dissertação Éa identidade sertaneja em goiás

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Dissertação A identidade sertaneja

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  • Universidade Federal de Gois

    Instituto de Estudos socioambientais Programa de Pesquisa e Ps-Graduao em Geografia

    A IDENTIDADE SERTANEJA EM GOIS: UM ESTUDO A PARTIR DOS ELOS ENTRE A GEOGRAFIA E A LITERATURA DE BERNARDO LIS

    Mestranda: Helaine da Costa Braga Orientadora: Prof. Dr Maria Geralda de Almeida

    Goinia 2009

  • Helaine da costa Braga

    A IDENTIDADE SERTANEJA EM GOIS: UM ESTUDO A PARTIR DOS ELOS ENTRE A GEOGRAFIA E A LITERAUTRA DE BERNARDO LIS

    Dissertao apresentada como requisito para a obteno de grau de Mestre em Geografia. Programa de pesquisa e Ps-Graduao em geografia do Instituto de Estudos Socioambientais- IESA da Universidade federal de Gois-UFG

    Orientadora: Prof Dr Maria Geralda de Almeida

    Goinia - 2009

  • II

    Banca Examinadora

    DR Maria Geralda de Almeida Prof do Instituto de Estudos Socioambientias IESA/UFG

    Dr. Oswaldo Amorim Filho Prof. PUC/MG

    Dr. Eguimar Felcio Chaveiro Prof. Instituto de Estudos Socioambientais IESA/UFG

    Data da defesa: 25 de Abril de 2009

  • IV

    Dedicatria

    A todas as pessoas que valorizam a cultura sertaneja do cerrado goiano

  • V

    Agradecimentos

    professora Maria Geralda de Almeida - Geografia Regional (2001), Planejamento regional ( 2003) e orientadora de Mestrado (2006-2009) - grata pelo aprendizado de geografia e pelo aprendizado de vida. Meu apreo pela docncia exercida com destreza, sensibilidade e generosidade. Ao professor Eguimar Felcio Chaveiro Geografia do Brasil (2001), orientador da Monografia de Bacharelado (2003), Teoria e Mtodo (2007) componente da banca de qualificao (2007) grata pela confiana, pela compreenso, pelo incentivo. Meu apreo pela docncia exercida com criatividade, sensibilidade e alegria. professora Loandra Borges Teoria e Prtica de Ensino de Geografia (2002) grata pela amplitude das discusses sobre a prtica de ensino de geografia, pelo cuidado no ano de 2002, pelas sugestes, pela contribuio e pelo incentivo em prestar a seleo do curso de mestrado. professora de Lngua Portuguesa e Literatura, Carla Regina Braga, minha irm, pelo apoio e pelos esclarecimentos sobre arte literria, um dos pilares da pesquisa. Ao professor Valney Rigonato, pela amizade, pelo respeito e pela colaborao desde a graduao iniciada no ano de 1999, no curso de geografia. Meu apreo pela dedicao, pela inteligncia e pela preocupao com o bioma cerrado e suas populaes tradicionais. Ao professor Tadeu Arrais pelas crticas apropriadas durante o exame de qualificao, pelo cuidado com a leitura do texto e pelas anotaes feitas punho. Joyce pela reviso das referncias bibliogrficas. Ao Espedito pela configurao do texto. Ao Charles, secretrio executivo do Programa de Pesquisa e Ps-Graduao em Geografia, pela presteza e pela responsabilidade no atendimento. Ao grupo de estudos em Geografia Cultural, orientado pela professora Maria Geralda de Almeida, composto pelas pessoas agradveis e competentes de Clarissa, Fbio, Idelma, Ldia, Luiza, Marcia e Mirne-Gleide. Grata pelas valiosas discusses e pelas colaboraes psquisa. Ao Silvestre a Idelma pelo precioso acompanhamento na passagem pelos municpios de Corumb de Gois e Abadinia. Em especial, s sugestes e contribuies da professora e pesquisadora Maria Idelma. Aos sujeitos da pesquisa - homens e mulheres de origem sertaneja, moradores do campo e da cidade - pela receptividade, pela participao imprescindvel realizao da pesquisa. Meu agradecimento especial gentileza e simpatia do seo Joo e da dona Jlia de Abadinia de Gois. CAPES, pela concesso da bolsa de estudos, no perodo de julho de 2007 a janeiro de 2008.

  • VI

    SUMRIO

    Lista de ilustraes .................................................................................................. VIII Resumo .................................................................................................................... IX

    Abstract ................................................................................................................... X Apresentao ........................................................................................................... 1

    Captulo I

    GEOGRAFIA E LITERATURA NA REPRESENTAO DO ESPAO GOIANO

    1 Arte e realidade socioespacial ............................................................................. . 12

    2 O Serto na Perspectiva das Cincias Sociais ....................................................... 22 2.1 Os Olhares Sobre o Serto .................................................................................. 23

    2.2 Os Olhares Sobre o Serto Goiano ..................................................................... 26 2.3 Tradio e Cultura .............................................................................................. 29

    2.4 Territrio, Natureza e Paisagem ......................................................................... 34

    Captulo II O SERTO GOIANO NA LITERATURA DE BERNARDO LIS

    1 (OHPHQWRVGR6HUWmR3DUD8PD/HLWXUD&XOWXUDHP(UPRVH*HUDLV&DPLnhos e 'HVFDPLQKRV H9HUDQLFRGH-DQHLUR..................................................................... 42 1.1 Fazenda e Vivncia Rural .................................................................................... 44 1.2 Homem e Hmus Natureza e Vida ................................................................... 52 1.3 Arraial, a Rua da Fazenda ...................................................................................... 57 2 A Cadncia do Serto Goiano ................................................................................ 61 3 Dilogo entre Solidariedade e Poder no Territrio Sertanejo ................................. 69

  • VII

    Captulo III AS TRANSFORMAES SOCIOESPACIAIS E AS IDENTIDADES

    SERTENEJAS: DO SERTO REPRESENTADO POR BERNERDO LIS AO SERTO CONTEMPORNEO

    1 Ruralidade e identidade cultural: o enlace do territrio com a paisagem ............ 84 1.1 O novo no territrio, o novo na paisagem ........................................................ 93 2 Das razes rurais aos signos urbanos: itinerrios territoriais sertanejos ............. 103 3 Vida e Cultura: os sujeitos e os sertes dos lugares ........................................... 118

    3.1 O serto recriado .............................................................................................. 120 3.2 Serto da memria e o serto simblico .......................................................... 124

    3.3 O serto da metrpole ...................................................................................... 127

    guisa de concluso: Os sertes de Gois ............................................................. 132 Referncias ................................................................................................................ 136

  • VIII

    Lista de Ilustraes Figura 01 - Localizao dos municpios limtrofes do municpio de Corumb de Gois Figura 02 - Provncia de Gois: ncleos urbanos surgidos nos caminhos do ouro ao longo do sculo XVIII - Vila Boa, Meia Ponte, Santa Luzia, Flores de Gois, So Domingos, Crixs, Corumb de Gois, Damianpolis. Figura 03 - Provncia de Gois - Sculo XX - localizao dos municpios mais populosos da dcada de 1920: Catalo e Boa vista do Tocantins. Figura 04 - Estado de Gois: ingresso e extenso da estrada de ferro em Gois 1913 a 1950.

  • IX

    Resumo

    Esta dissertao apresenta uma leitura da vivncia sertaneja em Gois, pela

    leitura cultural do passado. As reflexes resultam dos elos que unem Geografia e

    Literatura. A inteno da pesquisa foi de realar os contedos culturais do espao, de

    extrair do encontro da linguagem cientfica com a linguagem artstica os elementos mais

    significativos da relao dos sujeitos com o territrio.

    Estes elementos so valorizados pela corrente humanista da Geografia e esto

    presentes na literatura do escritor goiano Bernardo lis. Da sua obra, escolheu-se, para

    XPD LQWHUORFXomRFRPD*HRJUDILDRVOLYURVGHFRQWRV(UPRVH*HUDLV&DPLQKRVH

    'HVFDPLQKRVH9HUDQLFRGH-DQHLUR

    $LQWHUSUHWDomRJHRJUiILFDGHFRQWRVFRPR5RVD$(Q[DGD0RDJHP

    Como Ontem, Como Hoje, Como Depois, entre outros, levou em conta a interao dos

    sertanejos com a natureza do cerrado, as relaes sociais de trabalho, as representaes

    sociais , a valorizao simblica do territrio e as formaes paisagsticas. Estas

    categorias de anlise permitiram enviesar um percurso histrico da identidade cultural

    sertaneja: da sua construo em um contexto de ruralidade sua ressignificao em um

    contexto de urbanidade.

    H uma modalidade de identidade cultural sertaneja na contemporaneidade.

    Ela traduzida pelas leituras que as pessoas de origem rural realizam do espao

    urbanizado. A comunicao entre smbolos e valores tradicionais e modernos, presentes

    na vivncia e nas paisagens dos territrios, evidencia que a ressignificao da cultura

    convm ser refletida a partir das caractersticas basilares do espao sertanejo.

    Os sentidos da atual vivncia sertaneja puderam ser compreendidos porque, nos trs

    captulos que compem o texto dissertativo, a literatura de Bernardo lis cuidou de

    desvelar aspectos essenciais da complexidade do existir humano no cenrio de uma

    cultura regional.

    Palavras - Chave: Geografia Literatura - Identidade Cultural - Serto - Gois

  • X

    Abstract

    This essay presents a reading of the country lifestyle in Goias for the cultural

    rescue of the past. The reflections result from bonds between Geography and Literature.

    The intention of this research is to highlight the cultural space contents, extracting from

    the bond between scientific language and artistic language, the most significant

    elements in the relationship between subjects and territory.

    Such elements are appreciated by the humanist chain of Geography and are

    present in the literature of the Goiano writer Bernardo Elis. From his work to an

    interlocution of Geography, the short-stories books (UPRV H*HUDLV &DPLQKRV H

    'HVFDPLQKRV and 9HUDQLFRGH-DQHLURwere chosen.

    The geographic interpretation of short-stories such as Rosa, A Enxada,

    Moagem, Ontem Como Hoje, Como Amanh, Como Depois, among others, takes into

    consideration the interaction between the countrymen and the nature of the Brazilian

    interior vegetation, the social and work relations, the social representations, the

    symbolic territorial appreciation and the landscape formations. These categories of

    analysis allowed a route crossing within the cultural backland identity: from its

    construction in a rural context to its recreation in an urban context.

    Nowadays, there is a genre for the cultural backland identity. It is translated by

    readings that people from rural origin place within the urban space.

