do mundo da leitura para a leitura do mundo · na escola1 se, por não sei que excesso de...

92

Upload: others

Post on 17-Jul-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto
Page 2: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto
Page 3: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

MARISA LAJOLO

DO MUNDODA LEITURA

PARA A LEITURADO MUNDO

Prêmio Jabuti 1994

Conforme a nova ortografia da língua portuguesa

Page 4: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

© Marisa Lajolo

Versão Impressa

Editor-chefeCarlos S. Mendes RosaEditora assistenteTatiana Corrêa PimentaRevisorMaurício KatayamaEstagiáriaMonise MartinezEditor de artesVinicius Rossignol FelipeDiagramadoraLeslie MoraisPaginaçãoMegaart DesignCapaAry Normanha

Versão ePUB 2.0.1

Tecnologia de Educação e Formação de EducadoresAna Teresa RalstonGerência de Pesquisa e DesenvolvimentoRoberta CampaniniCoordenação geralAntonia Brandao Teixeira e Rachel ZaroniCoordenação do projetoEduardo Araujo RibeiroEstagiáriaOlivia Do Rego Monteiro FerraguttiRevisãoMarina Lazaretti

Ao comprar um livro, você remunera e reconhece o trabalho do autor e de muitos outrosprofissionais envolvidos na produção e comercialização das obras: editores, revisores,diagramadores, ilustradores, gráficos, divulgadores, distribuidores, livreiros, entre outros.Ajude-nos a combater a cópia ilegal! Ela gera desemprego, prejudica a difusão da cultura eencarece os livros que você compra.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.L194d | 1.ed. Lajolo, Marisa, 1944- Do mundo da leitura para a leitura do mundo / Marisa Lajolo - 1.ed. - SãoPaulo : Ática, 2011.(Educação em ação)"Prêmio Jabuti 1994"1. Crianças - Livros e leitura. 2. Literatura infantojuvenil - História e crítica. I. Título. II. Série.09-5109. | CDD: 028.55 | CDU: 028.51ª Edição - Arquivo criado em 21/07/2011e-ISBN 9788508149070

Page 5: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto
Page 6: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Cecília Canalle,Regina Zilberman ePedro Bandeira,em exercício de amizade,leram generosamenteos originais.Pela leitura e pelos palpitesa autora agradece,assumindo, no entanto,integral responsabilidade pelateimosia que impediu completoaproveitamento das sugestõesfeitas.

Page 7: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

SUMÁRIO

Introdução

1. NO MUNDO DA LEITURA

A leitura literária na escola

Literatura infantojuvenil: fada madrinha de umcurrículo em crise ou gênero descartável para um leitor em trânsito?

I

II

Os leitores, esses temíveis desconhecidos

Poesia: uma frágil vítima da escola

Livro didático e Língua Portuguesa: parceria antiga e mal resolvida

Literatura infantil e escola: a escolarização do texto

2. LEITURAS DO MUNDO

Machado de Assis: um mestre de leitura

As aventuras de Ngunga, na escola e na leitura

Lobato, um Dom Quixote no caminho da leitura

Tecendo a leitura

Page 8: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

INTRODUÇÃO

Ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive. Se ler livrosgeralmente se aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem por aí, nachamada escola da vida: a leitura do voo das arribações que indicam a seca — comosabe quem lê Vidas secas de Graciliano Ramos — independe da aprendizagemformal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros.

Como entre tais coisas e tais outros incluem-se também livros e leitores, fecha-seo círculo: lê-se para entender o mundo, para viver melhor. Em nossa cultura, quantomais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê, numaespiral quase sem fim, que pode e deve começar na escola, mas não pode (nemcostuma) encerrar-se nela.

Do mundo da leitura à leitura do mundo, o trajeto se cumpre sempre, refazendo-se, inclusive, por um vice-versa que transforma a leitura em prática circular einfinita. Como fonte de prazer e de sabedoria, a leitura não esgota seu poder desedução nos estreitos círculos da escola.

Aposto nisso, e constitui uma espécie de profissão de fé nessa aposta o que tenhodiscutido ao longo dos eventos que motivaram os textos aqui reunidos.

Mundo da leitura, leitura do mundo: onde acaba um e começa a outra? Talvez oslimites sejam esgarçados, aquela terceira margem do rio de que fala GuimarãesRosa...

Muito embora estreitamente entrelaçados na vida real, mundo da leitura e leiturado mundo distinguem-se aqui; invocando a temporária suspensão do real que oslivros patrocinam como forma de iluminar e fecundar o retorno ao real, em cadaparte do livro predomina um deles.

A primeira parte é constituída de ensaios mais direta e ostensivamenterelacionados ao mundo de papel impresso, de escola, de alunos e professores, delivro didático, de literatura infantil e juvenil. Currículo, formação de professores,práticas escolares de leitura (particularmente de leitura literária), formas de inserçãode livros escolares e de leitura em diferentes momentos do sistema culturalbrasileiro são as portas de ingresso para as questões e reflexões que incidem sobrediferentes aspectos do mundo da leitura.

Na segunda parte, a leitura do mundo entra mais ostensivamente em cena, trazidapara a berlinda pela análise de algumas representações que leitura, escola e literaturaencontram em diferentes textos literários.

Page 9: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Machado de Assis, José Pepetela e Monteiro Lobato são, por assim dizer, casosque resolvem, de modo positivo e legitimado pela história literária, o que se discutiue problematizou nos textos da primeira parte. Em seus textos afloram diferentesprojetos de educação de leitores, de alfabetização, de leitura dos clássicos, decambulhada com histórias de amor, de guerra e de loucura. Os textos comentadosnos introduzem em mundos com os quais se tropeça tanto no silêncio da vida decada um, quanto no estardalhaço das situações e notícias que diariamente trazem odistante e o estranho para dentro de nós.

No seu conjunto, os ensaios propõem itinerários possíveis para o percursoindicado pelo título: sugerem que a reflexão teórica, a abordagem histórica e aanálise textual constituem trajetos seguros e paisagens sedutoras na tão necessáriatravessia do mundo da leitura à leitura do mundo, e seu vice-versa.

Page 10: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

1

NO MUNDODA LEITURA

Page 11: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

A LEITURA LITERÁRIANA ESCOLA1

Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todasas nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino,exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, poistodas as ciências estão presentes no monumento literário.2

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, sonetava Camões, pela janela doséculo XVI. E o mesmo constatamos nós, em esferas mais baixas, examinando,ainda que sem o talento do poeta, meia dúzia de livros didáticos ou paradidáticos deliteratura. Figurinos e modas não faltam. O que parece faltar é inspiração e elegânciaque permitam passar da máxi à míni, sem mostrar canelas escalavradas nem joelhossujos. E antes que alguém pergunte se se fala da moda ou do texto literário emclasse, saiba-se que a epígrafe de Barthes é salvo-conduto para tomar do universo damoda as primeiras metáforas.

O que fazer com ou do texto literário em sala de aula funda-se, ou devia fundar-se,em uma concepção de literatura muitas vezes deixada de lado em discussõespedagógicas. Estas, de modo geral, afastam os problemas teóricos como irrelevantesou elitistas diante da situação precária que, diz-se, espera o professor de literaturanuma classe de jovens. A precariedade de tal situação costuma ser resumida nosclichês e preconceitos que afloram quando vêm à baila temas que relacionam jovem,leitura, professor, escola, literatura e similares, como sugerem as falas abaixo3:

(...) outros alunos, por não terem hábito ou gosto pela leitura, infelizmente a maioria, só leem seobrigados. Outros ainda, a minoria, não leem nem obrigados (...) (sic)

(...) muitos não leem com a desculpa de que não têm tempo, sendo que para assistir TVsempre dispõem de tempo (...)

(...) o nosso estudante só faz determinada atividade se exigida e bem estimulada. Docontrário, se entregam (sic) à preguiça de ler. Mesmo porque eles acham cansativo ter de ficarparados a ler, muitas vezes histórias que estejam agradando (...)

Só a leitura e o incentivo pelos bons autores (sic) poderá melhorar a redação dos alunos, cadavez mais pobre e restrita pela TV (...)

Os textos acima, colhidos em diferentes escolas, poderiam ser assinados pormestres do Oiapoque ao Chuí. O que surge nas linhas e entrelinhas dos quatrodepoimentos é um professor que se crê investido da função sagrada de guardião dotemplo: lá dentro, o texto literário; cá fora, os alunos; na porta, ele, o mestre, semsaber se entra ou se sai, ou se melhor mesmo é que a multidão se disperse...

Page 12: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

O problema é que os rituais de iniciação propostos aos neófitos não parecemagradar: o texto literário, objeto do zelo e do culto, razão de ser do templo, é objetode um nem sempre discreto, mas sempre incômodo, desinteresse e enfado dos fiéis— infidelíssimos, aliás — que não pediram para ali estar. Talvez venha dessedesencontro de expectativas que a linguagem pela qual se costuma falar do ensino deliteratura destile o amargor e o desencanto de prestação de contas, deveres, tarefas eobrigações, como as falas acima ilustram.

Para pasmo geral dos paroquianos menos informados, no entanto, FernandoPessoa, com a sabedoria de quem guarda rebanhos, solidariza-se com as ovelhasrebeldes. O poeta-pastor proclama seu tédio perante qualquer contexto que subtraiado texto sua carga máxima de mito e de ruptura:

Ai que prazerNão cumprir um dever,Ter um livro para lerE não o fazer!Ler é maçada.Estudar é nadaO sol doiraSem literatura.

O rio corre, bem ou malSem edição original.E a brisa, essa,De tão naturalmente matinal,Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.Estudar é uma coisa em que está indistintaA distinção entre nada e coisa nenhuma.4

Como já se viu, dicção oposta à de Pessoa é a que ressoa nas vozes ouvidas napesquisa da editora Abril. E, curiosamente, é uma voz tão marcial quanto amarga aque reponta nos testemunhos dos mestres aparentemente satisfeitos com seudesempenho face aos papéis pintados com tinta:

Motivamos a classe a ler, a ler sempre (...) poucos são os comentários de falta de interesse,talvez porque repito sempre o slogan: quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê.

Leem porque eu incentivo muito e às vezes até dramatizo o assunto resumidamente, para queo aluno se interesse mais por leitura (...)

Após um trabalho árduo e longo, o hábito de leitura parece ter sido implantado.5

Page 13: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

As falas acima revelam a consciência tranquila do dever cumprido, proclamam osucesso da terapêutica, cuja violência, no entanto, parece deixar cicatrizes até na vozdo terapeuta: o vocabulário é repassado de obrigações e cobranças: trabalho longo eárduo, atividade exigida, leitura obrigatória... expressões cinzentas e duras, emharmonia com uma escola como a brasileira, amarga e curtida por políticaseducacionais equivocadas. A função desse professor bem-sucedido confina-se aopapel de propagandista persuasivo de um produto (a leitura) que, sob a avalanche domarketing e do merchandising, corre o risco de perder, ao menos em parte, suaespecificidade.

A compreensão desse estado de coisas parece fundamental: ilumina o contextoescolar brasileiro, no qual discussões sobre e propostas para usos do texto literárioem classe podem transformar-se em armadilha para o professor que, sentindo-sefragilizado, busca respostas imediatas para seus problemas concretos. As propostastransformam-se em armadilha quando patrocinam discussões das quais se sai com astécnicas debaixo do braço e confiante na terapêutica. Técnicas milagrosas paraconvívio harmonioso com o texto não existem, e as que assim se proclamam sãomistificadoras, pois estabelecem uma harmonia só aparente, mantendo intato —quando já instalado — o desencontro entre leitor e texto.

Vários professores, ouvidos na pesquisa da editora Abril, têm sugestões a fazer.Trata-se, geralmente, de propostas que somam, ao idealismo ingênuo, o imediatismodas soluções enlatadas: sugestões bem-intencionadas, sem dúvida, que reduzem oatrito e aumentam a digestibilidade da aula; mas lidam superficialmente com aquestão, resolvendo o problema pelo seu contorno, passando ao largo das zonasprofundas de conflito.

(...) os livros deveriam ser mais dinamizados e arejados (...)(...) seria preciso levar obras literárias até os alunos de uma maneira inteligente, interessante e

proveitosa (...)

(...) seria importante ter um audiovisual de literatura (,..)6

Mas ouvir professores é tarefa de amor, como dizia Bilac a propósito de estrelas;tarefa de amor, pois talvez o professor seja peça secundária na escola de hoje e,consequentemente, sua voz se faça ouvir com timidez no que respeita aos destinosdo texto literário em classe. Não parece que o que fazer com o texto literário na salade aula seja ainda de sua competência. Já faz alguns anos que decidir isso é dacompetência de editoras, livros didáticos e paradidáticos, muitos dos quais seafirmaram como quase monopolizadores do mercado escolar, na razão direta em quetiraram dos ombros dos professores a tarefa de preparar as aulas.

O que há, então, para o professor, é um script de autoria alheia, para cuja

Page 14: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

composição ele não foi chamado: leitura jogralizada, testes de múltipla escolha,perguntas abertas ou semiabertas, reescritura de textos, resumos comentados sãoalguns dos números mais atuais do espetáculo que, ao longo do território nacional,mestres, menos ou mais treinados, estrelam para plateias às vezes desatentas, àsvezes rebeldes, quase sempre desinteressadas, sobrando a seção de queixas ereclamações para congressos, seminários, cursos de atualização e congêneres, ouentão pesquisas como a que aqui está sendo comentada.

Talvez não se tenha refletido ainda o bastante sobre alguns traços que modernaspedagogias e certos modelos de escola renovada imprimiram à educação,principalmente ao ensino de literatura. Nesse sentido, urge discutir, por exemplo, oconceito de motivação, porque é em nome dele que a obra literária pode sercompletamente desfigurada na prática escolar. Propor palavras cruzadas, sugeriridentificação com uma ou outra personagem, dramatizar textos e similaresatividades que manuais escolares propõem, é periférico ao ato de leitura, ao contatosolitário e profundo que o texto literário pede.

Ou o texto dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum. E o mesmose pode dizer de nossas aulas.

O texto, em sala de aula, é geralmente objeto de técnicas de análise remotamenteinspiradas em teorias literárias de extração universitária. Mas, se no âmbitouniversitário a teoria literária pode ainda preservar uma semântica geral do texto, natransposição das ditas teorias para o contexto didático esse sentido maior costumaadelgaçar-se e rarefazer-se, a ponto de ficar quase irreconhecível.7 Na escola, anula-se a ambiguidade, o meio-tom, a conotação — sutis demais para uma pedagogia dotexto que consome técnicas de interpretação como se consomem pipocas erefrigerantes.

De modo geral, não se pode — e talvez nem se deva — fugir a algunsencaminhamentos mais tradicionais no ensino da literatura: por exemplo, ainscrição do texto na época de sua produção, uma vez que textos assimcontextualizados nos dão acesso a uma historicidade muito concreta e encarnada, àqual se cola a obra de arte à revelia ou não das intenções do autor; outro caminho, ainscrição, no texto, do conjunto dos principais juízos críticos que sobre ele se foramacumulando, fundamental para fazer o aluno vivenciar a complexidade da instituiçãoliterária que não se compõe exclusivamente de textos literários, mas sim do conjuntodestes mais todos os outros por estes inspirados; outro exemplo ainda, a inscrição doe no texto, no e do cotidiano do aluno, entendendo que este cotidiano abrange desdeo mundo contemporâneo (no que essa expressão tem, intencionalmente, de vago e deamplo) até os impasses individuais vividos por cada um, nos arredores da leitura decada texto.

Page 15: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Se o professor não conhece tais impasses — e provavelmente não os conhece nemprecisa conhecê-los —, a vivência que tem de seus impasses e a forma comodiferentes textos dialogam com tais impasses são suficientes para sugerircomentários, perguntas e atividades que encaminhem nessa direção o trabalho com otexto.

Numa última perspectiva, o desencontro literatura-jovens que explode na escolaparece mero sintoma de um desencontro maior, que nós — professores — tambémvivemos. Os alunos não leem, nem nós; os alunos escrevem mal e nós também. Mas,ao contrário de nós, os alunos não estão investidos de nada. E o bocejo que oferecemà nossa explicação sobre o realismo fantástico de Incidente em Antares ou sobre ametalinguagem de Memórias póstumas de Brás Cubas é incômodo e subversivo,porque sinaliza nossos impasses. Mas, sinalizando-os, ajuda a superá-los. Pois sósuperando-os é que em nossas aulas se pode cumprir, da melhor maneira possível, oespaço de liberdade e subversão que, em certas condições, instaura-se pelo e no textoliterário.

1 Versão anterior deste texto foi apresentada em mesa-redonda sobre Literatura e Ensino, organizada em PortoAlegre pelo Goethe Institute, PUC-RS e Associação Internacional de Leitura — Conselho Brasil (Sul), e como título 'O texto literário na sala de aula' posteriormente publicado no Boletim da ALBS (AssociaçãoInternacional de Leitura — Conselho Brasil Sul), n° 2/83, p. 23-7.

2 BARTHES, R. Aula. São Paulo, Cultrix, 1980. p. 18.3 Os textos de professores foram extraídos de pesquisa feita pela Abril Educação, como parte da promoção da

Série Literatura Comentada, lançada nacionalmente em 1981.4 PESSOA, Fernando. 'Liberdade'. In: __. Obra poética. 3. ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, p. 188.5 Ver nota 3. Para contrastar os resultados desta pesquisa com outra, consultar Saldiva & Associados

Propaganda Ltda., 'Estudo motivacional sobre hábitos de leitura', realizada em 1987 para a CâmaraBrasileira do Livro e Associação Paulista de Fabricantes de Papel e Celulose. São Paulo, Câmara Brasileirado Livro, 1988.

6 Ver nota 3.7 Cf. AMARAL, Emília. 'O ensino de literatura no segundo grau'. Dissertação de mestrado, mimeo. IEL-

Unicamp, 1986. LAJOLO, M. 'Leitura e literatura: mais que uma rima e menos que uma solução'. In:ZILBERMAN, R. & SILVA, E. Theodoro da, orgs. Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo, Ática,1988.

Page 16: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

LITERATURA INFANTOJUVENIL:FADA MADRINHA DE UMCURRÍCULO EM CRISE OU

GÊNERO DESCARTÁVEL PARAUM LEITOR EM TRÂNSITO?1

IHoje não há que fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elassabem mais do que nós outros. Leem Zola, estudam anatomiahumana e tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas,benza-as Deus, são verdadeiras doutoras de borla e capelo emnegócio de namoros. Sei de uma que foi encontrada peloprofessor de história natural a debuxar um grandíssimo falocom todos os seus petrechos.2

A importância da literatura infantojuvenil como disciplina a ser incluída nocurrículo de formação do professor é parte da questão da formação do professor delíngua materna. Pois o problema da literatura infantojuvenil — se é que é umproblema — talvez seja mera representação contemporânea de uma crise muitomaior e muito mais antiga: faz tempo que não se sabe qual é a formação necessáriaao professor de língua materna, porque também não se tem claro a função da escolano que se refere à competência linguística que o aluno deve dominar ao abandonaros bancos escolares.

Neste tempo nosso, fértil em discussões várias, o assunto está embaralhadíssimo.Circulam, com sucesso, crenças como a de que o professor não deve corrigir o textodos alunos, que ele deve deixar o aluno escrever como fala, que a escola deverespeitar o dialeto do aluno, que redação não deve ter nota e outras similaresafirmações e negações. E todas e cada uma delas, tomadas fora do contexto em queforam formuladas, e aplicadas a toque de caixa em atividades que variam deexercícios propostos por livros escolares a metodologias desenvolvidas em cursosrelâmpago, ficam fora do lugar. Imobilizam-se em crenças, por um lado,insuficientes para romper o autoritarismo compacto do aparelho escolar. E, poroutro, inadequadas para satisfazer as expectativas que a comunidade alimenta emface da escola.3

Não se advoga aqui, evidentemente, o retorno às listas de verbos e pluraisirregulares, nem a volta às redações do tipo Uma lágrima ao cair da tarde... O que se

Page 17: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

sugere é que a rapidez com que o ensino da Língua Portuguesa se desvencilhou detais práticas e absorveu outras, por ter ocorrido no bojo de um movimento maior deprojetos educacionais e políticos talvez parcialmente gorados, pode ter travestido depopulismo o que, na origem, era autêntica vontade democrática.

Hoje os tempos são outros, menos eufóricos e mais amadurecidos. Podemos,então, na colheita dos primeiros resultados e das primeiras perplexidades, tentarcorrigir os rumos, procurando resgatar, no novo percurso, o já tantas vezes adiadoprojeto de democratização e qualificação da educação brasileira.

Nesse sentido, e com esses objetivos, o primeiro passo é a inserção histórica dasquestões educacionais, inclusive da que subjaz ao título desse texto: o que a histórianos mostra a respeito do papel da literatura infantojuvenil na formação do professor?Qual é a história da formação do professor e da literatura infantojuvenil na tradiçãoeducacional brasileira? Em que ponto tais histórias se cruzam?4

Como a epígrafe que traz para este texto olhares que encaram maliciosamente asnormalistas, são muitos os textos que contribuem para o conhecimento da práticaeducacional brasileira mais antiga. Menos ou mais desencontrados do nosso aqui eagora — muitos desses textos são inacreditavelmente atuais e podem conferirespessura histórica ao modo de ser da prática educacional brasileira quevivenciamos hoje.

O primeiro desses documentos vem de 1835 e compara a política educacionalbrasileira com a dos países vizinhos da América:

Os brasileiros começaram por onde deviam acabar; trataram das ciências maiores, sem cuidar dainstrução primária. Bolívar, pelo contrário, antes de reformar as universidades (...) convidou aocélebre José Lancaster para (...) estabelecer (...) uma escola normal, e divulgar o seu método deensino mútuo, fazendo-lhe presente de 20 mil pesos (24 contos de réis) do seu próprio pecúliopara gastos de viagem, e oferecendo-lhe um grande subsídio durante sua residência. (...)Deix(ou) um viveiro em toda a república, de muitos homens aptos a divulgar a instruçãoelementar (...)

Digamos agora o que se tem feito no Brasil a este respeito? Temos muitos advogados,muitíssimos cirurgiões, e muitos mais aspirantes a lugares na magistratura; e, sem embargo,todos os dias pedimos a Deus, nos livre que a nossa honra, a nossa vida, a nossa fazenda,passem por semelhantes mãos.

A classe mais útil, a classe mais interessante, aquela que constitui o Estado, jaz toda na maiscompleta ignorância; queremos cadeiras e mais cadeiras, cursos e mais cursos, prebendas e maisprebendas, e não temos uma escola normal (...)5

Trinta anos depois (1863-64), outro documento sublinha o descaso pelo ensino dalíngua materna e da leitura e registra a baixa remuneração do magistério:

Um pai ao levar seu filho ao colégio recomenda que não se gaste tempo com o estudo de

Page 18: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Português que todos sabem; que estude o Francês e o Latim; porque lhe disseram que agramática portuguesa estuda-se na latina. (...) O menino escreverá em português, sim; mas noportuguês que aprendeu com sua ama; concordará o verbo do singular com o sujeito do plural,e cometerá os maiores disparates. (...) Como exigir que o país se honre com larga cópia debrilhantes escritores se a matéria-prima de toda arte de escrever, o pátrio idioma, lhes foi negadapela própria sociedade que injustamente lhes reclama o fruto de uma semente que ela nãolançou à terra? (...) Exija-se, pois, o estudo da Língua Portuguesa, familiarizem-se os alunoscom o correto dizer dos que bem falaram e escreveram a língua e teremos removido umagrande dificuldade.6

(...) quais são os homens que entre nós se ocupam do magistério? Ou antes; é este entre nósuma profissão? Não! Nenhum homem que dispõe de um certo cabedal de conhecimento deixaocupações muitíssimo mais vantajosas para se dar a uma vida inglória e penosa, a umsacerdócio todo de abnegação, como o magistério.7

Outro texto, prefácio de um livro escolar editado em 1870, endossa as críticas aoensino da leitura e da língua materna, sublinhando a inexistência de materialdidático adequado:

(...) a maior parte dos meninos aprendem a ler sem livros, servindo-se principalmente naslocalidades centrais ou pouco consideráveis, das cartilhas do Pe. Inácio, de bilhetes e cartas (àsvezes, oh Deus! com que letra e ortografia!) ou de gazetas que seus pais lhes fornecem, ou develhos autos, pelo comum indecifráveis, que os próprios mestres alcançam dos tabeliães dolugar!

E não é por al [sic] que os nossos meninos, geralmente falando, saem das escolas aos 13 e 14anos de idade no mais lastimoso estado de ignorância, sem o hábito de pensarem, e sem ligaremo mínimo valor ao que leem.8

Vem de 1878-79 e de além-mar um último testemunho aqui convocado: ofragmento de uma carta, na qual o autor de uma cartilha portuguesa sugere que aadoção de sua obra poderia solucionar os problemas educacionais brasileiros (!):

Eu tenho um Método como sabes, que na edição para o Brasil dedico ao chefe desse estado. Jáesta circunstância pedia da parte de teus compatriotas alguma atenção comigo. Ora a issoacresce a singular reputação do Método e sendo tu o que és na repartição da Instrução Públicadessa província e meu amigo, devias-te lembrar de mim e de ti e desse público a quem talMétodo tanto podia utilizar. Faz tu o que eu faria no teu lugar e já te indiquei. Envia a umhomem de letras ou reconhecidamente competente a tomar conhecimento deste processo deensino, que as despesas bem cabem nas forças da província, e depois verás que todosabençoarão a despesa e a missão (...)

