do sertão para o mar (mauro cezar coelho)

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Leitura obrigatória para os interessados em estudos sobre a colonização da Amazônia, em especial no período da segunda metade do Séc. XVIII, durante a vigência do "Diretório dos Índios".O autor é atualmente professor na UFPA.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    DO SERTO PARA O MAR

    UM ESTUDO SOBRE A EXPERINCIA PORTUGUESA NA AMRICA, A PARTIR DA COLNIA: O CASO DO DIRETRIO DOS NDIOS

    (1751-1798)

    Mauro Cezar Coelho

    Orientador: Prof. Dr. Mary Del Priore

    So Paulo 2005

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

    DO SERTO PARA O MAR

    UM ESTUDO SOBRE A EXPERINCIA PORTUGUESA NA AMRICA, A PARTIR DA COLNIA: O CASO DO DIRETRIO DOS NDIOS

    (1750-1798)

    Mauro Cezar Coelho

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social, do Departamento de Histria da Facul-dade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Uni-versidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Mary Del Priore

    So Paulo 2005

  • Para meus pais, que me ensinaram a vida, Para Breno e Lucas, que a tornaram mais bela,

    Para Maria do Carmo, que me mostrou como ganh-la, Para Wilma, a quem amo.

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    AGRADECIMENTOS

    Todos aqueles que passaram pela experincia do doutoramento sabem o quanto se fica a dever a um sem nmero de pessoas que, de uma forma ou de outra, contri-buem para a realizao do trabalho final. Eu, de minha parte, sou um homem de imensas dvidas, devidas a um rol numeroso de amigos, colegas e familiares, no apenas pela natu-reza deste trabalho, mas por ser ele resultado de um deslocamento considervel tanto terico, quanto espacial. Agradeo a todos que colaboraram para a sua concluso.

    Essa tese no poderia ter a feio que assumiu, no fosse a confiana da pro-fessora Mary Del Priore, minha orientadora. A crtica pontual, a reflexo estimulante e a aposta no trabalho foram fundamentais para que eu pudesse me aventurar em campos nos quais ainda no havia me envolvido. Aprendi, mais que tudo, sobre a profisso e sobre como preciso coragem para viv-la intensamente. Meu muitssimo obrigado.

    O Programa de Histria Social da Universidade de So Paulo merecedor de justos agradecimentos. Beneficiei-me, imensa e especialmente, das discusses ocorridas no mbito da disciplina Populaes Indgenas e Colonizao na Amrica Portuguesa, s-culos XVI-XVIII, ministrada pelo professor Pedro Puntoni. Como aluno, senti-me ampa-rado pela presteza dos funcionrios, os quais tornaram os procedimentos burocrticos me-nos penosos.

    Os professores Flvio dos Santos Gomes e Henrique Soares Carneiro parti-ciparam do Exame de Qualificao. Agradeo a preciso da leitura e a crtica pertinente e generosa. Na medida em que o argumento da tese permitiu, as questes propostas por am-bos foram incorporadas. Todas elas, no entanto, serviram de estmulo reflexo e a pauta-ram os momentos subseqentes de elaborao da tese.

    Este trabalho em grande parte resultado de minha experincia como pro-

  • 5

    fessor e pesquisador em duas universidades do Norte do Brasil, de modo que inicialmente agradeo aos meus colegas de departamento nas universidades federais do Amap e do Par. Nesta ltima, agradeo especialmente a liberao para cumprir parte das obrigaes da pesquisa e da redao da tese; nela fui agraciado, ainda, com uma bolsa de PICDT.

    Em ambas as universidades, tive a felicidade de poder discutir alguns pontos deste trabalho, nas diversas disciplinas que ministrei, e de me beneficiar dos questionamen-tos dos alunos. Agradeo a todos e, em especial, aos alunos da disciplina Tpicos Temti-cos II, oferecida no segundo semestre de 2001, na UFPA, e aos alunos da Especializao em Histria e Historiografia da Amaznia, na UNIFAP, desde a sua inaugurao em 1999. Um agradecimento especial destinado a aluna Evair Alves Pereira que, como pesquisado-ra do passado colonial paraense e conhecedora dos cdices do Arquivo Pblico do Par, indicou-me a leitura do Cdice 160.

    Uma parte dos dados utilizados na pesquisa foi coletada por bolsistas de Ini-ciao Cientfica: Bruna Guerreiro Martins, Eva Cristina Santos Cardoso, Sirley Maria Ataide Nunes, participantes do Programa de Iniciao Cientfica da UFPA; Ana Emlia da Luz Lobato e Francisca Fontenele foram incorporadas pesquisa por meio do Projeto Inte-grado Trabalhadores & Sociedades Agrrias no Gro-Par, sculos XVIII e XIX. As fontes relativas da Coleo Pombalina foram adquiridas atravs do Projeto Fronteira, trabalho e Estado: Amaznia Brasileira nos sculos XVIII e XIX. Ambos com chancela e financia-mento do CNPq.

    Os pesquisadores reunidos em torno dos dois projetos a que me referi foram interlocutores importantes, na construo de minha reflexo sobre o passado colonial do amaznico: logo no incio, fizeram parte do primeiro deles, Claudia Fuller e Nrvea Rave-na; durante todo o tempo em que estiveram em vigor, foram companheiros Flvio dos San-tos Gomes, Rosa Elizabeth Acevedo Marin, Jonas Maral de Queiroz e Geraldo Prado. Agradeo a todos.

    Fui beneficiado pela generosidade dos funcionrios de alguns centros de guarda e conservao de documentos: no Rio de Janeiro, o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro; em Natal, Instituto Histrico e

    Geogrfico do Rio Grande do Norte; em Joo Pessoa, o NIDIHR; em Belm, o Arquivo Pblico do Par e o Grmio Literrio Portugus. Agradeo a Nalgea, no NIDIHR e a Naza-r Gs no Grmio Literrio. No Arquivo do Pblico do Par fui agraciado pela prontido de Goreth, Jesus e Mara graas gentileza e generosidade com que me trataram, senti-

  • 6

    me em casa. Para elas um agradecimento especial e caloroso. Alguns amigos e colegas de profisso foram fundamentais, tambm. Patrcia Maria Melo Sampaio leu e criticou a tese. Profunda conhecedora da

    histria colonial do Vale Amaznico, Patrcia premiou-me com debates, confrontos e ques-tionamentos, os quais foram responsveis pelo amadurecimento da tese e da minha refle-xo sobre a Colnia. Acima de tudo, Patrcia tem me ensinado que a amizade prescinde da concordncia irrestrita. Rosa Elizabeth Acevedo Marim tem sido parceira de uma srie de projetos alguns concretizados, outros em gestao. Extremamente generosa, ensinou-me muito da vida na Colnia, leu e criticou alguns captulos, alm de sugerir o ttulo do se-gundo deles.

    Flvio dos Santos Gomes e Jonas Maral de Queiroz so companheiros de uma histria sem modstia de sucesso. Parceiros na elaborao de projetos e publica-es, so tambm crticos do trabalho que venho produzindo. Flvio autor de trabalhos importantes sobre a escravido nas capitanias e provncias do Norte, oferecendo-me um contraponto interessante para pensar a questo indgena. Jonas Maral de Queiroz tem sido depositrio de uma grande amizade e de uma afinidade intelectual: esta ltima viabiliza projetos em conjunto ainda que em universidades cada vez mais distantes, espacialmente enquanto aquela no prejudica a sua crtica, sempre correta, sobre os textos e reflexes que lhe apresento.

    Helenice Rocha leu algumas partes da tese e me favoreceu com sua crtica precisa. Com ela, tenho apurado minha reflexo sobre uma das dimenses da profisso que o nosso trabalho de formadores de professores. Helenice enobrece o contedo da palavra interlocuo, no somente pela propriedade de suas intervenes, mas, sobretudo, pelo talento em vislumbrar desdobramentos inesperados, naquilo que lhe apresentamos.

    Breno Baa ajudou na reviso, lendo a tese cata de erros. Sem sua leitura, as incorrees seriam em nmero muito maior do que os existentes os quais so de minha total responsabilidade. Wilma Baa Coelho leu e discutiu o trabalho em diversos momen-tos, indicando pontos nebulosos e sugerindo encaminhamentos promissores. Meu muits-simo obrigado.

    Em Belm e Natal, sou grato ao apoio logstico e a amizade dos compadres Isabel Lucena e Srgio Cardoso. Em Macap, pela fora, pelo incentivo e amizade, sou grato a Katy e Hlio Motinha Katy especial, pela fora com que defende e ampara a-queles que tm o privilgio de partilhar a sua amizade. No Rio de Janeiro, meus tios Maria

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    e Wilson merecem beijos e abraos calorosos pelos votos de sucesso. Em Niteri, Heleni-ce, Rocha, Felipe e Patrcia grandessssimos e queridssimos amigos cuidaram de mim em mais de uma viagem de pesquisa sou-lhes grato por tudo, principalmente pela amiza-de que prezo tanto.

    No Rio de Janeiro e em Porto Alegre, meus irmos e sobrinhos forneceram o suporte afetivo necessrio. Ana Paula, Glucia, Itamar e Roberto, meus irmos, foram, juntamente com cunhados e cunhadas, especialmente importantes por suprirem a minha ausncia nos momentos em que nossos pais exigiam a presena de todos os filhos. Minha querida sobrinha Roberta foi um manancial de preocupao e afeto que muito me honra. A famlia, grande h muito tempo, ficou maior a torcida, por conseguinte, foi mais forte. Muito obrigado a todos.

    H alguns anos, numa conversa que mudou minha vida, Maria do Carmo de Souza Frazo incentivou-me vida acadmica. Essa tese um dos resultados que colhi daquela conversa agradeo enormemente querida Carminha. A distncia que a vida nos imps no diminuiu a amizade, o respeito e a admirao que lhe devoto.

    Dedico esta tese a meus pais: a Joaquim, meu pai, por me ter ensinado, com um senso didtico inusitado, que sonhar parte essencial da vida; a Olga, minha me, uma mulher extraordinria, por me fazer ver que sonhos se realizam com coragem e luta, e que certa (grande) dose de humor fundamental - em tudo. Pela fora, pelo exemplo, por tudo que as palavras dizem e por tudo que o silncio importa, obrigado.

    Breno e Lucas entraram em minha vida e se apossaram dela, preenchendo-a de sentido, alegria e de uma vontade desmedida de merecer-lhes. Com eles tenho partilha-do os momentos mais felizes que jamais pensei viver. Essa tese lhes devedora em vrios aspectos, no apenas por terem suavizado, com sua presena e suas interrupes, os percal-os inerentes ao extenuante trabalho de pesquisa, anlise e redao, mas sobretudo, por terem-na dimensionado. Wilma sonho e tambm realidade agradeo por ela ser ambas as coisas e, por isso, ser o objeto do meu amor.

