do fragmento à unidade

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DE ESTUDOS DA Elizabeth Dias Martins Do Fragmento à Unidade: a Lição de Gnose Almadiana

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Livro de Roberto Pontes

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  • UM ROTEIRO DE UNIDADE E CENTRAMENTO

    O livro Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana, de Elizabeth Dias Martins, d a pblico o resultado da pesquisa por ela desenvol-vida ao longo do seu curso de doutorado na Ponti-fcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

    Nas pginas deste volume temos uma exce-lente anlise da obra literria de Almada Negrei-ros, que, pelos idos de 1915, ao lado de S-Car-neiro, Fernando Pessoa e outros companheiros do Grupo Orpheu, inclusive brasileiros, foi respons-vel pela instaurao do Modernismo em Portugal.

    Almada Negreiros era o mais jovem inte-grante do grupo e da revista Orpheu, sendo o mais polivalente de todos, de modo que o seu talento lhe rendeu atuaes marcantes nas artes plsticas (emblema de seu pas), na poesia, no romance, no conto, no teatro, na prosa doutrin-ria (conferncias, ensaios, manifestos), na foto-grafi a, na arquitetura, na cenografi a, na agitao cultural, na matemtica, na astronomia e na fi -losofi a (pitagorismo), entre outras que no cabe citar nesta aba.

    Foi o autor de Nome de Guerra quem fa-leceu por derradeiro entre os de Orpheu e o nico a ter registrada sua imagem pelos meios tecnolgicos atuais: o registro sonoro da voz e da imagem por meio de fi lmagens realizadas para televiso.

    Elizabeth Dias Martins partiu do fenmeno da fragmentao do eu acicatador dos indivduos desde o advento dos tempos modernos, ainda mais pronunciado na contemporaneidade. E assim o fez porque notou que o processo de diviso sub-jetiva ocorrido com S-Carneiro e Fernando Pes-soa no ocorria com Almada Negreiros, embora os trs estivessem no mesmo barco da implanta-o do Modernismo em Portugal.

    Enquanto aqueles estavam deriva, dividi-dos interiormente, fragmentados do ponto de vis-ta subjetivo e esttico, Almada Negreiros dedicava culto inteireza pitagrica, buscava a unidade, formulando inclusive a clebre equao 1+1=1. Seu percurso foi bem diverso e sempre o de pro-curar, atravs de procedimento prprio, alcanar a gnose, o conhecimento indispensvel para a consolidao do indivduo na circunstncia de ser historicizado. Seu roteiro foi iniciado e seguido ao atravessar o portal da A.R.T.E., forma simblica pela qual reverenciava o meio mais importante que elegeu para seu dilogo com o mundo.

    Esse o roteiro de autognose traado por Elizabeth Dias Martins para desvendar com mui-ta habilidade, nas pginas do presente livro, o percurso que serve a qualquer leitor desejoso de compreender tanto o processo de autocentramen-to almadiano como o seu prprio, num momento histrico em que muito se propala o descentra-mento dos sujeitos.

    Jos William Craveiro TorresDoutorado em Literatura de Lngua Portu-

    guesa, Investigao e EnsinoFaculdade de Letras da Universidade de

    Coimbra

    Elizabeth Dias Martins crtica, ensasta, professora de Litera-tura Portuguesa na graduao e ps-graduao da Universidade Federal do Cear. Mestra em Li-teratura Brasileira (UFC) e doutora em Literatura Portuguesa (PUC-Rio). Membro do conselho edito-rial da revista Estudos Portugueses da Associao de Estudos Portu-gueses Jordo Emerenciano (PE). Pesquisadora do Grupo de Estudos de Residualidade Literria e Cultu-ral do Departamento de Literatura da UFC. Coordenadora adjunta do projeto de extenso universitria da UFC Grupo Verso de Boca. Sua atuao crtica e ensastica est expressa em inmeras revistas universitrias. autora do livro de ensaio: Rastros de rato e Clio: seis cannicos portugueses (2001).

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    Do Fragmento Unidade: a Lio de Gnose Almadiana

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    Ao longo de toda sua existncia, a Universidade Federal do Cear (UFC) vem contribuindo de modo decisivo para a edu-cao em nosso pas. Grandes passos foram dados para sua con-solidao como instituio de ensino superior, hoje inserida entre as grandes universidades brasileiras. Como um de seus avanos, merece destaque o crescimento expressivo de seus cursos de ps--graduao, que abrangem, praticamente, todas as reas de co-nhecimento e desempenham papel fundamental na sociedade ao formar recursos humanos que atuaro na preparao acadmica e profi ssional de parcela signifi cativa da populao.

    A ps-graduao brasileira tem sido avaliada de forma siste-mtica nas ltimas dcadas graas introduo e ao aperfeioa-mento contnuo do sistema nacional de avaliao. Nesse processo, o livro passou a ser includo como parte importante da produo intelectual acadmica, divulgando os esforos dos pesquisadores que veiculam parte de sua produo no formato livro, com des-taque para aqueles das reas de Cincias Sociais e Humanas. Em consonncia com esse fato, a Coleo de Estudos da Ps-Graduao foi criada visando, sobretudo, apoiar os programas de ps-gradu-ao stricto sensu da UFC. Os objetivos da coleo compreendem:

    Implantar uma poltica acadmico-cientfi ca mais efetiva para viabilizar a publicao da produo intelectual em forma de livro;

    Oferecer um veculo alternativo para publicao, de modo a permitir maior divulgao do conhecimento, resultante de refl exes e das atividades de pesquisa nos programas de ps-graduao da UFC, considerando, principalmente, o impacto positivo desse tipo de produo intelectual para a sociedade.

    Em 2012, ano de sua criao, a Coleo de Estudos da Ps-Gra-duao apoiou a edio de 21 livros, envolvendo diversos cursos de mestrado e doutorado.

    Do Fragmento Unidade:a Lio de Gnose Almadiana

  • 1Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Do Fragmento Unidade:A Lio de Gnose Almadiana

  • 2 Elizabeth Dias Martins

    Presidente da RepblicaDilma Vana Rousseff

    Universidade Federal do Cear UFCReitorProf. Jesualdo Pereira Farias

    Vice-ReitorProf. Henry de Holanda Campos

    Editora UFCDiretor e EditorProf. Antnio Cludio Lima GuimaresConselho EditorialPresidenteProf. Antnio Cludio Lima GuimaresConselheirosProfa. Adelaide Maria Gonalves PereiraProfa. Angela Maria R. Mota de GutirrezProf. Gil de Aquino FariasProf. Italo GurgelProf. Jos Edmar da Silva Ribeiro

    Ministro da EducaoHenrique Paim

  • 3Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Elizabeth Dias Martins

    Do Fragmento Unidade:A Lio de Gnose Almadiana

    Fortaleza2014

  • 4 Elizabeth Dias Martins

    Todos os Direitos ReservadosEditora da Universidade Federal do Cear Edies UFCAv. da Universidade, 2932 Benfica Fortaleza CearCEP: 60.020-181 Tel./Fax: (85) 3366.7766 (Diretoria) 3366.7499 (Distribuio) 3366.7439 (Livraria)Site: www.editora.ufc.br E-mail: [email protected]

    Coordenao EditorialMoacir Ribeiro da Silva

    Reviso de TextoRogeria de Assis Batista Vasconcelos

    Normalizao Bibliogrfica Luciane Silva das Selvas

    Programao Visual e Diagramaotalo Higor Marques Fernandes Pontes

    CapaValdianio Araujo Macedo

    Do Fragmento Unidade: a Lio de Gnose Almadiana 2014 Copyright by Elizabeth Dias MartinsImpresso no Brasil / Printed In Brazil

    Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoBibliotecria Luciane Silva das Selvas CRB 3/1022

    M379f Martins, Elizabeth DiasDo fragmento unidade: a lio de gnose almadiana / Elizabeth Dias Martins - Fortaleza:

    Imprensa Universitria, 2014.228 p. ; 21 cm. (Estudos da Ps-Graduao)

    ISBN: 978-85-7485-182-2

    1. Literatura portuguesa - 1900-1999. 2. Literatura portuguesa - histria e crtica. 3. Negreiros,Jos de Almada, 1893-1970 - crtica e interpretao. I. Ttulo.

    CDD P869.092

  • 5Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Este livro dedicado a Roberto Pontes, mestre na vida e na Poesia sempre.

    minha me, pela simplicidade e pela fora to suas, que tambm so minhas.

  • 6 Elizabeth Dias Martins

  • 7Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Irmos Antiguidade para o encontro da modernidade atual.

    Almada

    Quem no sabe Arte no na estima.Cames

    O futuro tem um corao antigo.Carlo Levi

  • 8 Elizabeth Dias Martins

  • 9Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Sumrio

    Este Livro, Seus Contributos e Inovaes .....................11

    1 No Limiar de um Percurso ............................................15

    2 O Modernismo Portugus: reflexo literrio da crise do homem moderno .......................................21 2.1 Antecedentes da crise ...........................................27 2.2 A engrenagem desarticuladora ............................51

    3 Intrassubjetividade e Intersubjetividade: as vias do conhecimento ...................................................73 3.1 Quem traa o roteiro? ...........................................73 3.2 O Eu, o outro e os Outros .....................................98 3.3 Da alteridade ao tempo unitrio e ptria .........135

    4 O Tecido de Fragmentos Igual Unidade: uma leitura de Nome de Guerra ..............................157 4.1 Articulao formal de Nome de Guerra ................157 4.2 luz do paratexto .............................................. 165 4.3 O puzzle desvendado ......................................... 170 4.4 Afinal, o roteiro de gnose .................................. 191

    5 Fechando o Trajeto ..................................................... 209

    6 Referncias bibliogrficas ...................................... 215

  • 10 Elizabeth Dias Martins

  • 11Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Este Livro, Seus Contributos e Inovaes

    O livro de Elizabeth Dias Martins, intitulado Do frag-mento unidade, consiste num estudo literrio bem arquite-tado e abrangente da obra de Almada Negreiros, o Benjamin do Grupo Orpheu, artista mltiplo de linguagens, que ao lado de Mrio de S-Carneiro e Fernando Pessoa constituiu a trin-dade mais representativa do principal movimento do Moder-nismo portugus em 1915.

    Como do conhecimento de todos, Fernando Pessoa foi o autor mais divulgado dos trs, tendo praticamente sido posto em evidncia a partir do Brasil, pois at 1960 era muito pouco conhecido em seu prprio pas e na Europa de modo geral. Somente aps a publicao do volume inaugural da Co-leo Nossos Clssicos, da Editora carioca Agir, em tiragem muito representativa, que chegou s bibliotecas dos rinces mais longnquos deste Brasil naquele j distante 1960, o autor de Mensagem foi descoberto por brasileiros, portugueses e demais leitores europeus. Passou ento a ser lido e estu-dado dentro e fora das escolas e universidades, acumulando a partir da uma fortuna crtica copiosa e sempre crescente com o passar dos dias.

    O mesmo no ocorreu com Almada Negreiros, muito mais polivalente do que Fernando Pessoa, pois era ao mesmo tempo poeta, contista, romancista, teatrlogo, ensasta, ilustrador de co-mics (revista em quadrinhos no Brasil ou bandas desenhadas para os gajos), pintor, desenhista, arquiteto, matemtico, confe-rencista, ator, agitador cultural, fotgrafo, modelo fotogrfico, ce-narista e cineasta, sendo em todos esses misteres excelente.

