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Universidade Federal Fluminense Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura Literatura Brasileira e Teorias da Literatura Literatura, Teoria e Crítica Literária Do espectador ao espaço: trânsitos, olhares e constelações em Andrés Caicedo e Torquato Neto Aline Rocha de Oliveira Profª Drª Diana Klinger Projeto de Dissertação de Mestrado proposto ao Programa de Pós- Graduação em estudos de Literatuira da Universidade Federal Fluminense. Fevereiro de 2015

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  • Universidade Federal Fluminense

    Programa de Ps-Graduao em Estudos de Literatura

    Literatura Brasileira e Teorias da Literatura

    Literatura, Teoria e Crtica Literria

    Do espectador ao espao: trnsitos, olhares e constelaes em

    Andrs Caicedo e Torquato Neto

    Aline Rocha de Oliveira

    Prof Dr Diana Klinger

    Projeto de Dissertao de Mestrado

    proposto ao Programa de Ps-

    Graduao em estudos de Literatuira da

    Universidade Federal Fluminense.

    Fevereiro de 2015

  • Sumrio

    Introduo................................................................................................................

    Prlogo......................................................................................................................

    Um Ao som de Farrapo Humano Uma excurso pelo espao ..................................................................................

    Dois Ao som de La cancin del viajero Sobre o ritornelo e o territrio............................................................................

    Trs Ao som de Cajuna Do espectador ao espao.......................................................................................

    Referncias bibliogrficas e Bibliografia bsica...................................................

  • Do espectador ao espao: trnsitos, olhares e constelaes em

    Andrs Caicedo e Torquato Neto

    Aline Rocha de Oliveira

    Introduo

    Desde quando me dispus a viver mais a fundo a obra de Andrs Caicedo e Torquato

    Neto me sinto como se estivesse fazendo cinema, o que muito se deve ao fato de este ser

    um tema recorrente em ambos, de serem figuras paradigmticas e marcantes

    imageticamente; mas diz respeito, sobretudo, ao processo pelo qual os materiais de

    pesquisa pouco a pouco vo sendo coletados. H uma trilha sonora que guia cada uma

    de minhas leituras, h um enredo coeso, h imagens que se ligam pelo tempo. H, antes

    de mais nada, cenrios. E nos cenrios h luz e sombra. Sou uma espectadora ativa e

    regulo a partir de minhas memrias afetivas o que meu olhar pode captar. Talvez seja

    isto: escrever uma dissertao, assim como escrever um poema, assim como escrever

    uma vida exige certa habilidade cinematogrfica em nvel de montagem, de modo que

    cada uma das imagens acumuladas abrigue em si suas particularidades ao mesmo tempo

    que todas elas juntas estabeleam uma relao traduzvel apenas quando justapostas.

    Caicedo e Torquato marcaram profundamente as geraes artsticas dos anos 60 e 70 de

    seus respectivos pases, Colmbia e Brasil, e, por conseguinte, traaram rumos e

    redefiniram, a partir de suas produes que configuram projetos que vo para alm

    das disciplinas j pr-estabelecidas , parmetros de vrios campos da arte e de

    maneiras de compreenso da literatura, sobretudo na Amrica Latina, onde a recepo

    de ambos foi imediata. Torquato foi um dos principais representantes do Tropicalismo,

    tendo composto a cano considerada seu hino-manifesto, Geleia Geral, alm de

  • muitas outras paradigmticas que integraram o Tropiclia ou Panis et Circencis, lbum

    que marcou o pice do movimento. H que ressaltar tambm o fato de Torquato ter se

    destacado em diversos outros grupos artsticos da poca com os quais se envolveu

    diretamente ou estabeleceu um dilogo constante, apoiando ou discordando, como a

    Poesia Concreta, a Bossa Nova, a Jovem Guarda e o Cinema Novo, tanto a partir de sua

    atuao na poesia, msica e artes visuais, quanto por meio de sua coluna Geleia Geral, a

    qual manteve durante oito meses no jornal ltima Hora. interessante notar a maneira

    como ele transitava por todos esses grupos, sendo muitas vezes contraditrio como

    todo artista complexo em suas posies e escolhas estticas. Isso de forma alguma

    significa fragilidade em sua obra, muito pelo contrrio: tal postura esteve diretamente

    ligada ao fio condutor que guiou toda a sua produo: a ideia de movimento;

    deslocamento; no estagnao; ocupao e assimilao de distintos espaos.

    Andrs Caicedo responde ao realismo mgico e considerado pelo crtico chileno

    Alberto Fuguet como o primeiro inimigo de Macondo. Em vida, teve dois livros

    publicados; o primeiro, El atravesado, cuja edio foi custeada pela me, publicou aos

    vinte e trs anos. Dois anos mais tarde, aos vinte e cinco, lanaria a novela Qu viva la

    msica!, e se suicidaria no mesmo dia que recebera o primeiro exemplar. A maior parte

    de seus escritos foram reunidos e publicados postumamente, por seus melhores amigos,

    conforme j anunciava a protagonista Maria del Carmen, de Qu viva la msica!: Si

    dejas obra, muere tranquilo, confiando en unos pocos amigos. A saber, Maria del

    Carmen uma grande personagem de Caicedo, mas a maior de todas elas, de fato, a

    cidade de Cali. A releitura que ele faz do Realismo Mgico colombiano e a tendncia a

    uma chamada literatura urbana ir influenciar decisivamente a gerao de escritores

    que o sucedeu. Caicedo atuou com veemncia no cenrio cinematogrfico colombiano e

    liderou diversos movimentos culturais. Em 1971 fundou o Cine Club de Cali; em 1974,

    junto de Luis Ospina, Carlos Mayolo e Ramiro Arbelez, fundou a revista Ojo al cine,

    alm de ter integrado o grupo literrio Los dialogantes e produzido e dirigido uma

    extensa obra teatral.

    Entre os componentes em comum na trajetria desses autores, e que sero tomados

    como ponto de partida no debate aqui proposto, podemos citar a estreita relao com a

    msica e com o cinema; a perspectiva de uma obra literria pensada para alm do objeto

    livro; o hibridismo nas formas de linguagem; o papel fundamental do espao urbano e

  • das relaes que nele esto subentendidas; o deslocamento geogrfico, o movimento e a

    ao do corpo entendidos como primordiais para a produo artstica; o procedimento

    literrio posto em paralelo a um modo de vida; o suicdio precoce.

