dissertação - ilha do massangano

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEPPGA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

MRCIA MARIA NBREGA DE OLIVEIRA

O SAMBA FOGO: Fluxos corporais e a noo de existncia na Ilha do Massangano

Niteri 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEPPGA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

MRCIA MARIA NBREGA DE OLIVEIRA

O SAMBA FOGO: Fluxos corporais e a noo de existncia na Ilha do Massangano

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obteno do Grau de mestre.

Orientador: Ovdio de Abreu Filho Co-orientadora: Ana Claudia Cruz da Silva

Niteri 2010

FICHA CATALOGRFICA

Nbrega de Oliveira, Mrcia Maria O samba fogo: Fluxos corporais e a noo de existncia na Ilha do Massangano. Mrcia Maria Oliveira Nbrega. Niteri, PPGA-UFF, 2010. 138 pp., XIII pp. Dissertao de Mestrado Universidade Federal Fluminense, PPGA UFF. Antropologia Social. 2. Samba. 3. Ilha do Massangano. 4. Noo de pessoa. 6. Dissertao. I. Ttulo.

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Mrcia Maria Nbrega de Oliveira O Samba Fogo Fluxos corporais e a noo de existncia na Ilha do Massangano

Orientador: Prof. Dr. Ovdio de Abreu Filho Co-orientadora: Profa. Dra. Ana Claudia Cruz da Silva

Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal Fluminense - UFF, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Antropologia.

Aprovada por: _______________________________________

Prof. Dr. Ovdio de Abreu Filho (UFF orientador) ______________________________________ Profa. Dra. Ana Claudia Cruz da Silva (UFF co-orientadora) ______________________________________ Profa. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (IFCS/UFRJ) ______________________________________ Prof. Dr. Daniel Bitter (UFF) ______________________________________ Profa. Dra. Ana Carneiro Cerqueira (MN/UFRJ suplente) ______________________________________ Prof. Dr. Antnio Rafael Barbosa (UFF suplente) Niteri 2010 iv |

AGRADECIMENTOSAgradeo a Ovdio Abreu Filho, por ter aceitado me orientar, pela franqueza com que conduziu todo o processo, pela genialidade de suas observaes, e, sobretudo, por sua eterna disposio em extrair o que h de bom das coisas. E tambm Ana Claudia Cruz da Silva, por ter concordado em me co-orientar num momento em que a dissertao parecia no vingar. Agradeo por seus primeiros socorros, bem como por suas intervenes cirrgicas ao texto. Sem o seu trabalho essa dissertao no teria sido possvel. Agradeo aos membros examinadores e suplentes da minha banca, Maria Laura Cavalcanti, Daniel Bitter, Antnio Rafael (a este tambm por suas aulas de Antropologia Clssica) e Ana Carneiro Cerqueira, por aceitarem ler e pela presteza em comentar esta dissertao. Agradeo tambm aos professores Mrcio Goldman e Tnia Stolze Lima pelos comentrios ao meu projeto na qualificao. Em especial ao Mrcio, pela clareza de suas idias e pelas indicaes bibliogrficas, e Tnia por ter me incentivado a ir a campo. Agradeo Capes e Faperj pelo financiamento a esta dissertao. Agradeo tambm Hilma e Vanessa pela espirituosidade cotidiana e pela presteza com que sempre atenderam s questes burocrticas mais urgentes. Agradeo s meninas, Ruth e Maju, por compartilharmos as aulas na UFF, as dvidas, ansiedades e alegrias nesses quase trs (!!!) anos de universidade, pela cumplicidade. Sem seu apoio e companhia, certamente este trabalho seria outro. Agradeo tambm Ruth pela formatao do texto. Amo vocs. Agradeo Raimunda Sol Posto por ter me recebido em sua casa, por ter me introduzido ao universo musical da Ilha do Massangano. Agradeo Francisco das Chagas, o Chagas, pela generosidade de sua acolhida, pela pacincia (e tambm pela falta dela) com que respondia as minhas questes, s vezes to elementares. O agradeo especialmente pelos trs meses de convivncia, pela confiana depositada, pelos passeios de barco, risadas, feijes e cervejas. Sem a sua ajuda esse trabalho no teria sido possvel. Agradeo aos amig@s Luciana Lustosa (a Lu), Solange Soares e Chico Egdio, por terem feito com que eu chegasse at Chagas, pela companhia maravilhosa, e por v|

terem sido, por vezes, meu refgio e minha ilha deserta quando quis me ausentar da massangana. Agradeo ao Felipe, Liana, ao Marcus e ao Fabrcio por terem topado me acompanhar at Recife para assistirmos festa da Lavadeira, onde eu pude firmar contato com o povo do samba. Agradeo Antonise Coelho e Elisabet Moreira pela presteza com que me receberam em suas casas e pela generosidade com que me expuseram seus trabalhos acerca da Ilha. Agradeo tambm pelas indicaes bibliogrficas. Agradeo aos meus pais, Nereida e Marcos, e aos meus irmos, Pepe e Glorinha pelo apoio, pacincia e pelas caronas nas minhas idas e vindas ao campo. Glorinha agradeo tambm pelos os deliciosos bolos, com os quais comemoramos alguns sambas. Agradeo Virna, Nicols, Felipe, Fuji e Denisse pelo grupo de estudos, que, mesmo incipiente, tanto me ajudou a formular meu objeto. Obrigada tambm pelas pessoas (que so). Agradeo Luis Felipe Benites, Virna Plastino (de novo) e Ana Carneiro (esta ltima tambm por estar como suplente em minha banca), pela proximidade de nossos campos, pela inspirao e pela disposio eterna em prosear. Agradeo @s querid@s amig@s revisor@s, Tate (desde a graduao), Bruna Elisa, Marina Farias e Henrique Codato, sem os quais essa histria certamente estaria muito mal contada. Agradeo tambm tia Lenira pelo abstract. Agradeo ao Chipe, pelo amor e pela comida. Agradeo minha nova famlia e amigos feitos em campo: Cidinha, Dona Amlia, Gui, Vandite, Nonosa, Carlos, Eva, Tut, Solange, Marisa, Jildete, Chica Claro, Corina, Dona Joana, Mrcia, Conceio, Dona Francisca, Deta, Dulcinete, Darcilene, Tot, Osas, Teresinha, Dona Vicena, Z Pancinha, Dinho, Elaine, Evinha, Jferson, Elvis, Neri, Ftima, Dona das Dores, Seu Claro, Chiquinha, Silvano e Rosa. E minha famlia do Rio, que muitas vezes muito mais brasiliense e mineira do que carioca. Especialmente ao Andr, Arthur, Marcus, Liana, Luanda, Maurcio, Felipoa, Francyne, Baiano, Virna, Nico, Rogrio, Ruth, Maju, Gui, Luiz Felipe, Simone, Lu, Marininha, Leonor, Sui, Luana, Bruno, Flvia, Clara, Aninha, Patrcia, Hrcules pela amizade e pela ateno sincera dada a mim, sempre que os obrigava a escutar meus causos de campo.

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Agradeo tambm aos amigos que mesmo distantes conseguem se fazer to presentes: Jlia, Tas, Bernardo, Marinas faramos e a Soares, Rafa, Danilo, Hilan e R. Agradeo ao Felipe por tudo. Aqui qualquer palavra seria pouca, por isso reno vrias: pelo incentivo dirio, pelas correes implacveis ao texto, pelas conversas instigantes, por ser o homem da minha vida e por ter me dado um filho to lindo. Esta dissertao , certamente, tambm um pouco sua. Agradeo ao Joaquim, meu filho, pela fora, por se fazer existir no desenrolar desse processo, por tornar menos solitrio o trabalho da escrita e, sobretudo, por tornar todas as outras questes to pequenininhas.

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Bartolomeu Nascimento, Em memria de suas pisadas, E Joaquim Nbrega Pelos passos que ainda esto por vir.

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Mapa sentimental, de autoria de Demstenes Vargas. Fonte: Lima (2002, 7) ix |

RESUMO

O objetivo dessa dissertao investigar o modo como sambistas da Ilha do Massangano uma ilha situada no Vale Submdio do rio So Francisco entre as cidades de Petrolina PE e Juazeiro BA relacionam os usos de seu corpo uma elaborao prpria do que ser pessoa, ou mais exatamente, do que consiste sua idia acerca da existncia. Estes sambistas estabelecem uma forte relao entre o controle dos fluxos (chamados de fora ou de fogo) que passam atravs de seus corpos e a noo de existncia. Argumento que o fogo seria tanto efeito da produo do som que nada mais do que o resultado do encontro entre os corpos juntamente ao seu sapateado frentico, quanto do uso de bebidas alcolicas. A noo de equilbrio, de controle dos fluxos e dos corpos, , na Ilha, fundamental para que se mantenha o mnimo de organizao nos estados de existncia, para que a vida possa seguir sendo vivida.PALAVRAS-CHAVE:

samba, Ilha do Massangano, noo de pessoa.

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ABSTRACT

The aim of this dissertation is to investigate the way samba dancers from Massangano Island an island in the submiddle Valley of the San Francisco river between the cities of Petrolina - PE and Juazeiro-BA connect the use of their bodies to an own concept of what being a person means, or more specifically, in what their ideas concerning existence consist about. Those samba dancers establish a strong relationship between the flow controls (named strength or fire) that go through their bodies and the notion of existence. Fire would be both the sound production effect nothing more than the body encounters together with their frenetic tap-dances, after the use of alcoholic beverages. The notion of balance, of flux control and of the bodies is, in the Island, fundamental for them to keep a minimum of organization in the living stages, so that life continues being lived.

KEYWORDS:

Samba, Massangano Island, Person.

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A Ilha o barco, ns somos o rio. Mia Couto

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SUMRIO Resumo ................................................................................................................. x Abstract................................................................................................................ xi Introduo - No princpio e no processo............................................................... 1 Preldio - O funeral ............................................................................................ 12 Captulo 1: A Ilha ............................................................................................... 15 1. As pegadas da terra ................................................................................. 15 2. O nufrago e o marinheiro ...................................................................... 20 3. A correnteza das guas ........................................................................... 25 4. O povo de Celestina................................................................................ 33 Captulo 2: O Samba........................................................................................... 46 1. A chegada ............................................................................................... 46 2. A estadia ................................................................................................. 52 3. A Jornada ................................................................................................ 58 4. A Partida ................................................................................................. 65 Captulo 3: Existncias ....................................................................................... 78 1. A brincadeira........................................................................................... 78 2. O luto ...................................................................................................... 84 3. A fora .................................................................................................... 88 4. O fogo ..................................................................................................... 99 Consideraes Finais: Da gua e do fogo......................................................... 106 Referncias........................................................................................................ 109

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INTRODUO - NO PRINCPIO E NO PROCESSO