  • 12 Elizabeth Dias Martins

    Para que se tenha ideia da importncia da obra artstica, ela toda, de Almada Negreiros, basta dizer que o mais impor-tante romance do Modernismo portugus, hoje clssico, dele : Nome de guerra; e tambm o mais significativo de todos os pintores surgidos no pas de Cames; e todo o imaginrio plstico identificador de Fernando Pessoa e S-Carneiro para os leitores saiu de suas mos; e os manifestos de Orpheu publi-cados no momento inaugural do Modernismo lusitano so de sua autoria e de obrigatrio conhecimento da parte de quem queira conhecer a dinmica de instaurao da vanguarda na-quele movimento; e o cubofuturismo est literariamente reali-zado, como em nenhuma outra parte, em contos almadianos, a exemplo de K-4, O Quadrado azul ou A engomadeira; e que suas reflexes sobre a inteireza e a unidade, provindas de profundo mergulho nas doutrinas de Pitgoras, divergem em tudo da direo palmilhada pelos outros dois companheiros de trindade: a fragmentao, a disperso, a diluio do eu no processo esttico.

    A propsito deste ltimo tpico, bom salientar que a onde est o mrito do livro de Elizabeth Dias Martins. Foi ela capaz de demonstrar nas pginas deste volume que o Almada Negreiros aqui estudado discrepa de Fernando Pessoa, noto-riamente fragmentado em mltiplos heternimos; e de Mrio de S-Carneiro, fragmentado em duplicidade inconcilivel e ao mesmo tempo mortal.

    Almada Negreiros, ao invs, mesmo sendo mltiplo em linguagens artsticas, no endossava a fragmentao do eu rei-nante no grupo de que participou. Isso, Elizabeth Dias Martins nos faz ver quando lemos nas folhas de seu livro o percurso do roteiro de autognose almadiana. Por elas, ficamos sabendo que o autor de A Inveno do dia claro teve sempre como bs-

  • 13Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    sola a inteireza do ser, a unidade intrassubjetiva e intersub-jetiva, dois conceitos bem formulados para, ao lado de outro, o de unidade, indicar o processo prprio de construo da per-sonalidade artstica do autor de Histoire de Portugal par coeur.

    Tampouco Mrio de S-Carneiro teve a felicidade de contar com fortuna crtica to abundante quanto a de Fer-nando Pessoa, muito embora sua poesia seja detentora de um mundo singular, dramtico e surpreendente. E muito se tem a dizer sobre este infortunado poeta de Camarate tanto quanto a respeito de Almada Negreiros.

    A propsito, outra contribuio preciosa da anlise em-preendida por Elizabeth Dias Martins em torno da autognose almadiana a que exsurge quando identifica a residualidade literria e cultural pulsante na obra do autor de que se ocupa. Nesse particular, o contributo dado se acentua, pois utiliza uma teoria nova, capaz de revelar aspectos valiosos na escrita daquele que se assinava Futurista e tudo, detalhes que cer-tamente passariam despercebidos se a anlise no se apoiasse tambm na Teoria da Residualidade Literria e Cultural sis-tematizada e desenvolvida no seio da Unidade Curricular de Literatura Portuguesa do Departamento de Literatura da Uni-versidade Federal do Cear.

    Este livro produto da investigao desenvolvida pela autora, com financiamento da Capes, para obteno do ttulo de doutora em Literatura pela PUC do Rio de Janeiro, pes-quisa orientada pela professora doutora Izabel Margato, que me incumbiu de nela atuar como coorientador e a quem ora agradeo a confiana. Durante o perodo de trabalho conjunto, na aprazvel Gvea (RJ), pude privar de momentos de subido deleite intelectual tanto com a autora quanto com sua orienta-dora em razo da relevncia do assunto, da novidade aportada

  • 14 Elizabeth Dias Martins

    ao texto e do preenchimento de um claro que os resultados da pesquisa vieram a preencher.

    Na verdade, este livro elimina cabalmente uma lacuna na fortuna crtica de Almada Negreiros. Apenas este fato j justificaria sua edio, pois penso que as dissertaes de mes-trado e as teses de doutorado deveriam eleger este objetivo como primordial. Alm do mais, as linhas escritas por Eli-zabeth Dias Martins trazem aos leitores outro modo de ver certos fatos ocorridos no mbito de Orpheu, ao mesmo tempo que direciona o olhar dos aficionados da literatura portuguesa para novo modo de compreender as participaes de Almada Negreiros, Fernando Pessoa e Mrio de S-Carneiro trio de altssimo realce, responsvel pelo mais importante movimento do Modernismo da terra de Lus de Cames, Ea de Queirs e Jos Saramago.

    Roberto PontesPoeta e crtico. Doutor em Literatura

    pela PUC-RJ e professor da Universidade Federal do Cear.

  • 15Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    1No Limiar de um Percurso

    Salve-se o Homem inteiro a todo o custo! Almada

    difcil pensar em Almada Negreiros sem nos vir mente, de imediato, a ideia do artista multifacetado que foi um dos principais nomes do Modernismo em Portugal.

    Homem instigante, combativo, aguerrido na defesa de suas propostas, futurista confesso, Almada dividiu-se entre as vrias formas de expresso da arte. Foi poeta, romancista, ensasta, contista, dramaturgo, ator, pintor, caricaturista, dese-nhista, cengrafo, bailarino, variantes artsticas essas que so evidentes projees concretas de sua personalidade mltipla, na qual cabia o prprio com sua unidade.

    Autor longevo, ltimo remanescente de Orpheu, Al-mada Negreiros assimilou a variada experincia dos movi-mentos estticos de seu tempo. Ao modo de Ea de Queirs tambm foi um remaker, indicativo de que a arte para ele no era fruto do simples improviso, e sim resultado de muito estudo e experimento.

    A consequncia de tanto esmero no poderia deixar de ser uma obra dotada de alto grau de completude de que s o prprio artista, por excesso de exigncia e de rigor, poderia temporariamente ter duvidado.1

    1 MOURO-FERREIRA, David. Lmpadas no escuro: de Herculano a Torga: ensaios. Lisboa: Arcdia, 1979, p. 171.

  • 16 Elizabeth Dias Martins

    Sua produo artstica deixa entrever processo mui-to peculiar de conscincia e de planejamento da obra rea-lizada, pois em seus conceitos a arte se mesclava ao prazer do conhecimento.

    Almada tambm no entendia nem o esprito nem a alegria seno atravs da Arte,2 palavra que sempre grafou com inicial maiscula. A convico do poiein levou-o a entrar para a vida sem hesitao por aquela [porta] que tinha em cima es-tas quatro letras A,R,T,E, (OC, 738).3 Almada referia-se assim porta da Arte que, para ns, significou igualmente a entrada para o universo literrio almadiano.

    O objetivo deste livro demonstrar que a obra produ-zida pelo escritor tomeense, cuja feio a de um puzzle, se traduz numa unidade final que revela um roteiro de gnose e de aprendizagem alternativo para a fragmentao interior dos in-divduos pressionados pelas bruscas alteraes impostas pela sociedade moderna.

    Portanto, os captulos a seguir esto dispostos numa or-dem necessria ao aprofundamento da tese neles defendida, de modo a verificar que a teoria confirma o roteiro de gnose al-madiano apontado por hiptese, tanto quanto a arte corrobora a cincia que estuda casos concretos.

    2 Modernismo (NEGREIROS, Almada. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 734-745). Nesse texto, encontramos a interseo entre arte, indivduo e ptria. O autor afirma que sua vida fez-se realidade por meio da arte e que esta no possvel sem a ptria do artista. Vislumbra-se, nas afirmaes de Almada, algo de circunstancial relacionado ao fazer artstico; e este ser um ponto importante no desenvolvimento de nossa anlise.3 Todas as referncias obra de Almada Negreiros sero colocadas no prprio texto, conforme o seguinte padro: OC equivalente ao volume da Obra completa, citado na nota anterior , acompanhado do nmero da pgina. As demais obras referidas, assim como as observaes necessrias compreenso de passagens do texto, sero colocadas em notas de rodap.

  • 17Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    O primeiro deles se prope a esclarecer historicamen-te os problemas de descentramento, fragmentao e perda de identidade, prprios do homem que viveu entre o final do s-culo XIX e sculo XX, os quais tm origem num passado re-moto e alimentam a literatura com temas como os da busca de si, da fugacidade do tempo e do temor da morte.

    Assim, obrigatrio discorrer a respeito dos antece-dentes da crise interior do homem a partir da Antiguidade clssica, passando pela Idade Mdia, em suas duas fases, e pela Renascena, at chegar-se Idade Moderna e moder-nidade quando se aguam os questionamentos humanos re-lativos interioridade.

    Na Idade Antiga indispensvel repassar que o homem estava em perfeita integrao com as foras elementares da na-tureza e o politesmo pago, a ele no se impondo a inquietude da falta de identidade, a angstia da perda da noo do todo, nem o estigma da fragmentao interior, e muito menos o des-centramento causado pelo ritmo vertiginoso da vida moderna a partir das Revolues Industriais.

    A retrospectiva da Idade Mdia enfatiza o primado do monotesmo e da religio catlica desde que esta se torna cren-a oficial, a passagem do antropocentrismo para o teocentris-mo e o surgimento dos burgos precursores das cidades de hoje.

    A do Renascimento destaca uma nova glorificao do homem e do materialismo em oposio ao que divino, com uma volta aos valores da Antiguidade clssica. Destaca igualmente o poder da inteligncia humana, que passa a ser reconhecida em sua capacidade interveniente sobre a nature-za, merc da descoberta de que nada se explicava pela ao divina. Alm disso, pe nfase na perplexidade do homem ao descobrir sua pequenez em relao infinitude do cosmos,

  • 18 Elizabeth Dias Martins

    confronto que termina por instaurar as tenses verificveis no perodo Barroco.

    Na Idade Moderna, o captulo rev o agravamento dos problemas humanos em razo do uso indiscriminado da cin-cia e da tecnologia, como ensaio mefistoflico cuja eficcia se volta contra o prprio indivduo. A par disso, so examinados os percalos histricos, econmicos, polticos e sociais do des-centramento, da fragmentao e da perda de identidade. A n-fase da anlise relativa a esse perodo recai na perda da noo de totalidade que irremediavelmente afeta os seres humanos no intervalo dos sculos antes indicados.

    O segundo captulo, dividido em trs tpicos, trata gene-ricamente dos processos (intersubjetividade e intrassubjetivi-dade) que podem conduzir os indivduos gnose e unidade.

    No tpico de abertura, vai levantada a questo atinente voz que referenda o roteiro sugerido na obra que se estuda. No seguinte, tem-se o exame da problemtica relativa alteridade como elemento fundamental s duas vias do conhecimento, o de si e o do mundo.

    Enfim, o segundo captulo se conclui com a lio al-madiana consoante a qual na convivncia com o Outro, no mundo, que o indivduo se descobre ao mesmo tempo unida-de e diversidade para seguir, em colaborao, a direo nica que indica.

    No terceiro e ltimo captulo tem por objetivo geral mostrar no romance Nome de guerra a representao do rotei-ro de gnose e aprendizagem por ns vislumbrado no conjunto da obra sob exame.