    Partindo da anlise da obra literria, musical, cinematogrfica e ensastica de tais

    autores, nosso objetivo ser estabelecer uma comparao entre ambos tendo como pano

    de fundo o cenrio cultural e poltico no qual estavam inseridos (no nos limitando,

    obviamente, anlise histrica dos fatos) por um lado, o Brasil, atravessado pela

    ditadura militar; por outro, a Colmbia, em plena Guerra Civil e pensar o modo como

    eles, a partir da configurao e mobilizao de espaos, criaram maneiras de estar em

    comum que articulam vida e literatura; corpo e obra; espao e espectador. Sabendo que

    a msica e o cinema permearo toda a produo de Caicedo e Torquato, pensaremos

    sobre como o som, a imagem e os modos de visibilidade determinaro, a partir das

    relaes estabelecidas com a palavra, uma partilha do sensvel.

    Apoiando-me no referencial terico a respeito da comunidade (Jean-Luc Nancy,

    Roberto Esposito, Maurice Blanchot, Giorgio Agamben, Gilles Deleuze, Didi

    Huberman), nas teorias que se debruam sobre as formas de visibilidade da arte

    (Jacques Rancire, Merleau-Ponty), naquelas que reduzem a distncia entre produtor e

    receptor, no debate que vem se fortalecendo no mbito do comparativismo entre

    literaturas latino-americanas produzidas na contemporaneidade e numa releitura de

    outros autores que se dispem a trabalhar corpo e movimento, este trabalho prope

    avaliar como a configurao do espao em consonncia com determinado tipo de

    endereamento que ele propicia, de modo a reelaborar o papel do espectador e das

    formas de viver junto, podem delinear o que estamos acostumados a chamar de

    literatura.

  • Prlogo

    Neste projeto delimitei as etapas tericas a serem desenvolvidas em trs partes, sendo

    que cada uma delas corresponde a um dos captulos que iro compor a dissertao. O

    objetivo foi apresentar, por meio da anlise de algumas obras e da articulao entre os

    principais tericos com os quais trabalharei, uma amostra de minha leitura e da

    perspectiva comparativista que pretendo adotar.

    Jacques Rancire e Doreen Massey so alguns dos tericos apresentados na primeira

    parte, na qual trabalharemos a conceitualizao de espao e trataremos, ainda neste tema,

    de alguns fragmentos de poemas e crnicas de Torquato Neto. Neste bloco, traremos

    luz textos e colocaes de Flora Sussekind e Mario Camara, e nos debruaremos sobre

    as consideraes que ambos fazem sobre o espao e a obra do poeta.

    Na segunda parte, seguindo Deleuze e sua ideia acerca do ritornelo, e detidos tambm

    em trechos de Qu viva la msica!, pensaremos sobre como a msica somada

    experincia citadina em Andrs Caicedo elabora um processo de territorializao-

    desterritorializao-reterritorializao que, de acordo com nossa proposta, ele esmiuar

    no decorrer de sua obra.

    Por fim, na terceira e ltima parte, tendo como ponto de partida alguns dos preceitos

    estticos adotados por Caicedo e Torquato, alguns dos princpios de existncia muito

    pessoais colocados por eles em seus escritos, em suas canes, nas migalhas deixadas

    para ns que merecemos junt-las, voltaremos a Rancire para pensar a imagem do

    espectador; chamaremos Blachot para refletirmos sobre a amizade, a fim de elaborar o

    papel e a importncia do outro para estes escritores.

  • Oi voc que vem de longe

    Caminhando h tanto tempo

    Que vem de vida cansada

    Carregada pelo vento

    Oi voc que vem chegando

    V entrando e toma assento

    Vento de maio, Torquato Neto, 1966

  • Um

    (Ao som de Farrapo humano, de Luiz Melodia, por indicao de Torquato Neto

    em sua ltima publicao na coluna Geleia Geral, do jornal ltima Hora, feita no

    dia 11 de maro de 1972)

    O texto, em sua totalidade, comparvel a um cu.

    Roland Barthes

    Em suas Galxias1, Haroldo de Campos prope uma escritura que, nos termos de

    Barthes, arranja-se como uma tessitura celestial.

    [...] tal como o ugure, recortando com a ponta do

    basto um retngulo fictcio no cu para a

    interrogar, segundo certos princpios, o voo dos

    pssaros, o comentador traa ao longo do texto

    zonas de leituras para nelas observar a migrao

    dos sentidos, o afloramento dos cdigos, a

    passagem de citaes.2

    E, se esse texto arranja-se numa tessitura similar a que se circunscreve no cu, isso diz

    respeito a todas as redes e laos sem centro e no hierarquizados que ele constitui;

    tentativa de desvincular-se da ideia de incio e de fim; ao seu carter infinito. No excerto

    acima, fragmento de S/Z, Barthes estabelece uma comparao entre o ugure, figura que,

    entre os romanos, estava encarregada de prever o futuro a partir de sinais deixados pelos

    deuses, e o comentador do texto, aquele que, segundo suas palavras, observa a

    migrao dos sentidos, o afloramento dos cdigos, a passagem das citaes.. Estrelas e

    palavras postas em similitude pelo fato de ambas trazerem em si um prenncio, que por

    sua vez imprescinde da presena e do olhar do outro, que trabalhar como uma espcie

    de vidente, para sua consumao.

    1 CAMPOS, Haroldo de. Galxias. So Paulo: Editora 34, 2011.

    2 BARTHES, Roland. S/Z. Trad.: La Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

  • A noo videncial, de acordo com Mario Cmara3, j aparece nos escritos de Antonin

    Artaud e de Arthur Rimbaud. Lembremos, por exemplo, de Lettre la voyante4, de

    Artaud, e tambm das cartas que o jovem Rimbaud escreve a Jacques Izambard, seu

    professor de retrica, e a Paul Demeny, a quem oferece seus primeiros poemas, nas

    quais diz: Quero ser poeta, e trabalho para tornar-me vidente: o senhor no

    compreender de modo algum, e eu quase no poderia explicar-lhe; Digo que

    preciso ser vidente, fazer-se vidente. O poeta se faz vidente por meio de um longo,

    imenso e estudado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de

    sofrimento, de loucura; ele busca por si mesmo, esgota em si todos os venenos, para

    guardar apenas suas quintessncias.5.