Se levarmos a srio as implicaes da afirmao que por vrias vezes escutei em campo na Ilha do Massangano de que tudo nesse mundo existe, rapidamente compreenderemos por que l no h perodo que no se estenda por festas, no h noite clara onde no se tema a escurido, e no h leito solitrio que no chame por companhia. Explico: no se trata do terror da imagem de um indivduo solitrio numa ilha deserta, ao contrrio: o que importa aos habitantes da Ilha1 deixar o deserto fora de si. Justamente, para um ilhu se fazer existir pelo menos para esse a quem eu chamo de massangano , ele deve procurar sempre estar junto, em encontro com algo ou algum, ou afetando-se.2 Caminhar sozinho pela Ilha, conforme pude experimentar em meus primeiros dias de campo, ser alvo de pena. l, a menina de Chagas de novo sozinha, coitada..., diziam. Chamavam-me de menina de Chagas porque estava hospedada na casa de Francisco Chagas o que presumia-se que eu outra coisa no poderia ser, a no ser sua parente. Mas, rapidamente de coitada, eu passei a sobrinha de Chagas, e, finalmente, a afilhada de Dona Amlia aps termos pulado fogueira juntas. ramos parentes de fogueira o que na Ilha no pouca coisa3. E estando em sua casa quase todos os dias, comendo de sua comida, bebendo de sua bebida, conversando de sua conversa, acabei por me tornar uma quase-irm de seus filhos, conforme gostvamos de brincar de ser. Aos poucos, de algum que somente existia por causar pena, eu passei a ser a menina de Amlia, me tornando de certa forma parte do povo de Celestina av de Dona Amlia que, segundo ela, foi quem comeou toda essa histria. Mas ainda que eu j fosse de Amlia, eu seguia dormindo sozinha num quarto da casa de Chagas. Voc num tem medo no?, perguntavam-me desconfiados. No se referiam ao medo de Chagas, ou de qualquer outra pessoa de carne e osso. Tinham medo era de confrontarem-se com os encantados, por elesQuando o termo Ilha se referir a Ilha do Massangano ela vir dessa forma, iniciada em maiscula, quando se referir a qualquer ilha, vir em minscula. 2 Dito assim em aspas simples para referir-se a um termo deles e no um termo meu ou nosso cuja marcao ser a de aspas duplas. 3 Sobre os sistemas de apadrinhamento por fogueira, ver Captulo 1 dessa dissertao.1

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tambm chamados de espritos, almas, caboclos ou guias. Tinham mais medo daquilo que no podiam ver, do que daquilo que se podia pegar j que assim mais fcil de administrar. E a solido, logo compreendi, trata-se, para os massanganos, de um absurdo lgico: nunca se est sozinho, ou se est na companhia dos homens, ou das almas, ou de ambos. No limite, resta a ns escolhermos a companhia que queremos desfrutar. E os massanganos preferem estar com sua gente, formando o seu povo. porque desses outros nunca se sabe o que esperar. E eles esto por toda parte, visto que esto quase que cercados pelas guas. que so as guas o veculo condutor de toda sorte de fora que passa pela Ilha. Assim sendo, o povo de Celestina est cotidianamente sendo bombardeado por foras sejam elas nas giras de caboclo, nas alimentaes de almas dos penitentes ou no fogo das rodas de samba. Essa dissertao pretende ser uma pequena cartografia dos sentidos dessas foras, de como o povo de Celestina escolheu aprender a confront-la ao invs de neg-la mas sem ser destrudo por ela. E esse o tom dessa investigao: dos modos de como esse povo se relaciona com tais foras e de como elas o compem. E como toda intensidade ou fora, tambm na Ilha ela se gera a partir do encontro entre diferenas. prtica comum entre os massanganos estar a todo tempo arranjando pretexto para se encontrar com outro. O samba um desses momentos: seja pelas travessias nos rios quando os batuques se criavam nos portos; pelos corpos nas umbigadas quando os danarinos danavam nas rodas; pelas mos com o couro do tamborete quando o tocador impunha ritmo ao samba; pelos ps com o cho do terreiro quando a fora passava atravs do corpo do sambista. L, eles os sambistas podem se afetar uns aos outros fazendo passar por eles, em forma de corrente, a tal fora de que tanto falam. Nesse sentido, esta dissertao tratar de apresentar o samba feito na Ilha do Massangano enquanto uma modalidade de encontro de foras que no samba chamada de fogo.4 O samba fogo, ouve-se pela Ilha, e at mesmo fora dela. energia at umas horas, escutei certa vez de um outro no-massangano. E tal energia do fogo resultado dos modos desse povo de pisar no cho: o p forte!; de bambear seu corpo: ela se peneirava toda!; e de se equilibrar na cachaa: oxe, a garrafa colava na cabea dela!. Assim, argumentarei nesta dissertao que tanto o exmio danarino quanto a pessoa exemplar so aqueles que na Ilha conseguem, ao mesmo tempo,4

Mas que por vezes ser por mim chamada de intensidade, ou ainda de potncia.

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equilibrar a cachaa na cabea e equilibrar a cabea na cachaa. Tentarei descrever como na Ilha do Massangano a noo de equilbrio de controle dos fluxos e dos corpos fundamental para que se mantenha o mnimo de organizao nos estados de existncia de seu povo. Sua mxima desorganizao, este desequilbrio, seria a morte, que no exatamente a no existncia, mas um outro estado dela. Enfim, o argumento o de que possvel, atravs de um olhar s prticas do samba e seus modos de relacionar foras pelos usos do corpo tanto por via do controle dos fluxos, quanto por via do transporte de substncias (em especial, a cachaa) , alcanar uma elaborao da noo massangana do que ser pessoa, e mais exatamente, no que consiste sua idia acerca de existir. Para isso tomarei emprestado o termo nativo de existncia como caminho para investigar uma certa noo particular de pessoa presente na Ilha do Massangano, em especial dentre uma parcela do povo de Celestina que participa mais ativamente de seu universo musical. Quando opto pela noo nativa de existncia como caminho para acessar a noo de pessoa presente na Ilha do Massangano, o fao tambm no sentido de escapar a uma srie de controvrsias que essa noo carregou desde que comeou a habitar o pensamento antropolgico at os dias de hoje. Tais controvrsias tm como pano de fundo uma clebre dicotomia, velha conhecida das cincias sociais, a de indivduo VS sociedade, na qual a imagem da pessoa no Ocidente estaria obcecada com a idia do indivduo, dando a ela uma infinidade de verses5. Mas se pela noo de pessoa convencionou-se investigar as formas que os grupos pensam as relaes do homem com a natureza e as instituies sociais (Goldman, 1996), a noo de existncia massangana traz baila justamente aquilo que surge no entremeio dessas relaes, isto , aquilo que acontece no encontro entre esses corpos: no um estado organizado das substncias, mas seu fluxo de intensidades. Chamado na Ilha de foras e no samba de fogo, ela enfatiza osPara um exame detalhado dessas controvrsias ao longo das escolas tericas da antropologia, ver Goldman, 1996. Neste artigo o autor remonta o percurso da noo de pessoa ao longo da histria do pensamento clssico antropolgico que, de uma forma ou de outra, sempre esteve ligada a uma imagem do pensamento centrada no indivduo. Assim, (1) Mauss colocaria a pessoa como uma espcie de forma elementar da individualidade; (2) Dumont, com sua denncia do indivduo-valor, pensaria o indivduo como estruturante de um modo particularmente ocidental de conceber a pessoa: Neste sentido, o indivduo, seria simplesmente a pessoa reduzida sua expresso sociolgica mnima e dotada de uma intensidade psicolgica mxima uma espcie de grau zero da sociabilidade (p.93); (3) Radcliffe-Brown insistiria na noo de pessoa como algo que fosse o somatrio do indivduo sua estrutura social; e finalmente (4) Evans-Pritchard, deslocaria a unidade mnima de Radcliffe-Brown do indivduo para grupos maiores como cls ou linhagens, mas continuaria a operar com o mesmo raciocnio. Esses grandes grupos passam a ocupar a funo de superpessoas dotadas de interesses, necessidades, desejos, direitos e deveres especficos (p.97).5

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aspectos incorporais embutidos nessas relaes. E justamente atravs desses aspectos que traarei as linhas que comporo um certo mapa do que existir na Ilha. Dessa forma, esta dissertao busca inspirao naquilo que Marcio Goldman (2005) fez ao trazer a noo de agenciamento6 como contraponto s abordagens tericas mais clssicas sobre o conceito de pessoa, j que ela tenta dar conta da complexidade de linhas e fluxos que compem aquilo que os massanganos chamam de existir.7 No intuito de fundamentar a pertinncia dessa virada dos termos, aproximo os processos de existncia embutidos nas relaes sociais tracejados pelo samba feito na Ilha queles que Goldman apresenta como sendo prprios de uma ontologia do candombl. No creio que se trate do mesmo fenmeno, mas inegvel que possuem zonas de vizinhana ou de indiscernibilidade, as quais eu tratarei de expor ao longo da dissertao. Tentarei argumentar aqui que o samba feito na Ilha (assim como o candombl apresentado por Goldman) comunga de uma ontologia fundamentada a partir da existncia de uma nica fora, que constituem tudo o que existe e pode existir no universo (Goldman, 2005, p.109). Ainda, o que argumentarei que os usos das prticas musicais que sero feitas aqui no estaro ancoradas numa anlise de suas estruturas musicais, no sentido estrito que uma etnomusicologia poderia ter. No tenho conhecimento nem flego para tanto. Tampouco pretendo realizar uma sociologia da msica, de modo a reduzila a sobredeterminaes sociais, econmicas ou polticas. No se trata de uma abordagem funcionalista de uma scio-musicologia. Antes, pretendo recuperar da etnomusicologia aquilo que ela enxerga nos regimes de interao musical, os modos de suas relaes sociais. Em outras palavras, esta dissertao parte do pressuposto de que mais do que falar sobre as relaes sociais, a msica a prpria relao social. Ela no fala sobre a existncia social, ela fala a existncia social (Sodr, 1998, p.44).Para fazer oposio a uma imagem acabada da pessoa, aciono a noo deleuziana de agenciamento, que afirma que tudo que existe agenciado, isto , atravessado por linhas que o compem. Assim desenharei a noo de existncia massangana a partir do decalque dessas linhas, privilegiando as relaes de movimento ou de repouso entre as linhas de fluxos essas foras que se constituem atravs do poder de afetar e de ser afetado (Deleuze e Guattari, 1997, p.47). Sozinhas, essas linhas no querem dizer nada, servem apenas pra traar uma certa cartografia da pessoa, que aqui chamo de existncia. 7 O autor sugere que as chaves interpretativas tanto serialista (a = b = c; fulana filha de Ians porque parece com ela) quanto estruturalista (a => b => c; assim como o raio est para Ians, a ira est para sua filha) que por muito tempo serviram de base explicativa para os fenmenos do sistema do candombl, em especial a sua complexa noo de pessoa no foi capaz de esgot-la. Como sada ele prope a chave deleuziana do devir, como algo que no pode se dar nem por semelhanas, identidade ou classificao, nem por relaes de proporcionalidade ou homologias. O devir funcionaria como algo do tipo: aquilo que afeta Ians pode afetar sua filha, e desse encontro surgir algo novo (Goldman, 2005, pp.112-113).6

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Nesse sentido no me deterei em pormenores de anlises das letras de toadas e batuques do samba e de sua ancoragem numa suposta realidade ribeirinha, que lhe antecederia e ultrapassaria. Isto , se a relao entre a letra das msicas e as relaes de sociabilidade de quem as executa bvia uma vez que o samba enquanto acontecimento ele mesmo proveniente de encontros entre corpos, e que tais encontros s podem ser dados na teia das relaes sociais vividas , o que surgir da no pode estar provido da mesma clareza. Ao contrrio da insistncia de alguns agentes culturais de reduzir o universo musical massangano letra de suas msicas, como se ditassem uma realidade que sempre estivesse l, essa dissertao pensa que em cada batuque tocado por esse povo h tantas sociabilidades quantas forem possveis. Assim explica-se que a mesma mulher que agride nos versos Ta doida mulher, ta doida mulher minha, mas a mulher matou o marido com a faca na bainha a mulher que apanha em lua nova, lua, cheia, mulher casada que namora merece peia ou a que trai em tira palma, bota palma; palmeira, coco dend; namorar mulher casada; sem teu marido saber. Nunca houve um modelo nico de mulher a ser seguido pelo menos nenhuma que o samba cante mas uma infinidade delas, que variam de acordo com a complexidade dos agenciamento nos quais sua existncia se constri. Penso, portanto, que os modos de se fazer msica so de profunda pertinncia para acessarmos as elaboraes ribeirinhas acerca do que pode e do que no pode existir. Tal elaborao passa necessariamente por processos de controle dos fluxos dos corpos: seu equilbrio, sua resistncia ao fogo, seus atravessamentos de foras.***