    O tpico de abertura discorre acerca de quatro elemen-tos formais da diegese: narrador, focalizao, discurso, fisiono-mia prpria (puzzle).

  • 19Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    O tpico segundo dedicado ao estudo dos personagens do romance, analisados na perspectiva da representao e da funo de cada um deles dentro do roteiro diegtico de gnose e aprendizagem de Antunes que encarna o eu plural.

    Por ltimo, examina-se como o protagonista desenvol-ve, passo a passo, sua caminhada em direo ao processo final de individuao, aquele que a terminologia almadiana nos diz ser o atingimento do prprio.

  • 20 Elizabeth Dias Martins

  • 21Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    2O Modernismo Portugus: Reflexo literrio da crise do homem moderno

    O novo existe e pode mesmo dizer-se que precisamente tudo o que h de mais antigo. Eugnio Delacroix

    Almada Negreiros nasce no ano de 1893, em plena vi-gncia do Simbolismo, momento de crise finissecular distin-guida de modo claro na literatura do perodo. A crise de va-lores que se abate sobre os intelectuais tem reflexo em obras cuja temtica contaminada pelo profundo pessimismo do homem e sentimento de decadncia da civilizao decorren-tes, ambos, dos malefcios advindos da Revoluo Industrial e da descrena nos mtodos de abordagem do real atravs da Razo e dos pressupostos cientficos e positivistas.4

    Tomados pelos princpios platnicos, segundo os quais o real apenas aparncia, filsofos, a exemplo de Schopenhauer, descartaram a possibilidade de explicar a realidade pelo mtodo emprico. Alm disso, a industriali-zao instabilizou gostos, modas e valores, que passaram a ser regidos pela velocidade das mquinas e, portanto, pela mudana e a efemeridade.

    4 GOMES, lvaro Cardoso. Simbolismo e Modernismo. In: MOISS, Massaud (Org.). A literatura portuguesa em perspectiva. So Paulo: Atlas, 1994, v. 4, p. 15.

  • 22 Elizabeth Dias Martins

    O pessimismo reinante naquela poca decorria princi-palmente do fato de que o conhecimento humano no se esgo-tava na cincia, no real e no emprico, abrindo-se-lhe a via do Desconhecido, do inconsciente e do mais alm inacessvel aos homens.5

    Em Portugal, essa crise se agravava de modo particular, devido ao Ultimato e, concomitantemente, crise financeira e econmica por que passou o pas nos anos de 1890-1891. O abalo na economia portuguesa, da decorrente, j se iniciara com a perda da colnia brasileira, aps a independncia desta em 1822. A soluo encontrada foi construir um outro Brasil,6 que seria possvel nas possesses do litoral africano. A palavra de ordem do momento, segundo o historiador Jos Hermano Saraiva, no foi outra seno organizar um imprio africano e coordenar as economias metropolitanas e ultramarinas.

    Os portugueses j estavam em frica desde os descobri-mentos, mas sem que realizassem o necessrio povoamento daquele continente, dada a falta de adaptao ao clima. Po-rm era hora de superar percalos e partir para a criao do imprio africano. Mal sabiam os portugueses que as condi-es climticas que lhes eram adversas favoreciam o plantio de algodo que supriria as necessidades das fbricas inglesas. De nada valeram a Portugal as teses da precedncia secular e dos padres manuelinos. [...] O direito frica devia provar-se pela posse presente, atestada por guarnies de soldados, e no por argumentos histricos.7

    5 GOMES, 1994, p. 15.6 SARAIVA, Jos Hermano. Histria concisa de Portugal. 16. ed. Mira-Sintra: Europa-Amrica, 1993, p. 337.7 Ibid., p. 341.

  • 23Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    A primeira das potncias interessadas em explorar a economia africana foi a Inglaterra, seguida pela Alemanha, a Frana e a Blgica. Nasceu o projeto do mapa-cor-de-rosa, mas a Inglaterra protestou porque havia reas demarcadas que eram de interesse dos britnicos.

    Portugal, apesar de continuar as tentativas do reconhe-cimento das teses histricas, foi realizando ocupaes desde Angola a Moambique. As pontas do movimento j no es-tavam longe uma da outra quando comeava o ano de 1890, descreve Jos Hermano Saraiva, que continua dizendo:

    Na manh de 11 de janeiro de 1890, uma nota inglesa exigiu do governo de Lisboa que, at tarde desse dia, mandasse retirar as tropas portuguesas que se encon-travam no vale do Chire. Um cruzador esperava a res-posta. O Governo ento cedeu.8

    A possesso portuguesa em frica tinha grande importn-cia para o pas e, por isso o Ultimato causou profunda comoo no povo lusitano. Entre os escritores dos anos 90 do sculo XIX, ocorreu algo semelhante ao que se passara com a gerao de 70 do mesmo sculo, ou seja, grande euforia na luta pela defesa dos inte-resses do pas, seguida de profunda disforia. Aqueles intelectuais, a seu tempo, foram tomados por grande mpeto revolucionrio na luta pela proclamao da Repblica, e depois, descrentes das ideias defendidas, a eles nada mais restou seno o desalento; assim acaba-ram por constituir o grupo denominado Vencidos da Vida. A partir de ento, mais forte foi a crena nos preceitos hedonistas do que nos postulados positivistas, ou mesmo nos do socialismo utpico; no preciso dizer que preferiram o gozo dos prazeres da vida.

    8 SARAIVA, 1993, p. 342-343.

  • 24 Elizabeth Dias Martins

    A capitulao do governo portugus diante do Ultimato causou uma revolta popular, unindo jornalistas, polticos, mi-litares, escritores e muitas outras classes de profissionais que expressaram em unssono seu sentimento nacionalista mani-festo nas mais variadas vozes da literatura, a exemplo das de Joo de Deus, Camilo Castelo Branco, Tefilo Braga, Antero de Quental, Antnio Nobre e Guerra Junqueiro. A Ode In-glaterra, deste ltimo, teve grande repercusso no pblico to-mado pelo clima revolucionrio.

    Aps esse momento de exaltao, surgem duas tendn-cias espirituais opostas, mas ligadas entre si. A crena na re-novao da Ptria [...], retomando o nacionalismo de Garrett, impregnado de sentimento saudosista, crena que repercutiu nas obras de Antnio Nobre, Alberto de Oliveira, Afonso Lo-pes, e na de Teixeira de Pascoaes, ou mesmo no nacionalismo mtico de Fernando Pessoa. A segunda tendncia se contrape ao ufanismo, de inspirao nacionalista e reflete a derrota de Portugal ante os ingleses, gerando desencanto e descrena ex-cessivos, como no caso do suicdio de Antero de Quental.9 Nes-se momento, em vez do fragor revolucionrio o sentimento de derrocada vir tona, secundado pelo niilismo, pela bonomia, pelo voltar-se para os mais simples e as tradies portuguesas.

    Se por esse prisma houve uma aproximao do Simbo-lismo com o Realismo, esteticamente, do Romantismo que a escola de Eugnio de Castro vai acercar-se, desde que os Simbolistas se voltam para uma temtica residual,10 ainda de

    9 GOMES, 1994, p. 25.10 A teoria da residualidade foi sistematizada pelo poeta e ensasta Roberto Pontes no ensaio Uma desleitura dOs Lusadas (Revista Escrita III PUC-Rio, 1997) e na sua tese de doutorado O jogo de duplos na poesia de S-Carneiro (Fortaleza: Edies UFC, 2012).

  • 25Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    mentalidade romntica, qual seja a de dar nfase ao emotivo em detrimento do racional; em outras palavras, a rejeio do racionalismo substitudo pelo idealismo.

    Porm o Simbolismo no apenas uma esttica enraiza-da no passado prximo, pois nessa esttica podemos vislumbrar j alguns indcios do Modernismo cujo surgimento se daria a partir das duas primeiras dcadas do sculo XX em Portugal.

    Nas obras de Camilo Pessanha e Antnio Nobre detec-tamos temtica prpria da crise de subjetividade finissecular que se estende ao Modernismo, e nele se agrava. Exemplos do que se afirma so questes como a do tempus fugit e a da busca do conhecimento de si e do mundo, numa profunda luta pelo alcance de identidade, as quais so indcios que nos permitem entrever no Simbolismo um Modernismo avant la lettre.

    Esse o quadro do perodo no qual Almada Negreiros nasceu. Porm, no tocante aos conflitos desnorteadores que afetam o equilbrio do homem moderno,11 no ser muito di-ferente o panorama que marca o incio da produo artstica de Almada, ocorrida j em pleno sculo XX, cuja estreia se d como ilustrador e caricaturista em 1911.12

    Se, como vimos, Almada Negreiros nasceu num momen-to difcil, sublinhamos haver vivido e produzido por algum tem-po tambm em meio a grandes conflitos humanos e coletivos. Assim foram os anos das duas Grandes Guerras Mundiais, ha-vendo Portugal tomado parte na primeira delas, consequncia

    11 Referimo-nos ao equilbrio geral dos seres humanos, em tese, e no in casu, pois nosso raciocnio parte da regra para a exceo. Sendo a normalidade a regra e o desequilbrio a exceo. 12 Em 1914, publica Frisos, no Portugal artstico, n 1, em 1915 escreve A engomadeira e comea a colaborar com Orpheu, que inaugura o Primeiro Modernismo portugus.

  • 26 Elizabeth Dias Martins

    ainda do Ultimato, para no perder as colnias africanas. Tudo isso vai agravar a crise iniciada no Simbolismo, pois toda a Eu-ropa sofria as graves repercusses do perodo belicoso.

    Mas toda essa problemtica humana e social no eclodiu apenas em fins do sculo XIX e incio do sculo XX. Estava ali a culminncia de um quadro conflituoso que se vinha forman-do ao longo dos anos, e de quando em vez subia tona. Essa crise de valores, identidade, a angstia ante o caminhar para a morte relacionada fugacidade do tempo, disseminada j nas obras literrias do perodo Modernista, se delineava, porm, de modo diverso e menos traumtico nos problemas de ordem religiosa, quando da alternncia ocorrida entre o politesmo pago, o monotesmo, o antropocentrismo, e a ciso da Igreja Catlica, at chegar morte de Deus, na poca moderna, e s descobertas cientficas de grande repercusso no mbito filo-sfico, cultural e religioso.

    Por outro lado, as Revolues Industriais, em particular a do ao e a da eletricidade, de 1860, fizeram que a partir de ento o mundo fosse regido pela batuta da mudana, da novidade e da ve-locidade. Portanto, essas questes remontam era crist medieval, perodo no qual o homem se fez fustico e problemtico, a partir de quando se quis demiurgo e pactuante com as foras naturais.

    Temos de recuar ao medievo, se quisermos compreen-der desde a origem a crise que atormenta o homem moderno e se reflete nas obras literrias da esttica do perodo strictu sen-so chamado Modernismo. S assim nos ser dado compreen-der por que entre os autores do Modernismo portugus houve uma incessante busca de completude a redundar em obra; por que todos se viram de repente reunidos em torno da duplici-dade e do homem cindido; por que todos estiveram procura da compreenso do Eu em relao a si e ao mundo.

