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[REVISTA CONTEMPORÂNEA DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846] 1 1 Ditadura, grandes projetos e colonização no cotidiano da Transamazônica César Martins de Souza 1 (autor convidado) Resumo: O anúncio da construção da rodovia Transamazônica, que pretendia integrar os dois grandes oceanos, Atlântico, em Cabedelo, na Paraíba e o Pacífico, em Lima, no Peru, foi cercado por ampla propaganda, durante o governo do general-presidente Emílio Garrastazu Médici. A rodovia pretendia ser o elo de um gigantesco projeto de colonização que objetivava transferir populações do nordeste e sul do Brasil para os chamados “vazios” demográficos da Amazônia. A análise de jornais e revistas de circulação nacional evidencia que a rodovia teve, na memória nacional, metamorfose de significados, passando de símbolo do auge do governo militar a símbolo do fracasso e megalomania da ditadura civil-militar brasileira. Palavras-chave: Transamazônica, colonização, ditadura civil-militar Abstract: The announcement of the Tranzamazônica highway construction which intended to unite the two big oceans, Atlantic, and Cabedelo, in Paraíba and the Pacific, in Lima, in Paru, it was surrounded by extensive propaganda, during the government of the president- general Emílio Garrastazu Médici. The highway intended to be the link of a gigantic project of colonization that aimed to transfer populations of the northeast and southeast of Brazil called “empty” demographics in the Amazon. The analysis of newspapers and national magazines, shows that the highway had, in the national memory, metamorphosis of meanings, that changed from the symbol of the success of the military government to represent the failure of the megalomania and civil-military dictatorship of Brazil. 2 Keywords: Transamazônica, colonization, civil-military dictatorship. 1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, Professor do Campus de Altamira da Universidade Federal do Pará. 2 A tradução do resumo e das palavras-chave para a língua inglesa foi gentilmente elaborada pelo professor Antônio José Bezerra do Nascimento Filho, do Curso de Língua Inglesa/Campus de Altamira/UFPA, ao qual agradecemos

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS,

A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1 ISSN [2236-4846]

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Ditadura, grandes projetos e colonização no cotidiano da

Transamazônica

César Martins de Souza1

(autor convidado)

Resumo: O anúncio da construção da rodovia Transamazônica, que pretendia integrar os

dois grandes oceanos, Atlântico, em Cabedelo, na Paraíba e o Pacífico, em Lima, no Peru,

foi cercado por ampla propaganda, durante o governo do general-presidente Emílio

Garrastazu Médici. A rodovia pretendia ser o elo de um gigantesco projeto de colonização

que objetivava transferir populações do nordeste e sul do Brasil para os chamados “vazios”

demográficos da Amazônia. A análise de jornais e revistas de circulação nacional

evidencia que a rodovia teve, na memória nacional, metamorfose de significados, passando

de símbolo do auge do governo militar a símbolo do fracasso e megalomania da ditadura

civil-militar brasileira.

Palavras-chave: Transamazônica, colonização, ditadura civil-militar

Abstract: The announcement of the Tranzamazônica highway construction which intended

to unite the two big oceans, Atlantic, and Cabedelo, in Paraíba and the Pacific, in Lima, in

Paru, it was surrounded by extensive propaganda, during the government of the president-

general Emílio Garrastazu Médici. The highway intended to be the link of a gigantic

project of colonization that aimed to transfer populations of the northeast and southeast of

Brazil called “empty” demographics in the Amazon. The analysis of newspapers and

national magazines, shows that the highway had, in the national memory, metamorphosis

of meanings, that changed from the symbol of the success of the military government to

represent the failure of the megalomania and civil-military dictatorship of Brazil.2

Keywords: Transamazônica, colonization, civil-military dictatorship.

1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, Professor do Campus de Altamira da

Universidade Federal do Pará. 2 A tradução do resumo e das palavras-chave para a língua inglesa foi gentilmente elaborada pelo professor

Antônio José Bezerra do Nascimento Filho, do Curso de Língua Inglesa/Campus de Altamira/UFPA, ao qual

agradecemos

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Em 1986, no segundo ano do mandato presidencial de José Sarney, uma notícia

abalou os noticiários nacionais: o governo federal pretendia investir no asfaltamento da

Transamazônica (BR-230). Diversos setores manifestavam a euforia do final da ditadura e

da implementação do Plano Cruzado que teria reduzido rapidamente a inflação.

A expectativa de um longo período de consolidação da democracia, com uma nova

Constituição Federal, motivavam a crença de que em breve o Brasil reencontraria os

melhores caminhos e poderia viver um outro momento em sua História republicana. Uma

história marcada, no século XX, por golpes de Estado, bem como algumas tentativas e

ameaças de golpes e uma ditadura, governada por generais, que durou vinte anos.

Na mesma matéria que comemorava os resultados considerados positivos da

economia, após dois meses de Plano Cruzado, a revista Veja, demonstra preocupação com

o possível afastamento, devido a um câncer linfático, do Ministro da Fazenda, Dilson

Funaro, negado pelo próprio ministro, que “se desdobra para barrar os inimigos do pacote”

(VEJA, 07 de maio de 1986, p. 21). A matéria faz então diversas considerações sobre os

adversários do Plano Cruzado, denunciando que muitos deles estariam dentro do próprio

governo, agindo em favor de “grupos de pressão” que pretenderiam utilizar os recursos

públicos com objetivos contrários aos “interesses do país”.