A dissertao encontra-se dividida em uma introduo, trs captulos, e uma concluso. O captulo um foi construdo de modo a introduzir o leitor no universo massangano. L tentarei mostrar a imagem de um povo que se faz em movimento que como penso ser esse povo. Argumentarei que sua idia de fluxo envolve inclusive os modos das pessoas com a natureza: na Ilha do Massangano a interao deve sempre levar em conta que a natureza nunca est parada: ela est em constante fluxo, assim como em fluxo sempre estiveram os habitantes da Ilha. E da mesma forma, nesse captulo me ocuparei em demonstrar como essa gente, a quem eles 5

costumam chamar de povo de Celestina, est sempre em movimento. As notcias de tais trnsitos chegam desde que o primeiro samba foi sambado na Ilha: Seu Manoel viajou desde o rio de cima, assentando-se na Ilha do Massangano com seu tamborete que fazia as vezes de percusso aps casar-se com Helena Celestina, passando a fazer parte daquele povo. Desde o incio, o rio So Francisco lhes colocou nessa condio de travessias. Percorrerei os caminhos pelos quais o povo de Celestina ou a pessoa massangana se constri a partir de interaes com suas vizinhanas sempre mediadas pela gua: como, por exemplo, quando o povo de Helena uniu-se ao povo de seu povoado vizinho Barrinha da Conceio, passando a constituir o povo de Celestina. Com isso, pretenderei desenvolver aqui uma imagem de povo que acompanhe os movimentos que o compem. nesse sentido que abordarei tal povo como uma concreo relacional (Viveiros de Castro, 2003) j que eles nunca so apenas um povo s, mas vrios.8 A idia que para pertencer a esse povo preciso tanto ser, por retrospectiva, parente de um mesmo ancestral (aqui, no caso, Celestina), compartilhando uma mesma rede de alianas e filiaes de parentesco, quanto compartilhar de conversas, brincadeiras, substncias que vo desde uma mesma carne, at uma mesma pinga ou um mesmo caf. Eis, portanto, o povo do samba. No captulo dois, me dedicarei a demonstrar de que forma o samba feito na Ilha do Massangano ele prprio um modo de se relacionar. O samba um espao de produo de sentidos, de mediao de foras e de produo de existncias. Assim, nesse captulo esboarei um mapa descritivo tanto da trajetria do samba de seus comeos at o dia de hoje, bem como das prticas do saber-fazer da percia do toque e da dana na Ilha, de forma a situar o leitor no universo musical massangano, para que, num prximo captulo, eu possa argumentar de que modo o samba movimenta certas noes de existncia que eu observei serem cruciais para constituio tanto da pessoa massangana, quanto de seu povo. disso que tratar o segundo captulo: da saga do samba entre o povo de Celestina, desde sua chegada at sua partida, rumo a outras histrias. Comeando pelo princpio abordarei as narrativas sobre a suposta origem do samba que um dia foi de reis e que hoje tornou-se mais conhecido como de vio.Tentarei explicar nesse captulo, por fim, como dizer povo para os massanganos no o mesmo que falar sociedade, tal como aprendemos. O povo antes um efeito da socialidade, j que ele no composto por um transcendente que faa referncia a acontecimentos que lhe sejam posteriores. O povo ali se constitui na relao, das relaes e ao se fazer relacionar.8

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Tanto num, quanto no outro, para que ele acontea, o samba necessita de um tamborete para marcar o ritmo, de uma fogueira para esticar seu couro, de um puxador para puxar batuques, de gente para danar e de cachaa para beber. O que argumentarei nesse segundo captulo que para esse povo lhe apraz muito mais dar notcia dos processos das prticas do samba do que dar testemunho de comeos. Isto , do saber-fazer de seu povo e dos modos prprios de seu samba. Assim como a seu povo, interessam-lhes contar os causos e cantar batuques de um samba que sempre se fez em movimento: seja trazido pelos remeiros nas embarcaes que cruzavam o rio So Francisco de Minas Gerais at a Bahia na poca em que era navegvel, seja levado pelos sambistas que hoje partem de nibus e cruzam estradas rumo ao encontro de outras culturas. E, para isso, ser importante tambm dar conta da jornada do reisado, j que foram juntos que ele e o samba chegaram uma primeira vez na Ilha do Massangano na bagagem de Seu Manoel. E na festa do reisado que acontece na Ilha no perodo do dia seis de janeiro at que a ltima casa seja visitada que o samba sai com maior freqncia. Entretanto, os massanganos deixam claro que preciso no os confundir. Ainda que compartilhem de uma mesma zona de vizinhana, eles no so indiscernveis. Samba samba, reisado reisado, dizem eles. E explicam que ainda que no sejam a mesma coisa, o que faz o samba carregar o reis (isto , o santo) atravs de sua cantiga. nesse sentido que tambm argumentarei que o samba da Ilha agencia foras, levando a presena do santo at a casa das pessoas atravs da fora de sua msica. Entretanto, ainda que o samba mais conhecido no seja mais o de reis, mas o de vio, ele continua a se alimentar de viagens e transportes. Tanto continua carregando a fora do reis, quanto propagando o afamado fogo que o samba tem que se impe, mesmo quando feito distncia das relaes sociais massanganas, nos palcos das apresentaes nos festivais de cultura regionais. O captulo trs se dedicar a pormenorizar os modos pelos quais essas foras (que nas prticas musicais do samba chamam-se fogo) produzem existncias. Explicar do que se trata o fogo do samba e traar zonas de vizinhana entre essa noo e a recorrente nas prticas de luto entre seu povo bem como nas casas de caboclo presentes na Ilha, a saber, a noo de fora. A partir da aprofundarei as aproximaes entre o samba e o universo religioso da Ilha do Massangano (passando pelos caboclos, pela f nos santos e finalmente pela reza dos crentes) e no que isso tem a ver com a produo de existncias. Nesse sentido, 7

aproximarei esses domnios tanto via o trnsito desses fluxos e o controle desses corpos, quanto via uma noo prpria de aprendizado comum no samba e na religio que passa por uma idia de brincadeira. PESQUISA Situada no trecho submdio do vale do Rio So Francisco, mais especificamente entre as cidades de Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), sendo esta ltima sua cidade sede, a Ilha do Massangano situa-se a poucos quilmetros do porto final do que era ento o trecho navegvel do rio que ia de Pirapora, em Minas Gerais, at Juazeiro da Bahia. Diante disso, alm das atividades campesinas tpicas daquela regio do vale do Rio So Francisco, grande parte dos homens que viviam na Ilha at meados da dcada de 1950 marco da construo da Barragem de Sobradinho tambm ocupavam-se com os ofcios das guas. Saram de l exmios moos de convs, contra-mestres, comissrios, prticos (pilotos) ou mestres, comandantes, entre outros. Eram nas barcas de figura ou, mais recentemente, nos vapores que alm de matrias-primas e manufaturados, carregavam-se histrias, msicas, sambas, religiosidades. So dos modos de existncia desses remeiros e seus descendentes e das intensidades que os atravessam que trata esta dissertao. Minha opo em pesquisar as relaes existenciais em torno das prticas musicais nesta Ilha de pouco mais de 5 km de rea e de populao estimada em cerca de 150 famlias ou 850 pessoas9 foi uma maneira de dar vazo a um desejo inicial que eu tinha de estudar os impactos de grandes projetos de desenvolvimento naquele trecho do Rio So Francisco, j que vivi em Petrolina-PE por mais de dez anos. De alguma forma, ainda que por caminhos tortos, julgo que alcancei esse objetivo. No h como duvidar que na Ilha do Massangano esteja uma dessas populaes que a literatura especializada chama de afetadas pelo impacto de grandes empreendimentos, como foi a construo da Barragem de Sobradinho situada a 40km a montante da Ilha.10 Dessa forma, a construo da Barragem de Sobradinho11 foi literalmente um divisor de guas para o povo de Celestina, j que por mais que ela no tenha, emOs dados so estimativas da Associao de Agricultores da Ilha do Massangano. Para esse debate sobre os usos dos termos, ver, por exemplo, Vainer (2008). 11 A barragem que comeou a ser construda ainda na dcada de 1950 s entrou em operao em 1978, com o funcionamento de sua primeira turbina. Era poca da ditadura militar no Brasil. Em sua10 9

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tese, impedido o trnsito das embarcaes naquele trecho do rio, certamente o tornou economicamente invivel.12 Somada a isso, a construo da barragem tambm alterou o regime de cheias e secas do rio, sobre o qual se orientava a prtica ribeirinha de plantio, chamada de vrzea13 j que o fluxo de guas deixa de ser algo natural e passa a ser controlado pelos engenheiros da usina, cujos interesses certamente no so os mesmos daquela populao ribeirinha. Sendo assim, a populao massangana foi afetada no sentido exato em que o represamento das guas significou tambm o represamento das afeces (ou dos encontros) que, conforme veremos, matria principal na constituio daquele povo e daquelas pessoas j que elas tm nessas travessias o motor de suas invenes culturais. E se o samba continua existindo porque seu povo pde reinventar essas travessias. Se j no se pode mais cruzar o rio a barco, hoje a Ilha, atravs do samba, quem parte em viagens rumo a novos encontros. Fui motivada pela idia de estudar um samba que eu, desde menina, quando morava em Petrolina, tinha ouvido falar ser inveno de uns negros que viviam isolados numa Ilha. Com o passar do tempo, o samba saiu dessa nebulosa e passou a habitar os noticirios locais ganhando fama com o nome de Samba de Vio da Ilha do Massangano. Assim, no dia 31 de maio de 2009 mudei-me para a Ilha, l permanecendo at o dia 31 de agosto deste mesmo ano. Alm dessa estadia mais longa, fiz duas outras pequenas incurses pela Ilha. Uma anterior, dos dias 4 a 6 e 22 a 23 de janeiro, como uma primeira aproximao minha em campo, feita na poca do reisado, momento

construo alagou-se uma rea de 4.214 Km e a cifra oficial de populao deslocada foi de sessenta mil pessoas, cerca de 77% da populao da rea. Hoje estima-se que essa cifra seja talvez o triplo do que foi estipulada. Foram parcialmente inundadas terras do municpio de Juazeiro, Sento S, XiqueXique, na margem direita do rio, e de Casa Nova, Remanso e Pilo Arcado na margem esquerda. Tambm foram inundadas quatro sedes municipais (Remanso, Casa Nova, Sento S, Pilo Arcado) e dezenas de outros povoados (Sigaud, 1988). 12 No que a barragem tenha interditado as passagens das embarcaes. H possibilidade de atravess-la com um sistema de eclusas, mas o trnsito deixou de ser livre. O que ela representou, pelo menos para aquela populao ribeirinha, foi o encerramento da viabilidade econmica e tambm fsica dos transportes Bahia-Minas. Nos esforos de modernizao da regio priorizou-se as rodovias, que alm de levar menos tempo, podem transportar um maior volume de bens e demandam um menor esforo por parte de seus trabalhadores. 13 A agricultura de vrzea consiste basicamente no aproveitamento do fluxo natural das guas como espcie de irrigao sazonal de trechos de terra localizados margem de rios. No caso da Ilha do Massangano, o perodo de seca, no vero, colhia-se o que se plantava no perodo de cheia, que acontecia no inverno ou logo aps. L se plantavam hortalias como alface, coentro, cebolinha; leguminosa como cebola; e tubrculos que tinham como seu principal representante a mandioca brava, insumo da farinha branca.

