do cortiço às vilas operárias: políticas públicas e a ...€¦ · várzeas. o pequeno abrigo...
TRANSCRIPT
Do cortiço às vilas operárias: políticas públicas e a construção do cotidiano nos
quintais paulistanos.
Bianca Melzi D. Lucchesi1
As transformações urbanas que acontecem em São Paulo a partir do final do século
XIX, são uma redefinição do espaço que pretende sanar os problemas de saúde e de
comportamento dos paulistanos. Nesse sentido, a medicina urbana instrumentalizada pela
engenharia, tem por objeto a circulação dos indivíduos e dos elementos que os rodeiam,
como a água e o ar. Sendo assim, seu foco está principalmente em regiões de
amontoamento – como os cortiços do centro de São Paulo – que podem significar algum
tipo de perigo para a sociedade, seja este perigo relacionado à saúde, ao vício ou ao ócio.
Intervir no traçado da cidade é uma preocupação sanitária do poder público que
adentra o século XX. A atenção da municipalidade com os cortiços paulistanos faz parte
de um amplo plano de saneamento que envolve melhoramentos nas condições de diversos
estabelecimentos, como mercados, várzeas e até as “carroças de café” que circulavam no
centro. Mas, não bastava sanear a cidade sem dar conta da insalubridade da habitação
pobre (BRESCIANI, 2001, p. 152). Ponto de partida e destino final diário de todo agente
paulistano, a casa coloca-se em evidência num momento da história em que a expansão
demográfica da cidade de São Paulo trouxe problemas médicos e sociais para os
ocupantes da urbe. O poder público passa, então, a conferir especial atenção às questões
sanitárias que envolviam e manchavam a promissora São Paulo, montando um verdadeiro
plano de saneamento com a finalidade de “limpar” a capital e seus ares. Mas de acordo
com os engenheiros responsáveis por idealizar as regras de higiene sob as quais serão
submetidos os moradores paulistanos,
“não bastava (...) melhorar as condições de abastecimento d’água e do serviço
de esgoto, (...) proceder a regularização e limpeza dos terrenos baldios, retificar o curso
dos nós urbanos, effectuar o aceio e limpeza das ruas e quintaes, (...) arborizar as praças,
calçar as ruas, tomar enfim todas as medidas para manter em nível elevado a hygiene de
uma cidade que cresce rapidamente e cuja população triplicou em dez anos, é preciso
cuidar da unidade urbana.” (Relatório da Commissão de exame e inspecção das
1 Doutoranda em História Social pela PUC-SP. Professora de História da Prefeitura do Município de São
Paulo.
2
habitações operárias e cortiços do distrito de Santa de Ephigenia, 1893. Cap. I Das
habitações operárias nesta capital, e do seu exame de inspecção. In CORDEIRO, 2010)
Era preciso dar conta da habitação, ou seja, era preciso analisar e modificar as
características, hábitos e habitantes daquilo que os engenheiros criadores de um
verdadeiro regimento higiênico chamaram, em 1893, de unidade urbana. A expressão
vem sublinhada num documento que se refere à habitação coletiva como alvo principal
das ações de combate à insalubridade de São Paulo, ações que deveriam ser tomadas pelo
poder público e incorporadas por toda a população residente na capital. Aparece
sublinhada também a palavra que designa o tipo de habitação que dentre todas merece
maior destaque nessa luta contra a insalubridade:
“(...) o cortiço, como vulgarmente se chamam essas construções acanhadas,
insalubres, repulsivas algumas, onde as forças vivas de trabalho se juntam em desmedida,
fustigada pela difficuldade de viver, numa quase promiscuidade que a economia lhes
impõe, mas que a hygiene repelle.” ((Relatório da Commissão de exame e inspecção das
habitações operárias e cortiços do distrito de Santa de Ephigenia, 1893. Cap. I Das
habitações operárias nesta capital, e do seu exame de inspecção. In CORDEIRO, 2010)
A vida dentro do cortiço é administrada de modo a transitar o tempo todo entre o
particular e o compartilhado; a linha que separa “público e privado” nessas habitações é
muito tênue, ao mesmo tempo em que os moradores adquirem plena consciência de uso
de cada um desses espaços. Num estudo físico e social da formação da casa coletiva,
podemos dizer que o lugar mais caracterizado pela coletividade dentro do
compartilhamento de espaços do cortiço é o quintal. Ali acontecem os encontros, as
conversas e as festas. O quintal serve também como espaço de aprendizagem, lugar onde
se divide experiências, trabalhos e se compartilham brincadeiras, comida e instrumentos
de trabalho. Trata-se de um espaço cuja multiplicidade se dá nas cores, nos tipos de frutas,
nos instrumentos e, no caso específico dos cortiços, nas nacionalidades.