Em seguida, a matéria não assinada da Veja, inclui o então Ministro dos

Transportes, José Reinaldo Tavares, como componente deste “grupo de pressão”,

manifesto em seu anunciado objetivo de asfaltar a lendária rodovia:

Trata-se, longe de uma conspiração, de um trabalho diuturno de sapa ao

dinheiro amealhado pelo Estado junto ao contribuinte. Nesta empreitada

contra as regras da boa administração pouco importa a origem da verba,

mas o destino da despesa. É o caso do Ministro dos Transportes, José

Reinaldo Tavares, que quer porque quer asfaltar a Transamazônica – uma

obra que exigiria, a preços de hoje, 1,1 bilhão de cruzados, cifra

equivalente ao dispêndio com o programa através do qual o governo

promete distribuir leite a 1,5 milhão de crianças neste ano. Tavares, que

foi subordinado no governo Médici do então Ministro dos Transportes,

Mário Andreazza, como diretor do DER do Maranhão – época em que

Sarney era governador do Estado –, se irrita quando colocam em causa a

viabilidade do projeto que patrocina. “Por que não é factível?”, indaga.

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“Só porque a Transamazônica foi feita pelo Andreazza”. (VEJA, 07 de

maio de 1986)

No primeiro governo civil, logo após vinte anos de generais-presidentes, o país

parecia assaltado pelo retorno de um símbolo do milagre brasileiro, construído durante o

governo do general, Emílio Garrastazu Médici, considerado uma das maiores obras da

ditadura. O Ministro dos Transportes, permanecia, nas memórias nacionais, associado ao

regime no qual atuara e defendeu o empreendimento, argumentando que as críticas se

deviam ao fato de a Transamazônica ter sido uma das principais obras de Mário Andreazza

e do general-presidente Médici.

Naquele momento, os veículos de comunicação, nas disputas por memórias,

fizeram a crítica à proposta, cuja imagem estava vinculada ao período anterior e que

deveria ser esquecido. Junto com o esquecimento dos anos de chumbo, da repressão,

durante a ditadura, a rodovia Transamazônica também seria esquecida, ou colocada em

outro lugar na memória nacional, como um símbolo do fracasso. Seguindo a notícia,

diversos setores da imprensa, como em uma catarse nacional, rememoravam com olhos

pós-ditadura a estrada que um dia fora espaço dos sonhos do Brasil de conquistar a

Amazônia.

A “conquista” da Amazônia?

O ano de 1970 marcaria definitivamente não apenas as memórias de um imenso

pedaço do Brasil, como também permaneceria como um símbolo para as chamadas obras

faraônicas, construídas pelo governo federal. Tudo parece gigantesco quando se fala dos

cenários da Transamazônica: maior município do mundo, maior floresta tropical do

mundo, alguns dos maiores rios do mundo. O futuro e as memórias posteriores diriam se o

então denominado maior projeto de colonização do mundo, através do que viria a ser uma

das maiores rodovias da Terra, poderiam ou não vir a resultar no início de um dos maiores

danos ambientais do planeta e/ou fazer a tão desejada pela população brasileira, integração

e domínio de mais da metade do Brasil.

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A “princesinha do Xingu”, como Altamira era conhecida, assistia com expectativa

e até mesmo uma certa euforia o início das obras da rodovia. Tudo parecia gravações de

filme, um general-presidente, Médici, recebido com emoção e delírios, uma castanheira-

do-pará (Bertholletia excelsa), derrubada como monumento para a rodovia, possíveis

ataques de índios, trabalhadores mortos por animais selvagens e por doenças escondidas no

ventre da floresta, enquanto migrantes eram transpostos de uma região para outra distante.

A “princesinha do Xingu”, foi metamorfoseada em “capital da Transamazônica”, de tal

forma que o rio Xingu e todas as suas histórias é mais associado a São Félix do Xingu-PA,

do que a cidade que um dia se orgulhou de ser sua princesa.

Neste cenário, a revista Manchete noticiava com expectativa positiva a construção

da rodovia, com imagens grandiosas da floresta ao fundo e uma estrada cortando seu

ventre, enquanto migrantes começavam a chegar para ocupar os lotes de terra e o plantio se

iniciava:

Paralelamente à abertura da Transamazônica processa-se o trabalho da

colonização, realizado pelo INCRA (Instituto de Colonização e Reforma

Agrária). As pequenas agrovilas se sucedem de vinte em vinte

quilômetros à margem da estrada, e nos cem hectares que cada colono

recebeu são plantados milho, feijão e arroz. Já no próximo mês começará

a plantação de cana-de-açúcar, cujas primeiras mudas, vindas dos

canaviais de Sertãozinho, em São Paulo acabaram de ser distribuídas.

Jovens agrônomos, recém saídos da universidade, orientam os colonos...

No meio da selva começam a surgir as agrovilas. Vindos de diferentes

regiões do país, os colonos povoam as margens da Transamazônica e

espalham pelo chão virgem o verde disciplinado das culturas pioneiras.

Os pastos da região são excelentes (MANCHETE, 15 de abril de 1972, p.

73).

A Manchete em uma reportagem que exaltava a estrada, traz imagens e textos que

mostravam a alegria das famílias na colheita das safras de arroz e feijão. O nascimento de

crianças e a fartura da colheita são elementos que somados, serviriam de argumento para

afirmar a vitória dos idealizadores e planejadores da estrada que pretendia integrar o país

pelo seu interior, criar uma rota rodoviária entre dois oceanos e levar esperança a

populações que, segundo os discursos, sofriam por décadas devido ao descaso do poder

público.

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Todo o enredo da construção e colonização parecia cenas de filmes de aventura, no

interior da Amazônia, dotado de um certo surrealismo que faz todo o debate sobre a

história da construção da Transamazônica e as memórias da ditadura civil-militar que ela

carrega, parecerem uma lenda. Plantações surgindo no interior da floresta, próximo a

estrada, eram imagens frequentemente utilizadas pela Manchete para enfocar a

grandiosidade e, ao mesmo tempo, o sucesso do empreendimento, cujas primeiras colheitas

começavam a dar resultados.