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especial para samba. E, por fim, uma visita final a campo nos ltimos dias do perodo da quaresma, da quinta-feira anterior sexta-feira da paixo at o sbado de aleluia, contabilizando ao todo trs meses e uma semana de campo divididos ao longo de cinco meses de estadia. Para uma primeira aproximao, procurei a ento vereadora Raimunda Sol Posto, tanto por serem notrias na cidade suas relaes polticas com a Ilha do Massangano, quanto por ela e minha me terem sido colegas de trabalho na gesto do prefeito de Petrolina Guilherme Coelho em meados da dcada de 1990. Numa rpida conversa em sua casa, Dona Raimunda me apresentou ao samba atravs de seus dois CDs gravados e convidou-me para que a acompanhasse numa visita Ilha, hospedando-me em sua casa, para que pudesse conhec-los ao vivo. No pude ir naquela primeira vez, mas fui numa segunda. Entretanto, aquela no me pareceu a melhor porta de entrada em campo: associar-me na Ilha figura da vereadora de partida tinha me posto numa relao com os ilhus desde um viis de trabalhadora da cultura, e no de investigadora dela. Isto , os discursos e pessoas que vinham at mim eram sempre a partir de um olhar interessado Poltica Cultural, e no nas polticas daquela cultura que era o que mais me interessava. Mudei de estratgia e procurei chegar Ilha por outros caminhos. E foi curiosamente atravs de dois agentes culturais Chico Egdio e Solange Soares que pude conhecer Francisco das Chagas que, embora no faa parte do povo de Celestina, tem com eles laos estreitos de afinidade, sejam atravs de relaes de compadrio, sejam atravs de polticas de vizinhana. Foi em sua casa que vivi durante os trs meses que estive em campo, e por ali pude conhecer a Ilha profunda, aquela das rodas de samba dos terreiros e no dos sambas dos palcos. Chagas, como mais conhecido, comprou as terras de uma das netas de Celestina e por isso passou a ser morador e, posteriormente, liderana da Ilha. Sua casa foi construda ao lado da de Dona Amlia, o que por sorte minha fez dela minha vizinha. Assim, escolhi a (e fui acolhida pela) famlia de Dona Amlia, cujos componentes apontam relaes diretas de descendncia com Manoel de Oliveira e Helena Celestina dos Santos, com os quais o samba deu suas primeiras pisadas na Ilha. Foi em meio a esse povo que entre si compartilham a mesma cor, a mesma comida, a mesma cachaa, os mesmos sambas que vivi a maior parte dos meus dias na Ilha, e so deles a maior parte dos causos contados nessas pginas. 10

E, estando entre eles, fui surpreendida por uma infinidade de prticas musicais e festivas, o que me fez perceber rapidamente que o samba tal qual conheci atravs dos CDs e apresentaes era apenas sua verso mais clebre. Ainda assim, apoiandome no tal fogo do samba que, segundo os nativos, supera as demais expresses musicais da Ilha, mantive meu foco nessa prtica musical. E no apenas nas prticas do fogo do Samba de Vio, mas para as de qualquer samba. E digo prticas porque interessa-me antes pensar o samba enquanto algo imanente s relaes sociais da Ilha do que como um veculo que gera identidade cultural regional. Isto , antes de falar sobre o Samba de Vio da Ilha do Massangano, em campo procurei estar atenta s relaes que compem o samba feito na Ilha, seja ele de reis, de bois, de chapu, de rancharia, ou de vio. Esta dissertao no conta, portanto, apenas as performances do samba no ato de suas apresentaes, mas, sobretudo ocupa-se em pensar as relaes que as conversas de cozinha, que as prosas tomadas em baixo dos ps-de-pau, ou que ou causos de mesa de bar estabelecem com os processos de feitura do samba. Esta dissertao , pois, uma etnografia e na escrita etnogrfica que ela deposita sua fora. Pretendi aproximar meu modo de escrever dos modos de dizer massanganos, numa tentativa de proporcionar ao leitor, atravs da palavra, uma imagem das relaes de intensidades segundo as quais o povo de Celestina se dedica a viver. Portanto, se esta dissertao carece de maiores investimentos bibliogrficos porque ela optou por dedicar o tempo que teve a tornar conceito os dizeres daquele povo, isto , a atribuir ao pensamento deles o mesmo efeito que damos ao nosso conceito (Cerqueira, 2010). Minha aposta a de que a anlise mais profunda dessa dissertao esteja na superfcie do texto escrito. Isto , de que a anlise que subjaz aos termos esteja imanente na prpria apresentao do texto. A idia que, atravs de procedimentos descritivos, eu possa esboar uma imagem aproximada de como so os modos massanganos de se relacionar com as foras que sempre esto a todo momento lhes afetando, e que por trs meses tambm afetaram a mim. A escrita desta dissertao uma maneira de mostrar ao leitor a coragem e o esforo desse povo em manter-se de p frente potncia das experimentaes de toda sorte de foras a que se sujeitam sem serem por elas tragados.

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PRELDIO - O FUNERALNo havia trs horas que havia pisado meus ps na Ilha e depositado minhas malas no quarto e l estava eu de novo, com os ps sobre as guas so franciscanas. Junto a mim partiam da Ilha cerca de uma centena deles, foi o que contabilizou Chagas. Em silncio, um a um foram subindo nos barcos. Todos foram levar o caixo do morto-parente at o cemitrio, no lado da Bahia. O morto, no caso, era Berto Barrinha. Um mesmo senhor que eu havia conhecido numa primeira visita Ilha. Ainda que pouco pudesse compreender de sua fala embolada adquirida, me explicaram, aps ter sido vtima de uma srie de derrames , ele e sua esposa, Dona Francisca, impressionaram a mim e a Felipe, meu marido, por sua disposio de contar histrias. Disseram-nos que o samba coisa deles, e que religio cada um tem a que quer. Enquanto espiava o caixo sendo carregado at o barco principal, calculei a sorte que tive em conseguir trocar dois dedos de prosa com aquele senhor. A barqueata seguiu o cortejo fnebre, lideradas pela canoa que levava o defunto que ia a frente. De longe a Ilha foi ficando pequenina, na medida em que nos afastvamos dela. Na Ilha restou Dona Francisca que, na companhia da filha Darcilene, decidiu no acompanhar o cortejo. Disse no ter foras para tanto e, de longe, acenava ao marido. Em comboio, quem conseguiu vaga nas barcas tomou seu acento e juntos demos a volta em torno da Ilha do Massangano, para passarmos perto da Ilha do Rodeadouro e, finalmente, atracar numa vila de mesmo nome, a Vila do Rodeadouro, onde os Ilhus enterram seus mortos. J aportados, descemos das canoas e outras pessoas do vilarejo juntaram-se a ns e seguiram velando o corpo. quela hora o sol j tinha sado por de trs das nuvens, e a grande quantidade de gente e de barcos sob as guas foi algo muito bonito de se ver. Os homens puseram o caixo nas costas e o carregaram at a capela do vilarejo, e ali o corpo foi velado uma segunda vez. O padre chamado Gilberto, que velou o corpo, descobri mais tarde ser parente de Seu Berto, assim como boa parte, se no todas as pessoas que estavam no local. Todos lamentavam a partida daquela personalidade ilustre, enquanto o padre passava boa parte do sermo falando de ressurreio. Dizia que sua alma deixara o corpo, mas que haver um dia em que todos voltaro: esta a palavra da salvao, amm. Diante daquilo, perguntei a Chagas se Seu Berto era catlico. Ele me respondeu que sim, catlico como a

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imensa maioria da populao da Ilha. Alm de catlico, Chagas explicou-me, Seu Berto foi tambm um dos primeiros a ter um terreiro na Ilha, e que foi a partir do dele que por l surgiram outros tantos. Completou explicando que ainda que todos fossem catlicos, no havia nada que os impedissem de cuidarem de seus caboclos j que no enxergavam aquilo como religio. Todos saram, e o corpo desta vez foi levado por um carro que estava a espera do lado de fora da capela. Me desencorajaram a acompanh-los at o cemitrio, alegando ser muito distante. No sabendo bem o que fazer, achei por bem acatar a recomendao e, junto a Chagas, aguardei num bar o retorno dos parentes, que dessa vez voltariam sem o caixo. Mesmo de longe, pude avistar e ouvir os cnticos dos que seguiam o cortejo. Feito aboios, muito bonito era o canto dos penitentes homens e apenas homens que se flagelam no perodo da quaresma e que tm na figura das alimentadoras de alma, sua verso feminina. Ali soube que Berto Barrinha alm de mestre de vapor, caboqueiro fino, e enfrentante do samba tambm j foi chefe dos penitentes, sendo praxe que em ocasio de morte de um deles, seus cantos sejam entoados. Entretanto, naquele dia, a pedido de D. Francisca, enquanto o corpo foi velado na sala de sua casa, no houve cantoria. triste demais, explicou-me depois. No bar soube que o pai de Seu Berto viera de Barrinha da Conceio, um povoado vizinho Vila do Rodeadouro, e que por isso o seu sobrenome. Chagas disse l ser terra de preto, e estimou que inclusive a Ilha do Massangano tambm fosse, num linguajar oficial, um territrio quilombola. Ele creditou sua suspeita ao fato de ter ouvido rumores que a Ilha servia de refgio aos negros que viam suas terras em Barrinha da Conceio ameaadas por estranhos. No dizer de Chagas, a Ilha do Massangano seria, portanto, uma espcie de quilombo de quilombo e que seu Berto provavelmente teria relaes ancestrais com esses povos, tendo em vista suas origens lastreadas pelo nome que carrega. Aos poucos, os parentes comearam a voltar do cemitrio. Uma tripulao diferente embarcou de volta Ilha, em sua maioria crianas. Naquela hora j entardecia e o sol se punha atrs das guas. Assim como a tripulao era outra, assim tambm foi o trajeto: margeamos a Ilha do Massangano pela ponta oposta ao Rodeadouro e paramos na travessia Beira-rio, onde algumas pessoas desembarcaram para voltar a suas casas em Petrolina. Chegando a Ilha, desembarcamos todos e Chagas me conduziu at a uma capela localizada na rua principal. L ele apresentou-me encarregada da Igreja, uma senhoria miudinha e 13

muito simptica, que responde pelo apelido de Tot. A senhora apresentou-me famosa estatueta de Santo Antnio que, abrigada por uma redoma de vidro, estava situada no altar principal da igreja. Explicou que a imagem foi recuperada por um tioav seu num episdio da Guerra de Canudos. Conversamos e aps algum tempo Dona Amlia juntou-se a ns. Em frente capela, trocamos nossas primeiras conversas. Ela que numa visita anterior tinha se mostrado to desconfiada, mostrou-se bastante receptiva ao me ver na companhia de Chagas, julgando eu ser sua parente. E mesmo bastante incrdula quanto ao fato de eu vir a morar na ilha por trs meses, conforme lhe explicava, Dona Amlia mostrou-se bastante receptiva em me ajudar. Nossa conversa foi interrompida por uma outra senhora, de nome Teresinha, que nos avisou que a trezena de Santo Antnio no iria comear naquele dia, mas no seguinte, no dia primeiro de junho, como era o costume dos mais antigos. Seria assim esse ano, explicou, por conta da morte de Seu Berto. Na morte de parente no pode haver mais festa danante. Assim, em respeito ao morto no dia treze, dia do santo, na Ilha do Massangano ningum danar o samba. Voltamos para casa.

