do verso À prosa: o potencial histÓrico dos romances de cavalaria (sÉculos xii-xiv)

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Página | 414 Revista História e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.414-441, 2013. ISSN: 2238-6270. DO VERSO À PROSA: O POTENCIAL HISTÓRICO DOS ROMANCES DE CAVALARIA (SÉCULOS XII-XIV) FROM VERSE TO PROSE: THE HISTORICAL POTENTIAL OF CHIVALRY ROMANCES (ELEVENTH-FOURTEENTH CENTURIES) Carolina Gual da SILVA Cláudia Regina BOVO Flávia AMARAL Resumo: Nesse artigo pretendemos problematizar o uso dos romances de cavalaria como documento histórico para investigação da Idade Média. Preocupados em refletir sobre o surgimento desse gênero textual, sua função e seu potencial de investigação histórica, nos dedicamos a analisar um conjunto de obras os Romans de Chrétien de Troyes, o Tristão de Béroul e o Romance da Melusina de Jean D’Arras. Nosso objetivo é verificar como elas veicularam determinadas representações sociais, cuja finalidade era formalizar uma ação pedagógica em meio às cortes francesas, onde foram proclamadas. Palavras-chave: Literatura História Idade Média. Abstract: This article’s intention is to problematize the use of chivalry romances as historical documents for the investigation of the Middle Ages. Concerned with understanding the appearance of this textual genre, its function and historical investigative potential, we have analyzed a group of works Chrétien de troyes’s Romans, Béroul’s Tristan, and Jean d’Arras’s Melusine Romance. Our goal is to verify how these works portray certain social representations, whose finality was to formalize a pedagogic action in the French courts where they were recited. Keywords: Literature History Middle Ages. Introdução Durante o século XII, especificamente entre 1151-1200, temos um crescimento significativo da produção de textos em língua vernácula. Colocam-se por escrito narrativas, lendas épicas e canções que, até então, eram proclamadas oralmente, em Mestre em História Doutoranda Programa de Pós-graduação em História Instituto de Filosofia e Ciências Humanas UNICAMP Universidade Estadual de Campinas, CEP: 13083-896, Campinas, São Paulo Brasil. Programa Histoire et Civilisation EHESS École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris França. E-mail: [email protected] Doutora em História Professora do Departamento de História UFTM Universidade Federal do Triângulo Mineiro, CEP: 38025-180, Uberaba, MG Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em História Professora do Departamento de História UFVJM Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri, CEP: 39100-000, Diamantina, MG Brasil. E-mail: [email protected] Pesquisadoras do Laboratório de Estudos Medievais LEME.

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Artigo que problematiza o uso dos romances de cavalaria comodocumento histórico para investigação da Idade Média.

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    Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.414-441, 2013. ISSN: 2238-6270.

    DO VERSO PROSA: O POTENCIAL HISTRICO DOS

    ROMANCES DE CAVALARIA (SCULOS XII-XIV)

    FROM VERSE TO PROSE: THE HISTORICAL

    POTENTIAL OF CHIVALRY ROMANCES

    (ELEVENTH-FOURTEENTH CENTURIES)

    Carolina Gual da SILVA

    Cludia Regina BOVO

    Flvia AMARAL

    Resumo: Nesse artigo pretendemos problematizar o uso dos romances de cavalaria como

    documento histrico para investigao da Idade Mdia. Preocupados em refletir sobre o

    surgimento desse gnero textual, sua funo e seu potencial de investigao histrica, nos

    dedicamos a analisar um conjunto de obras os Romans de Chrtien de Troyes, o Tristo de

    Broul e o Romance da Melusina de Jean DArras. Nosso objetivo verificar como elas

    veicularam determinadas representaes sociais, cuja finalidade era formalizar uma ao

    pedaggica em meio s cortes francesas, onde foram proclamadas.

    Palavras-chave: Literatura Histria Idade Mdia.

    Abstract: This articles intention is to problematize the use of chivalry romances as historical

    documents for the investigation of the Middle Ages. Concerned with understanding the

    appearance of this textual genre, its function and historical investigative potential, we have

    analyzed a group of works Chrtien de troyess Romans, Brouls Tristan, and Jean dArrass

    Melusine Romance. Our goal is to verify how these works portray certain social representations,

    whose finality was to formalize a pedagogic action in the French courts where they were

    recited.

    Keywords: Literature History Middle Ages.

    Introduo

    Durante o sculo XII, especificamente entre 1151-1200, temos um crescimento

    significativo da produo de textos em lngua verncula. Colocam-se por escrito

    narrativas, lendas picas e canes que, at ento, eram proclamadas oralmente, em

    Mestre em Histria Doutoranda Programa de Ps-graduao em Histria Instituto de Filosofia e

    Cincias Humanas UNICAMP Universidade Estadual de Campinas, CEP: 13083-896, Campinas, So Paulo Brasil. Programa Histoire et Civilisation EHESS cole de Hautes tudes en Sciences

    Sociales, Paris Frana. E-mail: [email protected]

    Doutora em Histria Professora do Departamento de Histria UFTM Universidade Federal do

    Tringulo Mineiro, CEP: 38025-180, Uberaba, MG Brasil. E-mail: [email protected]

    Doutora em Histria Professora do Departamento de Histria UFVJM Universidade Federal dos

    Vales Jequitinhonha e Mucuri, CEP: 39100-000, Diamantina, MG Brasil. E-mail:

    [email protected]

    Pesquisadoras do Laboratrio de Estudos Medievais LEME.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    meio aos crculos cavaleirescos. Essas obras, desvinculadas da produo latina oficial

    da Igreja Romana, trouxeram tona representaes da dinmica scio-poltica da

    aristocracia laica, baseada nas relaes de poder sobre terras e sobre homens

    (GUERREAU, 1980). No florescer dessa literatura em lngua vulgar, uma forma

    potica ganhou destaque: o Roman. Essa nova forma potica teve seu aparecimento

    atestado entre 1160 e 1170, primeiramente na regio norte da Frana e mais tarde nas

    regies inglesas e germnicas. Inicialmente a expresso utilizada para design-la era mis

    en roman, ou seja, colocar em romnico, passar do latim para as lnguas vulgares

    romnicas como, por exemplo, o francs. Dessa forma, o roman no era uma criao de

    todo original, mas uma forma de traduo do latim ou uma adaptao de obras latinas j

    conhecidas.

    Escritos em lngua vulgar, os romans mantiveram uma estrutura formal e rtmica

    bastante heterognea. Os primeiros textos foram escritos em versos, nos quais

    encontramos estruturas em octosslabos rimados, sem cortes de estrofe e destinados ao

    canto. Os versos escritos em octosslabos conferiam maior fluidez e agilidade ao texto,

    o que tornava a proclamao mais dinmica e adaptvel. Segundo Paul Zumthor, para o

    trovador da lngua dol, mettre en roman ou por em romance, significava

    propriamente glosar em lngua vulgar, clarificar o contedo ao alcance dos ouvintes,

    fazer compreender adaptando s circunstncias (ZUMTHOR, 1993, p. 267). Num

    mundo onde a fala era o veculo de comunicao fundamental, a autoridade da voz

    influenciava a constituio da obra escrita que, por fora do nosso uso corrente, foi

    denominada literria. A vocalidade era o principal instrumento de comunicao no

    mundo medieval, sendo este trnsito vocal o nico modo possvel de realizao dos

    textos. Isso no era diferente para os romans da segunda metade do sculo XII. A

    palavra potica, vocalmente transmitida, ritualizada e reescutada favorecia a migrao

    de mitos, de temas narrativos, de formas de linguagem, de estilos, afetando as

    sensibilidades e as capacidades inventivas das populaes que a escutava. A palavra

    viva permanecia uma fonte insubstituvel de informaes.

    O trovador surgiu assim como o intrprete, portador da voz potica, era o sujeito

    histrico que assumia a funo de propagar estes textos, divertindo as populaes dos

    territrios por onde passava. Nmade no corao de um mundo estvel, sua insero

    social nos territrios que visitava, muitas vezes, era fragilizada devido a sua no fixao

    a uma residncia aristocrtica. A sua incluso dependia da maneira como ele utilizava a

    fico para propagar valores da cavalaria, enaltecendo e desqualificando figuras reais

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    atravs de metforas ligadas a esta literatura teatralizada. Para a arte do trovador, o

    essencial utilizar e dominar a diversidade (FOUCHER, 1998, p. 21), com autoridade

    e erudio sobre um auditrio flutuante, que ouviu verses diferentes de outros

    trovadores. Apesar de ser um gnero escrito, a maneira teatral como eram narradas as

    histrias, j que nos crculos cavaleirescos eram poucos os que sabiam ler, mexia

    integralmente com a imaginao do ouvinte. Mesmo a percepo que as pessoas tinham

    de si prprias podia ser alterada, pois as histrias falavam de situaes, personagens,

    atitudes que eram familiares aos ouvintes.