    Haroldo de Campos, Arthur Rimbaud e Antonin Artaud so alguns dos autores com os

    quais Torquato Neto estabelece estreita relao, tanto no que diz respeito a um projeto

    esttico quanto no que se refere a um determinado ethos que ser esmiuado no

    desenrolar desta dissertao. Este impulso comparativo entre diversos poetas, de modo a

    no nos limitarmos necessariamente aos autores-chave desta pesquisa, faz parte de uma

    tentativa de procedimento que visa localizar o escritor enquanto um ser ao mesmo

    tempo uno e fragmentado, similar valendo-me ainda da imagem que por ora vem nos

    servindo como paradigma a uma galxia. Assim como esta formada por planetas e

    constelaes e mantm, concomitantemente, um contato com as demais galxias que a

    circundam, o artista (e a obra de arte) deve ser entendido em consonncia (ou em

    conflito) com seu entorno. Paralelamente a isso, devem-se considerar os pequenos

    fragmentos que o constituem. Como posto por Barthes, preciso observar as citaes

    bem como a passagem dos pssaros no cu, que para as sociedades antigas traziam em

    seu voo prognsticos do futuro. Borges j nos introduziu a ideia de que os textos so

    reconfigurados a partir das leituras, interpretaes e reescrituras dedicados a eles no

    decorrer dos anos, deslocando, dessa forma, conceitos como tradio e influncia.

    Como bem colocado por Florencia Garramuo, no se deve comparar duas entidades

    diferentes em suas semelhanas ou diferenas, mas transitar seus fluxos, percorrer seus

    3 CMARA, Mario. Torquato Neto: poesa concreta y cuerpos en movimiento. In: Subjetividades em

    devir: estudos de poesia moderna e contempornea. Org.: Celia Pedrosa e Isa Alves. Rio de Janeiro:

    7Letras, 2008. p. 249. 4 http://www.andrebreton.fr/work/43633. Acessado em 05/01/2015.

    5 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2006000100011#back10. Acessado

    em 05/01/2015.

  • contatos e, sobretudo, propor conexes conceituais entre elas.6. Tendo em vista essas

    consideraes, podemos seguir a leitura de Torquato e a evocao que ele faz a outros

    artistas sem desconsiderar a maneira como o prprio Torquato articula nossa leitura

    desses autores a partir de sua persona, de seu lugar, de seu tempo.

    O poeta como vidente ou como aquele que traz em seu prprio corpo resqucios do

    porvir aparecer em alguns dos principais poemas de Torquato Neto. Um deles

    Cogito, que, como apontado por Cmara, de indudable tono artaudiano y

    rimbaudiano7:

    eu sou como eu sou

    pronome

    pessoal instransfervel

    do homem que iniciei

    na medida do impossvel

    eu sou como eu sou

    agora

    sem grandes segredos dantes

    sem novos secretos dentes

    nesta hora

    eu sou como eu sou

    presente

    desferrolhado indecente

    feito um pedao de mim

    eu sou como eu sou

    vidente

    e vivo tranquilamente

    todas as horas do fim

    Movimento similar percebemos no poema Lets Play That, no qual a leitura de mos,

    associada loucura, vem luz.

    Lets Play That

    Quando nasci

    um anjo muito louco

    veio ler minha mo

    6 GARRAMUO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na esttica contempornea. Rio

    de Janeiro: Rocco, 2014. p. 44. 7 CMARA, Mario. Torquato Neto: poesa concreta y cuerpos en movimiento. In: Subjetividades em

    devir: estudos de poesia moderna e contempornea. Org.: Celia Pedrosa e Isa Alves. Rio de Janeiro:

    7Letras, 2008. p. 249.

  • no era um anjo barroco

    era um anjo muito louco, torto

    com asas de avio

    eis que esse anjo me disse

    apertando a minha mo

    com um sorriso entre dentes

    vai bicho desafinar

    o coro dos contentes

    vai bicho desafinar o coro dos contentes

    lets play that

    Assim como em Todo Dia Dia D:

    [...]

    desde que sa de casa

    trouxe a viagem de volta

    gravada na minha mo

    enterrada no umbigo

    dentro e fora assim comigo

    minha prpria conduo

    Aqui, a viagem de volta (ou seja, aquela que ainda vir: mais uma vez o poder videncial)

    est gravada na mo, como uma referncia quiromancia. A leitura de mos tem como

    uma de suas origens a astrologia indiana, na qual as fissuras da palma da mo e as

    linhas formadas pelas estrelas so postas em paralelo: corpo e cu se justapem,

    sintetizando a vida. Alm de gravada na mo, a viagem est tambm enterrada no

    umbigo, imagem que conecta o dentro e o fora, que delimita a existncia independente

    do sujeito e que diz respeito a sua sobrevivncia: ali que a viagem se encontra, no

    dentro e fora assim comigo, diluindo as margens do corpo e do espao que ele ocupa.

    O que quero ressaltar com a breve anlise desses poemas, que sero retomados no

    decorrer da dissertao com maior cuidado, diz respeito correlao entre o mundo

    (tratado, aqui, em termos de espao), o corpo e a obra.

    Corpo, espao e viagem demarcam tambm as Galxias do poeta concreto. A partir dos

    neologismos umbigodomundolivro e umbigodolivromundo o centro ser deslocado,

    mais uma vez a partir do umbigo, este smbolo da origem.

    um livro onde tudo seja no esteja um umbigodomundolivro

    um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro

    o ser do livro a viagem por isso comeo pois a viagem o comeo

    e volto e revolto pois na volta recomeo reconheo remeo

  • Alm disso, logo no incio de seu texto, ser o ditico aqui que posicionar o sujeito.

    Da mesma forma, ser exatamente este aqui que desaparecer paulatinamente, dando

    espao para uma abertura temporal e espacial que desembocar, por fim, na escritura.

    e comeo aqui e meo aqui este comeo e recomeo e remeo e arremesso

    e aqui me meo quando se vive sob a espcie da viagem o que importa

    no a viagem mas o comeo da por isso meo por isso comeo escrever

    mil pginas escrever milumapginas para acabar com a escritura para

    comear com a escritura para acabarcomear com a escritura [...]