  • 8

    RESUMO

    Este trabalho tem por objeto de estudo o Directorio que se deve observar nas Po-voaoens dos ndios do Par, e Maranho em quanto Sua Magestade no mandar o contrrio - legisla-

    o implementada no Estado do Gro-Par e Maranho, entre os anos de 1758 e 1798. Ela-borada em meio s intervenes do ministrio de Sebastio Jos de Carvalho e Melo para a regio, essa lei tem sido vista pela historiografia como uma lei pombalina. A anlise bus-cou acompanhar os processos de formulao da lei. Assim, a tese prope uma compreen-so distinta da comumente aceita: o Diretrio dos ndios (como a lei ficou conhecida) sur-giu como um desdobramento dos conflitos havidos entre a Metrpole portuguesa e sua Colnia americana. Logo, no se trata de uma lei pombalina, mas de uma resposta do mi-nistrio de Carvalho e Mello ao conflito que se lhe apresentou a qual incorpora demandas coloniais e metropolitanas. Por outro lado, a tese buscou compreender o exerccio da lei e, nesse sentido, tratou de evitar conceb-lo como o desdobramento lgico do que dispunham os seus dispositivos legais. Antes, tratou de entend-lo como relacionado ao contexto que o fez emergir. Dessa forma, a tese busca evidenciar que os conflitos que provocaram a lei foram determinantes para a conformao da sua aplicao e trata de analisar, ento, a atua-o dos agentes histricos envolvidos, ao longo do perodo de sua vigncia: as populaes indgenas, os colonos, os missionrios e os agentes da administrao metropolitana.

  • 9

    ABSTRACT

    This works subject matter is the Directorio que se deve observar nas Povoaoens dos ndios do Par, e Maranho em quanto Sua Magestade no mandar o contrrio - legislation im-

    plemented in the State of Gro-Par and Maranho during forty years, since 1758 until 1798. That legislation was elaborated at the same time of some others, implemented by Minister Sebastio Jose de Carvalho e Mello, as part of a political plan to improve relations between the Colony and its Metropolis. As a consequence of that, history has signed the legislation as a Marquis of Pombals law. The analysis realized in this work searched to follow the making process of the law. Thus, the thesis considers a distinct understanding in relation to the idea accepted by history: the Directory of the Indians (as the law became known) appeared as a result of the conflicts which occurred between the Portuguese Me-tropolis and its American Colony, and incorporates colonial and metropolitan demands. On the other hand, the thesis searched to understand the law practices as related to the context that made it to emerge, to make evident that the conflicts that had provoked the law had been determinative for the conformation of its application the thesis analyzes the perform-ance of the historical agents involved: the Indian populations, colonists, the missionaries and the agents of the metropolitan administration.

  • 10

    SUMRIO

    AGRADECIMENTOS 004

    RESUMO/ABSTRACT 008

    ABREVIATURAS 012

    LISTA DE TABELAS 015

    LISTA DE GRFICOS 017

    PROLEGMENOS

    INTRODUO 021

    PRIMEIRO CAPTULO HERIS MUTANTES 045

    A Herana de Iracema o estigma da servido voluntria 049

    A Edificao da Ambigidade indolncia e resistncia em um nico heri

    058

    A Ressurreio de Ajuri caba a restituio da vontade indgena 065 O Diretrio dos ndios historiografia e histria 073

    PRIMEIRA PARTE

    SEGUNDO CAPTULO A ORDEM DOS CONFLITOS 088

    O Tratado de Madri, as misses e a fronteira Norte 094

    As Diretrizes Metropolitanas: a projeo pombalina 105

  • 11

    As Dificuldades da Prtica 115

    TERCEIRO CAPTULO UMA LEI COLONIAL 132

    Felicidade da Metrpole e Riqueza do Serto 135

    Nem tanto a Terra, nem tanto ao Mar 149

    SEGUNDA PARTE

    QUARTO CAPTULO OUTRA VIDA 175

    O Casamento, a Educao e o Trabalho: vias da transformao 178

    O Imenso Portugal: vilas e lugares no Vale Amaznico 196

    A Metamorfose Indgena: de guerreiro a Principal 208

    QUINTO CAPTULO O GERME DA DESTRUIO 224

    Entre a Projeo e a Realidade: a economia do Diretrio dos ndios 230 Os Limites da Igualdade: a insero indgena na sociedade colonial do Diretrio dos ndios

    244

    Subverso e Submisso: o paradoxo da lei em sua execuo 258

    CONCLUSO 286

    REFERNCIAS

    FONTES 291

    BIBLIOGRAFIA 305

    ANEXOS

    TABELAS 351

    GRFICOS 375

  • 12

    ABREVIATURAS

    AHU - Arquivo Histrico Ultramarino.

    ANDAR - Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

    ANPOCS - Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais.

    ANPUH - Associao Nacional de Histria.

    APEP - Arquivo Pblico do Par.

    BNLCP - Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleo Pombalina.

    CEDEAM - Comisso de Documentao e Estudos da Amaznia.

    CFCH/UFPA -Centro de Filosofia e Cincias Humanas.

    CPDOC - Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil.

    EDIPUCRS - Editora Universitria da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

    EDUERJ - Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    FAPESP - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo.

    FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas.

    FGV - Fundao Getlio Vargas.

    FUNAI - Fundao Nacional do ndio.

    HAHR - Hispanic American Historical Review.

  • 13

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.

    IPRI - Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais.

    IUPERJ - Instituto Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro.

    MARI - Grupo de Educao Indgena da USP.

    MCM-IHGB - MENDONA, Marcos Carneiro de. A Amaznia na Era Pombalina: cor-respondncia indita do governador e capito-general do Estado do Gro Par e Maranho, Francisco Xavier de Mendona Furtado. Rio de Janeiro: IHGB, 1963. 3 v.

    MEC - Ministrio da Educao (Brasil).

    N.A.E.A. - Ncleo de Altos Estudos Amaznicos.

    NDIHR - Ncleo de Documentao e Informao Histrica Regional.

    NEHD - Ncleo de Estudos em Demografia Histrica.

    SENAC - Servio Nacional de Aprendizagem Comercial.

    SPVEA - Superintendncia do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia.

    UFPA - Universidade Federal do Par.

    UFPE - Universidade Federal de Pernambuco.

    UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    UFRO - Universidade Federal de Rondnia.

    UFU - Universidade Federal de Uberlndia.

    UNAMAZ - Associao de Universidades Amaznicas.

    UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura.

    UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas.

  • 14

    UNIFAP - Universidade Federal do Amap.

    USP - Universidade de So Paulo.

  • 15

    L ISTA DE TABELAS

    Tabela 1 - Indivduos Concedidos pelo Bando de 14/02/1754.

    Tabela 2 - Bando de 14/02/1754 Concesso por Etnia e Cor.

    Tabela 3 - Bando de 14/02/1754 Concesso por Etnia e Cor (% Ano).

    Tabela 4 - Bando de 14/02/1754 Concesso por Idade.

    Tabela 5 - Bando de 14/02/1754 Concesso por Gnero.

    Tabela 6 - Bando de 14/02/1754 Concesso de Adultos por Gnero.

    Tabela 7 - Bando de 14/02/1754 Distribuio de Indivduos pelos Beneficiados.

    Tabela 8 - Povoaes da Capitania do Par.

    Tabela 9 - Distribuio dos Gneros Produzidos pelas Povoaes do Par, nos anos de 1761, 1767, 1769, 1771 e 1772.

    Tabela 10 - Relao de Descimentos Coligidos.

    Tabela 11 - Composio da Receita e Despesa das Povoaes da Capitania.

    Tabela 12 - Distribuio de Empregados por Famlias.

    Tabela 13 - Distribuio de Escravos por Famlias.

    Tabela 14 - Distribuio de Empregos por Famlias.

    Tabela 15 - Nomeaes (1772-1794).

    Tabela 16 - Nomeaes por Etnia e Cor.

  • 16

    Tabela 17 - Distribuio dos ndios, segundo as solicitaes s povoaes, nos anos de 1775, 1776, 1777, 1778, 1780, 1781, 1782, 1783, 1788, 1789, 1790, 1791, 1793, 1794 e 1795.

  • 17

    L ISTA DE GRFICOS

    Grfico 1 - Detalhe da Populao da Vila de Alenquer.

    Grfico 2 - Detalhe da Populao da Vila de Almeirim.

    Grfico 3 - Detalhe da Populao da Vila de Alter do Cho.

    Grfico 4 - Detalhe da Populao da Vila de Arraiolos.

    Grfico 5 - Detalhe da Populao do Lugar de Azevedo.

    Grfico 6 - Detalhe da Populao do Lugar de Baio.

    Grfico 7 - Detalhe da Populao do Lugar de Barcarena.

    Grfico 8 - Detalhe da Populao da Vila de Beja.

    Grfico 9 - Detalhe da Populao do Lugar de Benfica.

    Grfico 10 - Detalhe da Populao da Vila de Boim.

    Grfico 11 - Detalhe da Populao da Vila de Bragana.

    Grfico 12 - Detalhe da Populao da Vila de Camet.

    Grfico 13 - Detalhe da Populao do Lugar de Carrazedo.

    Grfico 14 - Detalhe da Populao da Vila de Chaves.

    Grfico 15 - Detalhe da Populao da Vila de Cintra.

    Grfico 16 - Detalhe da Populao da Vila de Colares.

    Grfico 17 - Detalhe da Populao da Vila de Conde.

  • 18

    Grfico 18 - Detalhe da Populao da Vila de Espozende.

    Grfico 19 - Detalhe da Populao da Vila de Faro.

    Grfico 20 - Detalhe da Populao do Lugar de Fragoso.

    Grfico 21 - Detalhe da Populao da Vila de Gurup.

    Grfico 22 - Detalhe da Populao da Vila Nova de Mazago.

    Grfico 23 - Detalhe da Populao da Vila de Melgao.

    Grfico 24 - Detalhe da Populao do Lugar de Mondin.

    Grfico 25 - Detalhe da Populao da Vila de Monforte.

    Grfico 26 - Detalhe da Populao da Vila de Monsars.

    Grfico 27 - Detalhe da Populao da Vila de Monte Alegre.

    Grfico 28 - Detalhe da Populao da Vila Nova de El Rei.

    Grfico 29 - Detalhe da Populao da Vila de bidos.

    Grfico 30 - Detalhe da Populao da Lugar de Odivelas.

    Grfico 31 - Detalhe da Populao da Vila de Oeiras.

    Grfico 32 - Detalhe da Populao da Vila de Ourm.

    Grfico 33 - Detalhe da Populao do Lugar de Outeiro.

    Grfico 34 - Detalhe da Populao do Lugar de Penha Longa.

    Grfico 35 - Detalhe da Populao da Vila de Pinhel.

    Grfico 36 - Detalhe da Populao da Vila de Pombal.

    Grfico 37 - Detalhe da Populao do Lugar de Ponte de Pedra.

    Grfico 38 - Detalhe da Populao da Vila de Portel.

  • 19

    Grfico 39 - Detalhe da Populao da Vila de Porto de Moz.

    Grfico 40 - Detalhe da Populao do Lugar de Porto Grande.

    Grfico 41 - Detalhe da Populao do Lugar de Porto Salvo.

    Grfico 42 - Detalhe da Populao do Lugar de Rebordello.

    Grfico 43 - Detalhe da Populao da Vila de Salvaterra.

    Grfico 44 - Detalhe da Populao da Vila de Santarm.

    Grfico 45 - Detalhe da Populao da Vila de Santarm-Novo.

    Grfico 46 - Detalhe da Populao do Lugar de So Bento do Rio Capim.

    Grfico 47 - Detalhe da Populao da Vila de So Jos de Macap.

    Grfico 48 - Detalhe da Populao do Lugar de So Jos do Piri.

    Grfico 49 - Detalhe da Populao do Lugar de Serzedelo.

    Grfico 50 - Detalhe da Populao da Vila de Soure.

    Grfico 51 - Detalhe da Populao da Vila de Souzel.

    Grfico 52 - Detalhe da Populao da Vila de Veiros.

    Grfico 53 - Detalhe da Populao da Vila da Vigia.

    Grfico 54 - Detalhe da Populao da Vila de Vilar.