Fazes um bom serviço público. Dói-te destas crianças atormentadas pela ignorância (...) epelo caminho onde levaram a ti e a mim na leitura e na escrita, o mestre é um demônio que nosinspira horror e a escola um verdadeiro inferno. Daí também os milhões de analfabetos que láhá de haver, como ainda cá. De modo que o amor dos homens e o amor do progresso teconvida a este empenho, e estou que em tu querendo, facilmente conseguirás a resolução detodos.9

Page 19: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

A viagem por esses textos mais antigos sugere que não estamos sozinhos, e nemsomos poucos; ao contrário: os educadores que nos falam pelos textos transcritoscontam que somos herdeiros de uma tradição educacional pobre e improvisada, aqual precisa ser o contexto de qualquer avaliação do que se tem feito ou dito atéagora. Estabelecido esse chão histórico para a questão mais ampla da formação doprofessor, é tempo de se levantarem hipóteses que, na forma antipática de pré-requisitos, podem mapear o terreno, sugerindo algumas práticas, valores e conteúdosessenciais à formação do professor.

O professor de Português deve dispor de uma noção ampla de linguagem, queinclua seus aspectos sociais, psicológicos, biológicos, antropológicos e políticos. Eledeve ser usuário competente da modalidade culta da Língua Portuguesa. Deve, nessesentido, ser uma espécie de poliglota: precisa dominar competentemente váriasmodalidades de linguagem de forma que, se disser nóis vai e se escrever paçarinho,irá fazê-lo por opção consciente e não por desconhecimento de outras opções.

O professor de Português deve estar familiarizado com uma leitura bastanteextensa de literatura, particularmente da brasileira, da portuguesa e da africana deexpressão portuguesa. Frequentador assíduo dos clássicos, sua opção peloscontemporâneos, pelas crônicas curtas ou pelos textos infantis deve ser, quando for ocaso, mera preferência. Em outras palavras: o professor de Português pode nãogostar de Camões nem de Machado de Assis. Mas precisa conhecê-los, entendê-los eser capaz de explicá-los.

O professor de Português deve estar familiarizado com a história do ensino daLíngua Portuguesa no Brasil, com a história da alfabetização, da leitura e daliteratura na escola brasileira. Pois só assim poderá perceber-se num processo quenão começa nem se encerra nele, e poderá, no mesmo gesto, tanto dar sentido aosesforços dos educadores que o precederam, como ainda sinalizar o caminho dos queo sucederão.

No que respeita especificamente à literatura infantojuvenil, não parece que suainclusão como disciplina no currículo de formação de professores de qualquer grauseja, isoladamente, uma solução: não há varinhas de condão, muito embora,recentemente, a literatura infantil (talvez por falar tanto de fadas...) pareça quereratribuir-se a função de resolver os problemas de leitura da escola brasileira.

No entanto, embora sua inclusão como disciplina no currículo que formaprofessores de primeiro grau e no de Letras que forma os professores dessesprofessores, não vá, por si só, produzir efeitos miraculosos, é importante: no dia adia do currículo, iniciará o professor no estudo específico de um ramo da produçãocultural que frequenta assiduamente suas classes.

Mas para que a inclusão da literatura infantojuvenil em currículos escolares

Page 20: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

cumpra eficientemente tal papel, outras providências se fazem igualmentenecessárias.

É essencial, por exemplo, compreender que a literatura infantojuvenil é umproduto tardio da pedagogia escolar: que ela não existiu desde sempre, que, aocontrário, só se tornou possível e necessária (e teve, portanto, condições de emergircomo gênero) no momento em que a sociedade (através da escola) necessitou delapara burilar e fazer cintilar, nas dobras da persuasão retórica e no cristal dassonoridades poéticas, as lições de moral e bons costumes que, pelas mãos dePerrault, as crianças do mundo moderno começaram a aprender.

É também fundamental que se entenda que a noção de criança altera-se com otempo: que a criança da qual falava Rousseau não é a mesma para a qual escreviaPerrault; e que esta, por sua vez, não é a criança para a qual Edmond de Amicisescreveu Cuore; a qual, a seu turno, é diferente do pimpolho para o qual Collodiescreveu Pinocchio, e assim indefinidamente, como na 'Quadrilha' de Drummond,em que João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que etc., etc.,etc., no rodopio sem fim das cirandas.

Traduzindo a historicidade dessa noção de criança para o panorama da infânciabrasileira e dos livros a ela destinados, cumpre ao professor de Língua Portuguesaentender que a criança em quem Jansen pensava ao traduzir clássicos infantis para aeditora Laemmert era diferente da criança para a qual Olavo Bilac compôs suasPoesias infantis; esta, por sua vez, não se confundia com a criança para a qualMonteiro Lobato criou o Sítio do Picapau Amarelo, e nenhuma delas, com a criançapara a qual Francisco Marins escreveu a saga de Taquara-Poca, a qual também nãose confunde com a criança que lê e se identifica com 0 gênio do crime, de JoãoCarlos Marinho.

Assumir essa noção de infância como construção histórica sempre retomadaimplica perceber que a noção de criança que assumem os educadores de cada épocatem tanto ou nada a ver com pimpolhos de carne e osso quanto os raios de sol têm aver com as formulações dos físicos sobre a luz: importa que ambas as noções — nocaso, de criança e de luz —funcionem, isto é, produzam os resultados esperadosquando transformadas em premissas. Como funcionaram, cada uma a seu tempo, asimagens de criança que a literatura infantil brasileira assumiu e pôs em circulaçãoao longo de sua constituição enquanto modalidade cultural.

Assim inscritas na história, as formulações apressadas que fazem das criançasanjos ou demônios começam a mostrar os materiais e andaimes de sua construção,entre os quais destacam-se disciplinas como a Pedagogia, a Psicologia, a Biologia eoutras senhoras. E, se é verdade que o educador não precisa assumir integralmentenenhuma dessas noções, precisa conhecê-las todas para posicionar-se frente a elas,

Page 21: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

discuti-las sempre, de forma a poder reconhecer quando uma ou outra se manifestanas entrelinhas de propostas de alfabetização ou de projetos de leitura que lhe sãooferecidos no meio de acervos de literatura infantil ou cursos de reciclagem.

Historizada a criança — leitora virtual da literatura infantil —, falta aindahistorizar o jovem — leitor virtual da chamada literatura juvenil. Ao conceito dejovem cabem as mesmas considerações feitas em torno da noção de criança e maisalgumas. Por exemplo: o que separa a literatura infantil da juvenil?

De novo, a resposta aponta para construções.Tanto a criança à qual se destina a literatura infantil é uma construção, quanto o

jovem ao qual se destina a literatura juvenil é outra construção, ambas sociais. E, nacondição de satélites de construções sociais, tanto o infantil de uma quanto o juvenilde outra são conceitos instáveis: o que é literatura infantil, em determinadocontexto, pode ser juvenil em outro e vice-versa.

São essas, parece, as premissas a partir das quais se pode discutir o papel daliteratura infantil e juvenil na construção de um currículo para a formação deprofessores. Discussão sempre recomeçada, dado que leitura, literatura, educação eeducadores são expressões que recobrem conceitos e noções assustadoramenteprovisórios. De cuja provisoriedade, aliás, se constrói sua estabilidade, sua natureza,sua maneira de ser, que é o que se discute quando se discute currículo, e aimportância, dentro dele, de uma ou de outra disciplina.

1 Versão anterior deste texto foi apresentada no Encontro para Professores do Curso de Habilitação Específicade 2.º Grau para o Magistério, organizado pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação, voltadopara o tema O desafio da leitura e a contribuição da literatura infantil. Posteriormente, e com o título 'Aformação do professor e a literatura infantojuvenil', foi publicado no caderno Ideias, 5 — Leitura: caminhosda aprendizagem, São Paulo, FDE, 1988. p. 29-34.

2 CAMINHA, Adolfo. A normalista. São Paulo, Ática, 1985. p. 55-6.3 Relativamente a tais expectativas, ver SOARES, Magda B. 'As condições sociais da leitura: uma reflexão em

contraponto'. In: ZILBERMAN, R. & SLLVA, E. Theodoro da, orgs. Leitura: perspectivas interdisciplinares.São Paulo, Ática, 1988.

4 Cf. LAJOLO, M. & ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita. São Paulo, Brasiliense, 1991; idem. Literatura infantilbrasileira: história e histórias. São Paulo, Ática, 1991; BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti.Mulheres de ontem? (Rio de Janeiro-Séc. XIX). São Paulo, T. A. Queiroz, 1988; DIETZSCH, Mary Julia M.'Cartilhas, a negação do leitor'. In: MARTINS, Maria Helena, org. Questões de linguagem. São Paulo,Contexto, 1991.

5 ABREU E LIMA. Bosquejo histórico, político e literário do Brasil ou análise crítica do projeto do Dr. A. F.França. Niterói, 1835. p. 72.

6 FRASÃO, Manuel José Pereira. Cartas do professor da roça. Rio de Janeiro, Typ. Paula Brito, 1863-64. p.17-9.

7 Idem, ibidem, p. 22.8 BORGES, Abílio César. Terceiro livro de leitura para uso da infância brasileira. Bruxelas, 1870.9 DEUS, João de.

Page 22: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

II1

Sois da Pátria esperança fagueiraBranca nuvem de um róseo porvirDo futuro levais a bandeiraHasteada na frente a sorrir.

Mocidade, eia avante, eia avanteQue o Brasil sobre vós ergue a féEsse imenso colosso giganteTrabalhai por erguê-lo de pé.2

O jovem, leitor virtual da literatura juvenil, bem como a criança, leitora virtualda literatura infantil, são construções da história. Em face dessa historicidade, nãotem sentido atribuir-se universalidade/objetividade/imanência a tais categorias.

Não foi sempre que tais categorias existiram, muito embora as pessoas tenhamsempre tido sete, dez e quinze anos. O reconhecimento de diferentes fases ao longoda vida e a distribuição das populações por tais faixas é, de um lado, fruto doprogressivo estudo do comportamento; responde, por outro, pelo agrupamento depessoas em torno de certas características comuns que, coletivizando-lhes aidentidade, aloja-as num lugar social mais seguro.

E possível, por exemplo, reconhecer o processo pelo qual se inventou a infânciacomo categoria social, usando de suas diferenças biofisiopsicológicas para atribuir,ao ente assim construído, modos de ser mais compatíveis com aquilo que asociedade estava preparada para oferecerlhe e, ao mesmo tempo, esperava dele.Entre os novos papéis que ajudaram a atribuir identidade à infância, destaca-se o deaprendiz, isto é, o de indivíduo que, com seus coetâneos, reunidos coletivamente emespaços sociais denominados escolas, desenvolveria aprendizagem maisindiferenciada do que aquela que adquiria com os antigos mestres ou com a família.3

Se a “construção” da infância ocorreu ainda no século XVIII — contemporânea daRevolução Industrial —, com o passar do tempo, outras segmentações se foramtornando necessárias no interior desse primeiro grande segmento dos não adultos.

A construção da imagem do jovem ou do adolescente parece ter sido o passoseguinte, prosseguindo a segmentação com especificações à esquerda e à direita,dando concretude e visibilidade tanto a faixas etárias anteriores à idade escolar,quanto seccionando os anos finais da adolescência em novas categorias esubcategorias. O resultado é uma visão cada vez mais nítida dos indivíduos e dossegmentos populacionais que, recobertos por tais categorias, tornam-se maisconhecidos e, consequentemente, mais acessíveis, controláveis, manipuláveis.

Page 23: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Considerar infância, adolescência ou juventude como construções sociais nãosignifica, entretanto, que tais construções não tenham sustentação objetiva: se não ativessem, não teriam credibilidade, não seriam convincentes e, portanto, nãofuncionariam, pois não sustentariam o delicado movimento de interiorização peloqual tais categorias reforçam (determinam, deflagram?) comportamentos, atitudes,sentimentos, etecétera.

É principalmente nesse etecétera que atua a literatura. Em movimento de ajustessutis e constantes, a literatura tanto gera comportamentos, sentimentos e atitudes,quanto, prevendo-os, dirige-os, reforça-os, matiza-os, atenua-os; pode revertê-los,alterá-los. É, pois, por atuar na construção, difusão e alteração de sensibilidades, derepresentações e do imaginário coletivo, que a literatura torna-se fator importante naimagem que socialmente circula, por exemplo, de criança e de jovem.

E possível considerar, por exemplo, que a literatura infantil mais antiga eraconservadora, porque inculcava comportamentos e atitudes de passividade nascrianças, preconizava obediência aos pais e submissão aos mestres. Mas a partir detais considerações sugerir que tal literatura seja perniciosa porque a criança não é,por natureza, nem passiva, nem obediente, nem submissa, é erro grave, pois supõeque as crianças sejam por natureza alguma coisa. O engano é o mesmo que ocorreem similares formulações relativas à “natureza” das mulheres, negros e índios,enfim dos outros das definições binárias e simplistas. Pois ninguém, nem nada, vaimuito além de sua circunstância.

Mas, criada a criança, eis que ela se transforma em jovem.Não foi muito antes dos anos cinquenta que chegou ao Brasil a ideia de que a

juventude (adolescência) constitui faixa etária determinada, com comportamentos,hábitos, sentimentos e problemas específicos, distintos dos problemas, hábitos,sentimentos e comportamentos de criança e de adulto. A argamassa mais visível acimentar tal identidade foram os hábitos de consumo que, com a cultura de massados anos cinquenta, aqui desembarcaram essa noção de juventude.

Nessa época o país trocava móveis pesados e escuros pelo compensado, pelo pépalito, pelas madeiras claras, pelos plásticos e vidros coloridos, enfim, por objetosque substituíam a aura de durabilidade dos antigos bens pela modernidade frágil dosnovos tempos, e chegava à televisão. Multiplicavam -se os carros.Eletrodomesticadas, as mulheres já usavam calças compridas e suéteres com muitomais desenvoltura. Nesse contexto, começa a distinguir-se a criança do jovem, paracuja distinção não bastam os decímetros a mais de altura e de busto, nem osprimeiros fios de barba e tampouco as primeiras derrapadas da voz que engrossa.

É preciso, mais do que isso, um imaginário comum, composto decomportamentos, sentimentos, utopias e rebeldias. Os primeiros modelos de tais

Page 24: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

comportamentos vêm da Hollywood que então exportava o American way of life querecebiamos eufóricos, junto com os primeiros long-plays para as vitrolas que sechamavam hi-fis. No mesmo pacote, vinham também do irmão do Norte modelos derebeldia, a partir daí consentida e aceita como marca jovem. James Dean e ÉlvisPresley são a juventude sadiamente transviada, que o balanço das horas de BillHalley e seus Cometas inaugura como marca de juventude.

Por esse tempo, as categorias dos que lidavam com a segmentação dos menoresem diferentes faixas etárias eram muito menos sofisticadas do que as que hojeorquestramos. Mas nem por serem mais rudimentares as daquele tempo, e nem porse respaldarem as nossas nos prometidos rigores da Psicologia, Pedagogia eBiologia, uma ou outra são menos ou mais eficientes. Cumprem todas a função paraa qual existem: traçar, consolidar, matizar e redefinir o roteiro pelo qual se pauta aconstrução do imaginário dos valores, dos comportamentos, dos sentimentos eatitudes que definem esta ou aquela faixa etária.

Naqueles idos, a inclusão de um livro na lista dos recomendados para esta ouaquela faixa etária ocorria a posteriori: a faixa etária era obtida a partir da média deidade dos consulentes de bibliotecas, cujas fichas indicavam terem lido e apreciadodeterminado livro.

Se é verdade que na época havia menos livros, estes eram, sob todos os pontos devista, menos descartáveis do que hoje; sendo a previsão de comportamentos eexpectativas fundamental na produção industrial de mercadorias — que é o modocontemporâneo de produção da literatura infantil e juvenil —, de novo o que se vê éa adequação de ambos os processos a cada um de seus momentos. Daspioneiríssimas atividades de Lenira Fraccarolli à frente das bibliotecas infantispaulistanas4, ao catálogo de publicações infantis e juvenis de uma editoracontemporânea de sucesso, o percurso que se contempla é o modo de produção doslivros infantis e juvenis. É o trânsito de um modo capitalista incipiente para um maisdesenvolvido.

É na esteira dessa especialização progressiva de mercadorias e de mercados queadquire nitidez maior a noção de literatura juvenil, e que se entende a dimensãosobretudo mercadológica dos livros voltados para jovens: qual é a imagem de jovemem circulação nos meios que consomem literatura juvenil? Entre os espelhos querefletem essa imagem, destacam-se os catálogos das editoras, as bibliografias, asresenhas, capas, orelhas e similares.

Um bom catálogo vai muito além de divulgar os títulos que elenca: além deenvolver, maquiar e marcar o produto que anuncia, o catálogo acaba construindouma das imagens pela qual seu produto fica conhecido. Ou seja, no caso dos livros,as informações que o catálogo fornece a respeito das obras que nele constam

Page 25: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

transformam-se, quando o usuário do catálogo transforma-se em leitor do livro, nascategorias que prioritariamente o leitor procurará e (com grande chance) encontraráno livro.

Por isso, as coloridas e geralmente bem diagramadas páginas de um catálogo sãodocumento muito importante para o estudo de livros, ensinando, no caso dos livrosjuvenis, que juvenil é o texto que consta de catálogos de editoras voltados para oinventário da produção “juvenil” daquela editora. Ou seja, com o mesmo direito queMário de Andrade usou para dizer “conto é tudo aquilo que autor achar que é conto”,pode-se dizer que juvenil é toda obra que assim for considerada pelo seu editor.

A complexidade crescente da indústria editorial moderna exige compatibilizaçãode demanda e produção, orientando uma pela outra, criando uma em função da outra,reforçando uma e otimizando outra: são essas providências que garantem asobrevivência no mercado. Assim, um livro que aspira ao circuito escolar écircundado — no catálogo que deve promovê-lo junto aos professores — de umconjunto de informações que só constam no catálogo por corresponderem à imagemque os editores fazem do que é e do que não é relevante para o professor que adotaráo livro. Vê-se isso, por exemplo, no catálogo de literatura juvenil da editoraModerna, que informa:

Nesse catálogo, os livros estão apresentados com um resumo elucidativo quanto ao conteúdo,indicação das séries a partir das quais o livro pode ser lido, faixa de idade a partir da qual olivro pode ser bem compreendido e apresentação dos principais temas que o texto aborda.5

No mesmo sentido, um catálogo da editora Melhoramentos é também bastanteexplícito relativamente às funções que pretende cumprir; define-se como:

(...) instrumento prático para orientar e informar a todos aqueles que lidam com o livro enecessitam adequá-lo às faixas interessadas e ao nível de leitura de seu público. Para atingirmoseste objetivo, e facilitar o manuseio, organizamos várias secções: Literatura Infantil, Atividades,Didática e Paradidáticos.6

Assim, em grande número de catálogos manifesta-se invejável (ainda quediscutível) nitidez de fronteiras entre diferentes gêneros no interior do conjunto demodalidades que circulam pelo espaço escolar: a compartimentalização acabasacramentando as subdivisões que propõe, e acaba transformando-se em categoriasde leitura para os usuários do dito catálogo, ou seja, diferentes profissionais daleitura.

Na medida, entretanto, em que no catálogo de obras juvenis pode repetir-se afolha de abertura do catálogo de infantis da mesma editora, fica sugerido que ospercursos da literatura infantil e da juvenil — pelo menos até certo ponto —

Page 26: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

superpõem-se. E superpõem-se exatamente no caminho de seus intermediários, quaissejam, professores, pedagogos e bibliotecários, que estão na encruzilhada na qualcrianças e jovens transformam-se em alunos, e leitores transformam-se emconsumidores compulsórios.

Os efeitos de generalização que, nesse percurso, sofre a categoria leitores parecemdispensar comentários: sua distribuição ao longo de determinados segmentos sugereque a escola é o grande entreposto dessa mercadoria e que seu imposto é aescolarização do leitor, o que gera escolarização da leitura e do texto. E, porcontágio, escolarização da noção de jovem.7

Mas a aprendizagem que os catálogos patrocinam vai ainda além. Observa-se, porexemplo, que os livros só em casos raros são anunciados individualmente.Agrupados em séries e coleções, unificados em último caso pela faixa deescolaridade a que se destinam, os pacotes são emblema da necessáriaracionalização do processo de produção. A qualidade de um título responde pelaqualidade dos outros; a relevância de um tema contagia o tema dos outros livros; ointeresse por um texto pode deflagrar o interesse por outros. Em termos deinvestimentos, tais medidas delineiam um movimento de otimização: de chocolatesa automóveis — passando pelo livro — a produção em série é a marca da produçãoindustrializada.

Muitas vezes, no entanto, o elemento unificador de uma série, em relação àsdemais, é mais sofisticado do que o mero agrupamento de títulos aconselhados paraesta ou aquela faixa de escolaridade. Em alguns casos, a unificação de títulos emséries faz-se em torno e a pretexto de uma particularidade que, à falta de melhortermo, poderíamos chamar de estrutural, como ocorre, por exemplo, com a sérieAlternativa, apresentada pelo catálogo juvenil da editora Melhoramentos:

A Série Alternativa parte para uma nova ideia em literatura: criar uma situação que permite aoleitor participar ativamente do desfecho da história. Os livros da série, especialmente escritospor autores consagrados da literatura juvenil, têm como principal característica oferecer a opçãoentre dois finais e ainda convidar o leitor a propor um terceiro, escrevendo ele mesmo odesfecho ou apresentando soluções segundo suas próprias emoções despertadas pelo queacabou de ler.8

Algumas das expressões constantes do texto acima, a partir do título da coleção,repercutem positivamente, frisando o caráter inovador da coleção, que parecegravitar na órbita de formulações de Teoria Literária contemporâneas: da polifoniade Bakhtin à obra aberta de Umberto Eco, quem estiver familiarizado comdiscussões acadêmicas sobre arredores do texto literário encontrará, no texto comque o catálogo anuncia a coleção, semelhanças e parentescos. Reconhecerá um certo

Page 27: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

ar de família, parentesco distante, é verdade; talvez filhos ilegítimos... mas parentes.Mas o parentesco não elide as diferenças. Pois polifonia explícita e abertura

frontal acabam configurando ingerência autoritária (primeiro via série, depois viaprofessor e, finalmente, via texto) no que era solidão de leitura; obrigatoriedade depluralismo no que era liberdade do leitor.

O texto é ainda pródigo em expressões que apontam não só para a modernidade daexperiência, mas também para o respeito aos leitores: afinal, o texto que apresenta asérie Alternativa sugere participação ativa, oferecendo opções de leitura einstigando o leitor a escrever ele mesmo o desfecho, numa aparente ruptura dahegemonia de quem escreve sobre quem lê.

Esta catadupa de modernidade apregoada proporciona ainda uma outra informaçãosubsidiária: a de que os textos que integram tal série são todos escritos por autoresconsagrados da literatura juvenil, o que garante a margem de segurança necessária àexperimentação, avalizando, por tabela, a existência do gênero literatura juvenil: tãoconsistente que tem até autores consagrados.

São, assim, múltiplas e insubstituíveis as lições dos catálogos. Estudá-los ediscuti-los não conduz, evidentemente, a terçar armas com a indústria editorial.Trata-se, sim e urgentemente, de entendê-la e de aprender a lidar com ela, entreoutras razões porque ela é já agora necessária. Esfinge de nossos dias, ela nosespreita em cada uma das muitas dobras e dos muitos avessos dos generosos projetosque engendramos, em que nos envolvemos, que reivindicamos em prol da leitura edos livros. A indústria nos espreita e nos desafia, como a esfinge: “Ou me decifras,ou te devoro...”.

Pois é.Carecemos de pistas para a charada: para, decifrando-a, escaparmos, com o

máximo de decoro e de dignidade possíveis, do ritual de devoração que nos reservapapel de iguaria. Indigesta, mas digerível.

É preciso decifrar a esfinge. E só, então, antropofagicamente, devorá-la...

1 Com o título 'Expectativas em torno do texto literário infantil e juvenil', uma versão anterior deste textoconstituiu palestra no I Simpósio Estadual sobre Literatura Infantojuvenil, SP (Faculdade de Ciências eLetras Tereza Martin/ECA-USP/ Secretaria de Estado de Educação), em 1989, sendo no ano seguintepublicada nos anais do referido evento.

2 Canção escolar A mocidade acadêmica (Hino) — música de A. Carlos Gomes — letra de BittencourtSampaio.

3 A História social da criança e da família de Philippe Ariès é um dos textos que mapearam de formaconvincente a historicidade da infância.

4 Conferir a Revista do Arquivo Municipal, da prefeitura do município de São Paulo, de 1940.5 Catálogo da editora Moderna, 1989.6 Catálogo da editora Melhoramentos, 1989.