    The communication between symbols, traditional and modern values present in

    life experience and territorial landscape points out that giving a new meaning to culture

    does not discard the essential characteristics of the backland.

    The meanings of the current country lifestyle experience were able to be

    XQGHUVWRRG EHFDXVH LQ WKH WKUHH FKDSWHUV ZKLFK FRPSRVH WKH HVVD\ %HUQDUGR (OLV

    literature is about clarifying the complexity of the human being within the regional

    culture scenario.

    Key-Words: Geography Literature Cultural Identity Backland Goias.

  • XI

    Apresentao

    A cultura qualifica o espao geogrfico. Pela cultura, na sua imbricao com a

    economia e com a poltica, o substrato fsico-social onde a vida humana se desenrola se

    torna territrio. Esta premissa fundamenta as reflexes sobre a produo e a vivncia

    territoriais na abordagem cultural da Geografia.

    Os gegrafos culturais salientam que a apropriao dos territrios reflete as

    intenes humanas e que as paisagens culturalizadas so o registro de todas as

    realizaes. Ao participarem de determinados territrios e de determinadas paisagens,

    os homens, coletivamente, constroem e portam identidades e informam como criam e

    vivenciam seu lugar no mundo. Importa estudar as identidades territoriais e culturais

    dos grupos humanos, para entender como, contemporaneamente, geografias diversas se

    formam , se comunicam e se complementam.

    A presente pesquisa teve como objetivo principal, interpretar a vivncia

    sertaneja no espao contemporneo de Gois pela leitura cultural do passado. Alm da

    motivao biogrfica que alicera o estudo, o interesse pela temtica partiu das

    discusses acadmicas orientadas por dois paradigmas caros cincia geogrfica nas

    ltimas dcadas: a valorizao dos sujeitos e a dialtica entre o tradicional e o moderno

    na produo espacial.

    A valorizao do sujeito do espao uma prtica intelectual recomendada pela

    corrente humanista da Geografia. Gomes (2003, p.310), ao recordar as idias essenciais

    da Geografia humanista, destaca a principal delas: o homem a medida de todas as

    coisas e no existe conhecimento objetivo sem a considerao deste pressuposto

    Nesta perspectiva, pensar o espao geogrfico e realizar uma leitura capaz de revelar os

    sentidos profundos da sua produo e da sua vivncia, requer pensar os sujeitos nas

    suas formas de existir e de conceber o mundo os sujeitos e sua cultura, portanto.

    Presentemente, o existir humano se situa entre os valores da tradio e os valores da

    modernidade.

    Ressignificao o termo corrente que designa a sobreposio do novo ao

    velho, nos contedos culturais. A atual vivncia sertaneja denuncia, no nosso entender,

    a principal evidncia da dialtica espacial em Gois: os novos significados incorporados

    identidade territorial e cultural dos sujeitos contm o fundamento da sua cultura de

    origem.

  • 2

    Por pensar assim, buscamos estudar a realizao cultural do passado de Gois

    e extrair dela elementos necessrios interpretao da realizao cultural do presente. O

    recorte temporal da pesquisa compreende o sculo XX e a dcada corrente do sculo

    XXI.

    At a primeira metade do sculo XX, a ruralidade caracterizava o espao

    goiano. A partir deste perodo, o projeto de modernizao engendra as mudanas

    socioespaciais: a mecanizao do campo e as migraes rurais urbanas aceleram a

    urbanizao do estado e conferem-lhe nova estruturao territorial e nova configurao

    paisagstica. A dcada de 1970 marca o avano da modernizao e da modernidade

    em Gois. A disseminao do fenmeno urbano recria o espao e se faz refletir na vida

    social, nas prticas culturais e na dinamizao da identidade territorial e cultural da

    populao sertaneja.

    Neste sentido, esta pesquisa problematiza o espao goiano contemporneo,

    assim: - Quais so os desdobramentos da transio do rural para o urbano na identidade

    territorial e cultural da populao sertaneja goiana? Como a paisagem goiana revela a

    combinao de elementos rurais e elementos urbanos? Como pensar a dimenso

    cultural do rural e do urbano, em Gois? Que influncias a herana cultural sertaneja

    exerce na produo e na vivncia atuais do espao goiano?

    Estes questionamentos direcionaram as reflexes para o processo de

    construo e ressignificao da identidade territorial e cultural sertaneja em Gois. Para

    respond-los, seria preciso lanar mo de uma via metodolgica que pudesse permitir

    uma leitura significativa da cultura de Gois na temporalidade que antecede o avano

    das mudanas de maior repercusso: a primeira metade do sculo XX, quando o estado

    vivenciava um contexto de tradio e de ruralidade. Esta via metodolgica deveria,

    tambm, servir de subsdio s reflexes sobre a vivncia espacial contempornea.

    Decidimos pela conjugao entre Geografia e Literatura que orientou a

    monografia de bacharelado1 defendida no ano de 2003. Os resultados daquele estudo

    foram significativos: percebemos que a linguagem literria potencializou o olhar sobre o

    espao vivido pelos sujeitos goianos e, em especial, sobre as subjetividades destes

    sujeitos. Isto fez surgir a vontade de amadurecer a leitura geogrfica sobre Gois, pela

    juno da cincia com a literatura. Houve a inteno de ampliar a produo

    1 Geografia de Gois: Jurubatuba e a Dinmica das Paisagens do Serto. Orientao: Dr. Eguimar Felcio Chaveiro.

  • 3

    geogrfica sobre Gois, nesta linha de pesquisa. Tal inteno se fundamenta ainda no

    que Gomes (2003) escreveu a respeito do humanismo na Geografia: Para chegar a uma verdadeira interpretao das culturas, em sua inscrio espacial, o gegrafo deve ser capaz de reunir o maior nmero de elementos possveis que tratam dos valores, das significaes, e das associaes construdas por um grupo social. A arte , em geral, considerada como o meio mais livre e mais espontneo deste tipo de manifestao. Aquilo que a cincia no chega a reconhecer , devido aos limites impostos pelo mtodo, a arte o consegue por um meio no racional. Assim, da mesma maneira que os romnticos, que consideravam a poesia e a literatura como o bero da expresso dos valores humanos, os humanistas consideram a arte como elemento de mediao entre a vida e o universo das representaes. Geralmente invoca-se arte, mas efetivamente a maior parte dos estudos centra-se na literatura. (2003, p.314).

    Na Geografia produzida em Gois h pelo menos duas pesquisas recentes

    envolvendo a literatura. Uma da autoria de Olanda (2006). Ela estudou a

    representao das paisagens culturais em dois romances de Carmo Bernardes:

    Memrias do Vento e Jurubatuba. A outra da autoria de Moreira (2008). Ela estudou

    a representao de Goinia em fragmentos de Viver Devagar, livro de crnicas de

    Brasigis Felcio.

    Nesta pesquisa, optamos por contos de Bernardo lis. Entendemos que seria

    rico acrescentar este autor goiano e este gnero narrativo aos estudos que unem

    geografia e literatura. A literatura de Bernardo lis possui um carter regionalista e

    realista. Nela, o escritor demonstra amplo conhecimento do serto goiano. Este

    conhecimento fruto do seu interesse pelo modo de vida rural que caracterizava a

    maioria da populao durante a primeira metade do sculo XX. A ruralidade goiana -

    que importa para pensar a construo da identidade cultural sertaneja - est presente nos

    livros de contos Ermos e Gerais (1944), Caminhos e Descaminhos ( 1965) e Veranico

    de Janeiro (1966).

    Romances, crnicas e contos possuem caractersticas que favorecem a

    inteno de ampliar o conhecimento da condio humana por meio da linguagem

    literria, e a partir da, interpretar os sentidos do humano, na sua dimenso espacial.

    No caso especfico dos contos, tais caractersticas dizem respeito sua brevidade e

    sua capacidade de reverberar uma dada realidade.

    De acordo com Gotlib (2001,p.64) no conto sobressai D VHOHomR GR

    VLJQLILFDWLYR SRLV R contista condensa a matria para apresentar os seus melhores

  • 4

    PRPHQWRV. (ODH[SOLFDTXHSHODEUHYLGDGHGRFRQWRHSHODHOLPLQDomRGRVXSpUIOXR

    VXDQDUUDWLYDFDXVDXPHVSpFLHGHHIHLWR~QLFRQROHLWRUHPHVSHFLDOSRUTXHHOHSRGH

    realizar a leitura do conto sem interrupo. Assim, o fato narrado pode despertar a

    HSIDQLDH[SUHVVmRTXHWHPRPHVPRVHQWLGRGHLOXPLQDomRGHVFREHUWD

    Cortzar (1974), renomado contista, discorre com propriedade sobre a

    apreenso do significativo numa dada realidade, ao fazer uma analogia entre conto e

    fotografia. Para ele, tanto no conto quanto na fotografia h a necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento que sejam significativos , que no s valham por si mesmos, mas tambm sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espcie de abertura, de fermento que projete a inteligncia e a sensibilidade em direo a algo que vai muito alm do argumento visual ou literrio contido na foto ou no conto ( p.151-2)

    A avaliar pelas palavras de Cortzar, a projeo da inteligncia e da

    sensibilidade o aspecto que mais beneficia o gegrafo quando escolhe a literatura

    como uma de suas fontes de pesquisa. Especificamente pela leitura de contos, o

    pesquisador pode apreender com mais profundidade os elementos da realidade

    descrita, pois lhe oportunizado centrar-se sobre o dado mais significativo dessa

    realidade e refletir sobre seus desdobramentos.

    Os contos de Bernardo lis permitiram uma leitura relevante do espao

    goiano. Sua contribuio ao pensamento geogrfico se deu pela leitura integral dos

    livros supracitados ( neste caso, a literatura serviu de inspirao, teve participao

    indireta no texto) e pela transcrio de fragmentos que consideramos ser aqueles que

    melhor ilustrariam a vivncia espacial dos sujeitos e suas subjetividades (aqui,, a

    literatura serviu de anlise, teve participao direta no texto).

    Para esta investigao, elegemos natureza, paisagem, territrio, cultura e

    poder como as principais categorias de anlise. Elas permearam toda a dissertao que

    agora apresentamos distribuda em trs captulos:

    Geografia e Literatura na Representao do Espao Goiano

    Neste captulo realizamos uma discusso sobre a aproximao da Geografia

    com a Literatura. Chamamos a ateno para os pontos em que a linguagem cientfica e

    a linguagem literria se diferenciam e se complementam. Contamos com a explicao

  • 5

    de Ortega (1990) sobre a perspectiva realista nas manifestaes artsticas, de modo

    geral. Ressaltamos a perspectiva social da literatura e sua relao com o espao e com o

    tempo a partir das consideraes de Candido (1975), Lucas (1978), Bosi (1986) e

    Santos (2004). Textos que combinam Geografia e Literatura foram apresentados e

    dialogados entre Wanderley (1998), Monteiro (2002), Correa (2003), Braga e Chaveiro

    (2003), Chaveiro (2005), Olanda (2006), Almeida (2007).