    De acordo com grande parte dos estudiosos da literatura francesa a inspirao

    temtica dos Romans recorria a trs correntes essenciais: a influncia antiga, a matria

    bret e a influncia meridional. A influncia antiga diz respeito literatura latina,

    especialmente as obras de Virglio e Ovdio, cuja densidade psicolgica contribuiu para

    o desenvolvimento das narrativas picas como o Romance de Thebas; as lendas brets

    se referem, em particular, lenda do Rei Artur, e a mitologia celta oferecia os detalhes

    romanescos e fantasiosos que ornamentavam as narrativas. Em sua maioria, os temas

    dos romans foram inspirados na Matria da Bretanha, cuja apropriao traz uma

    reminiscncia vaga e estilizada da civilizao cltica. Os Romans afirmavam uma

    pretenso veracidade por incorporar elementos da realidade narrativa ficcional,

    jogando com a interferncia contnua do real e do fictcio. Para psicologia social de

    Moscovici, representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presentes as

    coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo que satisfaam as condies de uma

    coerncia argumentativa, de uma racionalidade e da integridade normativa do grupo

    (MOSCOVICI, 2003, p. 216). Portanto, uma representa o uma forma de assimila o

    da realidade que no tem nada de natural. Apesar de contarem com elementos ficcionais

    como drages, gigantes, feiticeiras, os romances tinham uma forte tendncia reflexo

    de valores scio-polticos, promovendo o embate de modelos comportamentais

    idealizados pelos grupos aristocrticos da sociedade feudal. Por isto, a anlise deste tipo

    de produo literria deve sempre levar em conta o contexto social de sua emergncia e

    as finalidades de sua utilizao.

    Por serem dirigidos a um grupo social determinado esses textos possuam um

    carter didtico, estando repletos de situaes exemplares que visavam o

    aprofundamento tico-moral das cortes feudais. Portanto, problematizar o uso dos

    romances de cavalaria como documento histrico nos permite investigar o surgimento

    desse gnero textual, sua funo e seu potencial para formalizar uma ao pedaggica

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    em meio s cortes francesas, onde foram proclamados. Neste trabalho nos dedicaremos

    a analisar um conjunto de obras os Romans de Chrtien de Troyes, o Tristo de

    Broul e o Romance da Melusina de Jean DArras. O objetivo verificar como elas

    veicularam determinadas representaes da dinmica social entre os sculos XII e XIV.

    Segundo Georges Duby, a literatura em lngua vulgar teve a funo de promulgar um

    cdigo de comportamento cujas prescries visavam limitar na aristocracia militar os

    estragos de um descaramento sexual irreprimvel (DUBY, 1990, p. 343-344). Essa

    funo pedaggica, implcita aos romans, contribuiu para a difuso e valorizao de

    uma viso de mundo prpria da aristocracia laica, o que no a desvinculou da influncia

    do cristianismo ou mesmo das prticas ortodoxas das lideranas crists. Os romances

    buscavam sua inspirao nos valores da sociedade cavaleiresca ao mesmo tempo em

    que ajudavam a mold-los e a reafirm-los: o novo grupo dos cavaleiros se interessa

    pela literatura que exalta suas virtudes peculiares e que faz uma propaganda esplndida

    de seu mundo seletivo e esforado (GARCIA GUAL, 1990, p. 39).

    Os Romans de Chrtien de Troyes

    As primeiras obras dedicadas aos cavaleiros de Artur foram escritas no sculo

    XII, no formato muito particular dos romans que, mais do que um gnero escrito, dizia

    muito sobre a organizao de novas formas de pensar. O autor dessas primeiras obras

    sobre os cavaleiros da Tvola Redonda Chrtien de Troyes que, embora seja um dos

    poetas mais famosos do sculo XII, nos pouco conhecido pela falta de informaes

    sobre sua vida. Chrtien de Troyes tido como o pai do romance. O pouco que sabemos

    dele, foi deduzido a partir de suas prprias obras. possvel que tenha sido clrigo pela

    grande erudio de seu trabalho. Alm dos romances do ciclo arturiano Erec e Enide,

    Cligs, Lancelot, Ivain e Perceval tambm lhe atribudo uma traduo/adaptao de

    Ovdio, Philomena, e um romance no arturiano, Guillaume dAngleterre. quase certo

    que ele tambm tenha escrito uma verso de Tristo e Isolda, qual ele faz meno no

    prlogo de Cliges1, mas que nunca foi encontrada.

    Chrtien exerceu suas atividades literrias nas cortes de Marie de Champagne

    que lhe props o tema de Lancelot e de Filipe de Flandres incentivador do romance

    Perceval (entre 1160 e aproximadamente 1190). No h certeza quanto s datas em que

    foram escritas suas obras, mas acredita-se que o romance do Rei Marc e de Isolda, nunca

    encontrado, tenha sido escrito entre 1160 e 1170; em seguida viria Erec e Enide,

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    possivelmente de 1170; Cligs seria de 1175, Lancelot e Yvain criados entre 1177 e

    1181 e, por fim, Perceval, iniciado em 1181 e nunca concludo, provavelmente devido

    morte de Chrtien entre 1185 e 1190. As obras so, na sua maioria, concisas, com uma

    mdia de 7000 versos octosslabos, exceo de Perceval que, inacabado, j possua

    quase 15000 versos. A popularidade de sua obra comprova-se pelo grande nmero de

    manuscritos conservados at hoje, alguns deles escritos j no sculo XIV, dois sculos

    depois do perodo em que viveu Chrtien.

    Trataremos detalhadamente das quatro obras que compem o chamado ciclo

    amoroso de Chrtien de Troyes: Erec e Enide, Lancelot, Cligs e Ivain. Esses quatro

    romans giram em torno das aventuras cavaleirescas, com forte nfase nas relaes entre

    os cavaleiros e as damas. H pequenas variaes na maneira como os temas so tratados,

    mas um denominador comum a questo do casamento ou das relaes amorosas entre

    homens e mulheres, que se repetem nas quatro obras. Em Erec et Enide, Chrtien analisa

    a relao entre esposo e esposa, os conflitos entre ser amante e amigo. Cligs trata do

    problema de um casamento no desejado e como solucionar a situao. Em Lancelot o

    enfoque o finamour, chamado posteriormente de amor corts, o amor fora do

    casamento, entre Lancelot e Guinevere. Yvain fala do surgimento do amor e como ele

    pode reviver.

    Erec e Enide o cavaleiro apaixonado

    Erec e Enide, alm de ser o primeiro romance de Chrtien de Troyes que

    chegou at ns, tambm o primeiro testemunho conhecido de um romance arturiano

    em lngua romnica2. Dessa forma, podemos dizer que ele se encontra num momento de

    transio, ligando a poca romnica poca gtica da literatura na Frana. As diferentes

    influncias literrias podem ser encontradas na escrita de Chrtien. Em Erec,

    encontramos elementos prximos da cano de gesta, por exemplo, no desenvolvimento

    das cenas de combate e no gosto pela enumerao e catalogao, que so procedimentos

    caros s epopeias. As influncias do romance antigo, como Enas e Tria, podem ser

    percebidas no recurso s descries luxuosas de vestimentas e mobilirios ou de forma

    mais direta na descrio do arco de sela do palafrm de Enide que possui a histria de

    Enas esculpida em marfim3. H tambm episdios que podem ser ligados mitologia

    cltica ou matria bret como o caso da caa ao cervo branco (que na mitologia

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    cltica frequentemente um preldio para a entrada no Outro Mundo) e da Alegria da

    Corte (liberando um prisioneiro de uma fada nesse Outro Mundo).

    A histria do cavaleiro Erec e sua amada Enide pode ser dividida em duas

    partes. A primeira parte narra o encontro dos jovens sob circunstncias difceis e explica

    o casamento deles. A segunda comea com o fracasso de Erec em conciliar a vida

    conjugal e suas obrigaes cavaleirescas, levando-o a aventuras que pem prova no

    s seu valor enquanto cavaleiro, mas tambm o amor e fidelidade de sua esposa. Essa

    dupla provao extremamente interessante e original. Ao partir em busca de aventuras

    para desmentir os rumores da corte de que se tornara covarde, Erec leva consigo sua

    esposa Enide. Proibida de dirigir palavra ao marido salvo para respond-lo, Enide deve

    decidir se quebra sua promessa de no falar ao marido quando percebe perigos

    iminentes que Erec no v. Assim, ele prova seu valor derrotando maus cavaleiros,

    viles, salvando prisioneiros e demonstrando todas as caractersticas de um bom

    cavaleiro. Enide faz o mesmo ao provar seu amor incondicional e total fidelidade pelo

    marido, mesmo quando o cr morto. Ela ajuda Erec nos combates, cuida de seus

    ferimentos, recusa os avanos de outros homens, enfim, representa o modelo de esposa

    ideal no ambiente das cortes. No final, os dois so coroados rei e rainha pelo prprio

    Rei Artur e tudo termina com um enorme banquete e uma grande festa.

    Enquanto documento histrico, a maneira como Chrtien de Troyes mostra o

    relacionamento entre Erec e Enide pode ajudar-nos a entender melhor as implicaes do

    casamento cristo no sculo XII. Enide no tem escolha alguma em relao deciso do

    pai de d-la em casamento a um cavaleiro que ela nunca viu e que sequer sabe seu

    nome: a sua total disposi o que eu entrego minha bela filha. E tomando-a pelo

    pulso, lhe diz: Ei-la, eu a confio a voc (CHRTIEN DE TROYES, 1992, vs. 675-

    678). Vemos aqui um momento de impotncia da filha diante do pai. Mas seria mesmo

    impotncia? A reao de Enide de algum com ambies que podem ser alcanadas

    atravs exatamente deste casamento: A jovem manteve-se quieta, mas estava muito

    feliz e pronta a aceit-lo, pois ele era valoroso e corts e ela sabia bem que ele seria rei e

    que ela prpria seria honrada, coroada ricamente como rainha (CHRTIEN DE

    TROYES, 1992, vs. 684-690).

    Assim, tanto o pai de Enide como a prpria observam o casamento como um

    negcio. O importante o status social, a riqueza e o prestgio que o casamento com

    Erec trar para Enide e para toda a sua famlia. Mais adiante, quando os dois j se

    encontram casados, encontramos uma situao instigante. Comeam a surgir boatos na

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    Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.414-441, 2013. ISSN: 2238-6270.

    corte de que Erec no mais se portava como um cavaleiro devido ao seu amor por

    Enide. O senhor no se interessava mais por nada e no cuidava de suas obrigaes.

