dissertação mestrado aluno 7013
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INFLUNCIAS DA PERFORMANCE NA MSICA ENTRE 1970 E 90 EM
PORTUGAL: JORGE PEIXINHO, CLOTILDE ROSA, EDUARDO SRGIO
MARIA BEATRIZ DE MATOS VITAL SERRO
___________________________________________________
Dissertao de Mestrado em Cincias Musicais
rea de Especializao em Musicologia Histrica
20 DE ABRIL DE 2011
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[DECLARAES]
Declaro que esta tese/dissertao /trabalho de projecto o resultado da minha
investigao pessoal e independente. O seu contedo original e todas as fontes
consultadas esto devidamente mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.
O candidato,
Maria Beatriz de Matos Vital Serro
Lisboa, 20 de Abril de 2011
Declaro que esta Dissertao / Relatrio / Tese se encontra em condies de ser
apresentada a provas pblicas.
O(A) orientador(a),
____________________
Lisboa, .... de ............... de ..............
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AGRADECIMENTOS
Apresento os meus agradecimentos Professora Doutora Paula Gomes Ribeiro, pelo
aconselhamento competente e dedicado elaborao desta dissertao.
Agradeo igualmente ao Professor Doutor Mrio Vieira de Carvalho pela entrevista
esclarecedora que me concedeu em conjunto com Joo Romo; bem como o apoio que
este colega me facultou.
O meu reconhecimento vai tambm para os compositores e intrpretes que me
receberam e forneceram informaes e materiais indispensveis a este estudo, Clotilde
Rosa, Eduardo Srgio, Paulo Brando, Catarina Latino, Maria Joo Serro, Jos Lopes e
Silva.
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INFLUNCIAS DA PERFORMANCE NA MSICA ENTRE 1970 E 90 EM
PORTUGAL: JORGE PEIXINHO, CLOTILDE ROSA, EDUARDO SRGIO
MARIA BEATRIZ DE MATOS VITAL SERRO
PALAVRAS-CHAVE: Msica portuguesa, sculo XX, performance, teatralizao da
msica.
RESUMO: A presente dissertao consiste num estudo dos elementos de performance
que foram integrados em obras de composio musical e espectculos de carcter
multimedia, em Portugal, nas dcadas de 70 a 80 do sculo XX. Centra-se no estudo de
obras dos compositores Jorge Peixinho e Clotilde Rosa e do artista plstico Eduardo
Srgio, apontando a especificidade de cada um e os aspectos estticos em que se
identificam. Como exemplos paradigmticos desta opo, foram escolhidas para anlise
as obras Rcitation II (1971) e Voix (1972) de Peixinho, Jogo Projectado I (1979), Jogo
Projectado II (1981) e Hellas I (1982) e II (1985) de Clotilde Rosa e os espectculos
intermedia Cuboversuesfera (1976) e Amagarte (1986) de Eduardo Srgio. Inclui uma
contextualizao histrica e esttica da performance a nvel internacional e nacional.
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PERFORMANCE INFLUENCES ON MUSIC FROM 1970 TO 90 IN
PORTUGAL: JORGE PEIXINHO, CLOTILDE ROSA, EDUARDO SRGIO
MARIA BEATRIZ DE MATOS VITAL SERRO
KEYWORDS: Portuguese music, twentieth-century, performance, theatrical music.
ABSTRACT: The present dissertation consists of a study of the performance elements
integrated in musical compositions and multimedia events from 1970 to 90 in Portugal.
It focuses the work of composers Jorge Peixinho and Clotilde Rosa and visual artist
Eduardo Srgio, pointing out the particular aspects of each one and their aesthetic
affinities. As paradigmatical examples, were chosen Jorge Peixinho Rcitation II (1971)
and Voix (1972), Clotilde Rosa Jogo Projectado I (1979), Jogo Projectado II (1981),
Hellas I (1982) e II (1985) and Eduardo Srgio Cuboversuesfera (1976) e Amagarte
(1986). It includes a historical and aesthetic overview of performance in an international
and a national context.
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NDICE
Prembulo ........................................................................................................ vii
INTRODUO .................................................................................................. 1
Captulo I: A performance nas dcadas de 70-80 do sculo XX ...................... 4
I .1. O conceito de performance: elementos histricos e estticos ............ 4
I. 2. A performance em Portugal: contextualizao .................................. 17
Captulo II: Elementos performativos na criao musical e no espectculo
multimedia ...................................................................................................... . 27
II. 1. Msica e performance: Jorge Peixinho ............................................... 32
II. 1.1. Recitao II (1971) ........................................................................ 34
II. 1.2. Voix (1972) ......................................................... ............................ 42
II. 2. Msica e poesia: Clotilde Rosa ............................................................... 52
II. 2.1. Jogo Projectado I (1979) .............................................................. 54
II. 2.2. Jogo Projectado II (1981) ........................................................ 56
II. 2.3. Hellas I e II (1982 e 1985) ........................................................73
II. 3. Criaes intermedia: Eduardo Srgio .................................. .................. .79
II. 3.1. Cuboversusesfera (1976) ........................................................ 81
II. 3.2. Amagarte (1986) ..................................................................... 84
CONCLUSO . ............................................................................................ .. 91
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 95
ANEXOS ........................................................................................................ 111
Anexos I: Textos e programa
Anexos II: Partituras
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Prembulo
As razes fundamentais que me levaram a escolher o tema desta tese de Mestrado
prendem-se com a minha experincia vivida como percussionista profissional, na rea da
msica contempornea e do teatro musical. Este percurso relaciona-se, sem dvida, com
memrias de infncia de concertos do Grupo de Msica Contempornea a que assisti, em
que os msicos, na sua execuo musical, actuavam teatralmente de modo no
convencional em cena, e que me deixaram uma marca decisiva condicionante de opes
futuras.
Com efeito, depois de um incio de formao como percussionista com o Prof.
Jlio Campos no Conservatrio Nacional de Lisboa, continuei a minha formao no
Conservatoire National de Rueil-Malmaison, na classe de percusso do Prof. Gaston
Sylvestre. Uma das caractersticas desta classe era uma forte incidncia no estudo do
repertrio contemporneo, nomeadamente de msica de cmara, de obras solistas e de
teatro musical. Esta opo era em grande parte devida ao facto de este professor ser
igualmente msico profissional, membro do Trio Le Cercle (com Jean-Pierre Drouet e
Willy Coquillat) que com frequncia criava obras a ele dedicadas de compositores como
Kagel, Aperghis, Globokar, Batisttelli, Drouet. Uma outra caracterstica, para alm da
exigncia tcnica, era a pesquisa sistemtica para a produo de som. Esta pesquisa
implicava uma consciencializao da fisicalidade do percussionista que se manifestava
atravs do uso do peso do corpo e do movimento gestual para a realizao do som na sua
mxima amplitude harmnica. A realizao das obras com esta preocupao inerente,
juntamente com a disposio espacial necessria execuo dos instrumentos de
percusso, conduzem ao desenvolvimento de uma gestualidade e de um movimento que se
podem considerar coreogrficos. A formao e a realizao profissional nesta rea que
fazem parte da minha experincia artstica, em que tive oportunidade de executar obras
dos gneros referenciados, de vrios compositores, inclusiv portugueses, em concertos e
em espectculos cnico-musicais, so a motivao, tal como referi, da escolha do tema
desta tese.
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INTRODUO
Nesta dissertao propomo-nos realizar o estudo dos elementos de performance
que foram integrados em obras de composio musical e espectculos de carcter
multimedia, em Portugal, nas dcadas de 70 a 80 do sculo XX, espao temporal
paradigmtico das transformaes que as artes, em geral, sofreram. Dado que se trata de
um tema abrangente no perodo a que se reporta, organizmos esta dissertao comeando
por referir, no captulo I A performance nas dcadas de 70-80 do sculo XX, os aspectos
mais gerais do conceito de performance. Com esse objectivo, citamos definies propostas
por diferentes autores, alguns dos quais foram igualmente agentes prticos dos eventos que
definem, como o caso de John Cage a nvel internacional e de Ernesto de Sousa a nvel
nacional. Propusemo-nos ainda elaborar uma sntese histrica e esttica sobre a
contextualizao internacional da performance, apontando os intervenientes mais activos e
influentes no desenvolvimento deste gnero. Foi nossa inteno igualmente recuar a
criadores que, atravs das suas propostas artsticas ou conceptuais, deram azo a que se
abrissem novos campos de aco que se repercutiram nas correntes estticas do perodo a
que nos referimos, tais como Luigi Russolo, Marcel Duchamp e Erik Satie. Para tal
apoimo-nos, sobretudo, em publicaes de referncia nesta matria, das quais destacamos
alguns autores: Philip Auslander (1987), Renato Cohen (2002), John Glusberg (1987),
Rosalee Goldberg (2001,1981), Arnaud Labelle-Rojoux (1988), Olivier Lussac (2004).
Seguidamente procurmos compreender a influncia deste gnero no contexto portugus,
referindo alguns dos primeiros acontecimentos nesta rea, os seus promotores e
intervenientes. Neste contexto constatmos a recorrncia da interaco da msica com
outras reas artsticas, tais como a poesia experimental e as artes plsticas, facto que nos
levou a realar a aco destas no panorama artstico deste perodo. Em consequncia,
nesta matria, apoimo-nos preferencialmente nos seguintes autores: Eugnio de Melo e
Castro (1977), Ana Hatherly (1981), Ernesto de Sousa (1998).
No captulo II, Elementos performativos na criao musical e no espectculo
multimedia, centrmo-nos no estudo de obras dos compositores Jorge Peixinho e Clotilde
Rosa e do artista plstico Eduardo Srgio, apontando a especificidade de cada um e os
aspectos estticos em que se identificam. Como exemplos paradigmticos desta opo,
escolhemos as obras Rcitation II e Voix de Peixinho, Jogo Projectado I, Jogo Projectado
II e Hellas I e II de Clotilde Rosa e os espectculos intermedia Cuboversuesfera e
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Amagarte de Eduardo Srgio. Para melhor entendimento destas obras no contexto da
criao artstica portuguesa na poca, recorremos aos testemunhos, comentrios e crticas
de algumas das personalidades que acompanharam este processo e sobre ele se
manifestaram atravs dos seus escritos: Mrio Vieira de Carvalho (1978), Manuel Pedro
Ferreira (2007), Jos Machado (2002), Cristina Delgado Teixeira (2006). Faremos
previamente uma referncia s tcnicas de composio da vanguarda musical
internacional, a partir das consideraes de autores como Jean-Yves Bosseur (2000),
Reginald Smith Brindle (1987) Richard Toop (2004).