A estrada cresceu, originou agrovilas de agricultores e municípios, iniciados pelo

governo federal e desenvolvidos pelos próprios migrantes. Um município carrega com

orgulho, em seu nome, Medicilândia, uma homenagem ao general-presidente que ordenou

a construção da Transamazônica. Homenagem, considerada justa por muitos moradores

que vivenciaram aquele momento ou que nasceram às margens da estrada e cresceram

escutando histórias sobre as visitas e o carisma de Médici, reconhecido na historiografia

nacional, como governante do período mais duro da repressão durante a ditadura3.

Moradores de municípios, ao longo da rodovia, como Antenor4, produtor rural, 60

anos, que se tornou um próspero médio agricultor, em Uruará-PA, lembram com orgulho e

emoção as visitas de Médici e o vêm, como um bom presidente que levou conquistas

importantes para o povo da Transamazônica:

O homem era bom, tratava nós tudo [sic] como gente, cheguei aqui sem

nada e consegui o que tenho, que infelizmente o senhor não vai poder

conhecer [as terras dele, distantes cerca de 30 quilômetros do ponto onde

conversávamos, em sua residência na zona urbana], foi graças ao Médici.

Ele perguntava como a gente tava [sic] e investiu, diferente do pessoal

depois dos militar [sic].

...ele mudou para melhor nossas vidas.5

O apoio e/ou concordância de muitos migrantes, em relação ao governo de Médici

manifestam o olhar de pessoas que, dentro de suas realidades, do recebimento de terras e

3 Sobre a repressão e tortura aos opositores, durante o governo de Médici, consultar FICO, 2001 e

GASPARI, 2002. 4 Foram utilizados nomes fictícios para os entrevistados para preservar, a pedido de muitos deles, suas

identidades. 5 Antenor, natural de Santa Catarina, possui mais de mil hectares de terra e tem ensino médio completo.

Entrevista realizada pelo autor, em Uruará, em 11 de janeiro de 2010.

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traslado para outra região, pensam como um benfeitor, o presidente que teria viabilizado

uma transformação considerada por eles como positiva, em suas vidas. Reis (2005) defende

que os anos de chumbo de Médici precisam ser revisitados para que se possamos

compreender melhor o milagre que ocorreu naquele período. Os depoimentos de

moradores da Transamazônica, dificilmente audíveis nos principais espaços de informação

nacionais são, assim, uma das maneiras de revisitar o período que ficou conhecido como os

anos de chumbo e do milagre brasileiro.

As ponderações de Reis, provocam a necessidade de reflexões, pesquisas e outros

olhares sobre a ditadura. Assim, os depoimentos dos migrantes, favoráveis à Médici, são

apenas alguns exemplos de tantos outros ouvidos de maneira formal ou informal ao longo

da Transamazônica, e que expressam uma realidade oculta ao restante do país: de que

muitas pessoas desfavorecidas economicamente, até então sem perspectivas de melhorias

em suas vidas, têm boas recordações daquele período. Não é o grupo dos que veem a

política de longe, mas dos que se incluíram no que foi chamado de epopeia da conquista da

Amazônia.

O presente artigo não pretende mostrar que, a despeito das críticas e das memórias

nacionais, a Transamazônica foi uma obra boa para o país e muito menos que a ditadura

teve aspectos positivos, mas buscar compreender os motivos que levaram muitas pessoas

na Transamazônica a considerarem a ditadura e a estrada como positivos. Um general-

presidente, marco do auge da repressão no Brasil, alçado à condição de líder carismático e

popular, vem a ser um fator não apenas de construção de outra memória. Durante a

construção da rodovia e ao longo da existência da Transamazônica, Médici foi visto com

bons olhos por aqueles que depositaram suas esperanças em sua presença e/ou no retorno

de uma “era de ouro” em que a rodovia recebeu visitas de autoridades federais e também

fortes investimentos no programa de colonização.

As memórias e visões dos transamazônicos, sob vários aspectos diferentes das

consolidadas no país, torna ainda mais enfático que ao se estudar a rodovia, alguns

aspectos desconhecidos do Brasil vêm a tona. A própria estrada, considerada por muitos

como um caminho no meio da selva, aparece sob um outro prisma, quando se considera o

ponto de vista das populações de migrantes que se estabeleceram na região.

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Esta estrada que a partir de 1970, abriu caminhos para visitas de Presidentes,

Ministros de Estado, imprensa nacional e internacional, conflitos entre migrantes e

indígenas, pessoas devoradas por onças, jacarés, sucuris, piranhas e outros animais

selvagens, doenças estranhas, ou descobertas, cujo nome homenageia o município que

tornou epicentro das obras, compunham, um roteiro de cinema, durante a construção e

consolidação da Transamazônica. O cotidiano nunca mais seria o mesmo para ribeirinhos,

indígenas e outros sujeitos da região que viam suas vidas serem bruscamente alteradas pelo

evento que muitos deles agora comemoravam, mas que ainda teriam muitos anos para

avaliar com mais calma se lhes fora realmente vantajoso: a derrubada de uma castanheira-

do-pará, por Emílio Médici, em 10 de outubro de 1970 (MANCHETE, 15 de abril de

1972).

Começava o “milagre de Emílio”, tempos de fantasia, tanto que virou enredo,

personagem e/ou pano-de-fundo para muitas obras literárias publicadas em diversos

Estados do país6. O projeto começava sob a marca da derrubada de uma gigantesca árvore

amazônica e de um general-presidente anunciando que guiaria o povo nordestino da seca

que atravessavam rumo à terra que possui fartura de água e comida, nos supostos “vazios”

da Amazônia, habitados, na verdade, por populações tradicionais.

