso. Frame de Transmutao (2013), de Torquato Joel, gentilmente

    cedido pelo autor.

    Extraindo do real sua matria-prima, Torquato Joel no se limita ao

    mero registro do processo de fabricao artesanal de peas morturias.

    Optando por uma fotografia que contrape luz e sombra, privilegia uma

    iluminao expressiva que no apenas possibilita o registro espontneo da

    realidade, mas imprime a essas imagens significaes outras que vo alm

    do visvel. Como bem assinala Alekan,

    Dois tipos de imagens so visualizadas pelo crebro:

    uma, objetiva, aquela que registrada numa luz

  • Bertrand Lira

    - 96 -

    do tempo presente, a outra, subjetiva, a que foi

    colocada na memria na luz do tempo passado. O

    cineasta um transcritor de imagens objetivas

    quando ele utiliza a luz natural no presente sem

    transport-la, e um criador de imagens subjetivas

    quando ele reinventa o objeto e o transcende na luz de sua memria graas ao domnio artstico das

    luzes artificiais que executam essa transmutao

    (1979. 13, grifos do autor)4.

    No da tradio documental esse esmero esttico com a iluminao

    para fins expressivos. No entanto, vale ressaltar que uma vertente

    documental se inclinou para a pesquisa formal da imagem tendo como

    material de expresso imagens capturadas do mundo histrico: de sua

    paisagem, dos seus eventos cotidianos, dos gestos, dos movimentos etc.,

    buscando extrair sua fotogenia, aqui no conceito epsteiniano do termo,

    como (...) todo aspecto das coisas, dos seres e das almas que aumenta sua

    qualidade moral pela reproduo cinematogrfica. (citado por Aumont,

    1993: 310).

    O documentrio potico (e no narrativo) surge num contexto de

    inquietao dos movimentos artsticos de vanguarda. Com suas

    experimentaes estticas e de linguagem em diversos domnios das artes,

    proporcionaram, igualmente, a experimentao no campo do cinema, o

    documentrio, inclusive. O modo potico do documentrio, no entender de

    Nichols (2005: 140), comeou alinhado com o modernismo, como uma

    forma de representar a realidade em uma srie de fragmentos, impresses

    subjetivas, atos incoerentes, e associaes vagas..

    Transmutao no deixa de comportar uma narrativa, no uma

    intriga no sentido ficcional de um relato narrativo de uma histria que

    apresenta e desenvolve um conflito e seus desdobramentos, com

    personagens estruturados vivendo uma trama, mas mesmo assim uma

    4 Traduo nossa.

  • Documentrio potico e subjetividade

    - 97 -

    narrativa - ainda que tenhamos de dar uma definio frouxa palavra

    histria, como sugerem Gaudreault e Jost (2009: 49) porque todo plano ou

    todo filme mesmo o menos organizado, conta uma histria.

    O curta-metragem em questo trabalha o real numa abordagem

    potica, explorando de forma fecunda suas imagens com significaes que

    nem sempre so dadas no nvel primeiro da denotao. So imagens

    cinematogrficas que despertam imagens outras carregadas de afetos,

    emoes e sentidos, amide adormecidos no inconsciente do espectador, e

    que so despertas nesse contato com o cinema.

    A propsito de uma breve concluso, colocamos aqui a problemtica

    da nomenclatura das diversas propostas de filmes documentais que Nichols

    (2005) agrupou em seis subgneros do documentrio e que, na atualidade,

    ainda mobiliza tericos e cineastas. Gauthier (2011), por exemplo, discute a

    busca do documentrio por definies inventariando diversas denominaes

    do gnero com relao vida (cine-olho, documento-vida, filme de vida,

    cmera viva, cinema do vivido, cinema da realidade, cinema do real,

    cinema-verdade, cinema direto), em relao fico (documentrio

    romanceado, docudrama, documentrio-fico, a fico documental etc.) e

    em relao funo (documentrio de criao, etnogrfico, social, militante

    e de interveno). O prprio autor alerta para as ciladas do percurso ao

    repertoriar tais denominaes.

    No atual contexto, com o cinema sob a gide das novas tecnologias

    digitais de produo e exibio, Francisco Elinaldo Teixeira (2012) elenca

    algumas denominaes mais abrangentes sugeridas no meio

    cinematogrfico e no mbito das reflexes tericas: cinema de no fico,

    ps-documentrio e cinema expandido. Para Teixeira, no entanto,

    a noo de ps-documentrio pode ter outra

    envergadura. Ao invs de um fim ou esgotamento

    ela aponta para novos comeos, para formas

    expandidas do documentrio observveis em larga

  • Bertrand Lira

    - 98 -

    escala nos diversos contextos audiovisuais da

    atualidade. (...) Essa expanso de limites se d,

    basicamente, em relao aos trs grandes domnios

    da fico, do experimental e do prprio

    documentrio em suas feies clssica e moderna.

    (2012: 235).

    Essa expanso de limites a que se refere Teixeira percebida numa

    diversidade de propostas documentais que borra as fronteiras entre a fico

    e o documentrio, aproximando o documentrio mais do domnio da

    subjetividade, libertando-o do encargo de uma representao mimtica dos

    acontecimentos do real. Tais investidas experimentais tm no curta-

    metragem um terreno frtil, visto que um formato descompromissado com

    o retorno de bilheteria. So, na sua maioria, realizados com recursos

    prprios ou financiados por editais pblicos a fundo perdido. O longa-

    metragem brasileiro tambm tem, em menor proporo, dado bons

    exemplares, como podemos verificar em O cu sobre os ombros (2011), de

    Srgio Borges, e Esse amor que nos consome (2012), de Allan Ribeiro e

    Douglas Soares, instigantes propostas narrativas que navegam entre a

    fico, a no fico e o experimental, entre a tradio e a ruptura.

    Transmutao, como Passadouro (1999) e Transubstancial (2003), curtas

    tambm roteirizados e dirigidos por Torquato Joel, abordam o real, mas sem

    se amarrar na reproduo pura e simples de fatos, de eventos e de

    personagens do mundo histrico, transcendendo-os com elementos da esfera

    do imaginrio, da subjetividade e dos afetos, impregnando suas imagens de

    poesia.

  • Documentrio potico e subjetividade

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    Referncias bibliogrficas

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    National des Lettres.

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    Job (Org.), Le grand livre du soleil, Lausanne: Edita-Denol.

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    Reinhardt e do expressionismo alemo, So Paulo: Paz e Terra.

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    SP: Papirus.

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    psicolgica do cinema alemo. Rio de Janeiro; Zahar Editor.

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