    Estava bbado de amor. Cabe a Enide avisar o marido e, portanto, tambm sofrer as

    consequncias por t-lo desacreditado e ouvido os rumores. A represlia do autor a Erec

    vai diretamente ao excesso de amor que ele nutre por sua bela esposa. Neste sentido,

    somos lembrados das falas de alguns telogos: S o Jernimo diz: Aquele que ama a

    sua mulher com demasiado ardor considerado culpado de adultrio.; Pedro

    Lombardo, A obra de concebimento permitida no casamento, mas as volpias

    maneira das prostitutas s o condenadas; Alain de Lille, O amator veemente de sua

    esposa adltero. Chrtien de Troyes, portanto, est totalmente inserido num contexto

    em que o casamento parece fazer cada vez mais parte de uma moral religiosa4.

    Cligs o anti-Tristo

    A datao de Cligs definida por dois fatores. Em primeiro lugar, atravs do

    prlogo citado acima no qual ele enumera as obras que escrevera. Como Erec e Enide

    o nico dos cinco romances que conhecemos que mencionado, supe-se que Cligs

    tenha sido o prximo na trajetria do autor. O segundo elemento que fornece as bases

    para que o texto seja localizado por volta de 1175 diz respeito a acontecimentos

    polticos da poca e aparente ligao do texto de Chrtien com esses acontecimentos.

    Para Charles Mla, as intrigas matrimoniais entre o imperador da Alemanha e de

    Constantinopla, presentes em Cligs, refletem as tentativas de aliana de Frederico

    Barabarruiva com os Comnenos de Constantinopla diante das disputas entre Imprio e

    Papado no sculo XII (MELA, 1994, p.05).

    Assim como Erec e Enide, podemos dividir esse romance em duas partes. A

    primeira conta a histria de Alexandre, filho do imperador de Constantinopla, e a

    segunda a histria de seu filho, Cligs, que vir a herdar o trono. So duas histrias de

    amor: a de Alexandre e Soredamors e a de Cligs e Fenice. A primeira trata de um amor

    recproco, mas no confessado, que precisa da ajuda da rainha Guinevere para se

    concretizar. A segunda, muito mais complexa, mostra um amor proibido. Cligs vai

    Alemanha para trazer a noiva de seu tio Alis. Mas Cligs e Fenice se apaixonam e se

    veem divididos entre o amor e a fidelidade s suas obrigaes. A semelhana com a

    histria de Tristo no passa despercebida. No entanto, Cligs, tido como o anti-

    Trist o de Chrtien. Por que este nome? Pois a prpria Fenice, amante de Cligs diz:

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    Eu preferiria que me desmembrassem a possibilidade de ns

    revivermos o amor de Isolda e Tristo, sobre o qual tantas loucuras

    so contadas que tenho vergonha de repetir. Eu no poderia aceitar a

    vida que levou Isolda (CHRTIEN DE TROYES, 1994, vs. 3099-

    3105).

    Fenice se recusa a seguir a vida de uma adltera. Ela no ama seu marido prometido,

    no consentiu ao casamento e, portanto no tem nenhuma ligao espiritual com o

    noivo. Entretanto, no tem poder para modificar esta situao, mas deseja manter-se

    pura. Para isso recorre aos filtros de sua serva Tessala para evitar o coito e, portanto, a

    consumao do casamento. Em seguida, Fenice bebe outro filtro que a faz parecer morta

    para finalmente fugir com Cligs. No fim o casal descoberto, mas no punido, pois

    fica provado que o casamento de Fenice e Alis jamais fora consumado.

    Chrtien termina sua histria com o coroamento de Cligs e com um alerta ao

    perigo das mulheres:

    Ningum jamais desconfiou dela nem reclamou de nada, ela nunca foi

    mantida reclusa como o foram em seguida aquelas que a sucederam.

    Depois dele no houve imperador que no temesse que sua mulher

    soubesse engan-lo bem, quando lhe contavam como Fenice enganou

    Alis (CHRTIEN DE TROYES, 1994, vs. 6678-6687).

    Como podemos perceber, Chrtien criou uma histria que se passa no Oriente,

    mas na realidade, a Grcia do autor a prpria Frana. Tudo recriado para lembrar o

    ambiente das cortes do sculo XII, inclusive o comportamento das damas e cavaleiros.

    A Bretanha, por sua vez, aparece como o lugar da lenda, atemporal. Ressoa tambm

    uma lembrana de Tria. Assim, aparecem novamente as diferentes influncias do autor

    num processo que Mla chama de translatio, pois na ordem das histrias transpostas

    para o romance (no sentido lingustico e tambm formal), os lugares que aparecem

    sucessivamente so Tria, Roma e Bretanha, mas na realidade das culturas a sequncia

    se transforma em Grcia, Roma e Frana (MEL, 1994, p. 08).

    Lancelot um romance de adultrio

    O cavaleiro Lancelot ficou famoso por ser o amante da rainha Guinevere, esposa

    do rei Artur. A primeira vez que essa histria foi contada foi entre 1177 e 1181 pelas

    mos de Chrtien de Troyes. O tema lhe fora proposto, como o prprio autor nos conta,

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    Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.414-441, 2013. ISSN: 2238-6270.

    por Maria, condessa de Champanhe: Uma vez que minha dama de Champanhe quer

    que eu faa um romance, eu o farei com muito gosto, pois perteno a ela inteiramente

    para tudo que se oferea nesse mundo, sem qualquer adulao" (CHRTIEN DE

    TROYES, 1992, vs. 1-6). A histria foi recontada e reescrita muitas vezes, conhecendo

    uma grande proliferao em prosa que comeou por volta de 1250 e se estendeu at o

    sculo XIV.

    O Romance trata das provaes pelas quais passam Lancelot e Gauvain a fim de

    salvar a Rainha Guinevere, esposa de Artur, que fora raptada por Maleagant, filho do rei

    de Gorre. Os dois cavaleiros partem por caminhos diferentes e Lancelot quem

    primeiro chega at Guinevere. Os dois passam uma noite de amor juntos e o senescal

    Kai quem acusado de adultrio por Maleagant. Lancelot o enfrenta em combate

    judicirio na corte de Artur. Maleagant morto e, portanto, a honra da rainha

    reafirmada. O amor de Lancelot e Guinevere no descoberto. Lancelot chamado de

    Cavaleiro da Charrete, epteto que aparece j no ttulo da obra e demonstra de certa

    forma a devoo do amor do cavaleiro. O nome vem do episdio em que Guinevere

    ordena que Lancelot suba na charrete da infmia, reservada aos criminosos como forma

    de demonstrar sua total devoo amiga, pois: Aquele que ama sabe obedecer e faz

    rapidamente e de boa graa. Se ele ama com todo o corao aquilo que agrada sua

    amiga (CHRTIEN DE TROYES, 1992, vs. 3798-3800).

    Mais uma vez podemos perceber algumas das influncias de Chrtien. A cena do

    adultrio, na qual os amantes so quase trados pelas manchas de sangue no lenol (que

    so atribudas erroneamente ao senescal) parece dialogar com o romance de Tristo,

    com a diferena que Tristo descoberto e Lancelot poupado pelo autor. H tambm

    semelhanas com tradies orais galesas. Um texto antigo chamado Vita Gildae, escrito

    por Caradoc de Llancarvan anteriormente a 1136 conta a histria de como a rainha

    Guennuvar fora capturada pelo cavaleiro Melvas (PNZARU, 2001). Mas seria

    Lancelot realmente uma apologia ao adultrio? Ora, mesmo sendo adltero, Lancelot

    o heri da histria, tanto que o autor o poupa e seu relacionamento com a rainha no

    descoberto. Pelo contrrio, as suspeitas recaem sobre Kai, o senescal do rei que fora

    responsvel pela captura da rainha por Maleagant. O autor parece considerar muito mais

    grave trair o suserano do que o marido. Mas as duas coisas no so necessariamente

    diferentes uma da outra, uma vez que podemos interpretar o casamento como uma

    forma de relao vasslica, como diz Joseph Morsel. Ele traa um paralelo entre os

    laos de vassalagem e o casamento, no qual o segundo se estabelece como um modelo

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    du rapport seigneurial (MORSEL, 2004). Condenar a traio ao senhor tambm

    condenar o adultrio.

    Dessa forma, podemos dizer que Chrtien, longe de celebrar, critica os

    sentimentos que movem os adlteros. Tanto Lancelot quanto Guinevere tem conscincia

    de que o amor que sentem um pelo outro errado, da o fato de se esforarem por

    manter seus sentimentos escondidos. A rainha chega ao ponto de receber Lancelot com

    descaso para disfarar seu amor pelo cavaleiro. Ningum pode saber. Por isso se

    encontram clandestinamente, quando todos dormem, e a rainha se desespera diante da

    possibilidade de ser descoberta. Assim, o que Chrtien parece nos mostrar que as

    relaes extraconjugais eram uma realidade das cortes, uma realidade condenvel, e que

    poderia trazer problemas srios para as relaes feudais.