    Apresentamos o espao sertanejo na perspectiva das cincias sociais. Iniciamos

    com a exposio de diferentes concepes de serto para depois focalizar o serto

    goiano. As idias mais globalizantes de serto foram sintetizadas por autores como

    Abreu (1988), Souza (1998) Almeida (2001; 2003), Arruda (2001), Chaveiro

    (2001;2005); Moraes (2002;2003), Guillen (2002), Espndola, (2004). As idias

    restritas ao serto goiano so da autoria de Bertran (1978), Palacin (1982) Chaul

    (1998), Estevam (1998), Borges (1998), Gomes e Teixeira Neto (2005) , Oliveira (

    2005), entre outros.

    O Serto Goiano na Literatura de Bernardo lis

    Neste captulo buscamos elementos para uma leitura cultural do serto em

    Ermos e Gerais, Caminhos e Descaminhos e Veranico de Janeiro. Estes livros

    renem contos em que Bernardo lis ficciona o remoto universo rural de Gois. Os

    enredos representam aspectos importantes da vivncia espacial no contexto histrico-

    social da primeira metade do sculo XX. Por isso, contriburam significativamente para

    a interpretao da construo da identidade territorial e cultural sertaneja.

    Na leitura dos contos, procuramos selecionar as cenas mais caractersticas da

    ruralidade, aquelas em que a trama revelava a essncia do modo de vida da

    populao. Atemo-nos a todas as informaes relevantes da base cultural do serto,

    haja vista que, dessa leitura dependeria a anlise seqencial da ressignificao da

    cultura, da sua manifestao contempornea.

    As Transformaes Socioespaciais e as Identidades Sertanejas: do serto

    representado por Bernardo lis ao serto contemporneo

    Neste captulo, refletimos sobre a ressignificao da identidade cultural

    sertaneja em Gois. Consideramos o pressuposto de que a base geogrfica

  • 6

    contempornea combina feies da tradio e feies da modernidade, e que esta

    dialtica orienta a vivncia espacial da populao de origem rural. Nosso esforo foi,

    ento, refletir sobre esta vivncia tanto no espao rural quanto no espao urbano de

    Gois.

    A leitura da dinmica da identidade territorial e cultural sertaneja teve como

    fundamento a base cultural de Gois. Assim, em toda a discusso realizada no terceiro

    captulo houve o cuidado de remeter as idias aos captulos anteriores e de no perder

    de vista o propsito de ler a cultura sertaneja pela linguagem cientfica e pela

    linguagem literria. Desse modo, a literatura subsidiou o pensamento geogrfico nas

    discusses sobre ruralidade e identidade cultural, sobre o enlace da paisagem com o

    territrio, sobre a ressignificao da identidade territorial e cultural sertaneja.

    A interpretao da ressignificao exigiu o contato direto com os sujeitos da

    pesquisa: homens e mulheres de origem rural. Eles poderiam falar com propriedade a

    respeito da sua identificao com a cultura sertaneja nos dias atuais, no campo ou na

    cidade. Ocorreu a idia de dialogar com pessoas mais idosas que nasceram e moraram

    parte significativa de suas vidas no campo de Gois e ouvir delas as experincias

    territoriais vivenciadas no percurso das razes rurais aos signos urbanos. Para tanto,

    escolhemos a regio de Corumb de Gois por ser o espao vivido de Bernardo lis. L,

    poderamos encontrar referncias de sua vida, de sua obra, e, tambm, da vida de

    pessoas que serviram de inspirao para a criao das suas personagens. Corumb de

    Gois, cidade natal do autor, teve significado especial na sua vida e na sua produo

    literria. Frederico (2000) discorre sobre este significado, assim: (...) Corumb de Gois cidade de Gois (...) , pois, naquela regio de cultura caipira e naqueles tempos, que devemos procurar pelos sinais que marcam Bernardo lis (...) o seu engajamento no partido comunista ...mostra a sintonia do escritor com as lutas que se travavam a seu tempo (...) a militncia nas fileiras do PCB deu-lhe mais que as balizas do hoje execrado Realismo Socialista. Deu-lhe, por exemplo, a possibilidade de melhor conhecer as pessoas simples - personagens de sua literatura - a sua linguagem e de aguar o senso de justia ... a construo de suas personagens, a paisagem rural e o contexto social em que desenrolam as aes, puderam fazer-se assentados em profundo conhecimento, o que no significa tratar-se GHUHWUDWRVGDUHDOLGDGHQRVPROGHVQDWXUDOLVWDV (2000, p. 9).

    As palavras do autor remetem paisagem pretrita de Corumb de Gois e

    facilita o entendimento de como Bernardo lis apreendeu e interpretou aquela paisagem,

    durante a fase em que vivenciou o ambiente: de 1915 ( ano de seu nascimento) 1945

  • 7

    ano em que deixou a cidade para morar em Goinia. Sobre o perodo, o literato, em

    entrevista concedida a Abdala (1982), relembra:

    A cidade era uma fazenda com alguma comodidade urbana. Por ela passavam roceiros e ndios os Tapuios, como ns chamvamos. Minha famlia era muito antiga nessa regio e pertencamos classe mdia. Meu pai era comerciante e poeta. Entretanto, quem me sensibilizou para a narrativa foi Rosa, uma empregada da minha casa (...) Conhecia profundamente a vida da roa apesar de l ter vivido apenas doze anos. No s o nome de plantas e de bichos mas tambm DOLWHUDWXUDRUDO$KLVWyULDGH-RDR]LQKRPDLV0DULDGR9HDGRmais Tatu - ela dizia mesmo assim (BERNARDO LIS, apud ABDALA, 1982, p. 13).

    Na explanao de Frederico e de Bernardo lis est implcita a relao tempo-

    espao e literatura discutida no primeira captulo. Da discusso importante destacar a

    dialtica entre texto e contexto e entre autor e obra. Esta dialtica entendida por

    Cndido (1975) como fundamental para caracterizar a obra literria. Isso acontece da

    seguinte forma: o contexto, em razo das condies sociais de uma poca, deve

    apresentar os elementos essenciais de uma organizao social; sobre estes elementos se

    fundamenta o texto. Tambm o contexto, em razo das condies tcnicas e das

    informaes culturais de uma poca, influencia, motiva e orienta a criao artstica. A

    viso de mundo do autor responde pelo contedo social da obra.

    Na visita a Corumb de Gois, tivemos dilogos com pessoas que

    compartilharam o espao vivido de Bernardo lis. Algumas dessas pessoas estiveram

    muito prximas dele. Elas tm entre 52 e 91 anos de idade e moraram a maior parte de

    suas vidas em fazendas, umas na condio de agregadas, outras na condio de pequenos

    ou de grandes proprietrios. Portanto, suas semelhanas com as personagens do autor

    no so meras coincidncias. Retirando os elementos da arte que lustram ou exageram

    os acontecimentos da realidade, pode-se dizer que Totinha, Dimas, Supriano,

    Jeromo, Elpdio Chaveiro, Rosa etc. figuram nos contos como intrpretes de

    sujeitos que existiram e ainda existem no interior de Gois.

    Tendo em vista o carter qualitativo da pesquisa, e, principalmente, o perfil

    sociocultural dos sujeitos, os depoimentos foram obtidos por meio de entrevistas

    abertas. Um roteiro serviu como guia, porm sem o critrio de um direcionamento

    rgido ou mesmo seqencial das perguntas feitas ( Ele se encontra no apndice).

  • 8

    A inteno foi propiciar uma situao de dilogo em que a fala dos

    interlocutores flusse com a espontaneidade necessria a uma exposio honesta dos

    fatos. A ambientao - a prpria residncia dos entrevistados - beneficiou os resultados

    esperados: a receptividade cordial das pessoas, sua fala detalhada, ilustrada e

    exemplificada, assim como as atitudes, as emoes e os objetos observados,

    valorizaram a leitura cultural do espao vivido.

    Os relatos de memria propiciaram mais clareza das subjetividades valorizadas

    por Bernardo lis na composio das suas personagens e na representao da cultura

    sertaneja em Gois. Tambm, permitiram com que cotejssemos experincias reais de

    vida com aquelas ficcionadas nos contos. Este procedimento metodolgico demonstrou

    como a literatura acrescenta significados leitura da cultura sertaneja em Gois, do seu

    passado realidade contempornea.

    A FIG. I mostra o mapa com a localizao dos municpios limtrofes de

    Corumb de Gois e as principais rodovias de acesso. Nele, esto inseridas algumas

    imagens da zona rural e da zona urbana. possvel observar aspectos da fazenda

    tradicional e da arquitetura colonial daquele municpio:

  • 9

  • 10

    CAPTULO I

    GEOGRAFIA E LITERATURA NA REPRESENTAO DO ESPAO GOIANO

    A aproximao entre cincia e arte j no incomum em trabalhos acadmicos

    de reas diversas que buscam conhecer a realidade e apreender, com riqueza de

    significados, as dimenses do humano e do social. assim quando as cincias sociais

    tomam por emprstimo, em suas anlises, o contedo esttico e subjetivo das artes.

    assim, tambm, quando, em situao inversa, as artes, fundamentadas no conhecimento

    cientfico, aprofundam no universo real tornando - o, no raras as vezes, o recurso mais

    importante da sua criao imaginria. O resultado mais esperado desta conjugao o

    entendimento mais aprofundado da relao estabelecida entre sujeito e mundo.

    No encontro da linguagem cientfica com a linguagem artstica, ao

    discursarem sobre o objeto real, observam-se vises distintas e ao mesmo tempo

    complementares em que a objetividade da cincia e a subjetividade da arte interagem e

    apresentam uma leitura enriquecida dos fenmenos estudados. Porm, no se trata de

    atribuir cincia um carter unicamente objetivo e arte um carter unicamente

    subjetivo. A conseqncia disso seria desconsiderar a capacidade imaginativa e a

    sensibilidade dos cientistas no processo de pesquisa, bem como negar a objetivao dos

    fatos reais, pelos artistas, no processo de criao. O que se deve reconhecer que a

    objetividade um atributo incontestvel da cincia que, associado s demais exigncias

    do pensamento cientfico, permite a confiabilidade das investigaes. A subjetividade,

    por sua vez, , por excelncia, a substncia da arte pois possibilita adentrar, pelo seu

    descompromisso funcional, na complexidade de motivaes e emoes das relaes

    humanas e sociais.