    Grfico 55 - Detalhe da Populao do Lugar de Vilarinho do Monte.

    Grfico 56 - Detalhe da Populao da Vila de Vistoza.

    Grfico 57 - Detalhe da Populao da Capitania do Gro-Par (1773-1798).

  • PROLEGMENOS

  • 21

    INTRODUO

    As leis devem ser relativas ao fsico do pas, ao cli-ma frio, quente ou temperado; qualidade do solo, sua situao, sua extenso; ao gnero de vida dos povos, agricultores, caadores ou pastores; devem relacionar-se, tambm, com o grau de liberdade que sua constituio pode permitir; com a religio de seus habitantes, suas inclinaes, riquezas, nmero, comrcio, costumes, maneiras. Enfim, elas se rela-cionam entre si e tambm com sua origem, com o objetivo do legislador, com a ordem das coisas so-bre as quais esto estabelecidas. desses pontos de vista, portanto, que necessrio consider-las.

    Montesquieu

  • 22

    Amaznia.1 Um nome que evoca diversas imagens. Grande parte delas co-lorida em diversos tons de verde. Pensar a Amaznia implica, muito freqentemente, em visualizar uma imensa e pujante floresta o pulmo do mundo. Suas matas e sua extenso parecem ocupar todo o quadro que se forma no pensamento. Inspiram a idia de que pro-fuso exuberante de sua natureza corresponda um volume de riquezas proporcionais. A palavra remete, ento, grandeza sem par de suas matas o esplendor da Amrica do Sul. A Amaznia se concretiza no imaginrio, ento, como um espao grandioso, coberto de infinitas florestas, compostas de imensas rvores e entrecortada por rios fabulosos ocea-nos de gua doce que guardam tesouros incomensurveis.

    No por outra razo, talvez, que uma das palavras mais associadas Ama-znia Brasileira, nos ltimos decnios do sculo XX, tenha sido biodiversidade2 - signo que tenta resumir as riquezas naturais, visveis ou no, guardadas no portentoso universo verde. A natureza, ao que parece, domina a imaginao relativa regio, de modo que no mesmo perodo, as comunidades ali residentes passaram a ser chamadas de povos da flo-resta.3

    O superlativo presente em tudo o que se refere natureza amaznica e s ri-quezas nela contidas no se estende, todavia, ao seu panorama social. As imagens forma-das em relao quela parte do espao brasileiro so, em grande parte, destitudas de ele-mentos humanos. Os indgenas foram e tm sido, em larga medida, a exceo regra. Ul-timamente, seringueiros, castanheiros e garimpeiros acompanham os ndios na condio de habitantes da Amaznia so os Povos da Floresta. Todos, no entanto, partilham algo mais do que a convivncia, nem sempre pacfica naquelas paragens: no so vistos como consti-tuintes do espao, medida que no so percebidos como elementos que interferem, ao menos positivamente, na sua conformao. A Amaznia surge na imagem que o Ocidente formula como um espao sem agente social definido ela , antes de tudo, um ecossiste-

    1 A Amaznia, ao contrrio do que sugere o orgulho nacional, uma conformao ecolgica que extrapola os limites do territrio brasileiro. A denominao se refere rea ocupada pela floresta equatorial latifoliada Sul Americana, esten-dendo-se, portanto, por oito pases: Bolvia, Brasil, Colmbia, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela. Apesar da antigidade do termo, a sua remisso a uma conformao ecolgica data do sculo XX. Sobre essas ques-tes ver OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Amaznia: monoplio, expropriao e conflitos. Campinas: Papirus, 1990, p. 9-11. 2 Sobre biodiversidade ver, GARCIA, Eloi S. Biodiversidade, biotecnologia e sade. Cadernos de Sade Pblica - Publi-cao da Escola Nacional de Sade Pblica, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 495-500, jul./set. 1995; 3 A designao recorrente, especialmente, entre as associaes civis, como se pode notar, entre outros exemplos, pelo Documento Final, do II Encontro Interinstitucional dos Povos da Floresta do Vale do Jura Acreano (mimeografado). Para uma anlise da luta dos povos da floresta, ver, ALMEIDA, Mauro W. Barbosa de. Direitos Floresta e ambienta-lismo: seringueiros e suas lutas. Revista Brasileira de Cincias Sociais - Publicao da ANPOCS, v. 19, n. 55, p. 33-52, julho/2004.

  • 23

    ma.

    Euclides da Cunha deu forma a esta idia, que j no era nova em sua poca, ao afirmar que o homem era, ali, um intruso impertinente.4 Sua viso da Amaznia,5 alis, bem representativa do carter superlativo a ela associado, mesmo quando a adjetivao no de todo positiva.

    A impresso dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, esta: o homem, ali, ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido quando ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salo. E encontrou uma opulenta desordem ... Os mesmos rios ainda no se firmaram nos leitos; parecem tatear uma situa-o de equilbrio, derivando, divagantes, em meandros instveis, contor-cidos em sacados, cujos istmos a revezes se rompem e se soldam numa desesperadora formao de ilhas e de lagos de seis meses, e at criando formas topogrficas novas em que estes dois aspectos se confundem; ou expandindo-se em furos que se anastomosam, reticulados e de todo inca-ractersticos, sem que se saiba se tudo aquilo bem uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de estreitos. Depois de uma nica enchente se desmancham os trabalhos de um hi-drgrafo.6

    Vasto, luxuoso e opulento so adjetivos que serviram para caracterizar e re-conhecer uma natureza que no merecia simpatia. Reproduzindo algumas das teses dos naturalistas do sculo XVIII, percebeu a natureza amaznica como em estado de formao, do que seria testemunho a quantidade e a corpulncia dos anfbios. A definiu, ento, como uma natureza incompleta, ainda que portentosa,7 e, mesmo, nociva. A magnificncia do rio Amazonas, na viso que construiu, traduzia-se em capacidade destruidora, pois o volume das suas guas carregadas de nutrientes alimentava outras plagas, que no as brasilei-ras, de modo que afirmava: o rio, que sobre todos desafia o nosso lirismo patritico, o menos brasileiro dos rios.8

    Na sua viso, essa natureza extravagante e perniciosa inibia a presena humana. Assegurava que a impresso causada por ela era inversamente proporcional a sua receptividade s tentativas de civilizao. Classificou de vos os esforos empreendidos ao

    4 Devo a Jonas Maral de Queiroz o aprendizado sobre as reflexes de Euclides da Cunha, acerca da Amaznia Brasi-leira. Em um trabalho conjunto, elaboramos uma anlise sobre a produo historiogrfica relativa Amaznia, partindo do seu conhecimento, j consolidado, sobre a questo. Ver QUEIROZ, Jonas Maral; COELHO, Mauro Cezar. Frontei-ras da histria, limites do saber: a Amaznia e seus intrpretes. In: Amaznia: modernizao e conflito (sculos XVIII e XIX). Belm: UFPA/NAEA; Macap: UNIFAP, 2001. p. 159-190. 5 Euclides da Cunha fez suas observaes como membro da Comisso de Reconhecimento do Alto Purus. 6 CUNHA, Euclides. Terra sem histria. In: Um paraso perdido: ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a Amaznia. Introduo, organizao e notas de Leandro Tocantins. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994, p. 25-26. 7 Ibidem. 8 Ibidem, p. 27-30.

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    tempo da colonizao tudo retornava bruteza original. Da que imputava natureza a responsabilidade pela presena rarefeita do homem: sua fora e sua inconstncia, resulta-dos de sua condio de natureza em formao, tornavam inteis as tentativas de submet-la.9 Dando continuidade a sua considerao fundamental, presente em Os Sertes, via os homens como resultantes do meio.10 No entanto, enquanto que a aridez do agreste nordes-tino produzia fortes, a exuberncia da selva amaznica resultava em uma humanidade fra-ca, preguiosa e lasciva. 11

    Euclides da Cunha evidencia o modo pelo qual, de par com a natureza espe-tacular, a imagem da Amaznia vem se constituindo como um quadro livre da presena humana. Evidentemente, a gnese desse processo no remonta a Euclides da Cunha, e tam-pouco culmina com suas consideraes. Jos de Souza Martins, em texto publicado quase cem anos depois daquele do reprter de Canudos, denuncia como a idia de Amaznia ainda se relaciona a um territrio no qual a presena humana rarefeita. No somente por esta encontrar-se em nmero reduzido, mas porque se considera humano apenas o branco, o cristo, sendo o ndio mais um testemunho da ausncia.12

    Em meados do sculo XVIII, uma imagem muito prxima da descrita acima coordenou uma srie de iniciativas no sentido de transformar o panorama fsico e humano daquela, ento, parte da Amrica Portuguesa. Um conjunto de acontecimentos fez com que o Vale Amaznico, mais uma vez j naquele tempo, fosse objeto de um ambicioso projeto de colonizao que pretendia enquadrar seus habitantes e a sua natureza no universo do Imprio Colonial Portugus. Houve, no entanto, um fator que distinguiu essa iniciativa das que a antecedeu: ela compreendia a incluso do indgena na sociedade lusa, por meio de um paradigma laico e da prtica de um ideal de civilidade, baseado no trabalho e na misci-

    genao: trata-se do Directorio que se deve observar nas Povoaoens dos ndios do Par, e Maranho

    em quanto Sua Magestade no mandar o contrrio.

    Publicado em 1758, o Diretrio dos ndios, como ficou conhecido, compre-endeu um conjunto de medidas que projetavam regular a liberdade concedida aos ndios

    9 Ibidem, p. 33. 10 Idem. Os Sertes: campanha de canudos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1954. 11 Idem, Op. cit., 1994, p. 35. 12 MARTINS, Jos de Souza. A vida privada nas reas de expanso da sociedade brasileira. In: NOVAES, Fernando A. (dir.); SCHHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Histria da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contempornea. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 659-726, p. 660-664.

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    trs anos antes.13 Seus dispositivos consideravam a educao do ndio, tanto no que dizia respeito ao domnio da Lngua Portuguesa, quanto no que tangia a adoo de valores euro-peus (como o apego ao trabalho), como uma estratgia de melhoria das condies de vida. Concebiam a transformao do estatuto do ndio, torn-lo vassalo portugus, passvel de receber honrarias e exercer funes nas administraes locais. Aqueles dispositivos reco-mendavam, ainda, a integrao de colonos e ndios, por meio do incentivo ao casamento intertnico; e regulavam o controle e a distribuio do trabalho indgena, garantindo a ma-nuteno da condio tradicional das populaes indgenas no Vale: mo-de-obra.