    Ivain o cavaleiro ideal

    Com Ivain, Chrtien de Troyes mais uma vez explora o tema do cavaleiro que

    precisa expiar seus erros atravs de provaes. Assim como Erec, Ivain precisa partir

    em busca de aventuras para provar seu valor, mas o faz sozinho. E o autor nos indica

    que essa histria no apenas um divertimento passageiro, mas se trata de um

    acontecimento que pode levar reflexo:

    Os ouvidos so a via e o caminho pelos quais a voz chega ao corao;

    E o corao guarda bem no seu fundo a voz que pelo ouvido o

    penetra. Portanto, aquele que quiser me compreender, deve me

    entregar o corao e os ouvidos; Pois, minha inteno no lhes

    propor fantasias, nem fbulas ou mentiras que tantos outros j

    contaram, eu contarei aquilo que vi (CHRTIEN DE TROYES, 1990,

    vs. 165-174).

    De fato, o personagem de Ivain passa por grandes provaes que o levam

    selvageria e loucura at que ele possa se redimir e se tornar o cavaleiro ideal. Alm

    disso, a histria tem um elemento de metalinguagem uma vez que o jovem cavaleiro

    parte em busca de aventura e honra inspirado por uma histria (como se fosse tambm

    um roman) contada na corte de Artur por um cavaleiro chamado Calogrenant. Isso

    provavelmente aproximava a obra do pblico que se encontrava na mesma posio: em

    uma corte ouvindo as histrias do grande cavaleiro.

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    Tudo comea quando Ivain derrota um cavaleiro vingativo que atormentava a

    todos que chegavam a uma fonte encantada. Em seguida ele se apaixona pela viva e

    acaba por casar-se com ela. Deparamo-nos com um perfeito exemplo de prtica feudal:

    a herdeira precisa de um cavaleiro para servi-la e esse cavaleiro, por mrito, ganha a

    mulher e o feudo. Eles se amam, mas assim como Erec, Ivain precisa provar seu valor

    de cavaleiro e parte numa jornada junto com Gawain (BARTHLEMY, 2010, p. 526).

    Sua esposa, Laudine, determina que ele regresse no prazo de um ano e quando ele no o

    faz, repudia-o publicamente. Seguem ento os martrios de Ivain, sua loucura e

    redeno para finalmente conseguir o perdo da esposa e retomar seu lugar ao lado dela.

    nesse percurso que Ivain se transforma no modelo de cavaleiro que cumpre

    sua funo social segundo o ponto de vista da Igreja. Ele assume o papel de um tipo de

    justiceiro, defensor dos desamparados. Um exemplo quando ele vai ao auxlio de uma

    jovem para defend-la da irm mais velha que a acusara falsamente de trai o: Ele

    viajou toda a semana, segundo as indicaes da jovem que conhecia muito bem o

    caminho do local onde ela deixara a deserdada em desespero e doente (CHRTIEN

    DE TROYES, 1990, vs. 5813-5818). Outro forte simbolismo da cavalaria medieval

    aparece no epteto de Ivain: Cavaleiro do Le o. Ele salva um le o, o animal mais

    nobre de todos e smbolo constante da cavalaria, das garras de uma serpente, animal que

    representa o pecado segundo a viso religiosa crist. O animal passa a acompanh-lo

    fielmente e o caracteriza como um grande cavaleiro corts, impressionante e generoso.

    A histria de Ivain inspirou muitas outras que se seguiram, marcadamente a verso de

    Hartmann von Aue, Iwein, escrita em alemo antigo por volta de 1203, e uma verso em

    ingls antigo, Yvain and Gawain. O mote da loucura do cavaleiro foi retomado

    posteriormente em Orlando furiso de Ariosto, escrito em 1516.

    Muito foi dito sobre as influncias e fontes que Chrtien de Troyes teria tido na

    composio de seus romans. Embora seja quase impossvel determinar de que forma o

    autor entrou em contato com as diferentes inspiraes e at que ponto ele se utilizou

    delas deliberadamente, podemos claramente afirmar que ele tinha conhecimento das

    tradies literrias ou orais das populaes da Bretanha e da Britnia. Como foi dito

    acima, embora o termo romans tivesse um sentido original de traduo, a obra de

    Chrtien tambm trouxe algo de novo que viria a inspirar gerao aps gerao.

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    O Tristo de Broul

    O romance de Tristo e Isolda foi por muito tempo fonte de inspirao e modelo

    para expresso afetiva do Ocidente. A experincia sentimental transmitida pelo romance

    ultrapassou o limiar da lenda para tornar-se um mito, que durante sculos propagou a

    fatalidade que circunda o amor-paixo. A popularidade contempornea do romance de

    Tristo e Isolda deve-se em boa medida ao processo de divulgao e interiorizao das

    vrias verses da lenda oriundas das transcries produzidas a partir da segunda metade

    do sculo XII. Temos uma diversidade considervel de narrativas conservadas da Idade

    Mdia. So elas: o Tristo de Broul (cerca de 1170); o Tristan de Thomas (cerca de

    1175); a Folie Tristan de Berne e a Folie Tristan de Oxford (final do sculo XII); a

    cano Chvrefeuille de Marie de France (final do sculo XII); o Tristo alemo de

    Eilhart dOberg (final do sculo XII) e o de Gottfried de Estrasburgo (incio do sculo

    XIII); O Tristan da Saga Nrdica do rei Haakon da Dinamarca (1226); o Tristan em

    prosa (1230) e as verses inglesa (Sir Tristrem) e italiana (Tristano), ambas do final

    sculo XIII; o heri Tristo ainda aparece na Demanda del San Graal espanhola, na

    Demanda do Santo Graal portuguesa, na Tavola Ritonda italiana, todas compostas no

    sculo XIV e, finalmente, na obra a Morte dArthur (sculo XV) do ingls Thomas

    Malory.

    Desde o final do sculo XIX, quando Joseph Bdier se debruou sobre os

    estudos da legenda tristnica, as diferentes narrativas do romance so reunidas em dois

    grupos: a verso comum e a verso corts. A primeira seria representada pelas

    narrativas de Broul e Eilhart dOberg, que de maneira primitiva e pouco preocupada

    com a polidez dos modos corteses, descreveu personagens violentos, sensuais,

    vingativos e sem escrpulos. O segundo grupo, ilustrado pelas narrativas de Thomas e

    de Gottfried de Estrasburgo, destacou o perfil corts das personagens, focando-se nos

    distrbios scio-morais provocados pela ingesto da poo de amor por Tristo e Isolda.

    As razes que impulsionam essa diviso sustentam-se principalmente no fato de que a

    verso corts parece estar mais focada em apresentar o conceito de amor corts que se

    desenvolveu na corte francesa durante o sculo XII, sendo que as narrativas

    concentram-se em detalhar a turbulncia emocional sofrida pelos amantes. O grande

    contraste entre as duas verses reside nos efeitos dados poo do amor: enquanto na

    verso comum a eficcia da poo do amor tem prazo de durao, na verso corts seus

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    efeitos so permanentes e devastadores no condicionamento da vontade dos

    personagens (FRAPPIER, 1963).

    Diferentemente de Joseph Bdier, o estudioso das narrativas francesas do

    Romance de Tristo Jean-Charles Payen preferiu conceitu-las de maneira mais precisa:

    a verso pica, na qual se destaca o Tristo de Broul e o Tristan de Gottfried de

    Estrasburgo; a verso lrica, com o Tristan de Thomas; e uma terceira tradio, a verso

    cavaleiresca, na qual se inserem os textos em prosa do Tristo. A verso pica

    caracteriza-se pela narrao de grandes acontecimentos, dentro dos quais se destacam os

    atos hericos de Tristo e a tica guerreira baseada nos laos de solidariedade e

    dependncia ao poder senhorial. As personagens tm pouca densidade psicolgica, mas

    h muita exortao ao pblico com o objetivo de estreitar o vnculo entre o autor e o

    auditrio. A trama narrativa marcada por quadros excessivamente independentes,

    como se alinhavasse diversos contos separados. A verso lrica assim chamada pelo

    desenvolvimento dos monlogos afetivos que tratam da cortesia. Nesse tipo de verso

    as problemticas feudais do lugar aos dramas psicolgicos da afeio entre homem e

    mulher. J a verso cavaleiresca remodela os amores vividos pelos heris e os coloca

    como resultado/recompensa de suas aes a servio da sociedade. Essa terceira via

    narrativa representaria o ponto de interseco entre as verses picas e lricas,

    estabelecendo um equilbrio entre as determinaes do cdigo de disciplinamento

    cavaleiresco e os ideais lricos do amor corts.

    Apesar das diversas classificaes que podem reunir as vrias narrativas do

    Romance de Tristo produzidas durante a Idade Mdia, nos importa destacar que antes

    de serem relatos fictcios sobre o amor, so documentos histricos, que trazem tona

    representaes especficas das relaes sociais dos ambientes feudais. Enquanto um

    discurso ideal que a aristocracia laica criou e divulgou sobre si mesma, essas narrativas

    eram sensveis aos cdigos sociais partilhados com o restante da sociedade feudal.

    Nesse sentido, optamos por observar mais de perto a vers o pica do Tristo

    composta pelo normando Broul: aquele que tem mais em sua memria, do que

    outros obreiros do ofcio, pois a viu escrita5. Diferente de outros romans do perodo, o

    Tristo de Broul no se limita glorificao de personagens perfeitas, ele explora sua

    humanidade, seus vcios e virtudes, suas dvidas e certezas, seus medos e sua coragem.

    Seja abordando a valorizao da cavalaria, o matrimnio ou as relaes entre o poder

    monrquico e o poder senhorial, Broul tratou, com propriedade, questes relevantes da

    experincia histrica laica.