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CAPTULO 1: A ILHAA barca um mundo dentro do rio e o remeiro um mundo dentro da barca (Wilson Lins, 1983, p.93)

Aqui se contar a trajetria de um povo que constri a si e ao mundo que habita a partir de uma imagem em movimento. Sero abordados os modos de interao do povo de Celestina, no seu dizer. Para isso percorrerei quatro dimenses de sua vida: primeiramente seguirei as pegadas da terra da Ilha, observando de que forma seus habitantes enxergam os regimes de interao dos homens com a natureza; depois passarei pelo nufrago e o marinheiro com o objetivo de contar a saga das pessoas que aprenderam a viver numa natureza pensada como um fluxo constante e o que esses fluxos levam para a vida dessas pessoas; num terceiro momento me dedicarei a observar o que as correntes das guas pem em relao, que zonas de vizinhana elas estabelecem, constituindo, para alm de um territrio apenas, um territrio existencial; e por fim pretendo olhar para o que constitui o povo de Celestina a partir de todas essas idias de trnsito e fluxos, e no que consiste a idia de povo entre essas pessoas que se vem em movimento.

1. As pegadas da terra

Teve um tempo em que isso tudo era uma ilha s, disse Conceio referindo-se continuidade entre a Ilha do Massangano e a do Rodeadouro. E completou dizendo que tanto , que se voc for ver, ainda tem gente que nos papis da terra tem dizendo: Ilha do Rodeadouro. O que disse Conceio no se tratava de uma confuso legal, ou de uma mudana de jurisdio de terras. O caso que no faz muito tempo, as terras das ilhas eram pregadas uma na outra. Para aqueles que duvidaram, Conceio sugeriu apenas que reparem no desenho do brao de rio que hoje separa as ilhas: encaixa uma na outra direitinho. E completou dizendo que nesse tempo as ilhas todas eram baianas, assim como foram boa parte dos batizados,

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casamentos e ttulos de eleitor de sua gente.14 Mas Conceio ponderou que se voltssemos o tempo um pouco mais para trs, no final das contas, ser pernambucana nem to novidade assim: o bloco de ilhas e o Pernambuco j foram uma coisa s, tudo pregado. por isso que o rio do lado de c mais fino do que do lado de l, explica.

Imagem modificada por mim e retirada do http://maps.google.com/

E se Conceio afirmou que as ilhas tudo um dia foram uma coisa s, ela s pde faz-lo porque aquilo que era junto, hoje em dia est separado. Emergiu da terra o movimento inaugural das inmeras travessias massanganas que estariam por vir. Assim, se num tempo de primeiro os habitantes da Ilha se faziam nas travessias das barcas do Rio So Francisco vencendo toda sorte de correntezas e pedras pelo caminho , houve um tempo anterior no qual foi a prpria Ilha, enquanto poro de terra cercada de gua por todas as partes, que no escapou de se ver em trnsito. E no era apenas uma questo de perspectiva do observador-remeiro que desde seuE no de hoje que h confuso entre as fronteiras entre Pernambuco e Bahia nesse espao compreendido pelo Mdio So Francisco: At o primeiro reinado, Pernambuco tinha uma maior extenso de terras no Mdio So Francisco: seus limites ao Sul eram as margens do Rio Carinhanha, que hoje faz a divisa entre Minas e Bahia, e no o atual marco: o Pau da Histria, nas proximidades de Petrolina (PE). Aqueles topnimos (Banda da Bahia e Banda de Pernambuco) se perpetuariam na tradio oral ao longo de muitas dcadas depois de 1824, data em que Pernambuco perde grande extenso de terras margem esquerda do Mdio So Francisco. (Neves, 1988, p.175)14

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barco observava de longe a Ilha distanciar-se e desaparecer engolida pelo horizonte.15 A Ilha de fato teria andado. Razo semelhante decerto faz seus habitantes olharem com desdm o alvoroo ambientalista acerca do rumo das guas do rio. Eles dizem que o rio no est secando coisa nenhuma, que sempre foi assim, pois no h dia em que o rio amanhea igual. Assoreamento para eles s um outro nome que se d para a areia que fica mudando de lugar. Essa a concluso de Pedrinho ao constatar como mudou o banho da praia do Rodeadouro: onde hoje se pode caminhar sobre a superfcie rasa das guas do rio, num tempo de antigamente era tudo areia. O banho mesmo, ele disse, era s mais pra frente. E tudo ele atribui s enchentes, cuja fora arrasta o que estiver pela frente. Pedrinho explicou que todo ano, a partir do ms de outubro, h enchente no rio, que quando chove em Minas, em sua cabeceira. Como foi naquela cheia do rio de 1979, lembrou-se Francisca Claro. Daquele jeito, jamais houve uma segunda vez. Foi a primeira cheia da era da barragem na Ilha do Massangano. Naquele ano, o que se plantou na rea da vrzea foi coberto por gua em pleno perodo de seca. Alm da plantao, tambm foram perdidas as casas, cujas paredes de taipa tiveram seu barro derretido no contato com a gua. Foi o caso de dormir entre quatro paredes e acordar com a casa debaixo dos ps, contou Chica Claro enquanto anima-se com outras lembranas. que se, por um lado, o rio lhes levou a casa, por outro trouxe o peixe sua porta. A gente pescava uns peixes de anzol aqui na porta de casa!, disse indicando at onde avanou o rio. S ficaram a salvo as casas dos terrenos mais altos. E no mesmo lugar onde pescavam, lavavam roupa e se banhavam, ela contou animada. Aquele foi um dos melhores carnavais que eu j vi!. Sem plantao que se plantasse, o governo enviava a comida de barco, enquanto o peixe encarregava-se sozinho de chegar at sua panela: aquilo que normalmente se configuraria como um estado de calamidade, era para a meninada da Ilha o melhor estado de brincadeira.

que na Ilha do Massangano seu sistema referencial todo projetado a partir da interao entre a terra e as correntezas que a cercam. Isto , quando algum diz que est indo parte de cima da Ilha, est nos informando que ir se deslocar em terra no sentido contrrio ao da correnteza o mesmo vale para seu oposto. As referncias locais de cima e baixo seguem a mesma lgica do sistema referencial hidrulico oficial que leva o nome de a jusante e a montante do rio. E da mesma forma que h o lado de cima e o lado de baixo da Ilha, h tambm as outras duas bandas da Ilha, cujo sistema referencial so os estados que ela divide. Assim, toda a terra que estiver na margem que faz fronteira com a Bahia a banda da Bahia, assim como as terras que dividem guas com Pernambuco so chamadas de banda do Pernambuco, ou simplesmente o Pernambuco.

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A natureza, os ilhus aprendem desde cedo, sempre est em constante mudana. O nico estranhamento para a obra do ser humano: J pensou, Seu Francisco, que inveno danada essa: o homem querer controlar um rio? disse Dona Amlia a Chico Egdio, produtor cultural local, depois de ele a ter levado para conhecer a Barragem de Sobradinho. Ao contemplar o maior lago artificial da Amrica Latina, Dona Amlia no conseguia se decidir se preferia as guas represadas que do luz e televiso Ilha, ou as guas correntes que liberam a navegao e faz ir longe as pessoas e os peixes. O que ela tinha certeza que aquela Barragem que s pde conhecer naquele instante, com 73 anos de idade, ao represar as correntezas do rio que lhe trazia seu samba e levava seus homens, foi um divisor de guas em sua vida. Suas vistas anuviadas lhe impediam de enxergar longe no horizonte do lago, mas seu paladar no cessava de sentir o gosto do dourado de 12kg que seu marido havia pescado para comerem juntos no forr das via que Dona Amlia sempre fazia em sua casa na vspera do dia de So Joo no tempo em que as guas do rio corriam. Aps a construo da Barragem, nem as casas da Ilha ficaram no mesmo lugar. Onde antes estavam as casas hoje esto as plantaes e vice-versa. que nos tempos de primeiro, antes da construo da Barragem, os massanganos gostavam de plantar pelas beiradas da Ilha, enquanto as casas ficavam mais no topo, no meio da Ilha protegidas do azar de uma enchente maior que por ventura viesse. O arranjo era feito de tal modo que a caminhada do ponto onde estivesse a roa at o rio fosse a mais curta possvel, e assim o seu de comer e o de vender estariam garantidos sem desmedidos esforos, j que eram sobre as cabeas das mulheres que eram levadas as latas dgua que abasteciam as plantaes. A esta tcnica que se aproveita dos regimes de cheia e de seca do rio, chama-se agricultura de vrzea (cf. introduo). Mas atualmente j no mais se pode plantar assim na Ilha. Desde que as guas no obedecem mais a vontade do rio mas a vontade dos engenheiros que liberam e retm as guas segundo convenincias que certamente no so as da populao ribeirinha os habitantes da Ilha passaram a plantar no topo dela. Ali eles estariam a salvo de irem dormir num dia de seca do rio e acordarem no outro dia com as plantaes embaixo dgua. Hoje, no tempo da irrigao por inundao16, a bomba dgua que

O mtodo de irrigao usado pelas populaes cujo uso da terra destinado agricultura familiar o da irrigao artesanal, a qual garante o sustento de muitas famlias nas zonas ribeirinhas, como

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faz esse trabalho, e os ilhus preferem viver nas proximidades das guas. Os que ainda se dedicam ao trabalho nas roas fazem-no mais acima das margens. Tal manobra das guas forou a Ilha a se inserir no novo contexto agrcola da regio que prioriza a plantao de monoculturas de fruta, semelhante s fazendas de agronegcio, em detrimento das tradicionais policulturas17 que seu povo antigo se habituou a plantar. E, assim, o agricultor que vendia seu excedente de produo nas feiras locais, hoje, quando no dispe do capital necessrio para investir numa monocultura prpria de frutas, se v obrigado a vender sua mo de obra e passa a trabalhar como um assalariado nas firmas que como chamam as grandes fazendas de agronegcio na regio.18 A agricultura familiar vai aos poucos deixando de ser o principal destino dessas terras, passando a ser muitas vezes uma fonte de renda extra: prefervel a certeza do salrio mnimo no fim do ms s intempries do duro e incerto trabalho nas roas prprias. Assim, a construo da Barragem de Sobradinho, ao alterar o fluxo nas guas do rio, alm de ter freado as prticas agrcolas19 e a pescaria20 na Ilha do Massangano, ela tambm tornou impossvel o trnsito de embarcaes por suas guas. E so dos trabalhadores dessas embarcaes, que boa parte da populao masculina da Ilha se empregou, que tratar a prxima sesso.