    O Diretrio dos ndios foi estendido ao Estado do Brasil, dois anos aps sua promulgao. Foi no Vale Amaznico, todavia, que ele conheceu sua maior expresso. Ali, mais que em outras reas da Amrica Portuguesa, no sculo XVIII, as populaes indge-nas constituram o esteio da sociedade colonial. O plural, aplicado s populaes indge-nas, necessrio. O espao amaznico era ocupado por sociedades distintas, com traos culturais especficos, a documentao sobre o Perodo Colonial traz referncias a vrias naes indgenas. Um levantamento, feito nos documentos consultados, apontou a existn-

    cia das seguintes naes, de acordo com a nomenclatura encontrada:14 Achouari, Ambo,

    Anaraguar, Apma, Arapij, Ariquna, Aroaqui, Aru, Ayrini, Baniba, Bar, Bayanai, Cambeba,

    Carapeura, Catavixi, Cayars, Cayuvicna, Co, Cochiuar, Coerum, Coevan, Coret, Grilho, Ie-

    bri, Iriyu, Juma, Mamayanzes, Mano, Mau, Mayupi, Mepuri, Miranya, Nheengaibas, Omua,

    Pacajaz, Passe, Paruaan, Parian, Saconhapz, Sorimo, Tamuan, Tocn, Topinamb, Uanani,

    Uaran-cucena, Uayupi, Urar, Xomna, Yupiv, entre outros.15

    13 O termo, diretrio, de ordem jurdica, significando a declarao de leis ou diretrizes a serem seguidas, cfe. BLUTE-AU, D. Raphael. Vocabulrio Portuguez e Latino. Coimbra: Colgio das Artes, 1712-1721. 14 Um dos grandes problemas com que o pesquisador se depara a identificao dos grupos indgenas habitantes do espao amaznico, ao tempo da colonizao. As denominaes utilizadas pelos colonizadores so pouco precisas, pois, como apontam Ndia Farage e Paulo Santilli, um etnnimo pode referir-se a grupos distintos ou um grupo pode ser identificado por vrios etnnimos (conforme, FARAGE, Ndia; SANTILLI, Paulo. Estado de stio: territrios e identidades no valo do rio Branco. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Le-tras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1992. p. 267-278). O termo naes recorrente na documentao do perodo, sempre utilizado para identificar grupos indgenas. Ele resultado, certamente, do esforo europeu em tornar familiar os grupos indgenas com que travava contato, tentando reconhecer caractersticas que distinguissem as diver-sas populaes indgenas. Mesmo diante da ocorrncia de outras categorias etnmicas, como as lingsticas, optei pela utilizao do termo nao. Ele me pareceu satisfatrio, em funo dos objetivos da tese e da documentao seleciona-da ambas sero de conhecimento dos que percorrerem as pginas que seguem. Sobre como os povos indgenas tm sido identificados, ver, alm do texto citado nesta nota, URBAN, Greg. A histria da cultura brasileira, segundo as ln-guas nativas. In: ibidem. p. 87-102 15 Sobre as populaes indgenas habitantes do Vale, no perodo colonial, ver: PORRO, Antnio. Histria indgena do Alto e Mdio Amazonas sculos XVI a XVIII. In. CUNHA, Manuela Carneiro da. Op. cit., 1992. p. 175-196; TAYLOR, Anne Christine. Histria ps-colombiana da Alta Amaznia. In: Ibidem. p. 213-238; WRIGHT, Robin M. Histria indgena do noroeste da Amaznia: hipteses, questes e perspectivas. In: Ibidem. p. 253-266; SAMPAIO, Patrcia Maria Melo. Espelhos partidos: etnia, legislao e desigualdade na Colnia Sertes do Gro-Par, c. 1755 - c. 1823. 2001. Tese

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    Essas e as demais naes que habitavam aquela parte da Amrica Portugue-sa constituram o objeto do desejo de colonos e missionrios. Em funo da disputa que ambos os grupos travaram ao longo de sculo e meio, e diante das injunes introduzidas pela necessidade de estabelecer limites precisos, separando as possesses espanholas e portuguesas na Amrica, a Metrpole lusa decidiu intervir e introduzir uma nova poltica indigenista. O Diretrio dos ndios parte desta poltica. Nesta tese ele entendido, toda-via, como um acrescentamento americano. Ainda que tenha sido formulado pela Metrpo-le, defendo que seu carter resultou das injunes impostas pela Colnia.

    Esta tese, portanto, trata dessa lei, das relaes sociais que a constituram e que organizaram a sua prtica. Nesse sentido, ela considera os representantes metropolita-nos, os colonos e as populaes indgenas como atores de um drama, no qual todos atuam (ainda que dentro dos limites que a vida em colnias estabelecia) em respeito a seus inte-resses. Assim, o recorte cronolgico adotado inicia-se com a chegada de Francisco Xavier de Mendona Furtado, irmo do futuro Marqus de Pombal, responsvel pela aplicao da poltica metropolitana naquela rea. Ele termina com o fim da vigncia da lei do Diretrio, em 1798, quando ela fora substituda pela Carta Rgia sugerida por Francisco de Souza Coutinho. Tal recorte pretende compreender o Diretrio dos ndios como algo mais que uma imposio metropolitana, ele almeja circunscrever as suas matrizes coloniais.

    Os leitores familiarizados com as polticas indigenistas ibricas, certamente percebero pontos de convergncia entre o Diretrio dos ndios e diversos aspectos da po-ltica espanhola para as populaes indgenas. A constatao dessa proximidade pode levar a compreenso de que a Metrpole lusa decidiu, em dado momento, apropriar-se dos pa-rmetros espanhis e aplic-los aqui. Isto, no entanto, levaria a um entendimento parcial do Diretrio dos ndios, pois perpetuaria a confuso entre a redao da lei e a sua motivao. A legislao portuguesa, em questo no presente trabalho, foi redigida pelas autoridades lusas, em Portugal, e nesse processo, recebeu as contribuies do tempo e da experincia daquelas autoridades. No entanto, o esprito da lei e da sua prtica, como pretendo demons-trar, emergiu e se concretizou na Colnia.

    Essa perspectiva distingue o Diretrio dos ndios das polticas correlatas a-dotadas pelos espanhis. L, a Coroa incentivou, de forma sistemtica, a incluso das po-pulaes indgenas sociedade colonial. Desde a Conquista, as formas nativas de apropria-

    (Doutorado em Histria) Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niteri, p. 53-58.

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    o do trabalho, assim como as chefias indgenas, foram incorporadas aos processos de transformao do espao americano em uma extenso da Metrpole.16 Nesse sentido, e somente nesse, o Diretrio dos ndios aproxima-se daquelas polticas. Ao contrrio delas, porm, a lei luso-amaznica decorreu de uma inverso da poltica indigenista, formulada por Portugal.

    A eleio do Diretrio dos ndios, como o evento por meio do qual se discu-te a relao de ndios, colonos e colonizadores, se deve a uma pretenso ambiciosa caso me permitam a nfase. Por meio da anlise da formulao e do exerccio da lei pretendo desenvolver uma reflexo que perceba a relao havida entre Portugal e sua colnia ameri-cana, a qual fuja dos pressupostos que submetem, de forma absoluta, esta ltima s deter-minaes impostas pelo primeiro. Assim, sem se constituir em uma tese sobre o conheci-mento histrico e suas implicaes tericas e metodolgicas, stricto senso, ela almeja dis-cutir uma inflexo possvel na forma de se pensar a Histria do Brasil, como algo mais do que os processos ocorridos no litoral.

    16 ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonizao da Amrica. In: BETHELL, Leslie (Org.). Histria da Amrica Latina: A Amrica Latina Colonial I. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 1998. p. 135-194; WACHTEL, Nathan. Os ndios e a Conquista Espanhola. In: Ibidem. p. 195-239.

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    DO SERTO AO MAR

    Da largura que a terra do Brasil tem para o serto no trato, por-que at agora no houve quem a andasse, por negligncia dos por-tugueses que, sendo grandes conquistadores de terras, no se apro-veitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos.

    Frei Vicente do Salvador

    As anlises sobre o Diretrio dos ndios tm se conformado, mais amide, a partir do outro lado do Atlntico. No quero, com essa afirmao, sugerir que a historio-grafia portuguesa tomou para si a responsabilidade de analis-lo. Pretendo, isto sim, esten-der historiografia sobre o Diretrio dos ndios o problema percebido por Manuela Car-neiro da Cunha, no que tange ao lugar do ndio na historiografia brasileira.

    Em Histria dos ndios no Brasil, Cunha aponta uma distoro na relao de historiadores e populaes indgenas, movida por dois equvocos: um poltico e outro te-rico. O primeiro deles residiria na adoo de certo paternalismo, por meio do qual as popu-laes indgenas deveriam ser vistas com alguma indulgncia, cabendo-lhes, sobretudo, a condio de vtimas nas mos dos conquistadores. O segundo consistiria na supresso da figura do ndio das narrativas histricas, uma vez que o epicentro da Histria do Brasil estaria alhures, nos desdobramentos da expanso europia, de forma que os ndios seriam meros objetos naquele processo.

    Para Manuela Carneiro da Cunha, portanto, o lugar dispensado s popula-es indgenas, na formulao de uma Histria do Brasil, especialmente no que tange ao perodo colonial, decorre de uma viso que organiza a memria histrica nacional sobre dois aspectos: subordinao do ndio aos interesses e vontade aliengena e eliminao paulatina de sua presena das narrativas histricas. Assim, ainda segundo ela, a vontade, o arbtrio, os agentes, as demandas, enfim, tudo o que se reveste de significao positiva se-ria preponderantemente europeu.17

    Tudo isto se aplica historiografia sobre o Diretrio dos ndios. Vtima, tal-

    17 CUNHA, Manuela Carneiro da. Introduo a uma Histria Indgena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Op. cit.. p. 9-24.

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    vez, do fato de ter emergido junto s polticas formuladas para o Vale Amaznico por Se-bastio Jos de Carvalho e Melo, o Diretrio tem sido visto como uma lei pombalina. A fora da figura do Marqus de Pombal sobrepe-se, ento, anlise detalhada das fontes, e o Diretrio dos ndios percebido, por muitos, como um desdobramento da Lei de Liber-dades de 06 de junho de 1755. Mesmo os que percebem uma descontinuidade entre uma e outra lei, limitam-se constatao de certa contradio nos termos da poltica indigenista, sem investigar a sua origem.

    Outros associam o Diretrio dos ndios inflexo provocada pelo Iluminis-mo no pensamento portugus. Por essa via, o carter laico da legislao, seu pragmatismo, o destaque dado ao potencial pedaggico do trabalho e a importncia da agricultura, seriam ndices da ndole Ilustrada daquela lei. H, tambm, os que a tomam como uma expresso colonial das leis de regulao e disciplinarizao do trabalho, tambm prprias do sculo XVIII e de uma vertente do Iluminismo.

    Assim, a origem, o sentido, a significao proviriam, todas, do outro lado do Atlntico. As aldeias tornar-se-iam vilas, as vilas em plos de reunio e civilizao dos ndios, estes em vassalos do rei, tudo, em funo dos interesses metropolitanos, especial-mente aqueles decorrentes da concretizao do previsto pelo Tratado de Madri. Mesmo os insucessos da lei teriam se originado alm do Atlntico e contaminado a legislao. Nesse sentido, a explorao colonial teria insuflado a cupidez dos colonos e a insensatez dos ad-ministradores coloniais, todos preocupados em auferir o mximo de dividendos, o que teria posto a perder o plano de recuperao do Vale Amaznico e qualquer nobre inteno, essa tambm metropolitana, subjacente lei.

    Em boa parte dos trabalhos, portanto, a colnia americana surge como o es-pao de ao da Metrpole. As manifestaes de colonos e missionrios so vistas como empecilhos com os quais a poltica portuguesa lida, sem afastar-se, todavia, de seus objeti-vos. As populaes indgenas, por sua vez, so quase completamente desconsideradas, figurando, no mais das vezes, como o objeto da lei.

    Como pretendo apontar no primeiro captulo, Manuela Carneiro da Cunha tem razo. Nele, situo algumas das razes para a manuteno da viso do Diretrio dos ndios como uma legislao pensada e constituda a partir da Metrpole. Agora, impor-tante indicar, um outro conjunto de razes, este relacionado ao tratamento dispensado documentao, nos trabalhos que apresentam este aporte.