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    Provavelmente egresso de algum mosteiro do Norte da Frana, Broul afastou-se

    dos muros do monastrio para proclamar lendas e histrias que divertiam as cortes

    laicas. Da sua narrativa nos chegou um fragmento com 4.485 versos, sendo que 34 deles

    no podem ser decifrados. O manuscrito original do Tristo de Broul encontra-se na

    Bibliothque Nationale de Paris, sob o nmero 2171, com 32 flios. Sua primeira

    edio foi feita por Ernest Muret no incio do sculo XX. A determinao da origem

    geogrfica do manuscrito incerta, mas est muito ligada ao estudo especfico dos

    dialetos que compem o fragmento. No caso, a lngua de Broul compreende traos dos

    dialetos picardo e normando, mas a sintaxe arcaica como nas canes de gesta

    (HOLDEN, 1989). Sua lngua se distingue pouco do dialeto empregado no Nordeste da

    Frana. Como seus usos lingsticos podem advir das contribuies de uma vida errante

    comum a um trovador, esse manuscrito pode ser originrio de uma zona geogrfica

    muito extensa, que se estende do sul da Normandia, alta Bretanha, Anjou e Touraine

    (REID, 1964).

    Existe uma longa polmica acerca da autoria do Tristo de Broul. Alguns

    autores, como Timothy B. W. Reid e Raynaud de Lage (REID, 1964), insistem na

    unidade duvidosa do texto, assegurando que so duas partes distintas, compostas em

    lugar, tempo e por autores diferentes. A primeira parte do manuscrito compreenderia os

    versos 01 a 2752 (incio do fragmento at a restituio da rainha Isolda ao rei Marcos) e

    a segunda parte iria do verso 2765 ao 4485 (restituio da rainha at a vingana contra

    os bares). No intervalo existente entre a primeira e a segunda parte, especificamente

    dos versos 2753 a 2764, haveria uma dificuldade sria em determinar o limite preciso

    que destacaria uma parte da outra, pois a rima e o estilo da escrita esto muito

    prximos. Fica aqui a primeira dvida sobre a dupla autoria: Se no espao de dez versos

    as diferena so to imperceptveis, no seria esta a indicao de que um nico Broul

    comps integralmente o texto?

    Timothy Reid num exame sistemtico da lngua do fragmento acreditou poder

    afirmar a divergncia entre as duas sees, caracterizando a primeira parte por uma

    composio mais grosseira das rimas e com o estilo pico mais prximo das canes de

    gesta. Numa anlise lingustica a primeira parte apresenta um trao particular que o

    comportamento anormal das consoantes dentais t e d, tambm o t presente no final das

    palavras constante, enquanto que na segunda parte ele deixa de existir. Na segunda

    parte, Reid v rimas evoludas mais prximas ao estilo de escrita dos trovadores da

    lngua doc da segunda metade do sculo XII. No entanto, a maioria dos estudiosos do

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    Tristo afirma que o manuscrito foi composto por um s Broul (HOLDEN, 1989;

    ZUMTHOR, 1993; FRAPPIER, 1963), principalmente porque h um conjunto de

    significados relativos ao contedo scio-cultural das personagens que no se modifica

    no desenrolar da histria6. Mesmo numa anlise sistemtica da lngua empregada no

    fragmento, os pontos comuns entre as duas partes superam as suas diferenas. Segundo

    Anthony Holden, no possvel fundamentar sobre a lngua do fragmento a tese da

    dupla autoria, porque as oposies so ilusrias.

    A datao do manuscrito outro ponto longe de um consenso. Atravs de um

    conjunto heterogneo de informaes elementos histricos presentes no manuscrito, o

    cruzamento de personagens e localidades com outras fontes a hiptese mais

    sustentada que o Tristo de Broul foi composto entre 1160 e 1190. A informao

    histrica mais relevante presente no manuscrito de Broul a aluso epidemia que

    ocorreu entre os cruzados na sede DAcre no inverno de 1190/91 (BLAKESLEE, 1986).

    Entretanto, o estudo de Merritt Blakeslee questionou esse indcio histrico. Para o autor,

    quando Ernest Muret fez a edio do manuscrito em 1907, ele corrigiu a expresso mal

    dages por dacre, alterando o sentido original do verso. O disfarce e os sintomas de

    Tristo descritos na passagem esto mais prximos da lepra do que da epidemia que

    afligiu os cruzados em 1190. Alm disso, numa distncia de menos de 100 versos de

    onde aparece a expresso mal dages h o emprego de degiez, que significa leproso ou

    enfermo, para designar o disfarce de Tristo. Merritt Blakeslee explica que o copista do

    manuscrito ao invs de usar o termo degiez, empregou uma abreviao comum a outras

    expresses presentes no manuscrito.

    Ao longo do fragmento com 4485 versos, Broul expe uma apreenso muito

    rica sobre as formas de organizao da sociedade feudal. A forma como representa a

    estrutura de parentesco uma delas. No Tristo de Broul, os elos de consanguinidade

    so importantes para a valorizao do tema central que o relacionamento amoroso e

    adltero entre Tristo e Isolda. Pois, a relao consangunea entre Tristo e o rei Marcos

    pretende provocar a perplexidade do espectador diante do amor considerado sem

    culpa perante Deus existente entre Isolda, esposa de Marcos e Tristo, sobrinho deste.

    A representao que esta literatura faz da linhagem, das relaes de poder e autoridade

    dentro da corte parece seguir caminhos divergentes daqueles atestados pela

    historiografia do parentesco, uma vez que h valorizao de uma relao adltera em

    detrimento dos vnculos de solidariedade entre o rei e seus prximos. O termo parent

    o primeiro a ser utilizado para determinar a natureza dos vnculos de parentesco e sua

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    importncia no contexto da obra. Ele aparece entre os versos 69 e 73, no espao

    narrativo da corte, onde os amantes esto sendo flagrados pelo rei Marcos, que os

    espreita sobre o pinheiro: Trist o, seguramente, o rei n o sabe que por ele eu vos amei:

    Porque sois da parentela, eu vos tenho afei o (BROUL, 1999, vs. 69-73).

    O vocbulo parentela (parant), um substantivo masculino, se reporta a um

    grupo de parentes, e no propriamente a uma relao. Se substituirmos o termo pela

    palavra grupo, o sentido da passagem parece mais claro e determinante, pois a partir

    do grupo de parentesco, que relaes so formadas, sejam elas afetivas ou materiais. No

    caso, a relao e a afeio de Tristo e Isolda esto circunscritas ao pertencimento de

    Tristo parentela do rei. Nesse dilogo Isolda explica a Tristo a natureza positiva e

    sem concupiscncia do sentimento que devota a ele, alicerando-o na existncia de um

    vnculo de parentesco entre ele e o rei. Apesar de o narrador nos deixar a par do carter

    dissimulado do discurso que Isolda profere para enganar o rei, este no desconfia das

    palavras ditas, pois elas descrevem o que se espera de uma relao entre parentes

    porque Tristo est inserido na parentela do rei Marcos e desfruta da afeio de sua

    esposa. Atentos ao carter condicional da afeio, verificamos que o vocbulo afeio

    (chert), um derivado do termo caridade (chiert), reporta-se a uma afeio pura,

    despida de malcia ou interesse. Nesse caso, a afei o n o um simples querer bem,

    mas um apego sincero proveniente da caridade, conforme nos apresenta seu

    correspondente latino: caritas. O termo em lngua dol mantm com seu

    correspondente latino parentescos lingusticos, em primeiro lugar pelo significado que

    alcana, em segundo por ser aplicado exclusivamente ao ambiente do parentesco. Na

    obra, a nica ocorrncia deste termo em meio parentela indica uma acepo complexa

    da mesma, uma vez que as relaes determinadas por ela tm uma caracterstica

    primordial fundamentada na chert/caritas7.

    O termo linhagem (linage) no corrente no Tristo, o que no elimina a

    evocao da relao determinante em contextos onde Broul no utiliza a palavra. A

    primeira ocorrncia se d entre os versos 123 e 125, no espao da corte sob o efeito da

    beberagem de amor, uma folha depois da passagem referente ao vocbulo parentela.

    Como salientamos acima, naquela circunstncia Tristo e Isolda encontravam-se

    embaixo do pinheiro e sob o olhar atento do rei Marcos. Cientes da situao flagrante,

    ambos tentam desviar a ateno do rei do motivo real que os levou quele encontro.

    Procuram desvencilhar-se de qualquer ao incriminadora, atacando e desqualificando a

    moral dos bares cognominados traidores e bajuladores que os denunciam como

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    adlteros. Agora eu vejo bem, que me afastam porque eles n o queriam que consigo

    tivesse homem de sua linhagem (BROUL, 1999, vs. 123-125).

    O termo linhagem (linage), primeiramente, assinala a noo de grupo, do qual

    Tristo faz parte e, pelo que se apresenta, esto excludos os bares, pois eles so

    claramente acusados de tentarem afastar do rei o homem de sua linhagem,

    reconhecido na pessoa de Tristo. Se eles tambm participassem da linhagem do rei,

    no haveria porque o narrador assentar sobre esta qualidade o motivo da perseguio

    dos bares. Nesse caso, se o aparecimento do termo estreita, ao invs de dilatar, a noo

    de grupo, podemos assinalar a primeira restrio de parentesco definida pela obra.

    Apenas Tristo integra a linhagem do rei, e como tambm seu sobrinho, podemos

    considerar aqui que o termo linhagem define um grupo de parentesco restrito

    consanguinidade.