    A relao entre Geografia e Literatura empregada nesta pesquisa sobre o

    espao goiano, refora a pertinncia dos trabalhos que tm se utilizado desta via

    metodolgica a fim de acrescentar aos mtodos convencionais da pesquisa geogrfica

    novas formas de interpretao da realidade. Pois, conforme afirma Chaveiro,

    as anlises geogrficas centradas apenas na investigao das estruturas econmicas, polticas, demogrficas, sociais, demarcando por meio de representaes cartogrficas, diferenciaes de regies, aumento da produtividade, insero de capitais, informao e tecnologia, relao interregional, pautas de lucro e de rendas, insero globalizada da economia no bastam para compreender a

  • 11

    complexidade espacial e o dilaceramento do sujeito (...)(CHAVEIRO, 2005, p. 174 ) .

    Sob perspectivas variadas, no que diz respeito ao contedo geogrfico

    apreendido em obras literrias, os estudos realizados no mbito da Geografia - mundial

    e brasileira - associam sociedade e literatura, cidade e literatura, espao vivido e

    literatura, serto e literatura, entre outras.

    Nesse tipo de abordagem relacional, Geografia-Literatura, os gegrafos,

    comumente, propem-VH D UHDOL]DU XPD OHLWXUD JHRJUiILFD GD REUD RX GDV REUDV

    selecionadas. Para estes cientistas, ler uma obra literria numa perspectiva geogrfica

    significa, em linhas gerais, elucidar o espao social contido na obra. E isto s possvel

    porque reconhecem a premissa de que toda obra literria vincula-se a uma realidade

    espacial e temporal.

    Neste captulo adotamos o seguinte percurso analtico: uma discusso

    introdutria sobre arte e realidade socioespacial para distinguir as abordagens literria e

    cientfica e identificar os pontos de aproximao para uma leitura espacial; em seguida,

    apresentamos vises sobre o espao sertanejo pelas cincias sociais, com o propsito de

    conhecer as representaes sobre esse espao; num terceiro momento, iniciamos a

    reflexo sobre o espao goiano no contexto da tradio. Para finalizar, apresentamos,

    conceitualmente, as categorias geogrficas que direcionaro a pesquisa: natureza,

    paisagem e territrio.

  • 12

    1 - ARTE E REALIDADE SOCIOESPACIAL

    $VPDQHLUDVGHUHDOL]DUDEXVFDSHODJHRJUDILDQDOLWHUDWXUDDRPHVPRWHPSR

    em que so singulares na conduta de cada pesquisador - o que implica em mtodos

    diferenciados de leitura e interpretao - coincidem na compreenso da obra literria

    como uma representao da realidade.

    Almeida (2007) lembra que o interesse pela literatura prtica remota entre

    os gegrafos embora os textos desta natureza no sejam numerosos. Conforme

    levantamento realizado por Olanda (2006), os primeiros trabalhos datam da dcada de

    1940. No Brasil, esta tendncia tem como importantes referncias os trabalhos de

    Wanderley (1998) e Monteiro (2002). Em Gois, Corra (2003), Braga e Chaveiro

    (2004), Chaveiro (2005), Olanda (2006) e Almeida (2007) so alguns dos autores que

    atualmente inserem esta linha de pesquisa em seus estudos.

    Uma breve anlise destes trabalhos permite dizer que na trajetria desta

    incurso terico-metodolgica, a despeito das diferentes formas de abordagem, os

    gegrafos aprimoraram sua forma de conceber a relao entre geografia e literatura.

    Pelas afirmaes de alguns deles, pode-se visualizar alguns procedimentos utilizados,

    seus pontos em comum e suas inclinaes.

    Wanderley explicita o elo existente entre espao geogrfico e literatura. O

    autor atribui HVWDUHODomRjSUHPLVVDGRFRQFUHWRFRPRVXEVWUDWRGRUHDOPHQFLRQDGD

    no incio deste texto. Nos seus escritos, l-se:

    as obras literrias, especialmente o romance, possibilitam ao leitor conhecer e revisitar lugares, porque da realidade concreta que o escritor retira elementos necessrios construo do universo ficcional num processo de recriao da vida, no qual se evidencia a relao entre espao e literatura (WANDERLEY, 1998, p.23).

    Monteiro, autor da coletnea O mapa e a Trama, que rene ensaios de

    geografia e literatura, realiza uma auto-crtica sobre sua prtica intelectual nesta rea, e

    reconhece que

    inicialmente o projeto visava relao Geografia Literatura pela vinculao de propsito entre espao geogrfico - restritamente IRFDOL]DGR HP WRUQR GR OXJDU e o espao romanesco. A auto-crtica sobre o conjunto, segundo a seqncia de produo dos ensaios, atingiu a idia de que assentaria melhor considerar o FRQMXQWRFRPRXPDUHODomRHQWUHFRQWH~GRJHRJUiILFR lato sensu

  • 13

    DFULDomRURPDQHVFD) Espero tenha ficado claro que desde o primeiro experimento (...) o contedo geogrfico no se poderia UHVWULQJLU DR OXJDU Isto porque o espao est irremediavelmente unido ao tempo; porque a indissolvel relacionalidade espacial HPEDUDOKDHVFDODVRWHPSRSUHVVXS}HXPDYDULDomRGHVHQWLGRVe a fatalidade gregria do Homem diversifica a amplia os contextos sociais, polticos e econmicos que, a partir do anseio individual, refletem-se em qualquer trama romanesca (MONTEIRO, 2002,p 17).

    Nas entrelinhas deste excerto o autor apresenta o amadurecimento de suas

    reflexes. Sua formulao terica corrobora a idia de que a literatura, sob uma anlise

    geogrfica, pode contribuir muito com o desvelamento de uma dada realidade

    socioespacial, ou de aspectos desta realidade, desde que no se perca o sentido de

    totalidade do espao. Este sentido de totalidade expresso na argumentao de Corra.

    Para esta autora, a incorporao da literatura aos estudos geogrficos pressupe o

    seguinte: por ser prdiga em mostrar diferentes organizaes socioespaciais, modos de vida, a alma dos lugares, os sistemas produtivos, as experincias do cotidiano, a cultura e as tradies, entre outras motivaes, a literatura no um meio passivo e neutro de comunicao, mas uma construo scio-cultural, um portal que se abre para os mundos concretos e imaginrios dos seres humanos.( CORRA, 2003, p.237)

    Ela acrescenta, ainda, que

    valores, intenes, subjetividades, representaes, identidades,

    enraizamento, experincia vivida, entre outras, so noes

    mobilizadas para recolocar o sujeito no centro das preocupaes dos

    gegrafos em suas reflexes (IDEM, 2003, p.246).

    certo que a ateno dispensada ao sujeito do espao tarefa delicada ao se

    considerar, por exemplo, as variaes de sujeitos e seus respectivos contextos

    espaciais. No entanto, trata-se, num primeiro momento, de valorizar o elemento humano

    que, muitas das vezes, aparece nas pesquisas traduzido por elaboraes, descries e

    estatsticas pouco eficazes em representar a complexidade da produo e da vivncia

    espacial. Esse tipo de abordagem apresenta uma insuficincia metodolgica quando o

  • 14

    que se deseja da Geografia conhecer o espao de vida da sociedade no contexto das

    transformaes mundiais.

    Este estudo, ao propor uma aproximao entre cincia e arte, tem como

    propsito adentrar na complexidade do espao e fazer uma anlise mais funda dos

    elementos essenciais que concorrem para a formao de uma cultura. A literatura, pela

    sua composio esttica, reala estes elementos. No caso especfico desta investigao,

    ela traz luz os componentes fundamentais da produo da cultura sertaneja goiana,

    num contexto que aqui se chama de tradio.

    Em estudo anterior, Braga (2004), realizou uma breve reflexo sobre Gois a

    partir de sua caracterizao em Jurubatuba, clssico do escritor goiano Carmo

    Bernardes. O texto, uma monografia de bacharelado2, apresentou Gois de maneira

    diferente da costumaz. Na abordagem, os sujeitos do espao puderam se expressar

    porque as personagens de Carmo Bernardes representaram, realisticamente, os

    moradores do serto.

    Nessa mesma linha, Olanda (2006), em dissertao de mestrado, aprofundou

    a leitura de obras Carmobernadianas - Jurubatuba e Memrias do Vento - para

    representar Gois e Goinia, respectivamente. Sobre a aproximao entre Geografia e

    Literatura, a autora explicitou que no contexto dessa abordagem, o gegrafo aplica a leitura e a interpretao de obras literrias como procedimento de investigao e desse modo, instrumentaliza a Literatura para conhecer o mundo dos homens. Nessa acepo reconhece-se a obra literria como documento de certa realidade, por situar coletividades ou indivduos de dado lugar. (OLANDA, 2006, p.21)

    No mesmo direcionamento de Olanda, Almeida entende que os gegrafos quando se interessam pela literatura, a grande maioria foi dominada por reflexes sobre a representao literria da realidade geogrfica. Isto do valor documental ou pedaggico do texto literrio para a geografia, o valor fenomenolgico pela transcrio da experincia dos lugares, ou o valor do reflexo das condies materiais de produo (ALMEIDA, 2007, p. 3).

    Se uma determinada realidade pode ser documentada em obras literrias, o que

    HVWHGRFXPHQWRSRGHLQIRUPDUpDRUGHPVRFLRHVSDFLDOHRFRQWH[WRKLVWyULFR-cultural

    2 Nome e orientao j referidos na apresentao da dissertao.

  • 15

    GHXPDpSRFD$DOXVmRDRPXQGRGRVKRPHQVHDRUHIOH[RGDVFRQGLes materiais

    GHSURGXomR feita pelas autoras supracitadas, exemplifica isso.

    Nas proposies de Olanda e Almeida fica implcita a referncia a fato e a

    fico, aclamada anteriormente, como os dois atributos da obra capazes de trazer tona

    seu contedo geogrfico: o fato como evidncia da realidade concreta e, a fico,

    como criao literria que privilegia esta realidade. Alis, muitos crticos literrios,

    como por exemplo, Eagletow (1983), fato e fico so dois elementos que no se

    distinguem, no se opem com total clareza.

    A produo acadmica dos autores referenciados at o momento compe um

    importante aporte terico relativo relao geografia e literatura. Com base em suas

    experincias, pontos de vista, e posies terico metodolgicas, tratamos de encaminhar

    a investigao atentando para o que prprio da cincia e para o que prprio da arte.