    Mais que formar uma orientao para a seleo dos documentos, o aporte a

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    que me refiro responsvel, conseqentemente, pela sua anlise. Tome-se o exemplo de Carlos Arajo Moreira Neto e de Rita Helosa de Almeida. Em ndios da Amaznia,18 Mo-reira Neto argumenta que o Diretrio dos ndios fora o instrumento poltico mais signifi-cativo da ao pombalina,19 no Vale Amaznico, o qual pretendia a submisso das co-munidades indgenas aos interesses do sistema colonial.20 Sobre a efetivao da poltica pombalina, consubstanciada no Diretrio, Moreira Neto afirma:

    A despeito de todo o esforo da poltica pombalina na Amaznia em reu-nir, organizar e engajar ndios, a servio do governo ou de particulares, os resultados concretos foram pouco significativos, se comparados com as grandes massas indgenas, aparentemente disponveis nos aldeamentos das antigas misses secularizadas por Pombal.21

    Suas concluses, no entanto, fundamentam-se, quase exclusivamente, no que afirmam outros autores, tais como: Joo Capistrano de Abreu, em Captulos de Hist-ria Colonial; Arthur Cezar Ferreira Reis, em A formao espiritual da Amaznia; Joo L-cio de Azevedo, em Os Jesutas no Gro-Par; e, por fim, Agostinho Marques Perdigo Malheiros, em A Escravido no Brasil.22

    Os documentos citados so poucos: a Noticia verdadeyra do terrivel contgio, de

    1749, que reporta a epidemia de sarampo de 1748 e 1749; o texto do Directorio dos Indios, de

    1758; a Carta Rgia, de 1761, referente remoo de missionrios do espao colonial; a

    Relao de Villas e Lugares e do numero de ndios seus moradores e sua destribuio, de 1761; cartas

    do Marqus de Pombal, transcritas nos Anais da Biblioteca Nacional; e, finalmente, a Carta

    Rgia, de 1798, a qual abole o Diretrio dos ndios. Nenhum deles, porm, fundamenta a tese, segundo a qual a explorao, sofrida pelas populaes indgenas ao longo da vigncia do Diretrio, teria sido em favor do comrcio interatlntico; ou, tampouco, a de que teriam sido nulos os resultados esperados pela legislao. Sua funo, no texto, parece ser a de ilustrar a tese j consolidada pela bibliografia. As consideraes sobre a lei, portanto, pres-cindem da documentao, fundamentando-se antes no aporte que constitui a bibliografia consultada.

    18 MOREIRA NETO, Carlos de Arajo. ndios na Amaznia: de maioria minoria (1750-1850). Petrpolis: Vozes, 1988. 19 Ibidem, p. 20. 20 Ibidem, p. 27. 21 Ibidem, p. 29. 22 As edies utilizadas por Carlos Arajo Moreira Neto, foram: ABREU, Joo Capistrano de. Captulos de Histria Colo-nial. Rio de Janeiro: Briguiet, 1954; REIS, Arthur Cezar Ferreira. A formao espiritual da Amaznia. Rio de Janeiro: SPVEA, 1864; AZEVEDO, Joo Lcio de. Os Jesutas no Gro-Par, suas misses e a colonizao. Coimbra: Universi-dade, 1930; MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigo. A Escravido no Brasil. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1867.

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    O Diretrio dos ndios, de Rita Helosa de Almeida,23 um trabalho no qual o recurso aos documentos extenso. Ofcios, projetos, cartas, memrias, relatrios, instru-es, dirios e mapas so utilizados em um dos primeiros trabalhos, publicados no Brasil, voltado exclusivamente para a compreenso do Diretrio dos ndios. A documentao co-bre cerca de trs sculos da experincia ultramarina portuguesa e os quarenta anos de vi-gncia da lei.

    A riqueza documental no , neste trabalho, meramente figurativa. Ela serve de fundamento considerao do Diretrio dos ndios como uma legislao metropolitana. Menos que uma legislao pombalina e, portanto, original, Rita Helosa de Almeida o en-tende como um regimento [que] continua e consolida as aes colonizadoras anterio-res.24 Assim, toda a primeira seo de sua obra destinada a traar um quadro das inter-venes portuguesas em suas possesses ultramarinas, de forma a dar a perceber certa con-tinuidade no trato portugus com as populaes conquistadas.25 Nas duas sees seguintes, o Diretrio dos ndios apresentado como uma manifestao daquele trato portugus, o qual recebera as contribuies do tempo, como o pensamento Iluminista26 e a necessidade de definio das fronteiras coloniais, imposta pelo Tratado de Madri.27 Sua originalidade garantida, na viso de Almeida, pelo carter secular que lhe subjacente, compreendendo uma experincia pioneira de formao da idia de sociedade civil.28

    Todos os fatores considerados decorrem do espao metropolitano. Os n-dios, os colonos e os missionrios so inseridos como reagentes, diante das aes metropo-litanas. Suas demandas, investidas, formulaes, enfim, as manifestaes de sua vontade e arbtrio s so objetos de ateno como respostas ao que a legislao imps e no como fatores a serem considerados para a anlise do processo de constituio da lei. A razo simples: para Rita Helosa de Almeida, como para os autores que partilham do aporte indi-cado por Manuela Carneiro da Cunha, as leis [indigenistas] so exemplos cristalinos do pensamento do colonizador.29

    Esses dois trabalhos sumarizam parte significativa da bibliografia acerca do Diretrio dos ndios, a qual cristalizou algumas concluses sobre o Diretrio dos ndios:

    23 ALMEIDA, Rita Helosa de. O Diretrio dos ndios: um projeto de civilizao no Brasil do sculo XVIII. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1997. 24 Ibidem, p. 14. 25 Ibidem, p. 23-145, especialmente p. 115-145. 26 Ibidem, p. 149-151 e 180. 27 Ibidem, p. 152-153 e 160. 28 Ibidem, p. 128, grifado no original. 29 Ibidem, p. 87.

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    sua condio Ilustrada, sua origem pombalina e seu retumbante fracasso. Conforme afir-mei alguns pargrafos acima, o aporte a que me refiro responsvel pelo tratamento dis-pensado documentao. No que tange ltima das concluses, relativa ao fracasso da lei, especialmente, esse aporte se manifesta no crdito dispensado ao que disseram os primei-ros crticos do Diretrio dos ndios, ainda no sculo XVIII.

    Alexandre Rodrigues Ferreira e Francisco de Souza Coutinho podem ser re-putados como os fundadores de uma viso pouco acurada do exerccio daquela lei. O pri-meiro, um naturalista que percorrera as capitanias do Norte, entre os anos de 1783 e 1792, teceu uma extensa crtica aos diretores das povoaes de ndios, acusando-os de serem os responsveis pelas subverses de que a lei fora objeto.30 O segundo, o ltimo governador da Capitania do Gro-Par, naquele sculo, foi o responsvel pelo fim daquela poltica, reputando-a como incapaz de alcanar os objetivos a que se propunha, em funo, tambm, da falta de obedincia aos seus dispositivos.31

    Suas consideraes compem grande parte das anlises sobre o insucesso da lei, sem que se tenha apreo ao seu carter. Ainda que no se possa afirmar que a Viradeira tenha introduzido rupturas importantes na poltica colonial portuguesa,32 Alexandre Rodri-gues Ferreira e Francisco de Souza Coutinho assistiram e participaram de um processo de crtica e reviso do dirigismo pombalino.33 Francisco de Souza Coutinho viveu, no Par, quase que a mesma condio de Francisco Xavier de Mendona Furtado: representante do liberalismo defendido e adotado por seu irmo D. Rodrigo de Souza Coutinho, alado condio de Ministro do Reino, cinco anos aps a sua chegada ao Vale Amaznico.

    Ambos apontaram problemas graves, na aplicao da lei, especialmente os relacionados ao comportamento dos diretores das povoaes, os administradores laicos introduzidos pelo Diretrio dos ndios. A crtica que estabeleceram, no entanto, era, fun-damentalmente, de carter moral: a legislao estaria sendo subvertida em funo da ambi-o dos diretores. Esta encontrava espao para manifestar-se e desenvolver-se graas ao carter tutelar da lei. Alexandre Rodrigues Ferreira e Francisco de Souza Coutinho, ainda que tenham realizado avaliaes acuradas da sociedade que conheceram de perto, perce-

    30 Sobre a crtica de Alexandre Rodrigues Ferreira, ver: COELHO, Mauro Cezar. A civilizao da Amaznia Alexandre Rodrigues Ferreira e o Diretrio dos ndios: a educao de indgenas e luso-brasileiros pela tica do trabalho. Revista de Histria Regional - Revista do Departamento de Histria da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, v. 5, n. 2, p. 149-174, inverno/2000. 31 Sobre a crtica de D. Francisco de Souza Coutinho, ver: SAMPAIO, Patrcia Maria Melo. Op. cit., 2001. 32 Cfe. BOXER, Charles. O Imprio Colonial Portugus (1415-1825). Lisboa: Edies 70, s.d., p. 193-195. 33 Ver, especialmente, CARDOSO, Jos Lus. O pensamento econmico em Portugal, nos finais do sculo XVIII (1780-1808). Lisboa: Editorial Estampa, 1989.

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    bendo, inclusive, a participao do prprio Estado metropolitano no processo de subverso (a demanda crescente por trabalhadores ndios, para as obras pblicas e para as fbricas de madeira, desviaria as populaes indgenas dos propsitos estabelecidos pela lei do Diret-rio), no atentaram para as estruturas da sociedade colonial do Vale Amaznico e para a relao havida entre a Colnia e sua Metrpole. Suas consideraes apresentam, tal como os demais testemunhos do perodo, pistas, indcios, vestgios, enfim, dados a serem consi-derados nas anlises sobre aquela lei. Elas tm sido vistas, porm, como testemunhos que fundamentam aquele aporte e, portanto, expresses literais da realidade. Esta tese traz uma postura diversa.

    No se trata, bom deixar claro, de postura indita, nem mesmo em relao ao Diretrio dos ndios. Autores como Colin MacLachlan,34 Leslie Robinson Anderson,35 John Hemming,36 Maria Regina Celestino de Almeida,37 Ndia Farage,38 Francisco Jorge dos Santos,39 ngela Domingues,40 Patrcia Maria Melo Sampaio41 e Barbara Sommer42 j a adotaram. Ela compreende a elaborao de anlises fundadas em ampla pesquisa docu-mental, a qual busca perceber as estruturas que informam as aes dos agentes histricos do Vale Amaznico.

    Assim, tal como esses autores, esta tese traz documentos recolhidos em ar-quivos portugueses e brasileiros. De Portugal, consultei a documentao do Arquivo Hist-rico Ultramarino, disponibilizada por meio do Projeto Resgate, e a Coleo Pombalina, existente na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Dos arquivos brasileiros, foram consultados documentos existentes no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional e no Instituto Histri-co e Geogrfico Brasileiro, todos no Rio de Janeiro. A maior parte da documentao, toda-

    34 MACLACHLAN, Colin. The Indian Directorate: forced acculturation in Portuguese America (1757-1799). The Americas - Publication of The Academy of American Franciscan History, Washington (DC), v. 28, n. 4, p. 357-387, abr. 1972. 35 ANDERSON, Leslie Robinson. Following Curupira: colonization and migration in Par, 1758 to 1930 as a study in settlement of the Humid Tropics. 1976. Dissertation (Doctorate of Philosophy in History) University of California, Davis. 36 HEMMING, John. Red Gold: the Conquest of the Brazilian Indians. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1978; HEMMING, John. Amazon Frontier: the defeat of the Brazilian Indians. London: MacMillan, 1987. 37 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os Vassalos DEl Rey nos Confins da Amaznia: a colonizao da Amaznia Ocidental, 1750-1798. 1990. Dissertao (Mestrado em Histria) Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Universi-dade Federal Fluminense, Niteri. 38 FARAGE, Ndia. As muralhas dos sertes: os povos indgenas no Rio Branco e a colonizao. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991. 39 SANTOS, Francisco Jorge dos. Alm da Conquista: guerras e rebelies indgenas na Amaznia Pombalina. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999. 40 DOMINGUES, ngela. Quando os ndios eram vassalos: colonizao e relaes de poder no Norte do Brasil na se-gunda metade do sculo XVIII. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 2000. 41 SAMPAIO, Patrcia Maria Melo. Op. cit., 2001. 42 SOMMER, Barbara A. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Par, Brazil, 1758-1798. 2000. Dissertation (Doctorate of Philosophy, History) - University of New Mexico, Albuquerque.