    Tristo enfatiza o desejo dos bares de o manterem longe do rei, atribuindo a

    perseguio deles ao fato de pertencer linhagem do rei, o que o colocaria como

    sucessor ideal na falta de um herdeiro direto. Entretanto, o problema para os bares est

    na infidelidade de Isolda, principalmente, porque a comprovao do adultrio

    acarretaria o questionamento da legitimidade sucessria dos herdeiros nascidos da

    rainha. Alm disso, a posio de Marcos como rei seria abalada, pois simbolicamente, a

    rainha tem papel fundamental como elo de ligao entre o rei e seu reino8 e, ao ceder a

    rainha a seu sobrinho, o rei Marcos permite que Tristo se apodere do elo representado

    por ela. A comprovao da infidelidade de Tristo tambm prejudicaria a legitimidade

    do poder do rei Marcos, pois com a condenao do sobrinho, Marcos, alm de perder o

    principal defensor da Cornualha e toda a valentia e popularidade presentes em sua

    figura, desqualificaria sua prpria linhagem ao admitir um membro desleal e desonrado

    em seu interior.

    Broul deixa subentendido que defender o rei do possvel adultrio no a nica

    preocupao dos bares, uma vez que, por trs desta defesa despretensiosa, eles

    conservam a inteno manipul-lo. Os bares so tambm os primeiros a serem

    beneficiados pela ausncia de um herdeiro e pela fragilidade moral do rei e do reino

    perante a iminncia do adultrio, pois com todas as atribulaes causadas pelo

    desequilbrio moral do rei e de seu sucessor, restam a eles o controle e a administrao

    do reino. Na segunda ocorrncia do termo linhagem, no verso 3427, a figura

    questionada e perseguida no Tristo, mas a rainha Isolda.

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    A rainha se reconciliou com seu senhor, no h segredo: Senhor, l

    onde eles se reconciliaram, estavam todos os bares do reino. Tristo

    se ofereceu ao duelo judicirio para justificar a rainha, diante do rei,

    por lealdade. Mas ningum da corte de Marcos quis pegar as armas.

    Senhor, agora fazem o rei Marcos ouvir que ela deve justificar-se. No

    h nobre homem, Francs ou Saxo, na corte do rei, de sua linhagem

    (BROUL, 1999, vs. 3415-3427).

    Embora, no primeiro trecho do Tristo, a palavra linhagem seja atribuda a uma

    ligao por linha materna, na passagem seguinte referente linhagem de Isolda o

    mesmo no ocorre. A referncia aleatria aos franceses e saxes no confirma nem nega

    uma linhagem restrita aos consanguneos. O reconhecimento de uma tendncia agntica

    tambm no possvel, j que a fonte somente menciona a origem territorial de Isolda:

    Irlanda9. Dessa forma, os resultados alcanados com a primeira ocorrncia da linhagem,

    so agora diludos por inmeras possibilidades, que no podem ser confirmadas nem

    descartadas. Como para o vocbulo parentela, o termo linhagem no empregado para

    incluir outros membros no grupo que define. O aparecimento destes termos determina

    apenas uma vinculao clara entre Tristo e o rei Marcos. A linhagem fechada e

    consangunea triunfante sucumbe diante dos interesses do grupo extenso, extremamente

    ativo neste documento vernculo.

    Na obra, temos duas tendncias concorrentes: uma que indica a necessidade do

    rei Marcos manter-se unido aos bares, mesmo que isso signifique o afastamento de

    Tristo; e a segunda que assinala a clara preferncia do narrador Broul por Tristo.

    Mesmo Tristo cometendo um delito grave contra o rei, o narrador permanece partidrio

    dele, como se em seu delito houvesse um evidente motivo para a absolvio, enquanto

    para os bares a condenao percorre toda a narrativa. O narrador quer anunciar as

    dificuldades advindas do exerccio do poder, especialmente, quando estas dificuldades

    so geradas por deliberaes incongruentes da figura real, pois o rei se apresenta

    incapaz de distinguir quais relaes devem ser privilegiadas e os motivos que

    determinam estas eleies. Apresentando uma monarquia combalida frente aos

    desmandos dos senhores feudais, uma relao consangunea preterida em favor das

    relaes de solidariedade e, finalmente, um modelo de matrimnio nada convencional

    s pretenses sacramentais da Igreja, Broul questionou as posturas diante dos

    relacionamentos sociais, sobretudo, o comprometimento dedicado a eles. Nessa

    perspectiva, o Tristo de Broul nos conduz a inmeras possibilidades de interpretao

    histrica, instigando-nos a questionar as condutas que orientam o desenvolvimento da

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    vida conjugal do perodo, sua estreita relao com a atividade vasslico-cavaleiresca e

    suas implicaes integridade e manuteno das relaes de poder feudal.

    O Romance de Melusina

    A diversidade de testemunhos documentais abarcados na noo de roman j

    pde ser sentida no momento em que o vocbulo comeou a circular, o que demonstra a

    complexa rede de sentidos em que estava inserido. Referindo-se inicialmente lngua

    do texto, o vocbulo romance, como vimos, no definia propriamente a forma do texto,

    que na maior parte das vezes era apresentado em versos. Ao longo dos sculos XIII e

    XIV, a forma do texto liberta-se do que do que Paul Zumthor chamou de coer o

    vocal imposta pelo verso, promovendo assim a proliferao da prosa narrativa (1993).

    Alguns autores comeam a mostrar preocupao com a intuio dos versos,

    questionando sua capacidade de representar a verdade. O romance em prosa torna-se

    assim uma alternativa na busca por um discurso mais verossmil. Isto no significa que

    seus autores vo deixar de utilizar mitos, lendas e histrias fantsticas como base para a

    criao de seus romances.

    Nesse sentido, nos dedicaremos apresentao de um romance em prosa escrito

    no final do sculo XIV para discutir outros aspectos referentes a esse tipo de

    documentao. O Roman de Mlusine ou LHistoire des Lusignan nos ajudar a

    exemplificar a permeabilidade do gnero romanesco no final da Idade Mdia e suas

    inmeras influncias. Utilizando a fluidez do gnero a seu favor, o autor do Romance de

    Melusina no se furtou a certas necessidades formais, em especial a referncia s

    autoridades para valorizar e legitimar o discurso que pretendia divulgar. O duque Jean

    de Berry, conhecido mecenas dos sculos XIV e XV, encomendara a Jean dArras essa

    narrativa que deveria contar da forma mais prxima da verdade, a histria da fundao

    da fortaleza dos Lusignan que o duque tinha em seu poder. Com esse compromisso, o

    autor constri seu romance, que herda uma estrutura j conhecida a unio de uma fada

    com um mortal e a transgresso a um interdito, que causa a separao do casal mas

    que preenchida com referncias, reflexes e idias de diversos gneros textuais da

    Idade Mdia, como as canes de gesta, os Espelhos de Prncipe, os escritos filosficos,

    tratados teolgicos, etc.

    Aproximadamente dez anos aps Jean dArras ter elaborado o Romance de

    Melusina, Coudrette escreveu a pedido de Guillaume lArchevque um romance que

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    narrava a mesma histria, a qual o autor optou por colocar em versos. A influncia da

    obra de Jean dArras flagrante, seja nas passagens narradas, seja na forma como os

    fatos so encadeados. Em verdade, a ancestralidade mtica dos Lusignan j havia sido

    evocada em outras obras. No incio do sculo XIV, Pierre Bersuire no Reductorium

    morale escreve que a fortaleza dos Lusignan havia sido fundada por uma fada que teria

    deixado inmeros descendentes. No entanto, a fada ainda no tinha o nome Melusina e

    a histria no tinha a estrutura que lhe seria dada posteriormente. A reside a

    importncia do romance de Jean dArras que, alm de dar um nome ancestral, mescla

    elementos histricos a uma estrutura mtica na busca de construir uma narrativa o mais

    verossmil possvel daquela linhagem. Esse romance se torna a principal fonte tanto

    para o romance de Coudrette, quanto para as obras posteriores sobre Melusina e os

    Lusignan.

    Tanto o Romance de Melusina de Jean dArras, quanto o de Coudrette foram

    traduzidos para diversas lnguas ao longo dos sculos XV e XVI: ingls, flamengo,

    tcheco e espanhol. O romance de Jean dArras foi o primeiro livro ilustrado impresso

    em francs na cidade de Genebra em 1478, tendo conhecido 22 edies entre 1478 e

    1597. Em 1520 aparecem dois romances baseados no de Jean dArras: um de ttulo

    Romance de Melusina e outro romance de nome Godofredo, o Dentuo. Menes

    Melusina, tal como aparecem no romance de dArras, ser o feitas em vrios escritos dos

    sculos subseqentes (LADURIE; LE GOFF, 1971). Essa histria tornou-se

    amplamente conhecida e a ligao entre Melusina e os Lusignan parece ter sido muito

    bem tecida nesses escritos.

    O Romance de Melusina, datado de 1392, escrito pelo prprio punho de Jean

    dArras jamais foi encontrado. A edi o utilizada neste texto a feita por Jean-Jacques

    Vincensini, baseada no manuscrito da Biblioteca do Arsenal, confrontada pelo autor

    com todos os outros manuscritos, sendo as variaes devidamente apontadas. O texto

    em francs antigo foi reproduzido na ntegra. A estrutura bsica do documento se

    compe de 35 episdios, que poderamos dividir em quatro grandes partes: 1 A

    origem de Melusina; 2 O encontro de Melusina com Raimundo; 3 A prosperidade

    dos Lusignan aps o casamento: nascimento dos filhos, construes de castelos,

    conquistas territoriais e ida s Cruzadas; 4 Transgresso do interdito e separao do

    casal. O documento ainda ilustrado com 36 desenhos referentes a passagens

    diferenciadas da histria que no correspondem necessariamente a cada episdio, o que

    significa dizer que em certas situaes existem dois desenhos ou mais que retratam

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    passagens do mesmo episdio e que existem episdios sem nenhum desenho que os

    ilustrem. O inventrio do duque Jean de Berry comprova o ttulo que recebeu de seus

    contemporneos: o prncipe dos biblifilos10

    .