O milagre seria fazer surgir cidades, com agências bancárias e de correio,

comércio, feiras, prefeituras e populações no meio da floresta. A trajetória da rodovia

começa com a divulgação do início da construção da rodovia, em 10 de outubro de 1970,

como o início da “arrancada para conquistar o gigantesco mundo verde”7. Em outros

momentos da História, mas sobretudo durante a construção da ferrovia Madeira-Mamoré

(HARDMAN, 2005) se tornara lendária a floresta amazônica, interpretada pelo noticiário

nacional, como uma personagem com vontade própria que se ergue para enfrentar os

invasores e expulsá-los.

6 Diversas obras literárias, com enredos de aventura, tendo como foco a Transamazônica, foram publicadas

não apenas na década de 1970, como em outras posteriores. Uma destas obras de Odete de Barros Mott

(1973), nacionalmente conhecida escritora infanto-juvenil, busca descrever o cotidiano da rodovia logo após

sua construção. 7 A frase “arrancada para a conquista deste gigantesco mundo verde”, está escrita na placa colocada em um

pedaço de tronco de castanheira-do-pará, a árvore simbolicamente derrubada por Médici, e que se tornou

monumento da construção da rodovia, na entrada de Altamira, conhecido pela população local como “pau do

presidente”. Ao anunciar a cerimônia de inauguração da estrada, a Folha de São Paulo, utilizou esta frase

como título da matéria. Consultar FOLHA DE SÃO PAULO, 10 DE OUTUBRO DE 1970.

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Ao nos depararmos com a leitura dos jornais de 1970, ano do início das obras até

1984 quando do final do Governo Militar, observamos que as preocupações com a temas

como a saúde afloravam nos debates nacionais. Em outros momentos da História em que

se intensificou a migração para a Amazônia, a memória presente nos relatos é do grande

saldo de mortos deixado pela floresta. A floresta aparece então como uma personagem,

provida de vontade própria que se manifesta para expulsar o imigrante, como podemos

perceber em O Estado de São Paulo:

Esse retardamento [das obras de construção da rodovia] poderá ter

repercussões mais graves em uma área extremamente delicada: a da

Saúde. Para construir-se a Transamazônica será preciso sanear o

ambiente e curar o homem para depois lançá-lo mata a dentro, na luta

ingente e pioneira de vencer a selva. Malária, febre amarela, tifo e

amebíase generalizada, eis apenas alguns dos elementos do ambiente

hostil que tudo fará para expulsar o invasor, devolvendo-o à civilização

das cidades iluminadas ou jogando-o na imensidão das caatingas

ressequidas.

Há condições para construir-se a grande rodovia e abrir novamente a

selva ao homem nordestino, mas será preciso adotarem-se já,

imediatamente, com urgência, medidas bem planejadas e imprescindíveis

para que não se repita a tragédia da Madeira-Mamoré deixando, agora,

um morto a cada 500 metros de estrada (TAMER, 26 de julho de 1970).8

Ao expressar tais preocupações, autoridades e articulistas, rememoravam em

quadros macabros a construção da Madeira-Mamoré e apontavam caminhos para que tal

não se repetisse na construção da Transamazônica. Assim, durante a economia da

borracha, na Fordlândia9 e ao longo da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, as

notícias aterrorizavam a população nacional sobre a floresta indomável e mortandade de

operários e migrantes, dizimados por doenças desconhecidas e animais selvagens. As

memórias de milhares de mortos em grandes projetos espontâneos e oficiais na Amazônia,

8 O jornalista Alberto Tamer durante o ano de 1970 fez uma série de viagens pelos lugares onde se construía

a Transamazônica, de onde enviou diversas reportagens com análises críticas sobre o assunto que depois

foram reunidas e publicadas sob a forma de livro. Sobre o tema, consultar TAMER, 1971. 9 Fordlândia, o sonho de Henri Ford de construir plantações de seringueiras, no Pará, para produzir borracha,

como afirma o historiador estadunidense Greg Gradin, era além de um projeto econômico, um desejo de

civilizar a Amazônia com valores do mundo industrializado, a partir da construção de uma cidade para

abrigar os trabalhadores. A cidade original, situada junto a um município paraense, com o mesmo nome da

planejada por Ford, se encontra abandonada na floresta, como um monumento a megalomania. Sobre o tema,

consultar GRADIN, 2010.

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dominavam o noticiário nacional no momento em que se anunciava o início da construção

da rodovia que também viria a se transformar em lendária.

Temiam os articulistas que os migrantes, que partiriam para a rodovia, segundo

discursos oficiais, para ocupar e integrar a Amazônia ao país, sofressem com doenças

conhecidas e até mesmo desconhecidas e espalhá-las ao restante do país. Tanto jornais

quanto projetos governamentais defendiam a necessidade de “sanear” o migrante para que

este não se tornasse um propagador de doenças e não se produzisse um foco irradiador de

doenças, como a Madeira-Mamoré. “Sanear” o migrante perpassava a aplicação de

vacinas, controle do número de doentes na entrada e na saída da região e higienização de

espaços públicos e privados para que, como discutem Cardoso & Muller, na

Transamazônica, não se “estabelece[sse] mórbido regime de trocas de doenças, contraindo

(os migrantes) alguma que não tinham (malária, febre negra de Lábrea) e transmitindo

outras estranhas ao ambiente (esquistossomose)” (CARDOSO & MULLER, 1978, p. 204).