Entende-se por quintal a área externa da habitação que exerce funções utilitárias,
de refúgio ou produção. Localizados geralmente na parte posterior da casa, a presença de
3
elementos vegetais caracterizava os quintais até a virada para o século XX (HOLTHE,
2002, p. 206). A este espaço estão atreladas funções ligadas ao serviço doméstico, como
lavar, secar, cozinhar e armazenar utensílios, à produção de hortaliças, frutas e animais,
seja ela para subsistência ou comércio, ao lazer das crianças e também dos adultos,
quando pensamos em momentos de sociabilidade entre vizinhos e familiares através de
festas e encontros, à manifestações culturais e religiosas, abrigando festas, flores,
oratórios, imagens e quadros ligados à cultura popular. Para além da produção
alimentícia, o quintal também é espaço de apoio à renda familiar ao abrigar instrumentos
de trabalho da população pobre e por ser um espaço versátil onde se pode instalar uma
pequena oficina ou erguer quartos para aluguel. Já no que diz respeito à higiene pessoal,
o quintal foi durante muito tempo o lugar que abrigava a casa de banho e o banheiro, ou
latrina antes da chegada do sistema de esgoto.
O quintal pode ser parte do espaço onde se desenvolve a vida econômica dos
trabalhadores eventuais da cidade de São Paulo. Ora sendo o espaço de produção
propriamente dito, ora abrigando instrumentos de trabalho, como tachos de lavagem de
roupa e produtos destinados à tal serviço ou abrigando o fogareiro, tabuleiro e utensílios
de cozinha destinado à produção das quituteiras. Memorialistas como Jorge Americano e
Jacob Penteado sinalizam a função do quintal como meio produtivo e os atores que levam
esta produção pelas ruas da cidade como via de seu sustento. Até o final do século XIX,
a economia paulistana ainda não se caracterizava completamente como urbana. O
comércio ambulante eventual vigorava nas ruas com artesanato e gêneros alimentícios
produzidos no próprio quintal por nacionais pobres e imigrantes. Jacob Penteado, em seu
livro de memórias “Belenzinho, 1910”, descreve exemplos de atividades nos quintais que
possibilitavam o sustento da família e também a atividade comercial já citada. O quintal
da casa onde ele morava com sua mãe, por exemplo, abrigava uma horta onde era possível
colher couve, cebolinha, alho, salsa, salsão, cenoura, rabanete e alface. No quintal, a mãe
de Jacob também criava galinhas que forneciam “ótima carne e ovos em fartura”.
A alimentação nacional e estrangeira se mistura nas casas e quintais paulistanos.
Do mesmo modo que os imigrantes aprenderam a comer carne de porco e de frango, os
italianos, por exemplo, disseminaram o consumo de verduras como chicória, almeirão e
4
escarola e legumes como pimentão e berinjela entre os brasileiros (Ibidem). Além de
representar uma das origens da riqueza que compõe atualmente o cardápio brasileiro, essa
“mistura” alimentar é parte do sincretismo cultural instrumentalizado pelo quintal. Os
italianos estabelecidos no centro urbano encontraram nos quintais espaços disponíveis
para a formação de hortas e árvores frutíferas, cujo produto serviria para o consumo
familiar e também para venda.
Outro exemplo de sincretismo que envolve os quintais paulistanos diz respeito à
religião. Através de banhos de ervas e cerimônias, curandeiros e benzedeiras residentes
nos bairros populares de São Paulo curavam os portadores de doenças crônicas, males
perversos como a paralisia ou mesmo simples dores de barriga (WISSENBACH, 1998,
p. 139). O tratamento era feito em casa e as ervas utilizadas eram plantadas no quintal.
