disserta_questionamento_sobre_a_atuação_do_regente
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QUESTIONAMENTOS SOBRE A ATUAO DO REGENTE:O ENSINO DA PERFORMANCE.
Silvio Csar Lemos ViegasOrientador: Oiliam Jos Lanna
Dissertao de MestradoLinha de Pesquisa: Estudo das Prticas Musicais
Programa de Ps-Graduao em Msica Escola de Msica da UFMG Belo Horizonte / MG
Junho de 2009
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RESUMO
Esta dissertao busca pesquisar o ensino na formao acadmica de jovens
estudantes de regncia, visando a sua performance, a busca pela verdade
interpretativa, suas liberdades de escolha e individualismo, suas limitaes, sua
relao com a Orquestra, e as condies, dificuldades e liberdades que se pode
ter em uma execuo.
Para tanto, foi usada uma bibliografia baseada, fundamentalmente, em
depoimentos de renomados msicos e entrevistas realizadas com trs
reconhecidos regentes brasileiros da atualidade.
As informaes coletadas visam encontrar respostas s inmeras variveis que
se apresentam diante do regente enquanto intrprete. Ao verificar como a
atividade encarada por eles em diversas situaes profissionais, e, ao coletar
estas informaes, o objetivo deste trabalho avanar nesta discusso to
ampla que a interpretao por parte de um regente junto a um organismo
musical vivo e pensante.
ABSTRACT
It is the objective of this dissertation to study the teaching in the academic
training of young learners of conducting, aiming at their performance, the
search for a true performance, their freedom of choice and individualism, their
limitations, their rapport with the orchestra and the conditions, hindrances, and
liberties that they might have in the practice of their work.
In order to reach that objective, we have made use of a bibliography based
especially on the testimony of renowned musicians, as well as on interviews
conducted with three noted contemporary Brazilian conductors.
The data collected aim at finding the answer to the numerous variables which
are presented to the conductor as an interpreter, to the way the activity is seen
by them in the various professional situations, and, after amassing such
information, it is our goal to offer a step forward in the broad discussion which is
the interpretation of a conductor before a living and thinking musical organism.
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Daniela Silva Viegas, esposa, amiga, companheira e razo de viver;
Aos meus Pais, Fernando e Nilda, e Irmos, Fernando, Flvio e Cristiano, pelos
exemplos e por todo amor e carinho;
Ao mestre Doutor Oiliam Lanna, personificao da dignidade profissional e da
integridade moral.
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Agradecimentos ao professor Maurcio Freire, e aos professores e colegas de profisso Lincoln
Andrade, Andr Cardoso e Oiliam Lanna pelos ensinamentos e ajuda.
Aos maestros Roberto Minczuk, Osvaldo Colarusso e Mateus Arajo pela pacincia nas longas
entrevistas e demonstrao de amor profisso.
Ao Fernando Viegas e Cirlei de Hollanda, pela incansvel ajuda nas revises.
Carla Camurati, presidente do TMRJ, pelo apoio incondicional.
Aos amigos e colegas da Escola de Msica, do DTGM e em especial a Uila Soares por seu
constante incentivo.
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Sumrio
1. Introduo....................................................................................................2
1.1 Plano Geral da Dissertao... 2
1.2 O Exerccio e o Incio de um Questionamento 3
1.3 O Regente como intrprete na Histria... 9
1.4 A Arte de Reger... 15
1.5 O Objetivismo e o Subjetivismo na Regncia... 25
1.6 A Busca pela Verdade: Integrao do Ouvinte na Interpretao Musical... 28
1.7 O Ambiente de Trabalho... 34
1.8 Argumentao... 37
2. A Transmisso...........................................................................................40
2.1 Regncia: Princpios e Ensino... 40
2.2 Concepo Interpretativa... 50
2.3 Desafios atuais e o acesso quase Ilimitado Informao... 61
2.4 Maturao e Confronto de Idias... 70
2.5 Busca pela Verdade na Interpretao... 78
3. Concluso...................................................................................................84
4. Bibliografia.................................................................................................95
5. Transcrio das Entrevistas......................................................................98
5.1 Entrevista com maestro Osvaldo Colarusso... 98
5.2 Entrevista com maestro Mateus Arajo... 108
5.3 Entrevista com maestro Roberto Minczuk... 119
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1. INTRODUO
1.1 PLANO GERAL DA DISSERTAO
Neste captulo introdutrio tratarei da postura do maestro enquanto intrprete, de
sua relao com a Orquestra, sua posio no cenrio musical atual, suas metas,
e relao com o pblico. Posteriormente nos captulos seguintes, por intermdio
de entrevistas e discusses com os regentes Mateus Arajo, Osvaldo Colarusso
e Roberto Minczuk, pretendo:
1. Buscar respostas s inmeras variveis que se apresentam diante do
regente intrprete;
2. Verificar como a atividade do regente encarada por eles em diversas
situaes profissionais, e, ao coletar estas informaes;
3. Avanar um pouco nesta discusso to ampla que a interpretao por
parte de um regente junto a um organismo musical vivo e pensante.
4. Pretendo averiguar como os grandes intrpretes tambm lidam com a
questo da transmisso, do magistrio da regncia.
A questo interpretativa sempre foi vista como algo pessoal e s vezes
intransfervel, mas ser que isto verdade? Tendo em vista os questionamentos
expostos o assunto ser tratado por meio de reflexes de regentes profissionais
de como se busca a verdade interpretativa e a repassa aos seus msicos, alm
de uma bibliografia especfica. Meu objetivo que tais textos e entrevistas
ajudem no esclarecimento dos procedimentos necessrios a obteno destes
objetivos, assim como maneira de transmiti-los no exerccio do magistrio.
Importante mencionar que esta dissertao ter como foco principal a
performance por parte do regente de Orquestra, ficando com certeza muito a ser
discutido e acrescentado sobre a regncia Coral que, como sabemos, possui
caractersticas prprias e especificidades inerentes a sua atividade.
A contribuio que pretendo dar de aprofundar um olhar nesta questo que
ainda pouco discutida, at mesmo por sua subjetividade, mas que acredito ser
de fundamental importncia para formao de futuros regentes.
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1.2 O EXERCCIO E O INCIO DE UM QUESTIONAMENTO
A questo da avaliao da execuo por parte de um regente, a busca da
conscincia interpretativa, sempre foi um foco de meu interesse. Lembro-me
ainda nos primeiros anos como professor da Escola de Msica da UFMG, ao
ministrar uma matria optativa intitulada Repertrio Operstico dos Sculos XVIII
e XIX, voltada para estudantes de regncia e canto, onde analisvamos trechos
de peras, executvamos e posteriormente ouvamos vrias gravaes, que
uma de minhas alunas ao final do semestre me disse: Professor, antes eu
escolhia uma gravao de pera pelos cantores e hoje eu escolho pelo maestro.
Isto pode parecer simples, mas tem um profundo significado. Optar por uma
gravao, por exemplo, de La Bohme com regncia de Sir Colin Davis ao invs
de uma com Luciano Pavarotti, significa optar por um pensamento e no por
uma voz. E quando se trata de pera o peso de tal escolha muito maior que de
uma obra sinfnica, posto que pera voz.
Tal posicionamento a valorizao do pensar, e o que eu via era que meus
alunos, tanto de regncia quanto de canto, estavam sendo conduzidos pelo
fazer. Obviamente que em qualquer rea da msica o fazer muito difcil. Para
voc dominar tecnicamente um instrumento so anos de estudo e dedicao,
mas por vezes eu via que alguns alunos eram conduzidos somente neste
sentido, no sendo alertados para a importncia do pensar. importante
ressaltar que nesta matria, apesar de obviamente ter minhas predilees,
sempre tentei no direcionar meus alunos para escolha de uma interpretao
que acreditasse ser a melhor, no porque no tivesse convico de minhas
escolhas, mas porque acreditava que cada um deles tinha algo a dizer. Tentar
extrair a msica que estava dentro deles era, em minha opinio, mais
significativo que impor uma linha a ser seguida. Comeava a minha busca pela
verdade na msica. Mas como extrair a verdade de cada um? Como trabalhar
um estudante de msica, que ainda no tem suas bases totalmente formadas,
para buscar dentro de si suas convices e verdades? Como melhor orient-los
para encontrar e seguir seu prprio caminho?
Vrios colegas com os quais discuti este assunto afirmaram que o professor tem
que orientar o seu estudante no sentido de, como mais experiente e embasado,
mostrar ao aluno a forma correta de como se deve reger uma determinada obra
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ou compositor. Sem dvida um grande intrprete poder passar aos seus alunos
a forma correta, segundo ele, de como interpretar uma determinada sinfonia ou
concerto; mas e depois? E as outras milhares de obras que no sero vistas no
decorrer do curso, como o ex-aluno, no incio de sua carreira, saber se est
fazendo certo ou errado? Mais como determinar algo de forma to rgida se
eu mesmo no concordava com algumas interpretaes destes meus colegas
regentes?
Quando um professor de regncia diz a seu aluno: Esta msica se toca desta
maneira, poder at ensinar a executar tal pea, mas no o ensinar a fazer
com que desta pea ele possa partir para a compreenso de outras. Ficava claro
para mim que, caso fosse eu o aluno de regncia de professores com esta
postura, teria problemas em aceitar suas orientaes, e, portanto, como poderia
eu, como professor, exigir algo de meus alunos com o qual eu no concordaria
que fizessem comigo? bem verdade que existe uma grande heterogeneidade
entre os alunos. Alguns chegam bem instrudos universidade, enquanto outros
quase no possuem uma formao bsica bem feita, e seria este um primeiro
desafio. Mas no funo de um professor tirar o melhor de seus alunos, assim
como a do regente tirar o melhor de seus msicos?