    Jean dArras, sobre quem se sabe muito pouco, estava a servio desse homem.

    Ele teve sua disposio toda a biblioteca de Berry, alm de vrias crnicas as quais ele

    chama de autnticas, que teria recebido de Jean de Salisbury. Como Froissart e

    Guillaume de Machaut, dArras parece ter estado a servio de importantes senhores da

    Frana, at mesmo do rei Carlos VI. Vincensini afirma que ele era conhecido como

    mestre na arte de descobrir intrigas e narr-las. Mas o mecenato interferiu enormemente

    no s nas condies da escrita, mas tambm no tema, como veremos mais frente. A

    patronagem do duque de Berry em relao obra de Jean dArras pode ser comprovada

    pela remunerao do escritor11

    . Jean de Berry j conhecido mecenas, mantinha Jean

    dArras entre as pessoas que estavam a seu servio, como mostra seu livro de contas.

    Alm disso, no prlogo do Romance de Melusina, dArras afirma que estava escrevendo

    aquela narrativa a pedido de Berry, que queria saber a verdade exata a respeito da

    fundao do castelo de Lusignan, tendo, para isso, lhe disponibilizado crnicas

    autnticas, pois desejava uma narrativa o mais fiel possvel aos fatos acontecidos. A

    relao do autor, que se prope a atender os desejos de seu mecenas da melhor forma

    que puder, vai marcar de forma definitiva a narrativa. A estrutura do conto

    melusiniano usada para narrar a histria dos Lusignan e a influncia do mecenas ser

    sentida ao longo do texto. Um exemplo que vrios episdios do romance se passam

    em lugares onde os nobres eram aliados ao duque de Berry.

    A estrutura bsica do Romance de Melusina obedece lgica dos contos

    melusinianos, textos da Idade Mdia que narram histrias estruturadas da seguinte

    forma: um mortal, homem ou mulher, encontra um ser sobrenatural e a ele se une.

    Durante o tempo que est junto, o casal goza de uma unio feliz e prspera. Mas sempre

    ocorre a separao que na maioria das vezes, causada pela transgresso de um

    interdito, geralmente imposto pelo ser sobrenatural antes da unio. Textos como esses

    foram produzidos em diferentes locais e pocas, tanto em lngua latina, quanto em

    lnguas vernculas, sendo que elementos diversificados so acrescidos estrutura

    bsica. Mas alm dessa estrutura bsica, no Romance de Melusina identificamos a

    presena de vrios motivos e influncia de diversos estilos literrios. Tal como um

    Espelho de Prncipe, o romance de dArras oferece conselhos da vida moral, espiritual,

    oposies e embates entre virtudes e vcios, conselhos de governo, e traz esteretipos

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    tpicos desses escritos. O discurso de Melusina, na partida de Guido e Uri para o

    Oriente, um exemplo:

    Meus filhos, eu vos recomendo que onde quer que estiverdes, comeai

    o dia assistido ao servio divino, antes de qualquer coisa. Em vossos

    projetos implorai a ajuda de vosso criador; servi diligentemente, amai

    e temei vosso Deus e vosso criador. Defendei nossa santa me Igreja,

    e sedes seus verdadeiros paladinos contra todos os seus inimigos.

    Defendei as vivas e os rfos; respeitai todas as senhoras, socorrei

    todas as jovens [...]. Prezai os homens de nobre nascimento e buscai

    sua companhia. Sede humildes e humanos tanto diante dos grandes

    quanto diante dos pequenos (DARRAS, 2003, p. 87-89).

    O enorme discurso de onde este trecho foi extrado contm normas para o

    comportamento na guerra, nas batalhas e em relao administrao de territrios

    conquistados. Vincesini atenta para o fato de que tais exortaes so baseadas naquelas

    presentes no Scret des screts, obra do incio do sculo XIV, na qual constam alguns

    conselhos para um bom governo. Dentre os muitos exemplos, podemos citar o topos

    que estabelece uma relao fundamental entre rei e justia. No seguinte episdio temos

    um exemplo de como esse motif foi trabalhado por Jean dArras. O primeiro

    empreendimento de Raimundo aps o casamento foi a reconquista de alguns territrios

    que pertenceram a seu pai na Bretanha. Ele vai reclamar as terras que, injustamente,

    foram dadas a outro homem: Senhor grande e poderoso rei, disse Raimundo, a fama

    unnime de nobreza e razo que tem vossa corte em todas as terras, faz dela uma

    verdadeira fonte de justia e de direito. Dizem que ningum a que esta corte venha

    deixa de receber justia (DARRAS, 2003, p. 238). O rei lhe responde: eu juro por

    tudo o que recebi de Deus que farei plena justia, mesmo que contra meu irmo fosse,

    caso tivesse um (DARRAS, 2003, p. 238). E Raimundo lhe diz que aquelas palavras

    eram sbias j que exatamente para manter a justia e a verdade que a realeza foi

    fundada! (DARRAS, 2003, p. 240). A relao entre o rei e a justia era muito comum

    nos espelhos de prncipe do final do sculo XIV, sendo um dos esteretipos preferidos

    deste gnero. A presena dessa ideia no Romance de Melusina revela sua dimenso

    pedaggica, j que a fonte expe idias que deveriam nortear o comportamento e as

    aes dos prncipes, como os prprios espelhos faziam.

    Outro motivo muito comum em vrios textos medievais o da Roda da Fortuna.

    Ela aparece em vrios episdios do romance como, por exemplo, quando Raimundo se

    lamenta por ter trado Melusina porque a viu em forma de serpente:

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    Fortuna cega, amarga e acerba, tu me levaste da mais alta posio da

    tua roda para a mais baixa, para o lugar mais enlameado e sujo de tua

    casa, para o lugar onde Jpiter mata a sede dos infelizes, dos

    sofredores, dos aflitos, dos desesperados. Deus te amaldioe! Por tua

    causa cometi um crime horrvel contra meu querido senhor e tio.

    Agora queres que eu pague! Ai de mim! Poupaste-me essa grande

    punio e me deste grande autoridade, graas sabedoria e s

    qualidades da melhor das melhores, da mais bela das belas, da mais

    sbia das sbias. E agora me fazes tudo perder, zarolha imunda,

    traidora, invejosa! bem louco quem se fia em teus presentes! Agora

    amas, depois odeias; ora constris, ora destris; no h mais certeza

    nem estabilidade em ti do que num galo de cata-vento (DARRAS,

    2003, p. 664).

    Esta referncia Roda da Fortuna uma das mais importantes do Romance de

    Melusina, porque foi feita em um momento de lamento, em uma situao na qual

    Raimundo se arrepende profundamente de seus atos, embora no assuma total

    responsabilidade por eles. So momentos nos quais a Roda da Fortuna tem aspecto

    sombrio e traioeiro, aparecendo como determinante da vida humana. Os prprios

    moradores do castelo lamentaram a separao do casal, culpando a Fortuna pelo fato:

    Prfida Fortuna, como podes ser t o falsa e t o perversa a ponto de separar esses dois

    sinceros amantes? (DARRAS, 2003, p. 696). O fato de Raimundo ter visto Melusina

    no dia proibido no seno obra da senhora que governa a vida de todos e que est

    sempre espreita para punir os que cometem erros, a Fortuna.

    O Romance ainda traz elementos literrios das canes de gesta, lais, crnicas,

    livros de cavalaria e tratados de moral, possuindo passagens didticas. Contm um

    prlogo e um eplogo mais filosficos, que apontam para idias aristotlicas e

    discusses teolgicas ao insistir na impossibilidade de se conhecer os desgnios de

    Deus. Essas caractersticas fizeram com que o romance fosse considerado no uniforme

    e desproporcional, dada a impossibilidade de o enquadrarmos num gnero nico. Por

    isso, o Romance de Melusina nico dentre os outros contos melusinianos, pois o

    autor, apesar de receber uma estrutura pronta, a preenche de uma forma tal que impede

    que seu contedo seja descartado. Vincensini afirma que, ao abrir esse romance n o se

    deve esperar entrar em um conto de fadas (2003, p. 24), j que ele mais se parece,

    segundo o autor, com uma crnica de pretenses histricas. Como vimos trata-se de um

    romance medieval tpico da Baixa Idade Mdia, que incorpora vrios elementos

    apontados por Zumthor quando qualifica esse tipo de fonte: Operada por um indivduo

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    apenas arranhado pela cultura livresca, a colocao em prosa tem por destinatrio

    qualquer pessoa do meio cavaleiresco e nobre (ZUMTHOR, 1993, p. 266).

    Caractersticas das crnicas histricas do final da Idade Mdia tambm podem

    ser encontradas em nosso Romance, cujo relato estava a servio da memria principesca

    tal como vrias crnicas do perodo. Guy Bourd e Herv Martin ao escrever sobre a

    concepo e a escrita da histria na Idade Mdia revelam que:

    A crnica da Baixa Idade Mdia, sob a forma aparentemente ingnua

    do simples relato, onde o freqente uso do passado simples refora a

    iluso de um encadeamento automtico dos fatos e dos gestos, pode

    veicular uma mensagem ideolgica perfeitamente explcita. Depois do

    servio de Deus, preocupao principal dos historigrafos o sculo

    XII, impe-se a dos senhores e dos prncipes (BOURD; MARTIN,

    S/D, p. 33).