Dessa forma, atribui-se ao quintal, além da importância econômica, sua função para as
práticas medicinais e também religiosas, inclusive através de festas e cerimônias
particulares que despontavam nos bairros da cidade (KOGURAMA, 2001, p. 32). Ao
falar sobre a religiosidade e curandeirismo na metrópole, Paulo Kogurama afirma que as
práticas informais de cura não eram exclusividade dos paulistanos de descendência
africana, também entre os imigrantes europeus existiam curandeiros, feiticeiros e
espíritas, como a cartomante austríaca Joanna Knotz e o cuarandeiro espanhol Raphael
Estevam (Idem, p. 262). As crenças africanas e europeias, assim como a música e a
alimentação se fundem nos quintais e em todo território paulistano. Os papeis culturais
destinados à casa encontram boa parte de suas ferramentas no quintal. Morar não é
somente habitar um domicílio ou estar sob um teto. Além das relações pessoais, morar é
também relacionar-se com os equipamentos da casa, como móveis, utensílios,
instrumentos de trabalho e meios de comunicação.
Produzido na área externa da casa, o lazer é outro aspecto abarcado pela
sociabilidade do quintal, na forma de festas comemorativas, refeições compartilhadas e
pequenas brincadeiras infantis. O espaço, o clima e a interação com o natural confluem
para que o quintal seja o espaço da festa e dos momentos de compartilhamento. Pensando
esta ideia do compartilhar, há um cômodo na casa que funciona quase como extensão do
quintal: a cozinha. Quintal e cozinha são prolongamentos naturais um do outro não só na
5
medida do abastecimento, mas também da intimidade familiar e da ideia de
confraternização embutida nos momentos de refeição, mesmo por questão de necessidade
– nos quintais dos cortiços a alimentação das crianças era feita de forma coletiva,
independente de sua família original. A adaptação da cozinha no quintal e sua utilização
podem ser vistos no seguinte registro fotográfico:
Centro de Memória da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo – imagem 719 001.
A mulher com a mão na cintura tem aspecto jovem e parece ser a responsável por
cozinhar e alimentar as seis crianças que se encontram sentadas no quintal. A cena
representa uma divisão do trabalho numa realidade social onde outras mães precisam sair
para trabalhar (sendo normalmente lavadeiras, quituteiras ou vendedoras ambulantes) e a
tarefa de alimentar os filhos “do cortiço” ficaria com aquela disponível em casa no
momento da refeição. Dada a eventualidade das atividades econômicas exercidas pela
população – principalmente feminina – do cortiço, esta tarefa poderia acontecer num
esquema de revezamento entre as mulheres.
Outras imagens nos permitem desvendar a cultura material do quintal e o cotidiano
dos habitantes dos cortiços. Veja-se o exemplo desta habitação coletiva da Rua Ruy
Barbosa:
6
Centro de Memória da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo – imagem 708 001.
A grande quantidade de arame e taquara destinados à secagem de roupas, bem
como a armação em madeira e telha onde há peças quarando, são indícios não só de uma
grande quantidade de habitantes no cortiço, mas de ser o quintal um espaço privilegiado
para o trabalho das moradoras desta habitação. O ofício de lavadeira era muito comum
entre as mulheres pobres de São Paulo e, para estas trabalhadoras, o quintal é grande
aliado do exercício de suas funções, sobretudo para aquelas que não moram próximo às
várzeas. O pequeno abrigo à esquerda, construído em tijolos e madeira, é destinado em
partes para alocar instrumentos do trabalho doméstico e assalariado das moradoras deste
cortiço, como vassoura e barril. O cercadinho de arame contíguo ao abrigo contém plantas
cujo destino não se pode objetivar. De acordo com seu tamanho, local e estrutura, este
espaço pode ter sido idealizado para implantação de horta ou galinheiro, duas fontes de
produção comuns quando se trata de quintais populares.
Riquíssimo em elementos estruturantes do cotidiano da população encortiçada, o
registro a seguir pertence a um cortiço da Mooca:
Centro de Memória da Faculdade de Saúde Pública de São Paulo – imagem 723 001.
7
Do ponto de vista físico, este quintal possui chão de terra batida e, diferente dos
quintais de várzea e periferia, não possui nenhum tipo de vegetação para além dos
humildes vasos apoiados nos barris ao lado das portas. Sua estrutura precária é
evidenciada nas paredes semi concretadas, com eventuais buracos e quinas despedaçadas.