Um exerccio, aps inmeros outros sugeridos e trabalhados anos antes,
mostrou-me muito daquilo que um aluno de regncia deseja, mas que ainda no
possui, ou seja, o domnio do pensamento musical como intrprete recriador de
uma obra sob o ponto de vista pessoal. O exerccio era simples, e sua primeira
fase durou apenas duas aulas, mas poderia ter durado um semestre. Consistia
no seguinte: coloquei frente de todos uma obra muito conhecida: a
popularmente chamada ria da Quarta Corda de J. S. Bach. Na parte entregue a
cada um dos alunos, assim como no original, no havia nenhuma indicao de
dinmica, andamento, ligaduras, fraseado etc. Pedi a cada um deles que
escrevesse na partitura todas as indicaes que eles gostariam de passar
orquestra quando fossem execut-la, como um roteiro de ensaio. Dei a cada um
deles uma hora para me entregar a partitura pronta, no entanto a maioria no
precisou nem de quinze minutos, e, cabe observar, todos entregaram as
partituras com pouqussimas anotaes, alguns com somente duas ou trs.
Concluda esta primeira fase, e antes de qualquer comentrio a respeito do que
haviam feito, coloquei vrias gravaes da obra em questo em torno de cinco
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ou seis e, aps ouvi-las, escolhi uma para nos atermos com mais detalhe. Foi
feito ento um exerccio de percepo: entreguei a eles uma nova partitura da
pea e pedi que anotassem tudo que ouviam e que no estava escrito na
partitura. Outra surpresa. Alguns no escreveram quase nada, simplesmente
porque no foram capazes de perceber muita coisa, pois que no estavam
alertas para este tipo de prtica a respeito das questes de percepo
diretamente ligadas regncia. O maestro Ricardo Rocha, em seu livro sobre
regncia, chega a afirmar que:
O treino de solfejo e o ditado acadmico pouca relao tm
com o cotidiano da percepo necessria frente a um coro ou uma
orquestra. (...) O nvel de percepo de um regente estar sempre
em funo do seu conhecimento sobre a obra que est dirigindo,
pois que sua audio seletiva e quanto mais a conhecer, mais
dela estar apto a ouvir. (ROCHA, 2004, pgs. 21 e 22)
Antes de prosseguir, gostaria de fazer somente dois comentrios a respeito
deste assunto: - Apesar de concordar de que se tratam de trabalhos diversos de
percepo, acredito que o estudo acadmico da percepo fundamental
como base preparatria para qualquer msico, seja ele um regente ou no, e
que o nvel de percepo estar sim ligado ao conhecimento da obra, mas
tambm ao seu grau de desenvolvimento na matria.
Tenho convico de que, no caso de dois regentes com o mesmo grau de
conhecimento sobre uma obra, o que tiver melhor treinamento de percepo ter
um desempenho significativamente superior ao outro.
Este tipo de prtica de percepo muito nos auxiliar na deteco de possveis
erros ou enganos tanto por parte dos msicos quanto em relao s edies
usadas.
Retornando ao exerccio, felizmente, quando mais tarde coloquei o trabalho de
percepo de forma coletiva e no mais individual, todos foram capazes de
perceber as nuances da gravao que estava sendo ouvida. Aps cerca de uma
hora, ouvindo somente os primeiros seis compassos, as anotaes individuais
feitas pelos alunos, tendo como base a gravao utilizada, eram em maior
nmero que a soma das anotaes de todos eles juntos na fase anterior do
exerccio.
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Isto significou muito para eles e para mim tambm. Para eles, pois perceberam,
aps analisar aquela gravao, que a funo bsica do maestro o de pensar a
msica, ter o entendimento sobre como ela dever ser executada, estabelecer
mentalmente uma forma e uma imagem sonora com o maior nmero de detalhes
possvel para, quando estiverem frente de uma orquestra, poderem confrontar
sua prpria idia interpretativa com o produto musical produzido por ela.
Despertou tambm em cada um a importncia do desenvolvimento de sua
percepo musical, para que se sentissem em condies de trabalhar com a
msica e, desta forma, pudessem chegar a um resultado satisfatrio. Para mim,
por confirmar que o ensino da conscincia musical importante para qualquer
aluno de msica e fundamental para um msico que deseje se tornar um
regente. E ainda por descobrir que algo que deveria ser to bvio era visto por
meus alunos como uma extraordinria novidade. Percebi que, assim como
outros alunos de instrumento ou canto, a simples busca do domnio tcnico em
seu instrumento j consistia em um trabalho suficientemente grande, e que o
pensar musical inmeras vezes no era sequer considerado.
No entanto, em minha opinio, isto no significa que eles no tivessem preparo.
Simplesmente eles no haviam sido alertados para tal postura, e este era o meu
desafio: conduzir meus alunos a se tornarem msicos pensantes e, desta forma,
fazer com que cada um pudesse chegar a um resultado satisfatrio ou, pelo
menos, sua verdade.
O exerccio, todavia, no terminava ali. Em seguida ao trabalho na partitura,
escolhi dentre meus alunos um que fosse frente da orquestra para transformar
em som todo o trabalho realizado. Ressalto que durante o processo de ensaio
procurei no me envolver, exatamente para que ele tivesse a real situao da
preparao de uma obra com orquestra por parte de um maestro, principalmente
porque todo o trabalho de interpretao j havia sido anteriormente discutido. O
resultado, porm, tanto durante os ensaios quanto na apresentao final, foi
muito abaixo de minha expectativa, e me vi ento com mais uma questo: por
que no ocorreu como havia previsto?
Observo que levei em considerao em meu julgamento a qualidade tcnica do
grupo, j que se tratava de uma orquestra composta por alunos. Minha avaliao
estava diretamente ligada atuao de meu aluno e como ela havia contribudo
para o resultado final. Claro que sabia que questes como a relao humana, o
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convvio do maestro com os msicos, sua capacidade de liderana e
harmonizao de idias eram questes fundamentais para se chegar a um
resultado satisfatrio. Uma pessoa que deseje se tornar um regente necessita ter
caractersticas bsicas como coragem, desprendimento, carisma etc. Ao
contrrio de outros msicos, ele no pode se esconder atrs de um instrumento.
O regente, seja ele de coro ou orquestra, se encontra despido de qualquer
artifcio frente a seus executantes, e uma boa atuao depende de sua postura
pessoal, sua forma de falar, energia, eloquncia e capacidade de liderana.
Voltando questo anterior, apesar do resultado ter ficado abaixo das minhas
expectativas, notava que vrias pessoas, entre pblico e msicos, estavam
muito satisfeitos e emocionados com a execuo. Percebi ento que a avaliao
de uma execuo, a busca por uma verdade, no era tudo. Havia tambm a
percepo desta verdade. O trabalho do intrprete comeava na escolha de
uma obra, passava por suas opes de interpretao e atuaes para atingir
seus objetivos e terminava no ouvinte.
Sei que algo de muito positivo ficou para meus alunos: todos haviam tomado
conscincia de que eram, antes de qualquer outra coisa, intrpretes e que
tinham sempre de buscar a sua verdade. Mas como alcanar tal verdade e,
principalmente, o que esta verdade? Quais so as variveis que nos
permitem ou impedem de chegar a esta verdade? Qual a relao entre
compositor, intrprete e ouvinte? Como, sobretudo, podemos perceber e passar
estas questes aos nossos alunos meu principal questionamento e objetivo de
pesquisa.
Espero que as palavras do maestro Solti no sejam verdadeiras, quando se
refere a uma experincia pessoal que teve no incio da dcada de 80:
Cerca de 20 anos atrs, eu realizei um concurso em
Chicago para jovens regentes. (...) De mais de cem candidatos,
somente quinze foram para as finais. E ficou provado de forma
clara para mim que regncia no pode ser ensinada ou
aprendida, ou voc sabe liderar ou no sabe. Um regente tem de
ser hbil para antecipar o som e dar o tempo uma frao de
segundo antes da orquestra. Somando-se a isto, voc precisa ter
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imaginao e talento para comunicar o que tem na alma e na
mente. (SOLTI, 1997, pag. 207)1
No h dvidas de que o aluno de regncia precisa ter dentro si caractersticas
de liderana, mas, assim como vejo que ainda hoje o ensino musical muitas
vezes passado de professor para aluno sem o trabalho da conscincia musical,
tenho f que, enquanto educadores, podemos trabalhar no sentido de que cada
aluno possa melhor desenvolver todo seu potencial como intrprete.
1.3 O REGENTE COMO INTRPRETE NA HISTRIA 1 About twenty years ago, I held a competition in Chicago for Young conductors. () Out of the hundred, only fifteen went on to the final rounds. This was the clearest proof for me that conducting cannot really be taught or learned; you either can lead or you cannot. A conductor has to be able to anticipate the sound and give the beat a split second ahead of the orchestra. In addition, you have to have imagination and the talent to communicate what you have in your soul and mind (Traduo do Autor).
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importante dizer que o regente existe desde que duas pessoas ou mais
decidiram fazer msica em conjunto. Mesmo em um quarteto de cordas ou um
duo de piano existe a necessidade de um lder, um coordenador. Claro que,
quanto menor o grupo, maiores so as possibilidades de discusso e busca de
uma interpretao com a conciliao de idias entre todos. medida que este
grupo vai se ampliando, maior a necessidade de uma cabea pensante para
liderar o trabalho e unificar as idias. Foi o que aconteceu nos perodos da
renascena e barroco, onde o regente, ou lder musical, inicialmente fazia parte
do corpo executante, seja como instrumentista, seja como compositor
executante. Palestrina, Bach e Haendel dirigiam suas obras religiosas, assim
como, posteriormente, Haydn e Mozart, suas sinfonias e concertos. O
surgimento do regente, como figura externa ao corpo executante, quase sempre
de casaca e batuta na mo, surge gradualmente entre os sculos XVIII e XIX,
muito em funo de grandes mudanas orquestrais ocorridas naqueles perodos,
principalmente por Beethoven.
Para se ter somente uma idia do crescimento do orgnico orquestral a
Orquestra de Leipzig (1730), na poca de Bach, possua 2 flautas, 2 obos, 1
fagote, 2 trompetes e 11 cordas, em um total de 18 msicos; a Orquestra de
Londres (1791), na poca de Haydn, j possua 2 flautas, 2 obos, 2 fagotes, 2
trompas, 2 trompetes, tmpanos e 27 cordas, em um total de 37 msicos; e
menos de cem anos depois a orquestra wagneriana de Bayreuth (1876) era
composta por 4 flautas, 4 obos, 4 clarinetas, 4 fagotes, 4 trompas, 4 trompetes,
5 trombones, 1 tuba, 4 tubas wagnerianas, 2 timpanistas, 2 percussionistas,
harpa e 64 cordas, em um total de nada menos que 106 msicos (CAND, 1994,
pg. 566). Ou seja, um crescimento de 88 msicos, ou de quase 500% em
menos de cento e cinquenta anos.