  • 27Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    2.1 Antecedentes da crise

    Inicialmente, h que examinar o perodo da Antiguidade Clssica, no qual o homem era glorificado e vivia em completa integrao com a natureza e suas foras elementares, momento da convivncia entre deuses e seres humanos, que vai da Gr-cia Antiga a chamada Idade de Ouro at o perodo em que ocorre o desfazimento do Imprio Romano. Foi o maior dos sofistas, Protgoras, que resumiu a ideia central desse perodo quando formulou: o homem a medida de todas as coisas. Com o desenvolvimento do individualismo, no sculo V a.C., a religio e a filosofia se voltaram para a soluo de problemas prticos e cogitaes relacionadas ao prprio homem.

    tambm nos sofistas que encontramos a ideia matriz de que a percepo sensorial a nica fonte do conhecimento, teo-ria ulteriormente proclamada por estoicos e epicuristas ainda no perodo clssico. O mesmo princpio foi retomado por Thomas Hobbes, no sculo XVII, e constituiu uma das principais con-cepes da filosofia do Iluminismo. Por fim, foi sistematizado pelo filsofo John Locke, consolidador da teoria sensacionista.

    Provenientes das percepes sensoriais, a verdade e a moral foram relativizadas. A inexistncia de cnones absolutos gerou uma reao favorvel ao surgimento de um novo movi-mento filosfico com base no pensamento de Scrates, Plato e Aristteles, em cujas concepes esto assentadas muitas das principais correntes filosficas e estticas da modernidade. Basta lembrar Schopenhauer com sua contestao ao positi-vismo, cuja base a filosofia platnica das ideias.

    Com o advento da Idade Mdia, o cristianismo de-cretado religio legal do Imprio Romano, dando-se o pre-domnio da viso teocntrica do mundo orientada por e para

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    somente um Deus, ocorrendo o primado do monotesmo, que substituiu o politesmo pago. Nesse perodo questo assente o homem vivia em perfeita comunho com seu Deus judai-co-cristo. Mesmo os interesses da filosofia e da cincia deve-riam estar a servio da religio.

    Na segunda fase da Idade Mdia ocorreram mudanas no cristianismo sem que abalassem o principal artigo da f crist, o monotesmo. Por volta do sculo XI surgem os bur-gos, num perodo em que as cidades passam a ser autnticos centros de desenvolvimento intelectual e artstico.

    Respondendo acerca da presena da Idade Mdia nos nossos dias, o historiador Jacques Le Goff afirma que, repen-sada, ela entendida como perodo em que aparecem coisas essenciais para a nossa sociedade. Uma delas, como ressalta o historiador, o nascimento das cidades como hoje as conhe-cemos, afirmando mais que a cidade medieval, [...] algo de ainda vivo e a matriz das nossas atuais redes urbanas.13 Ou seja, a cidade moderna pode ser vista, em ltima anlise, como um resduo da sociedade medieval em nossa poca.

    Na transio da Idade Mdia para a Moderna, a Renas-cena ir incorporar certo nmero de ideais como o otimismo, os interesses terrenos, o hedonismo, o naturalismo, o indivi-dualismo e o mais importante o humanismo.

    D-se o retorno ao antropocentrismo, glorificao do homem e do que material em oposio ao divino e ao ex-traterreno. D-se a descoberta de novas terras, novos meios de transporte so inventados, novos instrumentos auxiliares de navegao so elaborados pela cincia. Esta, em compasso

    13 LE GOFF, Jacques. Reflexes sobre a Histria. Lisboa: Edies 70, 1982, p. 107-108.

  • 29Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    prprio, avana, levando o homem a acreditar no poder que lhe advm da inteligncia.

    Com o incio das grandes navegaes e dos descobri-mentos, o homem se v colocado no centro da Histria. Po-rm, mudanas significativas na cincia abalam a f crist e a posio do homem no Universo, posto que o cabedal de novos conhecimentos gerados nas universidades durante a Renas-cena fez aflorar um modo de compreenso do cosmos dife-renciado do que vigorava na sociedade medieval. Sobre essa mudana de perspectiva do homem em relao ao cosmos, a Deus e a si prprio, Edward MacNall Burns observa:

    Os homens no mais concebiam o universo como um sistema finito de esferas concntricas a girar em torno da terra e existindo para glria e salvao do homem. O reviver, j no sculo XV, da teoria heliocntrica su-geria um cosmos de extenso infinitamente maior, em que a terra no era seno um dos numerosos mundos. Afasta-se, assim, para muito longe o objetivo do co-nhecimento humano, pois que o universo, de acordo com a nova concepo, j no podia ser explicado to fcil e simplesmente, em termos da epopeia crist.14

    Estava definitivamente abalada a f do homem medieval depositada em Deus, ou ainda a segurana de que todos os fa-tos ocorridos a seu redor se explicavam na ou pela ao divina. O desfazimento desse centro catalisador mexeu com o equil-brio humano. Mas os efeitos da chamada Revoluo Coper-nicana no puseram em discusso apenas a f na palavra de

    14 BURNS, Edward McNall. Histria da civilizao ocidental. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1968, v. 1, p. 392-393.

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    Deus. Tambm ficou abalada a crena do homem no prprio poder, na prpria capacidade demirgica, pois o triunfo da te-oria heliocntrica, conforme Burns:

    Subverteu a concepo medieval do universo e prepa-rou o caminho para as ideias modernas do mecanicis-mo, do ceticismo e do tempo e do espao como gran-dezas infinitas. Infelizmente, contribuiu tambm para o declnio do humanismo e a degradao do homem, visto que o arredava da sua posio majesttica de cen-tro do universo, reduzindo-o a um mero gro de p na mquina csmica infinita.15

    A filosofia do perodo de decadncia da cultura renas-centista tendeu a exaltar o Universo, enquanto o homem ia sendo reduzido a papel insignificante, como vtima desampa-rada de um destino todo poderoso.16

    O Renascimento foi um perodo cheio de aconteci-mentos importantes, mas um tanto contraditrios: descober-tas cientficas, expanso geogrfica das grandes navegaes, glorificao e libertao do indivduo; retorno ao estado de ignorncia caracterstico do comeo da Idade Mdia com a persistncia das supersties, a crena na feitiaria, os ab-surdos das perseguies inquisitoriais e a crise da Igreja; implantao do sistema capitalista, ascenso da burguesia gerncia do poder econmico e restabelecimento da escravi-do. Em meio a essa conjuntura conflituosa de crise espiri-tual, moral e cultural desencadeada pela decomposio dos valores da Renascena e pelos abalos sofridos pela Cincia,

    15 BURNS, 1968, p. 416.16 Ibid., p. 443.

  • 31Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Religio, e tica,17 o homem passa a enfrentar um processo de desarticulao da sua unidade devido ao desfazimento de uma estrutura bem montada de conceitos e princpios custa

    [...] da falaciosa ideia de que havia uma correspondncia especular entre o macrocosmo e o microcosmo, a garan-tir a perfeita harmonia entre os planos divino e humano, entre a alma e o corpo, entre a f e a razo, entre a tica e a moral. Desterrada a Utopia, nnias ecoaram por toda a parte, acentos saudosos de um mundo perdido.18

    Da angstia gerada por essa quebra da unidade surgem as tores asfixiantes do Barroco, para onde podemos recuar toda a inquietao do indivduo em demanda de si mesmo, as-sim tambm as marcas de desencanto, a soturnidade e a inquie-tao visveis mais tarde no Romantismo, tambm tpicas do decadentismo simbolista, alm de ingredientes fundamentais da potica de crise do Modernismo. Cada instante da vida um passo para a morte, nos diz o professor Peter Skrine (1987) tomando de emprstimo as palavras do imperador romano Tito, personagem da tragdia de Corneille. E continua:

    Os personagens que habitam o mundo barroco no po-dem esquecer completamente o quanto a vida curta e precria, comparada certeza e ao carter definitivo da morte. A morte em si no nada, mas nos assusta, no sabemos o que somos, nem sabemos para onde vamos.19

    17 SILVEIRA, Francisco Maciel. Barroco. In: MOISS, Massaud (Org.). Literatura portuguesa em perspectiva. So Paulo: Atlas, 1993, v. 2. p. 89.18 Ibid., p. 89.19 SKRINE, Peter. Era barroca: a exuberncia e a angstia. O Correio, Rio de Janeiro, ano 15, n. 11, nov. 1987, p. 7.

  • 32 Elizabeth Dias Martins

    A anlise da movimentao dos astros e os mistrios do cos-mos esto intrinsecamente relacionados com a arte barroca que procura reproduzir a realidade captada, com todo o movimento que lhe inerente, no sendo esse o caso da arte clssica, bem definida por seu carter esttico. Deve-se a essa dinamicidade caracterstica do Barroco a ideia constante da permanncia efmera do homem na terra. Portanto, a morte no era, sozinha, elemento desencadea-dor da aflio do homem; caminhava atrelada ao tempo que passa com sua sombra fatal no qual tudo perece e se corrompe.20

    Precisamente, no sculo XVII, a cincia consegue apri-sionar o tempo numa caixa mecnica, com a inveno do rel-gio de pndulo e do mecanismo de corda dos relgios que vo proporcionar a dimenso do fluir temporal, do tempus fugit. O tempo, antes medido pelas estaes do ano, meses e dias, ou mesmo pelas horas do ofcio divino, passa a ser um dado es-sencial para percebermos a mudana de mentalidade ocorrida nessa fase da Idade Mdia, e em todos os momentos em que o homem teve de adaptar-se s mudanas na sua medio.

    A contagem mecnica do tempo que marca a mudana de mentalidade ocorrida na segunda fase da Idade Mdia imprescindvel para a compreenso da angstia do homem diante do fluir temporal, e o tambm para constatarmos que o nascimento de qualquer novo sistema social, econmico, filosfico ou cientfico s se torna possvel porque antecedido por mudana de atitude mental diante dos princ-pios inerentes a qualquer desses sistemas. significativo o exemplo que Philippe Aris colheu de Jacques Le Goff, aqui a servir de base para alicerar nossa fundamentao. Leiamos as palavras do historiador:

    20 Ibid., p. 7.

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    O tempo da Igreja era bem dividido pelos sinos, que chamavam monges e cnegos ao ofcio do coro, para o canto das Horas. Ainda era um tempo desigual, segundo nossos usos: o tempo do dia era dividido maneira romana, em perodos de cerca de trs horas; o da noite, repartido entre a prece e o repouso, era re-cortado pelas vsperas do fim da tarde, as matinas do meio da noite e as laudes da aurora. J eram, contudo, horas fixas que impunham certas regulari-dades jornada de trabalho dos camponeses, (...). O tempo do monge e o do campons se harmonizavam, embora ain-da no coincidissem totalmente. As coisas mudaram com o que J. Le Goff chama de tempo dos comerciantes. [...] Um tempo que devia tomar emprestado da igreja o sino [...]. Ora, aconteceu ento algo de surpreendente e apaixo-nante. Nada mais conservador e tenaz do que a me-dida do tempo. Assim o tempo do operrio foi calca-do, primeiro [...] sobre as horas do ofcio divino. Este comeava com a prece da manh, e terminava com as nonas, por volta das trs da tarde. [...] Era, em Roma, o tempo do Frum [...]. Em suma, a jornada contnua. No sculo XIII, aconteceu de um lado que esse tempo no satisfez mais s necessidades, nem dos comercian-tes, [...] nem dos operrios, e, de outro lado, que no se imaginava possvel a inveno de outro tempo melhor adaptado [...]. Ento, o tempo da Igreja foi [...] mani-pulado a fim de ser subordinado, por uma espcie de compromisso, ao tempo dos trabalhadores.21

    Veio a nona que a princpio se estabeleceu em torno de trs horas da tarde, depois por volta de duas e, por fim passa

    21 ARIS, Philippe. A histria das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A Histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 154-176.