O puxadinho de tábuas de madeira à esquerda, assim como o lençol improvisadamente
fazendo as vezes de porta no centro da estrutura, contribuem para o aspecto pobre da
moradia, assim como para o diagnóstico economicamente precário de vida da população
residente. Os elementos humanos captados na imagem nos permitem uma análise social
do momento. Observa-se mulheres de diferentes idades em diferentes funções: as mais
velhas estão lavando roupa enquanto as mais novas parecem cuidar da população infantil
do cortiço. Para além do bebê no colo da mulher à esquerda e da criança no canto direito
da foto, duas cadeirinhas de balanço evidenciam a presença infantil nesta habitação. As
galinhas soltas neste quintal podem indicar a falta de um espaço destinado
especificamente a abrigá-las, desconfiança causada pela própria precariedade já analisada
do ambiente. A distinção entre a domesticação de animais para abastecimento ou somente
com finalidade de criação era muito frágil, dependia da necessidade da família num
determinado momento. Os donos de quintais com criação de animais disciplinadamente
voltada para o comércio poderiam tornar-se tripeiros, ofício dos que apareciam de
carrocinha ofertando fígado, coração, miolos, mocotó, rins e outros miúdos
(PENTEADO, 2003, p. 90 e 91), mas, com certeza, não é esta a relação que os moradores
deste cortiço estabelecem com sua criação de aves. Sobre as funções deste quintal
coletivo, pode-se elencar o preparo de alimentos, dada a armação em tijolos e a presença
de latas com furo no meio, artefatos utilizados no aquecimento e cozimento da comida.
A estruturação da cozinha no espaço do quintal também se evidencia na bacia de
utensílios alocada próximo à primeira porta da direita. Outros instrumentos ligados às
atividades domésticas também são alocados no quintal, como vassouras e tachos de lavar
roupa. Este último, assim como a estrutura baixa improvisada em madeira, os baldes e
bacias de metal, podem pertencer também ao universo produtivo das lavadeiras, mulheres
8
que se utilizam do quintal para realizar seus afazeres domésticos e economicamente
produtivos.
Os quintais também aparecem nos preceitos normativos que regulam a habitação
paulistana. O Padrão Municipal promulgado em 1886 dedica um capítulo exclusivo aos
cortiços – Cortiços, casas de operários e cubículos – e determina a proibição destas
unidades habitacionais no perímetro do comércio. No caso dos cubículos serem erguidos
em outros pontos da cidade, o pedido de licença para construção segue a mesma
burocracia de construção dos demais imóveis, devendo ser feito o requerimento à Câmara
e com normas convenientes à beleza e salubridade como em qualquer residência. E sendo
a coletividade um fator que diferencia os cortiços das demais habitações populares, o
Padrão Municipal também ordena os espaços de uso conjunto, como o quintal,
estipulando tópicos para as condições de moradia como:
“2º - Haverá um poço ou torneira com água e pequeno tanque de
lavagem para cada grupo de seis habitações no máximo.
3º - Haverá latrina para cada grupo de duas habitações.
4º - A área comum das frentes das habitações ou arruela de
passagem deverá ser convenientemente arborizada” (Código de
Posturas do Município de São Paulo, 6/10/1886, Padrão
Municipal – VI – Cortiços, casas de operários e cubículos.)
Num contexto de remodelação da cidade, o Relatório da Comissão de exame e
inspeção das habitações operárias e cortiços no distrito de Santa Ephigênia, publicado
em 1893, traz as considerações dos engenheiros sanitaristas acerca da insalubridade das
habitações coletivas, assim como elucida formas adequadas de morar no Capítulo V-
Medidas a tomar quanto aos cortiços e estalagens. Neste capítulo, algumas indicações
são referenciadas ao quintal e aos elementos que o compõem:
O cortiço, propriamente dito para continuar a funcionar na zona
affectada terá que preencher as seguintes condições:
9
(...)
3º Ter o systema de esgoto completo para as latrinas, as quais
deverão ser assentadas ao fundo da área livre e contendo, sob
abrigo adequado, tantas bacias quantos os grupos de seis
habitações, sendo o chão ladrilhado e cimentado e
completamente estanque.
4º Ter água canalizada para uso doméstico sendo para esse fim
assentadas torneiras quantos os grupos de seis casas. Os poços
são ahi inteiramente banidos.