No nosso objectivo principal realizar uma anlise musical exaustiva das obras
escolhidas, mas sim uma anlise em que se d relevncia ao mesmo nvel msica e aos
outros elementos performativos. Assim, um dos parmetros que nos orientou nos aspectos
essenciais do tema em estudo, foi a anlise comparativa entre as obras referidas de Jorge
Peixinho, Clotilde Rosa e Eduardo Srgio, procurando identificar as tendncias que os
unem e destacar os traos especficos da orginalidade pela qual se distinguem. Com efeito
enquanto Jorge Peixinho, desde sempre fascinado pelos aspectos plsticos e teatralizantes,
desenvolve em simultneo tcnicas de escrita musical de complexidade profunda;
enquanto Clotilde Rosa sente uma afinidade intrnseca pelo movimento coreogrfico e
pela poesia, procurando traduzi-la por uma gestualidade que, ligada execuo musical, a
vai tornar ainda mais significante; com Eduardo Srgio a partir do seu sentido plstico e
visual que, em estreita unio com a tendncia para igual amor pela palavra, se torna por
escolha um msico assumido tanto na criao como na execuo dos sons com que
complementariza as suas propostas de criao cnica.
A pesquisa a que nos dedicmos no mbito do presente gnero, bem como a nossa
experincia pessoal a que j nos referimos, no nos pde deixar indiferentes a outras
produes de compositores portugueses e de outras nacionalidades que se dedicaram com
maior ou menor sucesso criao de msica na linha da contemporaneidade de ento.
Como mencionarei mais tarde, relembramos de imediato nomes como Karlheinz
Stockhausen, Luciano Berio, Maurcio Kagel, Vinko Globokar, entre outros, pelo
desenvolvimento que imprimiram ao gnero; e ainda Gyrgy Ligeti que aplicou alguns
dos novos processos na criao de uma pera de caractersticas inovadoras. Tambm em
Portugal a produo deste tipo de obras se alarga, algumas das quais com sinais de
identificao com as que foram objecto da nossa escolha. O experimentalismo neste
perodo da criao artstica nem sempre foi bem compreendido e valorizado. Isso no
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impede que dentro desse movimento muitas obras fossem criadas de forma estruturada,
com cdigos prprios e com elevada exigncia na execuo, de forma a torn-las num
meio privilegiado de comunicao com pblicos receptivos inovao. Realando a
circunstncia de uma necessidade de compr com interferncia directa na sociedade a que
se dirige, parece-nos pertinente a seguinte afirmao de Susan McClary (Leppert and
McClary 2006, 18):
The ways in which one composes, performs, listens, or interprets are heavily influenced
by the need either to establish order or to resist it.
Para alm das razes citadas, as preocupaes de ordem social e interventiva que
estas obras reflectem, so tambm aspectos preponderantes da minha opo no
aprofundamento deste estilo, o qual veio a exercer uma enorme influncia nas obras do
gnero opertico que emergiram no final do sculo XX, princpio do sculo XXI em
Portugal.
Para a concretizao dos objectivos descritos procurmos pesquisar e reunir fontes
de vrios tipos: escritos dos artistas das reas em estudo, partituras de obras musicais que
incorporam elementos performativos, iconografia e materiais udio e vdeo da poca,
artigos em revistas especializadas e em catlogos de exposies, programas de concertos e
de festivais, assim como bibliografia especfica. Esta pesquisa foi feita na Biblioteca
Nacional, na Biblioteca de Artes da Fundao Gulbenkian, na Hemeroteca Municipal de
Lisboa, na Biblioteca do CESEM e em arquivos particulares. Foram igualmente realizadas
entrevistas com personalidades representativas como Clotilde Rosa, Eduardo Srgio,
Catarina Latino, Jos Lopes e Silva, Paulo Brando, Mrio Vieira de Carvalho e Maria
Joo Serro. Esta recolha de materiais e a sua seleco foi essencial para determinar os
contedos e a forma estrutural que imprimimos a esta dissertao.
A concluso ser elaborada a partir desta configurao dos elementos enunciados
que, para alm dos dados que descriminaremos, nos deixar espao para continuar a nossa
pesquisa no mbito deste tema.
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CAPTULO I
A PERFORMANCE NAS DCADAS DE 60-80 NO SCULO XX
Understanding of a texts original historical-cultural
context is both an end to itself and a means of determining
where we are in relation to where we have been.
Michael Klein1
I. 1. O conceito de performance: elementos histricos e estticos
A palavra performance tem diferentes significados consoante os contextos e a
poca onde a encontramos aplicada. No Dicionrio da Lngua Portuguesa, da Porto
Editora, esta palavra tem entrada com a grafia inglesa anglicanismo que reflecte a
adopo do seu uso corrente na nossa lngua e associada a desempenho,
realizao, proeza, e igualmente a actuao, a qual consideramos ser a melhor
traduo para esta palavra no contexto do campo artstico. De notar que existe
igualmente neste dicionrio uma entrada para a palavra performer, como sinnimo de
executante, intrprete, actor, artista e msico. A este propsito Ernesto de
Sousa comentava, em 1979 (1998, 182):
Performance. Primeiro a palavra. Questo para os puristas da lngua, tem at havido
protestos pelo uso imoderado de palavras e ttulos anglo-saxnicos. Em tempo foi o
francs e muitos desses protestos se justificam. (Entretanto j se esqueceu que Mozart
utilizava o italiano para as suas obras, e que um rei-poeta castelhano escreveu em
portugus...?). Claro que estas adopes e utilidades de lnguas-outras no so inocentes
e esto entrelaadas tambm com a histria do poder: actualmente h uma resignao
universal, sobretudo no domnio das 'vanguardas' estticas quanto s denominaes
inglesas. (...) Mas quanto palavra performance a histria mais complexa: adoptada
no mundo dos espectculos ou do desporto anglo-saxo, a sua origem latina, italiana:
per formare, atingir de novo a forma, como numa afirmao platnica; a forma (ideia)
existe antes da sua realizao (...).
1 2005, Intertextuality in Western Art Music, Bloomington: Indiana University Press.
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Parece-nos curioso que no Grove Dictionary of Music and Musicians
performance seja unicamente considerada enquanto acto de execuo e de interpretao
da msica ao longo dos sculos, no se fazendo qualquer referncia ao seu significado
especfico enquanto expresso artstica nos movimentos de vanguarda das dcadas de
60 a finais de 80 do sculo XX que se manifestaram intensamente nos Estados Unidos,
no Japo e na Europa. Enquanto que tal facto nos parecia de algum modo compreensvel
na edio de 1980, pela sua proximidade temporal com estes eventos, parece-nos uma
lacuna importante o facto de continuar a no ser mencionada essa ligao na edio de
2001. S o podemos entender pela dificuldade de uma definio que abranja os
mltiplos sentidos conotados com esta palavra performance embora, no sentido
restrito, se pudesse circunscrever a uma definio como gnero artstico pluridisciplinar.
Estando conscientes que a definio de conceitos nos leva utilizao de outros
conceitos, parece-nos muito relevante a ideia desenvolvida por Schopenhauer de
conceito enquanto campo semntico. Nesta ideia o filsofo compara o campo semntico
com um territrio definido por um crculo; cada crculo corresponde a um determinado
conceito e interage com outros crculos (outros conceitos) porque no completamente
independente e autnomo: em maior ou menor proporo ele contamina, contm ou
coincide com outro. Como refere Ernesto de Sousa, o conceito faz-se e refaz-se em vez
de ser um dado inicial. E com esta viso em mente que tentaremos problematizar o
conceito de performance.
Conforme afirma Roselee Goldberg (1998,12) o termo performance no
preciso, nico e definitivo. De algum modo esse termo permevel a interpretaes, por
tantos e to diferentes serem os artistas e as obras por estes produzidas com recurso a
tcnicas e a materiais pertencentes s mais variadas reas artsticas artes plsticas,
poesia, teatro, msica, dana, fotografia, cinema e tecnolgicas modos de
captao, utilizao e difuso de som e imagem.
Para esta autora, assim como para Renato Cohen (2002) e para Ernesto de Sousa
(1998) entre outros, a performance est ligada a um movimento mais abrangente e a
uma forma de se encarar a arte: a live art a arte ao vivo, mas igualmente a arte viva;
uma arte onde se busca uma aproximao directa com a vida, em que se estimula o
espontneo e o natural em detrimento do elaborado e do ensaiado e que, segundo
Renato Cohen (2002, 137) se insere num movimento de ruptura que a pretende
dessacralizar, retirando-lhe a sua funo puramente esttica e elitista. Esta forma de arte
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comporta uma rede de conceitos e de manifestaes criativas que, a partir dos anos 50
do sculo XX, tiveram origem primeiro nas artes plsticas e depois no teatro e na
poesia: esttica moderna, vanguarda no-arte, arte para todos, arte da vida, body art,
land art, live painting, live theatre, action-art, poesia concreta, poesia sonora... Estas
manifestaes emergem em fases sucessivas nos vrios continentes.
A ideia de arte aco em ruptura com a arte monumento (nas palavras de
Ernesto de Sousa), a qual motiva uma colaborao intensa entre artistas de reas
diferentes, no surge na segunda metade do sculo XX, mas sim no incio desse sculo,
na Europa.
Com efeito nessa altura que iro despontar diversos movimentos artsticos que
agrupavam pintores, poetas, msicos, que se encontravam em seres onde se realizavam
concertos, onde se recitava poesia, onde se liam manifestos e se defendiam concepes
de criao artstica, dando muitas vezes azo a escndalos e mesmo a cenas de
pancadaria.
Assinalamos aqui alguns movimentos que deram sinais de provocao, de
destruio das normas estabelecidas, de questionamento das estticas vigentes que,
atravs de divergentes processos iro dar origem a aces e realizaes que sero
retomados e desenvolvidos na segunda metade do sculo XX.