Os temores expressos pela imprensa e articulistas, apesar de consideráveis, eram

superados pelo otimismo e empolgação de diversos setores, em um período de forte

propaganda oficial, marcado pelos anos de ouro e milagre brasileiro, como uma prova de

que o Brasil caminhava para se tornar uma potência mundial. Apesar dos temores de que a

floresta amazônica expulsasse com doenças e animais selvagens, os operários da

construção da rodovia e os colonos, a obra segundo a setores da imprensa, como a revista

Manchete, triunfava, avançando rapidamente:

Até agora foram escavados 35 milhões de metros cúbicos de terra, e

levantados quatro mil metros de pontes de madeira. O desmatamento se

estendeu por 100 milhões de metros quadrados. Algumas das árvores

abatidas atingiam até 50 metros de altura. O primeiro segmento da

Transamazônica, com seus 1254 quilômetros, uniu os rios Tocantins e

Tapajós e abriu definitivamente à civilização um imenso pedaço do

Brasil. (MANCHETE, 14 de outubro de 1972, p. 8)

A lendária floresta, finalmente, segundo a Manchete, seria vencida para que a

“civilização” conquistasse mais da metade do país. Esse era o discurso presente nas falas

de muitos políticos e veículos de comunicação que consideram a floresta um obstáculo ao

progresso e que, portanto, necessitava ser vencido para que o Brasil pudesse se

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desenvolver. Comemorava-se, assim, as escavações para abrir a rodovia, bem como as

gigantescas árvores derrubadas. A grandiosidade das árvores arrancadas exalta, para a

Manchete, o megaprojeto de engenharia e de colonização que a ditadura implementava no

interior da região.

Neide Gondim (2007), analisa como as obras literárias sobre a Amazônia, ao longo

de décadas, se centralizaram na criação de seres fantásticos, na indolência do homem

amazônico, apequenado pelo meio e no ambiente hostil que oprime seres humanos com

doenças e calor intenso fazendo aflorarem suas mais bestiais características e, por isso

mesmo, seria uma região quase despovoada, com grandes vazios demográficos. Sobre esta

temática, Serge Gruzinski (2008), afirma que o homem europeu e a antropologia europeia

clássica transformaram a Amazônia num “conservatório do pensamento selvagem”, um

lugar que deveria ser exótico e, na imaginação deles, sem carros e prédios.

A Amazônia habitava a imaginação dos brasileiros que, apesar de, geralmente,

demonstrarem desconhecimento concreto sobre a região, contavam uma série de histórias

advindas dela e propostas que enfatizavam a necessidade de ocupá-la efetivamente para

que seu imenso patrimônio, com muitas riquezas minerais não catalogadas, não fosse

perdido para estrangeiros.

Paralelamente, havia uma grande preocupação dos militares em ocupar a

Amazônia, como uma região estrategicamente importante, sobretudo depois da descoberta

de riquíssimas províncias minerais em seu subsolo, pois temia perder parte do território

para incursões de estrangeiros. Nesse sentido:

a rodovia Transamazônica tinha uma atração adicional. Era um desafio

que os engenheiros do Exército poderiam atacar com agrado.

Concentrando-se na estrada, Médici propôs-se uma tarefa formidável mas

não impossível, pois o traçado do grandioso empreendimento tinha

princípio e fim bem definidos. Podia ser visitado, fotografado e descrito.

Como a construção de Brasília e da rodovia Belém-Brasília durante o

governo de Juscelino, a abertura da Transamazônica tinha grande valor

simbólico. Cortar a floresta espessa e construir uma estrada pioneira,

seduzia muitos brasileiros, cuja visão romântica da Amazônia era bem

parecida com a dos norte-americanos e europeus ocidentais

(SKIDMORE, 1988, p.291).

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A Transamazônica simbolizava a grandiosidade do momento, uma estrada que

metaforizava a caminhada do país rumo a glória nacional. Em um clima de euforia, os

jornais começaram então a noticiar cotidianamente a partida e a chegada dos primeiros

migrantes, o começo do plantio, a implantação das igrejas católicas e evangélicas e o

nascimento das primeiras crianças transamazônicas.

Os nordestinos e sulistas poderiam, assim, comemorar a comida farta em suas

próprias terras e ver seus filhos nascerem e crescerem com uma nova identidade, forjada

especificamente no momento histórico por eles vivenciados. Nasciam portanto os

primeiros transamazônicos, uma supra identidade que durante o período de glória da

estrada se superpunha as identidades dos Estados de origem de seus pais e também onde

estivessem vivendo.

É muito comum, durante as caminhadas e viagens pelas cidades da

Transamazônica, ouvir dos moradores, em resposta a pergunta “de onde você é?”, “eu sou

filho de nordestino (ou de sulista), mas me considero mesmo transamazônico”. Ser

transamazônicos, se constitui em algo maior do que ser paraenses, amazonenses ou

maranhenses. Muitos moradores gostam de dizer que foram um dos primeiros a nascer,

depois da estrada.

A estrada se tornou, portanto um elemento de coesão identitária para pessoas que

nasceram em diferentes Estados da união, os quais, apesar de valorizarem bastante suas

práticas culturais, oriundas de seus lugares de origem, veem a Transamazônica como um

marco que os tornam, enquanto sujeitos, agentes de um momento importante da História

do Brasil.

Chegadas e partidas

Muitos migrantes, ao longo dos anos, prosperaram, conseguindo até mesmo

construir um patrimônio considerável. As histórias sobre as dificuldades por eles

enfrentadas é um modo de exaltar a coragem e o pioneirismo para lutar, vencer e se

estabelecer na região. Assim, houve muitos agricultores que conseguiram, a despeito das

dificuldades iniciais, se estabelecer na Transamazônica com bons resultados e até mesmo

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aumentando suas propriedades e perspectivas mas que, por situações inusitadas, foram

obrigados a abandonar e/ou vender suas propriedades e bens para ir embora da região.