5º Ter tanques para lavagem de roupa e tantos quantos os grupos
de seis casas, sendo eles cimentados ao redor e munidos de ralo
para esgoto.
(...)
7º Na área livre serão assentados lampiões: um na entrada e outro
na posição mais conveniente para ter essa área perfeitamente
iluminada.( Relatório da Commissão de exame e inspecção das
habitações operárias e cortiços do distrito de Santa de Ephigenia,
1893. Cap. V-Medidas a tomar quanto aos cortiços e estalagens.
In. CORDEIRO, 2010)
Sobre a metragem dos quintais existentes nos cubículos que compõem os
cortiços, a comissão estipula que não devem ter “menos de 10 metros quadrados, tel-a-ão
cimentada e com a sufficiente inclinação para um ralo de esgoto que facilita a drenagem.”
(Ibidem)
Os cortiços que não tivessem o quintal ou outra parte da casa em adequação com
as disposições sanitárias dos engenheiros, seriam interditados e teriam um prazo para
cumprir as reformulações. No caso de não cumprirem, a demolição seria imposta. Ao
mesmo tempo, o ato direcionado a extinguir os cortiços livraria o governo e a elite
paulistana da imagem doente e incivilizada passada pelo aglomerado de moradias
coletivas consideradas além de sujas, de tão mau gosto estético e subversor da formação
moral de seus moradores. Sendo assim, não era apenas o bem estar dos paulistanos
encortiçados que impulsionava a ação demolidora; mais do que uma questão de saúde,
demolir os cortiços era também uma questão de reputação para a cidade.
À demolição dos cortiços, não foi criada nenhuma alternativa satisfatória, pelo
menos nenhuma que fosse comprometida com o desabrigo de milhares de famílias e sua
real condição social e de trabalho. Mesmo as vilas operárias, que entraram como projeto
prioritário somente nas primeiras décadas do século XX, eram em número insuficiente,
10
sendo algumas de padrão econômico superior ao que a maioria da população poderia
pagar ou então desinteressante do ponto de vista de sua localização, devido à carência do
abastecimento de transporte público (RODRIGUES, 2010, p. 86).
O governo concedia uma série de privilégios às empresas construtoras, como
concessão de empréstimos para a construção de imóveis destinados à habitação popular,
isenção de imposto predial e de imposto de transmissão de propriedade por vinte anos,
direito de desapropriação e também concessão de terrenos pertencentes ao Estado para o
uso dessas construções habitacionais.
Para o engenheiro Backheuser, estas medidas não representaram mudanças
quantitativas nas estratégias de construção da moradia popular, devido ao baixo número
de empresários que aderiram à ideia de investir nestes empreendimentos (CARPINTÉRO,
1997, p. 62). Às empresas, competia a responsabilidade de construir, além das casas,
também escolas creches e armazéns. O vínculo garantia a proteção dos interesses do
grupo de empresários industriais, que conseguiram, através das medidas urbanas
empenhas pelo governo a partir do final do século XIX, ocupar cadeiras representativas
na administração. A inserção deste grupo nas políticas dirigentes do Estado pode ser
exemplificada pelo caso de Luís Rafael Vieira Souto, que em 1885 solicitava à
administração pública concessão para construir habitações para a classe operária, e já no
ano seguinte, ingressava ao Conselho Superior de Saúde Pública propondo melhorias para
as condições de moradia da classe pobre, onde ele mesmo investia seu capital
(CARVALHO, 1995, p. 146).
Em São Paulo, os lugares prioritários para estabelecimento das vilas operárias
eram as regiões vizinhas às áreas já ocupadas pelos trabalhadores, em terrenos pouco
valorizados e perto das fábricas e ferrovias, para atingir um denominador comum entre
lucro, controle do operário e facilidade de locomoção ao trabalho. Assim, São Paulo inicia
o século XX com a presença de algumas vilas operárias em seu cenário urbano, como a
Vila Maria Zélia, no Belenzinho, Vila Prudente, no Ipiranga e Vila Crespi, na Mooca
(CARPINTÉRO, 1997, p. 64 e 65). Todas construídas junto às fábricas, formando um
núcleo industrial que abriga ao mesmo tempo o espaço e a força produtora. Entre os
11
fatores que levaram os industriais a investirem neste tipo de empreendimento, está a
centralidade da construção das vilas que permaneceriam atreladas às fábricas,
condicionando a contratação e formação da mão de obra.