Na dcada de 1910, o movimento futurista, de Marinetti defendia uma
radicalizao dos conceitos de arte, realizando manifestaes que criavam polmicas e
que se queriam provocadoras; em 1916, aberto o Cabaret Voltaire, em Zurique, por
Hugo Ball e Emmy Hennings, no qual germinar o movimento Dada, integrando artistas
como Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck, Rudolf von Laban, Jean Arp, entre outros, e
que, aps cinco meses, se espalhar por toda a Europa, passando Paris a ser o eixo
central da sua actividade; em 1917, dois espectculos estreiam em Paris com grande
impacto junto do pblico e da crtica: Parade, bailado de avant-garde, de Cocteau, para
os ballets russes de Diaghilev, com msica de Satie, figurinos de Picasso e uma nota de
programa de Apollinaire na qual, pela primeira vez, aparece a palavra surrealista; e Les
mamelles de Tirsias, de Apollinaire, cujo tema da pea causa escndalo2. O conceito de
dana e de encenao ser revolucionado por estes espectculos. Igualmente em 1917
lanada a revista Littrature, por Andr Breton, Paul luard, Philippe Soupault e Louis
2 Uma mulher que, cansada da sua condio de mulher, se transforma em homem e abandona o lar; o
marido, por seu lado, d luz 40049 crianas.
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Aragon, que marcar o incio do movimento surrealista; este tinha como objectivo
realizar actos de provocao ao pblico, atravs do escndalo. Segundo Renato Cohen
(2002, 98) o movimento surrealista ataca com veemncia o realismo no teatro,
apresentando espectculos com elementos inovadores, como peas sem texto,
personagens-cenrio fantsticos, multides representadas numa nica personagem.
Estas peas acontecem tanto em teatros como em demonstraes de rua.
Paralelamente ao surrealismo, na Bauhaus, fundada por Walter Gropius, vo-se
desenvolver experincias cnicas importantes que se propem integrar, de um ponto de
vista humanista, arte e tecnologia. Oskar Schlemmer, responsvel pela seco de artes,
cria espectculos como o Triadisches Ballet (1922)3. Neste bailado, com msica de Paul
Hindemith, o bailarino transformado em pura forma geomtrica em movimentao,
pelo aco das mscaras e dos figurinos utilizados, concebidos sobre modelos
elementares das formas plsticas (esfera, cubo, cilindro, espiral), a que a Bauhaus deu
particular relevncia. Segundo Schlemmer, citado por Hatherly (2009, 30):
(...) o sentimento corporal acentuado e modificado de uma maneira decisiva. Pode
dizer-se que nestes figurinos mais o traje que enverga o bailarino do que o bailarino o
traje... O fato mais ou menos rgido, a mscara mais ou menos total, so, pelos seus
efeitos, semelhantes s armaduras do soldado que o torna tanto mais consciente de si e
herico quanto mais completa e pesada ela for.
A Bauhaus ser fechada em 1933, com a subida do nazismo ao poder e, a partir
desta data, o eixo principal desta escola deslocar-se- da Europa para os Estados
Unidos, onde se ir desenvolver posteriormente o happening.
Segundo Peter Brger4 (1993, 122) o movimento de vanguarda do incio do
sculo XX rompeu de forma radical com a tradio da arte na sua totalidade, a que
chama obra de arte tradicional. Com efeito, o autor designa esta obra de arte como obra
orgnica porque ao procurar dar uma viso de globalidade, os seus elementos
constituintes s tm sentido quando integrados no todo; em contrapartida, considera que
na arte de vanguarda, por ele designada de obra inorgnica, s em sentido figurado se
pode falar de totalidade da obra, uma vez que as suas componentes possuem um grau
3 Apresentaes experimentais deste bailado foram realizadas, em 1916, por Elsa Hotzel e Albert Berger.
4 Autor que considera que a vanguarda surge como uma instncia autocrtica da estrutura social em que a
arte se d.
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elevado de independncia, podendo ser interpretadas tanto em conjunto como em
separado: a obra montada em fragmentos; segundo o autor, a inteno dos
movimentos histricos vanguardistas foi a destruio da instituio arte enquanto obra
separada da praxis vital; e a provocao do pblico, atravs de um efeito de choque,
com o objectivo de o levar a interrogar-se sobre a sua prpria concepo do mundo e de
si mesmo, criando-lhe uma necessidade de modificao de comportamentos.
Parece-nos ainda interessante a reflexo que faz sobre as manifestaes criativas
dos anos 1950/60, os happenings, a que chama neovanguardistas (Brger distingue
vanguarda primeira metade do sculo XX e neovanguarda incio da segunda
metade desse sculo) e que considera serem um retorno arte como instituio e
restaurao da categoria de obra de arte, logo, um reflexo de um fracasso das intenes
do movimento de vanguarda: com a repetio, o efeito de choque deixa de provocar
surpresa, tornando-se esperado pelo pblico que j no afectado com igual impacto.
Pelo contrrio, ele vai consumir esse efeito. A ateno do pblico passa da tentativa
de captao do sentido da obra atravs da leitura das suas partes, simplesmente para o
seu princpio de construo. Ou seja, numa fase ps-vanguardista (segunda metade do
sculo XX) aplica-se com fins artsticos os processos anteriormente concebidos com
inteno anti-artstica: criam-se condies para a subsistncia da instituio arte
separada da praxis vital. Citamos Peter Brger (1993, 104):
" Assim, pois, o que referido pela categoria de obra no s restaurado a partir do
fracasso da inteno vanguardista de reintegrar a arte na praxis vital, como ainda se
amplia. O objet trouv, a coisa, que no resulta de um processo de produo individual,
mas o encontro fortuito em que se materializa a inteno vanguardista de unir a arte
praxis vital, hoje reconhecido como obra de arte. O objet trouv perdeu o seu carcter
anti-artstico, transformou-se numa obra autnoma com lugar reservado, como as
outras, nos museus."
Consideramos que o processo que Brger refere, de reaco e de rebelio ao
institucional atravs da procura de um instrumentarium e de formas inovadores e a sua
posterior assimilao por esse mesmo meio institucional, um processo cclico que se
repete ao longo dos tempos. Contudo, no sculo XX vai-se mais longe na concepo de
Arte, elevando por um gesto de intencionalidade objectos do quotidiano a objectos
artsticos. Como do conhecimento geral, este processo de ruptura radical foi
inicialmente concretizado por Marcel Duchamp e influenciou decisivamente todo o
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pensamento sobre Arte neste sculo. A este propsito citamos Labelle-Rojoux
(1988,12):
Retour donc Duchamp, oui, Duchamp, parce que Oui parce que, parce que cest
ainsi: tout tourne, autour de Duchamp, Duchamp, oeil de cyclone, pe Dada multi-
spires. Duchamp, pav dans la mare. Avec lui apparat une succession danneaux dans
leau, leau trouble: Nouveau Ralisme, happenings, pop art, Fluxus, art conceptuel,
body art, Arte Povera...
Num comentrio menos irnico e mais afirmativo quanto aos meios
determinantes de uma nova semntica, Ernesto de Sousa diz (1998, 92):
Os bigodes que Duchamp ps na Gioconda no foram apenas o resultado de uma
atitude de irreverncia, mas o comeo da grande libertao semntica que preside s
novas cincias humanas e nomeadamente semiologia; a queda definitiva dos cones e
a sua elevao a componentes de uma linguagem que se pretende enfim libertada,
potica.
No que diz respeito matria musical tambm uma nova atitude e novos
conceitos vm permitir a ideia exposta por Brger de unir a arte praxis. Nesse
contexto no podemos deixar de referir as ideias de Luigi Russolo (1885-1947) acerca
do som-rudo quando considera que os sons da vida moderna da poca, ligados aos
rudos dos meios urbano e industrial, afectam a percepo da escuta do ser humano,
ampliando-a, devendo assim passar a fazer parte integrante da msica. Estas ideias so
defendidas em pormenor no seu manifesto LArt des bruits, publicado em 1913.
De igual importncia foi o contributo de Erik Satie (1866-1925) para uma nova
viso da msica. Com efeito Satie foi uma personalidade parte na criao musical do
sculo XX tendo sentido a necessidade de colocar a sua arte, ainda num perodo em que
manifestava um vocabulrio relativamente reduzido, ao servio de uma convico, de
uma causa esttica que implicava um grande esprito de ironia. Ele no se contentava
em criar apenas a msica, mas fazia-a acompanhar de palavras, de manifestos. Esta
tendncia manifesta-se igualmente nos ttulos que escolhe para as suas obras,
frequentemente peas curtas, nas quais ele faz anotaes burlescas para a sua execuo
ou onde inclui pequenos poemas de carcter humorstico. Numa breve passagem da
biografia de Erik Satie descrita no Dictionnaire de La Musique Larousse (Serres-
Cousinet 1987) faz-se uma referncia ao facto de Satie ter aberto a via a inovaes
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estticas sobre as quais outros desenvolvero as suas carreiras, mantendo um carcter
mais ligeiro nas suas prprias composies, tais como msica de fundo, a que chama
Musique dameublement; msica grfica e conceptual, com partituras caligrafadas e
acompanhadas de desenhos e de poemas que ele probe de serem lidos em voz alta
(Sports et divertissements, 1914); msica de colagem, com citaes, efeitos realistas e
com rudos (Parade, 1917); msica ininterrupta, de meditao (Vexations,1893), etc.
Acentuando estas caractersticas de Satie, Olivier Lussac (2004, 148-149) afirma:
Non seulement il est le crateur de nombreuses musiques pour la danse, mais il est trs
vite intgr dans le groupe dadaste de Zurich, suite au scandale de Parade, dans lequel
il place des trompe-loreille, sirne, roue de loterie, machine crire. Cocteau a
compar les bruits de Parade a des fragments de ralit. (...) il [Satie] droute, imposant
des textes ne pas lire et en demandant de jouer pendant dix-huit heures um motif
vexatoire, ou encore en diffusant une musique quil interdit dcouter. (...) La Musique
dAmeublement de Satie est donc le fond sonore de toute lactivit humaine:.
Estas duas personalidades, Russolo e Satie, juntamente com Marcel Duchamp,
so referenciadas por Olivier Lussac no seu livro Happening & Fluxus (2004) como
precurssores destas novas formas artsticas, e como tendo influenciado decisivamente
as ideias e a concepo esttica de John Cage. Com efeito, Lussac afirma (2004, 141):
Cage a port llan crateur de Russolo son terme logique, en proposant que tout son
puisse tre utilis en musique. Les sons ne ncessitent pas dtre oganiss par un auteur
ou par une intention, il suffit simplement que quelquun les coute. Cette nouvelle
apprhension de la musique a permis dlargir, aussi loin que possible, le champ du
domaine sonore.
E ainda, citando Cage no seu texto James Joyce, Marcel Duchamp, Erik Satie:
un alphabet5, a propsito da msica de fundo (Musique dameublement) :
Il nous faut mettre en oeuvre une musique qui soit comme du mobilier, cest--dire
une musique qui puisse faire partie des bruits de lenvironnement, qui en tienne compte.