Page 28: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

7 Modos concretos do que se está aqui chamando de escolarização do texto são discutidos no ensaiohomônimo neste volume.

8 Catálogo da editora Melhoramentos, 1989.

Page 29: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

OS LEITORES, ESSES TEMÍVEISDESCONHECIDOS1

Se o autor real deve ser considerado como ambíguo emisterioso, perdido na história, parece igualmente verdade queo leitor real, perdido na história contemporânea, não é menosmisterioso nem — às vezes — irrelevante.2

É na posição do leitor que se encontram as credenciais mais fortes para quemquer discutir o perfil do indivíduo que, livro aberto nas mãos, no silêncio de sualeitura, pergunta ao escritor que não pode esquivar-se da resposta: trouxeste achave? Com ou sem chave, leitor e escritor são faces da mesma moeda, não obstanteas quedas de braço em que às vezes ambos se confrontam.

Quem quer que já tenha algum dia rabiscado maltraçadas, coloca-se no papel dealguém que tem de cativar seus leitores. Pois o leitor, como o freguês do botequim,parece que tem sempre razão...

Do aluno obrigado a escrever uma redação que lhe garanta nota mínima na prova,ao festejado autor de best-sellers milionários, o trazer ou não a chave é senha paracativar leitores: tanto o professor que encomenda a redação quanto o público quedeve consumir o romance, ambos precisam encontrar, no texto que leem, o que neleforam buscar: se encontram mais do que esperavam, melhor para eles; se encontrammenos, pior para o autor... que pode ter perdido, no desencanto do desencontro, seuprecioso leitor.

Da adequação ao tema à excitação das cenas eróticas, do suspense sobre quemmatou Roger Ackroyd à perfeição das crases e concordâncias, a frustração dasexpectativas do leitor tem preço alto: a indiferença do público e a nota baixa seequivalem como gesto soberano de o leitor dizer ao escriba: não, não trouxeste achave...

Assim sendo, leitores desfrutam de imenso poder, ainda que sejam extremamentevoláteis; mas, não obstante essa impalpabilidade, o autor precisa crer na existênciadesses evanescentes seres de óculos, e, mais ainda, crer que há vida inteligente pordetrás dos óculos... Não crer nesse impalpável ser supralinguístico faz os escritoresdefinharem e até morrerem. Eu, por exemplo, creio firmemente na existência de taisseres, ou seja, acredito que disponho de leitores, que os tenho de diferentes tipos, econfesso que prefiro os mais visíveis, aqueles que efetivamente leem o que escrevo.

A existência desses leitores de carne e osso manifesta-se de diferentes maneiras,sendo a mais concreta de todas expressa em cifrõe$ e cifrinha$: torna-se indiscutível

Page 30: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

a existência de leitores quando se sabe que cerca de 10 por cento do que eles pagamquando compram livros vão para os bolsos dos escritores. Magros bolsos! Cidadãossabidamente econômicos, os autores podem, com tal verba, no fim do ano, financiaruma pizza média para a família, brindando, no chope que a acompanha, a generosafidelidade dos leitores que financiam tão frugal repasto.

Benditos leitores!Tais leitores, que algum desafeto da laboriosa classe dos escritores poderia

reduzir à categoria de compradores/consumidores de livros, vão, às vezes, alémdessa existência grosseiramente econômica. Sobem na vida e ganham, por assimdizer, o estatuto de leitores mais íntimos: são aqueles que numa aula, numa palestraou numa carta abordam o escritor, perguntando, concordando, referindo, citando.Dizendo, em resumo, que leram.

Desses leitores-interlocutores de carne e osso, os que discordam são dignos domaior apreço. Os que reclamam, então, são os preferidos, muito embora não sejam,necessariamente, os pretendidos: escreve-se, afinal, para que se concorde com o quese escreve... Ao escrever — não importa se resenha de jornal, redação de escola,texto para congresso, capítulo para livro ou até mesmo uma prova para alunos —tem-se a intenção de convencer os leitores do que se diz, e da qualidade e daadequação do texto em que se diz o que se diz.

Com tal objetivo, o escritor faz a fineza e a justiça de expor aos leitores seusmelhores argumentos, tentando transformá-los, assim, em interlocutores ecomparsas, os quais, tanto mais se respeita, quanto mais se lhes dão piparotes,palmadas e piscadelas de olhos, ingredientes fundamentais do pacto que escritores eleitores celebram desde que o mundo passou a circular em folhas impressas,reunidas em livros vendidos em lojas especializadas.

No entanto, por mais que através de gracinhas ou graçonas o autor tente tornar-seíntimo de seus leitores, fazendo-os crer que compartilham de sua intimidade, talesforço talvez não apague nem atenue a distância que separa autores de leitores: oleitor é irmão, mas é hipócrita.

Mesmo quando um autor se lê, lê-se com olhos viciados, num ato de leitura quaseincestuoso: é de antemão conivente com o que disse escrevendo. É-lhe proscrito,como autor do texto que lê, o distanciamento, a surpresa, o diálogo. Como autor, é-lhe vedado o gesto que sela a suprema liberdade do leitor: fechar o livro. Comoautor, é-lhe vedado desligar o micro, empurrar a máquina, fechar a caneta,abandonar o lápis: tem de cumprir até o fim sua luta com as palavras, com a faltadelas, com o calor, com a música do vizinho e a televisão das crianças, com o prazodo editor e, finalmente, com o leitor que sempre o ameaça com suas prerrogativas deabandono definitivo do texto...

Page 31: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

No entanto, por mais que o narcisismo dos escribas possa comprazer-se emintermináveis considerações autogratificantes sobre eu & meus leitores (que podemnada mais ser do que projeções deles, escritores...), confio aos gentis leitores a tarefade se explicarem ou se demitirem, e no espaço que resta emigro para consideraçõesoutras, feitas agora do ponto de vista de leitora, particularmente do ponto de vista deleitora cativa e profissional de textos que tematizam leitura, literatura, livrosinfantis e juvenis, no contexto da escola brasileira de hoje.

Como leitora assídua de tais textos ocupo posição muito mais confortável: posso,como já disse, fechar o livro quando quiser. Mas posso, sobretudo, extrair dafragilidade aparente dessa posição de quem usualmente não tem acesso à palavra e,consequentemente, parece não ter direito à voz, a imensa força do silêncio e dasolidão.

Solidão e silêncio, no entanto, talvez só aparentes.Pois desconfio, e meus botões compartilham desta desconfiança, que os textos que

tematizam leitura no contexto escolar não têm leitores individuais, pois na condiçãode leitores profissionais somos só coletivo.

Ou, melhor dizendo, encostamos nossa solidão e nossa identidade na identidade ena solidão de milhares (centenas? milhões?) de criaturas que comigo e conoscointegram o segmento de público para o qual escrevem os que escrevem sobre taisassuntos.

Como membro de um hipotético clube de leitores profissionais, posto queanônimos, fica interessante conversar sobre seus estatutos, pressupostos eregulamentos, discutindo os direitos e os deveres dos associados e o regulamento daagremiação.

Todos nós, membros desse clube, somos leitores muito especiais. Nossoparentesco ultrapassa idiossincrasias como gostarmos de Machado de Assis e nãogostarmos de Sidney Sheldon. Aparentamo-nos pela força de nossos empregos, peloprestígio de nosso compromisso com textos e livros, pela aura da confiança eexpectativa que a comunidade deposita em nós no que tange à leitura. Dizendo deoutra forma, e temperando as palavras com dose generosa de otimismo: aparentamo-nos pela posição que ocupamos no sistema cultural, constituindo uma espécie decorporação de leitores oficiais, confraria que dispõe de autoridade (!) e razoávelpoder (!!) em assuntos de leitura e de linguagem.

Somos, em uma palavra, profissionais da leitura, esta polêmica senhora que nosreúne em tão concorridos saraus.

E, porque somos (ou, vá lá... gostamos de pensar que somos...) avalistas, arautos,

Page 32: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

mediadores e intermediários dos textos que almejam circular na escola e nos seusarredores, transformamo-nos em alvo dos que pretendem as mãos, os olhos e osbolsos das crianças e jovens já igualmente desindividualizados na categoria leitores-de-livros-infantis-ou-juvenis, que aguardam de nossas recomendações oficiais econversas oficiosas o sinal verde. Sinal que também aguardam crianças, jovens emestres de ambos para que, lendo tais livros, sagrem-se leitores...

Assim, atingir esse leitorado (público consumidor?) infantil ou juvenil que aescola se incumbe de arregimentar, reunir e homogeneizar em torno de umacategoria qualquer (pré-leitores ou pré-adolescentes, quinta série ou segundo grau)supõe, em primeira instância, atingir-nos a nós. A nós, a quem cabe a decisão sobreo que é melhor, mais adequado, mais desejável, mais indicado para este ou aquelecontingente de jovens, acidental e circunstancialmente sob nossa influência eresponsabilidade.

É essa responsabilidade que nos transforma, de leitores, em uma espécie deatravessadores, num mercado organizado em função de uma clientela que mantémrelações enviesadas com a mercadoria que compra: é para legitimar e avalizar talviés que precisamos ser seduzidos, não só pelo texto que indicamos para nossospupilos, mas pelo texto que, falando sobre ele-texto, apresenta-o, divulga-o,promove-o: em uma palavra, pelo texto que o vende, isto é, catálogos, livros doprofessor, apresentações de coleção e similares.

É, pois, fundamental que compreendamos o papel de leitor que tais textos nosreservam. E para tal compreensão precisamos contemplar, à luz clara do meio-dia, oretrato de nós mesmos que esses textos apresentam. Em outras palavras: a imagemcom que tais textos nos representam corre o risco de afivelar-se ao nosso rosto comomáscara, deixando nossa face na sombra.

E que imagem de leitor tais textos apresentam como nossa?Para responder à questão, tem-se de considerar que para seduzir o leitor há que

pôr-se em seu lugar, antecipando suas expectativas, suas reações. Ou seja: o escritorinteressado em seduzir o outro tem de construir hipóteses relativas ao leitor quedeseja seduzir.

Dentre tais hipóteses, algumas são mais importantes do que outras. E, dentre asmais importantes, salientam-se as que respondem a questões que quem almeja asedução tem de responder-se: 1) que imagem este(a) outro(a) tem de si mesmo(a)?2) que imagem este(a) outro(a) gostaria que eu tivesse dele(a)?

Enquanto como leitores a história nos reserva o papel de seduzidos(as) e não desedutores, como detetives de um bom livro policial vamos em busca, não já docriminoso, mas da vítima: nós mesmos, professores e educadores envolvidos com aleitura — na imagem que de nós traça o material didático e paradidático que

Page 33: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

pretende, com nosso apoio e aval, chegar aos consumidores escolares.Mas é difícil que nos reconheçamos como vítimas; por que desconfiaríamos de

uma fotografia que nos representa como professores modernos, sinceramenteempenhados em motivar a leitura dos jovens, levemente desconfiados do papel dosclássicos em tal empresa, profundamente insatisfeitos com o autoritarismo deavaliações sistemáticas e rigorosas de atividades de leitura, comprometidos com oprazer (e não com o dever) da leitura, informados e convencidos da importância daimaginação e da fantasia na formação do jovem e, sobretudo, honestamentecomprometidos com um projeto de educação que conduz à leitura crítica domundo...?

Por que desconfiaríamos de tão belo retrato?Sorrimos de beatitude na contemplação de tão simpático retrato: somos nós

mesmos, tão mal pagos, tão despreparados, tão assoberbados de aulas?Reconhecemo-nos nessa eficientíssima, moderna e simpática figura?

Sim e não. Somos e não somos.Para dialetizar esse hamletiano ser e não ser, suspenda-se por instantes a

gratificante contemplação desse nosso generosíssimo retrato e pergunte-se (ou,sobretudo, responda-se...) quem o tirou, de que ponto de vista, com que tipo demáquina, com que finalidade e para que álbum...

Se as respostas a tais questões podem congelar um pouco o sorriso que brota dacontemplação da foto, elas também fazem aceitar com naturalidade as eventuaisrugas e cabelos brancos que o retrato, por ser retocado, acabou omitindo.

Pois o retrato acima apresentado é a nossa imagem tal como ela nos é apresentadapor quem nos vende os livros que devemos vender aos alunos. Vendas, já se vê,muito pouco metafóricas: certamente, a partir de um ponto qualquer, transformamem consumidores pagantes aqueles leitores tão inofensivamente virtuais de quefalamos, quando, academicamente, falamos de leitores.

Mas tal imagem lisonjeira — um pouco inverídica porque muito retocada —certamente se constrói com material cunhado em situações nas quais diferentesescalões de profissionais de leitura constroem e afinam a linguagem com a qual,falando de leitura, falam de si mesmos, construindo sua identidade de leitores-profissionais. E, se muitas vezes nessa linguagem figura com destaque uma retóricasalvacionista e apocalíptica, é nela que se encontram os elementos que,ideologicamente rearranjados, transformam livros, leituras e leitores emmercadorias como qualquer outra: tão mercadoria que cumpre vendê-la e comprá-la.

É exatamente para que a vendamos com eficiência que — comissãoantecipadamente paga! — nosso retrato é traçado de forma tão lisonjeira,

Page 34: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

apresentado como feição do rosto o que é perfil desejado do produto, fixando comoexpressão dos olhos o que é rótulo de embalagem. E, evidentemente, contagiando oproduto com a qualidade do agente de vendas, ofuscado e emudecido pela surpresade ver-se retratado em cores e formas tão favoráveis.

Catálogos de editoras, quartas capas e contracapas de coleções infantis e juvenis,orelhas e apresentações de livros didáticos e paradidáticos são as galerias de ondenos contemplam esses incríveis retratos de nós mesmos.

Que, se são sedutores — e é inevitável que o sejam —, não precisam, pela forçada sedução que exercem, fechar-nos os olhos para eventuais discrepâncias entre oretrato e seu modelo. Ou seja: há que indagar-se, face a cada material que recebemospara eventual adoção: Eu sou esse mesmo que está ai representado? Se eu sou assimtão bom, criativo, responsável, competente e interessado, é necessário que este livrovenha me dizer isso? Este material que me declara interessado, competente,responsável, criativo... é o material que um educador com tais predicados elegeriapara trabalhar?

É claro que não se descarta a hipótese de que a resposta a todas essas questões sejaafirmativa e que, no solitário diálogo com nossos botões, nos consideremoscompetentes, reconheçamos em uma ou outra peça publicitária o direito deproclamar essa nossa competência e, mais ainda, que achemos este ou aquele livromuito bom e que o transformemos em instrumento de nossa proclamadacompetência.

Em princípio tudo isso é possível.E deve, mesmo, ser verdadeiro em certos casos. Mas não sempre nem em todos os

casos.E é essa dúvida que torna oportuno que, em regra geral, como leitores, tenhamos

uma saudável desconfiança face a qualquer máscara de leitor, assim ou assado, quenos queiram impingir. E que, na esteira de Cecília Meireles, a contemplação noespelho que nos põem na mão seja solitária, forma única de buscar resposta menosprovisória à pergunta fundamental: em que espelho ficou perdida a minha face?

1 Este texto foi originalmente apresentado na mesa-redonda “De leitor para leitores: a produção do que se lê”durante o 7 Congresso de Leitura do Brasil, realizado em Campinas em 1989, e posteriormente publicadocom o título 'De autores e leitores, em forma de fantasma ou não’ nos anais do referido congresso.

2 GIBSON, Walter. 'Authors, speakers and mock readers'. In: TOMPKINS, Jane, org. Reader — responsecriticism. Baltimore & London, The John Hopkins University Press, 1980.

Page 35: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

POESIA: UMA FRAGILVÍTIMA DA ESCOLA1

Para a criança, como para oadulto, a eternidade é um sonhoinconfessado mas vigilante.2

Parecem antigas as desavenças entre poetas e o uso que a escola costuma fazerda poesia. São desavenças tão antigas que, em 1904, na apresentação de suas Poesiasinfantis, Olavo Bilac já alude à precariedade dos textos poéticos de que dispunha ainfância de seu tempo. Falando dos medos que o assaltavam a propósito de seu livro,frisa o receio de que o seu fosse um:

(...) livro ingênuo demais, ou, o que seria pior, um livro como tantos há por aí, falso, cheio dehistórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças, fazendo-as ter medode coisas que não existem (...) Em certos livros de leitura que todos conhecemos, os autores,querendo evitar o apuro do estilo, fazem períodos sem sintaxe e versos sem metrificação. Umapoesia infantil conheço eu, longa, que não tem um só verso certo!3

Na década seguinte, o editor de Alma infantil, de Francisca Júlia e Júlio da Silva,faz diagnóstico semelhante ao do poeta:

(...) as nossas escolas do estado estão invadidas de livros medíocres. A maior parte deles sãoescritos em linguagem incorreta onde, por vezes, ressalta o calão popular e o termo chulo. Esseslivros, pois, em vez de educar as crianças, guiando-lhes o gosto pelas coisas belas e elevadas,viciam-nas desde cedo, familiarizando-as com as formas dialetais mais plebeias.

Verdade é que poucos de nossos escritores didáticos, pouquíssimos mesmo, têm, fora destaespecialidade, uma sólida reputação nas letras.4

Mais tarde um pouco, a voz acatada de Alceu Amoroso Lima constata a baixaqualidade dos versos infantis, apontando também o anacronismo estético da poesiadestinada à infância:

Não será novidade nenhuma dizer que é excessivamente escassa a nossa poesia infantil. Todosos professores se queixam disso. E basta percorrer um pouco a nossa paupérrima literatura decrianças para nos convencermos de que, no gênero, o que há é pouco e raramente bom. (...) épreciso dizer desde logo que toda a poesia dos nossos mais recentes livros escolares, bem comoo gosto poético da maioria de professores, inspetores e (...) autores ainda não saiu doParnasianismo. Têm um atraso de vinte ou trinta anos em relação às correntes de poesia recentee hoje dominantes.5

Page 36: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

As citações acima revelam unanimidade de julgamento de três instâncias dainstituição literária: o escritor, o editor e o crítico. Contemplando o panorama daliteratura infantil brasileira, nos arredores de seu início, dispensam-lhe todos omesmo veredito implacável.

Ao longo do tempo que nos separa da publicação dos versos bilaquianos, opanorama da poesia infantil brasileira parece ter sofrido consideráveis alterações.6Tais alterações, no entanto, parecem não ter sido suficientes para invalidar osdesencontros e entreveros que marcam o relacionamento literatura e escola e emparticular o relacionamento poesia e escola ao tempo dos depoimentos acimatranscritos.

Sendo ainda hoje pobre o repertório disponível para a seleção dos textos queintegram os livros escolares, não é de estranhar que seja atribuída à baixa qualidadedesses textos parcela grande da responsabilidade pelo perfil duplo da tão debatidacrise de leitura: ela é, ao mesmo tempo, quantitativa (é pequeno o número de livrosque circula entre os estudantes) e qualitativa (o modo de leitura que a escolapatrocina parece inadequado).

Postulado o desencontro entre, de um lado, as expectativas qualitativas equantitativas que alimentam educadores em relação à leitura dos jovens e, de outro,a prática de leitura em vigor nas escolas, fortalece-se a hipótese de que a solução doproblema resida na exigência de qualidade do texto oferecido à criança.

Ledo engano. Qualidade de texto é imprescindível, mas não é tudo.As relações entre literatura e escola (e, consequentemente, entre leitura e escola)

são sutis e complexas e não se resolvem por uma melhor seleção de textos,quaisquer que sejam os critérios dessa seleção e mesmo que ela (seleção) privilegiecritérios estéticos.

Algumas teorias da literatura tendem a considerar a especificidade literária de umtexto como imanente, postulando a possibilidade de identificação e isolamento do oudos elementos que dão conta da literariedade do texto em que se manifestam. É paraonde apontam, por exemplo, as formulações de Roman Jakobson7 relativas à funçãopoética e que se encontram diluídas e simplificadas em vários manuais escolarescontemporâneos.

Tais teorias, no entanto, talvez não sejam as que mais contribuam para a discussãosistemática e fundamentada das relações entre leitura, literatura e escola. Para isso,as teorias que incluem, na noção de literariedade, o leitor e a prática de leitura sãomais adequadas. Dentre estas, pode-se destacar a de S. Fish,8 que inscreve aliterariedade de um texto na experiência de leitura.

Levar em conta a interação leitor-texto para discutir literatura parece dar conta de

Page 37: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

forma mais adequada do modo de inserção da literatura na vida escolar, uma vez quea prática de leitura patrocinada pela escola é dirigida, planejada, limitada no tempo eno espaço. Tais atributos tornam a leitura escolar bastante afastada daindividualidade, solidão e gratuidade que caracterizam a leitura prevista pelasteorias da literatura que desconsideram, em suas reflexões, as condiçõesinstitucionais nas quais ocorre a leitura dos textos de cuja literariedade elas seocupam.9

As teorias da literariedade imanente, no entanto, não podem ser inteiramentedescartadas: elas viabilizam a sistematização da leitura, tão essencial para trabalhoscoletivos e dirigidos como é o da leitura que a escola patrocina. Por outro lado, sãoas mesmas teorias que permitem a identificação de elementos que, latentes no texto,se atualizam mediante a leitura.

Não é, entretanto, qualquer leitura nem qualquer leitor que atualiza essavirtualidade. Tampouco a virtualidade do literário se atualiza da mesma forma emdiferentes leitores ou em diferentes leituras de um mesmo leitor.

A atualização da literariedade em latência depende de certa interação do textocom cada um de seus leitores. É assim que, embora as teorias da imanência e daobjetividade da literariedade não sejam suficientes, nem por isso elas deixam delevantar elementos fundamentais para uma teoria que conceba a literatura comointeração.

É fecunda, por exemplo, a discussão jakobsoniana da literariedade a partir dedeterminadas ocorrências de linguagem; para Jakobson, bem como para boa partedos teóricos de linhagem estruturalista e formalista, a manifestação da funçãopoética decorre de determinada manipulação dos elementos de linguagem. Noentanto, o mesmo gesto que postula a natureza linguística dos elementos querespondem pela função poética reconhece também que a manifestação da funçãopoética realiza-se sempre de maneira histórica, isto é, de forma diferente emdiferentes momentos ou em diferentes leituras do mesmo poema, revelando-sediferente para diferentes leitores.

Assim, da mesma forma que se reconhece certa especificidade do texto literário,postulam-se — para viabilizar a hipótese de que o literário resulte de determinadaforma de interação entre leitor e texto — pré-requisitos para que a leitura seconfigure como literária para o leitor. Na medida em que os elementos de que seconstitui a especificidade do poema estão na linguagem e na medida em que alinguagem é uma construção da cultura, para que ocorra a interação entre o leitor e otexto, e para que essa interação constitua o que se costuma considerar umaexperiência poética, é preciso que o leitor tenha possibilidade de percepção ereconhecimento — mesmo que inconscientes — dos elementos de linguagem que o

Page 38: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

texto manipula.Em outras palavras: leitor e texto precisam participar de uma mesma esfera de

cultura. O que estou chamando de esfera de cultura inclui a língua e privilegia osvários usos daquela língua que, no correr do tempo, foram constituindo a tradiçãoliterária da comunidade (à qual o leitor pertence) falante daquela língua (na qual opoema foi escrito).

Retomando agora os motivos pelos quais teorias interacionistas contribuem maissignificativamente para a discussão do relacionamento entre literatura e escola,pode-se incluir, entre as funções da escola, o aumento progressivo e paulatino dafamiliaridade do aluno com textos que ampliem seu horizonte de expectativas, numaperspectiva de familiaridade crescente com esferas de cultura cada vez maiscomplexas que incluem, no limite, aqueles textos que, tendo a sanção dos canaiscompetentes, configuram a literatura.

Por isso, a mera inclusão de textos tidos como bons e superiores entre os textosescolares não soluciona nenhuma das faces da crise de leitura. Pois a presença de umexcelente texto num manual pode ficar sem a contrapartida, qual seja, o texto tidocomo bom pode ser diluído pela perspectiva de leitura que a escola patrocina atravésdas atividades com que ela circunda a leitura.

Para ilustrar esse ponto de vista, vamos estudar o caso do poema de CecíliaMeireles: 'O vestido de Laura', que frequenta com certa assiduidade manuaisescolares.

Esse texto aparentemente satisfaz os requisitos de qualidade: é assinado por umdos poetas maiores da literatura brasileira, é extraído de um livro infantilirrestritamente apontado pela crítica especializada como excelente e, finalmente, éum texto que suporta, sem concessões, leituras e análises que tentem, com osinstrumentos específicos da teoria e da crítica literárias, dar conta de suaespecificidade estética.

Eis o poema:

0 vestido de Lauraé de três babados,todos bordados.0 primeiro, todinho,todinho de floresde muitas cores.No segundo, apenasborboletas voando,num fino bando.0 terceiro, estrelas,estrelas de renda

Page 39: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

— talvez de lenda...0 vestido de Lauravamos ver agora,sem mais demora!Que as estrelas passam,borboletas, floresperdem suas cores.Se não formos depressa,acabou-se o vestidotodo bordado e florido!

'O vestido de Laura' tem sete estrofes compostas de três versos cada uma quealternam, de maneira irregular, seis, cinco e quatro sílabas, com exceção da últimaestrofe, cujo derradeiro verso tem sete sílabas. As rimas são constantes entre osversos dois e três.