    Em dilogo com as teorias ps-coloniais, Haroldo de Campos prope, como j dito

    anteriormente, o contnuo adiamento do incio e do fim como fatores cruciais na

    construo textual. A viagem, por sua vez, assim como em Todo Dia Dia D, e o

    imaginrio de deslocamento que est abarcado nela, confundir e entrelaar lugares,

    corpos e tempos, e ser elemento fundamental para o tipo de construo proposto.

    Viagem deve ser entendida enquanto deslocamento, enquanto performance e enquanto

    ao.

    Ser justamente ela, a viagem, um dos exemplos usados por Mario Cmara para definir

    o que ele chamar de retrica de la accin, que aparecer de maneira reverberante nos

    ideais de Torquato. Analisando a postura e o posicionamento do poeta frente ao espao

    que ele ocupa, o terico ir afirma que la accin es definida como ocupacin del

    espacio y enfrentarse al miedo. No temer es tambin no temer a la dictadura en su

    perodo ms represivo. 8. E, para ele, o corpo entra aqui como elemento crucial: [...] el

    azar corporizado se presenta como resistencia al clima cultural, a la dictadura, pero de

    un modo que no se propone enunciar un compromiso ni construir una alegora

    identificable, sino articular un acontecimiento.9. Bem como o ugure e o comentador

    do texto alegorizados por Barthes, o poeta, a partir de um determinado agir no mundo,

    construir um entrelugar que entrelaar os cdigos que o circundam.

    Num mesmo vis, em seu texto Mquina, corpo e guerrilha, Flora Sussekind afirmar,

    citando Torquato, que toda a cidade torna-se passvel de incluso na crtica tropicalista.

    8 CMARA, Mario. Torquato Neto: poesa concreta y cuerpos en movimiento. In: Subjetividades em

    devir: estudos de poesia moderna e contempornea. Org.: Celia Pedrosa e Isa Alves. Rio de Janeiro:

    7Letras, 2008. p. 255. 9 Idem. p. 257.

  • A palavra de ordem passa a ser: Ocupar espaos, criar situaes. Ocupa-se um espao

    vago como tambm se ocupa um lugar ocupado: everywhere. (Torquato, a 30 de

    novembro de 1971 no jornal ltima Hora). E continuar: nesse ocupar um lugar

    ocupado que se d o movimento bsico do tropicalismo: apropriar-se criticamente das

    bases culturais nacionais. No se ataca diretamente o regime no qual se vive, mas

    procura-se minar a sua linguagem. Quebrar suas bases comunitrias de sustentao.10.

    exatamente o posicionamento deste corpo no espao, essa postura tica de comportar-

    se frente ao outro fazendo-se visvel e chamando-o para a visibilidade, esta maneira de

    estar em comum que regular os preceitos polticos e estticos que Torquato

    desenvolver.

    Jacques Rancire, em seu Poltica da arte, aponta que ela [a arte] poltica antes de

    mais nada pela maneira como configura um sensorium espao-temporal que determina

    maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de. [...] Porque a

    poltica, bem antes de ser o exerccio de um poder ou uma luta pelo poder, o recorte de

    um espao especfico de 'ocupaes comuns'.11. No decorrer de sua reflexo, Rancire

    ir pensar nas formas de visibilidade da arte e na vida em comum por meio de situaes

    e espaos especficos (a cidade; o museu; a transio do museu para o seu exterior). A

    partir disso, e trazendo sua leitura para o contexto do Tropicalismo, podemos pensar

    seguindo, ainda, os passos de Flora em como esse movimento artstico, representado,

    aqui, pela produo de Torquato Neto, interagia com seu entorno de modo a construir

    determinada maneira de estar junto a partir dos festivais, composies, relaes com o

    cinema, o rdio e a televiso. E, ainda nesse vis, refletir sobre como determinada

    maneira de ocupar o espao (ou de estar no mundo) determina formas de vida j

    apontadas por Rancire: a experincia esttica deve realizar sua promessa suprimindo

    sua particularidade, construindo as formas de uma vida comum indiferenciada, onde

    arte e poltica, trabalho e lazer, vida pblica e existncia privada se confundam.12.

    Se nesta discusso nos propomos a analisar o espao, devemos entender, antes de mais

    nada, o que seria este espao e quais so as potencialidades que ele estabelece com a

    10

    SUSSEKIND, Flora. Mquina, corpo e guerrilha. In: Linguagens /PUC-RJ. Literatura /Estudos. v. 1, n2. p. 68. 11

    RANCIRE, Jacques. A poltica da arte 12

    Idem.

  • comunidade. Para tanto, lembro quando Doreen Massey, em sua extensa pesquisa sobre

    o espao e o poder, apresenta trs proposies de conceitualizao do espao que diro

    respeito produo de inter-relaes e de multiplicidade:

    el espacio es producto de interrelaciones. Se

    constituye a travs de interacciones, desde lo

    inmenso de lo global hasta lo nfimo de la

    intimidad.

    el espacio es la esfera de la posibilidad de la

    existencia de la multiplicidad; es la esfera en la

    que coexisten distintas trayectorias, la que hace

    posible la existencia de ms de una voz. [] Si el espacio es en efecto producto de interrelacionaes,

    entonces debe ser una cualidad de la existencia de

    la pluralidad. La multiplicidad y el espacio son co-

    constitutivos.

    el espacio es producto de las relaciones, relacin es que estn necesariamente implcitas en las

    prcticas materiales que deben realizarse, siempre

    est en proceso de formacin, en devenir, nunca

    acabado, nunca cerrado.13

    Interaes, multiplicidade e devir so palavras que podem resumir a ideia de Massey;

    que sero aqui retomadas e que dialogam com os demais tericos dos quais trataremos.