Je la conois mlodique, tamponnant les bruits des cuillres et des fourchettes, mais
sans les dominer, sans quelle simpose. Elle comblerait ces silences lourds qui se
glissent parfois dans un groupe damis qui dnnent ensemble. Elle leur viterait davoir
entendre leurs propres banalits. Et puis elle neutraliserait ces bruits de la ville qui
5 Texto de introduo da pea para radio com o mesmo ttulo, de 1982, com msica de Mykel Rouse.
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sinfiltrent avec tant dindiscrtion dans les conversations. Une telle musique rpondrait
un besoin rel. (Lussac 2004, 148).
Lussac depreende assim que, para Cage, todos os sons podem ser utilizados
musicalmente e que no necessitam de serem organizados com uma inteno especfica.
Eles s necessitam de ser escutados. E considera que a nova viso musical, trazida por
Russolo e Satie, alarga consideravelmente o espectro sonoro que ir abranger o que, at
a, era considerado dissonncia e rudo, abrindo uma via de explorao sonora e
tmbrica que continuar a ser explorada ao longo da primeira metade do sculo XX, em
diversos centros experimentais, tanto nos Estados Unidos como noutros pases (Frana,
Itlia, Alemanha, Japo...)6.
Continuando a expressar as ideias de Olivier Lussac, estes centros experimentais
desenvolviam a sua pesquisa em dois vectores principais: por um lado exploravam a
organizao do som atravs de todos os meios disponveis ao seu alcance
osciladores, geradores, amplificadores de som e, por outro lado, exploravam uma
prtica extra-musical teatro, dana, filme.
Para John Cage esta prtica extra-musical, igualmente determinante na sua
concepo de arte e nas suas obras, sendo referenciada no seu texto The Future of
Music: Credo, de 19377. Os princpios da msica experimental esto assim definidos,
assim como os da performance.
Ligado a este pensamento e s experincias de John Cage patentes nos seus
seminrios na New School of Social Research e no Black Mountain College, surgiu, na
dcada de 1950 uma nova aco performativa, a qual tem origem num evento realizado
em 1952 por Cage, em conjunto com artistas de outras reas e a que chamou Untitled
Event. Merce Cunningham descreve esse acontecimento da seguinte forma:
6 Em Nova York, as experincias feitas por Cage e os seus discpulos, por exemplo, o Project of Music
for Magnetic Tape, primeira experincia americana de produo de msica para banda magntica com
tcnicas de colagens de sons manipulados; a abertura de vrios estdios, normalmente ligados s rdios,
de msica concreta em Paris e de msica electrnica em Colnia e em Milo.
7 In http//:www.ele-mental.org/ele_ment/said&did/future_of_music.html, 28/07/2009. Este texto foi
apresentado numa comunicao em Seattle, em 1937, mas s foi publicado em 1958, acompanhando o
disco produzido por George Avakian, Cages 25-Year Retrospective Concert, integralmente composto
de peas do compositor, escritas entre 1934 e 1958. (Texto completo no anexo I).
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En 1952, Cage organiza un vnement thtral dun genre nouveau au Black Mountain
Summer School. David Tudor jouait du piano, Mary Carlyn Richards and Charles Olsen
lisaient de pomes. Les tableaux blancs de Robert Rauschenberg taient accrochs au
plafond. Ce dernier passait des disques. Cage parlait, je dansais. La pice avait une
dure de 45 minutes (...) Le public tait assis face face au milieu de la scne, et
aucun spectateur ne pouvait directement observer tout ce qui se passait. (Lussac 2004,
155-156).
Estas novas aces multiplicam-se a partir do final dos anos 50 e so designadas
happenings por Allan Kaprow, em 1957. Concretizado fora dos espaos habituais de
representao e de concerto, comportando uma forte componente de elementos de
improvisao, o happening utilizava recursos de diferentes disciplinas artsticas,
conjugados com um certo sentido de teatralidade. Aqui, a arte no se queria separada da
vida do quotidiano, e eram utilizados como materiais objectos utilitrios que se
elevavam categoria de objectos de arte. Em resposta questo do que um
happening, o compositor Giuseppe Chiari (1966) acrescenta a seguinte definio:
Quest-ce quun happening? Assumer un acte qui saccomplit dans la vie quotidienne,
habituellement, distraitement, presque sans sen apercevoir, comme un acte signifiant.
Com um carcter efmero, construdo no momento para aquele momento, este
acto criativo era igualmente inovador no modo de considerar a relao com o pblico,
interagindo com este com o objectivo de o motivar para uma participao activa e
tentando romper com a sua tradicional passividade de elemento essencialmente
receptivo, ou seja, provocando a anulao das diferenas entre actor e espectador.
Quebrando a barreira do palco, levando a arte para a rua, com uma estrutura
fragmentada, defendendo a ideia que a arte deve ser feita por todos e classificando-se
pelos prprios intervenientes como no-arte para se diferenciar do conceito de arte
tradicional, o happening vai-se alimentar do que se produz nas diversas artes teatro
ritual de Artaud, teatro laboratrio de Grotowski, teatro dialctico de Brecht, a nova
dana de Martha Graham e de Merce Cunningham entre outros e ir dar origem ao
movimento Fluxus, o qual, encabeado por artistas como John Cage, Allan Kaprow,
George Maciunas, Robert Filliou, Wolf Vostell, Dick Higgins, entre muitos outros, ir
divulgar esta esttica por todo o mundo, difundindo o seu carcter de criao colectiva e
permanente de festa. Este movimento completou um crculo que, tendo sido iniciado na
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Europa no incio do sculo e exportado para os Estados Unidos atravs de artistas em
fuga da situao poltica dos anos trinta (fuga ao nazismo), retoma nesta altura o
caminho inverso, em direco Europa.
O conceito de happening est subjacente ao conceito de performance, sendo que
esta se desenvolve, sobretudo, a partir do campo das artes plsticas. Com efeito, sero
fundamentais as experincias de action painting desenvolvidas por Jackson Pollock, e a
sua ideia que o artista deve ser o sujeito e o objecto da sua obra. O acto de pintar e os
movimentos fsicos que o concretizam tornam-se objecto e aco artsticos. No acto de
pintar, o corpo e a movimentao ganham importncia e so encenados pelo artista o
corpo-instrumento ligado dimenso espao-tempo8. A partir da dcada de 1970 a
performance afirmar-se- como uma arte cnica onde se vivenciam experincias mais
estruturadas e desenvolvidas conceptualmente que no happening e onde se incorporam
dois factores: o ponto de vista plstico, com supremacia da imagem, e a integrao de
tecnologia microfones, vdeo, projeces; arte que se queria integrante e que
pretendia romper com as fronteiras acadmicas disciplinares.
Renato Cohen (2002, 199) compara a ideia de interdisciplinaridade como meio
de construo da arte total em Wagner e em Bob Wilson, considerando que na
concepo de pera wagneriana esse processo de utilizao de diferentes linguagens
realizado de um modo harmonioso e linear, enquanto que na pera encenada por Bob
Wilson, realizada uma fuso das linguagens, de um modo no linear, por justaposio
e colagem, cada elemento sofrendo um desenvolvimento autnomo, embora interactivo.
Assim, Cohen considera que a estrutura da performance construda sobre uma
linguagem hbrida, cnico-teatral e mixed-media, privilegiando-se uma ou outra
conforme a formao e a preferncia do artista. Este autor afirma ainda que a
performance, contrariamente ao teatro tradicional, no se estrutura numa forma
aristotlica com comeo, meio e fim e com uma linha narrativa mas antes uma
criao que se desenvolve atravs da justaposio de elementos, de colagem e de
encenao. Por seu lado, Ernesto de Sousa (1998, 60-62) no seu artigo Os 100 Dias da
5 Documenta, esquematiza alguns pontos que considera importantes para a definio
de anti-arte/ no arte/ contracultura: o fim de tabus formais; a utilizao catrtica do
riso, valor potico numa linhagem surrealista; a eliminao da distncia entre o criador e
8 Conceitos exaustivamente desenvolvidos por Laban, e ainda hoje aplicados nas prticas do movimento.
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o espectador; a libertao formal e uma maior penetrao do quotidiano atravs da
utilizao dos objectos e dos respectivos conceitos; a valorizao do efmero; o
repensar tudo o que nos envolve at investigao sistemtica (a arte dos sistemas); o
estudo do prprio corpo: body art; o exerccio da liberdade como experincia ou jogo: a
valorizao do clown e do brinquedo a ludificao; a utilizao consciente e prtica,
distanciada da utopia, logo como no-utopia; a investigao de tempo existencial:
fotografia aleatria, cinema a tempo inteiro; o estetizar da investigao autobiogrfica.
Annemieke Van de Pas, no programa do Festival Internacional de Arte Viva:
Alternativa 29, realizado em Almada, em 1982, considera que a performance uma
forma de expresso mais vulnervel e mais discutvel que outras formas teatrais ou
artsticas pelo lado efmero dos seus meios e da sua expresso. O mago de uma
performance sempre formado pelo investimento do corpo do artista, cuja presena se
define em relao com os movimentos e a aco que apresenta. Os gestos premeditados
ou espontneos, acompanhados pelo investimento total do corpo e da sua inteno
podem integrar-se num mundo de performances atravs da distanciao abstracta e
simbolizante que se estabelece na mente. Enquanto que a performance em si se afirma
como uma linguagem prpria, situando-se entre a arte, o teatro, a poesia e a vida:
"Comparada s lnguas antigas como a humanidade do teatro e da arte, a performance
possui ainda a frescura de uma linguagem que acaba de ser criada. Uma linguagem
directa, instantnea e varivel, que corresponde nossa poca e cujas possibilidades
deveriam ser exploradas ao mesmo nvel que o teatro, a arte ou a literatura."10
Mas a performance vai manter a ideia de radicalidade e a linguagem de
experimentao j existentes nos happenings da dcada anterior, assumindo-se como
uma arte de interveno e de transgresso, que tinha como objectivo provocar uma
transformao no espectador/receptor. Esta transformao pretende-se que seja
resultante duma atitude provocatria destes eventos, na medida em que dificilmente o
receptor fica indiferente, pelo carcter inesperado, anacrnico e at por vezes um pouco
contundente destas manifestaes. Elas pretendem contrariar a passividade e o
conformismo frequentes do pblico de espectculos convencionais. No que nos diz
9 Este festival, organizado por Egdio lvaro, realizou-se consecutivamente em Almada em 1981, 82 e
83: Alternativa 1, 2 e 3, reunindo artistas de vanguarda nacionais e internacionais.