O universo orquestral criado por Beethoven acompanha a ampliao
dimensional da sinfonia, atravs da variedade das figuras rtmicas, dos
inusitados efeitos dinmicos, da superior expresso das idias poticas e
dramticas, das tenses extremas a que levada a sonoridade da orquestra,
que explora ao limite as possibilidades instrumentais. Com todos esses
elementos inovadores, Beethoven cria para o diretor uma nova misso, exigindo
dele uma notvel capacidade interpretativa em sua atuao junto Orquestra,
estabelecendo para ele o desafio de extrair todas as possibilidades de uma nova
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expresso: plena, variada e intensa. Assim, a matria sonora da orquestra passa
a exigir do regente cuidados extraordinariamente importantes, notadamente
quanto expresso de novos elementos tmbricos, rtmicos, meldicos e
harmnicos, pelo concurso de um novo efetivo instrumental aumentado nas
cordas, madeiras, metais e percusso.
Neste momento acontece algo de fundamental importncia para a evoluo da
arte de reger, que deixa de ter uma funo predominantemente rtmica, como
acontecia no perodo barroco, onde os condutores usavam grandes e pesados
bastes, ou como parte do grupo executante, no perodo clssico, assumindo
ento uma funo interpretativa. Surgem ento dois tipos de regentes: os
compositores regentes e os regentes intrpretes. Entre os compositores
regentes destacam-se nomes como Mendelssohn, Berlioz, Wagner, Tchaikovsky
e Mahler, entre outros. Estes grandes compositores, enquanto intrpretes,
apesar de muito frequentemente executarem sua prpria msica, dedicaram a
vida pesquisa, divulgao e valorizao de repertrio de outros compositores
de sua poca e pocas passadas.
Berlioz publica em 1865 a Lart du chef dorchestre onde aborda no somente
aspectos tcnicos relacionados s possibilidades de cada instrumento da
orquestra, a tcnica de gestual e uso da batuta, questes fundamentais para
qualquer regente, mas tambm discute temas fundamentalmente ligados
interpretao, como escolha de andamentos, estilo, expresso etc.
Mendelssohn, por sua vez, foi fundamental para a divulgao da msica. Alm
da sua famosa descoberta e execuo da Paixo Segundo So Mateus, de J. S.
Bach, tinha em seu repertrio obras de Haendel, Glck, Beethoven e Weber,
entre outros, tendo sido diretor musical da Orquestra de Dsseldorf e, mais
tarde, da Gewandhaus de Leipzig.
Outro grande compositor regente que tambm abordou o tema da regncia foi
Richard Wagner com sua A Arte de Dirigir. Neste ensaio, Wagner discorre sobre
os aspectos ligados importncia do regente enquanto intrprete e,
principalmente, sobre temas com os quais lidava diariamente em seu trabalho,
como a interpretao da obra de Beethoven, seu compositor favorito, a arte do
canto e seu equilbrio com a orquestra, a esttica de suas peras etc. Um dado
especialmente interessante na personalidade de Wagner era sua postura
enquanto intrprete. Ele talvez tenha sido o primeiro msico a levar realmente
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frente a postura da liberdade do maestro enquanto intrprete. Prova disto foi o
comentrio de Eduard Hanslick, a respeito de sua interpretao da sinfonia
Eroica de Beethoven:
Se os princpios de direo de Wagner fossem adotados
universalmente, suas mudanas de tempo abririam as portas para
uma arbitrariedade intolervel, e rapidamente teramos sinfonias
adaptadas livremente de Beethoven, em lugar de por
Beethoven. (SHONBERG, 1990, pg 103)
Wagner foi um importante representante da figura do compositor/regente, figura
esta que continuou existindo no incio do sculo XX e que, acreditamos,
continuar sempre a existir. Nomes famosos j atravessaram o sculo passado
compondo, regendo e gravando. Este ltimo fato era, at ento e infelizmente,
impraticvel. Essas gravaes se tornaram documentos histricos, referncias
para qualquer regente.
Sobre esta matria interessante reproduzir alguns comentrios. Karajan, por
exemplo, afirma que sempre buscava escutar a interpretao de um compositor
quando executava a msica dele; mas, tomando Stravinsky como exemplo, fazia
ressalvas: ...existe o problema de decidir at que ponto Stravinsky, na
qualidade de regente, teria conseguido perceber bem a prpria partitura.
(OSBORNE, 1992, pg. 174)
J o maestro Ricardo Rocha mais enftico ao afirmar que:
Minha experincia profissional e na vida, de forma geral,
mostrou-me que quase sempre o compositor encontra reais
dificuldades para interpretar a prpria obra e, mesmo quando o faz,
um intrprete profissional o realiza melhor.
Ainda para o autor:
Se o criador traz uma mensagem, o intrprete
vocacionado que a conseguir revelar, (...). Este processo
misterioso e rigorosamente espiritual. No entanto, se aceitarmos
que a interpretao vocacional e separada da criao,
verificamos tambm que, para que ela se realize, precisa de um
agente, o artista-intrprete, possuidor de uma personalidade
prpria, de um olhar pessoal sobre o mundo, sobre a vida e, claro,
sobre a obra que est realizando. (ROCHA, 2004, pags. 74 e 75)
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No h dvida de que existe uma grande diferena entre criar e executar, mas
no so poucos os exemplos de compositores renomados que foram e so
igualmente brilhantes intrpretes, ou intrpretes vocacionados. Dentre eles
podemos destacar: Igor Stravinsky, Leonard Bernstein, Pierre Boulez; alm dos
brasileiros: Heitor Villa-Lobos, Francisco Mignone, Cludio Santoro, Ernani
Aguiar, entre vrios outros, isto para no citar os compositores instrumentistas e
aqueles que no tivemos a sorte de poder ter um registro sonoro de seus
trabalhos.
Entre os regentes intrpretes, talvez o primeiro grande nome seja Hans von
Blow. Ele representa o regente moderno detentor de uma autoridade sobre a
obra como intrprete recriador. Foi um grande intrprete de Wagner, Liszt e
Brahms, e iniciou o trabalho do gestual do maestro como representao
dramtica da msica. At os 47 anos, ele se dedicou ao piano e regncia
itinerante. Somente em 1878 ele assume uma orquestra no Teatro de Hanover e,
aps alguns anos, escolhe como seu regente assistente um jovem msico
chamado Richard Strauss. Mas era uma poca diferente, onde von Blow podia
se dar ao luxo de ensaiar tanto que no era de todo estranha sua exigncia para
que os msicos tocassem de cor. Esta prtica, indubitavelmente, contribuiu
muito para a melhoria tcnica e perfeio de execuo de sua orquestra.
Este sculo marcado tambm pelo fato do aparecimento de um nmero maior
de maestros em toda a Europa, principalmente na Frana, Inglaterra e
Alemanha. Dentre os que merecem destaque esto o francs Charles
Lamoureux (1834-1899), o ingls Charles Hall (1819-1895), fundador da Halle
Orchestra, e o hngaro Arthur Nikisch (1855-1922), intrprete consagrado das
obras de compositores alemes, considerado por muitos, entre eles Bruno
Walter, como o maior regente do sculo XIX.
Atingiram maior reconhecimento aqueles que fizeram as primeiras audies de
obras importantes dos compositores do final do sculo XIX e incio do XX como
Strauss, Bruckner, Verdi e Stravinsky, entre outros. Em verdade, apesar de
executarem obras de compositores de perodos anteriores, os maestros desta
poca ainda possuem um repertrio bem mais contemporneo que os maestros
atuais. Isto algo interessante de observarmos. Bernstein inicia seu The Infinite
Variety of Music dizendo que no somente o momento que vivia, em meados do
sculo XX, era crtico, mas tambm assustador. Fica claro que o mundo ps-
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guerra cria um hiato abissal entre compositores e pblico. Podemos dizer que
aps Strauss, Puccini e o jovem Stravinsky, praticamente no h mais um forte
movimento em torno da estria de uma grande obra. A partir da segunda metade
do sculo XX passamos a viver um mundo de redescobertas. Entregamos nosso
tempo e esforo para trazer tona sinfonias de Haydn ou obras de Bach, at
ento nunca ouvidas. Causa interesse ouvir as diferenas de interpretao de
uma mesma sinfonia de Beethoven entre um e outro importante maestro. Mais
tarde, a busca pela sonoridade correta com instrumentos de poca assim como
pesquisas sobre ornamentos, cadncias, tcnicas instrumentais para se saber
como executar uma determinada obra, so muito mais valorizadas que o estudo
das obras de nossos compositores contemporneos. No devemos tambm nos
esquecer que vivemos, nesta poca, o auge da indstria fonogrfica, onde as
grandes obras se tornaram hits populares nas mos e vozes dos mais
importantes intrpretes, com um enorme pblico sedento por estas gravaes.
Torna-se, portanto, muito mais excitante para o pblico, e rentvel para os
artistas e a indstria fonogrfica, o lanamento da mais nova interpretao das
nove sinfonias de Beethoven pelo maestro tal, que ouvir pela primeira vez uma
obra de um compositor do qual quase ningum ouviu falar. Bernstein diz:
Isto significa que durante cinquenta anos o pblico no
antecipou com deleite a premire de uma simples sinfonia ou
pera. Caso parea uma afirmao muito forte, ento que me
contradigam. Lembro-me de brilhantes excees: Porgy and Bess
(pode um cancionista fazer uma pera?); Stima Sinfonia de
Schostakovich (entusiasmo de um tempo de guerra, inflado na
histeria pela competio de transmisses em rede); Mahagonny
(um fenmeno local semi-poltico)... (BERNSTEIN, 1970, pg. 10)2
O sucesso das obras s quais Bernstein se refere tem sempre um embasamento
no musical que o justifica. Atualmente vivemos um momento onde a msica
parece ter a necessidade de ser dissecada. Quando Bach fazia seus
contrapontos por movimentos retrgrados ou em forma de espelho, antes da
explicao vinha a Msica. Descobrir sua forma de composio que a tornava 2 What this means is that for fifty years the public has not anticipated with delight the premiere of a single symphonic or operatic work. If this seems too strong a statement, then fight back, remind me of the glaring exceptions: Porgy and Bess (can show tunes make an opera?); Shostakovichs Seventh Symphony (a wartime enthusiasm inflated to hysteria by the competition of broadcasting network); Mahagonny (a local quasi-political phenomenon) (T. do A.)