As quatro primeiras estrofes unificam-se pelo seu tom descritivo: o verbo daprimeira estrofe é de ligação, atribuindo ao vestido a propriedade de babados. Asestrofes II, III e IV são apostas à estrofe I: cada uma delas retoma um dos babados,especificando-o a partir de detalhes de sua aparência: os babados, cuja existência édeclarada na estrofe I, são progressiva e individualmente retomados e retrabalhadosnas estrofes II, III e IV.

Observa-se, no entanto, que, apesar desse movimento de especificaçãoprogressiva, o poema — mesmo nessas estrofes que detalham pormenores do vestido— guarda a imprecisão, a mobilidade e a sugestividade que parecem constituir traçodominante na poesia de Cecília Meireles.10

Esse caráter sugestivo se constrói, por exemplo, pela intensa sonoridade dasestrofes desse bloco: as rimas, as repetições de oclusivas na estrofe I, a reiteraçãoléxica na estrofe II e a nasalidade da estrofe III criam sensorialmente a imprecisão emagia do mundo de Cecília Meireles.

Essa sugestividade, que se entrega ao leitor sem mediação alguma, configura-setambém no nível sintático do texto: não há nexo sintático explícito entre a estrofe I eas três que a seguem em relação apositiva. Além disso, a elipse do verbo, nestasestrofes, compõe um movimento de atenuação, como se a enunciação das qualidadesde cada babado nascesse ao ritmo fugaz dos movimentos amplos de um vestido.

No plano interno de cada estrofe poderíamos observar ainda que a relaçãosintática entre suas partes vai progressivamente se atenuando: os versos 0 primeiro,todinho,/todinho de flores, embora com fortes traços de oralidade, consistemenunciado coeso do ponto de vista da gramática tradicional; esta coesão seenfraquece, no entanto, na estrofe III, em que os versos No segundo,apenas/borboletas voando sugerem a dissipação do babado e o fortalecimento de

Page 40: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

seus desenhos, e praticamente desaparece (ou fica apenas implícita) no verso 0terceiro, estrelas, em que a ausência de qualquer nexo prepositivo (substituído pelavírgula) completa o esgarçamento das formas de predicação.

Na estrofe V, o poema muda de figurino e a voz do poeta fica explícita: a formaimperativa é clara e o comando vamos ver rompe o clima de descriçãoimpressionista das estrofes anteriores e instaura outra atmosfera.

E, com ela, outra etapa do poema.Este segundo conjunto de estrofes destoa do anterior a partir de sua configuração

sintática: as estrofes VI e VII iniciam-se por conjunções, respectivamente que e se,sendo a primeira explicativa e a segunda condicional. Com isso, o relacionamentosintático delas com a estrofe V, da qual dependem, é muito mais rígido do que asimples justaposição que unia as estrofes do primeiro segmento do poema.

Concomitantemente a esta alteração na estrutura sintática do texto, tambémocorre interrupção brusca no clima inicial de sonho e deslumbramento em que opoema imergia seus leitores.

Se não bastasse a subordinação sintática para orquestrar a substituição do sonhopelo comando, nota-se também, na organização da estrofe V, a inversão da sequênciaverbo-objeto: 0 vestido de Laura/vamos ver agora, antepondo o objeto ao verbo,diverge da prática linguística mais difundida, que é a posposição do objeto direto aseu verbo.

Como tal inversão não se justifica nem por métrica nem por rima, o contexto doqual emerge um possível significado é o progressivo enrijecimento da estrutura dopoema, já manifestado em outros níveis: delineia-se, assim, extrema coerência entreesse procedimento e a ruptura da sugestividade e encantamento em que se embebiamas estrofes anteriores. Em poucas palavras: a racionalidade subjacente à atitude decomando que domina esse segundo momento do poema manifesta-se em todos osseus níveis.

Na estrofe VI, a retomada, em sequência invertida, dos elementos enumerados aolongo das estrofes II, III e IV reforça a reversão de expectativas. A recuperação emsequência simetricamente inversa de elementos dispersos nas estrofes anterioresreinstaura a totalidade do vestido, que se refaz na última estrofe do poema.

Todas as observações acima, que constituem uma possível abordagem do texto,são de natureza técnica e assinalam alguns dos elementos através dos quais essepoema constitui um poema e não outra coisa. Elencam elementos que, podendo serconsiderados como pertinentes à natureza poética de 'O vestido de Laura', poderiamser trabalhados, caso se desejasse apontar alguns dos elementos que manipulamlinguística e imageticamente a sensibilidade de seus leitores.

Page 41: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Mas não é isso, nem nada que se lhe assemelhe, que ocupa os exercícios propostospelo manual escolar que transcreve o poema, e cuja ilustração e exercíciostranscrevem-se a seguir:11

VAMOS ENTENDER MELHOR A POESIA?

EXPRESSÃO ARTÍSTICARecite em coro falado a poesia 'O vestido de Laura'.Observa-se que o compromisso das atividades sugeridas é com elementos

exteriores e secundários ao poema: não trabalham com estruturas internas etransformam a leitura numa atividade reprodutora e repetitiva, em tudo homóloga às

Page 42: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

funções que a escola, como instituição social, tende a cumprir.Antes que se indague se alunos e/ou professores do primeiro grau têm condições

de desenvolver uma análise como a esboçada, vale dizer que não, mas que isso nãotem importância alguma. O reconhecimento e a nomeação dos processos formaisagenciados por um texto não são fundamentais para que o dito texto seja fruído peloleitor. Familiaridade com processos formais é da competência, se não doespecialista, ao menos do professor de literatura de segundo grau. Se assim nãofosse, a fruição da poesia estaria proscrita a todos aqueles que nunca passaram porum curso de Letras.

Não é, pois, objetivo deste texto reivindicar que as questões propostas paratrabalho de um poema em classe privilegiem este ou aquele elemento de suaconstituição formal, fundamentando-se numa ou noutra teoria literária. O objetivo ésugerir que as atividades de leitura propostas ao aluno, quando este se debruça sobreum texto literário, têm sempre de ser centradas no significado mais amplo do texto,significado que não se confunde com o que o texto diz, mas reside no modo como otexto diz o que diz. Nesse sentido, é necessário que os elementos do textoselecionado como gerador de atividades levem o aluno a observar mais de pertoprocedimentos realmente relevantes para o significado geral do texto. O que nãoparece ser o caso dos exercícios transcritos.

Recorrendo a um objeto tão prosaico quanto um vestido, Cecília Meireles fala daefemeridade. Efemeridade do quê? De tudo em geral e, em particular, das coisasefêmeras que tocam aquele leitor particular no momento específico da leitura dopoema. O quê? Desde o recreio que acabou até o amor que se foi. E como, no limite,o tema da efemeridade toca no da morte, a urgência do comando vamos agora,vamos depressa se vale de estrelas que passam, borboletas que voam e flores quemurcham para metaforizar o contínuo processo de perda que é a vida.

Assim, esse texto, por ser um poema, realiza o milagre de aproximar oinaproximável, de nomear o inomeável: vestidos, babados, estrelas, flores eborboletas unem-se no tecido do texto e sua união dá voz a uma das perplexidadeshumanas mais universais: o homem perante o tempo e perante a morte, diante daqual o que sobra e o que fica é efêmero como o rodopio vertiginoso da saia larga echeia de babados.

Só se lê um poema na verticalidade de seu significado que, sem limite de idade,está virtualmente disponível para seus leitores. Caso contrário é como se não setivesse lido...

Como os contatos mais sistemáticos que as crianças têm com a poesia sãomediados pela escola (e não se tem como fugir a isso), e como é frequente que ostextos mesmo bons sejam seguidos de maus exercícios, é bem provável que a escola

Page 43: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

esteja, se não desensinando, ao menos prestando um desserviço à poesia.É fundamental que exercícios e atividades trabalhem elementos do texto que

contribuam para um relacionamento mais intenso dos alunos com aquele textoparticular e que, como uma espécie de subproduto da atividade ou do exercício,fique inspiração e caminho para o inter-relacionamento daquele texto com todos osoutros conhecidos daquele leitor e — lição maior! — a intuição da quase infinitainterpretabilidade da linguagem de que os textos são constituídos. É exatamente noexercício dessa reinterpretabilidade que cada leitor, assenhorando-se do texto, torna-se sujeito de sua leitura, espécie de reescrita significante daquilo que o autor, aoescrever, deixou como aquele silêncio ao qual Drummond sugere que se pergunte:trouxeste a chave?

Caso contrário, mesmo que solicitados por professores e ainda que organizadospor especialistas, os exercícios acabam funcionando como uma espécie de filtroseletor em que o relacionamento do leitor com o texto fica distorcido e apequenado,não obstante a virtualidade estética de que o texto seja dotado.

Por isso frágil vítima, a poesia.Fragílima!

1 Este texto foi originalmente apresentado na 36 reunião da SBPC, em São Paulo em 1984, e, reformulado,foi publicado na revista Leitura: teoria e prática, ano III. p. 19-25, 1984.

2 MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 2. ed. São Paulo, Summus, 1979. p. 33.3 BILAC, Olavo. Poesias infantis. 17. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1949. p. 1.4 JÚLIA, F. & SILVA, J . da. Alma infantil. Rio de janeiro, s. ed., 1912. s.p. Para uma reflexão sobre o

significado de tais prefácios enquanto manifestação da nascente e já agressiva indústria do livro escolar,consultar LAJOLO, M. Usos e abusos da literatura na escola (Bilac e a literatura escolar na RepúblicaVelha). Rio de janeiro, Globo, 1982. p. 54-62.

5 LIMA, Alceu Amoroso. 'Poesia infantil'. In: Estudos. 4 série. Rio de janeiro, Ed. Centro D. Vital, s.d. p.114.

6 Sobre a atual situação da poesia infantil brasileira, consultar CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Poesia naescola. São Paulo, Discubra, 1976; LAJOLO, M. & ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: história &histórias. São Paulo, Ática, 1984. Para um levantamento da poesia infantil mais recente, consultarBibliografia analítica da literatura infantil e juvenil publicada no Brasil (1965-1974). São Paulo/Brasília,Melhoramentos/ INL e Bibliografia analítica da literatura infantil e juvenil publicada no Brasil (1975-1978). Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984.

7 JAKOBSON, R. 'Lingüística e poética'. In: __. Lingüística e poética. 3. ed. São Paulo, Cultrix, 1970. p. 118-62.

8 FlSH, S. IS there a text in this class? (The authority of interpretives communities). Cambridge, HarvardUniversity Press, 1980.

9 George Steiner, a partir do quadro Le philosophe lisant de Chardin, analisa de forma belíssima diferentescondições do exercício da leitura em tempos antigos e modernos: STEINER, George. The uncommon reader.Bennington Coll., 1978.

10 Cf. DAMASCENO, D. 'Poesia do sensível e do imaginário'. In: MEIRELES, Cecília. Obra poética. 3. ed. Rio deJaneiro, Nova Aguilar, 1972.

Page 44: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

11 Cf. MORAIS, L.M. & ANDRADE, M. Mundo mágico, comunicação e expressão. 1 grau, livro 2. São Paulo,Ática, 1983.

Page 45: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

LIVRO DIDÁTICO ELÍNGUA PORTUGUESA:

PARCERIA ANTIGA EMAL RESOLVIDA1

A.E.I.O.U. dabliú, dabliú,Na cartilha da Juju, JujuA Juju já sabe lerA Juju sabe escrever,Há dez anos na cartilhaA Juju já sabe lerA Juju sabe escreverEscreve sal com cê-cedilha

IA.E.I.O.U., de Noel Rosa e LamartineBabo.)

Em meados do século XIX, a disciplina Língua Portuguesa não fazia parte docurrículo da escola brasileira, situação que desagradava alguns educadores. Entre osque protestavam, estava Manuel Frasão:

Vergonha terão nossos vindouros quando, recorrendo às estatísticas da Instrução Pública, viremque um sem-número de moços têm sido reprovados em idiomas estranhos, que aliás, conheciamsofrivelmente, ao passo que uma só vez não consta que alguém deixasse de matricular-se pordesconhecer o pátrio idioma.2 Pretendendo imitar o regulamento francês, e encontrando aexigência da língua francesa com exclusão da portuguesa, impuseram a língua francesa,excluíram a portuguesa!3

A crítica de Frasão sugere que, em pleno Segundo Reinado, leitura e redação detexto em língua materna não desfrutavam ainda da importância curricular que paratais atividades insinuava o paulista Martim Francisco Ribeiro de Andrada, emprojeto encaminhado aos constituintes de 1823:

Quanto ao ensino da arte de exprimir e desenvolver as ideias, digo, que suas regras se devemconformar com os efeitos, que dela se requerem. Na antiguidade, tempo em que se desconheciaa imprensa, e havia mister de persuadir e seduzir os povos pelo dom da palavra, esta arte sereduzia meramente a ensinar o modo de bem falar (...). Depois da invenção da imprensa,mudaram as circunstâncias; escreveu-se nos negócios particulares, imprimiu-se nos negóciospúblicos e destarte decidiam-se as questões e à proporção que cresciam as luzes de uma nação,cresceu também a facilidade de espalhar rapidamente as ideias por meio da impressão; portanto,a arte de escrever discursos é a verdadeira retórica dos modernos e a eloquência de um discursoé a de um livro feito para ser entendido por todos os espíritos. A vista disso, em que vem aconstituir esta arte considerada como parte de um ensino público? Em escrever uma memória

Page 46: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

ou parecer com clareza, método e simplicidade; em desenvolver as razões com ordem eprecisão, evitando, de um lado, a negligência ou afetação, e de outro a exageração ou o maugosto.4

Na Constituinte de 1823, livro didático, escola, professores e leitura estrelavammomentosas polêmicas. Os legisladores, ao discutirem leitura e livro didático,inscrevem a discussão no contexto geral da precariedade que, herdada da Colônia,vai persistir por muito tempo: os requisitos que Ribeiro de Andrada inventaria paraos professores descem a tais minúcias que o quadro resultante é de completodespreparo do magistério:

(...) tanto no primeiro ano, como nos dois seguintes deste curso de instrução, o professor deveter em vista amestrar-se no método de ensino, e fazer-se compreender; instruir-se no modo deresponder às pequenas dificuldades ou questões que o menino possa lhe propor; analisarescrupulosamente as palavras insertas no compêndio, a fim de dar ao discípulo ideias precisasdelas, não se esquecendo de empregar as palavras técnicas que geralmente foram adotadas, nãosó porque a linguagem filosófica é mais exata do que a vulgar, mas também porque iguaisvocábulos exprimem noções mais precisas, designam objetos mais distintos e correspondem aideias de mais fácil análise.5

As atas das sessões constituintes, pelo teor e calor das discussões que registram,apontam tal despreparo como crônico e desalentadoramente irremediável:

(...) o estado de atrasamento em que se acha, desgraçadamente, a educação no Brasil fará comque, se formos a exigir de um professor do primeiro ensino, do qual depende a felicidade doscidadãos, requisitos maiores, não tenhamos professores.6

Outro legislador responsabiliza os baixos salários pela falta e despreparo dosprofessores:

(...) de que serve isso, se os ordenados dos mestres são tão pequenos que a maior parte dasescolas se acham fechadas? Dá-se 120$000 por ano a um homem que com menor trabalhopode fazer o duplo em qualquer ramo de comércio, em pescarias, etc.7

É, pois, sombria a infraestrutura em que o assunto livro didático cruza comleitura, escrita e Língua Portuguesa, como preocupação dos primeiros legisladoresbrasileiros que discutiam o sistema escolar a ser implantado no Brasil. OdoricoMendes:

(...) sugere para livros de leitura a Constituição e alguns clássicos da língua. Tem por melhorque os meninos leiam estes livros do que sentenças velhas e obras doutrinárias rançosas quenada valem.8

Page 47: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

enquanto Lino Coutinho pondera que(...) para leitura é preciso atender não só à escolha de doutrinas como à linguagem. Lembra avida de Frei Bartolomeu dos Mártires, e obras de Jacinto Freire de Andrade, dois livros escritoscom exatidão, escolha e pureza de linguagem. O ensino de conta deve ser mecânico. O degramática deve se limitar às declinações dos nomes e conjugação dos verbos regulares eirregulares da oração, conhecidos os agentes, os verbos ou as ligações dos casos.9

Não obstante tais discussões datarem da década de vinte do século passado, e nelaas questões de ensino/aprendizagem de língua materna virem pelo viés da questão dolivro didático, o desabafo de Frasão nos anos sessenta sugere que só muitopaulatinamente a Língua Portuguesa ganhou o espaço do currículo escolar, e que,mesmo transformada em disciplina, era insatisfatório o modo pelo qual seprocessava seu ensino.

E parece permanecer insatisfatório por longos anos.A permanência da situação nos primeiros anos da República manifesta-se no

rigoroso julgamento com que Rui Barbosa define como “calamitoso” o resultado doensino do vernáculo na escola brasileira. Isentando de culpa os professores, atribuiparcela grande da responsabilidade ao livro didático e à política educacional:

(...) os mestres são os menos culpados nesta imbecilização oficial da mocidade. Deste enormepecado contra a Pátria e contra a humanidade a responsabilidade cabe quase toda à péssimadireção do ensino popular, aos métodos, aos livros adotados — num sistema em que a adoçãoimporta, de fato, um verdadeiro privilégio.10

Tendo por tribuna o Congresso Nacional e respaldado no que de mais modernohavia em Linguística e Pedagogia, Rui Barbosa aponta a baixa qualidade do livrodidático, criticando também os métodos de ensino de língua materna. Nestascríticas, o leitor de hoje pode reconstituir fragmentos dos conceitos de linguagem aque Rui Barbosa adere, como quando, por exemplo, refere-se particularmente ao

(...) trabalho mecânico de memorização que, no programa da instrução elementar, se classificasob o nome de gramática. Que o ensino da língua não se confunde com o ensino da gramáticanão é lícito contestar. Mas nem a qualificação mesma de gramática se pode estender a estatecnologia de abstrações inúteis, que, aliás, suplício inútil da infância na escola, absorve a maislarga parte no plano de estudos primários.11

Com admirável intuição linguística, Rui Barbosa vincula a inadequação do ensinopatrocinado pela escola brasileira do século passado ao fato de a escola lidar comlíngua materna como se esta estrangeira fosse:

Todo o menino que vem sentar-se nos bancos de uma escola traz consigo, sem consciência de

Page 48: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

tal, o conhecimento prático dos princípios da linguagem, o uso dos géneros e dos números, dasconjugações e, sem sentir, distingue as várias espécies de palavras.12

No mesmo fim de século que assistiu à Abolição e à República, de outros pontosde vista, outras vozes confirmam o desencontro entre métodos, objetivos e clientelada disciplina Língua Portuguesa, aumentando o desconsolo da situação: JoséVeríssimo e Sílvio Romero, intelectuais ativos na cultura do entresséculos,referendam Rui Barbosa, inscrevendo a reflexão sobre a inadequação dos métodos naconcretude da evocação do dia a dia escolar:

Registra José Veríssimo:

Os meus estudos, feitos de 1867 a 1876, foram sempre em livros estrangeiros. Eramportugueses e absolutamente alheios ao Brasil os primeiros livros que li (...) E assim foi semdúvida para toda a minha geração.

Acanhadíssimas são as melhorias desse triste estado de coisas, e, ainda hoje, a maioria doslivros de leitura, se não são estrangeiros pela origem, são-no pelo espírito. Os nossos livros deexcertos é aos autores portugueses que os vão buscar, e a autores cuja clássica e hoje obsoletalinguagem o nosso mal amanhado preparatoriano de português mal percebe. São os freis Luísde Sousas, os Lucenas, os Bernardes, os Fernão Mendes e todo o classicismo português quelemos nas nossas classes de Língua que, aliás, começa a tomar, nos programas, o nome delíngua nacional. Pois se pretende (sic), ao meu ver erradamente, começar o estudo da línguapelos clássicos, autores brasileiros tratando coisas brasileiras, não poderiam fornecer relevantespassagens?13

Não é diferente o depoimento de Sílvio Romero, praticamente contemporâneo deJosé Veríssimo:

Ainda alcancei o tempo em que nas aulas de primeiras letras aprendia-se a ler em velhos autos,velhas sentenças fornecidas pelos cartórios dos escrivãos forenses.

Histórias detestáveis, e enfadonhas na sua impertinente banalidade, eram-nos ministradasnestes poeirentos cartapácios. Eram como clavas a nos esmagar o senso estético, embrutecer oraciocínio e estragar o caráter.(...)

As sentenças manuscritas eram secundadas por impressos vulgares, incolores, próprios paraajudarem a destruição.

Era o ler por ler, sem incentivo, sem préstimo, sem estímulos nenhuns.14

Se é assim sombrio o panorama das práticas de leitura escolar no Brasil do séculopassado, não são menos desoladores os registros das práticas de leitura vigentes forada escola: em trecho autobiográfico relativo aos anos quarenta do século passado,quando frequentava a Academia de Direito de São Paulo, José de Alencar relatadificuldade de acesso a livros, sugerindo que leitura e livros, do lado de fora dasparedes escolares, no Brasil de seu tempo, eram coisa rara, talvez como decorrência

Page 49: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

do caráter problemático da presença da língua portuguesa e leitura no quadro daeducação formal:

Naquele tempo, o comércio dos livros era, como ainda hoje, artigo de luxo; todavia, apesar demais baratas, as obras literárias tinham menor circulação. Provinha isso da escassez dascomunicações com a Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura.

Cada estudante, porém, levava consigo a modesta provisão que juntara durante as férias, ecujo uso entrava logo para a comunhão escolástica. Assim correspondia São Paulo às honras esede de uma academia tornando-se o centro do movimento literário.15

Os testemunhos de educadores e intelectuais fazem coro a depoimentos deviajantes estrangeiros que confirmam a raridade dos livros e da leitura no país dasjandaias nas frondes verdes da carnaúba; Henry Koster, inglês que perambulou peloBrasil logo depois da chegada de D. João VI, registra curiosas reações que o ato deler provocava, reações que apontam para a fragilidade e insuficiência das práticas deleitura aqui vigentes.

(...) alguns de meus vizinhos, tanto em Itamaracá quanto em Jaguaribe, entravam às vezesenquanto eu estava lendo e achavam estranho que eu achasse prazer nesta atividade. Eu melembro de um homem que dizia:

— O senhor não é um padre; portanto, por que o senhor lê? 0 senhor está lendo umbreviário? Em outra ocasião, contaram-me que eu tinha granjeado a fama de um homem muitosanto, porque estava sempre lendo.16

Descomprometidos com o modelo católico de colonização portuguesa e sem papasna língua, viajantes ingleses retratam o Brasil dos arredores da Independência comouma sociedade onde as luzes não chegaram a acender-se ou, se se acenderam, foramclarão efêmero, que não ultrapassou a arcádia dos malogrados inconfidentesmineiros...

Luccock, outro inglês, ao relatar conversas com brasileiros ao longo de umaviagem pelo sertão mineiro, sublinha o isolamento cultural do Brasil:

Nesta nossa terra, nunca se ouviu, até agora, sobre guerras europeias; nem se supunha, atérecentemente, que houvesse outros povos, na terra, além de portugueses e espanhóis, além doGentio (...).17

Dão-se, pois, as mãos educadores e escritores, legisladores e viajantes: ao longodo século XIX, à precariedade do sistema escolar, e ao espaço reservado à LínguaPortuguesa correspondia, fora da escola, prática de leitura rarefeita e esgarçada.

Irresolvida, a questão se arrasta e se agrava.Em 1888, o assunto livro didático, entremeando-se a amargas evocações da

Page 50: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

escola, aflora de passagem no romance O Ateneu, de Raul Pompeia.Entre as lembranças da vida escolar de Sérgio, vivida sob a batuta de Aristarco

Argolo de Ramos (nome ficcional de Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas,educador do Império), Raul Pompeia, pela boca do narrador Sérgio, relata modospouco ortodoxos de produção do livro didático, que têm pontos comuns comsituações e práticas que vivemos hoje:

0 Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida família do Visconde de Ramos, do Norte,enchia o Império com o seu renome de pedagogo. Eram boletins de propaganda pelasprovíncias, conferências em diversos pontos da cidade, a pedidos, à sustância, atochando aimprensa dos lugarejos, caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas, com oesbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais caixões de livroscartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda a parte com a sua invasão decapas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se aopasmo venerador dos esfaimados de alfabeto dos confins da Pátria. Os lugares que os nãoprocuravam eram um belo dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea, irresistível! Enão havia senão aceitar farinha daquela marca para o pão do espírito. E engordavam as letras, àforça daquele pão. Um benemérito. Não admira que em dias de gala, íntima ou nacional, festasdo colégio ou recepções da coroa, o largo peito do grande educador desaparecesse sobconstelações de pedraria, opulentando a nobreza de todos os honoríficos berloques.18

O mesmo Barão de Macaúbas reaparece como personagem na autobiografia deGraciliano Ramos: nascido em 1892, nas secas e ensolaradas Alagoas, Gracilianoretrata em Infância (obra editada em 1945) os percalços de uma meninice sofrida naqual os livros escolares — em particular os de Abílio César Borges, o Barão deMacaúbas! — são lembrança dolorida:

Um grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas, incontáveis, as letrasfervilhavam, miúdas, e as ilustrações avultavam num papel brilhante, como rastro de lesma oucatarro seco. Principiei a leitura de má vontade. E logo emperrei na história de um menino vadioque, dirigindo-se à escola, se retardava a conversar com os passarinhos e recebia deles opiniõessisudas e bons conselhos. — Passarinho, queres tu brincar comigo? Forma de perguntaresquisita, pensei. E o animalejo, atarefado na construção de um ninho, exprimia-se de maneiraainda mais confusa. Ave sabida e imodesta, que se confessava trabalhadora em excesso eorientava o pequeno vagabundo no caminho do dever.