10 In Programa do Festival Internacional de Arte Viva: Alternativa 2, 1982.
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respeito, pressupomos ainda que essa transformao se possa dar igualmente na forma
de sentir de cada um, na medida em que coloca novos questionamentos atravs deste
tipo de interveno artstica.
Segundo Ernesto de Sousa (1998, 21):
(...) a verdadeira criatividade (que sempre moderna e no tropea no meio das
imitaes) sempre tambm geradora de instabilidade e precisamente pe em causa a
cidade, a casa, a parede, at ao escndalo e at crueldade muitas vezes. Precisamente
para que tudo se reformule polemicamente e de novo se recomece pavorosamente
(sagradamente) a estar-no-estar, a ser-no-ser... a acelerao das vanguardas necessria
e explica-se por a e no por uma pretensa procura de originalidade.
Assinalamos ainda a importncia de duas preocupaes que perpassam nos
escritos de vrios criadores de performance. A preocupao de comunicao com o
pblico, a ideia de dilogo constante, e a preocupao de uma nova pedagogia, a ideia
de uma arte necessria a arte deve ser feita por todos a pedagogia pela arte. Neste
ponto podemos referir Filliou, o qual, citado por Ernesto de Sousa (1998, 40), dizia que
exercer o gnio precisamente comear. Ensinar e aprender valorizando a intuio,
ensinar e aprender com objectivos de ordem esttica, atravs de um apelo constante
criatividade e a uma pedagogia activa; Filliou foi responsvel pelo livro colectivo
Ensinar e Aprender com as Artes da Aco... Happenings, Jogos, Charadas,
Entretenimentos e Outras Partidas.
Ainda com uma preocupao da arte como pedagogia, Ernesto de Sousa
(1998,155) afirma:
Ao no aceitar as relaes culturalizadas e mortas do sistema, a vanguarda esttica
ope-lhe um certo nmero de operaes e paradigmas recriadores do estar-no-mundo,
um novo vocabulrio, uma nova pedagogia. Tudo isto ainda muitas vezes confuso e
mal definido, mas fremente de vida, tudo indicando que estamos no incio de uma
grande poca criadora.
Esta perspectiva de performance vai influenciar determinantemente toda a
reflexo esttica sobre arte e pedagogia, tal como parte da produo artstica durante e
aps as dcadas de 1960 a 90. Segundo Chantal Pontbriand, citada por Olivier Lussac
(2004, 208):
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Les notions de performance et de processus ont contribu changer
considrablement le sens du temps et de lespace dans lart de ce sicle et ont amen
avec elles une comprhension de lart et du monde diffrente. (...) Leffet de flux
constant engendr par les nouvelles oeuvres a loign lart de la reprsentation pour
montrer ce quil y a dirreprsentable : soit lentre-deux des choses, ce qui se passe,
ce qui transite dans notre apprhension de la vie, ce qui souvent demeure infix, ou
infixable par les moyens traditionnels de visualisation et de reprsentation. (...) Les
nouvelles formes dart nous laissent voir lentre-deux, lespace entre, lespace sans
nom.
Gostaramos ainda de referir a importncia do gesto e do movimento, da palavra
e do texto e da sua desconstruo grfica e fontica, a inter-aco com o pblico, a
preocupao de comunicao e de dilogo, a concepo dos elementos cnicos como
personagens que se autonomizam, o desenvolvimento da tecnologia do som e da
imagem em estreita relao e aplicao criao artstica, todos estes factores vo estar
presentes, em maior ou menor grau, posteriormente, nas criaes de dana, de msica,
de poesia, de artes plsticas, de teatro, de vdeo, de fotografia, de cinema e no prprio
conceito de instalao, atravs do recurso a uma interdisciplinaridade,
independentemente das catalogaes que sero feitas: teatro gestual, teatro musical,
dana-teatro, nova dana, etc.
a esta concepo que nos referiremos quando mencionamos a palavra
performance ao longo deste trabalho, tal como era concebida no espao temporal das
dcadas de 1960-1980.
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I. 2. A performance em Portugal: contextualizao
Arte e no-arte. Arte e vida. Participao. Autor, actor,
espectador. Obra de arte e acto esttico. Todas estas categorias
sabemos isso depois dos modernismos todos e depois dos depois-
do-modernismo pertencem ao mesmo sistema de vasos
comunicantes.
Ernesto de Sousa11
Portugal, apesar do regime de ditadura em que vivia, est atento ao resto da Europa
e uma nova gerao de artistas torna-se receptiva s ideias estticas, por exemplo, do
movimento Fluxus, atitude que criou uma ruptura com a gerao anterior, muito marcada
pela a influncia do movimento surrealista francs. Esta ruptura, de ordem esttica,
relaciona-se com a ideia de levar a arte para a rua, retirando-a das instituies
dominantes e, sobretudo, rompendo com os processos vigentes de criao. Pelo facto de se
ter dado uma mudana no regime poltico portugus, criando-se a expectativa de uma
abertura maior ao conhecimento da vida cultural no exterior, mudana personificada na
figura de Marcelo Caetano, que assumiu a governao do pas em 1968, foi facilitada a
assimilio dos novos movimentos emergentes, tambm em Portugal, a partir dos anos 70.
Raquel Henriques da Silva (2009,12-17) descreve alguns pontos de viragem
importantes na histria poltica e cultural de Portugal no perodo referenciado.
Nomeadamente aponta algumas instituies e movimentos editoriais criados numa
perspectiva de abertura de conceitos e prticas artsticas, em relao ao perodo
antecedente. Corroborando a sua descrio, cita Sem Plinto nem parede: anos 70-90,
artigo da autoria de Isabel Carlos, onde se l:
a primeira vez que, numa histria geral da arte, se pretende desenhar um esquio para
uma histria da experimentalidade em Portugal, em reas que no as das disciplinas
artsticas consagradas como a pintura e a escultura. . (2009, 13.)
11
in Anos 70 Atravessar Fronteiras, catlogo de exposio, CAM, Lisboa: Fundao Calouste
Gulbenkian, 2009, p.12.
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Raquel Henriques da Silva faz ainda notar, relativamente ao mesmo artigo, que:
Prolongando a anlise at meados da dcada de 80, a autora evoca o experimentalismo
de artistas, grupos e galerias, expresso, por exemplo, na poesia visual e, sobretudo, na
exposio Alternativa Zero, promovida por Ernesto de Sousa, que se prolonga em
rituais, performances, intervenes. Este experimentalismo prolonga-se pela dcada de
80 e chega at 90, numa continuidade no tanto de percursos autorais, mas de conceitos e
derivas. (2009,14.)
Um dos nomes mais representativos em Portugal desse experimentalismo, foi sem
dvida Ernesto de Sousa que, para alm de um criador ecltico, foi tambm um elemento
catalisador de experincias e de encontros, promovendo colaboraes tanto a nvel
nacional como internacional. De notar a relevncia das suas ligaes por laos de
identidade esttica e de amizade com Robert Filliou em Frana e com Wolff Vostell. Este
cria um festival em Malpartida, Cceres, por onde passaro diversos elementos do ncleo
de vanguarda portuguesa12
.
A imagem 1 (p. 19) mostra o programa e um momento de uma performance de
Vostell, em 1985, no Centro de Arte Moderna da Fundao Calouste Gulbenkian, durante
o evento Dilogos Sobre Arte Contempornea que envolveu uma exposio de artes
visuais organizada por Fernando Aguiar, conferncias sobre arte contempornea,
performances, teatro experimental e msica, com a participao de Mauricio Kagel e Les
Percussions de Strasbourg.
12 Recorremos com frequncia a pressupostos da autoria de Ernesto de Sousa por ele ter agido estreitamente
com os criadores portugueses que so objecto deste estudo, criando uma ponte reflexiva entre o que se
produziu neste campo artstico em Portugal e no estrangeiro.
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Imagem 1. Concerto Fluxus, Wolff Vostell, CAM, F.C. Gulbenkian, 1985.
Em Portugal este movimento de vanguarda teve, inicialmente, especial
incidncia nas reas da poesia experimental e das artes visuais. Foram fundamentais os
trabalhos de poetas como Ana Hatherly, E. M. Melo e Castro, Salette Tavares e,
posteriormente, Alberto Pimenta. Consideramos de grande relevncia, pela sua clareza,
o esquema de Melo e Castro (imagem 2, p. 20) onde este representa, associando uma
identidade de terminologias, a ligao da poesia experimental: atravs da poesia
concreta, s artes plsticas espao-superfcie-volume-cor-luz e, atravs da poesia
fontica, msica som-tempo-ritmo-movimento (Castro 1973).
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20
ESQUEMA de Melo e Castro
Imagem 2. Esquema de E. Melo e Castro.
Nas artes visuais, foram de enorme relevncia, entre outras, as intervenes de
Joo Vieira, Helena Almeida, Artur Rosa, Fernando Aguiar, Lourdes Castro, Antnio
Arago, Antnio Sena, Gracinda Candeias. Foi igualmente determinante, segundo o
crtico Rui Mrio Gonalves13
, a aco de divulgao de trabalhos destes artistas atravs
da organizao de exposies e de happenings de Livrarias-Galerias como a Divulgao
(no Porto, com delegao em Lisboa), a Quadrante, a 111, a Diferena (que, na dcada
de 60, teve como director artstico o arquitecto e escultor Artur Rosa).
13
in Anos 60, Anos de Ruptura: Uma Perspectiva da Arte Portuguesa nos Anos Sessenta, catlogo de
exposio, Lisboa Capital da Cultura 94, Palcio Galveias, Lisboa: Livros Horizonte, pp. 168.
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21
Foi na Galeria Divulgao, em Lisboa, que, em Janeiro de 1965, aconteceu o
primeiro happening portugus, o Concerto e Audio Pictrica, relacionado com a
exposio VISOPOEMAS, de poesia experimental (Imagem 3, p. 22).
Organizaram e participaram nesta aco Antnio Arago, E. M. Melo e Castro,
Salette Tavares (poetas), Manuel Baptista, Jorge Peixinho (compositor), Clotilde Rosa e
Mrio Falco (harpistas).
Melo e Castro fundamenta esta aco num texto em que defende o happening
como uma forma de teatro total, com fontes prximas do teatro futurista, Dada e da
Bauhaus, e onde cita Al Hansen: "Para mim os happenings so a arte do nosso tempo.