    Braga e Chaveiro defendem que h uma relao de complementaridade entre

    esses dois domnios do saber: a cincia cumpre o papel de analisar a realidade pelas condutas que lhes so prprias: a objetividade, o rigor metdico, a sistematizao e a teorizao. Esses elementos conferem-lhe a funo precpua de racionalizar os fatos, isolando-os da dimenso subjetiva que intrnseca sensibilidade artstica. Esta, ao buscar uma explicao esttica do mundo, atua sobre a realidade revelando a profundidade dos aspectos que a constituem e enriquecendo-lhe da evaso imaginativa da conscincia criadora. Em sntese, busca-se na linguagem artstica a subjetividade que a cincia no alcana ( BRAGA E CHAVEIRO, 2004, p.12).

    Pelas palavras dos autores, deduz-se que o grau de subjetividade de que a

    cincia carece a intensidade de revelao do humano prprio das expresses artsticas.

    No ato da criao, o artista se mune de pelo menos dois elementos imprescindveis ao

    conhecimento de realidades subjetivas: a sensibilidade e a intuio. E, com efeito, estes

    elementos capacitam-no a atingir esferas cada vez mais profundas destas realidades.

    Cincia e arte so duas formas de explicar o mundo e o ser humano. Quando

    associadas to salutar diferenciar suas abordagens quanto identificar os pontos em

    TXH VH DSUR[LPDP ,DQQL HP VHX HQVDLR 6RFLRORJLD H /LWHUDWXUD WDPEpP SUHsta

    importante contribuio sobre a combinao entre cincia e arte. O autor assim se

    posiciona: as narrativas artsticas e cientficas so criaes intelectuais impregnadas de figuras de linguagem, imagens, metforas, alegorias,

  • 16

    aforismos, parbolas. Simultaneamente so duas linguagens radicalmente distintas, j que uma literria e a outra cientfica (IANNI, 1998,p.10).

    E prossegue destacando que, a narrativa literria compreende imagens e figuras de linguagem, alm do ritmo e da melodia. Compreende metonmias e metforas, entre outras figuras, alm de elaborar parbolas, alegorias e outras modalidades de cantar e de decantar, fabular e exorcizar.(...) a narrativa sociolgica compreende principalmente descries e interpretaes, envolvendo conceitos, categorias, leis ou outras noes comprometidas com a fundamentao emprica e a consistncia lgica.(...) nela predominam os nexos causais mais ou menos complexos ou as condies e possibilidades indicando tendncias.(...) a despeito das diferenas evidentes e fundamentais, as narrativas sociolgicas e literrias muitas vezes se aproximam (IDEM,1998, p.10-11).

    A anlise de Ianni, embora se dirija ao campo da Sociologia, permite uma

    analogia com a cincia geogrfica. Na sua construo terica, a geografia diferencia-se

    das demais cincias sociais pelo seu objeto de estudos: o espao geogrfico. A

    interpretao do espao em obras literrias requer, ento, por parte do gegrafo, a

    seleo de categorias e conceitos que podem informar o seu contedo propriamente

    espacial.

    Isso significa que a leitura da obra deve ressaltar da realidade social

    representada, as relaes mantidas entre a sociedade e seu espao de vida, que o

    mesmo que verificar o processo de produo, organizao e vivncia deste espao.

    Aqui, sobressaem-se tanto as estruturas sociais quanto os atores destas estruturas. De

    forma que, uma leitura atenta aos detalhes da narrativa permitir ao gegrafo perceber :

    a configurao espacial, pela situao e ordem social que a obra representa e pelas

    expresses paisagsticas que evoca; o lugar, em razo da atribuio de valores pelas

    personagens; as diferenas econmicas e sociais que repercutem em diferentes

    territorialidades; a relao da sociedade com a natureza - uso e representao - ; as

    prticas sociais; o tempo social; o ritmo... Enfim, a produo cultural de uma

    determinada sociedade e sua significao pelas diferentes classes sociais.

    Para desvelar essa tessitura de acontecimentos e relaes sociais preciso por

    em evidncia a tendncia artstica que atende aos objetivos dessa pesquisa, posto que,

    nem todas as correntes de pensamento que influenciam os artistas possibilitam uma

    leitura da realidade social capaz de acrescer significados a um estudo acadmico. O vis

  • 17

    sociolgico no a preocupao principal de toda obra de arte. Busc-lo, exige

    conhecer a inteno da obra e a viso de mundo do autor.

    O foco do presente estudo associar a cincia geogrfica arte literria na sua

    perspectiva social, e, por meio dela, potencializar o olhar sobre o elemento humano.

    No se trata, portanto, de considerar a Literatura como uma, ou, mais uma

    fonte documental. Trata de extrair de sua narrativa o modo de ser, os costumes e o perfil

    psicossocial das personagens. Pois, no drama, elas traduziro aquilo que essencial

    nos contextos socioespaciais e histrico-culturais.

    A abordagem sociolgica da literatura amplamente discutida e praticada por

    historiadores da literatura, crticos literrios e literatos. Alguns dos adeptos a essa linha

    sociolgica so: Lucas (1978), Candido (1975), Bosi (1986) e Santos (2004). As

    proposies destes autores so fundamentais para as nossas reflexes. E, justamente a

    justaposio do real com a fico, do social com o esttico - tratada em seus escritos -

    que agua o olhar cientfico sobre uma obra e a torna relevante para uma investigao.

    De acordo com a linha de pensamento dos autores citados, a compreenso da

    dimenso social da Literatura se d, preferencialmente, pela assimilao da perspectiva

    realista nas manifestaes artsticas. Sobre esta perspectiva Ortega enftico ao afirmar

    que a arte realista caracteriza-se por ressaltar a condio humana. Nas palavras desse

    autor,

    na obra de arte preferida pelo ltimo sculo h sempre um ncleo da realidade vivida que vem a ser como que substncia do corpo esttico. Sobre ela opera a arte e sua operao se reduz a polir esse ncleo humano, a dar-lhe verniz, brilho, compostura ou reverberao. Para a maioria das pessoas tal estrutura da obra de arte mais natural, a nica possvel. A arte reflexo da vida, a natureza vista atravs de um temperamento, e a representao do humano etc (ORTEGA,1990, p.45)

    dos acontecimentos sociais que a arte realista se nutre para recriar e

    representar o mundo. A recriao do mundo pelos critrios estticos da arte revestida

    de um grau de sensibilidade que atinge a complexidade do universo existencial humano.

    Este universo, ao ser representado, abre-se diversas possibilidades intelectivas.

    No campo especfico da Literatura, Lucas expe os elementos que possibilitam

    a uma obra representar o humano numa perspectiva social. Ele, na posio de crtico

    literrio, observa que,

  • 18

    a rigor, toda obra literria que fixasse uma personagem (imitao do homem real) poderia, em sentido amplo, ser considerada de carter social inclusive Robinson Crusoe. Mas a nossa perspectiva outra. (...) A perspectiva social ser apanhada toda vez que um grupo tiver seu destino ligado ao da sociedade global de que faz parte, sob o impulso das foras fundamentais que conferem historicidade s tenses entre indivduos ou grupos. (...) Ficaro de fora, por exemplo, RVURPDQFHVTXHWUDGX]HPFU{QLFDVGHFRVWXPHVLVWRpXPUHODWRfragmentado e parcial da sociedade, desligado de sua estrutura fundamental. Desprezaremos igualmente os tipos psicolgicos que exprimem apenas uma revolta ou inadaptao social a determinado estado de coisas, sem que o jogo conflitivo acerre elementos capazes de afetar todos os nveis de profundidade em que as relaes homem/sociedade possam encontrar explicao numa ampla perspectiva de totalidade. (LUCAS,1970, p.49/50).

    Esta perspectiva de totalidade encontra ressonncia no pensamento daqueles

    autores citados h pouco: Candido (1975) Bosi (1986 ) e Santos ( 2004). Candido

    (1975) o que acrescenta elementos mais apropriados reflexo neste momento. Na

    mesma linha de Lucas (1970), este autor concebe que o que caracteriza a dimenso

    social de uma obra justamente o fato de o texto, na sua construo, fundamentar-se em

    condies sociais capazes de revelar aspectos indubitavelmente essenciais da formao

    GHXPDVRFLHGDGH/HPEUDDLQGDTXHGHDOJXPDPDQHLUD WRGROLYURDSUHVHQWDFHUWDV

    GLPHQV}HVVRFLDLVVyTXHVHHVWDVGLPHQses no so fundamentais na composio da

    totalidade do livro, tornam-VH LQVXILFLHQWHVSDUDGHILQLURFDUiWHUVRFLROyJLFRGHXP

    HVWXGR&$1','2S-6).

    EsWDGHILQLomRVySRGHVHUIHLWDIXQGLQGRWH[WRHFRQWH[WRQXPDLQWHUSUHWDomR

    dialeticamenWHtQWHJUD 1HVWHVHQWLGRRexterno (no caso o social) importa no como

    causa , nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na

    constituio da estrutura, tornando-se portanto interno(IDEM, 1975,p.4). Aps

    exemplificar os propsitos desta fuso, que garante o carter social de uma obra, ele

    esclarece mais adiante que, quando fazemos uma anlise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social no exteriormente, como referncia que permite identificar, na matria do livro, a expresso de uma certa poca ou de uma sociedade determinada (IDEM 1975, p.7).

    Candido explica que ao agir desta forma, tem-se

    uma interpretao esttica que assimilou a dimenso social como

    fator de arte. Quando isso se d ocorre o paradoxo assinalado

    inicialmente: o externo se torna interno(...)(1975, p.7).

  • 19

    Outro fator importante a relao que o prprio autor mantm com a obra e o

    pblico, visto que o processo de criao envolve o escritor como artista, mas tambm

    como ser social inserido numa realidade que motiva sua criao. Mais uma vez

    recorremos a Candido que comenta essa relao da seguinte maneira:

    isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, no apenas o indivduo capaz de exprimir a sua originalidade, ( que o delimita e o especifica entre todos), mas algum desempenhando um papel social, ocupando uma posio relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certa expectativa dos leitores ou auditores. A matria e a forma de sua obra dependero em parte da tenso entre as veleidades profundas e a consonncia ao meio, caracterizando um dilogo mais ou menos vivo entre criador e pblico (1975, p.74).

    O artista depende das informaes culturais e das condies tcnicas do seu

    tempo para expressar sua criao. Alm de integrar a sociedade que lhe oferece tais

    informaes e condies, atua ainda como intrprete dos fatos sociais a partir da sua

    viso de mundo. E isso no secundrio na composio de qualquer obra, seja ela

    artstica ou cientfica. Deste fator dependero a inteno da obra e o alcance da sua

    dimenso social.