Quanto ao formato dessas vilas, a maior parte das casas comportava dois ou três
quartos, uma sala, uma cozinha, latrina e quintal preferencialmente nos fundos, sem a
presença de jardins. Para o trabalhador habitar uma unidade dessas, alguns empresários
lhe cobravam um aluguel da casa, outros preferiam descontar direto dos salários de seus
funcionários, garantindo o recebimento em dia do aluguel. Além dos critérios de
construção e pagamento, havia também critérios que filtravam a possibilidade de morada
nas vilas. Esses critérios englobavam desde questões conjugais até cor, vícios, número de
filhos, saúde e desempenho no trabalho. Na Vila Matarazzo, por exemplo, só eram
concedidas casas a famílias com mais de dois membros trabalhando na fábrica (Idem, p.
66 e 68). A ideia aqui não era apenas selecionar os moradores da vila tentando garantir
que o ambiente imoral dos encortiçados fosse transposto às vilas operárias, mas também
garantir que o fornecimento das casas priorizasse os trabalhadores das fábricas, visando
controle e aumento da produção e a incorporação, por parte dos operários, dos hábitos e
valores exigidos pelos patrões.
A privacidade adquirida pela família que deixa o cortiço para morar numa
habitação operária, altera algumas significações e praticidades do cotidiano. As plantas
das casas operárias, ainda que simples e pequenas, possuem os cômodos divididos e
nomeados de acordo com preceitos normativos de utilização do espaço. As plantas a
seguir pertencem a casas operárias no bairro do Bom Retiro e apresentam o primeiro e
maior cômodo da casa como a sala de visitas, de maneira a direcionar a sociabilidade da
família e seus visitantes ao cômodo de maior acesso e circulação dentro do imóvel. Em
seguida, vê-se os quartos separados do espaço de convivência e a cozinha, ainda
culturalmente pequena e atrelada ao quintal. A ausência de especificação das instalações
sanitárias denota a possibilidade de existência de latrina ou casa de banho livremente
estruturadas no espaço externo da casa.
12
O quintal acompanha a lateral e os fundos da casa. Seu espaço, apesar de em
alguns casos ser mais restrito do que nos cortiços de quadra interna, por exemplo, torna-
se privativo. Deste modo, o “arame”, as “taquaras”, o tanque e todo instrumento ligado
ao serviço doméstico não é mais compartilhado.
A dimensão da privacidade não é a mesma em toda forma de habitação operária.
A ideia comunitária do quintal pode permanecer mesmo com o advento das vilas
operárias. É verdade que a maioria das plantas das casas unifamiliares empreendidas paras
as vilas desenham o quintal como um espaço muito mais restrito, quadrado, onde parece
não caber mais a rede de sociabilidade tecida nos quintais destes operários que antes
habitavam os cortiços. Não há mais espaço para cozinhas improvisadas (deve-se
considerar que a cozinha já vem planejada como um cômodo singular e interno da casa)
ou para a criação simultânea de hortas, árvores frutíferas, galinheiros, chiqueiros, grandes
Planta de casa do ano
1893. Rua Anhaia.
Proprietário: Felicio
Payao (AHMWL. Fundo
Intendencia Municipal.
Grupo Obras. Série
Obras Particulares.
Vol1)
Planta de casa do ano
1894. Rua Anhaia
(AHMWL. Fundo
Intendencia Municipal.
Grupo Obras. Série
Obras Particulares.
Vol1)
Planta de duas casas de
operário do ano 1893.
Rua Anhaia.
Proprietário: Joaquim
Pedro Mathias (AHMWL.
Fundo Intendencia
Municipal. Grupo Obras.
Série Obras Particulares.