Neles eu fico comprometido com problemas de comunicao e de educao." (Castro
1977, 61). Considera ainda que esta manifestao criativa tem como objectivo claro:
(...) a desobstruo das vias da comunicao entre os indivduos e, simultaneamente,
o suprir dos efeitos de uma educao convencional, em que os indivduos so ao
mesmo tempo esmagados e mantidos em estado de incomunicao nos seus cacifos,
tal como ovos num tabuleiro compartimentado. (Castro 1977, 62).
E defende o hapenning como uma forma activa de contestao das foras que
contrariam e evitam que os seres humanos usufruam plenamente da sua vida, ou seja,
que participem, comuniquem, se desenvolvam, se conheam e conheam os outros.
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Imagem 3. Programa do Concerto e Audio Pictrica, Galeria Divulgao, 1965.
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Este primeiro hapenning provocou uma onda de polmica nos jornais lisboetas da
poca, o que levou Melo e Castro a comentar:
E creio que ainda haver pessoas ressentidas com o esbanjamento de 'talento' que
nessa noite realizou Jorge Peixinho, ao tocar violino com uma arma de fogo, ao beber
champagne por um bid, etc., etc., ou ento Salette Tavares a cantar esganiada uma
ria cri-cri-cri-crtica, ou Antnio Arago dentro de um caixo, ou at Melo e Castro
(eu) a tocar msica com instrumentos (chocalhos) silenciosos e a agredir as pessoas
com focos de 1000 Watts!!! (Castro 1977, 63).
Em Abril de 1967, outro happening se realizou, desta vez na Galeria Quadrante,
a Conferncia-Objecto (Imagem 4), ligada exposio de Operao-I, poesia concreto-
estrutural e publicao da revista com o mesmo nome, da qual s sairiam os dois
primeiros nmeros: Operao-I e Operao-II (Imagem 5, p. 24).
Organizaram e participaram: Ana Hatherly, E. M. Melo e Castro, Jos Alberto
Marques e Jorge Peixinho; a apresentao foi feita por Jos Augusto Frana.
Imagem 4. Programa da Conferncia Objecto, Galeria Quadrante,1967.
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Imagem 5. Capa da Revista Operao I e II, 1967, de Joo Vieira.
Segundo Hatherly e Melo e Castro (1981,79) um dos propsitos deste evento era
fazer uma demonstrao da desmontagem sistemtica das metforas e de todas as
convenes/regras do discurso que, segundo os prprios, se haviam tornado
completamente ineficazes e representavam uma instalao nos hbitos literrios
tradicionais. Esta conferncia foi concebida como um objecto, uma enorme metfora
viva, com recorte formal, espacial e temporal, definido e previamente elaborado, mas,
ainda segundo estes autores, tambm bastante aleatrio no seu significado final, na
medida em que muito dependia da presena do pblico e das suas reaces. Colocando-
se na posio de provocadores do acto criador, esta exposio espectculo s se
concretiza verdadeiramente no momento da sua comunicao ao pblico, cuja
participao era decisiva na materializao da obra.
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25
A colaborao entre Jorge Peixinho e Ernesto de Sousa, continuou e ficou
consagrada por mais uma obra que foi marcante no processo de evoluo de obras
multimedia. Tratou-se de Lus Vaz 73, poema sinfnico electrnico em dez partes,
concludo em 1974, acerca da qual Ana Filipa Candeias comenta:
Assim, Lus Vaz 73 foi primeiramente concebida por Jorge Peixinho como composio
electrnica que transfigurava o poema pico em corpo sonoro, de acordo com um
mtodo combinatrio que o prprio Peixinho considerava largamente arbitrrio, de
transposio simblica das partes do poema em trechos sonoros sobrepostos, rudos
coloridos, ecos..., fragmentos meldicos, ondas de frequncia modificadas pela
velocidade de transmisso. (Candeias 2009, 156).
A primeira verso de Luz Vaz 73 como multi-media foi apresentada em 1975 no
Esta V Festival Internacional de Mixed-Media de Gant, na Blgica. Diz ainda a autora
que esta verso:
(...) foi o suporte primeiro que permitiu a Ernesto de Sousa reprogramar o conceito da
obra em instalao multi-media, cuja organizao perceptiva sonora e visual
interseccionando-se, resultaria de um processo intencional e consciente idntico ao
de Jorge Peixinho flutuando entre a programao e a indeterminao, o controlo e a
improvisao. (Candeias 2009, 157).
Escolhemos este exemplo por ele ajudar a demonstrar o tipo de relao entre os
dois artistas e os processos que as realizaes de mixed-media implicavam. E sobre esta
matria corroboramos ainda a afirmao de Ana Filipa Candeias quando diz:
Este processo de ampliao/reduo visual a partir da estrutura musical pressupunha
uma cumplicidade muito elevada entre os dois artistas e aclarava a dimenso de partilha
mtua e livre que os uniu neste projecto em particular. (Candeias 2009, 157).
A participao musical neste tipo de acontecimentos, em Portugal, era feita por
compositores e intrpretes oriundos, sobretudo, de duas reas especficas: os que
desenvolviam msica improvisada e os que interpretavam msica contempornea.
Embora com objectivos diferentes, partilhavam interesses comuns: interesse pelas novas
estticas ditas de vanguarda (Schaeffer, Cage, Stockhausen), pelos novos meios
tecnolgicos (utilizao e manipulao de banda magntica, sintetizadores), por novas
sonoridades, decorrentes de novos modos de tocar instrumentos acsticos (piano
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26
preparado; utilizao percussiva das caixas acsticas dos instrumentos de corda e das
chaves e embocaduras dos instrumentos de sopro; diversos objectos para provocar
rudos; etc.) e ainda pela utilizao e explorao de amplificao e de microfones, de
meios electroacsticos. Na rea da msica improvisada salientamos intervenes de
Carlos Zngaro (1948) e do grupo Plexus que formou em 1967, grupo que se dedicava
improvisao e ao free jazz, tendo sido o primeiro grupo em Portugal a dedicar-se a esta
rea musical. Tambm Jorge Lima Barreto (n.1949) participou em algumas
intervenes, nomeadamente na performance Rotura realizada por Ana Hatherly na
Galeria Quadrum, em 1977, juntamente com Rui Reininho; participou tambm no
concerto/recital Msico-Textos realizado na Cooperativa rvore, no Porto, em 1978,
juntamente com Melo e Castro, que leu dois poemas das sua autoria, e o grupo Anar
Band, por si formado em 1969, na rea da msica experimental. Esta sesso foi filmada,
tendo sido emitida no mesmo ano pela RTP, num episdio do programa televisivo
Obrigatrio no ver, da responsabilidade de Ana Hatherly (2009, p. 52).
No que diz respeito aos intrpretes de msica contempornea, com uma
formao musical clssica, estes desenvolvem processos de improvisao a partir do
que lhes pedido pelos compositores nas partituras, com maior ou menor grau de
liberdade de interveno. Alguns destes intrpretes participaram igualmente em
performances no mbito de eventos em Portugal e no estrangeiro, tais como
inauguraes de exposies de pintura (por exemplo na Sociedade Nacional de Belas-
Artes) ou a participao na Bienal de Artes Visuais de Veneza, em 1980, com quatro
performances intituladas A Palavra e a Letra. Esta realizao foi dirigida por Ernesto de
Sousa e consistiu na criao de msica improvisada por Maria Joo Serro e Jos Lopes
e Silva, inspirada nas obras de vrios artistas plsticos, tais como Joo Vieira, Ana
Hatherly, Antnio Sena, Almada Negreiros, E. Melo e Castro. Numa dessas
performances colaboraram ainda Maria do Cu Guerra e os actores do grupo de teatro A
Barraca, acompanhando a improvisao musical e tendo como objectos manipulveis
letras de espuma, de grande formato, criadas pelo pintor Joo Vieira. Todas estas
sesses aconteceram na antiga Galeria Nacional de Arte, em Belm onde a exposio
foi montada, tendo como objectivo a realizao das performances que foram gravadas
em vdeo e difundidas ao longo de todo o tempo em que decorreu a exposio em
Veneza (Sousa 2008, p. 169).
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CAPTULO II
ELEMENTOS PERFORMATIVOS NA CRIAO MUSICAL E NO
ESPECTCULO MULTIMEDIA
Consideraes de ordem geral:
Richard Toop, no seu artigo Expanding horizons: the international avant-garde,
1962-75 (Toop 2009) considera que o tema central deste perodo temporal a ideia de
abertura. Abertura no sentido de multiplicidade e proliferao de ideias. Considera
ainda que a figura de Boulez, figura tutelar na dcada anterior, perde influncia a favor
da figura de Stockhausen, comentando que Purism gave way to pluralism (Toop
2009,454). Ao longo deste texto, vai enumerando diversos factores, estticos e tcnicos,
que vo caracterizar este perodo. Assim, destaca a mudana de uma vanguarda mais
centrada no trabalho laboratorial dos estdios (dcada de 50) para uma vanguarda com
uma orientao mais teatralizante, demonstrativa de uma apetncia para tratar temas
fulcrais de carcter social e humano, dando como exemplo algumas obras de Berio,
Passagio (1962), Epifanie (1964), Laborintus II (1965), de Stockhausen, Hymnen
(1967) e de Xenakis, Terretektorh (1966), Kraanerg (1969) ou Persepolis (1971).
Refere igualmente a preponderncia de vanguardas nacionais que vo surgindo
nos diversos pases, referindo-se, por exemplo, emergncia na cena europeia de
compositores dos pases de Leste, cuja msica causou impacto internacional, pelo
nfase colocado em novas sonoridades relacionadas com o contraste entre texturas,
determinantes de novas cores da massa sonora. Exemplos desta tendncia so duas
obras emblemticas de 1961, Atmosphres (1961), de Ligeti e Threnody for the Victims
of Hiroshima, de Penderecki. Nomeia igualmente outros compositores, destacando
Vinko Globokar, jugoslavo, que ir ter uma presena muito importante enquanto
compositor e intrprete virtuoso do trombone, e igualmente, acrescentamos ns,
enquanto performer das suas prprias criaes teatralizantes.
Considera ainda relevante a adeso de compositores asiticos s tcnicas de
vanguarda ocidentais e o facto de estes trazerem uma outra sensibilidade na execuo e
de mostrarem que msicas no ocidentais poderiam abrir novas perspectivas para a
msica ocidental, dando como exemplo desta ideia a obra Bugaku per orchestra (1961)
de Yoritsune Matsudaira que transpe aspectos de gagaku (msica japonesa antiga de
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crte) para um contexto serial e aleatrio. Obras como esta sero importantes na medida
em que despertam o interesse de compositores ocidentais e os levam a considerar a
possibilidade de novas opes composicionais.