Em seguida vinham outros irracionais, igualmente bem-intencionados e bem-falantes. Havia amoscazinha, que morava na parede de uma chaminé e voava à toa, desobedecendo às ordensmaternas. Tanto voou que afinal caiu no fogo.

Estes dois contos me intrigaram com o Barão de Macaúbas. Examinei-Ihe o retrato eassaltaram-me presságios funestos. Um tipo de barbas espessas, como as do mestre rural vistoanos atrás. Carrancudo, cabeludo.E perverso.

Perverso com a mosca inocente e perverso com os leitores.19

Esta escola de Graciliano Ramos dá foros de veracidade à tão verossímil escola

Page 51: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

ficcionalmente criada por Raul Pompeia, perdida nos confins da Pátria, esfaimada dealfabeto, e inundada pelos livros escolares do Barão de Macaúbas, cuja produção OAteneu relata tão desencantadamente.

E serve de magro consolo — no caso de Graciliano — a ideia de que uma tãodolorosa iniciação nas letras não matou em casulo o talento do futuro escritor.

No entanto, mais desoladora do que a frequência com que depoimentos amargoscomo o do mestre Graça se repetem, é a certeza de que, na tradição brasileira,escola, leitura e escrita são experiências que só afloram em relatos de vidas vividasno polo hegemônico de cultura. Só fala de livros quem tem a intimidade de ternascido em meio a eles. Os que falam de livros, de leituras e de escolas, falam com oà vontade de quem pertence à classe que se apossa de livros, de leitura e de escritadesde o berço. E, como perversamente o registro da história passa pela escrita, sãopoucas, tênues e fugazes as chances de resgate da história da cultura escrita, escritada perspectiva dos despossuídos dela. O que levanta questão maior: se todos osdepoimentos lamentam a precariedade da presença de livros e de leitura dentro efora da escola na vida dos bem-nascidos, o que esperar das relações que com aescrita e a leitura mantinham brasileiros pobres? Se encarada de frente, esta questãocontinua a aturdir educadores que nela tropeçam; por isso, a reflexão sobresemelhanças e diferenças entre as situações vividas por professores de ontem e dehoje pode ser sugestiva.20

Se Manuel Frasão, Rui Barbosa, Sílvio Romero, José de Alencar e seus paresparecem antecipar em suas críticas e queixas nossas queixas e críticas, para evitaridentificações precipitadas, vale notar que razões, objetivos e modos de realizar-sedo ensino de língua materna na escola não foram sempre os mesmos e, portanto,como dizia o Machado de D. Casmurro, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente.

Um dos aspectos que parece unificar os diferentes modelos e crises por quepassou o ensino de língua materna na escola brasileira é que sua função foi sempreconcebida como modelar, quer o modelo fosse de língua, quer fosse de valores ecomportamentos.

Se hoje a pedagogia oficial tende a envolver a censura a certos livros em razões denatureza técnica, o caráter seletivo da vontade ou do poder que adota certos livros enão outros configura movimento mais sofisticado do que aquele que, por exemplo,expulsos os jesuítas, no século XVIII, proibiu sua pedagogia, o que incluía os livrosdidáticos nela inspirados, mesmo para disciplinas aparentemente tão poucopolêmicas quanto o Grego, o Latim e a Retórica...

Laerte Ramos de Carvalho, estudando as reformas pombalinas na instruçãopública, registra que:

Page 52: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Concomitantemente, procurou o Diretor-Geral proibir o ensino pelos antigos métodos. Osprofessores que teimavam em ensinar pela Arte do Pe. Alvarez, com o auxílio dos demais livrosproibidos, eram recolhidos à prisão e obrigados a assinar um termo no qual juravam que nuncamais se ocupariam do ensino do Latim no Reino e seus domínios. Os livros proibidos, fossempertencentes à biblioteca dos professores, fossem das livrarias, eram recolhidos e, algumasvezes, queimados.21

Se a proscrição dos livros jesuíticos ilustra os cuidados do sistema com ostemidos contramodelos, a prescrição dos livros escolares e infantis de Olavo Bilacilustra o endosso aos modelos desejados. Ao dedicar-se à tarefa de compor livrospara a infância brasileira, Olavo Bilac parece ter funcionado como anteparoideológico da classe que, com a República, assumia o poder político correspondenteao poder econômico de que já dispunha. As campanhas de educação em curso nosanos 80/90 do século passado são parte do projeto de modernização capitalista que oregime republicano e o fim da escravatura pareciam afiançar.

Fazendo conviver diferentes fases da modernização do modo de produção cultural(entre os quais se incluem os livros escolares e infantis), as últimas décadas doséculo XIX são significativas. Assim como República e Abolição constituíramajustes políticos e econômicos necessários às novas formas da vida brasileira, apassagem de um modo artesanal e amadorístico de produzir livros escolares para ummais planificado e regido pela eficiência manifesta, na vida cultural, a mesmatransição.

No fim do século, explodem questões fulcrais da relação entre livros, escola eprodução cultural: a profissionalização do intelectual e a correspondenteimplantação e desenvolvimento de mecanismos, praxes e acordos que, regulando asrelações do escritor com o capital e com o mercado, modernizam a inserção socialda produção cultural assim engendrada.

Por isso o tempo de Olavo Bilac e seus parceiros é tão decisivo para acompreensão de nosso tempo. Eles assistiram à criação do gênero, viveram a pré-história do livro didático brasileiro, que, a partir de meados do nosso século, assumesem rebuços a dimensão de mercadoria, para a qual se vocacionava desde quenasceu, e que hoje vivemos plenamente.

E, exatamente por vivermos tão plenamente os complexos caminhos por ondeenvereda a produção contemporânea do livro didático, encontramos ouvidos paraouvir vozes que, dissonantes, festejam o mesmo livro didático que outras vozesapupam e vaiam. Patativa do Assaré, por exemplo, envolve em róseo saudosismo aevocação de seus primeiros livros escolares:

Eu nasci aqui no matoVivi sempre a trabaiá,

Page 53: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Neste meu pobre recato,Eu não pude estudá.No verdô de minha idadeSó tive a felicidadeDe dó um pequeno ensaioIn dois livro do iscritô,0 famoso professoFilisberto de Carvaio.No primeiro livro haviaBelas figuras na capa,E no começo se lia:A pá, o dedo do Papa,Papa, pia, dedo, dado,Pua, o pote de melado,Dá-me o dado, a fera é máE tantas coisas bonitaQui o meu coração parpitaQuando eu pega a rescordá.22

Mas a balança não pende para Patativa.Num balanço geral, as críticas superam os aplausos e fundamentam-se nas mais

diferentes razões: apontam que muitos livros didáticos contêm erros graves deconteúdo, que reforçam ideologias conservadoras, que subestimam a inteligência deseu leitor/usuário, que alienam o professor de sua tarefa docente, que — no caso doslivros de Comunicação e Expressão — às vezes pirateiam textos, que direcionam aleitura, que barateiam a noção de compreensão e de interpretação, e tantos outrosquês e etecéteras que quem é freguês da matéria conhece bem.

Bibliografias publicadas sobre o assunto23 mostram que, dentre o conjunto detrabalhos sobre livros escolares e cartilhas, prevalecem os que privilegiam a análisedos conteúdos e dos pressupostos ideológicos.

Chama a atenção na já vasta produção sobre o livro didático, um trabalho queenvereda por caminhos incomuns: A política do livro didático, de João BatistaAraújo e Oliveira, Sónia Dantas Pinto Guimarães e Helena Maria BousquetBomény.24

Evitando os trilhadíssimos caminhos da crítica aos conteúdos, esta obra se ocupada política que envolve o livro didático, acompanhando seus desdobramentos, osquais se relacionam diretamente com as condições de produção e consumo dessematerial. Essa abordagem imprime à questão perfil mais complexo e, por issomesmo, mais instigante. Não tem sentido a denúncia simplória do recorte ideológicodominante, burguês, conservador ou elitista deste ou daquele livro didático, deste oudaquele autor; acusações de parcialidade ideológica rimam e soam tão ingênuasquanto proclamações de neutralidade ideológica.

Page 54: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Talvez por isso, A política do livro didático tenha tido carreira comercial menosespetaculosa do que outros trabalhos que caçam fantasmas com fogos de artifício. Ir,afinal, na pista das diferentes políticas que desemboca(ra)m no rendoso filão doslivros escolares torna-se cardápio indigesto para um público habituado a dietas maisleves.

João Batista e seus coautores apontam que o didático representa fatia bastanteconsiderável dos livros produzidos e consumidos no país; que datam de 1938 osprimeiros esforços brasileiros de centralização das providências relativas ao livro deescola; que inúmeras instâncias federais e estaduais já foram encarregadas dele(CNLD, CELD, COLTED, INL, FENAME, FLE são algumas das siglas); que osescândalos no setor são a norma; e que, em meio a tantas discussões semprerecomeçadas, vozes de bom-senso disseram que, com professores capazes, a rejeiçãodos maus títulos seria espontânea.

O livro se encerra propondo uma pauta para o debate, privilegiando nela ob i n ô m i o centralização/descentralização e salientando a necessidade deenvolvimento dos professores em todas as instâncias, de vez que, como bem dizemos autores, não há lei nem supervisão que obrigue um professor a usar material como qual não esteja à vontade, e sobre cuja adoção não tenha sido consultado: é a talvoz do bom-senso...

Por centrar no professor a questão do livro didático, A política do livro didáticoretoma, reencaminha e arremata a discussão do ensino de escrita e de leitura, delíngua e de literatura. Ao retomá-la, politiza-a, inscrevendo a análise dos conteúdosdo livro didático em seu modo de produção e circulação e este, por sua vez, noâmbito mais amplo e complexo das políticas, das práticas e das instituições culturaisdo país, que, como se viu, tropeçaram sempre em livros didáticos, professores eescolas. Estes não são nem melhores nem piores do que ela.

Como linguagem e como mercadoria, obras didáticas identificam-se à fina malhasocial pela qual circulam e por via da qual se transformam em discurso e interagemsocialmente. Também como linguagem, material didático tem refolhos e avessos,silêncios e entrelinhas, que dão acesso a uma história que nem sempre coincide coma que se obtém quando se tenta construí-la a partir de leis, decretos, propostaslegislativas e similares macrocomponentes de uma narração que se crêmaiusculizada em História.

Depoimentos, como os aqui arrolados, poderiam ser infinitamente retomados,multiplicando-se. E, multiplicados, se fragmentariam em muitas vozes, refratadasnas evocações aqui transcritas: satisfeitas e nostálgicas algumas, como a de Patativado Assaré; irônicas ou iradas muitas, como as de Raul Pompeia e Graciliano Ramos;outras, insatisfeitas, perplexas, às vezes perdidas, como as de Frasão, Rui Barbosa ou

Page 55: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

as de nós todos. O conjunto delas escreve alguns capítulos da história que vivemostodos os que lidamos, de qualquer lado da página, nas linhas e nas entrelinhas, comlivros didáticos. E a moral dessa história é que nem somos culpados, nem estamossozinhos: vivemos um momento particular da história do livro didático brasileiro,que é longa, cheia de desacertos e desencontros, de algumas apostas e esperanças.

E é, pois, nessa história (navegando avesso, direito e interstícios da malha queenlaça Estado, capital, mercado e intelectuais), que singraremos no rumo que doséculo XIX se enlaça à antevéspera do século XXI; é este que nos cabe compreender,para modificar, de forma que se possa talvez encontrar, no hoje que vivemos, aquelaterceira margem do rio de Guimarães Rosa, essa água, que não para, de longasbeiras: (...) rio abaixo, rio afora, rio a dentro — o rio.25

1 Parte deste texto foi publicada em Em aberto, Brasília, 6 (35): 1-9, 1987. Em sua forma atual, ele se compõedos textos apresentados nos eventos a seguir mencionados: 'A perspectiva das áreas de conhecimento nocurrículo'. V Conferência Brasileira de Educação. Brasília, 1988; 'Institucionalização da Educação naRepública'. Conferência. Seminário Literatura e História Repensam a República. RJ, UERJ, 1989; 'Leitura eliteratura: presenças frágeis na história da escola e da cultura brasileiras'. Palestra. Curso de Pedagogia.Faculdade de Educação, USP, 1989; 'Na jovem República, a pré-história do livro didático'. Conferência. UmSéculo de Educação Republicana. Faculdade de Educação, Unicamp, 1989.

2 FRASÃO, Manuel José Pereira. Cartas do professor da roça. 1863-64. Rio de Janeiro, BibliotecaNacional/Typ. Paula Brito, s.d. Carta de 14/3/1863. p. 14. (Originalmente as cartas foram publicadas nojornal Constitucional.)

3 Idem, ibidem. Carta de 15/3/1863. p. 16.4 Cf. Plano de instrução pública de Martim Francisco Ribeiro de Andrada, apresentado em 1816 ao governo

de São Paulo e em 1823 à Constituinte que o aprova (mas não o implementa), apud MOACIR, Primitivo. Ainstrução e o Império. São Paulo, Ed. Nacional, 1936. p. 137.

5 Idem, ibidem, p. 127.6 Idem, ibidem, p. 128.7 Idem, ibidem, p. 128.8 Idem, ibidem, p. 128.9 Idem, ibidem, p. 129.10 BARBOSA, Rui. 'Reforma do ensino primário'. In: — Obras completas. Rio de Janeiro, Ministério de

Educação e Saúde, s.d. p. 22311 Idem, ibidem, p. 224.12 Idem, ibidem, p. 225.13 VERÍSSIMO, José (1857-1916). A educação nacional. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1906. p. 4-6. Apud

ZILBERMAN, R. & LAJOLO, M. Um Brasil para crianças. 2. ed São Paulo, Global, 1988. p. 271.14 ROMERO, Sílvio (1851-1914).'O professor Carlos Jansen e as leituras das classes primárias'. In: — Estudos

de Literatura contemporânea. Páginas de crítica. Apud ZILBERMAN, R. & LAJOLO, M. Op. cit., p. 265.15 ALENCAR, José de. Como e por que sou romancista. Adaptação ortográfica de Carlos de Aquino Pereira.

Campinas, Pontes, 1990. p. 38.16 KOSTER, H. Traveis in Brazil. London, 1817. (Tradução minha.)17 LUCCOCK, John. Notes on Rio de Janeiro, and lhe southern parts oj Brazil; taken during a residence of ten

years in that country, from 1808 to 1818. London, Printed for Manuel Legh, in the Strand, 1820. p. 382-3.(Tradução minha.)

Page 56: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

18 POMPEIA, Raul. O Ateneu. 3. ed. São Paulo, Melhoramentos, 1963. p. 3.19 RAMOS, Graciliano. Infância. 17. ed. Rio de Janeiro, Record, 1981. p. 126-7.20 Em Analfabetismo no Brasil: da ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista, ou de como

deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolôniase Gracias até os Severinos (Brasília/São Paulo, INEPE/Cortez, 1989), Ana Maria Araújo Freire discute ahistória da leitura da perspectiva dos despossuídos dela. Em Cultura de massa e cultura popular (leiturasoperárias) (Petrópolis, Vozes, 1981), Ecléa Bosi discute a questão da leitura literária de operárias paulistas.

21 CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo. Saraiva/Edusp,1978. p. 120-1.

22 ASSARÉ, Patativa do. 'Aos poetas clássicos'. In: — Cante lá que eu canto cá. 4. ed. Petrópolis, Vozes,1978. p. 17-8.

23 Cf. Que sabemos sobre livro didático. Catálogo analítico. Biblioteca central da Unicamp. Serviço deinformações sobre o livro didático. Edunicamp, 1988. BARBOSA, José Juvêncio, org. Alfabetização:Catálogo da base de dados. São Paulo, FDE, 1990. v. 1. AGUERRA, Carlos Artur et alii. Alfabetização:Catálogo da base de dados. São Paulo, FDE, 1990. Guia de leitura para alunos de 1 e 2 graus. Centrode pesquisas literárias PUC-RS. São Paulo/Brasília/Porto Alegre, Cortez/DF INEP, MEC/CPL PUC-RS, 1989.(Biblioteca de educação. Série 1, Escola, v. 6.)

24 OLIVEIRA, J o ã o Batista Araújo e et alii. A política do livro didático. São Paulo/Campinas,Summus/Edunicamp, 1984

25 ROSA, João Guimarães. 'A terceira margem do rio'. In: — Primeiras histórias. 2. ed. Rio de Janeiro, J .Olympio, 1964. p. 37.

Page 57: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

LITERATURA INFANTIL E ESCOLA:A ESCOLARIZAÇÃO DO TEXTO1

Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poetaquando nasceu.Ele não nasceu.Não vai nascer mais.Desistiu de nascer quando viu que o esperavamgarotos de colégio de lápis em punho com professoresna retaguarda comandando: cacem o urso polar,tragamno vivo para fazer uma conferência.2

Na tradição brasileira, literatura infantil e escola mantiveram sempre relação dedependência mútua. A escola conta com a literatura infantil para difundir —ataviados pelo envolvimento da narrativa, ou pela força encantatória dos versos —sentimentos, conceitos, atitudes e comportamentos que lhe compete inculcar em suaclientela. E os livros para crianças não deixaram nunca de encontrar na escolaentreposto seguro, quer como material de leitura obrigatória, quer comocomplemento de outras atividades pedagógicas, quer como prêmio aos melhoresalunos.

Assim, se a escola mais antiga contava com as poesias de Bilac para estimularcivismo, amor aos estudos e respeito aos mais velhos, o príncipe dos poetas e seuscompanheiros de ofício podiam contar (e realmente contaram) com a escola para,adotando seus livros, garantir um nada desprezível mercado para obras infantis3.

De Bilac para nossos dias mudaram bastante os conteúdos educativos pelos quaisa escola se responsabiliza. Mudaram também comportamentos, atitudes, sentimentose valores veiculados pela literatura, mantendo-se, todavia, inalterada a relação dedependência entre literatura infantil e escola. A modernização econômica refez,traduzindo em modos de produção sofisticados e em divulgação mais agressiva, aantiga aliança econômicoideológica sempre celebrada entre a sala de aula, de umlado, e histórias e poesias infantis, de outro.

Hoje em dia o sucesso da dobradinha manifesta-se, por exemplo, nas tiragens doslivros infantis, sempre superiores às dos livros não infantis, em suas frequentesreedições, em seu escoamento mais rápido e seguro.4

A divulgação dos atraentes e coloridos volumes é eficaz e diretamente dirigidapara o professor: a adesão do mestre a um ou outro título é essencial, dado que setraduz na adoção que multiplica as vendas. É preciso que os livros sejam adotados,quer essa adoção ocorra no varejo da leitura daquele livro pelos vinte, trinta,

Page 58: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

quarenta alunos daquele professor, quer ocorra no atacado da inclusão do dito livronos acervos com os quais órgãos governamentais cumprem sua função de proverbibliotecas escolares.

O significativo aumento da população escolar alterou o modo de produção dessarendosa mercadoria, favorecendo a profissionalização do escritor voltado para essepúblico, profissionalização esta muito mais viável que a do escriba não voltado paraa clientela escolar, onde se concentra a fatia maior de vendas do livro infantil ejuvenil.

Também índice de modernização do gênero é a garra de boa parte dos escritoresvoltados para o público não adulto na consolidação do escrever livros comoprofissão: exigem contratos melhores, profissionalizam a relação com os editoresatravés de agentes literários e, dada a importância do planejamento gráfico nogênero infantil, envolvem-se em várias etapas da transformação de seus originais emlivros. A aguda consciência que têm de seu trabalho como produto e comomercadoria manifesta-se ainda no zelo com que tentam preservar seus direitos,muito frequentemente ameaçados pela inclusão gratuita e não autorizada de textosseus em antologias e livros didáticos.

Outro indício sugestivo da renovação da aliança literatura infantil-escola é aefetiva mobilização dos escritores para crianças: quase todos participam decampanhas e eventos comprometidos com a difusão da leitura, comparecendomaciçamente a congressos, simpósios e seminários e, principalmente, visitandoamiúde escolas onde, discutindo seus livros, incentivam seu consumo.

Em tudo isso e, mais ainda, na sua articulação com instituições voltadas para aleitura infantil (no estado de São Paulo, CELIJU, Academia de Literatura Infantil eJuvenil, Fundação para o Livro Escolar; em nível nacional, Fundação Nacional doLivro Infantil e Juvenil, Fundação de Assistência ao Estudante) — e por menor emais frágil que seja o poder decisório de tais instituições —, o que se encontra éuma comunidade de escritores profissionalmente conscientes de sua importância,peso e função dentro das instituições culturais e que, do ponto de vista demobilização, articulam-se com o perfil econômico atual da sociedade brasileira deforma mais adequada que seus companheiros que não escrevem para o públicoinfantil.

No entanto, os mesmos fatores que entrelaçam literatura infantil e escola e queeventualmente respondem pela modernidade desse segmento da produção culturalbrasileira são também responsáveis pelo descompasso — digamos estético — entrea literatura infantil e a não infantil. Tomando por parâmetro a produção literáriabrasileira contemporânea não infantil, os livros para crianças parecemconservadores, pagando, com o que se poderia chamar de compromisso pedagógico,

Page 59: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

seu ingresso no aparelho escolar.Esta vocação pedagógica e inevitavelmente conservadora da literatura infantil não

constitui opção consciente de seus autores: configura, antes, a linguagem do gênero,cuja força pode ser avaliada pela sua permanência ao longo de seu quase um séculode história no Brasil5 e pela constatação de que o pragmatismo pedagógico é o traçoque submerge primeiro nos momentos de ruptura, como ocorre em 0 livro deBerenice, de João Carlos Marinho, metalinguagem dos impasses do gênero,aprisionado entre uma tradição integrada e um desejo apocalíptico.

No interior das histórias e poesias mais antigas, o protagonista era modeloacabado da criança que a escola se propunha formar, como em Através do Brasil(Olavo Bilac e Manuel Bonfim, 1910) e Saudade (Thales de Andrade, 1918).6 Damesma forma, a sociedade brasileira contemporânea encontra, na literatura infantilatual, modelos condizentes com os valores e comportamentos liberais e tolerantesincorporados pela escola brasileira de hoje.

Assim, as crianças perguntadeiras e maluquinhas, a rebeldia contra o arbítrioexagerado, a consciência ecológica, a defesa das minorias — temas recorrentes noslivros infantis de hoje — mantêm, com a escola contemporânea, articulaçãohomóloga à que, em seu tempo, mantinham com a escola de antanho outros temas: oama com fé e orgulho a terra em que nasceste bilaquiano, o projeto ruralista deThales de Andrade, e as histórias da conquista do Oeste que proliferaramcontemporaneamente à construção de Brasília no Planalto Central.

Além de refletir-se internamente na adesão do texto à ideologia escolar eexternamente no apoio da escola à circulação do gênero, a inter-relação literaturainfantil-escola manifesta-se ainda externamente ao texto — mas internamente aolivro —, na extensão, aos livros infantis e juvenis, de tratamento didáticosemelhante ao dispensado aos textos incluídos em manuais de Comunicação eExpressão.

Até os anos cinquenta/sessenta era prática corrente a utilização de textos literárioscomo pretexto para exercícios gramaticais7; a partir daí, no entanto, o mesmo soprode modernização que sancionou a produção de textos críticos e contestadores, naesteira do prestígio crescente da Linguística, varreu do horizonte a análise sintáticade estrofes camonianas. Surgiram em seu lugar atividades mais condizentes com oprocesso geral de modernização por que passavam sociedade e escola brasileiras.

O primeiro momento de liberação do texto literário da gramatiquice agudacoincidiu com a adesão a uma espécie de modelo simplificado de análise literária:questionários a propósito de personagens principais e secundários, identificação detempo e espaço da narrativa, escrutínio estrutural do texto. Com pequenasalterações, esse modelo persiste até hoje, convivendo agora com propostas de leitura

Page 60: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

que desembocam em desenfreado ativismo.Entre as atividades hoje mais frequentemente sugeridas para despertar e

desenvolver o gosto (quase sempre chamado de hábito) pela leitura, encontram-se atransformação do texto narrativo em roteiro teatral e subsequente encenação; areprodução, em cartazes ou desenhos, do tema, da história ou de personagens dolivro; a criação, a partir de sucata, de objetos ou colagens de alguma formarelacionados à história; as pesquisas que aprofundam algum tópico que o textoaborda; o prosseguimento da história, sua reescritura com alteração do ponto devista; entrevista (real ou simulada) com autor ou personagens do livro; jogral oucoro falado quando se trata de poemas; e tantas outras, familiares a quem temintimidade com a literatura infantil.