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    via, provm do Arquivo Pblico do Par, em Belm.43 Ali, encontra-se, certamente, a mai-or fonte de dados sobre a experincia portuguesa no que hoje denominamos de Amaznia. So cartas, ofcios, relatrios, mapas e devassas elaboradas pelos diretores das povoaes, pelas chefias indgenas incorporadas estrutura de poder da Colnia, pelos fiscais da ad-ministrao colonial etc. Foram estes documentos que viabilizaram uma viso do Diretrio dos ndios a partir do Vale Amaznico.44

    Esta, entendo, a singularidade deste trabalho. Nele o Diretrio dos ndios no analisado como uma poltica metropolitana, a qual fora responsvel pela dizimao e desagregao das populaes indgenas. No que tais desdobramentos no tenham ocorri-do. Todos ns sabemos da tragdia imposta s populaes nativas, pelos processos de con-quista e colonizao, e a poltica consubstanciada nos dispositivos do Diretrio dos ndios no foi exceo. Como sugere o ttulo da obra de Francisco Jorge dos Santos, porm, alm da conquista, outros processos ocorreram, nos quais as populaes indgenas no ocupam a condio de ingnuos diante da sagacidade aliengena.45

    A questo inicial, no entanto, pretendia perceber o Diretrio dos ndios co-mo uma alternativa ao modelo de colonizao adotado no litoral americano baseado na grande lavoura e no trabalho escravo. Os dispositivos da lei sugeriam o estabelecimento de uma sociedade agrria, de pequenas unidades produtoras, baseada no trabalho livre de n-dios, tornados camponeses. O objetivo que me coloquei quela altura era entender as in-junes subjacentes ao projeto metropolitano.

    O projeto inicial, portanto, no estabelecia uma ruptura com a produo bi-bliogrfica antecedente. A pesquisa, todavia, redimensionou o projeto e resultou no traba-lho que ora apresento. Ela consolidou a convico de que o Diretrio dos ndios uma poltica importante, um lugar por meio do qual se pode pensar no somente as inflexes havidas na sociedade habitante do Vale Amaznico, durante a segunda metade do sculo

    43 As referncias documentao, em notas de rodap, foram feitas por meio de abreviaturas que indicam o arquivo ou a publicao na qual o documento se encontra. No caso da documentao proveniente dos arquivos Nacional e do Par e da Biblioteca Nacional de Lisboa, o primeiro nmero, aps a abreviatura, refere-se ao nmero do cdice, enquanto o segundo, refere-se ao nmero do documento. No caso dos documentos do Arquivo Histrico Ultramarino, o primeiro nmero aps a abreviatura indica a caixa e o segundo o nmero do documento. Os documentos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro esto indicados conforme a referncia original. 44 Uma considerao deve ser feita, sobre a pesquisa documental, em especial a realizada no Arquivo Pblico do Par. Foi por meio da leitura do livro de Laura de Mello e Souza, O Diabo na Terra de Santa Cruz, que tomei conhecimento da imagem que melhor expressa o trabalho do pesquisador, naquele arquivo: mtodo da pesca linha (SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 18). O riqussimo acervo no se encontra totalmente catalogado, de forma que o pesquisador encontra dificuldades para estabelecer sries completas. Busquei contornar essa limitao trabalhando com o maior volume de documentos que pude analisar. 45 SANTOS, Francisco Jorge dos. Op. cit., 1999.

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    XVIII, mas, tambm, a produo historiogrfica sobre a Histria do Indigenismo e do Bra-sil.

    A pesquisa junto aos documentos evidenciou a importncia do Diretrio dos ndios, diante das transformaes que ele encaminhou no panorama poltico do Vale Ama-znico, na segunda metade do sculo XVIII. Em primeiro lugar, ele promoveu a transfor-mao das antigas aldeias missionrias em Vilas e Lugares,46 as quais passaram a constituir a base scio-econmica da Colnia: elas proviam tanto os braos necessrios para os di-versos empreendimentos de interesse do Estado, quanto cumpriam o papel de espaos de socializao e civilizao de uma nova sociedade mestia, promovida pelo Estado em respeito lei de incentivo aos casamentos intertnicos, de 1754. Em segundo lugar, ele suscitou a implementao de um programa de insero das populaes indgenas no uni-verso poltico da Colnia, de, pelo menos, quatro maneiras diferentes: a) por meio do alici-amento das elites indgenas, dos grupos no-descidos, para que se estabelecessem nas Vilas e Lugares; b) por intermdio da distribuio de cargos e funes a elementos dessas elites, no mbito das Vilas e Lugares; c) nomeando para cargos de chefia, na hierarquia militar, a elementos das populaes indgenas que demonstrassem lealdade aos interesses metropolitanos; d) por meio da concesso de privilgios de ordem econmica aos elemen-tos citados nos itens anteriores. Em terceiro lugar, e em funo dos dois pontos anteceden-tes, ele engendrou de forma extraordinria, e segundo o que dispunha, a emergncia de novas relaes sociais, surgidas do convvio, entre os elementos nativos e os colonos. Em quarto, finalmente, ao contrrio do que afirma a produo historiogrfica, ele no determi-nou, exclusivamente, a submisso dos interesses nativos aos do colonizador, mas promo-veu a emergncia de relaes diversas, em que os grupos nativos descidos e no-descidos e os colonos estabeleceram alianas e encetaram disputas.

    A documentao aponta que a viso do Diretrio dos ndios como uma pol-tica de submisso e, por extenso, de extermnio das populaes indgenas, uma possibi-lidade de leitura, mas no a nica promissora. Essa viso, na tentativa de resgatar o papel das populaes indgenas no mundo colonial, acaba por minimiz-lo, pois relega ao ndio o papel de vtima impotente nas mos do colonizador. Ela desconsidera a capacidade nativa

    46 De acordo com o dicionrio de Antnio Moraes da Silva, as unidades de povoaes distinguiam-se em aldeias, luga-res, vilas e cidades. As Vilas eram unidades urbanas menores que as cidades, mas contava com juzes, cmaras e pelourinho. Os Lugares eram unidades menores que as vilas e maiores que as aldeias. Conforme SILVA, Antnio Mora-es da. Diccionario da Lngua Portuguesa, composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado por Anto-nio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de Simo Thadeo Ferreira, 1789. Os Lugares do Diretrio dos ndios eram admi-nistrados, via de regra, por administradores leigos, sem o auxlio de cmaras.

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    de avaliar o horizonte e estabelecer escolhas, em meio s quais o estabelecer-se nas Vilas e Lugares poderia ser uma delas. Entende, ainda, que as populaes indgenas desaparece-ram em funo do que previa o Diretrio, sem atentar para o fato de que muitas dessas po-pulaes descidas deram origem s diversas comunidades ribeirinhas que hoje constituem a sociedade amaznica. Parecem, ainda, desconhecer, que a sociedade amaznica do Par at os confins do Amazonas mantm uma impressionante herana indgena, constituinte no apenas nas formas de fazer, mas na viso de mundo cultivada.47

    O trabalho concludo distancia-se, ento, daquele projeto no seu ponto cen-tral a tese: o Diretrio dos ndios compreende um conjunto de regras que pretendeu re-gular a liberdade concedida aos ndios em junho de 1755. No pode ser entendido, no entanto, como um desdobramento daquela concesso, pois partiu de um pressuposto dis-tinto. A lei de liberdade dos ndios emergiu de um contexto europeu, em meio ao qual a Coroa portuguesa pretendeu se valer das populaes nativas como forma de legitimar a posse de territrios coloniais em disputa com a Espanha. O Diretrio dos ndios surgiu na Colnia, em funo de alguns fatores: a inegvel dependncia da mo-de-obra indgena, vivida pela sociedade colonial; a necessidade de dar fim autoridade que os missionrios cultivaram, junto s populaes indgenas; e por fim, o imperativo de minimizar a resis-tncia dos colonos em se submeter s polticas pombalinas, em especial s que se relacio-navam s populaes indgenas.

    O Diretrio dos ndios , portanto, uma lei nascida na Colnia, formulada em resposta aos conflitos vividos durante o governo de Francisco Xavier de Mendona Furtado. Ele representa uma nova associao de interesses, distinta da que havia at en-to, quando a Metrpole e os Missionrios se associavam na proteo das populaes indgenas. Metrpole e Colonos dividiram, a partir de sua promulgao, o controle e a distribuio da populao nativa. Nesse sentido, ele instaura uma nova ordem de relaes sociais, nas quais o acesso mo-de-obra indgena era determinante para o estabeleci-mento dos lugares sociais. Mesmo levando-se em considerao que o controle da mo-de-obra indgena foi o mote da vida poltica no Vale Amaznico desde a sua incluso no uni-verso colonial, h aqui alguns elementos inditos: em primeiro lugar, a Metrpole no delega a sua autoridade sobre as populaes, como aconteceu antes de 1750; em segundo lugar, a incluso de elementos indgenas nos quadros da administrao colonial faz deles

    47 TOCANTINS, Leandro. Amaznia: natureza, homem e tempo. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1982. O que, de resto, em dimenso diversa, pode ser estendido ao restante do Brasil, conforme RIBEIRO, Berta G. O ndio na cultura brasileira: pequena enciclopdia da cultura brasileira. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO, 1987.

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    atores ativos na disputa pela mo-de-obra indgena; em terceiro lugar, uma vez que os ndios eram concedidos pelas autoridades coloniais, o Diretrio deu incio a uma srie de prticas, nas quais a participao nos quadros da administrao colonial e o estabeleci-mento de relaes de interesse com os componentes daqueles quadros eram fundamentais para o acesso mo-de-obra indgena.

    Finalmente, o Diretrio dos ndios representou uma importante poltica de assimilao, uma vez que buscou incorporar as populaes nativas atravs do casamento, da educao, do poder e do trabalho. Ele se constituiu em um instrumento de civilizao, transformando as populaes descidas em populaes ribeirinhas. Nesse processo, no entanto, as populaes nativas desempenharam um papel ativo: por meio da resistncia ao descimento,48 redimensionando algumas medidas portuguesas; atravs da manuteno de modos de fazer, os quais promoveram a assimilao inversa; e, principalmente, ao insur-gir-se contra todas as investidas que consideravam indevidas. A atuao das populaes indgenas, por fim, fez emergir uma economia moral, nas populaes descidas, que serviu de crtica letra da lei.

    Assim, defendo que o Diretrio dos ndios no fora previsto pela poltica metropolitana, a qual Francisco Xavier de Mendona Furtado teve a responsabilidade de implementar. Argumento, nesse sentido, que a legislao em questo emergiu de um con-texto de conflitos vividos na Colnia, envolvendo as ordens religiosas, os colonos e a ad-ministrao metropolitana, o qual conheceu o mximo recrudescimento, ao longo da admi-nistrao de Mendona Furtado. Diante disso, assumo que as motivaes e o carter do Diretrio so essencialmente coloniais.