    A saber, o territrio, hoje, em todas as reas de conhecimento que lhe correspondem e

    que se propem a estud-lo seja no mbito das relaes geogrficas, sociais e de poder

    ou dos processos artsticos e literrios (cujas fronteiras, em verdade, tampouco se fazem

    evidentes) tem sido pensado sob o vis do movimento e do devir, de modo a colocar

    em xeque a medida fronteiria comumente usada para compreender o espao.14

    Como

    apontado por Garramuo, sem desconhecer essas fronteiras, esta literatura [as dos

    ltimos dois sculos] faz delas o problema e o material mesmo para elaborar e

    13

    MASSEY, Doreen. La filosofa y la poltica de la espacialidad: algunas consideraciones. In: ARFUCH, Leonor (org.) Pensar este tiempo: espacios, afectos, pertenencias. Buenos Aires: Paids, 2005.

    p. 104-5. 14

    Para apontarmos o fato da questo ser colocada tanto pela crtica e teoria quanto pela produo artstica

    e literria, lembremos de Roberto Bolao, que quando perguntado a respeito de sua nacionalidade,

    responde: Minha nica ptria so meus dois filhos, Lautaro e Alexandra. E talvez, mas em segundo plano, alguns instantes, algumas ruas, alguns rostos ou cenas ou livros que esto dentro de mim e que

    algum dia esquecerei, que o melhor que algum pode fazer pela ptria.. Ou ainda, lembremos tambm de Douglas Diegues e de seu portunhol selvagem. Esses so dois de muitos exemplos, mas remontam a ideia de desestabilizao nacional, paradigma seguido por vrios autores que marcaram a literatura latino-

    americana do ltimo sculo. No por acaso, a discusso e problematizao acerca do papel do

    colonizado assume papel fundamental na prtica comparativista.

  • discutir.15

    Entender o territrio por essa perspectiva entend-lo sob a tica de uma constituio

    plural advinda de um amplo processo de fragmentao. E se compreendemos, aqui,

    espao e corpo em consonncia, entendamos o artista contemporneo, igualmente, como

    um ser fragmentado. Assim como aparece na cano que d ttulo primeira parte deste

    texto, Farrapo Humano, cuja letra segue abaixo:

    Eu canto suplico

    lastimo no vivo contigo

    sou santo sou franco

    enquanto no caio no ligo

    me amarro me encarno na sua

    mas estou pra estourar estourar;

    Eu choro tanto me escondo

    e no digo viro um farrapo

    tento suicdio

    com caco de telha

    ou com caco de vidro:

    S falo na certa repleta

    de felicidade me calo

    ouvindo seu nome por entre a cidade

    no choro s

    s zango

    eu fico no lugar;

    Estou muito acabado

    to abatido minha companheira

    que venha comigo

    mas estou pra estourar

    estourar estourar.

    Esta cano compe o lbum Prola Negra, obra-prima de Melodia, e sua letra fala de

    suicdio cometido a partir da mutilao do corpo, de seu esfacelamento. Corpo que,

    como indicado em vrios versos, est prestes a estourar e desfazer-se em mil pedaos.

    Como apontado por Mario Cmara, as crnicas de Torquato transitam entre as

    referncias a corpos que se deslocam espacialmente a exemplo daquela que marca a

    estreia de Torquato no ltima Hora, quando ele falar sobre a vinda de Caetano Veloso

    ao Brasil na poca em que estava exilado para oferecer um show, sob vigilncia militar,

    na televiso culminando no inevitvel dilaceramento deste corpo, como vemos nesta

    ltima cano indicada pelo poeta. A imagtica dos materiais cortantes que aparecem na

    15

    GARRAMUO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na esttica contempornea. Rio

    de Janeiro: Rocco, 2014. p. 46.

  • cano recorrente em Torquato, reforando a importncia que os processos de

    fragmentao estabelecem em suas reflexes estticas. Como lembrado por Beatriz

    Vieira, Torquato gostava de associar sua figura ao vampiresco e havia mesmo

    desempenhado o papel de vampiro no filme super-8 Nosferatu no Brasil, de Ivan

    Cardoso. No cartaz desse filme, como na revista Navilouca (1974) e no fotopoema

    glida gelatina-gsto de mel de autoria de Torquato. Luciano Figueiredo, Oscar

    Ramos e Ivan Cardoso, reproduzido em Os ltimos dias de paupria , a imagem da

    gilete salta aos olhos. 16. Como aparece tambm em trecho do seu dirio DEngenho

    de Dentro: Eles no deixam ningum ficar em paz aqui dentro. so bestas. No

    deixam a gente cortar a carne com faca mas do gilete para fazer a barba.

    bem provvel que o ttulo desta composio de Melodia tenha sido inspirado pelo

    filme The Lost Weekend (1945), de Billy Wilder (que foi, por sua vez, um dos cineastas

    que mais inspiraram Andrs Caicedo e que ser retomado ao longo da dissertao

    quando tratarmos do escritor colombiano), traduzido para o portugus como Farrapo

    Humano, no qual o protagonista, Don Birnam, interpretado por Ray Milland, escritor e

    alcolatra em recuperao, v pouco a pouco seu corpo sendo mutilado pela bebida,

    culminando na tentativa de suicdio. Por trs dessa problemtica que conduzir a trama,

    est o romance de Don com o sugestivo ttulo A garrafa e o progressivo adiamento

    da escrita por conta do vcio. Em dado momento, j sem nenhum dinheiro, e tomado

    pelo bloqueio criativo, Don investe na tentativa de penhorar sua mquina de escrever

    para conseguir algumas doses. No entanto, ademais das similitudes de Don com

    Torquato e Andrs Caicedo, no que se refere a um ethos maldito, na tentativa de suicdio,

    no alcoolismo, na literatura como desencadeadora de conflitos pessoais; o que nos

    interessa primordialmente nesta comparao tem a ver com o fato de o filme iniciar e

    terminar com uma cena panormica da cidade; da vivncia de Don dar-se basicamente

    no apartamento de seu irmo e no bar que costumava frequentar; e de toda a trama se

    desenrolar a partir de sua escolha em no ir viajar, sugerindo a influncia decisiva que

    os ambientes circunscrevem em sua vida.

    Cabe dizer, ao final desta reflexo que se detm, em certa medida, na confluncia de

    16

    VIEIRA, Beatriz de Moraes. Torquato Neto, o cogito e os dentes. In.: Subjetiidades em devir:estudos de poesia moderna e contempornea. PEDROSA, Celia; ALVES, Ida (org.) Rio de Janeiro,

    7Letras, 2008. p. 28.

  • imagens que dialoga com o contexto histrico da ditadura militar no Brasil, que no

    confundamos a obra de Torquato com um tipo de arte-poltica to crtica por Rancire.