Joaquim, o Transamazônico, conhecido em todo o país, porque seu filho recebeu

o nome de Transamazônico e foi considerada a primeira criança a nascer na estrada, o que

lhe rendeu entrevistas e fotos em diversos jornais e revistas, viveu os dois lados da

experiência de colonizar a Amazônia. Enfrentou dificuldades, se estabeleceu, prosperou,

mas depois, no cotidiano, teve de lutar com problemas que não previa e tomou a decisão de

regressar a seu lugar de origem, pois:

suas duas filhas conseguiram ser professoras do INCRA, ajudando a

família. Mas, em outubro de 72, Joaquim vendeu tudo que tinha e voltou

para São Tomé.10 A causa: suas duas filhas prostituíram-se em Altamira.

Hoje, no entanto, ele vai a coordenadoria do INCRA em Natal pedir para

voltar – o que o INCRA não permite (BUARQUE, 04 de fevereiro de

1973).

O INCRA possuía um direcionamento de não aceitar o retorno dos que haviam

abandonado suas propriedades ao longo da rodovia, criando um mecanismo de pressão.

Através deste mecanismo, o INCRA transformava o desafio da Transamazônica na única

chance dos colonos, fazendo com que muitos, ao ouvir notícias como de Joaquim

Transamazônico, refletissem bastante antes de decidir regressar para seus locais de origem.

No cotidiano da região são frequentes as histórias de pessoas que abandonaram o lugar

devido o envolvimento de seus filhos com práticas sexuais não aceitas por seus familiares,

como prostituição, alcoolismo ou narcóticos.

Caminhando na ponte sobre o rio Estreito, que divide os Estados do Maranhão e

Tocantins, interligando os municípios de Estreito e Aguiarnópolis, tive a companhia de um

senhor de cerca de 70 anos. Durante aproximadamente 20 minutos caminhando sobre a

ponte, ele narrou diversas de suas histórias na região, entre as quais a de um vizinho que

teria abandonado Estreito com “terras e tudo o mais”, porque seu filho “virou maconheiro”

10 Município do Estado do Rio Grande do Norte.

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e a filha “caiu na vida, dormindo com vários homens, acho que até recebendo dinheiro por

isso”.11

Estes dados mostram que as dificuldades dos colonos não se restringiam às

dificuldades de adaptação à floresta amazônica, mas também devido ao confronto com

realidades sociais não conhecidas por eles até então. As cidades estavam em grande

movimentação de pessoas que chegavam e partiam, trazendo não apenas violência urbana

como também novas perspectivas.

Apesar dos investimentos em educação, em assistência social, psicológica e da

saúde que foram implementados pelo INCRA, em parceria com Estados e municípios, não

se tomou medidas preventivas ante a possibilidade de surgirem problemas familiares, com

a entrada dos filhos e filhas dos colonos em um universo desconhecido. Os próprios

moradores antigos, enfrentavam os mesmos problemas, pois suas localidades nunca

haviam visto tal movimentação de pessoas e, com ela, o agravamento de alguns problemas

sociais e o surgimento de novos.

A prostituição passou a fazer parte do cotidiano da colonização, trazendo em seu

bojo violência física e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Multiplicavam-se os

bordeis ao longo da rodovia, bem como crescia o consumo de álcool e narcóticos, criando

um cenário novo, com problemas que nem os planejadores oficias e muito menos os

colonos e populações tradicionais pareciam preparados para enfrentar.

Joaquim, neste sentido, é emblemático, pois serviu de garoto-propaganda da

rodovia, como Transamazônico, o mesmo nome que dera no auge de sua felicidade com a

vida ao longo da rodovia, ao seu filho que nascera na estrada. Suas filhas estudaram e

foram contratadas pelo INCRA, como professoras, a plantação produzia bons resultados e

a vida melhorara desde que partira de seu lugar de origem. Lutaram contra a natureza até

então indômita, com o clima, aprenderam a viver e construir sua vida na região, mas

justamente no cotidiano, tiveram de lidar com elementos que não estavam preparados.

11 Anotação do diário de campo do autor, em 14 de fevereiro de 2010, entre os Estados do Maranhão e

Tocantins.

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Suas filhas teriam se envolvido em diversas relações sociais, vindo, segundo notícias

veiculadas nos jornais, a se tornar prostitutas, em um dos principais municípios da rodovia.

Ele permaneceu, apesar dos animais selvagens, das doenças e das dificuldades

iniciais para plantar, pois tudo era diferente. Muitos outros migrantes enfrentaram as

mesmas dificuldades e desistiram, venderam suas terras e regressaram. Outros como ele,

permaneceram, com orgulho por cada desafio vivenciado. Nos discursos oficiais, tudo

transcorria bem ao longo da Transamazônica e experiências como a de Joaquim serviam

como argumento contra os opositores, mas o mesmo Joaquim abandonou a rodovia, pois

não suportou a pressão de ter os valores em que acreditava, atingidos no interior de sua

família.

Joaquim, em sua própria vida, é emblemático pois sua imagem tanto simbolizou o

sucesso da colonização quanto o fracasso. Posteriormente quis regressar e as fontes então

silenciaram sobre a decisão tomada pelo INCRA que, de um modo geral não subsidiava o

regresso dos que abandonaram, com receio de assim incentivar a partida de muitos

migrantes. Tentando não permitir o retorno, o governo estabeleceria entre os migrantes o

temor de “perder” sua única oportunidade de participar de um momento histórico de

conquista da Amazônia.