    Essa, at onde percebo, a principal contribuio do trabalho que apresento: deslocar o epicentro da lgica que constituiu a lei do Diretrio. Ao faz-lo, pude redimen-sionar a atuao dos agentes envolvidos e tentar escapar das armadilhas que, amide, en-cerram missionrios, colonos, agentes metropolitanos, ndios e mestios em esteretipos muito distantes do que a documentao do perodo apresenta. Dessa forma, o Diretrio dos ndios surge como resultado das relaes dos agentes sociais envolvidos e no como mani-festao da vontade de um nico esclarecido.

    Entender o Diretrio dos ndios desta forma implica em, incorporando a cr-

    48 O termo descimento no consta da obra de Raphael Bluteau. Ao que tudo indica, ele assumiu o significado de deslo-camento das populaes indgenas, de suas terras tradicionais para as povoaes portuguesas, ao longo dos sculos XVII e XVIII. O dicionrio de Moraes e Silva, publicado na segunda metade do sculo XVIII, o define como o ato de transferncia dos ndios, do serto, para as aldeias. Conforme SILVA, Antnio Moraes. Op. cit..

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    tica de Manuela Carneiro da Cunha, perceb-lo no mais a partir do Atlntico, mas sim desde o Serto. Ou melhor, esta tese busca entend-lo a partir das injunes existentes na Amrica Portuguesa, de modo a identificar as inflexes impostas s projees metropolita-nas. Nesse sentido, ela estabelece um recorte em relao historiografia sobre o Diretrio dos ndios e, tambm, por vias diversas, historiografia tida como nacional.

    Diante desta afirmao, devo, partida, esclarecer: esta no uma tese de histria regional, qualquer que seja o sentido dado a essa categoria, mas uma tese sobre uma das dimenses da Histria do Brasil. Esta tese trata de um conflito presente em todo o perodo colonial, envolvendo populaes indgenas, colonos e colonizadores. Ela trata do estabelecimento de conflitos, do estabelecimento de hierarquias e da constituio e exerc-cio de uma lei, sua singularidade no reside, portanto, no recorte espacial, mas no aporte adotado na anlise.49

    O recorte espacial, todavia, tem algo a ensinar. Desde a sua constituio, a partir da formao do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, a nossa historiografia tem se constitudo a partir do Centro-Sul. Os fatores para tanto so vrios e confundem-se com a profissionalizao do saber histrico no Brasil. A concentrao de centros de produ-o de saber histrico e de instituies de guarda e conservao de documentos naquela regio, fez com a imensa maioria dos trabalhos produzidos versasse sobre processos vivi-dos ali. As demais reas do pas acabaram por ser vistas como reas de produo de uma histria local, a qual teria pouca relevncia na considerao dos processos nacionais es-ses oriundos dos grandes centros nacionais ou estrangeiros.50 Esta tese sugere a necessida-de de uma inflexo nessa perspectiva, de modo a considerar as anlises sobre os processos vividos em outras reas, que no exclusivamente o litoral, como constituintes do que se convencionou chamar de historiografia nacional, de modo a reverter um dos desdobramen-tos possveis da crtica de Manuela Carneiro da Cunha: a compreenso de que o epicentro da Histria do Brasil encontra-se alhures, pode relegar para as margens da histria, como pretendeu Euclides da Cunha, atores e processos histricos vividos em regies de fronteira, no imenso serto brasileiro.51

    49 Para uma discusso sobre Histria Regional, ver: GEBARA, Ademir. Histria regional: uma discusso. Campinas: Unicamp, 1987; AMADO, Janana [et. al.]. Repblica em migalhas: histria regional e local. So Paulo: Marco Zero, 1990; MELLO, Evaldo Cabral de. A ferida de Narciso: ensaio de histria regional. So Paulo: Editora do SENAC, 2001. 50 Ver a anlise elaborada em GOMES, Flvio dos Santos, QUEIROZ, Jonas Maral de; COELHO, Mauro Cezar. Rela-tos de Fronteira: fontes para a histria da Amaznia sculos XVIII e XIX. Belm: Editora Universitria, 1999, p. 11-18. 51 Ver CUNHA, Euclides da. margem da Histria. So Paulo: Cultrix; Braslia: Instituto Nacional do Livro, 1975; idem. Op. cit., 1994.

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    Esse aporte est associado a um outro: as consideraes de Edward P. Thompson. A tese aqui defendida apropria-se do argumento de Thompson, segundo o qual os grupos sociais formam-se, associam-se e entram em conflito segundo processos histri-cos os quais no podem ser reduzidos a respostas a determinadas conformaes teri-cas.52 Assim, colonos, religiosos e ndios no so tomados como categorias estanques e absolutas, mas como grupos que estabelecem relaes de associao e conflito em a-cordo com os seus interesses, construdos na relao estabelecida no tempo.

    Recorri, tambm, ao conceito de economia moral, complementar ao concei-to de classe de Thompson, segundo o qual os grupos sociais desenvolvem uma noo de legitimidade, por meio da qual balizam seus comportamentos e pautam suas lutas.53 Nesse sentido foi que busquei analisar as demonstraes de insatisfao dos colonos e das popu-laes indgenas descidas, as quais se insurgiam contra o que concebiam ser transgresses do que lhe era devido, independentemente do que estipulava a lei do Diretrio dos ndios.

    Por fim, adotei como principal baliza as reflexes do mesmo Thompson so-bre a elaborao da Lei Negra, na Inglaterra do sculo XVIII. A leitura e a reflexo sobre Senhores e Caadores,54 me fez recusar a idia de que as leis so reflexos cristalinos do pensamento de quem as elaborou. Essa obra foi fundamental na compreenso da lei do Diretrio dos ndios como a expresso de um conjunto de relaes sociais vividas ao longo de sua elaborao. Fazia-se mister, portanto, entend-las, para que a lei pudesse ser enten-dida. Da mesma forma, a mesma obra foi fundamental para compreenso do exerccio da lei, o qual assumido como submetido s mesmas foras que participaram da sua formula-o e no como um reflexo dos seus dispositivos legais. Essa obra, por fim, contribuiu para a assuno de que a lei no determina comportamentos, mas os engendra, favorece o sur-gimento de novas estratgias e permeia, portanto, novas relaes sociais.

    52 THOMPSON, Edward P. La sociedade inglesa del sigos XVIII: Lucha de clases sin clases? In: Tradicin, revuelta y conscincia de clase. Barcelona: Crtica, 1979, p. 13-61. 53 Idem. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. Destaco, especialmente, os captulos trs e quatro, s pginas 150-266. 54 Idem. Senhores e Caadores: a origem da lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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    ROTEIRO

    A organizao da tese corresponde tanto aos fundamentos de uma aula, quanto ao imperativo da defesa do argumento central. A condio de professor de Histria, em cursos de formao de professores de Histria interferiu, certamente, na organizao dos captulos. Foi em funo dela que me decidi por trs sees, cada uma com dois textos, os quais situassem o problema e a sua relao com a produo bibliogrfica, a tese central e, por fim, seus desdobramentos. Assim, como se poder notar, a organizao dos captulos segue, mais que uma seqncia cronolgica, as inflexes que o problema imps e a neces-sidade de torn-las inteligveis aos leitores.

    Devo reconhecer, todavia, que o argumento que desenvolvi foi determinante na demarcao do roteiro da tese. A compreenso de que a lei do Diretrio dos ndios resultado e resultante de um contexto especfico, me fez dividir a tese em trs segmentos, os quais buscam dar a dimenso do argumento. A tese, ento, foi organizada de modo a indicar, desde a partida, dois princpios que foram construdos na lida com os documentos e a bibliografia. O primeiro deles consubstancia a idia de que a lei no se constituiu a re-velia da sociedade colonial, habitante do Vale Amaznico. O segundo decorre do primeiro: se a sociedade colonial participa da elaborao da lei, ela (a sociedade, e no a letra da lei) determina a sua prtica.

    Os PROLEGOMENOS, alm das questes de praxe, situam, especialmente, a relao que a produo historiogrfica estabeleceu com um dos agentes da Histria do Bra-sil o indgena. O primeiro captulo, Heris Mutantes, ocupa-se com o espao dispensado e a representao construda sobre o ndio, na produo da memria histrica sobre o pas-sado brasileiro. Nele, defendo que as representaes sobre o ndio, presentes na literatura acadmica, tm relao com as representaes correntes no imaginrio social.

    Assim, argumento, o lugar dispensado ao ndio nas narrativas sobre o passa-do brasileiro decorre da cultura histrica construda pela sociedade, a qual partilhada, em maior ou menor grau, pela produo acadmica. Iracema, Peri e Macunama so persona-gens literrias e, tambm, cones do imaginrio social. Nesta ltima condio, compuseram parte das leituras sobre o passado brasileiro, as quais recusaram ao ndio a condio de agente histrico. Tais leituras consolidaram a idia do ndio passivo, ingnuo, coadjuvante

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    desinteressado do colonizador portugus e incapaz de participar ativamente de processo de colonizao razo pela qual teria sido substitudo pelo brao africano, nas lavouras de cana-de-acar.

    O imaginrio, no entanto, vive as inflexes que a sociedade lhe impe. E e-la, nas ltimas dcadas, assiste e participa da elaborao de uma nova representao do ndio. No mais como elemento passivo, ingnuo e incapaz, mas como um agente atuante na defesa de seus prprios interesses. Assim, a reboque dos movimentos indgenas, nasci-dos na dcada de 1960, a literatura acadmica assistiu a emergncia de novos campos de interesse dos pesquisadores: Histria Indgena e do Indigenismo.

    O captulo, portanto, trata das inflexes sofridas pela produo historiogr-fica, as quais permitiram a construo desta tese. Ele situa os caminhos percorridos pelas representaes sobre os ndios, naquela produo. No seu objetivo elaborar uma crtica condenatria dos autores citados, mas perceber as matrizes que fundaram uma concepo da Histria do Brasil e as suas conseqncias para um dos agentes histricos que a com-pe. O captulo, neste sentido, demarca o ponto de partida da tese, pois situa a perspectiva que a informa, sem deixar de reconhecer, todavia, o quanto ela devedora da produo que lhe antecedente.

    A PRIMEIRA PARTE ocupa-se com uma das dimenses do argumento central: a lei do Diretrio dos ndios no deve ser percebida como um desdobramento da Lei de Liberdade dos ndios, promulgada em 06 de junho de 1755, mas como uma formulao nascida na Colnia, em funo de um contexto que no fora previsto pelo ministrio de Sebastio Jos de Carvalho e Melo. Assim, esse segmento da tese estabelece dois distanci-amentos em relao bibliografia: em primeiro lugar, ele recusa a tese de que o Diretrio constitui uma das leis pombalinas; em segundo lugar, ele atribui sentido descontinuidade, percebida por alguns autores, havida entre a Lei de Liberdades e o Diretrio dos ndios.

    Assim, o segundo captulo, A Ordem dos Conflitos, trata do contexto en-contrado por Francisco Xavier de Mendona Furtado, ao chegar ao Gro-Par, com a res-ponsabilidade de consolidar as fronteiras estabelecidas pelo Tratado de Madri e realizar a insero do Vale Amaznico na economia do Imprio. Ele busca demonstrar os percalos enfrentados pelas projees metropolitanas e a conseqente inadequao de se tomar o processo histrico vivido como uma conseqncia direta e mecnica das projees de a-gentes ou de instncias.