    O prprio poeta disse certa vez em entrevista que esse negcio de msica engajada, sei

    l, tem bem uns trs anos que eu no penso em discutir isso, no gosto nem de falar,

    quem quiser que entenda o que a gente diz. Eu acho tudo muito simples, mas as pessoas

    concluem com tanto 'caminhando e cantando e seguindo a cano...', seguindo mesmo, a

    cano l na frente e eles atrs, a lguas de distncia, anos de distncia. Esse tipo de

    trabalho no me interessa nem um pouco.17. A arte (e tambm o corpo que se move e se

    faz visvel), aqui, no se pretende estandarte (no me siga que eu no sou novela,

    como o Torquato costumava dizer), mas funciona, sim, como uma espcie de

    demarcao profunda no corpo e no espao feita com materiais cortantes, com lminas

    que inscrevem uma fissura, mas que ao mesmo tempo espelham e unem em sua prpria

    composio as duas partes que separam fragmentando e unindo simultaneamente ,

    com o gilete dos suicidas iniciantes, com faca, com foice, com caco de telha, com caco

    de vidro.

    17

    Esta colocao de Torquato est no nico arquivo que temos de sua voz. A entrevista encontra-se neste

    link: https://www.youtube.com/watch?v=EWfCT8qcDj0. Acessado em 15/01/2015.

  • Dois

    (Ao som de La cancin del viajero, de Nelson y sus estrellas, parte da trilha

    sonora que embalou os passos de Maria del Carmen pela cidade de Cali em Qu

    viva la msica!)

    Que la autora ha necesitado, para su

    redaccin, de las canciones que siguen, tiene

    que sonar evidente para el lector aguzado. De

    todos modos, se ha procurado localizar

    intrprete de las versiones preferidas (de un

    mismo ternilla antiqusimo africano) y sello de

    disco (pirata an). Pero he escuchado casi

    todo el material que ella menciona a travs de

    puertas abiertas, radios o en los buses.

    Andrs Caicedo

    Quando a Universidade Autnoma do Mxico foi invadida, em 1968, Auxlio

    Lacouture estava no banheiro, com apenas alguns livros, e l permaneceu durante

    dias. Auxlio uruguaia e protagonista do livro Amuleto, de Roberto Bolao, e

    Bolao aquele que afirma, no decorrer de toda a sua obra, que a literatura existe na

    medida em que responde ao sistema literrio. Para ele, a literatura pode ser definida

    se que a podemos definir sem que a definio seja, ainda, literria por uma

    pilha de livros sobre um vaso sanitrio que compartilha espao com uma estrangeira

    louca e decadente, desmaiada e faminta, conhecida por seus traos de imoralidade,

    mais ou menos como Maria del Carmen Huerta, a herona de Que viva la msica!,

    de Andrs Caicedo, que abandona escola e famlia para iniciar uma peregrinao

    pela cidade de Cali, pelas drogas, pela prostituio e pela msica. Ambas, Auxlio e

    del Carmen, estabelecem uma relao particular com o espao que ocupam. Ambos,

    Caicedo e Bolao, estabelecem maneiras peculiares de se relacionar com o espao.

    Nas entrevistas realizadas com Roberto Bolao, por exemplo, sua nacionalidade,

    disputada entre chilenos e mexicanos, sempre uma das pautas, a qual Bolao

    consegue driblar em suas resposta desvinculando-a, sempre, da opressora noo de

    territrio e em troca relacionando-a com seus afetos e trajetria.

  • A importncia da cidade de Cali notvel em toda a produo de Caicedo.

    Infeccin, um de seus primeiros e principais textos, nos apresenta passagens como

    esta:

    [...] Odio mi calle, porque nunca se rebela a la

    vacuidad de los seres que pasan en ella. Odio los

    buses que cargan esperanzas con la muchacha de al

    lado, esperanzas como aquellas que se frustran a

    toda hora y en todas partes, buses que hacen pecar

    con los absurdos pensamientos, por eso, tambin

    detesto esos pensamientos: los mos, los de ella,

    pensamientos que recorren todo lo que vulnerable

    y no se cansan. Odio mis pasos, con su

    acostumbrada misin de ir siempre con rumbo fijo,

    pero maldiciendo tal obligacin. Odio a Cali, una

    ciudad que espera, pero no le abre las puertas a los

    desesperados.18

    A obra de Caicedo se tensiona entre a dor da cidade e a alegria de estar junto. Ser

    justamente o conflito entre o pertencimento e o no-pertencimento que sobressair

    nesta relao estabelecida com o espao no qual se vive, bem como ocorre com

    Auxilio e a Universidade, uma vez que ela no fazia parte do corpo institucional

    deste espao, no era aluna, no era funcionria, e vivia, perifericamente, dos

    pequenos servios prestados aos professores e aos seus amigos poetas. Alm disso,

    do banheiro, o espao mais marginal dentro da instituio, que ouviremos o seu

    relato. escorregadia a existncia dessas personagens nos espaos que ocupam.

    Engajam-se para que eles faam parte de sua existncia ao mesmo tempo que se

    distanciam dele, que o rejeitam e que o profanam. Elas escapam da captura

    institucional e se alojam num espao minado ao mesmo tempo que sustentado pelas

    relaes sobretudo as que esto por vir que so estabelecidas nele.

    Ao final do romance Qu viva la msica! est enumerada uma srie de referncias

    musicais e cinematogrficas que impulsionaram a escrita, como indicado na epgrafe

    acima. Tais referncias aparecem como sendo parte da vida e da trajetria da

    protagonista Maria del Carmen em sua peregrinao noturna pela cidade de Cali.

    Sobre isso, pode-se dizer que a msica e o processo de educao musical pelo

    18

    CAICEDO, Andrs. Calicalabozo. Bogot: Grupo Editorial Norma 2003. p. 12.