A estrada consumida pela floresta

Com muita frequência, em congressos e aulas, não apenas em outras regiões do

país, como também em outras cidades da Amazônia, distantes da Transamazônica, surge a

pergunta, “O que sobrou da estrada depois que foi engolida pela floresta?”. As memórias

da rodovia a fizeram desaparecer no cenário nacional como se não mais existisse.

A notícia de que o Ministro dos Transportes, no governo de José Sarney, referida

neste artigo, pretendia asfaltar a Transamazônica, motivou o envio de cartas para veículos

de comunicação, artigos e manifestações contrários ao retorno de investimentos na estrada.

A resposta do ministro José Reinaldo Tavares, para se contrapor aos opositores “Só porque

foi obra de Andreazza?”, carrega uma forte elemento simbólico sobre as batalhas pelas

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memórias da rodovia. A associação da imagem da rodovia a um dos principais ministros

do general-presidente Médici, Mário Andreazza, por extensão a vincula a ditadura.

O asfaltamento da Transamazônica no governo de Sarney, devido às críticas não foi

levado adiante. A imagem da rodovia vinculada a da ditadura, poderiam também ter

ocasionado o receio em outros presidentes pós-ditadura. A ideia de que a rodovia foi

engolida pela floresta, para enfatizar o fracasso do empreendimento, se tornou mais forte

do que argumentos e depoimentos contrários, levando muitas pessoas a acreditar que a

Transamazônica não mais existe.

Em uma matéria sobre os erros e desvios praticados por parlamentares e pelo Poder

Executivo na distribuição do orçamento federal, a revista Veja criticou os investimentos

“criativos” praticados ao longo da História do Brasil, em obras que não trariam os

resultados divulgados. Ao listar grandes obras, como exemplo de empreendimentos que

consumiram elevadas quantias de dinheiro, sem retorno positivo para a população

brasileira, a revista afirma que:

O Executivo brasileiro tem responsabilidade única e exclusiva pela

Transamazônica, consumida pela floresta, a Ferrovia do Aço, obra

inacabada, e a usina nuclear de Angra do Reis, um vaga-lume de 16

bilhões de dólares. (REVISTA VEJA, 27 de outubro de 1993, p.51)

Ao se afirmar que a BR-230 foi consumida pela floresta, ignora-se milhares de

pessoas que vivem em Estreito, Marabá, Pacajá, Anapu, Altamira, Brasil Novo,

Medicilândia, Itaituba, Humaitá, Lábrea e tantos outros municípios situados ao longo da

estrada. Desaparecem suas práticas culturais, seus desejos e a economia da região, devido

ao anseio por fazer desaparecer, engolida pela floresta, uma das obras mais

propagandeadas da ditadura.

Muitos pioneiros da Transamazônica rememoram como um período áureo, os anos

1970 de construção da rodovia, as visitas de Médici e Andreazza e os recursos investidos,

como um modo de contrapor suas memórias as que assistem no noticiário nacional. As

memórias nacionais os transformam em invisíveis e vedam a possibilidade de maiores

investimentos, por parte dos governos federais, que podem se ver acusados de tentar

restaurar o gigantesco empreendimento da ditadura.

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A visão do jornalista Fernando Morais que viajara, juntamente com Ricardo

Gontijo e Alfredo Rizzutti, em 1970 e em 1974, como enviado especial do Jornal da

Tarde, por todo o trajeto onde se construiria a estrada para escrever uma série de

reportagens era diferente. Em 1974, Morais e Rizzutti regressaram à rodovia, para

conhecer como estava a obra e a vida dos colonos, depois da conclusão dos principais

trechos.

Sua visão não se manifestou positiva, pois considera que a estrada mudou a vida

das populações para pior, devido a problemas como sua trafegabilidade, ser viável,

somente durante os seis meses menos chuvosos do ano. Em meio a descrição da obra e

algumas críticas, em texto escrito em 1974, e republicado, como parte de um livro, em

2003, traz informações que se contrapõem a visão de que a floresta engoliu a estrada:

Nos cem quilômetros iniciais, a partir de Estreito, a Transamazônica é

exatamente igual a qualquer estrada de terceira classe do interior de São

Paulo. Naquele trecho, a misteriosa selva amazônica é apenas um rastro

acinzentado, quase invisível, no horizonte.

A pista é de terra vermelha, cercada por uma vegetação rasteira como as

capoeiras nordestinas e com um movimento de veículos muito intenso.

(MORAIS, 2003, p. 42 e 43)

Depois de tecer considerações sobre a estrada, traçando comparações com

paisagens do Nordeste e também com outras estradas de São Paulo, Fernando Morais

descreve as queimadas na região, responsáveis pelo tom acinzentado das glebas de

produtores rurais, cada vez mais distantes do verde da floresta:

Pouco depois do rio Araguaia vimos uma cena que se repetiria até

Altamira: as queimadas nos terrenos dos colonos, usadas para limpar a

área desmatada e iniciar a semeadura. Às vezes as queimadas davam um

aspecto lúgubre à paisagem: no meio da mata verde-escura, uma gleba

inteira cinzenta, feita de tocos de árvores queimadas, moitas de capim

ainda fumegando. E, no centro desse braseiro, a casa do colono, isolado

com sua mulher e seus filhos.

Meia hora depois, o meu companheiro de viagem, Alfredo Rizzutti, pediu

que eu parasse o carro na beira da estrada, que ele ia fotografar uma

dessas glebas queimadas. Isso se repetiu algumas vezes. (MORAIS,

2003, p. 44)

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Em meio às muitas críticas que Morais faz a estrada, rememorando a viagem de

1970 que resultou em reportagens, reunidas em um livro (MORAIS, GONTIJO &

RIZZUTTI, 1970), relata o intenso movimento de veículos e também às queimadas, para

abertura de glebas de agricultores. O cenário por ele descrito é diferente da

“Transamazônica, consumida pela floresta”, na matéria da Veja e na memória nacional.