tambm para a comunidade da Ilha do Massangano, visto que ela lana mo de pequenos motores a diesel para mover bombas que irrigam alguns hectares (Aquino, 2004, p.11) 17 Por muito tempo, a Ilha do Massangano dedicou-se principalmente ao plantio de hortalias, feijo, milho e macaxeira, em especial a mandioca brava, insumo da farinha branca Mais recentemente, alguns agricultores passaram a investir nas plantaes de cebola, que embora traga dinheiro fcil, quando mal administrado motivo da runa de muitas roas por conta da produo rpida, que assim como o dinheiro vem rpido, tambm vai rpido, dizem os agricultores. H os que insistem na plantao de arroz, como o Seu Pio, apesar do investimento e do esforo no compensarem atualmente, j que a preferncia dos consumidores pelo arroz ensacado e no o natural, como costumam dizer. Assim, quando no esto nas firmas, ou esto desempregados ou ocupados: como empregadas domsticas, se so mulheres e como garis, se so homens. H, obviamente, outras ocupaes, mas nenhuma que se sobreponha a essas. 19 Ainda que a tecnologia da irrigao tenha chegado at a Ilha de modo precrio e tardio, a responsabilidade pela decadncia das atividades agrcolas em solo massangano, segundo seus moradores, deve-se antes ao surgimento de uma erva daninha chamada tiririca do que propriamente m gerncia de polticas pblicas regionais. Tanto que gradualmente as plantaes de hortalias da Ilha foram cedendo espao para as rvores arbustivas, que, por serem de mdio porte, so menos afetadas pelas pragas. 20 Assim como as grandes travessias, a pesca tambm por ali uma atividade em decadncia. Mas ao contrrio da primeira, os ilhus apontam como principal culpada a pesca industrial indiscriminada que habilita qualquer um a ser pescador, mesmo sem ter qualquer relao com o ciclo das guas, o trabalhos dos homens e a vida dos peixes.18

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2. O nufrago e o marinheiro

Em cima de uma barca de figura foi que Seu Manoel se deslocou desde o povoado do Estreito nas imediaes do municpio de Santa Maria da Boa Vista, na Bahia, e cruzou meia carreira do rio So Francisco para aportar com seu tamborete numa Ilha que na poca chamava-se Rodeadouro. L ele conheceu Helena Celestina dos Santos, com quem se casou e teve seis filhos. Seus descendentes contam que foi nessa viagem, quando trouxe Ilha seu primeiro tamborete, que foram ensaiados os primeiros batuques e que foi danada a primeira roda de samba do que hoje conhecido na regio como Samba de Vio. Foi assim com Seu Manoel, e assim tambm foi com seus filhos. Viviam nas travessias, no leva e traz de mercadorias, batuques e tradies. Esses homens que se metiam em travessias eram chamados de remeiros. Eles eram os tripulantes das Barcas de Figura21, embarcaes que povoaram o Rio So Francisco no perodo entre o sculo XVIII e meados do sculo XX. Eram chamados de remeiros por conta do uso de varas ou varejes com os quais impulsionavam as barcas rio acima22. Assim foi com meu pai e meus irmos, disse Dona Amlia. Foram criados com a vara no peito. E a topografia acidentada daquele trecho do rio fez de alguns deles hbeis marujos: alguns saam como moos de convs, outros em

Segundo Geraldo Rocha, tais barcas tm uma coisa de barca fencia ou da velha caravela portuguesa, com bordas baixas, graas a placidez das guas do rio que sulcam. (...) As barcas e os ajoujos de canoas sobem o curso do rio empurrados a varejes, percorrendo em mdia de 24 a 30 quilmetros por dia. (...) Os rijos mestios ribeirinhos, desde alta madrugada at o pr-do-sol, descansando apenas uma hora, ao meio dia, enquanto fazem a jacuba21, arrastam uma vara de cerca de 4 a 5 metros de comprimento, com uma ponta calada de ferro, pesando ao todo de 20 a 25 quilos (...) E a pesada barca arqueando dez ou doze toneladas de carga til e com um peso igual, devido ao bruto madeiramento de que constituda, vai arrastada contra a corrente pela fora muscular de 18 ou 20 homens atuando nos varejes. (Rocha, 1983, pp.19-21). 22 J eram assim chamados aqueles que navegavam sobre ajoujos. Antes desse perodo, no Brasil Colnia, apenas as canoas indgenas, as balsas ou ajoujos cruzavam pequenos trechos do rio So Francisco. As canoas so troncos de cedro ou tamboril, madeiras de pouco peso especfico, cavados a fogo e a enx, embarcaes indgenas denominadas em lngua geral ubs. O ajoujo a juno de duas ou trs canoas por um estrado de madeira, sobre os quais pisam os animais ou repousa a carga transportada. (Rocha, 1983, p.19).

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ofcios mais nobres.23 Ao partir, todos deixavam com suas mulheres metade do ordenado, recuperando a outra metade somente quando completavam a viagem.24 Dona Amlia disse-me ainda que, se eu reparasse bem, poderia notar no peito dos que restam ainda vivos na Ilha a marca daquele tempo. E espiou de soslaio o corpo de seu primo Raimundo, que embora j fosse de idade avanada, conservava ainda do trabalho duro das barcas o corpo robusto. E se os remeiros-sambistas ostentavam calos porque eles so a marca no corpo do esforo de arrastar o peso das embarcaes rio acima e rio abaixo apenas com o impulso de peitos e ps por meio de varas num tempo em que no existia motor e o vento no bastava em sua fora. E em cada remo, em geral havia no mnimo dois remeiros: um para empurrar o remo e outro para puxar (Dourado, 1973).

Figura retirada de Dourado (1973). Diferente do que sugere a ilustrao, tais embarcaes eram geralmente transportadas por dois ou trs remeiros.

De remeiros a vapozeiros, de moos de barca a mestres de vapor, esses homens da Ilha lanavam-se correnteza acima do rio, inventando suas tradies. Se na ida deixavam nas esposas tristeza, a volta era uma festa s. A Ilha reunia-se em suas margens espera desses remeiros que traziam, alm do seu sustento, suas cachaas,H uma certa hierarquia entre essas funes, que seguem mais ou menos essa ordem em grau de prestgio, do menor para o maior: 1) marinheiro ou moo de convs; 2) contra-mestre; 3) foguistas e carvoeiros; 4) maquinista; 5) taifeiros; 6) dispenseiro; 7) camareiras; 8) cozinheiros; 9) comissrio; 10) prticos (pilotos) ou mestres; 11) comandante (Neves, 1998, 125). Por medida de segurana dos donos das barcas (os chamados barqueiros), os remeiros apenas recebiam integralmente seu pagamento quando completavam a viagem redonda, isto , o contrato s acabava quando a embarcao regressava. As viagens duravam de um a dois meses quando faziam a meia carreira, que ia de Juazeiro at Santa Maria da Vitria, na Bahia ou de trs a cinco meses quando era feita a carreira grande indo de Juazeiro at Januria ou Pirapora, percorrendo todos os 1.371km de extenso que compem o mdio So Francisco.24 23

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rapaduras e seus sambas.25 Esses homens das guas so franciscanas ao passo em que tornavam possvel o comrcio ao longo de seu leito, inventavam versos, brincadeiras e religiosidades.26 E essa imagem de remeiros em festa no era exclusividade do povo da Ilha. H outras localidades das margens desse mesmo rio cujos homens-remeiros tambm experimentaram tanto as chagas do trabalho quanto a glria de seus sambas.

A luta da remeirada contra o rio tambm uma epopia de esforo, de herosmo e de desinteresse. No baixo So Francisco, principalmente entre Juazeiro e Jatob a navegao das barcas obra de tits. preciso ver o destemido mestio de nossa terra, nadando de pedra em pedra, arrastando o cabo de coco a fim de prender a embarcao, para lhe avaliar o destemor. s vezes para atravessar os peraus, as longas varas mal alcanam o fundo, e os tripulantes apoiando os ps nas bordas, mergulham o tronco na gua para impulsionar a barca, fazendo-a vencer a corrente. E tudo se faz ente gritos e pragas, risos e galhofas, ou cantares de cocos e toadas que celebram amores ou satirizam costumes e personalidades, enriquecendo o folclore nacional (Rocha, 1988, p.45 nfases minhas).

essa a imagem do remeiro que anima a literatura produzida sobre eles27. Segundo alguns autores, na saga dos remeiros junto s barcas de figura que se pode retraar a origem do folclore regional. Eram nessas barcas, e mais tarde nos vapores, que os remeiros, para alvio da dor e animao da alma, inventavam seus cantos no pesado e mal pago trabalho das travessias.

Tais embarcaes partiam de Juazeiro levando fsforo, querosene, acar, fazendas, miudezas, sal drogas, etc., e de l traziam rapadura, a farinha, o feijo, o milho e a cachaa (Dourado, 1973). O sal, entretanto, destaca-se por ser o insumo que ao mesmo tempo em que era a principal fonte de renda da regio, foi o que tornou possvel o transporte de produtos perecveis, como as carnes, por exemplo. Os primeiros donos de barcas da regio do sub-mdio do rio So Francisco foram os antigos donos das salinas das cidades de Pilo Arcado e de Sento S eram eles os barqueiros, patres dos remeiros, nos tempos em que as barcas de figura eram o principal tipo de embarcao a percorrer o rio. Esse sal chamado sal da terra foi o que abasteceu por muito tempo o serto brasileiro. Diz-se que da que surge a expresso estar no sal, j que quando cansavam-se da dura empreitada nos remos, os remeiros exaustos deitavam-se nas sacas de sal no convs das barcas. (Lins, 1983) 26 Os aspectos religiosos sero tratados no terceiro captulo. 27 Ver, por exemplo, Rocha (1983) e Lins (1983).

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O peso das barcas, a pequena quantidade de carga transportada, a diminuta distncia percorrida diariamente, os longos percursos a realizar e o pequeno valor das mercadorias conduzidas, tornariam tal navegao impossvel, se no fosse o desinteresse do remeiro, cotovia ribeirinha que trabalha mais pelas atraes que lhe proporciona a profisso do que pelo salrio que ela lhe oferece. (...) Para atra-los porm as barcas fazem escalas em todos os povoados. Os bons remeiros, os vogas, os trovadores famosos, tem o seu pblico de admiradores. Ao som das violas nas horas de repouso ou nos cantares acompanhados na monotonia das remadas, os tripulantes perpetuam em stiras os acontecimentos destacados da regio; e as aspiraes das cotovias do rio que tripulam as barcas se resumem em apreciar as feijoadas, nas farras dos portos ou no amor nas escalas. Os remeiros do So Francisco so grandes contribuintes do folclore nacional (Rocha, 1983, pp.19-21).