    Por isso, ao unir geografia e literatura num estudo cientfico, preciso ter claros

    os elementos textuais que podero contribuir com a leitura dos contextos culturais

    selecionados, prevenindo-se de uma possvel incoerncia, em certas situaes, entre o

    posicionamento poltico - ideolgico do artista e o posicionamento poltico - ideolgico

    do cientista, em relao aos contextos.

    Ao realizar a leitura de contextos culturais a partir de um texto literrio, o

    cientista deve cuidar para no descaracterizar a obra. Conforme lembra ECO (1986,34-

    49), todo tipo de texto, ao mesmo tempo em que VROLFLWDFRRSHUDomRHQWUHHPLWHQWHH

    GHVWLQDWiULR relao que possibilita o alargamento da margem de interpretao,

    VROLFLWDRVOLPLWHVGDLQWHUSUHWDomRDWLWXGHpWLFDTXHUHVJXDUGDDHVVrQFLDGDREUD

    A essncia de uma obra literria, no nosso entender, agrega a via da ideologia e

    a via da sensibilidade. Diz respeito, portanto, leitura de mundo do autor e leitura de

    alma que ele consegue realizar dos sujeitos e dos seus lugares sociais. Conhecer a

    essncia de uma obra requer adentrar na relao de intimidade que o autor estabelece

    com sua obra.

  • 20

    Canetti (1990) v RHVFULWRUFRPRXPJXDUGLmRGHPHWDPRUIRVHV pois,

    em primeiro lugar ele se apropriar da herana literria da humanidade, que rica em metamorfoses o quo rica s hoje sabemos, quando os escritos de quase todas as culturas antigas j foram decifrados (...) (CANETTI, 1990, p.281).

    Na opinio de Canetti

    os poetas deveriam manter abertas as vias de acesso entre os homens. Deveriam ser capazes de se transformar em qualquer um, mesmo no mais nfimo no mais ingnuo, no mais impotente. Seu desejo ntimo pela experincia de outros no poderia jamais se permitir ser determinado por aqueles objetivos que regem nossa vida normal, oficial, por assim dizer: teria de ser (...) uma paixo por si, a a paixo justamente pela metamorfose. (...) s pela metamorfose (...) seria possvel sentir o que um homem por trs de suas palavras: no haveria outra forma de aprender a verdadeira conscincia daquilo que nele vive (CANETTI, 1990, p. 282).

    As palavras de Canetti remetem a Bernardo lis e sua obra. A literatura de

    Bernardo lis revela dimenses profundas do humano. Consciente ou no da capacidade

    de se metamorfosear no outro, o escritor goiano conseguiu alcanar o ntimo do homem

    sertanejo e representar suas tramas no territrio vivido. Isso perceptvel no repertrio

    de situaes em que seus enredos expem o perfil psicossocial das pessoas de origem

    rural. A explicao para o desvelamento da alma dos lugares vividos por aquelas

    pessoas deve estar na relao que Bernardo lis manteve com a escrita. ele quem

    diz: Por que escrevo? (...) para explicar a mim mesmo certos aspectos que me pareciam estranhos nos homens e no mundo (...) Entendo que escrever a minha janela para o mundo, a minha maneira de participar da vida geral. No consigo fazer do ato de escrever uma distrao ou um passatempo. um trabalho, um exerccio de conhecer as pessoas, as coisas, as situaes do mundo (CURADO, 2000, P. 84 /129)

    Neste estudo, atribumos literatura de Bernardo lis o papel de contribuir

    com a leitura do passado de Gois. Buscaremos nos seus contos os elementos mais

    significativos do serto. O conhecimento destes elementos, nas suas dimenses objetiva

    e subjetiva, e do seu significado na formao da identidade cultural, permitir

    interpretar a vivncia sertaneja no espao contemporneo. No prximo item, as vises

  • 21

    do serto brasileiro e as vises especficas do serto goiano, pelas cincias sociais,

    contm os aspectos que sero aprofundados, em seguida, na literatura.

  • 22

    2- O espao sertanejo e o modo de vida rural na perspectiva das cincias sociais

    O serto uma categoria importante para se pensar a formao socioespacial

    de Gois e sua constituio cultural. Isto porque, ao longo da formao do territrio

    nacional, concebido no s como um espao fsico com localizao geogrfica

    determinada, mas, tambm, como um espao social portador de significados. Essa

    referncia j foi feita por vrios estudiosos das cincias sociais. O antroplogo Ribeiro,

    por exemplo, elenca em Povo Brasileiro (1996) as vrias formaes culturais do Brasil,

    identificando o serto como uma delas.

    Seja por sua natureza fsica, seja pela vida social, os espaos sertanejos

    compuseram o imaginrio nacional ocupando, no raras as vezes, uma posio

    perifrica calcada nas vises etnocntricas elaboradas a partir do litoral, conforme

    argumentam autores como Sousa (1997), Guillen (2002) e Moraes (2002-2003). O peso

    dessas representaes, no seu desdobramento poltico, fomentaram o ideal de

    unificao do pas.

    Estudos que datam ainda do sculo XIX privilegiaram o serto nas suas

    abordagens com o intuito de entender e explicar o Brasil. As representaes do Brasil

    sertanejo, da decorrentes, tiveram importantes desdobramentos polticos e culturais.

    Sobre os elementos poltico e cultural se voltam as reflexes mais recentes dos

    estudiosos da temtica do serto.

    O elemento poltico remete s intenes de organizao e desenvolvimento

    dessa parte do territrio nacional. O elemento cultural refere-se ao conhecimento de

    modos de vida prprios dos espaos sertanejos. Na presente pesquisa, as duas

    perspectivas se entrecruzam para suscitar as especificidades do serto goiano, parte das

    terras interioranas do Brasil, e sua contribuio na produo do espao atual.

    De acordo com o pensamento de Almeida (2001; 2003) e Chaveiro (2001;

    2005), o serto um espao criador de smbolos, identidades, valores e representaes

    que aliceraram a cultura goiana. Este espao subsistiu como realidade fsica e social

    hegemnica, aquela pautada numa vida econmica e de relaes orientada pela

    ruralidade, at a efetivao do projeto de modernizao do territrio e sua urbanizao.

    A ruralidade, neste contexto, vincula-se ao modo de vida praticado em torno da

    pecuria e da agricultura processos de produo ausentes e ainda distantes da

    mecanizao do campo. Este modo de vida rural desenvolveu-se em um espao com

  • 23

    redes de cidades, comunicao, transporte e informao ainda incipientes quando a

    fase do capitalismo era pr- industrial.

    Aquele contexto favoreceu o desenvolvimento e a sedimentao de

    determinadas realizaes culturais. Este o pressuposto que orienta a idia de que a

    cultura desenvolvida no serto, pelo seu arraigamento, exerce ainda hoje uma

    importante influncia na produo e na vivncia do espao goiano. Cabe elucidar esta

    influncia cultural luz dos seus elementos rurais enraizadores e luz da nova

    ruralidade3 discutida, por exemplo, por Graziano (1997), Carneiro (1998), Saraceno

    (2000).

    Interpretar a contribuio da cultura sertaneja na constituio e na orientao

    da sociedade goiana atual, pelo prisma da sua relao com o espao, exige uma busca

    cuidadosa, nos escritos sobre Gois, dos elementos capazes de traduzir a realidade

    material e simblica do serto. Ou seja, exige refletir sobre Gois no contexto de uma

    realidade predominantemente rural - em que o espao urbano era organizado em funo

    das fazendas - e extrair desta realidade sua dimenso cultural.

    Antes de encaminhamos as reflexes sobre a dimenso cultural do serto

    goiano necessrio estabelecermos um dilogo com autores que se dedicam discusso

    mais geral sobre o conceito de serto. Tratam se de vises genricas que auxiliam o

    entendimento de realidades locais.

    2.1 Os olhares sobre o serto

    Uma pergunta que muito se sobressai no estudo dessa temtica a seguinte: -

    Onde fica o serto? O que se observa na maioria das respostas dadas pelos estudiosos

    uma tendncia em considerar como elementos constituintes do espao sertanejo tanto o

    seu substrato fsico quanto a sua produo cultural.

    Espndola (2004, p.2) uma estudiosa dos espaos sertanejos e para ela QmR

    existem limites rgidos determinando onde comea e onde acaba o serto, mas linhas

    que se movimentam conforme as circunstncias. O serto foi territrio que se expandiu

    HVHFRQWUDLX 1HVWDPHVPDSHUVSHFWLYD0RUDHV -SHQWHQGHTXH R

    serto no uma materialidade da superfcie terrestre, mas uma realidade simblica:

    3 A discusso da nova ruralidade ser realizada no terceiro captulo.

  • 24

    uma ideologia geogrfica. Trata-se de um discurso valorativo referente ao espao, que

    TXDOLILFDRV OXJDUHV VHJXQGRDPHQWDOLGDGHUHLQDQWH HRVLQWHUHVVHVYLJHQWHV$R

    encontro deste pensamento Almeida (2003. p. 4) j declarara o seu ponto de vista de que

    DFRQVWUXomRGLVFXUVLYDVREUHR VHUWmRHVSHOKD DPDQHLUDFRPRHOHpSHQVDdo e uma

    PDQHLUDHVSHFtILFDGHYHURPXQGR

    Ou seja, o serto, para alm da classificao e localizao se suas terras ,

    sobretudo, uma construo simblica. Mesmo as classificaes que levaram em conta as

    bases fsicas e os domnios naturais do territrio nacional apresentam diferenas.

    Uma dessas classificaes apresentada por Almeida. Ela informa que as

    terras do espao sertDQHMR VH HVWHQGHPJHRJUDILFDPHQWH GRV VHUW}HV QRUGHVWLQRV -

    desde o norte de Minas Gerais abrangendo os estados do Nordeste at o Piau e o

    serto brasileiro considerando os estados de Minas Gerais, De Gois, de Mato Grosso

    do Sul e parte de Mato GURVVRS

    Em Guillen, temos a explicao de que at as primeiras dcadas do sculo

    ;; D FDWHJRULD VHUWmR HUD XWLOL]DGD SDUD VH UHIHULU D WRGRR LQWHULRU GR%UDVLO SRLV

    lugares como Mato Grosso, Amaznia, e at o Oeste Paulista, eram daquela forma

    GHQRPLQDGRVS2EVHUYH-se que aqui inclui-se tanto a Amaznia quanto

    o Oeste Paulista, suprimidos da classificao mais recente apresentada por Almeida.

    Acrescente-se a isso que h em outros autores referncias, por exemplo, ao serto do

    Paran numa aluso a terras pertencentes ao litoral mas longnquas da dinmica de vida

    da costa martima (Arruda, 2001).