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ainda mais interessante. No sculo XX, as mesmas formas composicionais
usadas por Bach continuaram a ser empregadas, mas mostrar o raciocnio da
composio acabou, muitas vezes, tornando-se mais importante que a prpria
msica. Isto porque nunca a linguagem musical da msica chamada erudita
esteve to afastada daquela cotidiana do pblico, no somente da grande
massa, mas tambm de boa parte da chamada elite cultural. No se trata aqui
de afirmar que a msica do perodo ps-guerra era ruim; muito pelo contrrio,
tivemos e temos ainda compositores competentes e talentosos com obras que
merecem lugar de destaque na histria cultural da msica. Entendemos que aos
regentes caiba, hoje, a honrosa obrigao de incentivar, executar e divulgar
compositores do sculo XX e os atuais. Dar a oportunidade ao pblico de
vivenciar a msica de seu tempo e, assim como aconteceu com todos os
compositores de perodos anteriores, deixar que o tempo faa seu julgamento.
Temos hoje muitas iniciativas para que este quadro se reverta. H poucos anos
atrs foi estreada no Theatro Municipal de So Paulo a pera Olga, de Jorge
Antunes. O Metropolitan Opera House de Nova York tem dado especial ateno
s peras do sculo XX, o mesmo acontecendo no Palcio das Artes de Minas
Gerais. J a Opra de Lyon, na Frana, iniciou a prtica de encomenda de uma
pera por ano a compositores de diversas nacionalidades. Isto sem falar nas
Orquestras de Cmara e Sinfnicas que tm ampliado em muito seu repertrio
com obras da metade do sculo XX at hoje. Acreditamos que, como regentes
do sculo XXI, a divulgao do repertrio moderno e atual seja uma de nossas
maiores responsabilidades.
1.4 A ARTE DE REGER
-
Mas o que esta arte de reger, alm das exigncias de coordenao e controle
deste efetivo, que por si s j so matrias suficientes para qualquer tratado de
regncia?
Richard Strauss assim define esta arte tendo como referncia a orquestra.
A orquestra uma horda maligna que deambula em um
crnico mezzoforte, quando no pode obter um pianssimo, nem a
preciso nos acordes dos recitativos, ou quando no dirigida por
um diretor apropriado. (LAGO, 2008, Pag. 89)
Aqui o compositor destaca a figura do maestro, no somente tendo-se em conta
um critrio artstico, mas tambm disciplinar. Um grupo orquestral composto
por muitas cabeas pensantes, com referncias muito heterogneas. Se um
forte para um violinista nunca ser igual ao forte de outro violinista, que se
poder dizer deste mesmo forte de um violinista em relao a um trombonista ou
a um percussionista? Harmonizar estas idias uma das funes de quem est
frente de qualquer grupo, ou seja, do regente. Mesmo se no levarmos em
conta o lado artstico, um regente sempre ser, perante seu grupo, um lder, um
disciplinador, o profissional que organizar o pensamento de muitos em torno de
uma s idia. No entanto o que reger, como definimos esta arte?
Segundo o Dicionrio Grove, Reger a arte de dirigir a execuo simultnea de
vrios msicos ou cantores, pelo uso do gesto. Tal definio mostra claramente
uma preocupao bsica sobre a parte tcnica, mas onde fica a interpretao
nesta arte?
De acordo com o compositor alemo Carl Maria von Weber,
As verdadeiras indicaes da msica s existem na alma do
homem que sente: quando l no esto, de nada adianta o
metrnomo... por isso, considero suprfluas e inteis as indicaes
grficas, e receio que elas possam gerar muitos mal-entendidos.
(LAGO, 2008, Pag. 45)
O grande maestro austraco Herbert von Karajan concordava com esta
afirmao pois dizia que o metrnomo no era importante, o importante era
saber quanto tempo se passa no total de uma certa frase. (OSBORNE, 1992,
pag. 145)
Sylvio Lago, em sua A Arte da Regncia, define o regente como um ... artista-
intrprete, na qualidade de titular da recriao da obra musical e afirma que a
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interpretao da obra musical sua principal funo, ao indicar aos msicos
como executar e expressar o pensamento do compositor. (LAGO, 2008, Pag. 21)
A professora Marlia Laboissire define de forma bastante objetiva o que a
interpretao:
Interpretar uma obra dar sentido leitura, construindo um
fluxo sonoro intermediado pelo silncio significante que, marcado
por particularidades, d um sentido pessoal aos indicativos formais
da obra. (LABOISSIRE, 2007, pag. 124)
O interessante desta afirmao que, alm de dizer o que seria o bvio, ou seja,
transformar em som a leitura de uma pea, Laboissire faz justa referncia s
particularidades que daro sentido obra como parte integrante de qualquer
interpretao. Segundo ela, no existe interpretao sem pessoalidade.
Precisamos, desta forma, dar grande ateno a esta nossa pessoalidade.
Continua Laboissire: Interpretar uma construo em nossa conscincia, de
uma obra que se apresenta aberta leitura, um fluxo sonoro sem referncias
exteriores, sem sentimento preconcebido. (LABOISSIRE, 2007, pag. 78) De
acordo com a autora, portanto, trabalha-se com uma subjetividade, uma relao
pessoal que contextualizar o todo nossa frente. A sensibilidade funciona
como fora criativa, posto que dela nascer a chamada pessoalidade, e ao
mesmo tempo inibidora, para que tenhamos sempre a conscincia de nossos
limites, sejam eles tcnicos, estilsticos, ou pessoais. Tal fora estar sempre
aberta para novas idias. Trabalhamos, portanto, com nossa criatividade, com
nossa imaginao, sem que percamos de vista a noo de nossas
responsabilidades com o autor e sua obra.
Com relao criao, Stravinsky afirmava que:
A imaginao no apenas a me do capricho como
tambm serva da vontade criativa. A funo do criador selecionar
os elementos que ele recebe da, pois a atividade humana deve
impor limites a si mesma. Quanto mais a arte controlada,
limitada, trabalhada, mais ela livre. (Stravinsky, 1996, pag. 63)
Mas no seria da mesma forma na re-criao operada pelo intrprete? A
liberdade, segundo Stravinsky, vem do controle, da limitao e do trabalho, ou
seja, quanto mais conhecemos uma obra, quanto mais trabalhamos e nos
dedicamos a ela, no somente no estudo de seu discurso musical, mas em todos
-
os aspectos envolvidos, maiores sero as chances de que nossas escolhas
sejam mais acertadas, e, portanto, de que nos sintamos mais livres para faz-
las. O domnio tcnico de nosso instrumento, assim como sua prpria qualidade,
tambm nos liberta e contribui para escolhas ainda maiores. Muitas vezes as
palavras restrio e limite so entendidas como palavras de significados
depreciativos e tolhedoras de nossa imaginao. Na verdade so vocbulos
fundamentais para que tenhamos parmetros corretos em nossas escolhas e
para que no nos tornemos refns de nossa prpria ignorncia.
Com certeza, interpretao o bsico, mas, conforme o maestro George Solti,
no simples.
As pessoas pensam que reger simples: voc marca o
tempo no ar e tudo vem naturalmente e de forma simples. Eles no
entendem quanto trabalho tem de ser feito antes que algum
chegue a um resultado que possa ser chamado de interpretao.
(SOLTI, 1997, pag. 205)3
E completava:
Voc no pode ser um regente de primeira classe se no
souber a partitura em todos os seus detalhes. Afinal um regente
deve ser um professor, antes e aps tudo. Como podemos ensinar
algo que ns mesmos no conhecemos bem? (SOLTI, 1997, pag.
205)4
O estudo profundo das obras algo primordial, mas nem sempre encarado com
o devido cuidado, seja por alunos e at mesmo por profissionais. Uma obra-
prima musical tem inmeras correlaes, sejam elas literrias, histricas ou de
cunho pessoal, e estas correlaes permitem ao regente, enquanto intrprete,
milhares de alternativas. Perante uma obra, o intrprete precisa primeiro refletir
muito, pois desta reflexo que surgiro suas dvidas assim como suas
respostas. Ele trabalhar com limites entre a ordem e a liberdade, e apesar disto,
estas reflexes lhe sero confrontadas posteriormente, ao se iniciar o contato
com seu instrumento. Como bem disse Solti: Quando voc vai diante de uma
orquestra, voc precisa ter uma idia clara em sua mente uma imagem sonora 3 People think conducting is simple: You beat the air and everything comes out naturally and easily. They do not understand how much work must be done before one arrives at something that can be called an interpretation (T. do A.)4 You cannot be a first-class conductor unless you know the score in the greatest detail. After all, a conductor must be a teacher, first and foremost. (T. do A.)
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do que est tentando alcanar. E voc tem de tentar realizar. (SOLTI, 1997,
pag. 206)5
Ocorre que o resultado muitas vezes surpreendente. No raro o som que
recebemos de uma orquestra nos leva a novas reflexes, e somente aps o
contato com esta nova realidade sonora que poderemos ter uma concepo
mais clara do que queremos. Karajan afirmava que:
Ningum pode dizer que conhece uma partitura, por mais
que a tenha na cabea, antes de t-la experimentado na orquestra.
No momento em que a pessoa se pe frente da orquestra, choca-
se com a inrcia da matria. (...) Criar um som implica um esforo
corporal enorme. Para que existem ensaios? (...) Existe um sentido
para o ensaio que o processo de chegar a um acordo com uma
grande resistncia. (...) Os msicos aprendem comigo e eu
tambm com eles. E s depois de sentir e absorver aquela presso
que me vem atravs deles consigo sentir tambm que ali est o
comeo de uma interpretao. (OSBORNE, 1992, pag. 136-137)
O interessante que esta postura sempre renovada a cada vez que vamos
frente de um novo grupo ou uma nova orquestra, pois sero msicos diferentes,
sonoridades diferentes, culturas e escolas tcnicas e musicais diferentes. Isto
tambm acontece na relao com a orquestra que se rege todos dias; alm de
uma ou outra mudana de msicos, aspectos psicolgicos e pessoais tambm
acabam por interferir no trabalho. Isso um dos principais motivos que tornam o
ofcio de um regente to diverso do trabalho da maioria dos outros intrpretes.