Retirando o pitoresco dos relatos, resta tambm na memria dos que conviveram com os remeiros a impresso deixada de sua inteligncia. Eles eram reconhecidos por seus pares no apenas pela habilidade de arrastar toneladas no peito, mas tambm por poder improvisar brincadeiras no duro percurso das correntezas. Essa perspiccia era sinnimo de inteligncia. As senhoras da Ilha no deixam de enfatizar essa qualidade de seus homens: eram inteligentes porque conheciam as pedras do rio, mas tambm porque sabiam brincar e fazer samba. Tanto assim que o famoso arteso de carrancas, o mestre Francisco Biquiba, tambm conhecido como Guarany, em um depoimento recolhido por Zanoni Neves em 1980, fez coro fala das senhoras. Referindo-se aos remeiros, ele disse que eram inteligentes, de muito esprito; msicos improvisados... Era bonito eles cantando. No tom da voga, eles cantavam. Eles inventavam... Qualquer fato que se dava com eles, eles inventavam aquela poesia. E era bonito... (Neves, 1988, p.221). Ainda que as senhoras da Ilha se orgulhem das aventuras das guas de seus homens, elas no desconhecem a m fama que possuam ao longo das margens do rio. Era remeiro mesmo, como dizem. Peo de barca, trabalhador. Lascou as costas carregando as sacas, disse-me Dona Amlia sobre o que um dia foi o ofcio de seu

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marido.28 Seu comentrio sinaliza que as cotovias ribeirinhas (Rocha, 1983, p.19) muitas vezes eram tomadas por aves menos nobres. E assim, segundo o pesquisador Zanoni Neves (1998), a mesma idia seguia por todo o vale do Rio So Francisco: a glria das msicas e a intrepidez das histrias dos marujos pareciam no impressionar da mesma forma todos os cidados de sua poca. Pelos mesmos motivos que causavam admirao, os remeiros tambm podiam provocar ojeriza. O mesmo remeiro que era conhecido como alegre e festeiro por uns, podia ser o beberro e falastro para outros. A epopia de suas viagens no aliviava o odor e a sujeira das feridas abertas no peito e dos ps rachados. Sujos, mal pagos, baderneiros e feiticeiros, os remeiros eram a um s tempo admirados, desprezados e temidos. Mas essa no era a nica idia que habitava o imaginrio dos de terra firme acerca daqueles que vivem sobre as guas. Aqui no caso, em especial, os ilhus. Em geral, a idia de ilha para um ilhu no a mesma que para um habitante da terra firme. Muito embora este ltimo continue a inventar para o primeiro um imaginrio de isolamento, mesmo depois da construo da barragem, os marujos massanganos continuam a recusar a imagem do nufrago refugiado numa Ilha deserta29 e reivindicam a de um explorador, um aventureiro, capaz de vencer distncias e transform-las em proximidades. E tal parece ser a condio dos habitantes das ilhas: ao invs de passarem a vida desfrutando do deserto em que lhes colocam, preferem mover-se fora dele. O que vale para a Ilha do Massangano vale para outras. Hauofa,Seu Anacleto Silva foi tripulante de Barcos Vapor (ou vapores), mas era lembrado como remeiro assim como eram conhecidos os marujos de sua poca. A fora do remo pesou sobre os vapores das novas barcas, fazendo persistir por um bom tempo seu nome nesses ofcios das guas. Sobre o comeo dos vapores: Nos anos 70 do sculo passado, dois vapores foram lanados s guas do rio das Velhas e do So Francisco: o Saldanha Marinho e o Presidente Dantas, respectivamente. Com estas duas embarcaes inicia-se de fato a navegao a vapor no mdio So Francisco (Neves, 1988, p.124). Mas somente na dcada de 1950 do sculo XX foi que ela tornou-se mais popular com a criao da Cia de Navegao do So Francisco. o que aparece, por exemplo, nesse trecho de reportagem retirada da sesso de turismo do Jornal do Commrcio, de ampla circulao no estado de Pernambuco: Imagine uma ilha repleta de praias desertas distribudas em cinco quilmetros de um dos mais belos e acidentados trechos do rio So Francisco. Um lugar tranqilo, bem menor que a Ilha de Itamarac, entrecortado de matas, elevaes, lagos e enormes mangueiras, cujas sombras acolhem generosamente os moradores na sesta do almoo ritual, alis, herdado dos antepassados caboclos. Essa a encantadora Ilha de Massangano (Brilhante, 2001, trecho retirado do stio http://www2.uol.com.br/JC_2001/0204/tu2903_1.htm, no dia 13/05/2010.). Ou ainda, acerca do samba que consagrou a Ilha como reduto cultural regional: Ao mesmo tempo, embora possa ser reconhecido, esse samba de vio da Ilha do Massangano tem uma identidade que no se confunde com nenhuma outra. H caractersticas marcantes que evidenciam essa condio, inclusive constatadas at pelo fato de, h pouco tempo, ser parte de uma comunidade quase isolada, no meio do rio So Francisco. (Trecho publicado na contracapa do segundo CD do Samba de Vio da Ilha do Massangano, escrito por Elisabet Gonalves Moreira, membro da Comisso Pernambucana de Folclore).29 28

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intelectual polinsio citado por Sahlins (1997), escreveu que os povos polinsios, ao invs de viverem encarcerados num suposto isolamento, ocupam-se em ficar expandindo as redes de parentesco atravs das quais fazem circular a si mesmos, a seus parentes e a suas histrias atravs do oceano; o oceano lhes pertence, porque sempre foi seu lar (Hauofa apud Sahlins, 1997, p.107). Voltando s terras massanganas, esses viajantes das guas de um outro tempo hoje traam caminhos pelas estradas asfaltadas que ligam as travessias da Ilha a outras. Mas esse jogo entre gua e terra no novidade para um ilhu massangano. Eles sempre foram a um s tempo constitudos pela terra j que so rurais em grande parte de suas atividades e pelas guas j que so insulares e das guas que retiram um de seus principais meios de subsistir. Desde o perodo do auge das navegaes at o das pequenas travessias nos entre-portos, os massanganos vivem nesse movimento entre a gua e a terra, entre as correntezas e suas margens, entre as barcas e os portos, entre o fluxo e as paragens.

3. A correnteza das guas

Assim foi desde o princpio, isto , desde que se entendem por gente: os ilhus saem da Ilha e ganham a fora da correnteza. Quando pequena, Dona Amlia observava seus irmos j rapazes partirem da Ilha rio acima nas barcas com destino a Januria, Minas Gerais. Ela mesma disse que s foi uma vez, pois, naquele tempo, mulher no tinha desses direitos. Foi seu irmo Francisco que a levou para conhecer o rio de cima assim mesmo s at a metade, ali em Santa Maria, de onde seu pai veio. s mulheres, cabia cuidar dos trabalhos da terra. O trnsito das guas era tarefa para homens. Dessa forma, enquanto que para elas a Ilha muitas vezes era um pedao de terra cercado de gua por todos os lados, para eles a definio correta seria a de uma poro de terra cercada por vizinhanas. Ainda mais ali, a apenas 15 km de onde foi um dos portos mais movimentados do rio So Francisco: o porto de Juazeiro da Bahia. Ali era o ponto final da rota das embarcaes que unia o Nordeste ao Sudeste

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brasileiros.30 A Ilha do Massangano sempre esteve num local estratgico, que jamais lhe possibilitou desfrutar de seu suposto isolamento. Ao contrrio, aconteceu a ela, por sua condio de ilha-quase-porto, o mesmo que aconteceu quelas ilhotas do arquiplago da Polinsia, cujos povos viviam em grandes associaes de ilhas ligadas pelo mar como no anel do kula, ou na comunidade regional de Tonga, Fiji, Uvea, Samoa, Rotuma, Futuna e Tokelau ; ligadas, note-se bem, e no separadas pelo mar. (Sahlins, 1997, p.107 nfases minhas). Assim, a Ilha do Massangano, localizada no corao do que foi uma das mais movimentadas rotas do comrcio do incio do sculo XX, experimentou desde cedo o sabor das travessias. , como vimos, um pedao de terra cercado por vizinhanas e, assim sendo, no tarefa fcil precisar onde comea e onde termina. Houve um tempo em que o fluxo das guas so franciscanas dava a dimenso do alcance dos contatos que possibilitava, de sua zona de vizinhana. Ainda mais se levarmos em conta o trnsito de sua gente: at meados do sculo passado no havia bem como saber quem era da Ilha ou da Vila do Rodeadouro, da Lagoa, de Barrinha da Conceio, de Petrolina ou de Juazeiro. Cada uma dessas localidades era como um ponto numa rede que mapeava um territrio de existncias massanganas, cuja dimenso no cabia no permetro da Ilha. Ela tem o alcance de suas correntezas.

Mapa dos trnsitos da Ilha no tempo das embarcaes.31

A cidade de Juazeiro abriga desde 1924 a Capitania dos Portos de sua regio. Tambm por conta do intenso trfego e trnsito de mercadorias, em 1896 inaugurou-se ali uma estrada de ferro que ia de Salvador at Juazeiro da Bahia, para escoamento dos produtos comercializados mais ao interior do estado, onde no chegavam as guas.31

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Matriz retirada do http://maps.google.com/ em julho de 2010.

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Juazeiro, por exemplo, foi por muito tempo o centro urbano de referncia da Ilha. L viveu e vive grande parte dos parentes da Ilha32. Mas h massanganos tambm nos povoados, como na Lagoa, em Barrinha da Conceio e no Rodeadouro, com o qual a Ilha mantm um forte intercmbio de pessoas e mercadorias ainda nos dias de hoje. A Vila do Rodeadouro era o caminho para a Ilha acessar a terra firme. Seu porto era a principal porta de entrada e de sada para a Ilha do Massangano. L se situa a sede da Associao de Barqueiros, cujos fundadores, em sua maioria, foram antigos habitantes da Ilha. Anacleto da Silva, esposo de Dona Amlia, foi um deles. Mas ainda que mantivesse intensas relaes com a Vila do Rodeadouro, diz-se da origem de sua famlia que nunca foi de l, mas de outro povoado: o da Lagoa. De l veio seu pai Deca que, ao casar-se com sua me, Dona Josefa Isabel senhora que anos mais tarde emprestou seu nome Associao Cultural do Samba de Vio da Ilha do Massangano, como veremos mais adiante no segundo captulo deixou muitos descendentes entre a Ilha e a Vila. Esses, chegando na Ilha, misturaram-se a ponto de quase no mais se distinguirem. Anacleto e seu irmo Lenidas casaram-se com as tambm irms Dona Amlia e Maria Pretinha, respectivamente, ambas filhas de Helena Celestina e Manoel Oliveira, com os quais se comeou toda essa histria. Tais arranjos matrimoniais (unio entre concunhados) so bastante comuns na Ilha ainda nos dias de hoje.33 um troca-troca, como se diz, ri Dona Amlia. E assim os filhos de cada casal tratavam-se como se irmos fossem: os netos de uns tratam os filhos dos outros como tios, e vice-versa. Confundem-se uns nos outros, ainda mais sendo vizinhos: vivendo juntos com uma casa colada na outra. E se na Ilha se misturavam, o mesmo acontecia nas travessias. No havia uma rota nica que ligasse tais vizinhos Ilha. Tinha um tio meu que era praticante de vapor. Vapor de navegao. E viajvamos muito a gente. Pra Januria, pra todo canto. Antes da barragem, foi o que me contou Z Pancinha, tambm aparentado do povo de meu marido, como dizia dele Dona Amlia. Z Pancinha disse que j foi de tantos lugares quantos foram os portos daquela pequena rota dos arredores da Ilha. Agora eu, minha famlia, somos daqui do Rodeadouro, de Cabrob, de Belm, do Brando. Agora minha av era da Serra do Mar. De um bocado de lugar., disse. E assim comoMais exatamente, os migrantes escolheram os bairros de Santo Antnio e do Quid como moradia, j que ao mesmo tempo em que esto s margens do rio, no foram ainda alvo da especulao imobiliria crescente na regio. 33 H casos tambm na gerao dos filho de Dona Amlia, como o caso de sua filha Maria Jos e seu filho Alusio, que casaram-se com os tambm irmos Carlos e Iracy, por sua vez, ambos filhos de Tino, tambm aparentado do povo de Celestina.32