    Se o serto uma construo, como frizam os autores, so vrios os sertes

    brasileiros. Cabe aos estudiosos deixarem claro de qual serto esto falando e em qual

    perspectiva de anlise.

    Grande parte das abordagens sobre o serto brasileiro empenhou-se em revelar

    a identidade nacional ou a brasilidade. Souza (1997) e Guillen (2002) lembram que tal

    abordagem levou a se cRQVLGHUDU RV VHUWDQHMRV FRPR DXWrQWLFRV EUDVLOHLURV GDGRR

    distanciamento das leis e prticas sociais portuguesas. poca do Brasil colnia, as

    populaes sertanejas conformavam sociedades pr-tcnicas que desenvolviam o curso

    de suas vidas conforme suas prprias condutas ticas e modelo de organizao. Por esse

    contexto geogrfico e histrico, interessou-se uma enormidade de estudos dispostos a

    revelar o universo sertanejo.

    $V PRVWUDV HODERUDGDV GDV WHUUDV LQWHULRUDQDV WURX[HUDP FRQVLJR WDQWR

    enaltecimento quanto vises pejorativas das pessoas do lugar e do seu modo de vida.

  • 25

    Ainda que carregadas ideologicamente, todas elas oferecem-se como um tipo de fonte

    de pesquisa para se entender as singularidades destes espaos, o que nos permite refletir

    sobre o teor das prticas socioculturais que propiciaram o sentido da alteridade entre

    serto e litoral.

    Souza (1997), faz uma interpretao das representaes sobre a nao

    presentes no pensamento social brasileiro. Ela apresenta a tese de um Brasil imaginado

    como espaos de serto e litoral, mas pensado e projetado pelo ponto de vista do

    segundo. Neste sentido, uma pretensa unidade da nao pressupunha a incorporao do

    serto ao litoral.

    No texto de Souza possvel traar a investida intelectual pelo serto, por

    PXLWRV SHQVDGRUHV GR%UDVLO, e caracteriz-lo sem que isso signifique endossar as

    motivaes ideolgicas dos diversos autores. Nos escritos destes autores l-se uma

    organizao social peculiar que no espao-serto se desenvolvera, inicialmente, pelo

    modelo socioeconmico representado pelo pastoreio e, posteriormente, pela agricultura.

    O segundo solidificando o carter de ruralizao do serto aborgine. Tratava-se de uma

    forma de ruralidade diferente daquela praticada no litoral, pois tinham suas bases

    sustentadas nos engenhos.

    No interior da organizao sertaneja, o gado respondia pelo seu enviesamento

    cultural. Esta observao pode ser ilustrada pela descrio de Abreu, considerado o

    primeiro autor a incorporar o serto ao pensamento intelectual brasileiro, na

    historicizao da formao do territrio nacional. Talvez o principal mrito deste autor

    esteja em interpretar e anunciar as prticas culturais prprias do serto. Ele relata a

    importncia da criao do gado nestas prticas e destaca: De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao cho duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar gua, o moc ou alforge para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prende-lo em viagem, as bainhas da faca, as brocas e surres, a roupa de entrar no mato, as bangs para curtume ou para apurar sal; para os audes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calavam a terra com seu peso;em couro pisava-se tabaco para o nariz (ABREU,1988,p.110)

    O excerto remete paisagem de uma sociedade que tinha sua vida

    de relaes praticada em torno do gado e esta , para Abreu, uma caracterstica

    essencial da cultura sertaneja

  • 26

    Destacam-se, ainda em Abreu, observaes a respeito de determinados

    FyGLJRVGHFRQGXWD estabelecidos tacitamente nesta sociedade: Reinava respeito natural pela propriedade; o ladro era e ainda hoje o mais dos eptetos; a vida humana no inspirava o mesmo acatamento. Questes de terra, melindres de famlia, uma descortesia mesmo involuntria, coisas s vezes de insignificncia inaprecivel desfecham em sangue (IDEM, 1988.p.76).

    As duas proposies adquirem relevo na medida em que observamos sua

    constante revisitao e conseqente incorporao nos textos de muitos autores da

    temtica sertaneja.

    2.2 Os olhares sobre o serto goiano

    Chaul um dos autores que, a exemplo de Abreu, interpretaram os cdigos de

    conduta no serto, especificamente no serto goiano. Sobre o serto do sculo XIX, ele

    comenta:

    A desobedincia cvel na poca, apesar de no documentada, pode ser imaginada com pinceladas de realidade. Contrabando, cachaa, rituais afro, caminhos por estradas no permitidas, no pagamento de impostos, descaso para com a lei, entre outras, foram atitudes notrias no cotidiano do povo do lugar. A sociedade local parecia construir seus hbitos e sua cultura por meio de elementos prprios de tradies locais a atvicas, de memrias seculares, distantes da cultura europia. Formavam um mundo parte, diante de um governo no reconhecido ou indiferente aos olhos da populao (CHAUL, (1997,p.74).

    Levando em conta que Bertran (1978) e Palacin (1982) afirmam que a

    atividade pecuria precedeu a atividade mineradora e conviveu com ela de forma

    elementar durante o sculo XVIII, pode se dizer que o espao sertanejo em Gois teve

    sua ruralidade consolidada ao longo do sculo XIX. Isso quando a prtica da pecuria e

    da agricultura se firmam como principais atividades econmicas no espao goiano.

    'XUDQWH HVWH VpFXOR D SRSXODomR JRLDQD HVWHYH HP SHUtRGR GH UHDFRPRGDomR e a

    FDUDFWHUtVWLFDEiVLFDIRLDUXUDOL]DomR, argumenta Estevam (1998,P.72). Para este autor,

    a consolidao da fazenda goiana como unidade produtiva bsica da economia de Gois

  • 27

    permitiu um desenvolvimento peculiar do modo de vida rural no interior das relaes e

    prticas sociais. A base para a afirmao desse modo de vida peculiar a comparao

    da fazenda goiana com os outros tipos de fazenda que se criaram, poca, nas demais

    regies do pas. Citam-se, por exemplo, as fazendas aucareira e cafeeira nordestinas

    com orientaes sociais distintas daquelas vivenciadas em Gois.

    Para Gomes e Teixeira Neto, em GRLiV as fazendas carregaram um forte

    simbolismo: elas representaram a nova atividade que, como um novo ciclo econmico,

    iria substituir DPLQHUDomRGRSHUtRGRFRORQLDO (2005, p.76). Estes mesmos autores

    oferecem elementos que antecipam as discusses a serem aprofundadas necessariamente

    na terceira parte da dissertao: a urbanizao vinculada ruralidade. Eles destacam

    que,

    as fazendas produzindo o bsico para o auto-consumo - arroz, feijo, carne, couro, farinha, rapadura, algodo para fiar, cachaa etc - so em Gois-Tocantins o principal fator de povoamento e, direta ou indiretamente, de urbanizao. No h nada por aqui que no tenha relao com a atividade agropastoril (IDEM, 2005, p.69).

    Gomes e Teixeira Neto ponderam, seguramente, que

    uma coisa, no entanto, certa: nenhuma cidade goiano-tocantinense

    nasceu da atividade industrial clssica, ou seja, sombra de uma

    fbrica (2005, p. 70).

    A peculiaridade deste tipo de urbanizao tambm assinalada por Chaveiro.

    Aoao estudar DVEDVHVWHUULWRULDLVGDFRQVWUXomRGH*RLkQLD ele remonta ao espao

    serto e escreve que, .

    a relao processual da empresa colonial com o territrio do serto que cria, geneticamente, uma especificidade no processo de urbanizao de Gois, pois fora ela que enxergou, constatou e relatou DGLIHUHQFLDomRGRVlugares-%UDVLOespecificamente no que tange ao serto, em que natureza e homem, a partir de espcies vegetais, de animais, ndios e, depois, mineiros, diante da exuberncia das matas e do sol apimentado do planalto, fundavam uma sociedade com timbre prprio: a sociedade sertaneja; esta sociedade, na originalidade portadora dos seus signos do serto que tecia uma urbanizao, tambm originria, ou seja, uma urbanizao cuja face o vnculo com a ruralidade sertaneja, em que o desdobramento geogrfico mais caracterstico era o isolamento ( CHAVEIRO, 2001, p.29)

    Embora a atividade agropastoril se constitua principal fator de urbanizao de

    Gois, no podemos esquecer que a esta atividade econmica precedeu a minerao,

  • 28

    como foi mencionado. A minerao materializou no espao urbano daquele perodo

    expresses prprias da poca GRRXUR. Mas, ao substiturem e se firmarem em relao

    a esta atividade, a pecuria e a agricultura, num segundo momento, incumbiram-se, de

    fato, de delinear o carter da urbanizao e das relaes entre cidade e campo.

    Isso que permitiu a autores como Chaul (1997), Borges (1998), Estevam

    (1998) , Chaveiro (2001) e Olanda (2006) afirmarem que neste perodo as estreitas

    relaes mantidas entre a fazenda e os arraiais - que mais tarde se transformariam em

    cidades, melhor dizendo, pequenas cidades do interior, pautavam - se na ruralidade, de

    forma que a organizao dos arraiais atendia s necessidades da fazenda.

    Esta observao possui um peso considervel na explicao da convivncia do

    rural com o urbano no curso histrico de Gois. Ainda que campo e cidade sejam pares

    responsveis pela imbricao e pela dinamizao de modos de vida, houve a

    predominncia de um em relao ao outro: o campo sobre a cidade at

    aproximadamente a dcada de 1970 e a cidade sobre o campo aps as mudanas

    engendradas a partir deste perodo.

    Neste momento, interessante apresentar o conceito clssico de urbanizao e

    alguns dados estatsticos que, embora sejam incapazes, em si mesmos, de definirem ou

    valorarem uma realidade espacial, permitem uma visualizao da distribuio da

    populao no perodo aclamado. A urbanizao e seu processo em Gois- Tocantins,

    para Gomes e Teixeira Neto se explica assim: no sentido restrito do termo urbanizao, o processo de desenvolvimento e concentrao da populao nas cidades(...) Em 1950, quando o territrio goiano- tocantinense tinha a fisionomia de uma autntica zona pioneira, a urbanizao chegava apenas a 21%. Esse carter ainda rural da populao perduraria at aproximadamente a metade dos anos 70, quando as taxas de urbanizao atingiam, respectivamente, 31% (1960) e 42% (1970). A virada, ou seja, a acelerao do processo de urbanizao comeou logo no incio dos anos 70, momento ento das grandes transformaes econmicas e espaciais do pas em decorrncia de uma nova geopoltica de envergadura nacional: incorporar o grande espao vazio do centro-oeste e da Amaznia economia mundial (GOMES E TEIXEIRA NETO, 2005. p.102)

    O espao que hoje estruturado a partir de elementos urbanos, at as duas

    primeiras dcadas seqentes primeira metade do sculo XX era estruturado por

    elementos rurais. Isto confere urbanidade daquele momento histrico caractersticas

  • 29

    bastante diferenciadas da que se propaga na atualidade e o mesmo cabe afirmar para a

    ruralidade de hoje, como se pretende esclarecer ainda nesse estudo.

    neste sentido que se pode falar de um espao produzido pelas prticas

    polticas e sociais tradicionais ou, em Gois num contexto de tradio. E, o conceito de

    tradio adotado reclama, sobretudo, a recorrncia, a continuidade e a repetio como

    elementos estruturadores de uma vida social que no preponderaria at o alavancamento

    do projeto de modernizao do territrio.