Vol1)
13
bacias e extensos varais para lavar, secar e quarar a roupa lavada “pra fora”. A
unifamiliaridade característica destas casas também retirou a necessidade do espaço para
criação, lazer e alimentação de crianças em grande número, pertencentes à diferentes
famílias sanguíneas. Ainda assim, o conceito e a cultura do viver em comunidade, é algo
que não se apaga com a chegada das chaminés e os loteamentos. Sendo assim, é possível
que muitas vilas operárias tenham feito justamente do quintal um espaço onde resiste e
acontece a experiência coletiva. A planta a seguir pertence às casas operárias da Vila
Brasital, construída em Salto a partir de 1920:
Planta da Vila Operária Brasital (ZEQUINI, 1991, p. 161)
O chamado “Quintalão” desenhado no meio das construções é o espaço coletivo
das necessidades externas das famílias. Ainda que no planejamento inicial da vila o
“quintalão” tenha sido projetado para ser um espaço bem arborizado destinado à
recreação salubre e em terreno apropriado para os filhos dos operários, sua utilidade não
se restringiu nem um pouco a isso.2 Os moradores das vilas fizeram dos quintalões algo
2 Pensando um significativo exemplo de urbanismo, as quadras com pátio interno projetadas pelo
engenheiro Ildefonso Cerdá em Barcelona em meados do século XIX, também foram pensadas para garantir
a arborização e circulação de ar na cidade, mas sua existência nunca se restringiu a tal objetivo. Os pátios
internos, com raras exceções, nunca funcionaram como espaços público, tornaram-se o que se chama aqui
de pátios de luzes, lugares externos onde estavam as janelas de serviço, os varais e serviam também para
circulação de ar. Alguns, como são grandes, funcionam como pátios e jardins internos, parecidos com os
14
bem mais abrangente. A instalação de instrumentos de uso coletivo das famílias da quadra
como tanques e fornos fez com que mulheres e crianças, principalmente, compartilhassem
o mesmo espaço. O uso coletivo dos “vascões” – fornos – e outros instrumentos de
trabalho não são um exemplo totalmente pacífico de compartilhamento.
A exemplo das lavadeiras da várzea e ocupantes ativas dos quintais coletivos dos
cortiços, as brigas entre as mães de família das vilas operárias pelo revezamento do uso
dos instrumentos de trabalho presente no quintal também era uma realidade. O conforto
e a privacidade inerentes às casas unifamiliares das vilas operárias, por mais simples que
fossem estas casas, talvez diluam em partes a tolerância ao coletivo construída entre os
moradores dos cubículos dos cortiços, habituados a dividir cozinha, banheiro, barulhos,
rotinas, crianças, animais. Anicleide Zequini, através de depoimentos de moradores,
relata que estas pequenas desavenças nas vilas eram causadas pelo abuso de uma ou mais
moradoras que pretendiam reservar com exclusividade ou em maior quantidade o uso de
tanques, coradores e fornos. Leves incidentes que eram solucionados por um fiscal pago
pela firma responsável pela vila (ZEQUINI, 1991, p. 163). A figura do fiscal que mantém
a ordem disciplinar e higiênica das casas populares, existentes nos distritos centrais de
São Paulo no final do século XIX sob comando da Intendência Municipal, se mantém em
seus objetivos de manter a ordem neste espaço urbano certamente “mais civilizado”,
conforme os padrões da municipalidade, mas cujos antecedentes e antepassados dos
habitantes não negam sua “natureza” de risco.
Embora planejado como coletivo, o imaginário dos criadores do “quintalão” o
considerou um espaço de uso exclusivo das famílias das casas que o cercavam. Fato que
também fugiu ao controle de seus idealizadores. Em muitos momentos como
comemorações e festas populares, sobretudo as típicas festas juninas, o quintal do interior
da quadra se abria para pessoas “de fora” e tornava-se palco de um outro tipo de
quintais. A dinâmica econômica do século XX fez com que boa parte destes pátios tivessem seus destinos
mudados ao avançar do século: as quadras tiveram todos os seus lados ocupados, de modo a tornar o pátio
interno privativo. Ali passaram a funcionar estabelecimentos como oficinas e escritórios. (TATJER, 2003).
Há, portanto, uma tendência do espaço externo contíguo à casa de ser aproveitado para atividades ligadas
ao serviço doméstico e lazer dos moradores, sendo, posteriormente, elemento que agrega valor financeiro
imobiliário.
15
sociabilidade, desta vez baseada na permanência de uma cultura mais divertida do que
àquela relacionada ao material. Mas não podemos nos enganar quanto a uma ideia de
autonomia irrestrita dos moradores da vila sobre o uso de seu quintal. No caso das festas
e confraternizações, todos os convidados estariam ligados por laço de amizade ou
parentesco a algum dos moradores daquela quadra da vila, já que o acesso ao quintalão
era feito necessariamente pelo interior de uma das casas que o circundavam. Além disso,
estas festas só poderiam acontecer com prévia autorização da fábrica construtora da vila.