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    a situar-se ao meio-dia. Essa marcao temporal seria carac-terizada, da em diante, como a pausa do trabalhador, o que assegurar, a partir do sculo XIV, a meia jornada de traba-lho. No nosso sculo, durante muitos anos, predominou esse regime, at ser suplantado pelo interesse capitalista do lucro imoderado. Moto-contnuo, o comrcio e a indstria deixaram de fechar as portas para o almoo e os empregados se reveza-ram em turnos para fazer as refeies. Atentemos agora para as concluses de Philipphe Aris aps tomar como elemento de anlise o tempo. Diz ele que o exemplo dado

    [...] insignificante apenas na aparncia, pois tudo o que concerne s repeties banais da existncia torna-se trao essencial de mentalidade. Exemplo caracterstico do que chamamos mentalidade e que aparece melhor no momento em que essa mentalidade muda.22

    O fluir temporal, a fugacidade, a efemeridade, a veloci-dade do tempo e dos acontecimentos foram percebidos com grande aflio pelo homem do sculo XVII. Porm nos poetas barrocos, paradoxalmente, segundo Peter Skrine, a percepo da voracidade do tempo, o arrebatamento do que se ama, a sensao de fragilidade, a onipresena do tmulo aberto a lem-brar que a carne mortal e que homem apenas o p, se tra-duziu por um extraordinrio apetite de viver e desfrutar a vida.23

    Cabe ressaltar serem os exageros hedonsticos manifesta-dos pelos poetas satnicos, diante do pessimismo e da crise de valores no perodo romntico, prova cabal da presena de res-duos da mentalidade barroca nos escritores do sculo XVIII. Nas

    22 ARIS, 1998, p. 165-166.23 SKRINE, 1987, p. 7.

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    especulaes dos simbolistas acerca do tempo detiveram-se eles na considerao da efemeridade da vida, enfatizando a necessi-dade do homem permanecer ancorado no passado; e exploraram o tema do fluxo do tempo como causa da fragmentao do real.24

    No Modernismo esse estado se traduz no tedium vitae e no culto velocidade, paradoxo aproximativo da atitude men-tal dos escritores dos dois perodos. Em Sentido e no-senti-do na crise da modernidade, H. C. Lima Vaz (1994) explica a origem da crise que levou o homem a temer o tempo, desde quando entendeu passara a caminhar dia a dia, celeremente, em direo morte:

    As civilizaes religiosas do passado encontraram no re-conhecimento de um Sagrado primordial, do qual a vida humana de alguma maneira participava, a descoberta de um Princpio transcendente, foco primeiro do ser e do sentido, luz do qual era possvel encontrar razes para a insensatez da violncia e da morte. Nossa civilizao no--religiosa afasta-se desse caminho. Ao fazer do prprio homem o princpio imanente do sentido, ela eleva digni-dade ontolgica de um absoluto a liberdade antropocn-trica. A experincia mais radical dessa liberdade consiste, ento, no medir-se com esse outro absoluto que a morte ou, antes, no identificar-se com ele. Tal a consigna do ser--para-a-morte, proclamada por Martin Heidegger como o selo de autenticidade da existncia humana. Essa, em suma, a lgica da morte moderna, agudamente ana-lisada por R. Hesse, e que desenha a face mais brutal do niilismo tico do nosso tempo.25

    24 GOMES, 1994, p. 42.25 VAZ, Henrique C. de Lima. Sentido e no-sentido na crise da modernidade. Sntese nova fase, Belo Horizonte, v. 21, n. 64, jan./mar. 1994, p. 13.

  • 36 Elizabeth Dias Martins

    Enfrentar a violncia e a morte no mais como simples fa-tos da natureza; foi esta a grande consequncia da experincia ra-dical ousada pela nossa civilizao, que pensou ser fcil atribuir ao sujeito, antes situado e finito, a responsabilidade propriamen-te infinita de suportar todo o universo humano do sentido.26

    At essa altura do sculo XVII, as mudanas no com-portamento, as alteraes dos valores morais e das atitudes mentais do homem, assim como as crises desencadeadas no esprito humano, so geradas pela disputa entre a Cruz e o Telescpio para o domnio do mundo.27

    No sculo XVIII no ocorrer de modo diverso, pois desde o Renascimento se observava uma tendncia a no su-bordinar as realizaes humanas s leis divinas; portanto, a nfase recai sobre o telescpio. Esse propsito vai ser muito mais aprofundado com a introduo das ideias racionalistas e mecanicistas do Iluminismo, de Isaac Newton e John Locke, sobre natureza, Deus, conhecimento e verdade.

    Newton compreendeu que ao Universo deveria ser estendida a ideia das leis fsicas invariveis, pois que as-sim seria possvel conceber uma natureza movida meca-nicamente por fenmenos universais to precisos quanto os principia mathematica. Com isso, caram por terra as concepes do medievo segundo as quais o Universo se regulava por uma finalidade benvola e, ainda, que Deus governava o movimento dos astros.

    Os experimentos cientficos levaram o homem a descrer de problemas considerados insolveis; a cincia passou a ser depositria das possibilidades de preenchimento das lacunas

    26 Ibid., p. 13.27 SILVEIRA, 1993, p. 91.

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    existentes em antigas suspeitas acerca dos fenmenos da natu-reza, ou do cosmos em geral; o primado do emprico defendi-do pelo iluminismo racionalista28 aguou o desejo de chegar s respostas do que antes era considerado indecifrvel.

    J no Barroco teve incio uma tendncia humana geral de ningum mais deixar-se levar por aparncias ilusrias; surge a gnoseologia, baseada na hipertrofia dos sentidos, e a viso pas-sa a merecer maior importncia: [...] no parece obra do acaso o desenvolvimento e explorao, no Barroco, do microscpio (1590) e do telescpio (1608).29 Mas isso no bastava. O teste-munho dos sentidos j no era suficiente para que o homem ul-trapassasse a camada das aparncias e alcanasse a essncia dos fenmenos, dos acontecimentos do Universo. Esse algo mais indispensvel s pesquisas foi atribudo Razo pela filosofia iluminista. Os fenmenos da natureza, explicveis luz da Ra-zo e dos princpios cientficos, j no decorriam de milagres ou da interveno divina e, apesar de que a filosofia iluminista no negasse a existncia de Deus, nesse momento Ele represen-tava uma causa primeira, identificvel a uma Razo Superior que concebera e azeitara a mquina do Universo.30

    John Locke ser o sistematizador do princpio segun-do o qual todo conhecimento humano deriva das percepes sensoriais.31 Porm, segundo esse filsofo, para atingir o co-nhecimento mais elevado o homem necessita mais do que as descobertas advindas das sensaes, pois essas s so as ideias

    28 A expresso utilizada est conforme BURNS, 1968, p. 555, 557, 570.29 SILVEIRA, 1993, p. 91.30 Ibid., p. 167.31 Essa teoria j foi proclamada desde o perodo clssico pelos sofistas, defendida depois pelos estoicistas e epicuristas, e retomada por Thomas Hobbes, antes de chegar metodizao lockiana.

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    simples; a essas tm que ser somadas as ideias complexas, ad-vindas do uso da Razo. Ambas so indispensveis: [...] uma para fornecer ao esprito a matria-prima do conhecimento e a outra para trabalh-la, dando-lhe uma forma significativa. Assim, sensacionismo e racionalismo, combinados, passam a ser os elementos constitutivos bsicos da filosofia Iluminista.32

    Todavia, surge uma contradio fundamental no scu-lo XVIII entre a cincia e as artes. Por um lado, d-se o agu-amento do esprito cientfico voltado para experimentos e invenes, comprobatrio de pesquisas anteriores ligadas s concepes iluministas de progresso. Referido aguamento d vez tendncia enciclopdica e a uma economia no mais vol-tada para o mercantilismo absolutista, mas para os interesses cada vez mais organizados da burguesia, processo a comple-tar-se no aperfeioamento do sistema capitalista. Os homens tm nesse momento plena conscincia dos poderes postos sua disposio para transformar a natureza em favor do pr-prio bem-estar e do coletivo. O avano cientfico e a moderni-zao das mquinas no campo e nas fbricas, dada a adaptao de novos recursos tecnolgicos s antigas engenhocas, contri-buem para a clere marcha do homem ao encontro da ideia de progresso embutida nas concepes do Iluminismo.

    Contrariamente ao avano ocorrido no campo das cincias e da filosofia, a arte retroage, indo ao encontro do gosto classicista, dos modelos e motivos greco-romanos. Apesar de ter sido esse pe-rodo designado neoclssico, nada trazia de novo. Na realidade, os artistas se voltaram para o passado visando explorar os temas e as tcnicas postos em prtica na Antiguidade greco-romana.

    32 BURNS, 1968, p. 551.

  • 39Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Literariamente, o Arcadismo a esttica na qual se pode vislumbrar esse dualismo, porque nele encontramos tanto a ideia da utopia progressista de raiz iluminista como o passa-dismo e o pastoralismo modelados no classicismo. As obras desse perodo so mescladas ora pelo elogio ao experimenta-lismo cientfico e ao racionalismo, ora pela adoo de temas pastoris com o consequente retorno ao locus amnus.

    O Iluminismo foi o primeiro movimento que aps o Hu-manismo mais ajudou a combater as inibies e o atraso do pensamento quanto a seu poder de interveno na natureza, na cincia, na filosofia, nas artes, em suma, em todos os setores do conhecimento; e as conquistas hoje desfrutadas muito devem adoo dos princpios Iluministas e contribuio da lgica.

    Apesar de ter ajudado a enfraquecer os poderes da ti-rania poltica e da Igreja de orientao mais retrgrada e pre-sa s amarras do beatismo contrarreformista, apesar de haver contribudo para quebrar o poder que permitia e ordenava injustias sociais e privilgios, o Iluminismo desenvolveu um individualismo exagerado: A libertao da tirania poltica e religiosa traduzia-se, infelizmente, com demasiada facilidade no direito de satisfazerem os fortes a sua cobia econmica a expensas dos fracos.33

    Esse perodo de influncia racionalista vai ser seguido por forte reao, como si acontecer aos movimentos filosficos ou estticos quando do surgimento de novas correntes de pensa-mento. Desta feita so os romnticos, seguidores do pensamen-to de Rousseau, a se rebelar contra o racionalismo, manifestan-do o desejo de retorno simplicidade e ao naturalismo com o propsito de elevar os instintos e os sentimentos. Os romnticos

    33 BURNS, 1968, p. 557.

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    propuseram fosse a vida comandada pelo corao, e a natureza perde, com eles, o carter de mquina fria e automtica regida pelas leis da lgica e da matemtica. O homem no mais interfe-re na natureza apenas para descodific-la; esta passa a ser adora-da como corporificao da beleza; Deus deixa de ser uma causa primeira e passa a ser identificado (panteisticamente) com o prprio Universo, adorado como alma da physis, que passa a ser um lenitivo para os males do esprito humano, confidente, com-panheira; no poder inigualvel da natureza o homem vai buscar foras para suportar todo o sofrimento pelo qual tomado.