A frequência com que essas atividades são sugeridas em fichas de leitura,encartes, suplementos e similares só se compara à sofreguidão com que, quandoausentes, são solicitadas pelos caros mestres, às voltas com a árdua tarefa não só defazer com que seus alunos leiam, mas, principalmente, de fazer alguma coisa com oque seus alunos efetivamente leram! A inclusão de sugestões de atividades em livrosdestinados ao público infantil já foi interiorizada como necessidade pelosprofessores, que as solicitam quando não as encontram no livro que escolhem paraseus alunos:

Até hoje a editora não preparou nenhuma “ficha de leitura” ou “ficha de interpretação” doGênio do Crime, como é uso em outros livros dados em classe, a pedido meu. Acho que taisfichas delimitam a apreciação do livro e a uniformizam.

Nas visitas que tenho feito em classe, desde 1969, encontrei ótimos professores que, segundoseu critério e segundo o adiantamento da classe, adotam este ou aquele tipo de trabalho, muitosexcelentes e originais.

Não é minha intenção impor um método de trabalho sobre O Gênio do Crime. Os professoresque jó experimentaram seus métodos particulares devem continuar a fazê-lo. O método ideal deexercício surge sempre da conjunção do modo de ser do professor com o modo de ser daclasse, coisa personalíssima e que uma ficha de leitura não pode prever.

Acontece que a editora, há vários anos, continua recebendo solicitações para que O Gênio doCrime venha acompanhado de uma ficha de leitura. Atendendo a estes pedidos elaborei asseguintes alternativas de método de trabalho.8

O depoimento de João Carlos Marinho registra o momento em que os professoresdelegam a terceiros o planejamento das atividades de leitura que desenvolverão comseus alunos. Se na origem dessa distorção está o despreparo do magistério, seuachatamento salarial, a precariedade das condições de seu exercício profissional,reconhecer tudo isso não diminui a gravidade do fato de que a leitura patrocinadapela escola de hoje parece sofrer de uniformização.

Essa uniformização, no entanto, pode passar despercebida, pois muitas vezes vem

Page 61: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

embrulhada em propostas que, em nome de uma leitura lúdica e criativa, gerenciamo envolvimento com o texto, imergindo a leitura em atividades que apenas simulamcriação e fantasia:

Ao lermos a história do Capitão Argo e sua nave prateada no planeta das árvores chamejantesque o Fausto Cunha inventou e que naturalmente vai interessar — e muito — aos pré-adolescentes, podemos convidar o pessoal para embarcar numa nave imaginária e viver suaspróprias peripécias. Para isso, precisamos preparar o espaço da viagem. O espaço propriamentedito, os possíveis itinerários, o local da decolagem e aterrissagem, a duração da viagem e assimpor diante.

Tiramos as cadeiras da sala de aula (se possível) ou as afastamos para um canto. Limpo ochão, embarcamos em nossas naves individuais ou em pequenos grupos (SIC) e nelas soltamosa nossa fantasia num voo realmente sem limites. A nave espacial flutua (e o nosso corpo flutuajunto) e nos leva a espaços desconhecidos e a mil aventuras.9

Sem atenção para níveis metafóricos do texto e da leitura, essa propostareferencializa e banaliza o ato de ler. Condena à pobreza da improvisação teatralsugerida a viagem de cada leitor; embarcao numa nave, necessariamente pobre aoconfinar-se ao espaço (mesmo sem carteiras!) de uma sala de aula; empobrece aviagem ao cristalizá-la num itinerário prévio, ao encolhê-la a uma duração definida.

Não se trata, evidentemente, de dizer que tais atividades são desaconselháveis,prejudiciais, más em si mesmas. Nada, em si mesmo, é bom ou mau.

O problema é que atividades sugeridas indiferenciadamente para muitos milharesde alunos, distribuídas em pacotes endereçados a anônimos e despreparadosprofessores, passam a representar a varinha mágica que transformará crianças malalfabetizadas e sem livros disponíveis em bons leitores. Favorecem ainda a crençade que sua realização operará o milagre de transformar os professores emorientadores de leitura, fazendo vista grossa à sua pouca familiaridade com livros,não questionando sua leitura quantitativa e qualitativamente muito pobre, deixandointocada sua estranheza face a práticas mais significativas da linguagem. Na rotinade tais atividades camuflam-se riscos sérios de alienação da leitura.

Aí sim, tais atividades são más, desaconselháveis, prejudiciais.Da perspectiva da indústria de livros, o investimento em atividades de leitura

desse tipo pode assegurar a fidelidade do professor a seus produtos, uma vez queroteiros, atividades, fichas de leitura e seus congêneres promovem obliquamente oproduto livro, através de uma estratégia que capitaliza a insegurança e o despreparodo professor.

Da perspectiva dos professores, o endosso acrítico de tais atividades parecesugerir que a internalização da burocracia e tecnocracia da escola brasileira posteriora setenta é a manifestação contemporânea da velha aliança — sempre recelebrada —

Page 62: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

entre literatura e escola.Já da perspectiva estatal, a instauração de uma política de leitura escorada na

difusão apressada e superficial — pela via de cursos, treinamentos e publicações —de tais atividades (improvisadas sempre no nível da precariedade das condiçõesmateriais da educação brasileira...) não só descompromete o estado dasresponsabilidades pela qualidade do ensino, como reforça o caráter reprodutor daescola, na medida em que tira da responsabilidade do professor, em diálogo comseus alunos e com suas leituras, o planejamento das atividades de leitura em que vaiengajar-se com sua classe.

É nesse diálogo que as atividades de leitura adquirem sentido e podem, agora sim,tornar-se práticas significantes. Libertado da imposição delas, o professor pode,voluntariamente, retornar a elas para — senhor de sua disciplina e de seu curso —selecionar aquelas em que mais acredita, descartar outras nas quais não aposta,reformular todas, balizandoas pelo que conhece de seus alunos e da leitura deles,pelo que conhece de língua, linguagem e de literatura, pelo que entende por ensino,por leitura e por escrita, e, particularmente, pelo que entende por ensinar Portuguêsno Brasil de hoje.

Para muito além das queixas e/ou bravatas que geralmente pontilham discussõessobre leitura e literatura infantil, é preciso que se entenda essa antiga inter-relaçãoda literatura com a escola como histórica e social. E que também se entenda que nãose proclama nem se decreta, por mais vontade que se tenha e por mais rebeldia quese ponha na voz, a independência de um segmento da produção cultural dasestruturas nem das instituições pelas quais tal produção circula e em cujo códigoencontra seu significado.

Tais são as premissas que precisam balizar projetos que objetivem efetivademocratização e qualificação das práticas — sobretudo escolares — de leitura noBrasil. Os projetos precisam abrir-se com a crítica da inevitável participação nosrituais de apropriação da literatura infantil pela escola e vice-versa: que osprofessores lutem por uma formação competente, regular e supletiva, que os liberteda tutela de cursos efêmeros e do paternalismo autoritário de receitas de leiturasapostas a livros; que os autores se mobilizem no sentido de fazerem frente àescolarização de seus textos; e que os demais envolvidos — nós todos — discutamosnos circuitos, bastidores e arrabaldes da literatura infantil o caráter histórico daorganicidade institucional dos livros infantis, refinando categorias para acompreensão dessa historicidade que também nos envolve, cumprindo, assim, deforma mais crítica, o papel que nos cabe, e que ninguém cumprirá por nós.

1 Este texto foi originalmente apresentado no 5 Congresso de Leitura, realizado em Campinas em 1987, e

Page 63: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

posteriormente publicado nos anais do referido congresso.2 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. 'Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz'. In: — Poesia completa e

prosa (Viola de bolso). Rio de Janeiro, José Aguilar, 1973. p. 622.3 A propósito da relação econômica literatura infantilescola, ver LAJOLO, Marisa. 'Circulação e consumo do

livro infantil brasileiro: um percurso marcado'. In: KHEDE, Sônia S., org. Literatura infantojuvenil: umgénero polêmico. Petrópolis, Vozes, 1986.

4 Cf. Folhetim de 15/9/85, p. 3-9; cf. HALLEWELL , Lawrence. 0 livro no Brasil: sua história. São Paulo, T. A.Queiroz/Edusp, 1985.

5 Cf. LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história &histórias. São Paulo,Ática, 1984.

6 Sobre os compromissos ideológicos dessa produção, ver LAJOLO, M. USOS e abusos da literatura na escola(Bilac e a literatura escolar na República Velha). Rio de Janeiro, Globo, 1982.

7 Relativamente a tal prática, ver LAJOLO, M. ' O texto não é pretexto'. In: ZILBERMAN, R., org. Leitura emcrise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982.

8 MARINHO, João Carlos. O gênio do crime. 24. ed. São Paulo, Parma, s.d., s.p. O escritor informa que as“sugestões” para um método de trabalho em classe, “feitas pelo próprio autor”, foram incluídas no livroentre 1975 e 1977.

9Guia de Leitura 4. 4a Ciranda de Livros. Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, p. 26.

Page 64: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

2

LEITURASDO MUNDO

Page 65: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

MACHADO DE ASSIS:UM MESTRE DE LEITURA1

Todo artista aspira a ser lido. Não existe correspondênciaparticular de um artista que consideramos experimental (deJoyce a Montale) que não mostre como aquele autor, mesmoquando sabia que ia contra o horizonte de expectativas de seupróprio leitor comum e atual, aspirava a formar um futuro leitorparticular, capaz de entendê-lo e de saboreá-lo, sinal de queestava orquestrando a sua obra como sistema de instruçõespara um Leitor Modelo que estivesse em condições decompreendê-lo, apreciá-lo e amá-lo.2

Em Contos fluminenses, obra com que Machado de Assis estreia em volume em1870, o leitor comparece não poucas vezes, tratado sempre com deferência eeducação, na boca do que se poderia chamar de um narrador cordial. O conto deabertura do livro, 'Miss Dollar', traz o leitor para dentro do texto já na primeiralinha:

Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar,(p. 27)3

A essa benevolente alusão à conveniência narrativa, seguem-se consideraçõessobre os deveres de um narrador, que desembocam em elogio à objetividade,economia e racionalidade de recursos narrativos:

(...) sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, queencheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentarlhes MissDollar: (...) (p. 27)

Engana-se, no entanto, a boa-fé de quem acreditar nessas promessas: ao contráriodo que apregoara, o narrador entrega-se à volúpia de imaginar diferentes e variadostipos de leitores, cujas previsões sobre a identidade da personagem-título eleantecipa e desmente, valendo-se da autoridade narratorial. Começa refutando aimagem de Miss Dollar como

(...) uma inglesa pálida e delgada, escassa de carnes e de sangue (...) (p. 27)

creditada à imaginação de um

Page 66: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

(...) rapaz dado ao gênio melancólico (...) (p. 27)

Linhas abaixo, o texto inventa um outro leitor, atribuindo a este a imagem de umaMiss Dollar:

(...) robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos eardentes, mulher feita, refeita, perfeita, (p. 27)

No parágrafo subsequente, o mesmo imaginoso narrador investiga as expectativasde um outro tipo de leitor: daquele que, tendo já passado a segunda mocidade, tem àsua frente uma velhice sem recursos, para quem, então, a Miss Dollar do conto deveser

(...) boa inglesa de cinquenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportandoao Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um romance verdadeiro,casando com o leitor aludido, (p. 27)

Vê-se que o narrador de Miss Dollar dispõe de galeria inesgotável de leitores-personagens que faz desfilar pelo texto: ao antecipar uma vez mais interpretaçõespara a personagem-título, ele convoca uma outra imagem de leitor que,lisonjeiramente, qualifica de mais esperto do que os outros (p. 28) e cuja espertezaparece consistir na interpretação de Miss Dollar como brasileira de quatro costados(p. 28), vindo seu nome à conta de sua riqueza:

Miss Dollar quer dizer apenas que a rapariga é rica. (p. 28)

E só depois dessa célere multiplicação de leitores imaginários, incessantementeextraídos de sua algibeira, que, para alívio dos leitores de carne e osso, o narradorcumpre finalmente sua promessa, e desvela a identidade de Miss Dollar:

A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a mulher robusta, nem a velhaliterata, nem a brasileira rica (...) Miss Dollar é uma cadelinha galga. (p. 28)

Essa assídua convocação do leitor prossegue pelo resto do conto, mesmo quando otexto já navega desenvolto as águas desatadas da narração. O narrador qualifica comfrequência o leitor de quem e com quem fala, organizando hierarquicamente a galeriade leitores que constrói. Se a moldura escolhida para os quadros da galeria for ocontexto sócio-histórico da literatura machadiana, a visita à galeria pode constituirlance sugestivo para o esboço de uma história social da leitura na segunda metade doséculo XIX brasileiro.4

Page 67: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Em tal galeria, ocupa o patamar mais baixo o leitor superficial, cuja interpretaçãoo narrador desqualifica sem rebuços:

0 leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico. Não era. (p.28)

A ele segue-se seu antípoda, o leitor grave:

Algum leitor grave achará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre aqualidade provável deles. Provará com isso que tem pouca prática do mundo. (p. 32)

Mais adiante, o narrador arrasta para cena outra casta de leitores, os conspícuos:

Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse assim tão assíduo na casa deuma senhora exposta às calúnias do mundo. (p. 36)

Como se vê, mesmo estreante5, Machado já orquestra e embaralha os fios daficção e da realidade, transformando leitores em personagens, tematizando eencenando os caminhos do envolvimento do leitor com a matéria narrada. Como nocaso do romance-texto (que uma das presuntivas Miss Dollar pretendia escrever) emtrânsito para o romance-vida (o envolvimento amoroso da mesma presuntiva MissDollar com o virtual leitor pobretão do texto de Machado...), o percurso se cumpresempre.

Essa metalinguagem constante amplifica ao máximo o mise-en-abyme da obra eguarda, nas suas entrelinhas, a ironia implacável que, alguns anos e obras depois,cairá com olímpica indiferença sobre a cabeça dos leitores de Brás Cubas. Não setrata aqui, evidentemente, de discutir se o Machado de Brás Cubas já estava dentrodo de 'Miss Dollar', ou se este foi mudado naquele por efeito de algum casoincidente... seria ocioso discutir isso, leitor apressado!

O fato é que, depois de tantas convocações para o interior de um texto que lhediscute as expectativas, o leitor brasileiro do século passado que teve sob os olhosesta 'Miss Dollar' estava, pelas mãos seguríssimas do narrador machadiano,educando-se na leitura literária.

A constância da metalinguagem através da qual Machado, a pretexto de seusleitores, mas sobretudo para eles, tematiza o ato de leitura em curso inscreve notexto uma espécie de pedagogia da leitura, que não destoa do contexto brasileiro dasúltimas décadas do século passado, quando o necessário fortalecimento do sistemacultural era bandeira assumida por todos os intelectuais.

É entre esses intelectuais que o em geral politicamente discreto Machado, na pele

Page 68: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

do colaborador da imprensa carioca, também milita em prol das letras nacionais! Jáem abril de 1858, nas páginas de A Marmota, um Machado de dezenove anos pediaprovidências que defendessem o teatro brasileiro, acuado pela cultura francesa decarregação, fazendo ver a necessidade de:

(...) um tratado sobre direitos de representação reservados, com um apêndice e um impostosobre traduções dramáticas, (p. 788)

O artigo revela um Machado bastante atento à República das Letras, familiarizadocom suas tretas e mutretas, fazendo-se portavoz de reivindicações em prol da culturabrasileira. Na berlinda, o teatro, ao qual Machado vai dedicar-se com empenho cadavez maior — como autor, tradutor e crítico — ao longo dos anos sessenta.

Não se trata, pois, de palpites de um curioso. Em 1858 Machado não tinha aindapublicado nenhuma peça e, assim sendo, não advogava em causa própria; mas jáescrevia sobre teatro — e nessa época o teatro era o palco onde se definiam os rumosda cultura nacional —, o que emprestava autoridade a sua voz. A crítica de Machadoenumera argumentos que justificam o imposto sugerido:

As tentativas naufragam diante deste czarinato de bastidores, imoral e vergonhoso, pois quetende a obstruir os progressos da arte. A tradução é o elemento dominante, neste caso quedeveria ser a arca santa onde a arte, pelos lábios de seus oráculos, falasse às turbasentusiasmadas e delirantes. Transplantar uma composição francesa para a nossa língua é tarefade que se incumbe qualquer bípede que entende de letra redonda. 0 que provém daí ? O que seestá vendo. A arte tornou-se uma indústria; e à parte meia dúzia de tentativas bem-sucedidassem dúvida, o nosso teatro é uma fábula, uma utopia, (p. 788-9)

Não é essa a única ocasião em que Machado dedica-se a inventariar obstáculos àprodução artística brasileira. Ainda em 1858, o mesmo Machado reconhece ogigantismo e a complexidade da questão da cultura nacional, admitindoimplicitamente o traço quixotesco de propostas fiscais como a sua, no país que, umpouco mais tarde (1874), no calor de uma polêmica sobre direitos autorais, José deAlencar chamaria de país do monopólio.6

Em formulação aguda e precisa, neste outro texto de 58, Machado como que sepenitencia dos arroubos retóricos do texto anterior, saturado de boas intenções, mastambém inchado de arcas santas, lábios de oráculo e turbas delirantes. Machadoaponta, agora com sobriedade notável, o impasse maior da produção cultural emuma sociedade como a brasileira, atrasada e anacrônica:

É mais fácil regenerar uma nação que uma literatura. Para esta, não há gritos do Ipiranga; asmodificações operam-se vagarosamente, e não se chega em um só momento a um resultado, (p.787)

Page 69: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Novo artigo de Machado, oito anos depois (em 1866), insiste ainda uma vez nomesmo problema: na Semana Literária do muito mais popular Diário do Rio deJaneiro, o discurso machadiano sofre reajustes e incide sobre a literatura. Atrajetória desses artigos de Machado — do teatro para a literatura — parece oposta àda cultura nacional que, no decênio de sessenta, assistia à migração para o teatro deexpoentes das letras, como Macedo e Alencar7, empenhados ambos, aparentemente,em substituir a raridade e esquivança do público de romances pelo calor dosaplausos de plateias lotadas.

Neste artigo de 1866, Machado reclama de uma “temperatura literária abaixo dezero”, queixa bastante compreensível tendo em conta que — afora Casamento noarrabalde, de Franklin Távora — o panorama das letras brasileiras parece ter sidodesolador nesse ano, principalmente considerando as expectativas criadas pelapublicação de Iracema no ano anterior (1865).

Analisando a questão, Machado atribui a pobreza da oferta literária à “falta degosto formado no espírito público” e, ao correr da crônica, tempera seu desencantocom análise mais sofisticada dos elementos envolvidos na produção literária e quecontribuem para seu desalento:

(...) quando aparece entre nós essa planta exótica chamada editor, se os escritores conseguemencarregá-lo, por meio de um contrato, da impressão de suas obras, é claro que o editor nãopode oferecer vantagens aos poetas, pela simples razão de que a venda do livro é problemáticae difícil. A opinião que deveria sustentar o livro, dar-lhe voga, coroá-lo enfim, no Capitóliomoderno, essa, como os heróis de Tácito, brilha pela ausência. Há um círculo limitado deleitores; a concorrência é quase nula, e os livros aparecem e morrem nas livrarias. Não dizemosque isso ocorra com todos os livros, nem com todos os autores, mas a regra geral é esta. (p.841)

Reencontra-se, nesse texto de 1866, o mesmo Machado que, oito anos antes,apontava a precariedade das condições de existência e desenvolvimento do teatrobrasileiro; ele continua atento às condições necessárias para a produção cultural edocumenta agora a pobreza da infraestrutura disponível para o desempenho dasLetras no Segundo Império.

Em crônica de 1895 para A Semana, um agora já editadíssimo Machado de Assis,mestre e patrono das letras brasileiras (também elas já às vésperas dainstitucionalização numa Academia que iria desfrutar do beneplácito do Estado...),continua acompanhando com atenção gestos e rituais que selam o destino das Letrasno Brasil. Reponta no texto um discreto otimismo e uma ainda mais discretagratidão, que afloram quando Machado registra trâmites da legislação sobre direitosautorais:

Page 70: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

(...) o Sr. Senador Ramiro Barcelos achou, entre os seus cuidados, um momento para pedir queentrasse na ordem do dia o projeto de Direitos autorais. 0 senhor presidente do Senado, depronto acordo, incluiu o projeto na ordem do dia. Resta que o Senado, correspondendo àiniciativa de um e à boa vontade do outro, vote e conclua a lei. (p. 668)

Ainda em 1895, e nas páginas da mesma A Semana, o tema retorna quandoMachado discute a falta de leitura no Brasil. Agora, sem presidentes do Senado nohorizonte, desaparece o otimismo. Em seu lugar ergue-se a ironia fina,metonimicamente apoiada no deslocamento de leitura na paisagem culturalbrasileira, deslocamento que se agrava mais ainda quando somado ao registro dosotaque francês da cultura em circulação:

Que pouco se leia nesta terra é o que muita gente afirma, há longos anos; é o que acaba de dizerum bibliômano, na Revista Brasileira. Este, porém, confirmando a observação, dá como umadas causas do desamor à leitura o ruim aspecto dos livros, a forma desigual das edições, o maugosto em suma. Creio que assim seja, contanto que esta causa entre com outras de igual força.Uma destas é a falta de estantes. As nossas grandes marcenarias estão cheias de móveis ricos,vários de gosto; não há só cadeiras, mesas, camas, mas toda sorte de trastes de adorno,fielmente copiados de modelos franceses, alguns com o nome original, o bijou de salon porexemplo, outros em língua híbrida, como o portebibelots: entra-se nos grandes depósitos, fica-se deslumbrado pela perfeição da obra, pela riqueza da matéria, pela beleza da forma. Tambémse acham lá estantes, é verdade, mas são estantes de música para piano e canto, (...) (p. 665-6)

Ao leitor mais atento não escapa a leveza da ironia nem a eficiência da retóricaque trata a leitura através de estantes, que fala de móveis através de predicadosgeralmente atribuídos a livros (perfeição da obra, riqueza da matéria, beleza daforma...) e que inscreve a questão da leitura no patamar mais amplo da dependência,trazida para o texto nas alusões à francesice do mobiliário, mesmo do fabricado pelaindústria nacional.

Ou seja: o mesmo Machado que pedia proteção de mercado para o teatro nacionalreafirma, agora na voz de um intelectual desencantadamente maduro, a velhaprecariedade da infraestrutura para a produção cultural que, em relação ao teatro, jáo preocupava desde 1858.

Com tais e tantas credenciais de observador arguto das condições disponíveis paraa produção de bens culturais nos brasis de seu tempo, torna-se muito sugestivo,retornando a 'Miss Dollar', observar se e como os modos de produção da escrita e daleitura literária se representam na ficção desse escriba mulato, gago, epilético, pobree autodidata e que, não obstante tudo isso (ou será que também por causa dissotudo?), dominou o panorama letrado brasileiro na segunda metade do século XIX, eaté sua morte em 1908.

Como se viu no conto, o respeitável público, na figura do leitor e da leitora, é

Page 71: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

frequentemente convocado para o texto, num diálogo narrador-leitor em tudosemelhante ao que se derrama por toda a obra machadiana. É como se a ficção deMachado textualizasse o que a crítica e a crônica tematizam. A ostensiva presençadesse leitor — quase tão intruso em 'Miss Dollar' como o Brás Cubas de Memóriaspóstumas nas próprias — reveste-se, entretanto, de outros significados, se se levarem conta que, em diferentes obras, é diferente o tratamento dispensado aos leitorespelos narradores machadianos.

Da cordialidade à impaciência dos piparotes, da solidariedade ao distanciamentoirônico, à medida que a obra de Machado amadurece literariamente, esemelhantemente às relações autor-público, as relações narrador-leitor vão sofrendoalterações não de todo independentes das alterações por que passava, no Brasil, omodo de produção dos bens da cultura que, como a literatura, valiam-se da escritapara sua circulação.

Se a hipótese é plausível, ela sugere que os distintos tratamentos que Machado,pela boca de seus narradores, dispensa a seus leitores articulam-se bem com o longoprocesso sofrido pela obra literária em seu percurso de objeto concebido comodestinado à fruição gratuita até seu estatuto de mercadoria. Sugere igualmente quetal percurso, no caso brasileiro, no final do Segundo Reinado e arredores daRepública, desenrola-se numa paisagem que parece acumular contradições: emritmo atropelado e dissonante, coexistem formas pré-capitalistas e capitalistas deprodução cultural. De um lado, mecenato; de outro, imposto sobre traduções ereivindicações de direitos autorais.8

E entre ambos, iluminando um pelo outro, o texto literário de Machado que,historicamente inscrito nessa transição, parece textualizar a questão, encenando-aliterariamente pela via da metalinguagem que assim desvela não só o projeto de umaescrita literária, mas também seu reverso e sua historicidade, qual seja, a necessáriaeducação de leitores que deem conta de tal escrita.

1 Este texto foi originalmente apresentado na mesaredonda “150 anos de Machado de Assis” no XXXVISeminário do GEL e, posteriormente e com alterações, no GT de Leitura e Literatura Infantil durante o IVEncontro Nacional da ANPOLL. Ambos os eventos ocorreram em 1989.