Um violinista ou flautista tem seu instrumento e conhece todas as suas virtudes e
limitaes. Um pianista pode sofrer um pouco mais, j que no leva consigo seu
instrumento, mas podemos afirmar que hoje raro um grande teatro no mundo
que no possua pelo menos um instrumento de real qualidade. Mas o mesmo
no pode ser dito com relao ao instrumento de um regente. Talvez por isso
mesmo maestros como Karajan, Masur e posteriormente Celibidache se
dedicaram tanto a um s grupo. Mesmo quando no se tem um grupo fixo de
trabalho, o simples fato de sempre retornar frente de uma mesma orquestra j
traz grandes facilidades. Para o regente coreano Myung-Whun Chung a coisa
5 When you go before an orchestra, you need to have a clear Idea in your mind a sound image of what you are trying to achieve. And then you must try realize it. (T. do A.)
-
mais importante uma certa continuidade, porque mesmo se o primeiro contato
foi um sucesso e tivemos a possibilidade de trabalhar bem, a cada retorno esta
possibilidade avana neste trabalho em conjunto. (POBB, 2000, pag. 77)6
Todas estas questes consideradas, no entanto, no anulam ou diminuem a
importncia de uma preparao slida; pelo contrrio, exatamente por viver o
regente uma situao to diversa dos demais intrpretes que seu estudo
anterior exige uma preparao profunda e abrangente da arte musical. Somente
o completo domnio da obra regida pode, caso seja necessrio, rapidamente
ajud-lo a mudar de plano e buscar diferentes posturas e solues.
O estudo de uma simples pea torna-se, portanto, um grande desafio, pleno de
possibilidades e repleto de variveis que daro ao intrprete opes com as
quais poder melhor transformar em imagem sonora tudo que coletou e
pesquisou durante seu tempo de estudo.
Roando o limite invisvel das diferentes sensibilidades, o
texto musical possibilita ao performer uma realizao nica,
marcada pelo estranhamento, como aquele, por exemplo,
manifestado por um discreto aumento na velocidade do
andamento, por uma gradao mais enftica do forte e piano, do
legato, do staccato, do clima, sempre coadunados leitura
particular. E se nessa relao a tarefa da obra dar informaes,
a do intrprete a de tomar decises. (LABOISSIERE, 2007,
pag. 103)
Para George Solti, este estudo prvio era primordial, pois ele se auto declarava
um regente arquitetnico que, ao iniciar um movimento, j dominava sua forma
do incio ao fim. E completava:
Eu no posso improvisar como faziam Nikisch e Toscanini.
(...) Em qualquer sinfonia, um regente tem de ter uma clara idia de
como fazer a voz principal dominar e quando trazer os outros
elementos de contraponto, harmnicos rtmicos para o primeiro
plano. Ele precisa saber quando as vozes secundrias devem ser
mais audveis que as primrias, e precisa entender como extrair
isto de seus msicos. O desafio de um regente o de fazer a
6 La cosa pi importante una certa continuit, perch anche se il primo incontro un sucesso e si pu lavorare bene, ogni volta si cerca di avanzare nel lavoro insieme. (T. do A.)
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orquestra produzir aquilo que ele imaginou durante semanas e
meses de estudo da partitura. (SOLTI, 1997, pag. 206)7
Segundo o prprio Solti, fora a tcnica da batuta, uma necessidade bsica para
um regente saber exatamente como cada passagem deve soar. Ele afirma que
se sua imaginao for clara, o intrprete ser capaz de se comunicar com a
orquestra, mesmo que sua tcnica de batuta no seja perfeita. Um regente
precisa acreditar no que faz, pois estando convicto do que pretende atingir, os
msicos iro segui-lo. Ele levanta uma questo de fundamental importncia para
qualquer regente enquanto intrprete quando observa que a luta deve ser com
ele prprio e no com a orquestra. Caso seja capaz de resolver um problema
interpretativo de uma forma satisfatria, ento este regente se tornar hbil a
ponto de fazer a orquestra realizar seu desejo. Esta postura de absoluta certeza
no que est dirigindo que far com que o regente seja capaz de vencer o que
Karajan acima descreveu como resistncia, e sair da inrcia, dando incio ao
milagre da regncia.
O inexplicvel milagre de reger que o corpo, olhos e alma
do regente so transferidos de uma forma intangvel e nica para a
orquestra. Se a orquestra toca os mesmos dezesseis compassos
musicais sob a batuta de diferentes regentes, estes compassos
iro soar de forma diferente em cada uma das vezes. (SOLTI,
1997, pag. 207)8
Mas como deve um aspirante regncia trabalhar para alcanar um nvel
refinado do que chamamos interpretao? A abordagem deste assunto j vem
carregada de pessoalidades, j que para alguns autores a interpretao a
simples transformao de uma estrutura em som e independe de outras
relaes. Para outros, a busca de maior fidelidade possvel partitura9, no
somente em sua escrita, mas tambm em todo seu contexto histrico, enquanto
7 I cannot improvise as Nikisch and Furtwngler did. () With any symphony, a conductor must have a clear idea of how to make the main voice dominate and when to bring the other elements contrapuntal, harmonic, rhythmic to the foreground; he must know when secondary voices ought to be more audible than the primary ones; and he must understand how to draw this out of the players. A conductors aim is to make the orchestra produce what he imagined during the weeks and months when he was studying the score. (T. do A.)8 The inexplicable miracle of conducting is that the body, eyes, and soul of a conductor transfer something intangible and unique to an orchestra. If an orchestra plays the same sixteen bars of music under different conductors, those bars will sound different on each occasion. (T. do A.)9 Dentre estes regentes, o primeiro que se preocupava com esta fidelidade, segundo relatos da poca, foi Mahler. Seguiram-se a ele nomes como Toscanini e Bruno Walter, entre outros.
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h ainda autores que a defina como a concretizao de uma idia sonora
pessoal construda a partir de elementos vrios como a inspirao do sentimento
compositor ou de si prprio com a obra. A interpretao pode, portanto, ser vista
como criao ou recriao. Uma recriao que o resultado de uma idia
esttica, somada sensibilidade do intrprete, mas com limites nas prprias leis
interpretativas a que somos submetidos.
E como fazer para equilibrar todas estas possibilidades, sem ferir a idia musical
criada pelo compositor e ao mesmo tempo no tolher a capacidade criativa do
intrprete? O maestro Lorin Maazel uma vez disse: No se pode interpretar
uma msica sem se perguntar por que ela foi escrita daquela forma... em quais
condies... se tivesse um teatro maior usaria uma voz em vez de
outra... (POBB, 2000, pag. 60)10 O posicionamento muito interessante, mas
como responder com preciso s questes levantadas por Maazel?
O maestro Rocha divide em quatro partes a forma como um regente deve
abordar uma obra: o levantamento histrico-biogrfico, a anlise formal, a
organizao da interpretao e a maturao da obra. (ROCHA, 2004, pag.
76-80)
O levantamento histrico e biogrfico dar, sem dvida, ao intrprete, um senso
de localizao fundamental para o incio de um trabalho. Acredito ser muito difcil
compreender uma obra profundamente sem buscar conhecer, mesmo que
pouco, quem a escreveu. So indicaes que podero ser ou no usadas, e
somente tero relevncia para a obra dependendo do ponto de vista de quem ir
interpretar. A anlise formal, do mesmo modo, fundamental nesta fase de
estudo de uma partitura. Saber como a pea se estrutura, seus pilares, seus
pontos culminantes, suas repeties, variaes, modulaes, coloridos de
instrumentao, constroem a base do conhecimento necessrio para a prxima
fase, que Rocha chama de organizao de interpretao o momento onde
todas as informaes coletadas so condensadas, transformadas em decises
interpretativas. Mas o interessante que este processo de abordagem inclui uma
quarta etapa, classificada como a da maturao da obra.
O regente realmente precisa de tempo para pensar a msica, assim como tempo
para que seu instrumento, a orquestra, seja tambm capaz de amadurecer.
10 Perch non si pu interpretare una musica senza domandarsi perch stata scritta cosi... in quali condizioni... se avesse avuto un teatro pi vasto, quella voce invece di unaltra (T. do A.)
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A condio fundamental a da maturao dentro do
intrprete. Isto vai lhe custar todo um trabalho de cultivo, com
infinitas repeties seletivas do tipo ensaio-e-erro, at que
intrprete, instrumento e obra se tornem uma coisa s. (ROCHA,
2004, pag. 79)
Esta afirmao impe-se como totalmente correta, embora nos dias de hoje
tenhamos cada vez menos tempo para este amadurecimento. Orquestras de
primeira qualidade fazem concertos com cada vez menos ensaios. O
amadurecimento da obra por parte do intrprete sim uma condio
fundamental para uma boa execuo. No entanto, ter tempo para infinitas
repeties do tipo ensaio-e-erro parece no mais existir no mundo profissional
de hoje. O regente obriga-se cada vez mais a ser gil em seu trabalho, com um
trabalho prvio de apurao de erros e sugestes de correes, para que lhe
sobre tempo de trabalhar suas idias interpretativas. Seu tempo de construo
em conjunto somente se dar caso tenha tempo de vivncia com um
determinado grupo, como fizeram Karajan frente Filarmnica de Berlin, Kurt
Masur frente Gewandhaus de Leipzig, Simon Rattle frente Sinfnica de
Birmington, entre outros. Este fundamental amadurecimento alcanado de
muitas formas, no somente pelo tempo de contato com a pea, mas tambm
por meio de um o estudo profundo e constante da obra de arte a ser executada.
Os grandes maestros sempre tiveram respeito por esta que, segundo muitos, a
parte mais difcil e trabalhosa da interpretao.