Richard Toop salienta igualmente os processos de colagem, de citao e de
utilizao de elementos imbudos de ironia. Para ilustrar estas tcnicas, o autor aponta
exemplos vrios, entre os quais Sinfonia (1968) de Berio, Anfrage (1963) de Castaldi ou
Sinfonie guerrire et amorose (1967), de Castiglioni. No caso portugus, igualmente no
contexto do uso de citaes, so paradigmticas as obras Leves Vus Velam (1981) de
Jorge Peixinho e Libera me (1977-79) de Constana Capdeville. Como exemplo de uso
de elementos irnicos, Toop destaca obras do compositor Maurcio Kagel,
considerando-o um virtuoso no domnio desta atitude irnica em obras como Match
(1964) ou Staaststheater (1970).
O sistema de notao j alargado pela escrita da dcada anterior, amplia-se ainda
mais ao integrar notaes de carcter grfico que sugerem tipos de interpretao
especficos, sendo John Cage, Earle Brown e Dieter Schnebel compositores
representativos desta forma de escrita, bem como do uso recorrente de estruturas que
compreendem o aleatrio, o indeterminismo e a improvisao nos processos de
composio. Para alm dos compositores ligados New York School, muitos outros,
sob a influnica desta escola, recorreram a este tipo de estruturas que iro originar duas
situaes distintas que a seguir descrevemos.
Por um lado, o desenvolvimento de intrpretes virtuosos especializados neste
gnero de obras, as quais exigem uma grande familiariedade com as novas notaes e
um conhecimento profundo das estticas dos respectivos compositores para a sua
interpretao. O espao de liberdade interpretativa proporcionado em algumas destas
obras tal que se cria uma nova relao compositor-intrprete em que este ltimo chega
a ser, de algum modo, co-criador, o que origina o estabelecimento de algumas parcerias
compositor-intrprete. A este propsito Lukas Foss (1963, 46) considera que:
Composers are again involved in performance, with performance. More they work
with handpicked performers toward a common goal. Among the new composer-
performer teams: Cage and Tudor, Boulez and the Sdwestfunk, Berio and Cathy
Berberian, Babbit and Bethany Bearsdlee, Pousseur and a group of seven, my own
Improvisation Chamber Ensemble. Each of the teams mentioned is involved in a search,
what we might call a joint enterprise in new music.
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Por outro lado, assiste-se a uma proliferao de obras de composio colectiva.
Um exemplo deste caso a obra Ensemble, para um intrprete e banda magntica,
composta em colaborao com Stockhausen por doze jovens compositores que
frequentaram a sua classe nos cursos de Vero de Darmstadt em 1967. Cada compositor
comps uma parte para um instrumento especfico e para banda magntica. Nesta obra
as peas dos doze compositores so tocadas em simultneo. Segundo Richard Toop,
Stockhausen estabeleceu o plano geral e organizou a sincronizao das diferentes partes.
Esquema da obra Ensemble, Darmstadt, 1967:
Instrumento Compositor Msico
Flute Tomas Marco Ladislav Soka
Oboe Avo Somer Milan Jezo
Clarinet Nicolaus A.Huber Juraj Bures
Basoon Robert Wittinger Jan Martanovic
French horn John McGuire Jozef Svenk
Trumpet Peter R.Farmer Vladimir Jurca
Trombone Gregory Biss Frantisek Hudecek
Violin Jurgen Beurle Viliam Farkas
Violoncello Mesias Maiguashca Frantisek Tannenberger
Double Bass Jorge Peixinho Karol Illek
Percussion Rolf Gelhaar Frantisek Rek
Hammond Organ Johannes G.Fritsch Aloys Kontarsky
Um dos compositores que participaram nesta criao foi Jorge Peixinho que,
mais tarde, ir fazer experincias semelhantes com os intrpretes do Grupo de Msica
Contempornea de Lisboa. A obra In-con-sub-sequncia, de 1974, um exemplo destas
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experincias de composio colectiva e a primeira abordagem de Clotilde Rosa no
domnio da composio.
Aps esta panormica geral dos processos criativos da msica de vanguarda a
nvel internacional no perodo relativo s dcadas de 1960-80, iremos focar a situao
portuguesa. Em relao a uma exposio mais genrica sobre este tema referir-nos-
emos, sobretudo, ao artigo Trajectrias da msica em Portugal no sculo XX: Escoro
histrico preliminar, de Manuel Pedro Ferreira (2007, 44-51).
Sem dvida, a partir dos anos 60 uma nova gerao de compositores emergiu em
Portugal, produzindo obras que, semelhana do que aconteceu nos outros pases,
quebraram as normas de composio vigentes. Vrias personalidades, umas mais
conhecidas que outras, afirmaram-se num panorama ecltico que permitiu o
desenvolvimento de interesses estticos distintos, tendo tido grande impacto as tcnicas
de escrita atonal e serialista, assim como recursos mais ligados ao experimentalismo, ao
indeterminismo e a um espao de maior improvisao a que Umberto Eco se referiu
como caracterstica de obra aberta. A chamada vanguarda musical portuguesa, foi
formada por uma gerao de compositores dos quais se destacaram nomes como
Armando Santiago (n.1932), Filipe Pires (n.1934), lvaro Salazar (n.1938), Cndido
Lima (n.1939), Maria de Lurdes Martins (n.1926), Jorge Peixinho (1940-1995),
Constana Capdeville (1937-1992) e, j em meados dos anos 70, Clotilde Rosa
(n.1930), Jos Lopes e Silva (n.1937) e Paulo Brando (n.1950).
Alguns dos compositores acima referidos vo formar grupos dedicados
divulgao da msica de vanguarda de que fazem parte as suas prprias composies:
Jorge Peixinho criou o Grupo de Msica Contempornea de Lisboa, em 1970; Cndido
Lima fundou o grupo Msica Nova, em 1976, no Porto; lvaro Salazar criou a Oficina
Musical, em 1978, no Porto; e Constana Capdeville criou o grupo ColecViva, em
1985, em Lisboa.
Estes compositores conheciam bem as correntes estticas internacionais da
poca, tendo frequentado cursos de composio em diferentes pases europeus,
nomeadamente, Itlia, Frana e Alemanha. Vrios tiveram um contacto directo com o
Groupe de Recherche Musical, dirigido por Pierre Schaeffer e Pierre Henry em Paris e
quase todos frequentaram os cursos de vero de Darmstadt locais fulcrais de
encontro, de debate e de confronto de ideias na rea musical na poca.
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Os contactos com o exterior foram facilitados pela criao da Fundao Calouste
Gulbenkian, em 1956, que assumiu um papel fundamental e quase exclusivo na dcada
de 60, ao suportar financeiramente os artistas atravs de bolsas de estudo e de
especializao, de encomendas de obras e de organizao de exposies, concertos e
festivais.
Tambm na rea das artes plsticas foi bem visvel a importncia desta aco na
exposio realizada em 2007 na Gulbenkian, com o ttulo 50 Anos de Arte Portuguesa,
onde estavam representadas as obras dos antigos bolseiros daquela instituio nessa
rea, actualmente nomes incontornveis do meio artstico nacional, parte deles actores
de movimentos experimentalistas com artistas de outras reas, nomeadamente poesia,
msica, movimento, tecnologias emergentes de tratamento e projeco de imagem e de
som.
A partir de 1977, esta Fundao criou os Encontros Gulbenkian de Msica
Contempornea que passaram a constituir uma oportunidade nica para a criao de um
grande nmero de obras, encomendadas aos compositores portugueses e estrangeiros
mais representativos das diferentes correntes da escrita contempornea. Nestes
Encontros cumpriu-se igualmente a funo de divulgar este repertrio anualmente em
concertos ao vivo que, de outra forma, no seriam acessveis ao pblico portugus. Em
cada ano era ainda homenegeado um compositor de reconhecido mrito (entre outros
John Cage, Luciano Berio, Karl Stockhausen, Maurcio Kagel, Emanuel Nunes, etc.) de
quem eram tocadas vrias obras e que proferiam conferncias e dirigiam workshops de
formao para jovens msicos.
Em alguns casos, tambm a ento Secretaria de Estado da Cultura promovia a
realizao de concertos com estes repertrios, pelos grupos portugueses, em localidades
fora da capital, no mbito do seu programa de descentralizao cultural.
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II.1. Msica e Performance: Jorge Peixinho
Uma anlise um acto criador que deve ter como finalidade a abertura
para a revelao de uma obra de arte na multivalncia dos seus
significados, atravs da valorizao e interpretao dos seus fundamentos
estruturais e dos seus princpios de organizao.
Jorge Peixinho14
Jorge Peixinho15
(1940-1995) foi um compositor reconhecidamente de craveira
internacional na escrita musical do perodo a que nos reportamos. Isto deve-se,
fundamentalmente, mestria tcnica e criatividade das suas composies: s formas
que usa, s opes harmnicas, a uma influncia assumida de certos aspectos da escrita
serial, construo meldica, ao tratamento das vozes e das partes instrumentais,
nomeadamente no que se reporta aos contrastes entre texturas, dinmicas e ritmos. O
compositor conciliou esta primazia na composio, tendo influenciado vrios
compositores mais jovens, seus discpulos, com a exigncia de uma escrita rigorosa, por
exemplo a nvel da harmonia e da construo formal. Para alm de um aprofundamento
tcnico na composio musical, a linguagem de certas composies de Jorge Pexininho
acrescida com outros elementos que o vo conquistado e que introduz na sua escrita,
os quais vm a caracterizar as suas criaes multidisciplinares: gestualidade,
movimento, formas particulares na execuo instrumental e vocal, utilizao de objectos
no musicais e enquadramentos cnicos.
Jorge Peixinho, para alm de compositor um ser social. Algum que
transcende a sua actividade criativa com aces directas na sociedade em que vive, quer
seja atravs de uma funo pedaggica visando a formao dos jovens com uma
interveno politico-social prtica quer seja com a produo de textos que vo desde
essas preocupaes humanistas at teorizao de aspectos tcnicos e estticos da
msica. Bastante elucidativo sobre estes aspectos so os textos da autoria do compositor
14
Peixinho, Jorge (2010, 83).
15 Para consulta de biografia mais completa ver a Enciclopdia da Msica em Portugal no Sculo XX, 3.
vol., L-P, dir. Salwa Castelo-Branco, Lisboa: Crculo de Leitores / Temas e Debates, 2010.