2 Eco, Umberto. 'O texto, o prazer e o consumo'. In: — Sobre os espelhos e outros ensaios. 2. ed. Rio deJaneiro, Nova Fronteira, s.d. p. 100.

3 O número entre parênteses indica a página da edição consultada: ASSIS, Machado de. Obra completa. Org.Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro, José Aguilar, 1962. v. II e III.

4 Para uma história social da leitura no Brasil, ver LAJOLO, M. & ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita. São Paulo,Brasiliense, 1991.

5 Em sua Bibliografia de Machado de , J . Galante de Souza registra não ter encontrado publicação deste textoanterior a Contos fluminenses, obra saída à luz em fevereiro de 1870, e composta de contos publicados noJornal das Famílias entre 1864 e 1869.

6 Cf. FARIA, João Roberto. José de Alencar e o teatro. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1987.

Page 72: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

7 É numerosa a produção teatral de Alencar e Macedo nos anos finais de 50 e nos primeiros anos da décadaseguinte. É a seguinte a cronologia do teatro de Alencar no período em questão: A noite de São João(1857), Verso e reverso (1857), O demônio familiar (1858), As asas de um anjo (1860), Mãe (1862), Aexpiação (1867), O jesuíta (1875); para Macedo, a cronologia é O cego (1849), Cobé (1852), O fantasmabranco (1856), O primo da Califórnia (1858), O sacrifício de Isaac (1859), Luxo e vaidade (1860), O novoOtelo (1863), Lusbela (1863), A torre em concurso (1863).

8 Cf., a propósito de reações de Machado em face de certas alterações sofridas pelo modo de produção debens culturais no Brasil, LAJOLO, M. 'AS transações internacionais', 0 Escritor (Jornal da União Brasileira deEscritores), São Paulo, jan.-fev. 1987. p. 5.

Page 73: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

AS AVENTURAS DE NGUNGA,NA ESCOLA E NA LEITURA1

Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou éminar a arma do outro, com todos os elementos possíveis domeu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para queconquiste, a partir do instrumento escrita, um texto escrito meu,da minha identidade.2

As aventuras de Ngunga, obra de Pepetela3, tem o apelo das obras feitas no calorda hora, escrita que foi nas manhãs de dez dias, debaixo de uma árvore, numacarteira da mata, na frente Leste. O texto produzido nessas condições foi divulgadopela primeira vez em 1973, a partir dos 300 exemplares mimeografados pelo MPLA,que circularam de forma sorrateira entre os combatentes pela libertação de Angola.

Se esse modo de produção é incomum para um livro, a história que ele conta ébem mais trivial: são os conflitos e experiências, temores e amores que vive oprotagonista Ngunga, órfão de treze anos, cujos pais “foram surpreendidos pelosinimigos, um dia, nas lavras”. Os inimigos, já se sabe, são os tugas4, e os amigos,também já se sabe, são os combatentes, os povos dos kimbos, o mestre-escola e, paratudo ser como deve, o próprio narrador.

As condições de produção do livro, seu público-alvo e a militância política de seuautor fazem com que essa obra, de sua concepção a sua circulação, constitua projetoque estabelece, entre o político e o literário, o pacto de solidariedade firmado, natradição ocidental moderna, em momentos de alteração social profunda.

O interesse que esse livro de Pepetela desperta, entretanto, não se deve apenas aofato de ele fazer parte de um projeto político que confia à escrita a pedagogiarevolucionária: não é original nem necessariamente interessante a criação de umtexto (literário) para difusão de um projeto político.

Quantos projetos similares ao de Pepetela não se encontram na tradição literáriaeuropeia que, em vários momentos, abriu espaço para o cruzamento do estético como político? Para não recuar muito aquém do século passado nem ir muito além dapátria-mãe, fique-se com a belíssima exortação de Antero de Quental ao poeta:

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,E dos raios de luz do sonho puro,Sonhador, faze a espada do combate.5

Pepetela pode, pois, invocar em seu favor o precedente de Antero, que estará em

Page 74: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

excelente companhia. Longe de constituir uma solução, no entanto, o precedente deAntero levanta uma questão interessante, pois o interesse que o livro de Pepeteladesperta nasce exatamente dessa falta de originalidade do projeto que parece terpresidido à sua elaboração.

Trata-se de um precedente branco, ocidental e português: a cultura portuguesainscreve-se na europeia, na qual se inventaram livros, escolas, leitura, literatura etodos os etcéteras de que se ocupam letrados, aquém e além da Taprobana.Curiosamente, no entanto, livros — não obstante serem mídia privilegiada da culturaburguesa, não por acaso também europeia no nascimento — costumam serconcebidos como eficientíssimos agentes de contracultura, de resistência cultural, eaté mesmo como arma revolucionária.

Que pirueta dialética permite, então, conciliar, no mesmo saco, gatos tão distintoscomo burguesia e revolução socialista, liberalismo e liberação, cultura letrada econtracultura? É exatamente o que se pergunta a esse Pepetela de Ngunga, supondo-se que Angola, Pepetela e seu Ngunga sejam outros gatos de outríssimos sacos...

Serão?A questão começa na observação de que As aventuras de Ngunga constitui, de

certa forma, versão africana contemporânea de antigos projetos gerados eexecutados na velha Europa do século XIX... Por exemplo, na Itália e na França que,no fim do século passado, fizeram circular com exemplar eficiência os textos deCuore6e de Le tour de la France par deux garçons7, cimento precioso na argamassapatriótica dos projetos nacionais então em curso.

Tanto a obra italiana quanto a francesa são ao mesmo tempo romances deformação e obras de consolidação de unidade nacional. Surgiram ambas emmomentos de crise de suas respectivas sociedades. O livro de De Amicis engaja-seno projeto de unificação italiana e o de G. Bruno revigora o ânimo nacional francês,seriamente abalado pela derrota militar diante da Alemanha. A simpatia de que taisprojetos estético-pedagógicos gozam junto às elites letradas fin-du-siècle é grande. Étanta a simpatia que o projeto atravessa os mares já dantes navegados e aporta aoBrasil onde Olavo Bilac e Manuel Bonfim engajam-se na bem-sucedida empresa deproduzirem um similar nacional: o famosíssimo Através do Brasil, lido e relido pormuitas e muitas gerações patrícias.8

Assim, com Pepetela, o projeto refaz a travessia atlântica na rota das caravelas; econtinuando a gozar de credibilidade, recoloca a questão: será que um projeto cujaversão primeira serviu de consolidação da ideologia liberal burguesa, inclusive emseus desdobramentos colonialistas, pode ser impunemente reeditado cem anosdepois, nas tropicais florestas e cidades de uma Angola às vésperas da libertação?

E se pode, a que preço?

Page 75: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Logo à primeira vista, percebe-se que, em comum com os projetos anteriores, olivro de Pepetela tem um protagonista criança. Se na cultura ocidental a infância é afase da vida marcada por fragilidade e insegurança, traços que desde Perraultconstituem prato cheio para a sensibilidade de leitores igualmente ocidentais, ficapor saber-se se o solitário Ngunga produz impacto similar na sensibilidade de seusleitores-alvo: a população de Angola envolvida na guerra de libertação.

Outro traço que aproxima o livro de Pepetela de seus modelos europeus é aorfandade do protagonista. No livro francês a perda dos pais coincide com a perda danacionalidade, e as crianças, então duplamente órfãs, abandonam a Alsácia-Lorena(zona de ocupação alemã) e fogem para a França, em busca dos remanescentes dafamília. Não é preciso dizer que recuperam ao mesmo tempo ambas, pátria e família.Quando o leitor termina o livro, os meninos já são crescidos, proprietários, pais defamília e — supõe-se — felizes para sempre, na melhor tradição do conto de fadas,de origem igualmente europeia...

O Ngunga de Pepetela sofre a mesma carência dupla de pais e de pátria; e, emboraem seu horizonte não haja parentes a procurar, tendo o colonialismo como agente desua orfandade, sua busca de sobrevivência solitária e autossuficiente coincide com abusca do povo angolano do estatuto novo de nação independente. Novamente, Pátriae Família, com maiúsculas, identificam-se.

Ecoam, pois, no projeto de Pepetela, fragmentos de outras ideologias, de terrasoutras e, sobretudo, de outros tempos. Parece que Angola começa tudo de novo,refazendo, no projeto de sua literatura, o percurso de institucionalização cumpridopor literaturas europeias.

Mas talvez a semelhança resida mais nos óculos do que no objeto contemplado:pode tratar-se de olhos e óculos treinados a reduzirem tudo a seu código de origem...Mas como nem mesmo Machado sabia se o que tinha mudado era ele, o Natal ouambos, registre-se apenas a tentação e o risco de ler as literaturas do TerceiroMundo (inclusive a verdeamarela...) com olhos e gosto educados nas produçõesculturais do Primeiro Mundo. Riscos e tentações crescem e tropeçam na constatação,a propósito desse Pepetela, de que são os modelos do Primeiro Mundo os padrõesaos quais recorre o escritor deste Mundo Número Três quando se debruça sobre suafolha em branco...

Pois é...Há que dizer-se, no entanto, que, se Ngunga vem na esteira de vários romances

educativos ocidentais, ele também ostenta algumas feições autônomas. A começarpela linguagem, que é simplíssima: nada de períodos longos, de parágrafos maciços,de subordinações encadeadas. Em vez disso, muitos diálogos e, quando é necessáriaa intervenção do narrador, o registro dela não difere do de seus narrados.

Page 76: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Trata-se de uma linguagem que guarda marcas fortes da oralidade das narrativaspopulares, sugerindo uma recepção de texto que se afasta da recepção livresca,escolar, ocidental e que dá sentido emergencial e menos pitoresco àquele modo deprodução sob as árvores e sob o sol. Reforçando a oralidade, os capítulos são sempremuito curtos e frequentemente se fecham de forma lapidar, com frases que evocamfórmulas rituais de encerramento de narrativas populares:

Assim foi a festa do nascimento de Lumbongo, o primeiro filho de Kayondo e Maria. (p. 9)Foi assim que Ngunga deixou a Seção e seus amigos. Voltaria a visitá-los, prometia ele, com

vontade de chorar, (p. 21)

É através dessa preservação da oralidade que o livro de Pepetela afasta-se dosmodelos europeus e recupera seu horizonte de cultura terceiro-mundista, em cujocontexto começa a esgarçar-se a hegemonia dos já aludidos traços europeus eocidentais de seus modelos literários.

De Amicis, G. Bruno e mesmo nosso Olavo Bilac não conhecem meios-tons. Oquadro de valores que suas narrativas endossam e propagam tem a nitidez dasortodoxias acima de qualquer suspeita; bem e mal, certo e errado, adulto e criançasão mundos estanques, que jamais se interpenetram. No Pepetela de Ngunga, aocontrário, a nuance, o meio-tom e a ambiguidade estão presentes o tempo todo,fecundando o texto.

Idade e orfandade do protagonista, que já se viu serem ponto comum entre oromance angolano e obras de outras tradições culturais, são tratadas diferentementepor Pepetela. No livro de Bilac, por exemplo, a condição infantil é sistematicamentereprimida, pois é rebelde às exigências do real social e histórico, sendo jogo, prazere brincadeiras sempre controlados, em nome de um valor mais alto que se alevanta:o dever, o trabalho, o estudo. Mais ainda: não é sempre o paternal narradorbilaquiano quem, em Através do Brasil, comete o infanticídio: o irmão mais velhoassume o papel repressor, o que sugere que em projetos pedagógicos bem-sucedidoso abafamento da infância acaba incorporado pela própria criança. O fato de osirmãos serem dois, tanto no livro francês quanto no brasileiro, como que facilita aescalonada e paulatina substituição do ser-criança pelo ser-gente-grande, cabendoao primogênito iniciar o caçula nas sucessivas (e dolorosas...) fases de maturidade.

É nesse aspecto que o solitário Ngunga ganha muitos pontos em comparação aoutros heróis juvenis ocidentais. Na voz de seus vários interlocutores, Ngunga ora écriança demais, ora demasiadamente crescido para ser dono de sua vontade. Assimmanipulada, a condição infantil torna-se presa de fácil dominação. Mas Ngungaresiste e, nessa sua resistência — traço original do livro em face dos similareseuropeus e brasileiros —, está o traço maior de solidariedade a que esse livro

Page 77: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

convida seus leitores.Em seu longo itinerário de conquista da maturidade — que nas circunstâncias

específicas angolanas equivale a tornar-se militante na luta pela libertação do país—, Ngunga preserva a noção de liberdade individual e lhe dói sempre a injustiça deum mundo organizado e gerido por adultos autoritários, mesmo quando esses adultossão pioneiros e/ou guerrilheiros:

Todos os adultos eram assim egoístas? Ele, Ngunga, nada possuía. Não, tinha uma coisa, eraessa força dos bracitos. E essa força ele oferecia aos outros, trabalhando na lavra, para arranjar acomida dos guerrilheiros. O que ele tinha, oferecia. Era generoso. Mas os adultos? Só pensavamneles. Até mesmo um chefe do povo, escolhido pelo Movimento para dirigir o povo. Estavacerto? (p. 15)

Mavinga foi ter com os mais velhos. Ngunga ficou a olhar o velho Chipoya, muito vaidosoao lado do Comandante. Igual ao Kafuxi. Uns exploradores todos eles, e nomeados peloMovimento para dirigir o povo. (p. 54)

A defesa da infância se faz explicitamente no elogio de Ngunga ao professorUnião:

O camarada professor é capaz de ser ainda um bocado criança, não sei. Por isso ainda é bom.Mas também é mau. Com o Chivuala, foi mau. Não devia mandá-lo embora, (p. 30)

A desconfiança em face do mundo adulto transparece também no poucoentusiasmo com que Ngunga encara a escola. Em conversa com o ComandanteMavinga, o ideal escolar (adulto e ocidental na origem...) não parece seduzir muito omenino que defende o aprender-vivendo-e-fazendo em lugar da aprendizageminstitucionalizada da escola:

— Ngunga, tu és pequeno demais para ser guerrilheiro. Aqui já te disse que não podes ficar.Andar só, como fazes, não é bom. Um dia vai acontecerte uma coisa má. E não estás a aprendernada.

— Como? Estou a ver novas terras, novos rios, novas pessoas. Oiço o que falam. Estou aaprender.

— Não é a mesma coisa. Numa escola aprendes mais. E assim vais conhecer o professor. Jáviste um professor? (p. 20)

Para todos os efeitos, o ponto de vista do comandante (e do narrador?) leva amelhor e Ngunga vai efetivamente para a escola. A lição que ele lá aprende,entretanto, é a lição de solidariedade e lealdade, ficando a alfabetização para maistarde, e assim mesmo só tolerada como instrumento para a causa maior, a dalibertação de Angola:

Page 78: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

(...) se soubesse escrever, podia meter um bilhete na cela de União e combinarem juntos a fuga.Mas pouco se interessara por aprender, só gostava mesmo de passear. Pela primeira vez Ngungadeu razão ao professor, que lhe dizia que um homem só pode ser livre se deixar de serignorante, (p. 37)

Também ao contrário dos romances de formação ocidentais, o final do livro dePepetela não coincide com nenhuma restauração universal de equilíbrio: Ngunga nãorecupera os pais (happy-end de Através do Brasil, em que era falsa a notícia damorte do pai dos meninos) e tampouco seu país consolida-se como independente.Ngunga, como protagonista, desaparece de cena e as falas finais do livro são donarrador que se dirige diretamente ao leitor, exortando-o a descobrir e cultivar oNgunga que cada um tem dentro de si.

O desaparecimento de Ngunga é voluntário e, como solução narrativa, aproxima-se muito do antológico desaparecimento de Ceci e Peri, no olho da palmeira: omenino desaparece na selva e, desaparecendo, ressurge como mito.

O que, não sendo uma rima, pode bem ser uma solução...Solução narrativa que textualiza, com os impasses vividos pela literatura

angolana, leitura, escrita e escola. Práticas e instituições impostas pelo colonizador,a partir de certo ponto, elas tornam-se essenciais para a libertação do jugo colonial,cabendo à literatura expressão simbólica a tal passagem, e a nós, profissionais daleitura, desenvolvimento das categorias críticas que deem conta de tal movimento,favorecendo a elaboração de uma teoria e de uma história da leitura específica dasregiões do planeta onde ela chegou na esteira de projetos coloniais.

1 Versão anterior deste texto foi publicada em 1983, no número 1 de EPA (Estudos Portugueses e Africanos),IEL, Unicamp.

2 RUI, Manuel. Cinco vezes onze. Poemas em novembro. União dos Escritores Angolanos, 1985.3 PEPETELA, José. As aventuras de Ngunga. São Paulo, Ática, 1983. (Nas citações, os números entre

parênteses indicam a página desta edição.)4 Corruptela de portuga ( = portugueses), forma pejorativa de referir-se aos portugueses colonialistas.5 QUENTAL, Antero de. Sonetos. 3. ed. Lisboa, Sá da Costa, 1968.6 De Edmond de Amicis, 1896.7 De G. Bruno, 1877.8 Sobre a literatura escolar de Bilac e seu débito a essas duas obras da tradição escolar europeia, ver LAJOLO,

Marisa. Usos e abusos da literatura na escola. Porto Alegre, Globo, 1982.

Page 79: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

LOBATO, UM DOM QUIXOTENO CAMINHO DA LEITURA1

Já viste Reinações de Narizinho? Vou falar na editora que temandem. Dei também Alice no País das Maravilhas eRobinson, tudo na mesma semana. E ontem falei no Rádiocom a filhinha do Octales, a Cleo, uma menina que é umencanto de desembaraço. Dialogamos inventadamente sobre oque nos veio à cabeça e todos gostaram.2

A década que se abre em 1930 é difícil para Lobato que, de Nova York (em 9/1),desabafa com a irmã, declarando-se encalacrado em dívidas:

Hás de crer que acabo de cometer um dos maiores erros de minha vida? Entrei no StockExchange com todos os recursos que pude reunir, certo de fazer fortuna. Errei o bote. Em vezde ganhar, já perdi metade do meu capital e estou ameaçado a perder o resto e ainda devendoalguma coisa. (...)

Estou em arranjos com o Octales para vender o resto das ações que tenho na companhia e, seisso se der, estarei habilitado a recobrar o perdido e talvez sair ganhando. Seria uma operaçãomuito fácil meses atrás, mas com a escassez absoluta de dinheiro que anda em São Paulo, receioque este passo falhe — falhando, tenho de sair perdendo.3

Em maio do mesmo ano, e ainda de Nova York, ele anuncia ao amigo Fontoura asprovidências relativas a suas precárias finanças, e que se traduzem em proposta feitaà editora Nacional:

(...) escrevi ao Octales propondo uma série de novos livros infantis, que ele anda querendopublicar, em troca de ele me custear as despesas da doença do Edgar. Caso ele aceite, iráconversar com você para combinar o pagamento do que já forneceste a Teca. Minha moedasempre o livro (sic) e vamos ver agora se reduzo a moeda os livros em estado potencial quetenho na cabeça.4

O envolvimento de Lobato (retornado ao Brasil em 1931) com a campanha dopetróleo prolonga o tempo das vacas magras e faz com que sua sobrevivênciadependa, cada vez mais, dos livros infantis que escreve e das traduções que faz.Destacam-se aqui as obras cuja temática — por interessar à escola, ou por desfrutardo prestígio dos clássicos — garante circulação ampla e recompensa financeira paraum quase insolvente Lobato que, em novembro de 1933, anuncia a Anísio TeixeiraEmília no país da gramática:

Estou escrevendo Emília no país da gramática. Está estupendo. Inda agora fiz a entrevista deEmília, na qualidade de repórter do Grito do Picapau Amarelo, um jornal que ela vai fundar no

Page 80: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

sítio, com o Venerabilíssimo Verbo SER que ela trata respeitosamente de Vossa Serência! Estátão pernóstica, Anísio, que você não imagina.5

Em 15 de agosto do ano seguinte, em carta a Viana, Lobato alude ao sucesso dolivro:

A minha Emília está realmente um sucesso entre as crianças e os professores. Basta dizer quetirei uma edição inicial de 20.000 e o Octales está com medo que não aguente o resto do ano.Só aí no Rio, 4.000 vendidas num mês. Mas a crítica de fato não percebeu a significação daobra. Vale como significação de que há caminhos novos para o ensino das matérias abstratas.Numa escola que visitei, a criançada me rodeou com grandes festas e me pediram: “Faça aEmília do país da aritmética”. Esse pedido espontâneo, esse grito d'alma da criança não estáindicando um caminho? O livro como o temos tortura as pobres crianças — e no entantopoderia diverti-las, como a gramática da Emília o está fazendo. Todos os livros podiam tornar-se uma pândega, uma farra infantil. A química, a física, a biologia, a geografia prestam-seimensamente, porque lidam com coisas concretas. O mais difícil era a gramática e é a aritmética.Fiz a primeira e vou tentar a segunda. O resto fica canja.6

Em carta anterior a Godofredo Rangel (26/6/30), Lobato já insistia na literaturacomo fonte de renda, especificando a literatura infantil (ao lado do jornalismo)como gênero economicamente rentável, rentabilidade ainda mais assegurada pelaadesão ao gênero paradidático, à tradução e à adaptação:

(...) sabe que estou em véspera de ressuscitar literariamente? A famosa comichão vem vindo —e terei de coçar-me em livro ou jornal. Só me volto para as letras quando o bolso se esvazia eagora, em vez de pegar milhões de dólares, perdi alguns milhares na bolsa. Resultado: literaturaaround the corner. E se não me sai logo uma tacada em que tenho grandes esperanças, botolivro, Rangel, boto jornalismo, boto literatura infantil! mas se sai a bolada, então adeusMinerva!7

Sabe que concentrei um Robinson? Octales encomendoume e filo em cinco dias — umrecorde: 183 páginas em cinco dias, inclusive um domingo cheio de visitas e partidas dexadrez.8

Na carta, além da sugestão de que certos gêneros literários são mais rentáveis,Lobato alude indiscretamente a um modo de produção pouco recomendável: livrofeito entre duas partidas de xadrez e uns dedos de conversa... Esse modo de produçãoatabalhoado, em que tempo (ou texto) é dinheiro, é também mencionado em carta aRangel, de 16 de junho de 1934:

Tenho empregado as manhãs a traduzir, e num galope. Imagine só a batelada de janeiro atéhoje: Grimm, Andersen, Perrault, Contos de Conan Doyle, O homem invisível de Wells ePolyana moça, O livro da jungle. E ainda fiz Emília no país da gramática. Tudo isso sem faltarao meu trabalho diário na Cia. Petróleos do Brasil, com amiudadas visitas ao poço do Araquá.Positivamente não sei explicar como produzi tanto sem atrapalhar meu trem normal de vida.9

Page 81: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Assim, na década de trinta, Lobato antecipa a carência de livros paradidáticos, talcomo os conhecemos hoje. E ele, que já tinha temperado a mão em História domundo para crianças (1933), dedica-se, a partir de 35, a várias matérias do currículoescolar: a Aritmética de Emília é de 1935, mesmo ano da Geografia de Dona Benta eda História das invenções.

Vêm em 1937 os Serões de Dona Benta e 0 poço do Visconde, obras em que omesmo projeto informativo que norteia seus paradidáticos coexiste com o projetopolítico que custou não poucos dissabores a Lobato, entre os quais o ser desadotadoem escolas católicas, desastre terrível para quem tem nos livros o ganhapão dafamília...

É, pois, a década de trinta que vê um empobrecido Lobato apontando lápis eplanejando livros para sobreviver. E foi, provavelmente, no bojo de um de seusprojetos previamente combinados com Octales, da Companhia Editora Nacional,que, em 1936, lança seu D. Quixote das crianças. Nesse livro, encontra-se umprojeto de leitura, de tradução e de adaptação. E o leitor de hoje — em particular oeducador preocupado com questões de leitura — pode encontrar, nesse Quixote,respostas para questões que permeiam seu dia a dia escolar e que abrangem desde acrucial pergunta que livro indicar? até a questão de os clássicos serem ou nãoadequados a tal ou qual faixa etária...

Pois Lobato encara e discute tudo isso.A inadequação dos clássicos no original para um público culturalmente imaturo já

fica sugerida na engenharia necessária para tornar portátil o D. Quixote, passoprimeiro para tornálo legível. O texto relata que Dona Benta:

(...) na noite deste mesmo dia começou a ler para os meninos a história do engenhoso fidalgo daMancha. Como fosse livro grande demais, um verdadeiro trambolho, aí do peso de uma arroba,Pedrinho teve de fazer uma armação de tábuas que servisse de suporte. Diante daquelaimensidade, sentou-se Dona Benta, com a criançada em redor.10

Tratava-se de um Cervantes em tradução portuguesa do século passado, e ainadequação entre obra e público ultrapassa as dimensões objetuais do livro emquestão, e textualiza-se: o teor clássico, castiço e castilho da linguagem assusta osouvintes, não obstante a propaganda de Dona Benta:

(...) Dona Benta começou a ler:— Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um

fidalgo dos de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor.— Ché! — exclamou Emília. Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou

brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor... Não

Page 82: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

entendo estas viscondadas, não... (p. 11)

Ameaçada de perder seu público, Dona Benta recua e concilia:

(...) esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razãopela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura paracompreender as belezas da forma literária, em vez de ler, vou contar a história com palavrasminhas.