Durante toda a minha vida fui preocupado em ser um bom
msico no meramente um msico com carreira de sucesso, que
tambm importante, mas como desenvolver e melhorar o meu
talento. Recentemente quando estudava Assim falou Zaratustra
de Richard Strauss, eu disse para mim mesmo: Eu no conheo
completamente esta obra, depois de 50 anos! Entrei em
desespero. (SOLTI, 1997, pag. 205)11
Karajan afirmava que muitos anos se passam at que um regente possa dizer
que domina um repertrio, isto porque a conscincia da msica em toda sua
11 All my life I have been preoccupied with how to be a good musician not merely a musician with a successful career, which is also important, but how to develop and improve my talent. Recently, while I was studying Strausss Also sprach Zarathustra, I said to myself, I do not know this piece, after fifty years! I was in despair. (T. do A.)
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dimenso e particularidades o objetivo final de um intrprete. O grande
violinista e maestro Theodore Thomas (1835 1905), fundador e primeiro diretor
musical da Orquestra Sinfnica de Chicago dizia: O poder da boa msica (...)
como o poder da conscincia. Intensa. Imensurvel.. Em consonncia com esta
frase o maestro Rocha chama a ateno de que o domnio tcnico de uma obra
no significa obrigatoriamente seu domnio artstico, pois este ltimo est
diretamente ligado ao que estamos chamando de maturao. (ROCHA, 2004,
pag.80)
Esta maturidade pode ser traduzida como a busca pela verdade. De fato, a
busca pela interpretao verdadeira uma constante entre os grandes msicos.
Zubin Metha, em 1990, ento com 54 anos de idade e j tendo sido diretor de
orquestras como as de Los Angeles e de Nova York afirma em entrevista que um
de seus desejos era encontrar os tempi corretos da Sinfonia 40 de
Mozart (POBB, 2000, pag. 70)12, obra que j havia gravado e regido inmeras
vezes. Solti por sua vez confidencia que por muitos anos regeu as notas de A
Flauta Mgica de Mozart, mas no o contedo filosfico existente por trs das
notas. Esta foi uma das razes pela qual ele a gravou duas vezes.
Humildemente conclui: Espero que neste segundo registro que fiz eu tenha
chegado um pouco mais prximo da verdade. (SOLTI, 1997, pag. 26)
Esta verdade no se pode encontrar em uma indicao de tempo ou de
metrnomo. Sobre isto, Solti narra um fato muito interessante. Buscando
executar com correo uma determinada passagem da pera O Cavaleiro da
Rosa, perguntou ao prprio Richard Strauss qual seria o tempo certo e a
resposta foi a seguinte:
muito fcil! Eu coloquei o texto de Hofmannsthal de uma
forma na qual eu seja capaz de diz-lo, com a velocidade natural e
em seu ritmo natural. Recite somente o texto e encontrar os
tempi corretos. (SOLTI, 1997, pg. 78)13
O interessante desta passagem a resposta do compositor. Ela no direta,
no se baseia em afirmaes conclusivas e, apesar de ter sido clara e objetiva,
deixa ainda um espao para que cada um encontre sua prpria verdade.
12 Trovare i tempi giusti della Sinfonia n. 40 di Mozart (T. do A.)13 Its very easy; I set Hofmannsthals text at the pace at which I would speak it, with a natural speed and in a natural rhythm. Just recite the text and you will find the right tempi (T. do A.)
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Outra declarao interessante a do maestro Chung, ao afirmar sobre a
Sinfonia Fantstica de Berlioz, que:
Esta sinfonia deve ser feita quando se jovem, porque, por
exemplo, nos dois ltimos movimentos, h uma verdadeira orgia
sonora. No sei se enfrentarei ainda esta Sinfonia quando estiver
com mais idade. preciso haver uma exuberncia juvenil.
(POBB, 2000, pag. 79)14
1.5 O OBJETIVISMO E O SUBJETIVISMO NA REGNCIA
O autor Sylvio Lago faz uso destas designaes para mostrar as diferenas
interpretativas no incio do sculo XX. O objetivismo e o subjetivismo na
regncia foram muito importantes para uma viso mais ampla das possibilidades
da interpretao por parte de um regente. Dentre os regentes objetivistas
intrpretes que procuram o mximo de fidelidade s indicaes da partitura
14 Ma questa sinfonia si pu fare quando si giovani perch, per esempio, negli ultimi due movimenti c una vera orgia di suoni. Non so se affronter ancora questa Sinfonia quando saro avanti con gli anni; bisogna avere lesuberanza giovanille (T. do A.)
-
sem dvida o primeiro mais importante foi Arturo Toscanini. Segundo o maestro
George Szell:
Toscanini mudou por inteiro o conceito de direo e retificou
muitos processos arbitrrios de uma gerao de regentes anterior a
ele. Toscanini suprimiu as arbitrariedades dos intrpretes ps-
romnticos, cujos matizes interpretativos vinham se acumulando
durante dcadas. (LAGO, 2008, pag. 107)
Toscanini buscava uma interpretao que fosse fiel ao discurso musical, atento
principalmente s indicaes de tempo, dinmicas e ritmo. Sua busca pelo estilo
e carter da msica abriu as portas para outros vrios regentes do sculo XX e,
mais frente, aos maestros que podemos chamar de autenticistas. Esta busca
pela fidelidade ou autenticidade das obras levou os maestros do sculo XX a no
restringir suas pesquisas somente s partituras editadas, buscando nos originais
informaes que fossem importantes e que, em funo de uma edio ou outra,
houvessem sido suprimidas ou mal transcritas.
Este outro ponto que nos leva a uma sria reflexo. Somente para se ter um
exemplo, segundo a edio Barenheiter da Primeira Sinfonia de Beethoven,
foram encontrados originais de partes orquestrais com sensveis diferenas de
escrita em uma mesma passagem. Ainda falando desta Sinfonia, somente h
pouco tempo foi visto que no penltimo compasso da introduo do primeiro
movimento, Beethoven havia escrito um crescendo e decrescendo para as
trompas. Ou seja, at onde estaremos realmente executando de modo fiel aquilo
que o compositor havia escrito? Estamos falando de uma obra que foi escrita no
final do sculo XVIII e estas descobertas, importante que se ressalte,
aconteceram no final do sculo XX, ou seja, dois sculos depois. Com certeza,
muito mais ser redescoberto e discutido, principalmente porque, naquela poca,
a cpia e edio destas partituras eram feitas manualmente, e tambm porque
vrias obras no existem mais na sua integralidade, a no ser em suas partes
instrumentais, e vrias destas contendo informaes divergentes. Mas este um
outro assunto que, apesar de ser importante mencionar, merece ser tratado com
mais ateno em outro trabalho, pela sua profundidade e significado.
J a regncia chamada de subjetivista busca o domnio da substncia e da
forma em nome de um gosto prprio. Esta postura encontra base em vrios
autores, crticos e intrpretes que afirmam que a execuo de uma obra nunca
-
ser literalmente fiel ao pensamento do compositor, basicamente por se tratar de
duas personalidades distintas. bem verdade que alguns maestros, no incio do
sculo XX, tomaram enormes liberdades, mudando orquestraes, alterando
andamentos, sem se ater s indicaes de dinmica ou at mesmo ao orgnico
original, para atingir o que mais se adequasse ao seu pensamento musical.
Como afirma Giorgio Graziosi a diferena que no caso do subjetivista O artista
representa e transfigura a msica, enquanto que o intrprete clssico
simplesmente a apresenta e descreve; (LAGO, 2008, pag. 109)
Como escreve Sylvio Lago:
O que define se uma interpretao bela ou medocre so
alguns fatores complexos, como fidelidade ao esprito da obra e do
compositor, o bom gosto, a tcnica correta da rtmica e da
dinmica, a beleza e a clareza dos fraseados, a respirao, o
colorido harmnico e tmbrico, os contrastes e, sobretudo, a
comunho emocional do artista com a obra executada. (LAGO,
2008, pag. 111)
Um grande artista precisa ter uma profunda sensibilidade para cada uma das
obras que interpreta, compreend-la de forma completa, dominando todo seu
significado formal e esttico. Certa vez, o brilhante saxofonista e mestre Dilson
Florncio disse Eu no solo com um maestro que ache feia a msica que est
fazendo, pois se ele que representante do compositor no capaz de ver o
belo no que est fazendo, quem poder?
A identidade do intrprete com a msica e o compositor fundamental para que
o primeiro possa verdadeiramente buscar entre as notas escritas no papel o
verdadeiro significado da msica. Obviamente a tcnica a base de uma
interpretao. impossvel uma orquestra composta por alunos ainda sem
grande experincia profissional e tcnica executarem bem uma obra de grande
porte, pois, por melhor que seja o maestro frente deste grupo, o resultado final
esbarrar em uma limitao mecnica e no somente musical. Da, portanto, a
importncia de um regente saber montar seu repertrio de acordo com o material
humano que ter em suas mos, assim como programar o nmero ideal de
ensaios para realiz-lo com correo.
-
1.6 BUSCA PELA VERDADE: INTEGRAO DO OUVINTE NA INTERPRETAO MUSICAL
Como relatado no subitem 1.1 desta dissertao O Exerccio e o Incio de um
Questionamento chamou-me muito a ateno a reao extremamente positiva
de algumas pessoas apresentao de meu aluno.
Se o intrprete no tiver conseguido amadurecer suas
emoes e, mesmo assim, vier a apresentar-se com a obra ainda
imatura, o mais provvel que ele prprio se torne refm de suas
-
emoes e a se transforme em objeto de curiosidade e espetculo
para o pblico, que assistir com distanciamento movimentao
fsica de sua performance, sem que ele esteja envolvido e tomado
pela msica que produz. Isso porque as notas estaro nascendo
mecanicamente, por desconexo e desatrelamento entre o
intrprete e a obra musical da qual ele deveria ser o
intermedirio. (ROCHA, 2004, pag. 79)
Fica claro que, alm do criador/compositor (aquele que nos d a
informao/mensagem) e do executante/intrprete (aquele que nos transmite
esta informao/mensagem), nesta citao de Rocha, a grande importncia recai
sobre o apreciador/ouvinte, formatando a trade da celebrao musical. Apesar
de que o que aconteceu com meu aluno e sua relao com a platia tenha sido
exatamente o contrrio do que afirma o autor. bem verdade que a afirmao
do maestro Ricardo Rocha acima transcrita se encaixa perfeitamente para a
percepo que tive do resultado artstico do concerto dirigido por meu aluno,
embora estas diferenas de julgamento evidenciem que cada uma destas partes
intrpretes/platia tem suas caractersticas, particularidades e inter-relaes.