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recolhidos por Cristina Delgado Teixeira e publicados juntamente com entrevistas
muito esclarecedoras sobre a sua postura como artista e cidado num determinado meio
e numa determinada poca16
.
Jorge Peixinho foi tambm um dos artistas intervenientes, nas dcadas de 60 e
70, no happening, na performance e na msica improvisada, tendo participado nos
primeiros eventos desse gnero em Portugal, como j mencionmos no captulo I.
Pareceu-nos pertinente salientar, em excertos de duas obras de Peixinho,
Recitativo II e Voix, sinais demonstrativos das caractersticas que acima descrevemos,
particularmente no que se refere escrita musical e variedade dos elementos que
contm, bem como aos processos e materiais usados e complexidade dos recursos que
utiliza e que tornam o seu estilo original.
Nestas duas obras procuraremos identificar aquilo que as caracteriza como obras
multidisciplinares, intermedia ou multimedia17
. Tentaremos ainda complementar pela
anlise das respectivas partituras a atitude musical de Jorge Peixinho para melhor
entendermos a sua esttica de composio.
16
Estes escritos e entrevistas esto reunidos no livro recentemente publicado: Jorge Peixinho (2010),
Escritos e Entrevistas, org. Cristina Delgado Teixeira e Paulo Assis, Porto: Casa da Msica / CESEM.
17 Sobre estas denominaes Daniel Charles diz o seguinte: On sest finalmente ralli, dans lensemble, la classification suggr en 1973 par Steve Gibb, laquelle oppose aux multimedia qui espectent lautonomie de principe des lments confronts - son, dcor, mouvement scnique, image, gestuelle, parfum - les
pices mixed-media qui tendent une galisation des ingrdients sans pour autant procder leur hirarchisation, et les oeuvres intermedia qui poursuivent lidal de linterdpendance rigoureuse des diverses composantes., in C.R.E.M, n. 6/7, 1987-88, p. 99.
Este assunto amplamente desenvolvido por Roberto Barbanti in Lachaud et Lussac (2004, 17-29).
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II. 1.1. Recitativo II (1971)
Recitativo II, cantata cnica para soprano, meio-soprano, harpa, percusso,
projectores, velas e (eventualmente) um regente18
. O harpista, o percussionista ou o
eventual regente participam na declamao dos textos homnimos de Hmus, de Ral
Brando (1917) e de Herberto Helder (1967). A relao entre estes dois textos -nos
facultada por Herberto Helder (1996, 280) na nota inicial ao seu texto:
Material: palavras, frases, fragmentos, imagens, metforas do Hmus de Ral Brando.
Regra: liberdades, liberdade.
Esta obra faz parte de um ciclo de quatro compostas entre 1966 e 1974, para
instrumentao diferente. Para alm dela o ciclo inclui Recitativo I (1966-1971/72) para
harpa solo, Recitativo III (1969) para harpa, flauta e percusso e Recitativo IV (1974)
para flauta, flautim, guitarra, viola darco, fagote, contrafagote, percusso, vibrafone,
piano, celesta, meldica e fita magntica. Tm em comum o facto de todas apresentarem
material do Recitativo I que, por sua vez, composto com base no material da msica
criada por Jorge Peixinho para a pea de teatro O Gebo e a Sombra19
, encenada por
Ernesto de Sousa e com cenrios de Jos Rodrigues, estreada em Fevereiro de 1966 no
Porto, pelo Teatro Experimental do Porto, no Teatro de Bolso do Crculo de Cultura
Teatral20
. O Recitativo II a nica obra do ciclo que apresenta uma componente teatral,
sendo essa a caracterstica determinante da presente opo de estudo21
Ao longo da obra o compositor utiliza uma srie cromtica a partir de d: db -
d - d# [-rb] - mib - mi [-fb] - f - f# - sol - lb - l - l# [-sib] - si - [db], dando
especial relevncia aos intervalos de tom e de tom inteiro, jogando igulamente com a
sua sobreposio.
18
Recitativo II igualmente sub-intitulado pelo compositor aco cnica.
19 Desconhece-se a localizao desta partitura.
20 Cristina Delgado Teixeira (2006, 152).
21 Cludia Borges faz um estudo comparativo dos quatro Recitativos, na sua tese de mestrado O estilo
composicional de Jorge Peixinho nas obras Recitativo I, II, III, IV. Departamento de Comunicao e
Arte, Universidade de Aveiro, 2005.
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Passamos seguidamente a descrever o tratamento especfico de que so objecto
as duas vozes e os instrumentos harpa e percusso.
Um dos aspectos que caracteriza esta partitura, constituda por 45 pginas, como
outras do mesmo autor, no apresentar diviso de compassos, implicando uma relao
de proporcionalidade de durao entre as partes das vozes e dos instrumentos. Este
factor determinante de uma variabilidade de tempo, de uma pulsao que o dirigente
lhe imprime (quando h dirigente), o que exige uma capacidade de interaco e de
simultaneidade na pulsao entre os intrpretes. Com efeito, a estes pedido um tempo
onde um certo grau de aleatrio est implcito, na medida em que, tratando-se de uma
escrita vertical, os espaos entre as notas no correspondem a acordes em tempos
simultneos, mas sim a uma sucesso de notas com espaos no rigorosamente
regulares na partitura (ex. 1):
Ex. 1. Recitativo II, p. 2.
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Contribui para esta grande exigncia de concentrao na leitura o facto das notas
no serem figuras que contenham a indicao rtmica, o que dificulta a determinao da
durao do tempo de cada uma. A este propsito, o compositor esclarece nas notas
explicativas da partitura o seguinte:
Tempo mdio de cada pgina: 30 segundos. As relaes de tempo em cada pgina
devem ser mais ou menos proporcionais ao espao grfico.
Para alm desta indicao, a forma de execuo descodificada atravs de duas
pginas de Sinais de Notao que contm um cdigo que cada intrprete deve
respeitar. Este cdigo, s por si, demonstrativo do nmero e variedade de efeitos que
so exigidos s vozes, harpa e percusso, que acrescentam semiologia musical
prpria de pocas anteriores. Assim, Jorge Peixinho vai construindo a par da sua
gramtica musical, uma gramtica de efeitos sonoros com a pretenso de criar novos
campos de natureza tmbrica, rtmica e onomatopeica que confira a cada uma das suas
composies um cunho pessoal.
As partes de soprano e meio-soprano tm intervenes em alternncia ao longo
de toda a obra; quando em simultneo, normalmente uma delas emite notas longas em
contnuo ou com alguns momentos de tremolo durante a actuao da outra, quer ela seja
uma declamao de um texto ou um pequeno motivo musical (ex. 2, p.37). O tratamento
das vozes atravs dessas notas em legato assume com frequncia a funo de um
ostinato ao qual os outros instrumentos se vm sobrepor nas suas partes especficas.
Tal como est indicado na folha dos Sinais de Notao22, a voz intervm com
outro tipo de sonorizaes, por vezes prximas de onomatopeias, de efeitos sussurrados,
de transformaes com a ajuda da mo sobre a boca, de sons sobre vogais, prximos da
tcnica de produo de harmnicos do som fundamental. So igualmente utilizados
efeitos de passagens entre cantado e parlato (sic), ou vice-versa, numa transio quase
imperceptvel; de produo de sons isolados no extremo grave e agudo da tessitura; e
ainda de passagens com pequenos glissandos entre intervalos curtos (ex. 3, p. 37).
22
v. Anexo II.
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Ex. 2. Recitativo II, p.7
Ex. 3. Recitativo II, p. 21.
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Relativamente ao uso da voz nesta obra, o compositor afirma:
() Em Recitativo II, obra que se encontra indita, eu utilizo duas vozes femininas,
uma cantando em sprechgesang, recorrendo ao uso de vrias tcnicas vocais aplicadas
ao texto de Ral Brando, e a outra cantando o texto de Herberto Helder, de modo a
criar uma intertextualidade.23
Com efeito, o uso destas tcnicas vocais reporta-nos a processos inovadores
usados por outros compositores, nomeadamente Luciano Berio, nas suas composies
para a voz. O prprio Peixinho assume o conhecimento desses processos quando afirma:
A minha formao musical e a minha orientao esttica devem muito admirvel
gerao do ps-guerra (em particular a Boulez, Stockhausen e Berio) e tambm, claro
est, a um estudo e assimilao dos seus directos precursores (Webern e a escola
vienense).24
A harpa tem intervenes que vo oscilando entre acordes, pequenos motivos,
grupetos rpidos de seis ou oito notas e notas de curta durao que se sucedem ao longo
dos vrios registos. Esta parte da harpa funciona de uma forma bastante interventiva
relativamente s partes cantada e declamada das duas vozes, resultando num efeito
contrastante. A parte musical da harpa constituda por material do Recitativo I que
aparece igualmente transformado25
.
Os instrumentos de percusso dividem-se em dois grupos: um meldico
glockenspiel, crtalos, meldica e tmpano outro de som indeterminado
tringulos, pratos suspensos, gong, tam-tam, tom-tons, pandeireta, maraca, blocos
chineses, wood-block, flauta jazz (de mbolo). Todos eles so utilizados com o mesmo
processo de composio dos anteriores: com efeito, sons longos em contnuo ou em
tremolo so realizados pelas maracas, pelos tam-tans e pelo gongo, da mesma forma que
a meldica tambm tem partes de sons longos, atravs de acordes prolongados e de
efeitos de clusters, mas igualmente com intervenes mais pontuais.
23
Eduardo Vaz Palma, Entrevista com o compositor Jorge Peixinho, in Arte Musical n. 1, 1995, pp. 15-16.
24 in Plateia, 28 de de Janeiro de 1969, p. 12.
25 Cludia Borges (2005, 22).
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A percusso e a harpa tm frequentemente partes sobrepostas, contrariamente s
partes das vozes que se relacionam sobretudo em alternncia.
Do incio ao fim a obra vai oscilando entre passagens mais rarefeitas e passagens
em que h uma maior sobreposio das partes instrumentais e vocais. Nestes casos,
surgem momentos que criam uma textura densa, uma massa sonora mais compacta, de
que apresentamos seguidamente um exemplo, pgina 16 da partitura (ex. 4) e que
contrastam com os efeitos do procedimento anterior.
Ex. 4. Recitativo II, p. 16.
O texto sobretudo declamado pelas cantoras em alternncia e, pontualmente,
pelo harpista, pelo percussionista e, quando este existe, pelo dirigente, havendo breves
momentos em que uma frase dita de forma entoada. Os textos so usados nesta ob