    O mais importante nesse perodo a descoberta da subjeti-vidade pelo indivduo. O eu glorificado e de sua exacerbao re-sultar que tudo ser visto desde o foco do ego. Da decorre a viso egocntrica da arte romntica. A estruturao de todo e qualquer sistema de ideias do perodo se faz a partir da interioridade huma-na, como resultado da expanso desmesurada do eu romntico re-dutor do Universo sua prpria imagem. Produto de um momento histrico da Razo triunfante, que no se fez competente para so-lucionar o drama existencial humano, o sujeito se explora emoti-vamente para tentar superar a ruptura que h entre ele e o outro, entre ele e o mundo; quando isso no ocorre, transforma a realida-de exterior num espelho em cuja superfcie se contempla narcisisti-camente.34 Eis o que sobra do momento de razo triunfante.

    A descoberta da subjetividade agua no indivduo a ideia de ser ele a medida de todas as coisas. Porm, entre essa glori-ficao romntica do homem e as j havidas no Humanismo e no Iluminismo h uma diferena, pois no mais se volta para a descoberta do Universo exterior a fim colocar a natureza a seu

    34 VECHI, Carlos Alberto. Romantismo. In: MOISS, Massaud (Org.). Literatura portuguesa em perspectiva. So Paulo: Atlas, 1994, v. 3, p. 20-21.

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    servio. No h mais o propsito de fomentar transformaes capazes de contribuir para seu bem-estar, pois as postas a seu alcance j esto a todo vapor espalhadas na cidade e no campo, alterando os costumes, valores, sistema de trabalho, modo de produo e as relaes sociais. Agora o homem se volta para a prpria interioridade, por conta das metamorfoses ocorridas em seu redor.

    Tais mudanas so desencadeadoras de inadaptao, pois dependem do processo de metamorfose da mentalidade resul-tante de novas atitudes do homem ante o trabalho quotidiano, a moda ou o sistema de crenas. A crise e a angstia manifestadas nessa sequncia devem-se, segundo Jacques Le Goff, ao fato de a mentalidade ser aquilo que muda mais lentamente, pois pro-duto do esprito a ter por fora histrica capital a inrcia, mais respeitante quele do que matria, uma vez que esta evolui frequentemente mais rpido do que o primeiro.35

    Perodo de difcil ajustamento responsvel por marcas indelveis no esprito angustiado do homem moderno foi o da primeira Revoluo Industrial, iniciada por volta de 1760. Da sobrevm o aumento fenomenal da aplicao da maqui-naria indstria, ndice definitivo e incontestvel da transio do mundo pr-industrial para o mecnico, sinal distintivo da primeira revoluo tcnica moderna que deslocava a econo-mia da agricultura para a indstria, do campo para as cidades, da disperso domstica para a concentrao fabril,36 etapa na qual a fora fundante foi o individualismo espraiado nos cam-pos da economia (desenvolvimento do capitalismo), da polti-

    35 LE GOFF, Jacques. As mentalidades: uma histria ambgua. In: LE GOFF, Jacques; NORA, P. Histria: novos objetos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988, p. 72.36 LIMA, Alceu Amoroso. A Segunda Revoluo Industrial. Rio de Janeiro: Agir, 1960, p. 16.

  • 42 Elizabeth Dias Martins

    ca (democracia liberal), das letras (Romantismo), da filosofia (idealismo, empirismo, monismo espiritualista) e da religio (desmo, quietismo, jansenismo, calvinismo).

    Partindo da mudana de valores ocorrida a partir da consolidao do conceito de propriedade privada, Karl Man-nheim capta os reflexos da passagem dos ofcios manuais e da agricultura para a fase avanada da mecanizao, con-jugando-a a mudanas de valores estticos e de valores re-ferentes a nossos hbitos de trabalho e de lazer.37 Produto dessas mudanas de mentalidade operadas lentamente no esprito do homem moderno foi o confronto havido entre quem preferia o bom artesanato e quem aderia aos artigos maquinofaturados.38 Em outras palavras, tinha continuidade a luta constante entre o antigo e o moderno, resumida por Mannheim na seguinte frase: Diz-se com justeza que nossa sociedade ainda no assimilou a mquina.39 E assim foi pela demora com que se processam as novas atitudes mentais no esprito dos homens participantes do convvio social. O pen-samento do socilogo muito semelhante ao de Jacques Le Goff, e com ele complementamos e enfatizamos a afirmao antes citada. Diz o historiador:

    Os homens servem-se das mquinas que inventam conservando as mentalidades anteriores a essas m-quinas. Os automobilistas tm um vocabulrio de cavaleiros; os operrios das fbricas do sculo XIX, a mentalidade dos camponeses, seus pais e avs.40

    37 MANNHEIM, Karl. Diagnstico de nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1961, p. 22.38 Ibid., p. 22.39 Ibid., p. 23.40 LE GOFF, 1988, p. 72.

  • 43Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    Desse acmulo de novos processos mentais se originam as angstias do artista moderno, cujo esprito duplamente sens-vel, em muitos casos, sucumbe no percurso da lenta assimilao. Todavia, a partir da primeira, e principalmente aps a Segunda Revoluo Industrial, esses efeitos sero muito mais traumati-zantes devido excessiva rapidez com que se operam as mudan-as na sociedade. Esta, perde de vez a prtica da experincia compartilhada e ingressa numa organizao social sob o pre-domnio da vivncia do choque41 e do primado do urbano, em meio aos quais o homem se sente cindido e solitrio. Esse agravamento se deve ao fato de a era da maquinizao ter

    [...] sido incapaz, seja de produzir novos valores ade-quados a modelar o processo do trabalho e do lazer, seja de reconciliar dois diferentes grupos de ideais em choque, que em seu antagonismo tendem a desintegrar o carter humano em vez de integr-lo. O mesmo efei-to perceptvel na maioria das atividades do homem moderno, desde que tudo o que ele faz em um compar-timento de sua vida no se relaciona com os demais. [...] Hoje, englobamos as mais heterogneas influn-cias em nosso sistema de valores, e no existe tcnica para mediao entre valorizaes opostas nem tempo para uma assimilao verdadeira. Tendo isso em men-te, torna-se claro que no passado atuaram processos lentos e inconscientes, que se desincumbiram das fun-es mais importantes de mediao, assimilao e pa-dronizao de valores. Esses processos atualmente fo-ram suplantados ou ento no encontram tempo nem oportunidade para realizar sua tarefa apropriadamen-

    41 Cf. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia, tcnica, arte e poltica. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 197-221.

  • 44 Elizabeth Dias Martins

    te. [...] Para que uma sociedade dinmica possa ao me-nos funcionar, precisa de uma variedade de respostas ao ambiente mutvel, mas se a variedade dos padres consagrados torna-se excessiva, conduz exasperao nervosa, incerteza e ao medo.42

    Dominados pelo medo da vida moderna, os romnti-cos no creem nos apelos do mundo pragmtico. Revoltam-se contra o sistema posto, dia a dia mais orientado para a ideia de progresso industrial e envolvido com os interesses do lucro, do aperfeioamento das mquinas e da robotizao dos homens. Esse quadro propicia ao escritor romntico um desejo de eva-so para a interioridade, o passado extico das civilizaes antigas, ou o misterioso da Idade Mdia, e mais radicalmente contamina-se pelo desejo mrbido da morte, o mal du sicle, consequncia imediata do mal-estar existencial em que o ho-mem da primeira metade do sculo XIX est mergulhado.43

    Mas esse perodo deixou tantas marcas na interioridade do homem quanto os perodos anteriores ou posteriores, em que houve significativas rupturas nos campos poltico, econmico, cientfico e re-ligioso. Portanto, o apelo morte foi a forma romntica de demonstrar a angstia do esprito ao no alcanar sintonia com a prpria poca.

    Ao lado desse sentimento de fuga do mundo real, os ro-mnticos alemes desenvolveram a concepo programtica do grupo designado Sturm und Drang, cuja ideia fundamental foi a de gnio artstico, considerado, no ya como inteligencia superior, sino como fuerza sobrehumana, dotada de una ca-pacidad de percecepcin de lo inefable y de creacin original

    42 MANNHEIM, 1968, p. 23-24.43 VECHI, 1994, p.22.

  • 45Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    de un mundo potico proprio.44 O propsito daquele jovem grupo foi a luta em defesa da cultura autctone e da liberta-o das imposies, restries e convenes polticas, sociais, cientficas, culturais e estticas herdadas do racionalismo. Face tempestuosa, com certeza, logo refletida no nimo fustico do homem moderno bem representado no personagem goethia-no a quem no basta libertar-se de imposies, pois o indi-vduo precisa continuar na tarefa incessante do domnio de todos os conhecimentos e do enriquecimento da vida atravs de uma experincia ilimitada.45 A questo fustica trabalhada por Goethe o foi a partir de um tpos medieval revalorizado pelo Romantismo.

    O pacto fustico representa a negociao de um ser hu-mano com o demnio, a simbolizar a contrapartida do afasta-mento humano de Deus que, sabemos, sempre foi a entidade mxima e absoluta na crena judaico-crist. Ocorrida a libe-rao da mente humana durante a modernidade, o homem se coloca como aliado das foras demonacas para superar os prprios limites no domnio da cincia, da natureza e do poder. Enfim, de tudo que possa torn-lo superior, mas ofe-recendo em troca toda a sua essncia humana e interiorida-de. De certa forma, isso se assemelha a um Humanismo pelo avesso, caracterstico da transio acontecida na fase prepara-tria de um novo sculo, o do Modernismo, no importa se j anunciado pelo romntico Goethe. Portanto, o drama fustico simboliza a perptua inquietao do homem moderno e sua aspirao totalidade, plenitude da vida e do conhecimento.

    44 CALDERN, Demetrio Estbanez. Dicionrio de trminos literarios. Madrid: Alianza Editorial, 1996, p. 1011.45 BURNS, 1968, p. 572.

  • 46 Elizabeth Dias Martins

    O desejo fustico tem precedente na chama transmitida por Ogum a Prometeu, e todos conhecemos a eterna demanda do fogo divino, do saber e do poder encarnada por esses heris civilizadores. O drama fustico de Goethe resduo evidente dos mitos de Ogum e Prometeu na modernidade, mas, com o acrscimo do pacto diablico to conhecido de todos, que afronta e rompe a crena num Deus monotesta cristo.