Durante a pesquisa, tive a oportunidade de viajar por quase toda a estrada

construída pela ditadura, de Estreito-MA a Humaitá-AM,12

e o cenário visto, ao contrário

das memórias consolidadas no Brasil, é de uma estrada que progressivamente, engole a

floresta. Quarenta anos depois da viagem de Fernando Morais, as queimadas aumentaram.

Cresce o volume de áreas de floresta derrubadas para extração de madeira e abertura de

novas áreas para pastos e agricultura.

Às margens da rodovia se pode observar imensas áreas de vegetação secundária,

conhecidas como capoeira, até onde praticamente a visão alcança. Do mesmo modo ao se

viajar pela Transamazônica, observa-se grandes áreas de floresta transformadas em pasto.

O asfaltamento, apesar de todas as críticas que suscitou em diversos momentos avançou

silenciosamente em muitos trechos da rodovia e, com ele, o desmatamento e a chegada de

novos migrantes. A migração se consolidou na região como parte integrante de seu

cotidiano, de chegadas e partidas e também de enraizamento de famílias inteiras que

passaram a ter na Transamazônica, um recomeço para suas vidas.

Muitos, conforme, já problematizado neste texto, não aguentaram as muitas

dificuldades enfrentadas, sobretudo na década de 1970, quando da construção da rodovia e

partiram, para nunca mais regressar, outros retornaram e se estabeleceram. Muitos

pioneiros que lá permaneceram viram suas famílias cresceram com uma nova identidade: a

de pioneiros da Transamazônica.

A estrada de Mário Andreazza e Médici, um dos maiores empreendimentos da

ditadura, que pretendia integrar dois oceanos, a maior floresta tropical do mundo e

possibilitar uma nova vida para migrantes nordestinos e sulistas, se constituiu em pesadelo

para muitas populações amazônicas tradicionais, como povos indígenas e ribeirinhos.

12 Faltou apenas chegar a cidade seguinte, depois de Humaitá, Lábrea-AM, a última da BR-230, devido às

dificuldades de transporte na época do ano em que lá estive, conhecida como inverno amazônico, o período

mais chuvoso do ano.

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Houve conflitos e crescentes temores entre os diferentes sujeitos envolvidos, alguns dos

quais lutam por reparações pelos danos sofridos com a construção da rodovia.

A rodovia que motivou debates nacionais, foi epicentro de propagandas oficiais e

de anseio pela conquista da Amazônia.13

Uma conquista que pretendia vencer a floresta e,

a despeito de muitos acreditarem que a floresta venceu, para o bem e para o mal, uma

viagem em pesquisa de campo, mostra o oposto. A lendária região amazônica, que teria,

vencido ferrovias e outros empreendimentos, se vê cada vez mais ferida pela estrada da

ditadura, e pelas milhares de pessoas que para ali foram conduzidas e que até hoje

reivindicam melhorias na rodovia, associada ao período mais duro da repressão no Brasil.

Fontes

Jornais e revistas

BUARQUE, Sérgio. “Trans-AM, 2 anos depois – 1: a epopeia mal saiu dos planos”. O

Estado de São Paulo. São Paulo, 04 de fevereiro de 1973.

FOLHA DE SÃO PAULO. Arrancada para conquistar o gigantesco mundo verde. São

Paulo, 10 de outubro de 1970.

REVISTA VEJA. “A reação de Funaro”. São Paulo, Abril, Edição 922, 07 de maio de

1986, p. 20-22 Acervo digital da Revista Veja. Disponível em

http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acessado em 20.03.2010.

REVISTA VEJA. “O menor guichê”. São Paulo, Abril, Edição 1311, 27 de outubro de

1993, p. 50-51 Acervo digital da Revista Veja. Disponível em

http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acessado em 15.04.2010.

REVISTA MANCHETE. “Transamazônica – estrada que liga o Atlântico ao Pacífico”.

Rio de Janeiro, Ano 20, No. 1043, 15 de abril de 1972, p. 63-77.

REVISTA MANCHETE. “Sinal verde para a Transamazônica”. Rio de Janeiro, Ano 20,

No. 1069, 14 de outubro de 1972, p. 04-17.

TAMER, Alberto. “Primeiro será preciso sobreviver”. O Estado de São Paulo. São Paulo,

26 de julho de 1970.

13 Sobre as propagandas da ditadura, consultar FICO, 1997.

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Obras literárias e de jornalistas

MOTT, Odette de Barros. A Transa-amazônica. São Paulo: Brasiliense, 1973.

MORAIS, Fernando; GONTIJO, Ricardo & CAMPOS, Roberto de Oliveira.

Transamazônica. São Paulo: Brasiliense, 1970.

TAMER, Alberto. Transamazônica – solução para 2001. Rio de Janeiro: APEC, 1971

MORAIS, Fernando. “O sonho da Transamazônica acabou”. In: Cem quilos de ouro [e

outras histórias de um repórter]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 37-80.

Referências bibliográficas

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capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1978.

FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no

Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

FICO, Carlos. Como eles agiam - os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e

política. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GONDIM, Neide. A invenção de Amazônia. Manaus: Valer, 2007.

GRADIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henri Ford na

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GRUZINSKI, Serge. “Amazônias” In: O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das

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HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a

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REIS, Daniel. Ditadura militares, esquerdas e sociedade. Rio de janeiro: Jorge Zahar,

2005.

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e

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