    O terceiro captulo, Uma Lei Colonial, d conta da elaborao da lei do Di-

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    retrio dos ndios. Ele situa o quanto Francisco Xavier de Mendona Furtado fora pressio-nado pelos colonos para flexionar as pretenses metropolitanas em relao s populaes indgenas. Ao faz-lo, o captulo aborda a gestao dos princpios que compuseram a lei do Diretrio dos ndios, demarcando sua relao com a resistncia encontrada pelo enviado da Metrpole, e, acima de tudo, baliza o carter colonial daquela lei.

    A SEGUNDA PARTE da tese concentra-se nos desdobramentos da lei. A pro-duo bibliogrfica relativa ao Diretrio dos ndios partilha a compreenso de que a lei foi constantemente subvertida. Assim, a vigncia da lei teria sido marcada pela explorao sem peias da populao indgena descida, a qual teria provocado a dizimao de grande parte dos ndios reunidos nas povoaes do Diretrio. Essa segunda parte, no entanto, ar-gumenta que essa compreenso toma um projeto metropolitano e colonial por um processo histrico.

    O carter colonial da lei do Diretrio dos ndios, mais que a incluso da de-manda dos colonos, comporta a remisso da lei s estruturas da sociedade colonial habitan-te do Vale Amaznico. Logo, a vigncia da lei percebida na relao com aquela socieda-de, jamais como um desdobramento lgico da lei. De forma que, as prticas de colonos e ndios, contrastantes e complementares, em graus diversos, so vistas como as balizas que do vida ao exerccio da lei.

    Assim, o quarto captulo, A Outra Vida, apresenta as transformaes intro-duzidas pelo Diretrio dos ndios, na vida das populaes indgenas descidas. Seu objetivo demarcar o carter original daquela lei, por meio do destaque e da anlise das inflexes introduzidas pelo Diretrio a formas antigas de assimilao do indgena e das inovaes acrescidas, como a introduo da Lngua Portuguesa, o patrocnio a casamentos mistos e, principalmente, a transformao no estatuto das chefias indgenas.

    O quinto captulo, O Germe da Destruio, complementa o argumento da tese. A vigncia do Diretrio dos ndios foi marcada pela compreenso, corrente no Vale Amaznico daqueles sculos, de que as populaes indgenas constituam o repositrio da riqueza. Tal compreenso no fora subvertida pela lei que regulou a liberdade indgena. Os colonos no deixaram de considerar o ndio como mo-de-obra preferencial para suas la-vouras e suas expedies ao serto, como fora motriz das canoas, provedores de peixes e frutos para a alimentao e empregados para os trabalhos domsticos. A Metrpole, por sua vez, sem abandonar sua pretenso em utiliz-lo como o povoador do Vale Amaznico, o elegeu o trabalhador exclusivo das expedies oficiais, das obras pblicas e dos empre-

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    endimentos de extrao de madeira. Essa compreenso que a sociedade colonial comungava, sobre o mundo em

    que vivia e sobre o lugar reservado s populaes indgenas, no reinou solitria, ao longo dos anos de vigncia do Diretrio dos ndios. A poltica indigenista, da qual essa lei uma das manifestaes, viabilizou outras alternativas s populaes indgenas. O reconheci-mento e a apropriao das chefias indgenas acarretaram a emergncia de foras que redi-mensionaram as aes de colonos e da Metrpole. O convvio de colonos e ndios nas po-voaes propiciou o afloramento de conflitos antigos, mas tambm associaes inusitadas.

    Esse ltimo captulo, portanto, trata de como a lei do Diretrio dos ndios se realizou no como um reflexo de si mesma; suas diretrizes no se desdobraram como um princpio lgico, tal como em uma lei matemtica. O captulo trata de como a prtica da lei correspondeu s prticas sociais que a constituram, fundamentalmente. Foram as prticas sociais, de colonos e ndios, que conformaram, em graus diversos, os contornos da socie-dade colonial do Vale Amaznico, na segunda metade do sculo XVIII.

    Os limites do argumento, como pretendi tornar evidente, desenharam a es-trutura da tese. Em funo deles, optei por no me aprofundar em questes correlatas, que podem vir a ser mais bem enfrentadas em trabalhos exclusivos. Assim, sempre que achei prudente, recorri a notas de rodap para situar discusses relacionadas ao objeto de tese, mas que no interferiam, diretamente, na construo do argumento.

    Da mesma forma, optei por utilizar trs formatos de letra, na redao do tra-balho. Pretendi distinguir, assim, as diversas falas que compem a tese: as falas presentes na documentao, as que conformam as posies da bibliografia consultada e a reflexo que empreendi. Ainda com esse ltimo objetivo em mente, utilizei o mesmo tipo das cita-es bibliogrficas para as notas de rodap.

    Antes de concluir, devo reafirmar o quanto esta tese deve produo biblio-grfica que lhe anterior. Neste sentido, ela busca aprofundar a discusso j existente, a-presentando uma nova dimenso da vida colonial. Ela no recusa a importncia do comr-cio interatlntico, no diminui a relevncia das hierarquias raciais e tampouco subestima os processos de expropriao, dizimao e dominao a que as populaes indgenas foram submetidas.

    Esta tese, no entanto, tem a pretenso no melhor sentido da palavra de apresentar uma anlise resultante de uma incurso profunda nos arquivos que guardam a documentao relativa ao Diretrio dos ndios. Essa incurso permitiu-me a construo do

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    argumento que fundamenta esta tese, o qual no pretende denunciar malfeitores, nem ame-alhar simpatia em favor de vtimas. Antes, seu objetivo evidenciar o quanto a compreen-so dos processos histricos exige o recurso ponderado dos aparatos tericos, de modo a no limitar a anlise constatao de princpios, previamente estabelecidos.

    Esta tese pretende, tambm, evidenciar que a Histria do Brasil no se fez e nem se faz em via de mo nica, a partir do litoral, ou das correntes que vm do outro lado do Atlntico. Ao longo do vasto territrio conformado ao tempo da Amrica Portuguesa, no serto inclusive, os agentes histricos ali reunidos, conformaram-se ou resistiram s presses que lhes foram impostas por outros agentes. Eles constituram, tambm, foras que redimensionaram polticas e conformaram estruturas sociais e culturais que fundamen-tam, ainda hoje, a propalada diversidade brasileira.

    Por fim, devo ressaltar uma escolha. Ao longo da pesquisa referia-me, cons-tantemente, Amaznia, querendo reportar-me ao universo espacial da pesquisa. Jonas Maral de Queiroz alertou-me para o equvoco. Aprendi, ento, que a noo de Amaznia, como uma regio propriamente dita, s se constitui no sculo XIX. Assim, acatei sua su-gesto de valer-me da referncia frequentemente utilizada por Arthur Cezar Ferreira Reis Vale Amaznico. Essa expresso pretende, ento, dar conta do recorte espacial da pesqui-sa: a Amaznia Portuguesa55 da segunda metade do sculo dezoito.

    55 A expresso tomei emprestada de Patrcia Sampaio, ver SAMPAIO, Patrcia Maria Melo. Entre a tutela e a liberdade dos ndios. relendo a Carta Rgia de 1798. In: COELHO, Mauro Cezar [et. alli] Meandros da Histria: trabalho e poder no Par e Maranho, sculos XVIII e XIX. Belm: UNAMAZ, 2005 (no prelo).

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    PRIMEIRO CAPTULO

    H E R I S M U T A N T E S : N D I O S , C U L T U R A H I S T R I C A E H I S T O R I O G R A F I A

    ndia teus cabelos nos ombros cados Negros como as noites que no tem luar Teus lbios de rosa para mim sorrindo

    E a doce meiguice desse teu olhar ndia da pele morena

    Tua boca pequena eu quero beijar ndia, sangue tupi

    Tens o cheiro da flor Vem que eu quero te dar Todo meu grande amor

    ..

    J. A. Flores, M. O. Guerreiro

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    ndia, a cano, no brasileira. Ou melhor, no era. De melodia paraguaia trata-se de uma guarnia nacionalizou-se na verso interpretada por Cascatinha e Inha-na.1 Ao que tudo indica, poucos notaram, e mesmo estes no se deram por achados. No difcil entender a razo: a mensagem contida em ndia correspondia a uma das verses pre-sentes nas narrativas sobre a formao do Brasil, fazendo parte, portanto, da cultura hist-rica nacional,2 ao tempo em que a cano foi lanada.

    Construda desde a fundao do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, no sculo XIX contando, portanto, perto de 150 anos, quando do sucesso de ndia essa cultura histrica relegou o ndio a uma srie de condies, todas subalternas: coadjuvante do portugus; incapaz de gerir seu destino; preguioso, indolente e lascivo; dbil, fraco e de cultura assaz rudimentar, de modo que teve de ser substitudo pelo brao africano na lida agrcola.

    Se a primeira destas condies o tornou objeto de um sem nmero de refle-xes ao longo do sculo XIX, as demais o conduziram para o quase total desaparecimento, nas narrativas que propunham uma Histria do Brasil, no decorrer da centria seguinte. Contas feitas, restou-lhe apenas a condio de uma das personagens do drama da formao do povo brasileiro: enquanto o elemento branco teria contribudo com as bases da civiliza-o e o negro com o trabalho, o ndio teria adicionado ao carter nacional sua verve festiva, sua afetividade, sua sensualidade e sua preguia.

    Ao longo do sculo XX, o conhecimento histrico passou pelo que Peter Burke denominou de revoluo: incorporou tcnicas, procedimentos, dados e perspectivas de outras disciplinas.3 No entanto, sua realizao de maior conseqncia foi a reformulao da idia de objeto do conhecimento histrico: as aes de todos os homens, de todos os grupos, alcanaram a condio de objeto do interesse dos pesquisadores. Assim, o conhe-cimento histrico no mais estaria limitado compreenso das aes das elites. Mas no s: a cultura, o trabalho, a economia, a demografia, alm da poltica, passaram a fazer parte

    1 Devo a Jonas Maral de Queiroz o aprendizado sobre a trajetria de ndia. 2 Sobre o conceito de Cultura Histrica ver LE GOFF, Jacques. Histria e Memria. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996, p. 47-76. 3 BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a Revoluo Francesa da historiografia. So Paulo: UNESP, 1997.

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    das operaes dos historiadores.4 Todas essas transformaes levaram incluso do ho-mem comum na elaborao das anlises dos processos histricos vividos.5

    No Brasil, essa revoluo acadmica resultou em uma imensido de traba-lhos que analisaram os escravos, os homens livres e pobres, as mulheres e as crianas, no universo colonial e fora dele. Trabalhadores rurais e urbanos, grupos de interesse como jornalistas, escritores, polticos e acadmicos e minorias tnicas (quase todas do ponto de vista poltico, bem entendido) foram includos em anlises sobre o Brasil no sculo XX: judeus, alemes, italianos, rabes e negros foram incorporados s anlises sobre a forma-o do povo e das instituies nacionais.6 Os ndios, no entanto, ficaram de fora.

    Somente nos ltimos 30 anos, o ndio passou a fazer parte das anlises sobre o perodo colonial, na condio de agentes de processos histricos.7 Alguns intelectuais, dentre os quais se destacam historiadores seguidores do exemplo valioso dado pelos an-troplogos , construram narrativas sobre a Colnia, nas quais o ndio aparece como um sujeito de vontades prprias, como um articulador do prprio destino.

    E