Cabe-nos, ento, situar o intrprete, levando em considerao que criao e
fruio como duas faces inseparveis e complementares de um nico
acontecimento: a interpretao musical. A msica nasce do compositor,
mediada pelo intrprete e complementada na escuta pelo ouvinte. Isto significa
tambm dizer que o intrprete, como criador e receptor que tambm , constri e
recria o sentido musical da obra que, numa terceira instncia,
complementada pelo receptor na escuta.
A escuta como recriao, segundo Santella, tem trs caractersticas:
1. Qualidade do sentir flutuao fora do tempo, instncia em que o
indivduo fica passvel, vulnervel, no interpreta, nem julga. Encarna o
sentir, o contato qualitativo sonoro. uma incerteza quando tudo
tomado pelo sentir, de forma ampla (primria)
2. Comoo movimentao interior, j produzindo um certo efeito, um
elemento de materialidade, particular, reunindo o passado com o
presente, tendo um qu de fisicidade (secundria)
3. Emoo verbalizao do receptor. Ele pode expressar o que sente.
o sentir codificado, quando diz ento que tal msica triste.
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Projetam-se ethos que tm a ver com estados de esprito, com ritmos
vitais e pulsaes biolgicas. A msica produz uma srie de
impresses, traduzidas como sensaes auditivas, consideradas como
pseudo-significao (ressonncia instintiva terciria).
(LABOISSIERE, 2007, pag. 125)
Divide-se j desde a a forma de perceber a msica. Cada indivduo poder,
dependendo de suas caractersticas pessoais, levando-se em conta cultura,
instruo, conhecimento prvio da obra ou linguagem, etc. qualificar o fato
musical de uma forma muito pessoal, quando internamente interpreta e
decodifica o objeto apreciado. E mesmo ao se tomar como base dois ouvintes
com as mesmas capacidades intelectuais e conhecimento sobre msica teremos
percepes diferentes de uma mesma execuo. Entram a fatores diversos que
levaro uns a se envolverem e apreciarem uma determinada execuo e outros
a no se sensibilizarem com o espetculo. Na Histria da Msica no faltam
exemplos de concertos e apresentaes musicais a que foram dedicados textos
crticos com contedos e/ou vises diametralmente opostas enquanto um
crtico enaltece, outro ao mesmo tempo destri uma determinada execuo.
Crticas contraditrias ocorrem ainda entre ns mesmos, msicos e amantes da
msica. Quem nunca ouviu falar, ou mesmo participou, de uma discusso de
quem seria melhor intrprete: Callas ou Tebaldi, Pavarotti, Domingo ou Carreras,
Karajan ou Celibidache etc. Citei somente intrpretes clebres, e que sem
dvida, primam ou primaram por sua excelncia e personalidade. Os nomes
acima relacionados servem para demonstrar que muitas vezes a escolha musical
nem sempre passa por um critrio tcnico. Entram a aspectos como empatia
pela escolha de um certo andamento, sonoridade, timbre ou at por aspectos
exteriores msica.
Sobre isto Karajan cita um fato muito interessante:
Lembro-me de alguns anos atrs receber o telefonema de
um homem que me disse que havia acabado de ouvir coisas pela
primeira vez na Sinfonia n 5 de Beethoven. Eu disse: Isso muito
bom, mas a execuo que o senhor est mencionando foi filmada.
O senhor no queria dizer que viu? No, quero dizer ouvi
mesmo, respondeu. Este o poder que o filme tem quando
usado apropriadamente. (OSBORNE, 1992, Pag. 187)
-
Ver a msica vem se tornando algo a cada dia mais importante. No
suficiente para o pblico de hoje simplesmente ouvir a uma sinfonia ou uma
pera, necessrio v-la. E percebe-se que, cada vez mais, este outro sentido,
a viso, trar novos desafios para ns, intrpretes, que fomos capacitados a
desenvolver um outro sentido, a audio. O famoso maestro italiano Riccardo
Muti era muito criticado no incio de sua carreira por no conseguir passar para
as gravaes, naquela poca em vinil e fitas cassetes, toda exuberncia que
tinha em seus concertos ao vivo. Isto talvez porque a forma exterior do
processo interno de um indivduo tem o poder de transmisso nico, magntico,
que possibilita a atrao de outras pessoas ao crculo mgico da
criao (FREGTMAN, 1994, pag. 152); ou seja, o contato visual que ele
estabelecia com o pblico. Sua relao com a msica executada em sala de
concertos no era captada e transmitida no processo de gravaes em udio.
Isto pode parecer irrelevante aos olhos de um msico cujo nico objetivo seja a
msica como resultado sonoro, mas ser que isto suficiente para que a
verdade musical se estabelea com o ouvinte nos dias de hoje? Conseguiramos
ns gostar de uma gravao em vdeo, por mais maravilhosa que fosse, do
Lacrimosa do Requiem de Mozart com um regente cujo semblante risonho,
tomado de alegria refletisse total distanciamento da mensagem do texto
musical interpretado? Transmitiria ele, aos seus comandados, com esta postura,
o real sentido desta obra?
Qual grande intrprete nunca teve exaltado por algum crtico ou historiador seu
magnetismo no palco, sua facilidade de comunicao com o pblico, sua postura
diante da msica? Todos os fatos aqui referidos so extra-musicais, mas, sem
dvida, sero levados em conta para gostarmos ou no de uma execuo.
Grandes compositores/intrpretes investiram seriamente em sua imagem.
Paganini e Lizst faziam questo de parecerem sobre-humanos, como que
tomados por um esprito ao se apresentarem. Escolhiam roupas e criavam
situaes para que o pblico tivesse impresses excelsas de suas
performances. Estamos falando de dois dos maiores msicos do perodo
romntico, e no somente intrpretes, mas tambm compositores.
O que define uma execuo como boa ou ruim, correta ou incorreta, ou at
mesmo, bela ou feia? Se compararmos, por exemplo, a interpretao de O
Messias de Haendel com Otto Klemperer e de Raymond Leppard veremos
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diferenas absurdas de tempos, intenes musicais, sonoridade e colorido. Qual
delas seria a verdadeira? Qual exprimiria o desejo do compositor? Segundo
vrios historiadores, no Barroco, os andamentos, ornamentos e mesmo a
instrumentao ficava a cargo dos intrpretes e de suas criaes e improvisos.
Eram eles, msicos contemporneos de Bach, intrpretes verdadeiros do
pensamento do compositor? Ou seria a verdade da individualidade a mais
importante a ser seguida? O compositor e maestro Carl Maria von Weber em
carta a um regente afirmava: O que deve dar msica sua cor e seu verdadeiro
movimento a individualidade daquele que a executa. E ainda:
O que importa na verdade, que o artista capte e transmita
a gradao do movimento imposta inspirao do autor pelo
desenvolvimento lgico e natural da paixo. No convm, todavia,
que o cantor se abandone demasiadamente sua prpria
natureza; e cabe justamente ao regente control-lo neste delicado
caminho. (LAGO, 2008, pgs. 45 e 46)
Graas s gravaes realizadas a partir do incio do sculo passado, temos hoje
a felicidade de podermos ouvir compositores como Rachmaninoff, Stravinsky,
Richard Strauss e Villa-Lobos, entre outros, executando suas prprias obras.
Ser que eles mesmos conseguiram transformar em som seus prprios
pensamentos? Seriam estas gravaes as referncias para todas as demais
execues que foram realizadas, ou a busca fidelidade interpretativa estaria
em outra fonte? O que faz ento uma execuo ser ou no verdadeira, correta a
ponto de ser considerada uma referncia?
Em 2007, Norman Lebrecht lanou um livro intitulado Maestros, Masterpieces,
and Madness, traduzido em 2008 para o portugus como Maestros, Obras-
Primas e Loucura A vida secreta e a morte vergonhosa da indstria da msica
clssica, dividido em trs partes. A segunda parte, intitulada: Obras-Primas: 100
marcos do sculo da gravao destaca cem gravaes verdadeiramente
importantes, enquanto a terceira parte ganhou um ttulo bem expressivo:
Loucura: 20 gravaes que nunca deveriam ter sido feitas. Dentre as vrias
escolhas do escritor, chama ateno a gravao de Toscanini da Nona Sinfonia
de Beethoven, apontada como a grande execuo desta obra-prima. Os mais
importantes maestros, orquestras e solistas gravaram esta obra, mas a sua
eleita aconteceu no Carnegie Hall, nos dias 31 de maro e 01 de abril de 1952,
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contando com a Orquestra Sinfnica da NBC, o coro Robert Shaw e os solistas
Eileen Farrell, Nan Merriman, Jan Peerce e Norman Scott, todos norte-
americanos. curiosamente interessante a parte do texto em que autor justifica
o porqu de tal escolha:
Os primeiros dois movimentos so de tirar o flego, de to
rpidos... O Coro Robert Shaw e o quarteto de cantores
americanos no finale [sic] erram para o lado do entusiasmo, quase
estourando os pulmes. (LEBRECHT, 2008, pag. 200-201)
Com andamentos to rpidos e cantores quase estourando seus pulmes fica
difcil imaginar que o maestro tenha conseguido exprimir o pensamento do
mestre de Bonn ao executar sua ltima sinfonia. Lebrecht afirma ainda que esta
gravao se destaca por sua ... furiosa energia e pela f na bondade humana.
A furiosa energia possvel de se entender pela escolha de andamentos
rpidos, a busca de uma sonoridade mais brilhante, assim como outras
definies como denso, sonoridade calorosa, intimidade e calma. Agora
como definir uma execuo que se destaca por um mrito to subjetivo como a
f na bondade humana? No estou dizendo que no seja verdade, e muito
menos que no sejamos capazes de perceber isto na gravao, mas minha
questo : se esta informao importante para uma boa execuo, como
passar adiante?