— Isso! — berrou Emília. Com palavras suas e de tia Nastácia, e minhas também — e deNarizinho — e de Pedrinho — e de Rabicó. Os viscondes que falem arrevezado lá entre eles.Nós, que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo de clara de ovo, bemtransparentinho, que não dê trabalho para ser entendido, (p. 12)

A ideia dessa leitura ao alcance de todos não é novidade na obra de Lobato. Já emseu livro inaugural, as Reinações de Narizinho, ele encenara, no sítio do PicapauAmarelo, a propósito de Pinocchio, proposta de leitura bastante similar:

A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos os livros decrianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do onça ou sóusados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasilde hoje; onde estava, por exemplo, lume, lia fogo; onde estava lareira lia varanda. E sempreque dava com um botou-o ou comeu-o, lia botou ele, comeu ele — e ficava o dobro maisinteressante. Como naquele dia as personagens eram da Itália, Dona Benta começou aarremedar a voz de um italiano galinheiro que às vezes aparecia no sítio em procura de frangos;e para o Pinocchio inventou uma vozinha de taquara rachada que era direitinho como o bonecodevia falar.11

Atender, no entanto, aos apelos pela comunicabilidade não faz com que DonaBenta — e através dela Lobato — deixe de conceber a leitura do livro comooportunidade para ampliar o universo cultural de seus ouvintes: a passagem do livroque informa que “antes de serem armados cavaleiros, não são cavaleiros” dá chancea uma pergunta de Emília:

— D. Quixote já não andava armado? observou Emília.— Ser armado cavaleiro é coisa diferente de um cavaleiro armar-se com armadura e armas.

Ser armado cavaleiro é receber o grau de cavaleiro andante, dado por outro cavaleiro. E nisso iapensando D. Quixote pelo caminho. Era-lhe absolutamente imprescindível e indispensávelencontrar um cavaleiro que o armasse cavaleiro, (p. 19)

Dona Benta, leitora madura e competente, faz-se a iniciadora de seus ouvintes naleitura: à sua maneira, ela também os arma cavaleiros, isto é, arma-os leitores.

À medida que a história do cavaleiro da Mancha se desenrola por muitos serõesnoturnos, o leitor de Lobato assiste ao envolvimento progressivo da plateia pelaleitura. Percurso da ida e volta entre texto e vida, sugestivo de que só a partir da

Page 83: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

evocação de experiências vividas pelos leitores o texto encontra seu sentido.Relativamente a esse Quixote versão Lobato, o sentido, muitas vezes, se reveste

de ironia, como na passagem referente aos impasses de alimentação do herói:entalado em sua armadura, torna-se necessário que lhe enfiem garfadas de comidaboca adentro e se valham de um funil para o vinho. Emília carnavaliza:

— Já vi tia Nastácia encher assim o papo dum pinto doente — observou Emília. Mas esse pintonão era andante — não tinha viseira, (p. 23)

Com a intervenção de Emília, a ironia de Cervantes ganha uma impensadadimensão: se a figura de um cavaleiro andante enlatado já representa considerável (ehilariante...) rebaixamento da imagem da cavalaria, sua comparação com o pintodoente, num prosaico terreiro, por assim dizer tropicaliza a ironia, apontando umadas rotas pela qual pode perfazer-se o trânsito dos clássicos de uma cultura paraoutra, de um tempo para outro, de uma audiência para outra.

Dona Benta, leitora experiente, toma a si a tarefa de apontar à sua plateia oselementos necessários ao fortalecimento da verossimilhança, da compreensão, doenvolvimento. Ao narrar, por exemplo, o encontro de D. Quixote com o jovemchicoteado pelo amo, ela sugere categorias pelas quais sua audiência podereconhecer-se na personagem:

— Num ápice estava no ponto de onde vinham os gritos. Que vê lá? Um menino, assim umpouco maior do que Pedrinho, amarrado a um tronco de árvore e a receber uma tremenda sovade correia, (p. 28)

Assim, pelos expedientes de sua leitura, Dona Benta favorece o envolvimento queamarra o leitor ao texto e o envolve. Os resultados não se fazem esperar. Ao fim doepisódio, quando Dona Benta relata a ironia com que o amo diz ao meninoespancado:

(...) vai agora atrás do tal defensor dos inocentes e pede-lhe que te cure o lombo. Ah! Ah! Ah!...(p. 30)

Narizinho não se contém:

— E o menino foi? — indagou Narizinho, danada com a brutalidade do homem. (p. 31)

dando a deixa para Pedrinho:

— Pois eu ia — disse Pedrinho. Fugia e saía pelo mundo até encontrar de novo D. Quixote e

Page 84: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

trazê-lo para rachar o brutamontes de alto a baixo com a lança. (p. 32)

O episódio cala fundo em todos, inclusive em Emília, que sonha que o malvadopatrão do André apareceu no sitio (p. 45). O viver vidas alheias — promessasedutora e irresistível da leitura de ficção — é aqui encenado à maravilha, nãofaltando sequer a ruptura do envolvimento, ou seja, o retorno ao real, no casopatrocinado por Emília. Ao fim do episódio, a boneca chama a atenção de Pedrinhopara o fato de que rachar brutamontes de alto a baixo, só com a espada, uma vez quelança é só para espetar.

Multiplicam-se assim passagens nas quais Lobato cifra questões de leitura, apartir de situações de leitura vividas pelas personagens-leitores, e que podemcontagiar os leitores-leitores. De leitores de papel-e-tinta a leitores-de-carne-e-osso,o projeto se encorpa ao longo do livro, reforçando-se em uma confissão de Pedrinhorelativa a uma leitura aparentemente feita sem a interferência de adultos:

(...) na semana em que caiu em casa aquele livrinho da história de Carlos Magno e dos dozepares da França. Comecei a ler e fui me esquentando, me esquentando, até que não pude mais.Minha cabeça virou — ficou assim como a de D. Quixote. Convenci-me de que eu era o próprioRoldão. Fui lá no quarto dos badulaques e tirei aquela espada que pertenceu ao velho tioEncerrabodes, e amoleia no rebolo, bem amoladinha. E quando a senhora saiu com tia Nastáciae Narizinho para visitar o compadre Teodorico, ah, que regalo! Corri ao milharal e não vinenhum pé de milho na minha frente. Só vi mouros! Ah! Caí em cima deles de espada que foiuma beleza. Destrocei-os completamente. Não ficou um só! Que coisa gostosa...

— Nastácia! — gritou Dona Benta. Venha ver quem nos escangalhou o milharal. FoiPedrinho, (p. 102-3)

À semelhança do que sucedera por ocasião dos serões nos quais Dona Bentacontava às crianças a história de Peter Pan (cuja tradução adaptada de Lobato é de1930), quando a sombra cortada de Peter Pan sugere a Emília picotar a sombra de tiaNastácia, também nesse D. Quixote a boneca não fica imune à loucura doprotagonista:

Emília continuava a dar vira-cambotas. Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse queera lança, e começou a espetar todo o mundo. E botou um cinzeiro de latão na cabeça, dizendoque era o elmo de Mambrino. Por fim montou no Visconde, dizendo que era Rocinante. (p.154)

Dona Benta foi espiar pela janela e de fato viu as estripulias que Emília dei Rabicó estavafazendo no quintal. Vestidinho de cavaleira-andante, toda cheia de armaduras pelo corpo e deelmo na cabeça, avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste, fazendo a bicharadafugir num pavor, na maior gritaria. Até o galo, que era um carijó valente, correra a esconder-sedentro de um caixão.

Dona Benta gritou-lhe várias vezes que parasse com aquilo. Tudo inútil. A boneca foratomada dum verdadeiro delírio de heroísmo, (p. 180-1)

Page 85: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

Tampouco falta ao livro a ideia de que ouvir a história de D. Quixote não é amesma coisa que lê-la, e lê-la na íntegra, cabendo também a Dona Benta chamar aatenção das crianças para a diferença entre originais e suas adaptações:

— É uma lástima — disse Dona Benta — eu estar contando só a parte aventuresca da históriado cavaleiro da Mancha. Um dia, quando vocês crescerem e tiverem a inteligência mais abertapela cultura, havemos de ler a obra inteira nesta tradução dos dois viscondes, que é ótima. (p.212)

A tradução em questão é a do visconde de Castilho e visconde de Azevedo,apresentados por Dona Benta no começo dos serões:

— O visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa. É considerado umdos melhores clássicos, isto é, um dos que escreveram em estilo mais perfeito. Quem quisersaber o português a fundo, deve lê-lo — e também Herculano, Camilo e outros, (p. 11)

Para quem estranha essa adesão consentida aos clássicos, o prosseguimento daconversa sobre adaptação traz outros elementos de surpresa: prosseguindo a defesada superioridade da leitura de obras integrais, Dona Benta discute o desencontroentre a tradução de Castilho e a recepção dela pelo pessoal do sítio:

— É que ela está escrita em português que já não é bem o nosso de agora. Hoje usamos alinguagem mais simplificada possível, como a de Machado de Assis, que é o nosso grandemestre. Os escritores portugueses, que chamamos clássicos, usavam uma forma menos singela,mais cheia de termos próprios, mais rica, mais interpolada... (p. 212)

Mais adiante um pouco, e face à geral condenação da norma culta pela audiênciado sítio, que através da boca de Emília acusa o estilo clássico de dar dor de cabeça econstituir uma charada, Dona Benta explica:

— Para vocês, meus filhos, que estão começando a lidar com a língua. Já eu entendo o períodoperfeitamente, sem nenhuma dificuldade, (p. 213)

A relação de Dona Benta com a cultura é, assumidamente, uma relação maiscomplexa, mais aprofundada, mais antiga, e que assim se proclama sem falsosescrúpulos de um igualitarismo enganoso. O que parece sugerir que entre uminiciador de leitura e os iniciandos (ou entre um professor e seus alunos) não se deveestabelecer nenhum nivelamento por baixo.

Dona Benta, como todo e qualquer leitor competente, aliás, como todo e qualquerusuário competente da língua escrita e oral, é poliglota, isto é, transita com

Page 86: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

facilidade do estilo clássico de Castilho para o estilo coloquial de sua plateia. Mastem plena consciência de que ambas as modalidades são diferentes, e que suaresponsabilidade, como iniciadora de jovens na prática de leitura, é levá-los até oclassicismo de Castilho.

Em outra passagem do livro, vêm à tona as expectativas da escola em face daleitura dos jovens. Conversando com Emília, que atribui sua crise de loucura àrevolta contra tanta besteira que há no mundo, Dona Benta retruca:

— Lá vem você com as palavras plebeias! Muitas professoras, Emília, criticam esse seu mododesbocado de falar. Besteira! Isso não é palavra que uma bonequinha educada pronuncie. Useexpressão mais culta. Diga, por exemplo, tolice, (p. 195)

Como os anos trinta são o tempo em que Lobato usa da pena para sobreviver, oquanto essa sobrevivência depende da aprovação das senhoras professoras é fácil deimaginar a partir do que vivemos hoje, quando a escola decreta se a personagem doromance juvenil pode ou não fumar maconha, pode ou não ficar embriagada, se podedizer merda ou deve dizer droga! A completa conversão de Emília, que ao fim doepisódio adere a formas menos quixotescas de protesto, parece atestar, já ao tempode Lobato, a forte dependência da literatura juvenil da escola.

Assim, nesse D. Quixote das crianças, o leitor encontra material bastante ricopara reflexão sobre questões de leitura, de leitura dos clássicos, da adequabilidade decertas linguagens a certos públicos, do papel a ser representado pelo adultoresponsável pela iniciação dos jovens na leitura e mais miudezas.

Naqueles pacatos anos trinta, ainda sem roteiros de leitura, fichas de atividades,sugestões de trabalhos, sem notas de rodapé nem glossários, Dona Benta patrocina aseus ouvintes as experiências e as discussões de leitura necessárias aoamadurecimento deles, fazendo a ponte entre algumas questões nossascontemporâneas diante de leitura, escrita e escola, e o encaminhamento que taisquestões tiveram em outro momento de nossa história cultural.

1 Este texto foi originalmente apresentado na mesaredonda sobre Monteiro Lobato durante o XXXVCongresso do Grupo de Estudos Linguísticos realizado na Universidade de Taubaté em 1988. Comalterações, foi reapresentado no III Seminário Estadual sobre A Escola e o Texto em Lajeado (RS), nomesmo ano, e, em julho de 1991, na atual versão, foi apresentado como comunicação ao 8 COLE, emCampinas.

2 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1956. t. 2., p. 325.3 LOBATO, Monteiro. Cartas escolhidas. 6. ed. São Paulo, Brasiliense, 1970. p. 161.4 NUNES, Cassiano. Monteiro Lobato vivo. Rio de Janeiro, MPM Propaganda/Record, 1986. p. 30-1.5 Idem, ibidem, p. 95.6 Idem, ibidem, p. 96.7 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre, cit. p. 320.

Page 87: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

8 Idem, ibidem, p. 322-3.9 Idem, ibidem, p. 327.10 LOBATO, Monteiro. D. Quixote das crianças. 7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1957. p. 10. (Nas próximas

citações dessa obra, indica-se entre parênteses o número da página dessa edição.)11Reinações de Narizinho. 7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1957. p. 199-200.

Page 88: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

TECENDO A LEITURA1

Um galo sozinho não tece uma manhã; ele precisará semprede outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lancea outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antese o lance a outro; e de outros galos que com muitos outrosgalos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para quea manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos osgalos.2

O poema de João Cabral sugere uma bela concepção de leitura: os galos quetecem a manhã evocam os leitores que tecem o significado dos textos com que sedeparam ao longo da vida. Tecendo a manhã conota artesanato, solidariedade ediálogo, construindo uma metáfora que sublinha aspectos relevantes para umareflexão sobre o papel da leitura numa sociedade democrática.

Fica, pois, a tecelagem, prática ancestral de fiar, de tingir e de urdir os fios, deentrelaçá-los em tecidos, matriz metafórica da leitura. Ao longo da história, a arte detecer desemboca nas hoje barulhentas indústrias têxteis, onde o antigo tecelão, porparticipar apenas de uma das etapas da produção, perde o sentido da totalidade tantodo objeto que produz, como do processo pelo qual o objeto é produzido.

À semelhança da história da tecelagem, a modernização ininterrupta do modo deprodução do livro a partir de Gutenberg tornou possível (e mesmo necessária) amassificação da leitura, trazendo para o horizonte dela o risco de alienação, defracionamento e esgarçamento do significado do texto e do ato de ler. A atividade deleitura, que, em suas origens, era individual e reflexiva (em oposição ao carátercoletivo, volátil e irrecuperável da oralidade de poetas e contadores de histórias),transformou-se hoje em consumo rápido do texto, em leitura dinâmica que, para serlucrativa, tem de envelhecer depressa, gerando constantemente a necessidade denovos textos.

O ato de ler foi de tal forma se afastando da prática individual que a tarefa quehoje se solicita de profissionais da leitura, como professores, bibliotecários eanimadores culturais, é exorcizarem o risco da alienação, muito embora eles possamacabar constituindo elo a mais na longa e agora inevitável cadeia de mediadores quese interpõem entre o leitor e o significado do texto.

Esse papel de intermediário pode afastar da prática docente o artesanato que aleitura exige. O que se reserva aos professores de hoje, a partir inclusive de suaformação profissional, é a divulgação de livros, a decifração de significados, aintermediação e o patrocínio do consumo de textos impressos. E só muitoincidentalmente, e como que por acréscimo, a iniciação de jovens na leitura, talvez

Page 89: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

porque, em nossa tradição cultural, a leitura, como prática coletiva, só exista muitoesgarçadamente.

Tomar consciência das ambiguidades desse papel pode ser o primeiro passo paramudanças qualitativas nos projetos e práticas de leitura — particularmente asescolares — que ocorrem em diferentes circuitos da cultura brasileira, a começar daruptura da cadeia de alienações em que se insere a prática escolar da leitura noBrasil de hoje.

A literatura constitui modalidade privilegiada de leitura, em que a liberdade e oprazer são virtualmente ilimitados. Mas, se a leitura literária é uma modalidade deleitura, cumpre não esquecer que há outras, e que essas outras desfrutam inclusive demaior trânsito social. Cumpre lembrar também que a competência nessas outrasmodalidades de leitura é anterior e condicionante da participação no que se poderiachamar de capital cultural de uma sociedade e, consequentemente, responsável pelograu de cidadania de que desfruta o cidadão.

Numa sociedade como a nossa, em que a divisão de bens, de rendas e de lucros étão desigual, não se estranha que desigualdade similar presida também à distribuiçãode bens culturais, já que a participação em boa parte destes últimos é mediada pelaleitura, habilidade que não está ao alcance de todos, nem mesmo de todos aquelesque foram à escola.

Mas ler, no entanto, é essencial.E não apenas para aqueles que almejam participar da produção cultural mais

sofisticada, dos requintes da ciência e da técnica, da filosofia e da arte literária. Aprópria sociedade de consumo faz muitos de seus apelos através da linguagemescrita e chega por vezes a transformar em consumo o ato de ler, os rituais da leiturae o acesso a ela. Assim, no contexto de um projeto de educação democrática vem àfrente a habilidade de leitura, essencial para quem quer ou precisa ler jornais, assinarcontratos de trabalho, procurar emprego através de anúncios, solicitar documentosna polícia, enfim, para todos aqueles que participam, mesmo que à revelia, doscircuitos da sociedade moderna, que fez da escrita seu código oficial.

Mas a leitura literária também é fundamental.É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes

imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dosquais uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seusdesejos, suas utopias. Por isso a literatura é importante no currículo escolar: ocidadão, para exercer plenamente sua cidadania, precisa apossar-se da linguagemliterária, alfabetizar-se nela, tornar-se seu usuário competente, mesmo que nunca váescrever um livro: mas porque precisa ler muitos.

Como a manhã, que no poema de João Cabral se perfazia pelo entrelaçamento do

Page 90: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

canto de muitos galos, também a leitura, principalmente a literária, parece constituirum tecido ao mesmo tempo individual e coletivo. Cada leitor, na individualidade desua vida, vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os váriossignificados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando. Cada leitortem a história de suas leituras, cada texto, a história das suas. Leitor maduro é aqueleque, em contato com o texto novo, faz convergir para o significado deste osignificado de todos os textos que leu. E, conhecedor das interpretações que umtexto já recebeu, é livre para aceitá-las ou recusá-las, e capaz de sobrepor a elas ainterpretação que nasce de seu diálogo com o texto. Em resumo, o significado de umnovo texto afasta, afeta e redimensiona o significado de todos os outros.

Desse ponto de vista, a história da literatura de um povo é a história das leiturasde que foram objeto os livros que integram o corpus dessa literatura. No entanto, seo texto literário — mais do que qualquer outro — oportuniza leituras divergentes, hátambém o risco de que o peso e a autoridade das leituras de que ele foi objeto aolongo da história silenciem as outras tantas leituras que ele virtualmente pôde e podesuscitar em outros leitores. Nesse sentido, história e teoria literárias, quandotransformadas em argumento de autoridade, quer como justificativa para a inclusãode determinado texto ou autor no currículo escolar, quer como endosso deinterpretação deste ou daquele texto, podem ser paralisantes. Entre a interpretaçãosancionada pela comunidade intelectual e a interpretação livre do leitor anônimo,reside o equilíbrio difícil em que precisa mover-se o professor de leitura e deliteratura.

Apostando, assim, numa concepção de leitura que a vê ao mesmo tempo comoinstituição e como prática coletiva, parece que se pode privilegiar a reflexão sobre anatureza e o percurso social da leitura, deixando em plano secundário discussõessobre metodologias e estratégias que, em nome dela (leitura), costumam serincorretamente vistas como os elementos determinantes do famoso ereclamadamente ausente interesse dos jovens pela leitura.

Se algumas metodologias e estratégias propostas para o desenvolvimento daleitura parecem enganosas por trilharem caminhos equivocados, o engano instaura-se no começo do caminho, a partir do diagnóstico do declínio ou da inexistência dohábito de leitura entre os jovens. Espartilhada em hábito, a leitura torna-se passívelde rotina, de mecanização e automação, semelhante a certos rituais de higiene ealimentação, só para citar áreas nas quais o termo hábito é pertinente.

Tanto o diagnóstico (ausência ou declínio do hábito de leitura) quanto a terapia(estratégias de motivação para a leitura) sugerem alienação do modo de leiturapatrocinado numa sociedade como a nossa, o que também se revela no léxico decontrole social e de automação com que se discute a formação do professor:

Page 91: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

reciclagem, treinamento, estratégias, hábitos.Os caminhos precisam ser outros.A discussão sobre leitura, principalmente sobre a leitura numa sociedade que

pretende democratizar-se, começa dizendo que os profissionais mais diretamenteresponsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons leitores. Um professor precisagostar de ler, precisa ler muito, precisa envolver-se com o que lê.

E esse não é, infelizmente, o perfil comum do professor. Pesquisa feita entreprofessores de primeiro grau e bibliotecários de Campinas e de Recife mostroucomo o repertório de leitura desses profissionais é desolador, constituído, a maiorparte das vezes, por best-sellers tão antigos quanto Fernão Capelo Gaivota, Omenino do dedo verde e O pequeno príncipe ou pelo que se poderia chamar declássicos escolares, como A moreninha, Iracema e A escrava Isaura.

A precariedade da situação que essa pobreza de repertório indica é grave.E a gravidade aumenta quando se sabe que, para muito além do conhecimento

mecânico de metodologias e técnicas de desenvolvimento da leitura, a formação deum leitor exige familiaridade com grande número de textos. É preciso, pois, que hajaespaço para leitura nos cursos destinados a profissionais de leitura. Se afirmar issosoa redundante, cumpre lembrar que, em tais cursos, a ênfase fica geralmente porconta da prescrição de títulos, e do treinamento em atividades como fazer cartazes,recortar figuras, dramatizar textos, fazer jograis. Atividades interessantes, e quepodem realmente tornar mais agradável o tempo de escola, mas que são inócuasquanto ao papel que representam na interação leitorlivro, que é, afinal, aquilo emque a leitura consiste.

É importante frisar também que a prática de leitura patrocinada pela escolaprecisa ocorrer num espaço de maior liberdade possível. A leitura só se torna livrequando se respeita, ao menos em momentos iniciais do aprendizado, o prazer ou aaversão de cada leitor em relação a cada livro. Ou seja, quando não se obriga todauma classe à leitura de um mesmo livro, com a justificativa de que tal livro éapropriado para a faixa etária daqueles alunos, ou que se trata de um tema queinteressa àquele tipo de criança: a relação entre livros e faixas etárias, entre faixasetárias, interesses e habilidades de leitura é bem mais relativa do que fazem crerpedagogias e marketing.

Menos ou mais sofisticados, os exercícios que sob o nome de interpretação,compreensão ou entendimento do texto costumam suceder-se à leitura são, quasesempre, exercícios que sugerem ao aluno que interpretar, compreender ou entenderum texto (atividades que podem muito bem definir o ato de leitura) é repetir o que otexto diz. O que é absolutamente incorreto.

Sorry. como diz o samba, é triste, mas é a realidade...

Page 92: Do mundo da leitura para a leitura do mundo · NA ESCOLA1 Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto

... e apenas severidade e rigor permitem perceber que escola e professor são talvezos únicos pontos de ruptura da leitura alienada e consumista. E rigor e severidade deanálise sugerem também que, para que ocorra a ruptura, é preciso uma guinadaradical nos rumos que norteiam as políticas de leitura atualmente em prática.

O mecenato do Estado através do provimento de bibliotecas, o patrocínioempresarial que esporadicamente doa livros a uma ou outra escola, a ação do Estadona formação de professores constituem instâncias a que se deve (pode e tem de)recorrer. Recorrendo a elas, no entanto, é preciso que se aprenda a fazer frente aopaternalismo de que geralmente se reveste a atuação de tais instâncias, para o que épreciso que as associações profissionais conquistem espaço crítico e que, atravésdelas, a comunidade docente passe a ter voz e voto na política cultural e educacionalbrasileira. O modelo capitalista de nossa sociedade e nossa condição de paísdependente não deixam abertos outros caminhos.

Mas descaminhos há muitos.Relativamente à leitura, nosso desgoverno e nossa imaturidade política parecem

manifestar-se, às vezes, através de uma rivalidade de competências: bibliotecários,escritores, professores primários, secundários e universitários parecem desculpar-secada um de ser o que é e de não ser o outro. O resultado é o descarte, numaequivocada condenação da competência, exatamente daquilo que, por ser atributo dacultura e do saber, permite a passagem do discurso à ação, da leitura à vida, e, paraencerrar retornando ao texto de abertura, do canto de galo à luz da manhã.

1 Versão anterior deste texto constituiu palestra no 4 COLE, no ano de 1983, em Campinas, tendo,posteriormente, sido publicado na revista Leitura: Teoria e Prática, ano 3, n. 3, p. 3 - 6 , 1984.

2 MELO NETO, João Cabral de. 'Tecendo a manhã'. In:___. Poesias completas. 2. ed. Rio de Janeiro, J .Olympio, 1975. p. 19.