Dada esta imposição restritiva ao quintal, que em certa medida acompanha o objetivo
idealizador de construção das vilas operárias por parte dos industriais – redução do preço
da força de trabalho, controle do operário e otimização de sua capacidade de produção e
possibilidade de manter-se no emprego - é que Anicleide Zequini chama esta área externa
de “quintal da fábrica”. Ela está de posse do operário, mas ao fim e ao cabo, assim como
ele, está submetida à vontade do patrão (Idem, p. 164).
Assim, o quintal segue assumindo novos formatos ao longo do tempo, mas
continua sendo espaço da sociabilidade e do protagonismo e do cotidiano do público,
sobretudo feminino, inserido na realidade familiar da classe baixa. Cada vez menos no
que diz respeito às necessidades básicas como gêneros alimentícios, mas cada vez mais
referente ao lazer e à liberdade inerente aos sujeitos citadinos que lhes permite o exercício
da sociabilização e da vida em comunidade mesmo após a superação de seu passado
encortiçado, como é o caso de muitas famílias cujas gerações anteriores habitaram o
centro de São Paulo sob a condição de trabalhadores informais, antecedentes à chegada
da indústria e seu empreendedorismo habitacional. O “quintalão” enquanto espaço de
lazer coletivo dos moradores das quadras das vilas se firmou ao longo do tempo. A
imagem a seguir é o registro de um “quintalão” desativado e adaptado já na década de
1980 para funcionar como campinho de futebol, conforme denuncia a armação do gol no
centro da foto, próximo aos muros das casas. Tomando este formato, o “quintalão” atende
ao lazer dos pequenos e ao ócio saudável dos operários, ou tomando por base o tempo
avançado deste exemplar, dos diversos trabalhadores que residem no bairro.
Fontes
16
AHMWL. Fundo Intendencia Municipal. Grupo Obras. Série Obras Particulares.
Vol 1
Código de Posturas do Município de São Paulo, 6/10/1886.
Relatório da Commissão de exame e inspecção das habitações operárias e cortiços
do distrito de Santa de Ephigenia, 1893. In CORDEIRO, Simone Lucena (org). Os
cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo / Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010.
Bibliografia
BACKHEUSER, Everardo. Habitações Populares. Relatório apresentado ao Exm. Sr.
Dr. J. J. Seabra, Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio de Janeiro: Imprensa Oficil, 1906.
BRESCIANI, Maria Stella. História e Historiografia das cidades, um percurso. In:
FREITAS, Marcos Cezar (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 2001.
CARPINTÉRO, Marisa Varanda. A construção de um sonho: os engenheiro-
arquitetos e a formulação da política habitacional no Brasil São Paulo – 1917/1940.
Campinas: Unicamp, 1997.
CARVALHO, Lia de Aquino. Contribuição ao estudo das habitações populares
– Rio de Janeiro 1886-1906. 1995.
KOGURUMA, Paulo. Conflitos do imaginário – a elaboração das práticas e
crenças afro-brasileiras na “metrópole do café”, 1890-1920. São Paulo: Annablume,
2001.
PENTEADO, Jacob. Belenzinho, 1910: retrato de uma época. São Paulo:
Carrenho Editorial/Narrativa Um, 2003.
RODRIGUES, Jaime. Da “Chaga Oculta” aos dormitórios suburbanos: notas
sobre higiene e habitação operária na São Paulo de fins do século XIX. In CORDEIRO,
Simone Lucena (org). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893).
17
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo / Arquivo Público do Estado de São
Paulo, 2010. p. 86.
TATJER, Mercedes. Habitação popular no alargamento de Barcelona. Revista
eletrônica de geografia e ciências sociais da Universidade de Barcelona, ISSN: 1138-
9788. Vol. VII, n. 146 (021), 01 de agosto de 2003
VAN HOLTHE, Jan Maurício Oliveira. Quintais Urbanos de Salvador:
Realidades, Usos e Vivências no Século XIX. Dissertação de Mestrado UFB, Salvador,
2002.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas:
escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP,
1998.
ZEQUINI, Anicleide. O quintal da fábrica: a industrialização pioneira do
interior paulista Salto-SP, séculos XIX e XX. São Paulo: Annablume, 2004.