    Os duques de Borgonha mantinham historigrafos, cuja misso era por em

    forma por maneira de crnica fatos notveis dignos de memria verificados a partir

    daqui e que advm e podem muitas vezes advir (BOURD; MARTIN, S/D, p. 34).

    Trata-se de uma histria ligada ao poder, compromisso assumido tambm por nosso

    autor quando recebe a tarefa de escrever a histria dos Lusignan. Mas, o Romance de

    Melusina , sobretudo, um romance de origens assim como outros do sculo XIV: O

    Mliador (1365-1380) de Jean Froissart, Ysaye le triste (ap. 1350) e Perceforest

    (aproximadamente 1340). Esses testemunhos narram a histria de um personagem que

    teria uma ancestralidade na maioria das vezes ligada aos cavaleiros da tvola redonda.

    Em relao a eles, a originalidade do Romance de Melusina consiste em no ligar os

    Lusignan a uma ancestralidade arturiana.

    O principal objetivo desse romance dar a conhecer a histria de uma famlia

    poderosa na Frana desde o sculo XI: os Lusignan. Entre a Segunda e a Terceira

    Cruzada, no ano de 1186, Guy de Lusignan tornou-se rei de Jerusalm. Aps perder o

    trono da Cidade Santa, ele acabou se envolvendo em outros conflitos que culminaram

    na sua coroao como rei de Chipre, funo que foi exercida pelos Lusignan at o final

    do sculo XV. Na Frana, porm, a famlia havia se extinguido logo no incio do sculo

    XIV: em 1308, Felipe, o Belo anexava Coroa o condado de La Marche e a fortaleza

    dos Lusignan. O Romance de Melusina ou a Nobre Histria dos Lusignan assume a

    responsabilidade, como o seu prprio ttulo indica, de informar como os Lusignan

    haviam se tornado uma linhagem poderosa. Esse romance recebe uma presso no

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    apenas do mecenato, mas tambm da histria de fato vivida pelos Lusignan. por isso

    que DArras ajusta alguns eventos histricos ao romance como a ida dos Lusignan ao

    Oriente e o incndio na abadia de Maillezais, provocado por Godofredo de Lusignan.

    Isso demonstra mais uma peculiaridade desse romance, que deveria no apenas exaltar

    os feitos de uma linhagem cujos descendentes ainda viviam, mas tambm dar a ela uma

    ancestral ferica, Melusina, de acordo com uma estrutura herdada dos contos

    melusinianos.

    Consideraes Finais

    Enquanto documento histrico, os romances tanto em verso quanto em prosa

    lanam luz sobre diferentes aspectos da sociedade das cortes. Sua originalidade est no

    quadro que eles pintam do ideal social da aristocracia francesa entre os sculos XII-

    XIV. Apresentando-nos uma vasta representao de temas, que envolvem homens e

    mulheres em convivncia com as regras de cortesia e segundo uma moral bastante crist

    de defesa dos fracos, valorizao do amor conjugal, fidelidade e honra, esses textos

    materializaram no apenas um ideal a ser ensinado, mas tambm deram publicidade ao

    seu meio de vida, delimitando os contornos desse grupo social cavaleiresco.

    Chrtien de Troyes, por exemplo, no um pensador poltico, mas sua obra nos

    mostra um pouco das tenses sociais de seu meio. A moral que ele anuncia e ilustra

    tudo menos socialmente inocente. Ela fruto de um lugar e momento histrico

    especfico. Broul outro que consegue fazer dos versos de Tristo um meio de

    promover a defesa de uma tica cavaleiresca fundada na noo de responsabilidade, que

    apesar de ignorar o fortalecimento do parentesco linhagista para o perodo, no deixa de

    contestar as deficincias da monarquia na conduo dos interesses do grupo alargado

    sobre o qual seu poder se assenta. J o Romance da Melusina de Jean DArras

    materializa a evoluo do gnero, no apenas pela adoo da prosa, mas, sobretudo por

    incorporar frmulas lingusticas de gneros textuais mais antigos, como as Histrias e

    Crnicas, o que o leva a romper definitivamente com a barreira da verossimilhana que

    distanciava os primeiros romans em verso do sculo XII dessas narrativas tidas como

    expresses mais prximas da realidade.

    De certa maneira, do sculo XII ao sculo XIV, na passagem da mtrica bem

    medida do verso narrativa ficcional em prosa, os romances assumiram um novo

    estatuto: repositrios da memria de grupos aristocrticos. Portanto, de um objeto de

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    divertimento ficcional que primava pela promoo e ensino de valores morais, esses

    textos se tornaram referncia de identidade social. O questionamento dessa condio de

    repositrios da realidade mesmo que panegrica de determinados grupos sociais, s

    veio tardiamente, na senda do sculo XVIII.

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    Notas

    1 No prlogo de Cligs, Chrtien assim escreve: Aquele que tratou de Erec e Enide colocou os

    Mandamentos de Ovdio e a Arte do Amor em francs, escreveu A mordida no ombro, o rei Marc e

    Isolda, a Loura (CHRTIEN DE TROYES,1994, vs. 2-6). 2 O Tristan, de Broul, foi possivelmente escrito alguns anos antes, mas nessa obra o mundo de Tristo se

    situa muito margem do universo da corte de Artur. Ver FRITZ, 1992. 3 O arco de sela era de marfim, entalhado com a histria de como Enas partiu de Tria (CHRTIEN

    DE TROYES, 1992, vs. 5330-5332). 4 Para uma anlise mais detalhada dessa nova moral, ver: SILVA, 2008.

    5"Broul tem mais em sua memria, Tristo era to nobre e valente para matar toda aquela gente. Assim,

    como a histria diz e Broul a viu escrita" (BROUL, 1999, vs. 1786-1790). 6 As caractersticas das personagens no mudam, elas evoluem para um padro desejado desde a primeira

    parte, quando supostamente a composio estaria a cargo de outro Broul. Ver DELBOUILLE, 1962, p.

    419-435. 7 A caridade est no centro do que divino, portanto sagrado, apresentando-se como uma das

    propriedades da perfeio crist. O segundo elemento est no valor vincular da caridade, posto que

    implica em uma relao de amor que une Deus e Cristo no seio da Trindade e tambm une Deus e os

    homens. Esse valor determinado pelo amor perfeito e gratuito de Deus manifestado atravs da

    encarnao do Cristo e do dom continuado do Esprito Santo realizado pelo batismo, o que permite ao

    homem amar. No entanto, a caritas ultrapassa a mera reciprocidade do amor entre Deus e os homens. Um

    dos fundamentos da definio de caridade para os telogos conceber o amor de Deus inseparvel do

    amor ao prximo. Visto que o amor do homem participa da divina caridade que Deus, a caridade

    praticada pelo homem tem de ser gratuita e universal. No caso da adaptao feita no Tristo de Broul, a

    relao entre o sobrinho do rei e a esposa deste (Tristo e Isolda) e o sentimento que a impulsiona, esto

    condicionados ao vnculo que o chefe do grupo (rei Marcos) mantm com as partes referentes. A relao

    entre eles s existe a partir do rei e pelo rei. O parente no deve amar por si mesmo, mas pelo senhor da

    parentela. Esse apontamento fundamental esclarece um sistema de relaes e afetos que no binrio,

    mas circula entre os membros da parentela por intermdio de seu senhor e se encerra no mesmo. Dessa

    forma, o rei deveria ser o componente central da coeso do grupo, por ele deveriam passar todas as

    relaes e a base moral que as sustentam. 8 Em diversas passagens Isolda aclamada fielmente pelo povo que a exalta como rainha e toma partido a

    seu favor, contra o rei e os bares: Ah! Rainha nobre, honrada, em que terra ter mais agradvel filha de

    rei que valha teu cora o (BROUL, 1999, vs. 835-837); Toda a gente da cidade, Foram mais de

    quatro mil, Entre homens, mulheres e crianas; [...] Por Isolda demonstram grande alegria, Muitos sofrem

    para servi-la (BROUL, 1999, vs. 2957-2966).

  • Pgina | 441

    Revista Histria e Cultura, Franca-SP, v.2, n.3 (Especial), p.414-441, 2013. ISSN: 2238-6270.

    9 Rei, tu sabes bem do casamento com a filha do rei da Irlanda (BROUL, 1999, vs. 2556-2557); Ou

    reconduzirei a filha do rei Irlanda, onde eu a peguei. Ser rainha de seu pas (BROUL, 1999, vs.

    2616-2618). 10

    O prncipe Jean (1340-1416) foi duque de Berry e do Auvergne e conde do Poitou. Filho de Jean, o

    Bom (1319-1364), irmo de Carlos V (1337-1380) e tio de Carlos VI (1368-1442), participou ativamente

    da vida poltica desses trs reinados. Franoise Autrand escreveu uma biografia sobre Jean na qual

    desmonta a viso negativa em relao vida pblica do prncipe, mostrando como toda sua vida foi

    dedicada aos negcios da Coroa francesa. Ele foi um dos maiores mecenas de sua poca, tendo sido o

    comandatrio do Romance de Melusina. Para Autrand todas as obras de arte financiadas por Berry tinham

    estreita relao com suas idias polticas que, segundo ela, visavam o estabelecimento do Estado

    Moderno na Frana (AUTRAND, 2000). 11

    Como lembra Amaury Chauou, Broadhurst afirma que a definio de patronagem passa

    necessariamente pela remunerao do escritor. Amaury, apesar de relativizar essa idia, reconhece a

    importncia do pagamento para definir a relao entre o comandatrio e o autor do texto. Cf. CHAUOU,

    2001.

    Artigo recebido em 30/10/2013. Aprovado em 08/12/2013.