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foi desses lugares, ele tambm foi da Ilha da Lagoa, que chamava de Moiss (...) Ns moramos l cinco anos. Depois nos levaram l pra ilha da Amlia. Dali passaram a gente pra ilha da Barra do Salitre. Depois caminhamos aqui pra Ilha do Rodeadouro. A Ilha do Rodeadouro a que se referia era a do Massangano, e por ali aportou quando casou-se com Dona Vicena e com ela teve vrios filhos. Dona Vicena irm de Berto Barrinha, e como o prprio sobrenome de seu irmo indica, vieram do povoado vizinho chamado Barrinha da Conceio. Trata-se de um pequeno povoado que conta com cerca de uma dezena de casas e que se situa na margem baiana vizinha Ilha. Barrinha, como tambm chamado, um povoado tpico de sua regio: tem um santo padroeiro no caso, Nossa Senhora da Conceio e subsiste a partir dos ofcios das guas e de uma incipiente agricultura, cuja colheita vendida nas feiras dos centros urbanos vizinhos. Ele um ponto a mais nessa rede de intercmbio de pessoas da qual a Ilha faz parte. Ali, sabe-se, est assentado o povo de Alice, conforme os massanganos chamam seu povo aparentado. Alice foi tia de Helena Celestina, me de Dona Amlia e irm Celestina dos Santos. E a comear por Alice, grande parte da gerao dos antigos, inclusive seus sambistas mais reconhecidos, tm com Barrinha da Conceio laos estreitos. Foi na ocasio do funeral do neto de Alice que pude dar-me conta da estreiteza dessas relaes: Padre Gilberto sofreu um ataque do corao no trajeto da sacristia da Igreja de Petrolina at o porto onde se faz a travessia que o levaria de volta para Barrinha da Conceio. Ainda que no fosse de fato padre, ele assim se fez conhecido por dedicar sua vida misso religiosa e tambm sua morte, j que foi enquanto carregava as hstias para a realizao de missas que ele veio a bito. Padre Gilberto deixou esposa e trs filhas. Morreu sozinho, do mesmo jeito de seu pai, lamentou sua me Roberta. Referia-se morte de seu marido Pedro, filho de Alice, vtima de afogamento aps ter sofrido um ataque epilptico enquanto pescava na alta madrugada na encosta de Barrinha. O fato de ter morrido sozinho era algo que realmente incomodava sua me Roberta. Partiu sozinho, ela repetia. Mas se ele foi sozinho, pelo menos em seu velrio estava bastante acompanhado. Em torno de seu corpo velado numa capela no povoado de Barrinha reuniram-se uma infinidade de parentes que h muito no se viam. Somente da Ilha estavam presentes Tot, Eva, Bertulina, Corina, Nailsa, Deta, Conceio, Dulcinete, Osias e Teresinha. no traado da relao entre o padre e essas senhoras que tentarei recompor as rotas de passagem entre a Ilha e sua vizinha. 28

Na primeira metade do sculo XX, muita gente mudou-se de Barrinha da Conceio para a Ilha do Massangano. Segundo contaram-me seus descendentes, mais ou menos durante esse perodo chegaram na Ilha, vindos do povoado, a me de Claro ngelo e o pai de Berto Barrinha, Seu Antnio Barrinha, cujos descendentes compem boa parte dos integrantes do samba na Ilha. A ausncia dos Claro no velrio indicativo tanto de um desgarramento deles de Barrinha da Conceio, quanto da falta de laos com o povo de Alice. Nascido em 1928, Claro ngelo Nascimento , junto a Z Pancinha, um dos sambistas mais velhos da Ilha ainda vivo. Casado com Dona Das Dores que conheceu margeando as guas mais abaixo no rio So Francisco, em um povoado do distrito das Pedrinhas, chamado Poo da Cruz e pai de Ftima Claro e Francisca Claro, Seu Claro ngelo deixou como legado aos seus nove filhos, alm do samba e suas terras, o seu segundo nome. O mesmo fez com ele anos antes o seu pai ngelo, que vindo das redondezas de Cabrob, em Pernambuco, conheceu no povoado de Barrinha da Conceio aquela que se tornaria sua esposa e me de seus filhos. Juntos mudaram-se para a Ilha do Massangano, quando ela ainda era Ilha do Rodeadouro. Fosse o contrrio, do pai ser de Barrinha e da me ser do rio de baixo, talvez o povo dos Claro estivesse presente no velrio do padre. que em Barrinha da Conceio, predomina a tendncia de se seguir o povo do marido. mais natural, disse-me Tot. Pode-se dizer que h uma inclinao pela patrilinearidade e virilocalidade. Mas comigo foi diferente, continuou ela. Ainda que seu pai fosse de Barrinha, seus laos mais estreitos so com o povo de sua me, Maria, irm de Helena e filha de Celestina. O caso que seu pai no tinha nem rumo nem paradeiro: Sumiu quando eu nasci, disse. Ele partiu depois que sua me morrera vtima de complicaes da hora de seu parto. Tot nasceu desenganada e sem me no meio do povo de seu pai, que no quis saber dela. Dessa forma restou sua av Celestina a incumbncia de cri-la. Tot passou a ocupar com os anos o posto de filha mais nova de sua av, e por no ter se casado herdou dela as suas terras, que ocupa boa parte da vila central da Ilha.34 Tornou-se, assim, do povo de Celestina mais do que do povo de Barrinha. mais pelos laos de Celestina com Alice, do que pelos de seu pai com o morto, que Tot estava em Barrinha no dia do velrio.

Foi Tot quem doou o terreno para a construo do posto de sade e da escola da Ilha, como tambm fez da antiga casa de farinha de Celestina o que hoje a capela da Ilha.

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O mesmo no se pode dizer dos demais presentes: Deta, Dulcinete, Conceio, Eva, Bertulina e Osas so todos netos de Antnio Barrinha, aquele que um homem s, como gostam de se referir a ele. que ele era o homem de uma palavra s, explicou-me Maria Jos, filha de Dona Amlia, referindo-se aos modos com que ele tratava os seus descendentes: no falava duas vezes, a palavra dele era a lei. Antnio Nascimento veio de Barrinha da Conceio e, ao casar-se com uma cearense, aportou de vez na Ilha do Massangano, onde fez vrios filhos. E so seus descendentes aqueles que hoje so conhecidos como o povo dos Barrinha. E este povo, alm do nome, por patrilinearidade, herdou de Barrinha da Conceio tambm seus modos de herdar: da mesma forma como acontecia nos tempos em que viviam no povoado, tambm na Ilha do Massangano suas mulheres continuam a seguir seus maridos.35 Assim, Berto Barrinha, filho de Antnio Nascimento, ao casar-se com a filha de Helena Celestina, Dona Francisca, a trouxe para suas terras, enquanto Albertina, tambm filha de Antnio, ao casar-se com o filho de Helena, Jos, foi morar em suas terras. Onde quer que tenham escolhido assentar moradia, o fato entre esses casais aconteceu o mesmo que entre os filhos de Dona Josefa com os de Helena: para usar as palavras de Dona Amlia, fizeram um troca-troca. Isto , houve novamente um casamento entre concunhados. As filhas da unio de Dona Albertina e Z de Helena Eva e Albertina tinham os mesmos avs das filhas da unio de Seu Berto e Dona Francisca Dulcinete, Deta e Conceio. Eram, por um lado, do povo dos Barrinha e, por outro, do povo de Celestina, que por sua vez aparentado do povo de Alice. Estavam mais uma vez misturados, tanto que no se distinguia qual desses lados as havia levado aos bancos da capela de Barrinha para velarem o corpo do padre-defunto. O parentesco com ele fazia-se pelos dois lados: tanto via Antnio Barrinha, tio de Dona Roberta, a me do defunto, quanto por Celestina dos Santos, irm de Alice, me de seu pai Pedro. Eis o povo de Alice que naquele dia constitua o povoado de Barrinha da Conceio:

Esses laos tambm justificariam as presenas de Osas e de sua esposa Teresinha, j que ele neto de Antnio, filho de outra filha sua, Maria. O pai de Osas foi ausente e Berto Barrinha o adotou com se filho fosse, j que era seu padrinho e por ele tinha predileo, dentre outros motivos, porque no teve filho homem de sua unio com Dona Francisca.

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No final, estavam l no somente porque so primos j que no final, se voc for ver mesmo, aqui todo mundo primo, como gostam de dizer mas porque sua relao de parentesco tem a fora da proximidade dos trnsitos entre essas duas localidades. Entretanto, ainda que o fluxo de pessoas que viajavam ao sabor das correntezas tenha sido freado pela construo das barragens, o povo massangano tratou logo de reinventar seus trnsitos. Constituram-se a si e a seus povos atravs de outras viagens feitas pelas estradas. No mais na rota das guas Bahia-Minas como fizeram outrora, mas sim nos caminhos que se abrem a partir de Pernambuco. Assim, a Ilha ganhou outras vizinhanas, localizadas agora a poucas pernadas. So elas: Roado, Tapera, Agrovila Massangano e Petrolina, principalmente.

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Hoje a Estrada da Tapera que alinha o fluxo de pessoas da Ilha. Aquilo que nos tempos das embarcaes era feito atravs do porto da Vila do Rodeadouro do lado da Bahia, agora feito por essa estrada: ela liga o porto da travessia pernambucana da Ilha do Massanganoao a seu atual centro urbano de referncia, Petrolina, que hoje a principal rota de migrao escolhida pelos massanganos. Entretanto, ainda que o rumo das emigraes apontem para uma possvel urbanizao das relaes sociais da Ilha, o que acontece parece ser o contrrio. Em alguma medida est havendo uma massanganizao das relaes urbanas dos bairros ocupados em Petrolina.36 como se em cada novo espao de moradia eles reproduzissem uma pequena Ilha para viver. Por exemplo, Nisor, Adelice, Cidinha e Ademir, filhos de Dona Amlia, assim que completaram idade de estudar migraram para Petrolina, onde havia escolas. L, os quatro se estabeleceram numa casa no bairro do Jardim Amazonas alugada de Seu Flix, um compadre de Amlia, que vive hoje na Ilha nas terras que um dia foram de Alice, sua tia. Aps a concluso dos estudos, metade voltou Ilha e a outra metade se estabeleceu por l, reproduzindo relaes massanganas: os filhos, sobrinhos e netos da velha sambista continuam a compartilhar vizinhana no espao de apenas trs ruas paralelas do bairro, mantendo entre si intensos intercmbios. Voltando Ilha do Massangano, como j foi dito, ela constituda tanto pela correnteza das guas, quanto por terra firme. Ela se faz existir no regime de interao entre esses dois elementos, sendo, assim, conhecida ao mesmo tempo por sua vocao rural como eram as demais ilhas desse trecho do rio, pois era nelas que se plantavam as roas (Neves, 1998, p.118) , quanto, como vimos, pela percia no manejo de suas guas. Dessa forma, seja por gua ou por terra, no campo ou na cidade, na Ilha ou em terra firme, o que importa para o povo da Ilha manter-se em fluxo sem que isso afrouxe as relaes que os fazem componentes de um povo s. Isto , ainda que o fluxo de pessoas tenha se deslocado das guas para a terra, a Ilha do Massangano segue sendo para seus habitantes um territrio em expanso assim como deve ser seu povo e eles prprios. Ou, em outras palavras, para um massangano, a Ilha no pode ser somente um territrio geogrfico, pois ela , sobretudo, um territrio existencial. Pode-se dizer das relaes que compem o territrio da Ilha Massangano aquilo que Deleuze e Guattari formularam sobre a composio de um territrio em geral: a marca que faz o territrio. As funes num territrio no so primeiras,L, as pessoas de origem massangana conc