  • qual passar a personagem regularo a sua trajetria e suas experincias e

    intermediaro a relao daquele corpo com o espao no qual ele se movimenta . Em

    dado momento de Qu viva la msica!, del Carmem afirmar que

    Uno es una trayectoria que erra tratando de recoger

    las migajas de lo que un da fueron nuestras

    fuerzas, dejadas por all de la manera ms vil,

    quin sabe en dnde, o recomendadas (y nunca

    volver por ellas) a quien no mereca tenerlas. La

    msica es la labor de un espritu generoso que (con

    esfuerzo o no) rene nuestras fuerzas primitivas y

    nos las ofrece, no para que las recobremos: para

    dejarnos constancia de que all todava andan, las

    pobrecitas, y que yo les hago falta. Yo soy la

    fragmentacin. La msica es cada uno de esos

    pedacitos que antes tuve en m y los fui

    desprendiendo al azar. Yo estoy ante una cosa y

    pienso en miles. La msica es la solucin a lo que

    yo no enfrento, mientras pierdo el tiempo mirando

    la cosa: un libro (en los que ya no puedo avanzar

    dos pginas), el sesgo de una falda, de una reja. La

    msica es tambin, recobrado, el tiempo que yo

    pierdo. Me lo sealan ellos, los msicos: cunto

    tiempo y cmo y dnde. Yo, inocente y desnuda,

    soy simple y amable escucha. Ellos llevan las

    riendas del universo. A m, con gentileza. Una

    cancin que no envejece es la decisin universal de

    que mis errores han sido perdonados.

    O final do relato de Auxilio Lacoutre em Amuleto tambm faz referncia msica, desta

    vez ao canto dos jovens (poetas?) a que ela assiste, impotente, carem num precipcio.

    Y los o cantar, los oigo cantar todava, ahora que

    ya no estoy en el valle, muy bajito, apenas un

    murmullo casi inaudible, a los nios ms lindos de

    Latinoamrica, a los nios mal alimentados y a los

    bien alimentados, a los que lo tuvieron todo y a los

    que no tuvieron nada, qu canto ms bonito es el

    que sale de sus labios, qu bonitos eran ellos, qu

    belleza, aunque estuvieran marchando hombro con

    hombro hacia la muerte, los o cantar y me volv

    loca, los o cantar y nada pude hacer para que se

    detuvieran, yo estaba demasiado lejos y no tena

    fuerzas para bajar al valle, para ponerme en medio

    de aquel prado y decirles que se detuvieran, que

    marchaban hacia una muerte cierta.

  • Ora, em ambos os casos vemos a msica funcionando como um agenciamento do corpo

    no espao. Por um lado, Del Carmen reconhece na msica pedaos de si que se

    desprenderam pelo caminho; por outro, Auxilio nos revela, ao final da novela de Bolao,

    que o canto destes jovens latino-americanos que caminham em direo morte o

    nosso amuleto. A msica associada ao corpo em movimento seja aquele que caminha

    sem rumo por uma cidade a ser descoberta; seja o que caminha para o inevitvel fim

    nos remete diretamente a um dos conceitos criados por Gilles Deleuze e Felix Guatari.

    Nos livros Mil plats e em O que filosofia?, Deleuze e Gattari tomaro emprestado da

    msica do termo ritornelo e a partir dele desenvolvero uma tese a respeito do

    territrio, dos processos de territorializao, desterritorializao, reterritorializao. Na

    teoria musical, o ritornelo definir a repetio de um trecho, daquele que embalar a

    msica, o refro, e, aqui, para Deleuze e Guattari, o ritornelo ir configurar o ritmo

    necessrio para a composio de territrios. Este conceito ser caro em nossa reflexo

    pois ele se pauta numa filosofia que pensa o espao sob o vis do movimento, do

    deslocamento e do nomadismo. Somado a isso, o ritornelo transita em meio ao espao,

    regulando os territrios a partir do ritmo que estabelece e dos fragmentos que recolhe e

    repassa de um territrio a outro. Como coloca Silvio Ferraz, Deleuze e Guattari falam

    que o ritornelo vai do caos, passa pela terra (o territrio, o lugar que reconhecemos e

    fazemos nossa casa) e por fim vai ao cosmo. No caos as coisas existem, mas no tm

    aindacorpo (como lembra Deleuze, via Prigogine, no caos falta um mnimo de

    permanncia s formas), na terra as coisas tm corpo, nome e forma, no cosmo as coisas

    deixam de ser coisas, se fragmentam, mas ainda carregam um punhadinho da terra onde

    estavam.19

    Essa ideia de descentralizao, de apropriao e desapropriao de territrios diversos,

    est tambm nos ideais do Tropicalismo, que, pela msica, e por como essa msica

    estabelece um sensorium comum, abdica da ideia de linearidade. Como apontado por

    Jorge Mautner:

    A herana mais importante do Tropicalismo foi a

    descentralizao cultural, que hoje a marca

    registrada da nossa cultura. Essa descentralizao

    19

    FERRAZ, Silvio. Deleuze, msica, tempo e foras no sonoras. In.: Revista Artefilosofia. Ouro Preto: Editora UFOP, 2010. p.72.

  • de motivos, estilos, harmonias, dissonncias,

    culturas j era a essncia do Tropicalismo. [...]

    A msica, premonitria arte dos rituais e

    encantamentos, no tem fronteiras, nem na

    horizontal, nem na vertical de qualquer

    dogmatismo.

    Os pessimistas dizem: Estamos numa poca de decadncia cultural porque, vejam, sempre havia o

    movimento, a Bossa Nova, o Tropicalismo; agora

    nada disso! Isto a decadncia! Esses lamentadores, ressentidos e chorosos

    pessimistas esto mais do que cegos. No

    entendem que o que esto lamentando o fim da

    cultura proposta como coisa linear, absoluta,

    dogmtica, um movimento nico, forte como

    flecha. No entendem que o ltimos destes movimentos, o Tropicalismo, justamente, propunha

    o fim desse linearismo, desse sentido de

    movimento nico, e propunha em sua ontologia profunda a descentralizao da liberdade.

    20

    La cancin del viajero, do grupo venezuelano Nelson y sus estrellas, um clssico da

    salsa e umas das muitas msicas que atravessaram a vida de Maria del Carmen quando

    ela recorria uma Cali que nunca antes lhe fora apresentada. A letra desta cano nos fala

    sobre a saudade de um eu lrico por sua cidade natal, Caracas, e nos apresenta um

    interessante jogo entre a primeira e a terceira pessoa; entre passado, presente e futuro;

    colocando o sujeito dentro e fora de si , num movimento similar ao que Deleuze associa

    ao do ritornelo: Pero naci muy cerca al monte / Y hacia al monte voy / Quiero ver la

    montaa / Donde vivo yo / Yo se que pronto /Volvere a ver /Tus montaas Caracas

    /Donde vivo yo. Del Carmen escutou essa msica,que vinha de algum estabelecimento

    comercial, em meio a tantas outras msicas que escutava saindo de tantos outros

    estabelecimentos, enquanto engraxava suas botinas.