A msica no pode expressar medo, que certamente uma
emoo autntica. Mas seu movimento, seus sons, acentos e
padres rtmicos podem ser inquietos, agudamente agitados,
violentos e at mesmo repletos de suspense (...) ela no pode
expressar desespero, mas pode movimentar-se lentamente numa
direo predominantemente descendente, sua textura pode tornar-
se pesada e conforme nosso hbito dizer escura (...) ou ela
pode desaparecer totalmente. (GARDNER, 1994, pag. 83)
Acredito ser significativo ressaltar que nem sempre gravaes representaro
verdadeiramente uma execuo. Arthur Schnabel, um dos principais pianistas da
primeira metade do sculo XX, dizia sofrer de angstia e cair em desespero a
cada vez que gravava, pois tudo era artificial: a luz, o som e at o ar. Assim
como ele, vrios outros intrpretes fantsticos sofreram com o estdio de
gravao.
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Segundo Lago Mahler era um tipo sempre obcecado pelo que Ferdinand Pfohl
chamava de busca pela verdade absoluta da expresso musical. Ainda
segundo Lago, Mahler declarava que a arte da direo antes de tudo a das
transies e que na msica, o melhor no est escrito nas notas. Ao mesmo
tempo de acordo com Bruno Walter, sua obedincia fantica partitura no o
impediu de ver contradies entre as instrues do texto e as intenes reais do
compositor. (LAGO, 2008, Pags. 79-81)
Outro grande maestro do final do incio do XX foi Felix Weingartner que, a
respeito da arte da regncia, afirmava:
Antes de tudo deve ser sincero e leal com relao obra
que vai executar, a ele mesmo e ao pblico. (...) A partir do
momento em que o regente tem a partitura em sua mo, ele deve
pensar: Que posso fazer com esta obra? E mais: O que desejou ou
pensou seu criador? Deve estudar conscientemente a obra de
modo que, durante a execuo, a partitura sustente sua memria,
sem o limitar; se o estudo da obra lhe permite ter uma concepo
prpria, que ele a restitua integralmente, sem a fragmentar; deve
lembrar-se incessantemente de que o regente a personalidade
mais importante e mais responsvel da vida musical. (LAGO,
2008, Pag. 84)
1.7 O AMBIENTE DE TRABALHO
Sem dvida alguma, o bom ambiente de trabalho para que o regente possa
desenvolver suas atividades fundamental; mas no entraremos muito
profundamente neste assunto, muito embora se trate de uma matria de grande
relevncia e inmeras variveis, porque no faz parte do objetivo central deste
texto. Gostaria de salientar somente uma situao dentre as vrias que podem
contribuir para um ambiente ruim de trabalho, que exatamente a m postura do
regente frente orquestra. fundamental que o regente se preocupe com sua
forma de comunicao e sua colocao perante o grupo. Posso afirmar que sua
entonao de voz, a escolha das palavras e a forma de se dirigir ao grupo sero
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essenciais para que seu trabalho possa ser bem desenvolvido. Um grande
regente deve ter perante sua orquestra empatia e uma autoridade natural,
fundada em autocontrole ou autodomnio, alm de clareza em seus objetivos e
capacidade de transmiti-los. Outro ponto importante o de saber cobrar e
valorizar o trabalho realizado.
Dentre os princpios caractersticos da autoridade natural talvez o mais difcil
seja o autodomnio, no somente pelos fatores levantados pelo maestro Rocha
como o poder sobre (...) suas prprias paixes, emoes e apetites, o de no
mais confundir autoridade com autoritarismo, rigor com rigidez, seriedade
com sisudez e da por diante (ROCHA, 2004, pag. 24-28), mas tambm de
conhecer seu eu interno, seu ego. Em minha experiencia como regente posso
dizer que j vi muitas vezes uma orquestra trabalhando mal simplesmente
porque o regente responsvel se colocava frente da Msica de maneira
soberana, sem humildade perante a obra executada. No momento em que os
msicos sentem isto, posto que se trata de algo no verbalizado, cria-se na
orquestra um sentimento de servido. Executam a obra por fora de uma
obrigao profissional, mas no comungam a mesma f e o mesmo fervor que a
msica deve inspirar. Um regente nunca deve se esquecer de que a Msica est
sempre em primeiro plano.
Richard Strauss, em seu Album of a Young Conductor comenta as dez regras
de ouro para quem deseja se tornar regente. As duas primeiras:
1. Lembre-se que voc no est fazendo msica para entreter voc
mesmo, mas para o deleite de sua platia.
2. Voc no deve suar enquanto rege: somente a platia deve ficar
aquecida. (SHONBERG, 1967, Pg. 291)15
Sir George Solti relutou muito em escrever suas memrias principalmente
porque ele ... acreditava que somente a vida de um grande compositor era
interessante ou suficientemente importante para merecer ser escrita. O maestro
ou regente deve sempre ter em mente que ele conduz um grupo em prol de um
objetivo final, e este objetivo final no pode ser outro que no seja a glria da
Msica.
15 Remember that you are making music not to amuse yourself, but to delight your audience. You should not perspire when conducting: only the audience should get warm. (T do A.)
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Sua glria pessoal e da Orquestra devero sempre ser consequncias de um
trabalho. Nossa funo como a de um pai amigo, cujo desejo o melhor para
seu filho, devendo ser srio, cuidadoso, sbio, paciente, justo e amoroso e,
assim como um verdadeiro pai, demonstrar de forma natural suas intenes para
com o filho. Neste caso o melhor ser sempre a Msica. Isto algo
relativamente fcil de dizer e de escrever, mas muito difcil de executar.
A figura do maestro no sculo XX e XXI tida como de grande status, e muitas
vezes nos perdemos no glamour de nossa profisso; mas, como dizia Liszt, no
devemos nos esquecer de que somos timoneiros e no remadores, ou seja:
damos o norte nau, mas quem a leva ao seu ponto final so nossos msicos e
eles, assim como o maestro, devem ser valorizados. O reconhecimento e
como bem diz o maestro Rocha, no devemos confundir esforo com resultado
um dos princpios para que o grupo perceba esta postura de humildade e
valorizao ao empenho do grupo. Recentemente, a rdio CBN levou ao ar uma
declarao do comentarista Max Gehringer sobre currculos16. Ele dizia que o
currculo ideal seria aquele no qual o candidato diria aquilo que seria capaz de
fazer e no aquilo que j havia feito. Isto para um regente muito importante.
Devemos sempre pensar no que ainda no fizemos pela msica e naquilo que
podemos e desejamos ainda fazer, pois somente desta forma estaremos a
servio dela.
De acordo com uma declarao de Solti, Toscanini uma vez disse sua
orquestra: Eu os odeio, porque vocs destroem meus sonhos. Claro que se
tratava somente de um desabafo exaltado, principalmente porque ele, apesar de
sua postura vista por alguns como rgida, amava seus msicos. Sua expresso
reveladora da vida de um maestro que alimenta um sonho, tenta realiz-lo e,
quando no consegue, sofre.
Ensaios existem para tentar realizar estes sonhos. Quando o objetivo no
alcanado devemos nos perguntar o estamos fazendo de errado. Se no
realizamos nossos sonhos, talvez no estejamos nos comunicando bem o
suficiente. Segundo George Solti:
Os atalhos a serem seguidos geralmente no sero de
carter tcnico, mesmo porque as melhores orquestras tiveram
uma enorme melhoria tcnica na segunda metade do sculo XX.
16 Max Gehringer um comentarista da Rdio CBN que tem uma coluna diria nesta emissora
-
Eu me lembro de quanto tempo eu desperdiava com orquestras
europias, lutando por afinao. (...) Em todos os meus anos com
a Orquestra Sinfnica de Chicago, raras foram as vezes que tive de
trabalhar a afinao das madeiras ou metais, isto porque os
msicos detectam uma m afinao to rpido (ou mais rpido)
quanto eu. (SOLTI, 1997, pag. 206)17
O dilogo constante do regente com seus msicos, o dio no momento certo
citado por Toscanini, assim como o aplauso quando merecido, estabelecero a
base para uma relao de confiana, carinho, respeito e verdade fundamentais
para uma boa relao entre regente e msicos.
1.8 ARGUMENTAO
O maestro moderno passou a ser o artfice de uma arte que
abrange todo o espectro das emoes humanas, exprimindo sua
concepo musical com vises interpretativas bastante diversas. E
nisto que repousa precisamente a sua arte. (LAGO, 2008, Pag.
95)
O presente trabalho pretende discutir exatamente isto, ou seja, alguns aspectos
da execuo de uma obra musical por parte de um maestro, suas liberdades de
escolha e individualismo, seus limites, compreenso geral do ofcio e capacidade
para transmitir seus conceitos interpretativos.
17 The shortcomings usually will not be technical, because the best orchestras have seen enormous technical progress in the last half-century. I remember how much time we used to waste in European orchestras, fighting over intonation. These days, music students play a great deal of chamber music, and they learn to listen to one another. In all my years with the Chicago Symphony, I hardly ever had to tune the woodwinds or brass, because the players detected bad intonation as quickly as (or quicker than) I did. (T. do A.)
-
Para Bruno Walter o regente :
Precisamente este indivduo solitrio que executa a msica,
que faz a orquestra tocar como se fosse um s instrumento, que
transforma sua multiplicidade em unidade e isso num sentido ao
mesmo tempo tcnico e espiritual. (LAGO, 2008, pag. 106)
Apesar de vrios livros terem sido escritos sobre a tcnica da regncia e da
preparao e qualidades bsicas para um msico se tornar um regente, o
presente texto no visa abordar to especificamente tais questes, atendo-se
mais relao do maestro com seu instrumento, no caso especfico a Orquestra,
e as condies, dificuldades e liberdades que este tem na conduo de uma
execuo.
Pode parecer que a qualidade do instrumento afetar a resposta; mas tentarei
me manter fora desta questo, j que o mais importante no se o objetivo final
foi ou no alcanado, e sim o porqu ele foi ou no alcanado. claro que uma
valsa de J. Strauss Jr. executada pela Filarmnica de Viena e a mesma obra
executada por uma Orquestra de alunos de uma universidade brasileira nunca
ter a mesma qualidade tcnica e musical. Ao mesmo tempo me pergunto:
poder um maestro experiente, ao reger esta mesma orquestra de alunos, obter
um resultado artisticamente melhor que