    Com desejo ilimitado de conquista o homem continuou avanando no aperfeioamento da tcnica industrial, ultrapas-sou a era do vapor e do ferro para atingir a da eletricidade, a do ao e a da automatizao. Eram esses os sinais da segun-da Revoluo Industrial, ocorrida por volta de 1860, e j de proporo universal, enquanto a primeira ficou mais restrita Inglaterra e Alemanha.46

    A revoluo da tcnica, acelerada desde o setecentos, muito concorreu para agravar a inquietao de ordem meta-fsica na sociedade como um todo. Alceu Amoroso Lima ar-rola pontos fulcrais desse perodo marcado pela deificao da tcnica, ameaadores do equilbrio espiritual do homem mo-derno porque, segundo o crtico, o progresso da tcnica veio destitudo de uma autntica filosofia da vida.47 O primeiro dos referidos pontos examina a condio do homem tomado pela iluso de onipotncia, desde o momento em que lhe foi assegurado poder cada vez maior sobre a natureza. A excessiva potncia posta em suas mos conduziu-o a graves conflitos in-teriores e explorao do prprio homem; o segundo d conta da perda de equilbrio entre o mundo interior e o mundo ex-terior do indivduo; o terceiro indica a mecanizao generali-

    46 A informao est em LIMA, 1960, p. 27.47 Ibid., p. 35.

  • 47Do Fragmento Unidade: a lio de gnose almadiana

    zada da vida e o automatismo como causas que levaram pro-duo em massa e era da especializao; o quarto constata que o homem se fragmentou e alienou ao assumir atividades incompletas, repetitivas, isoladas do todo; por ltimo, Amo-roso Lima critica a preferncia dada ao gigantismo econmi-co to ameaador das pequenas empresas, da agricultura, da constituio familiar, instaurador da mais-valia na explorao do trabalho e da m distribuio da propriedade e da renda.48

    Esse processo certamente contribuiu para a desintegrao e a fragmentao da subjetividade do homem moderno, pois

    Ningum pode esperar que um ser humano viva em completa incerteza e sem limites para suas escolhas: nem o corpo nem tampouco o esprito do homem pode tolerar a variedade infinita. Deve haver uma esfera em que predominem a conformidade bsica e a continuidade.49

    No estudo citado anteriormente, Karl Mannheim alerta para a necessidade de haver um mnimo parmetro valorativo pelo qual os indivduos possam guiar-se tendo em vista o equi-lbrio de suas atitudes e juzos. Mas que fazer se tais padres inexistem na sociedade de massas na qual o homem est imer-so desde que se deu a acelerao da tcnica no sculo XIX? O temor ventilado pelo eminente socilogo de que a inseguran-a fizesse brotar a aspirao ao modo autocrtico de governar infelizmente efetivou-se no sculo XX pela imposio de pa-dres impingidos por ditaduras, sobretudo as do nazifascismo, que decretaram o primado do poltico sobre o econmico, o

    48 LIMA, 1960, p. 27-34.49 MANNHEIM, 1961, p. 29.

  • 48 Elizabeth Dias Martins

    tico e o esttico o Futurismo marinettiano no deixa dvida a respeito na literatura e nas artes.

    Sabemos que os fatos culturais no se originam do vazio nem se do de modo isolado. Portanto, havemos de entender o motivo de haverem repercutido to profundamente na interiori-dade humana as transformaes provenientes da era da mquina.

    Vejamos um quadro geral dessas ocorrncias com apoio no enfoque de Burns.50 No se duvida de ter sido o ponto de partida das alteraes sociais a grande mudana na economia. Da adveio um aumento populacional por conta do saneamen-to ocorrido em todos os pases diante dos progressos na me-dicina; a urbanizao crescente das cidades industrializadas foi acelerada; grande contingente da populao rural abandonou a vida agrcola, ocasionando emigrao causada pelas solicitaes urbanas e pela diminuio das oportunidades de trabalho no campo ante a implantao das mquinas na agricultura. Mas o deslocamento para a cidade rendeu bons e maus resultados:

    A fuga ao solo libertou grande nmero de homens e mulheres do isolamento da vida rural, da tirania do tempo atmosfrico, da idiotia dos costumes primitivos e de uma enfadonha existncia de trabalho solitrio em terras ingratas. Mas, ao mesmo tempo, transformou muitos deles em joguetes ou instrumentos dos seus empregadores capitalistas. Alguns se tornaram verda-deiros autmatos que executavam a sua tarefa maqui-nalmente, com pequeno senso de responsabilidade ou compreenso do seu lugar no quadro econmico e sem nada para lhes estimular os esforos a no ser a espe-rana de um salrio que lhes permitisse viver. Se isso

    50 BURNS, 1968, p. 685-692.

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    os livrava dos azares das pragas e das secas, tambm os expunha aos novos perigos da perda do emprego resul-tante da superproduo e colocava-os merc de um sistema sobre o qual no tinham nenhum controle.51

    Assim ocorreu o aparecimento da burguesia industrial e do proletariado; foram conquistados benefcios materiais pro-porcionadores de conforto e facilidade; deu-se a distribuio desigual dos benefcios da industrializao; e se por um lado a Revoluo Industrial facilitou a organizao dos operrios na luta por melhores salrios e condies de trabalho mais dig-nas, por outro os sujeitou a grandes humilhaes e sofrimen-tos, a exemplo da substituio da mo de obra qualificada de homens pela de mulheres e crianas (garantia de maior lucro) em locais de trabalho e moradia sob condies deplorveis.52 Essa sujeio fazia os operrios de fbricas inglesas do sculo XIX terem nvel de vida talvez inferior ao dos escravos nas plantaes americanas;53 por fim, a produo em massa bai-xou o preo dos produtos, benefcio garantidor do poder de compra das classes inferiores.

    Bastante pertinente a anlise de Modris Eksteins acer-ca dos efeitos da urbanizao e da industrializao na Alema-nha, os quais se estenderam a todas as naes daquele perodo, tomadas pela corrida desenvolvimentista da tecnologizao. As consideraes de Eksteins aprofundam a exposio an-terior tomando por base a viso de McNall Burns, porm o enfoque dos fatos apreciados pelo segundo leva em conta as interferncias de carter histrico na interioridade do homem

    51 BURNS, 1968, p. 688.52 Ibid., p. 692.53 Ibid., p. 692.

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    moderno, geradoras de um cisma subjetivo profundo que vai deixar rastro na lrica de Cesrio Verde e na narrativa de Ea de Queirs, pois o processo da fragmentao interior tambm se d em Portugal. Leiamos o que diz Eksteins:

    A velocidade da urbanizao e industrializao na Alemanha fez com que muitos trabalhadores fossem moradores urbanos de primeira gerao, confron-tados com todos os problemas sociais e psicolgicos concomitantes que a mudana do campo para a cida-de acarretava. [...] medida que a Gesellschaft, isto , a sociedade, esmagava o sentido de Gemeinschaft, isto , comunidade, medida que a velocidade e o gi-gantismo se tornavam os fatos dominantes da vida, as questes sociais e trabalhistas, a ambio e o prazer do trabalho se tornavam noes abstratas que ultrapassa-vam o indivduo e sua escala de referncias pessoais, uma questo mais de teoria e intuio que de experi-ncia e conhecimento. O cenrio rural e pr-industrial estivera repleto de seus prprios problemas e indigni-dades sociais, mas inegvel que a industrializao [...] acarretou uma perturbadora quantidade de desperso-nalizao que o bem-estar material no podia eliminar ou retificar.54

    Adiante, o historiador se refere aos indivduos que passa-ram a compor a classe mdia, assimilados por uma ramificao imprevista da industrializao. Referidos indivduos, confi-nados ao trabalho de escritrio, ficaram mais passveis do que o operariado ao sentimento de isolamento e vulnerabilidade.

    54 EKSTEINS, Modris. A sagrao da primavera: a grande guerra e o nascimento da era moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 98.

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    Do exposto, a concluso no poderia ser outra seno a da cruel proporcionalidade havida entre a consolidao (na indstria, na populao, na estrutura do Estado) e a desinte-grao (no campo social, poltico, psicolgico). Da haver-se gerado um cuidado maior com a administrao da vida, com a tcnica, sem que se optasse pela valorizao do homem, promovendo assim a tcnica a valor em si e a objeto esttico. Esse o panorama de abertura do sculo XX, cenrio de ou-tra desproporo calamitosa, qual seja, o poder da inteligncia humana para interferir na natureza fsica e sua consequente impotncia para controlar a prpria natureza racional. As duas guerras mundiais e o fascismo atestam o paradoxo.

    2.2 A engrenagem desarticuladora

    Chegamos a uma poca de afloramento de graves dile-mas que vinham minando a sociedade e desintegrando, aos poucos, o esprito humano. A Revoluo Industrial implantou a especializao em todos os nveis e ofcios. A tarefa produti-va antes atribuda a um s homem, at a finalizao, torna-se fragmentada dentro da produo industrial. Cada trabalhador passa a ter diminuta participao dentro do processo produti-vo. Isso significa a perda de viso da totalidade no trabalho em relao ao que se fabrica.

    Tal perda vai ocorrer em esferas ainda mais comprome-tedoras como as da psique humana. A urbanizao e a indus-trializao levaram os campesinos para a cidade, dando-se a o abandono do ambiente de origem formador da viso de mun-do, do modo de vida, das razes familiares e da comunidade na qual se inseriam; ao desligar-se da terra o homem perde sua constituio original e se fragmenta. As noes de convivn-

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    cia, famlia, tempo, sobrevivncia, e dos costumes, ficam esfa-celadas, e at mesmo invlidas diante do novo modus vivendi.

    Na cidade, aquele que antes era campons, detentor de saber intuitivo e abrangente acerca das melhores formas de plantio e colheita, passa a operrio subordinado a um chefe e a outros superiores, limitado ao conhecimento de restritas tarefas maquinais. Por fim, sofre a fragmentao do trabalho e v-se colocado no processo de diviso de classes, converten-do-se em operrio do burgus industrial. Essas ocorrncias, aparentemente singelas, causam ciso e perda da totalidade.

    Na ltima quadra do sculo XIX eram muitas e diversifi-cadas as teorias cientficas, filosficas, sociolgicas, psicolgicas e polticas surgidas com a nova realidade industrial. Dentre as l-timas, temos a teoria psicanaltica de Freud e a poltica de Marx, cujas formulaes foram tentativas de aproximar o homem de uma viso do todo. Porm o aprofundamento das duas teorias gerou uma complexidade em torno das questes da interiorida-de humana e da compreenso da realidade social, da decorrendo a perda da iluso de totalidade que o homem ainda acalentava.

    A psicanlise freudiana veio atestar que o homem no era apenas, como se supunha, filosfica e religiosamente, um ser dual, dividido entre esprito e matria. Constitua-se, de fato, numa soma de humores desconhecidos, captveis pela li-berao das camadas do inconsciente humano onde se escon-dem inmeras propenses at ento no reveladas. Com a psi-canlise, o ser humano se reconheceu fragmentado na prpria essncia. No difcil imaginar como pode um indivduo que no tem mais a conscincia ingnua de sua totalidade (e que na verdade no se conhece) encarar e compreender o mundo tendo perdido a compreenso de si mesmo. A nica alternati-va a lhe sobrar a viso de mundo fragmentada.

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    Tomemos agora a engrenagem econmica, social e pol-tica, propriamente dita, das cidades industrializadas, e com ela a teoria marxista segundo a qual o homem deveria fazer a leitu-ra do mundo a partir da ideologia. No obstante, a sociedade se encontrava dividida em classes sociais, pertencendo cada indi-vduo a uma pequena frao dessa realidade, fosse burgus ou proletrio. Em lugar do proletrio surge o operrio inserido na organizao fabril, j outra espcie de clula social. Dentro dela, fragmentado setorialmente pela mquina e pela atividade espec-fica, o homem se v ligado a um universo to irrisrio que a viso de mundo, a partir do lugar ocupado por ele, seria determinada por sua pequenez, jamais lhe permitindo a anlise do todo. Ao burgus, por seu turno, era impossvel alcanar a totalidade, por desconhecer simplesmente o mundo a partir do ngulo do ope-rariado. Eis que assim se apresentam mais situaes de fragmen-tao da totalidade do esprito e da realidade do homem.