    Me par en toda la esquina y la gente dura me tir

    respeto. Un embolador con pinta de gusano, con la

    piel enrollada en surcos en torno al palo del

    esqueleto, ofreci embolarme mis botas gratis y yo

    acept y mientras l brillaba el cuero yo tiraba el

    ritmo que sala a puro palo de seis negocios, as

    que haba que sintetizar, dar un solo sonsonete de

    brincos, as es la msica, no le sirven rejas ni

    ventanas con los postigos cerrados; an as se

    escurre.

    20

    MAUTNER, Jorge. Fragmentos de sabonete e outros fragmentos. 2 ed. Rio de Janeiro: Relume-

    Dumar, 1995. p. 55-6.

  • Seu corpo, como o corpo do viajante de La cancin del viajero, e tambm como o

    ritornelo, sintetiza, conecta e modula tempos e espaos as que haba que sintetizar,

    dar un solo sonsonete de brincos e, dessa forma, inaugura por meio de seu prprio

    estar no mundo outro territrio; colocando o cotidiano em outra esfera de percepo.

  • Trs

    (Ao som de Cajuna, de Caetano Veloso, composta em 1972 em homenagem a

    Torquato Neto)

    Pegue uma cmera e saia por a, como

    preciso agora: fotografe, faa seu arquivo de

    filminhos, documente tudo o que pintar,

    invente, guarde.[...] Escrever no vale quase

    nada para as transas difceis desse tempo,

    amizade. Palavras so poliedros de faces

    infinitas e a coisa transparente a luz de cada face distorce a transa original, d todos

    os sentidos de uma vez, no suficientemente

    clara, nunca. Nem eficaz, bvio. Depende

    apenas de transar com a imagem, chega de

    metforas, queremos a imagem nua e crua que

    se v na rua, a imagem imagem sem mais reticncias, verdadeira. A imagem mais forte,

    no brinque em servio, brinque. No brinque

    de esconder com seu olho: veja e fotografe,

    filme, curta, guarde. (p.277)

    Torquato Neto

    O documentrio Nostalgia da luz, dirigido por Patricio Guzman, conta a histria de

    mulheres chilenas que escavam com facas e ps a imensido do deserto do Atacama

    procura de seus mortos que foram l enterrados, sem que nunca se soubesse com

    exatido o paradeiro de seus corpos, pela ditadura de Pinochet. No filme, o que essas

    mulheres fazem associado ao ofcio do astrnomo, que, assim como elas, busca no

    infinito do cu pistas de um passado. As estrelas que estes astrnomos estudam tm em

    sua composio o mesmo clcio que compe os ossos enterrados no deserto, que pouco

    a pouco so encontrados, no em sua completude, mas em pequenos fragmentos que se

    desmancham pelo solo. Numa de suas escavaes solitrias, uma dessas mulheres

    encontrou a arcada dentria daquele que procurava, e posteriormente outras partes,

    como a testa e o nariz, o que obviamente no foi o suficiente. Tiraram-no de mim

    inteiro, e inteiro o quero de volta.

    sabido que o cu do Atacama, por sua transparncia singular, atrai astrnomos de todo

  • o mundo, e j h algumas dcadas, desde o perodo ditatorial, est ali alocado um

    imenso observatrio, e em suas proximidades est um dos crceres onde estavam alguns

    presos polticos de Pinochet. Durante um tempo, quando voltavam dos trabalhos, eles

    podiam experimentar a liberdade durante algumas horas com os telescpios, o que

    rapidamente foi proibido, uma vez que os militares alegavam que aprendendo a posio

    das constelaes eles poderiam fugir guiando-se pelo cu.

    Se no comeo deste texto, quando falvamos sobre as Galxias de Haroldo de Campos

    e sobre o poder proftico anunciado na poesia de Torquato, e, a partir dessa leitura,

    associvamos corpo, cu e obra numa determinada relao estabelecida com o futuro, o

    que fazemos, agora, trazendo luz este marcante documentrio chileno e associando os

    mesmos elementos de antes corpo, cu e obra ao passado, uma tentativa de

    articulao temporal suscitada pela experincia esttica que tem como agente aquele

    que atua por meio das reminiscncias deixadas, apropriando-se do que pode captar e ao

    mesmo tempo mesclando suas experincias pessoais, seu conhecimento, sua vida: o

    espectador. Para tanto, iremos nos apoiar no paradigma dessas mulheres chilenas

    guardando com todo o cuidado que devido as diferenas, mas valendo-nos da fora

    simblica que elas instauram numa Amrica Latina marcada pela ditadura e nas ideias

    desenvolvidas por Jacques Rancire em seu O espectador emancipado.

    Isso porque a figura do espectador fundamental nas obras e reflexes de Caicedo e

    Torquato, e, junto figura do amigo, propicia uma abertura da obra, uma continuidade

    para alm do sujeito da escrita. Continuidade que j est demarcada, por exemplo, na

    fala de Maria del Carmen, que aps afirmar ser uma vergonha viver mais de vinte e

    cinco anos, conclui: Si dejas obra, muere tranquilo, confiando en unos pocos amigos.,

    e tambm em algumas consideraes de Toquato, como esta, quando fala de Gal Costa:

    Sabe o que uma cantora? Sabe como ? Comea pela zona do repertrio (e a comea a entrar,

    claro, os amigos, desde que Deus sempre os faz e os junta), passa pela observao menos caduca

    do pblico que assiste aos seus shows e compara

    seus discos e culmina, bvio, no que canta, ou

    seja: com que canta: com, quando, onde, como. (p.273)

    Para Torquato, como se v nesta ltima colocao, uma obra de arte bem como o

  • sujeito artista apenas uma parte de uma longa cadeia que lhe significar e

    ressignificar. Cabe a ns, neste momento, analisar como estes componentes da cadeia

    se articuam e como criam uma relao de correspondncia entre a experincia esttica e

    a fina matria da vida.

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