    Soma-se a esse quadro o desejo de novidade trazido pela industrializao, pelo automatismo e pelo avano tecnolgi-co. Instala-se o fascnio do novo ligado produo massiva. Os produtos tm de ser rapidamente fabricados, distribudos, vendidos e, principalmente, substitudos.

    Assim, temos o emigrante na cidade vivendo experi-ncias nunca dantes imaginadas e o Eu diante de faces nunca desvendadas, podendo tambm descobrir-se outro a qualquer instante. O operrio se sabe ladeado por centenas de pessoas que realizam outras atividades e nada tm a ver com a sua, como se fossem tambm faces do desconhecido. A produo em massa traz incessantemente novos produtos ao mercado, pois imperativo vir a mercadoria s prateleiras dos super-mercados e delas desaparecer rapidamente para dar lugar a outras, sempre recm-fabricadas.

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    Ora, isso nada mais do que o ressurgimento do mo-to-contnuo temporal a fazer os indivduos ficarem mais uma vez diante das ideias de fugacidade e efemeridade. Tudo passa muito rpido, o homem se sente apenas um passageiro sobre a terra. A vida escapa clere das mos de quem trabalha e do dia a dia de quem tenta compreender a realidade circundan-te, permeada por conflitos de classes cada vez mais acirrados (greves, campanhas salariais etc.), em meio turbulncia das cidades que a cada dia renovam seu contingente populacional. Alto o ndice de natalidade ou de emigrantes provenientes do meio rural, de outras cidades e de outros pases. Somam-se a isso ainda os problemas cruciais do desemprego, da pobreza, das epidemias e da fome no mundo.

    Toda essa gama de acontecimentos converge para este instante da modernidade strictu sensu e instaura no esprito humano, particularmente o das ltimas dcadas do sculo XIX e do comeo do sculo XX, o sentimento de angstia, frag-mentao e perda de identidade. Esse quadro vai agravar-se com a Primeira Guerra Mundial, quando ocorre a acentuao da ideia de esfacelamento, pois alm do ocorrido antes em re-lao ao trabalho, ideologia e constituio psquica, acon-tecem a fragmentao e o esfacelamento literais: o do combate, o das armas inventadas e fabricadas pelo prprio homem para matar seu semelhante numa guerra favorecida pela moderni-zao da maquinaria, pela velocidade e pela irracionalidade plena no uso da tecnologia.

    Portanto, j no h espao para o conceito de perma-nncia. Tudo veloz, efmero. A mudana, a efemeridade e a velocidade so elementos agravadores da fragmentao e da perda da totalidade. Dentro desse contexto, o artista sofre du-plo estigma, pois vive e transpe para a obra realizada toda

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    a experincia da dissonncia, com sensibilidade muito mais aguada. Afinal de contas, poeta todo aquele que capta a rea-lidade registrando-a no papel, na tela ou na escultura; quem sente o mundo e o transforma em arte, no de modo a trans-por apenas mimeticamente, mas sensivelmente, por meio da transfigurao, pois a arte o produto da realidade perpassada pelas camadas abissais do ser do artista. Desse modo, entende-se por que a produo artstica daquele momento exprimiu toda a angstia da fragmentao e mostrou-se impregnada pelo nonsense, pela violncia blica, pelo culto tcnica e ve-locidade. A soma de todos esses vetores da realidade vem, tal qual o curso de um rio caudaloso, desembocar no oceano em que consiste o ser do artista, at transbordar55 artisticamente todas as experincias de fragmentao do real as quais expri-mem a desintegrao total do homem. Por essa razo muitos artistas no suportaram o peso da realidade, a exemplo de S-Carneiro e tantos mais no Modernismo e em estticas ante-riores. Desse modo, compreende-se por que toda expresso artstica vem por essncia a ser comprometida com a culture of purpose, culture of the event, ou a do nonsense.56

    Dado importantssimo acerca dos efeitos da industriali-zao e da reprodutibilidade no campo da arte o da avalan-

    55 Termo recolhido nos escritos memorialsticos de Pablo Neruda e empregado a primeira vez pelo poeta e ensasta Roberto Pontes em 1990, no livro PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa. Rio de Janeiro: Oficina do autor; Fortaleza: Edies UFC, 1999. Designa o instante da criao artstica em que o eu-potico alcana o mximo de captao da poesia que paira na realidade para transform-lo em arte. Difere do termo inspirao, comumente utilizado, que encerra a ideia de genialidade romntica e de sopro misterioso.56 A cultura do propsito, a cultura do acontecimento, a cultura do sem sentido ou do absurdo. EKSTEINS, Modris. From utopia modernity: a critique of a century. In: ANDRS, Aparecida (Org.). Utopias: sentidos, Minas, margens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993, p. 199. Traduo: Adriano Freire Barbosa.

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    che de ismos das primeiras dcadas do sculo XX. Referidos ismos exprimem a fragmentao dos gostos ocasionada pela velocidade das mquinas, das comunicaes e dos intercm-bios populacionais, a interferir no surgimento das estticas que se sucedem ou so simultneas, de conformidade com o ritual tecnolgico da produo em massa na indstria do novo.

    Da imerso nesse universo mutante e fragmentado re-sultam no esprito do homem a sensao de instabilidade cau-sada pelos efeitos da Revoluo Industrial e a descrena nos preceitos racionalistas e pragmticos do Positivismo reinante.

    Na realidade, There was a war of the mind brewing at the turn of the century.57 Por um lado, a industrializao crescente, a produo em massa, a realizao de coisas aparen-temente impossveis no mbito da cincia (da medicina e da tecnologia, por exemplo) deram humanidade certeza de seu poder de interveno no Universo, desde que este fora com-preendido de modo mecanicista pela cincia da razo pura, portanto, perfeitamente desvendvel, tangvel; por outro, a as-sociao do Simbolismo com os conceitos platnicos oferece ao homem um universo no discernvel pelos pressupostos positivistas do experimentalismo cientfico. Esse quadro vai finalmente trazer tona a crise de h muito delineada. O ser humano ento se v destronado, abandonado, num mundo regido por foras que so inacessveis, o que o leva descrena e desalento.58

    quando a linguagem vai ser considerada pelos escrito-res simbolistas, a exemplo de Mallarm, Rimbaud e Verlaine, nico valor a merecer f e crena. Tambm os simbolistas por-

    57 Havia uma guerra mental fermentando na virada do sculo. Ibid., p. 186. 58 GOMES, 1985, p. 12.

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    tugueses tentaro fazer da palavra o substituto de Deus, sen-do a possibilidade integral de salvao do homem creditada palavra. Tal atitude justifica-se como tentativa de colocar algo em lugar do Absoluto j elidido. A palavra ser ento absoluti-zada e, nessa fase, a linguagem passa a ser hermtica, cabals-tica mesmo, na tentativa de encontrar uma forma de explicar o mundo ainda no desvendado pelo mtodo cientfico. Para tanto, os poetas enclausuram-se no culto palavra, na arte pela arte, nas correspondncias, nas aparncias.

    Com o Modernismo vem a constatao de haver lacunas no conhecimento somente suprveis e coordenadas no esprito do artista. Este tido como o nico que pode, verbal, visual e auditivamente juntar as multiplicidades que tornam a vida moderna [...] compartimentalizada. A descoberta de ter o pensamento uma amplitude maior do que a at ento suposta, que seus aspectos incluam o que no passado havia sido posto de lado como coisa fora do pensamento real [...] mundos, pla-netas, universos, [e] que a razo pura no podia atingir, levou os alemes, bem na tradio kantiana, a distinguirem o mundo da cincia e do conhecimento puro do mundo do esprito (ou da alma na acepo de interioridade). Segundo Frederick R. Karl, isso teve bastante significado para o artista desse mar-cante perodo, pois o Modernismo deixara de ser apenas um movimento, elevando-se a um modo inteiro de pensamento e de vida.59

    Portanto, se a literatura simbolista atravs da linguagem hermtica tentou no dizer, mas sugerir o que se passava na interioridade do homem, a modernista conseguiu transpor o

    59 KARL, Frederick. O moderno e o modernismo: a soberania do artista 1885-1925. Rio de Janeiro: Imago, 1988, p.119-120.

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    que ali ia para a linguagem artstica, utilizando todas as figuras, cores, sons, gestos e formas possveis com os quais exprimiu os conflitos internos do homem moderno. O Modernismo ser ento reflexo de questionamentos de ordem metafsica e exis-tencial em torno da perda da identidade e ainda da consequen-te procura de autognose.

    Se compreendermos a arte como o resultado do proces-so de transbordamento vivencial do artista, o que passa a ser captado, vivido e transposto para a obra com angustiante sen-sibilidade, no Modernismo, so conflitos como os ocasionados a partir da perda da interioridade, da reentronizao do eu, e do cultivo do elemento puro nas artes: o esteticismo.

    A perda da interioridade questo conexa da progressi-va inibio do pensamento humano vigoroso capaz de infun-dir fora, prazer e possibilidade construtiva com base no soli-darismo. Enfim, do extravio de uma srie de valores positivos encontrveis somente no esforo da reflexo, do pensamento, do aprofundamento e do silncio. Quer dizer, interiorizar o que est fora de ns nos pe em condies de pensar e refletir com profundidade sobre os problemas que enformam a rea-lidade exterior, os quais, a seu modo, interferem no esprito de quem os interioriza. Essa perda corresponde, dentro do mundo catico, situao do homem compelido pela prpria velocidade da vida moderna a no dispor de tempo e de espa-o para alcanar o necessrio estado de pensamento vigoroso, pois rudos de toda ordem e obrigaes do dia a dia impem ao indivduo o plano da superficialidade.

    A perda da interioridade e da unidade com o absoluto leva o homem a voltar-se para o canto de si mesmo, efetivando a reentronizao do eu. Assim, o homem se imagina todo-pode-roso, detentor da vontade de poder, mas esse j no o mesmo

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    eu romntico. Em lugar do bom selvagem de Rousseau, pe-se o super-homem de Nietzsche, por sinal, muito bem aproveitado pelo nazifascismo. Aps os efeitos da industrializao e do mor-ticnio havido na Primeira Guerra Mundial, o eu modernista se caracteriza ainda mais pela fragmentao e pela ciso ntica, tanto quanto pela potenciao da vontade. Perdidos os referen-ciais primeiro pelo processo de estabelecimento do novo, de-pois pela destruio causada pela guerra e efetivando-se a per-da da identidade, essa reentronizao do eu pode tender tanto para o modus faciendi facnora hitlerista, ditatorial e nazifascista quanto para o desejo de autoconhecimento na nsia do sujeito de saber para onde caminhar. Este vem a ser o cometimento-mor da obra de Almada Negreiros, idntico ao conhece-te a ti mesmo de Scrates, mergulho na autognose, mas tambm uma busca dos arqutipos, pois o roteiro do encontro de si mesmo na obra de Almada passa pela valorizao dos referentes c