    2.3 Tradio e Cultura

    O contexto tradicional goiano propiciou um tipo de produo cultural traduzida

    pelos modos prprios de viver e de produzir o espao sertanejo. Esta concepo de

    tradio associada ao modo de vida rural est presente nos estudos de Almeida (2003;

    2005) e Chaveiro (2001; 2005) e aplica-se interpretao de Gois.

    A noo de tradio proposta por Giddens outra que contribui para pensar

    Gois. Ele entende a tradio como repetio e se expressa assim: nas sociedades tradicionais, o passado venerado e os smbolos so valorizados porque contm e perpetuam experincias de geraes. A tradio um meio de lidar com o tempo e o espao, inserindo qualquer atividade ou experincia particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais , por sua vez, so estruturados por prticas sociais recorrentes (GIDDENS,1990,p.37-38).

    Para Hatzfeld, cuja viso de tradio se aproxima daquela apresentada por

    Giddens, esta tem como principal FDUDFWHUtVWLFD RIHUHFHU HVWDELOLGDGH DR

    FRPSRUWDPHQWR VRFLDO2 DXWRU investiga a tradio no domnio simblico e conclui

    que

    (...) o carter repetitivo da produo e da transmisso das informaes simblicas permite que a regulao social seja possvel e que o comportamento humano no seja afetado por uma transitoriedade insuportvel para o grupo (HATZFELD,1993,p.52).

    Lemos nos dois autores elementos legitimadores das prticas concebidas como

    tradicionais. Observe-se que ambos enfatizam na conceituao de tradio o seu carter

    de repetio. Essa aluso a movimentos recorrentes desloca nosso olhar, de hoje, para

    uma vida sedimentada numa temporalidade correspondente a um contexto societrio

    que no comungava de complexidade de modos de vida. Isso comum onde o

  • 30

    capitalismo no atingiu sua fase industrial, como em Gois at a primeira metade do

    sculo XX. Neste sentido, o que estamos chamando de tradio refere-se propriamente

    ao conjunto de valores dentro dos quais estamos estabelecidos; no se trata apenas das formas dos conhecimento ou das opinies, mas tambm da totalidade do comportamento humano, que s se deixa elucidar a partir dos valores constitutivos de uma determinada sociedade (BORHEIN, 1987,p.16 ).

    Pensando assim, falar em modernidade em Gois no perodo que antecede a

    implementao do projeto de modernizao do territrio - iniciado pela introduo do

    maquinrio na agricultura, cuja conseqncia marcante foi a acelerao da urbanizao -

    requer opo conceitual e entendimento das fases e graus porque percorrem quaisquer

    modalidades de vivncia. Mesmo porque, no mesmo perodo caracterizado como

    tradicional, em Gois, parte significativa do Brasil e principalmente da Europa j

    vivenciava um estilo de vida moderno, em vrios sentidos, caracterizado pelas rupturas

    com a organizao social precedente.

    No momento histrico em que Gois era comandado por intenes polticas

    GH JUXSRV ORFDLV SRGHPRV PHQFLRQDU XP LGHiULR GH PRGHUQLGDGH RULXQGR GHVWHV

    grupos dominantes, mas no modernidade enquanto prtica social e modo de vida,

    como propem Arrais (1999) e Cavalcanti (2001). Estes dois autores, s identificam,

    em Gois, uma mudana social significativa digna de ser interpretada como

    modernidade em um perodo posterior a introduo do projeto modernizador.

    $UUDLV OHPEUD TXH HP *RLkQLD QD GpFDGD GH HQFRQWUD-se uma

    sociedade provinciana, numa vida pacata, de ritmo lento, que no acompanhava a

    YHORFLGDGHGDVFRQVWUXo}HVDUTXLWHW{QLFDV$55$,6SeHVWDLGpLDTue leva

    Cavalcanti a esclarecer que

    o projeto modernizador que originou a construo de Goinia no se

    refere propriamente modernidade como modo de vida, como

    complexidade de vida urbana. O projeto tem a ver muito mais com a

    modernizao tcnica ( CAVALCANTI, 2001, p.25).

    Com base nas argumentaes de Arrais e Cavalcanti, no espao goiano, na

    poca referida, a modernidade era, sim, aspirada - e porque no dizer parcamente

    vivenciada - por grupos seletos dentro do todo social que compunha a sociedade local.

  • 31

    Estes grupos, da elite goiana, j contavam com condies de mobilidade espacial

    provedora de contatos e alargamento de relaes sociais.

    Isso pode ser ilustrado pelos estudos que se voltam para a organizao social

    de Gois no sculo XIX e incio do sculo XX. Neles, no incomum a aluso a um

    estilo de vida considerado moderno, perpassado por valores urbanos, principalmente

    quando os espaos escolhidos para essa referncia so as cidades de Gois e Meia

    Ponte , atual Pirenpolis.

    Oliveira (2005), apenas para ilustrar, descreve uma Meia Ponte do sculo XIX

    e incio do sculo XX caracterizada pela convivncia da tradio rural com estilos de

    vida considerados pela autora como modernos por imitarem comportamentos

    propriamente urbanos. Ela observa, j naquele momento histrico, alteraes

    lentas na sociabilidade daquela sociedade. No seu entendimento, tais alteraes se

    faziam refletir na apropriao do espao da cidade. Concorria para isso a propagao de

    idias e praticas sociais oriundas principalmente da corte carioca. Para isso acontecer,

    era preciso que a cidade contasse com meios, mesmo que incipientes, de comunicao.

    A autora cita a Matutina Meiapotense como editorial afeito em divulgar as

    novidades dos principais centros urbanos do Brasil e da Europa. No entanto, fica claro

    que a incorporao de tais comportamentos era privilgio, repetimos, das famlias de

    posses, aquelas que tinham acesso s letras e que consequentemente receberiam as

    influncias das instituies que se modernizavam.

    Neste sentido, importante destacar estudos, como o da autora citada, ttulo

    de clarificar e situar nossa pesquisa. No desconsideramos que intenes e vivncias

    modernas h muito tempo estiveram presentes no espao goiano conformando um tipo

    de contraponto tradio do Estado, sua formao socioespacial. No entanto, poca,

    a sociedade sertaneja, distribuda pelo vasto territrio goiano, em sua grande parte era

    constituda por moradores de fazenda e trabalhadores rurais. Acrescente-se a isso que

    nos ncleos urbanos formados nas distintas regies de Gois no se praticava a mesma

    espacialidade de cidades pioneiras como Gois e Meia Ponte, a ltima referenciada para

    ilustrar, de forma breve, a interferncia dos valores dos grandes centros urbanos.

    Podemos afirmar que a sociedade sertaneja construira e enraizara uma cultura

    permeada de cdigos peculiares de existncia - originrios do modo de vida rural - e

    imprimira tais cdigos no seu territrio. Esta viso de cultura est evidenciada na

    construo terica de Almeida que acrescenta que

  • 32

    pela cultura que estas populaes (sertanejas) fazem a sua mediao com o mundo e constroem um modo de vida particular e, se HQUDt]DPQRWHUULWyULR$/0(,'$S

    A avaliar pelas palavras da autora, enraizamento remete sensao, pelos

    grupos sociais , de pertencimento, ou seja, de fazer parte de um lugar e mais do que isso

    de sentirem-se seguramente estabelecidos nesse lugar. Isso de deve, sobretudo, ao

    partilhamento de valores culturais de toda ordem - ticos , estticos, morais, religiosos

    etc - construdos pelo grupo.

    Estudos desenvolvidos por Weil (1990), Ecla Bosi (1996) e Bosi (1997)

    convergem para a idia de o que o enraizamento uma significativa experincia do

    ser humano. Segundo Weil, o enraizamento talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. uma das mais difceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participao no mundo real, ativa e natural na existncia de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participao natural que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profisso, do ambiente (Weil, apud Bosi, 1996, p.411).

    O entendimento de tradio como uma modalidade de vivncia sustentada

    pelo modo de vida rural em Almeida (2001;2003) e Chaveiro(2001;2005); por prticas

    sociais recorrentes e repetio da produo simblica em Giddens (2001) e Hatzfeld

    (1993) e pelo conjunto de valores no qual se insere a totalidade do comportamento

    humano em Borhein (1987), esclarece que o contexto de vida em que uma

    determinada organizao social ainda no comunga de valores prprios de uma

    VRFLHGDGHLQGXVWULDOpIHUWLOPHQWHIDYRUHFHGRUGRHQraizamento cultural.

    Bosi (1999) j explicava que o ritmo lento de produo material - num

    determinado contexto cultural e na sua correspondncia com o estgio do modo de

    produo capitalista - propicia a uma sociedade construir e enraizar smbolos, signos,

    valores e experincias. Isso porque, conforme esclarece o autor, na fase pr-industrial

    do capitalismo a produo de smbolos e seu sistema de significao desconhecem a

    efemeridade e no atendem s necessidades de consumo.

    Se considerarmos em Bourdieu (1989) e Barth (1969) que uma das formas

    mais significativas de comunicao social se d pela comunicao simblica,

    concluiremos que produo e comunicao simblica so fatores para os quais se deve

    voltar a reflexo sobre sociedades tradicionais. Este pensamento convoca um

  • 33

    aprofundamento da leitura relativa dimenso cultural da tradio vivenciada pela

    sociedade sertaneja. Ou seja: fundamental entender as prticas culturais dessa

    sociedade. importante lembrar que o que concebemos que estas prticas no se

    encontram descoladas da estrutura socioeconmica embora no sejam determinadas

    somente por ela, pois, h que se considerar, tambm, a superestrutura.

    Ento, o que postulamos uma viso de cultura que contemple as vontades e

    aes humanas sem dissocia-las das condies histricas da produo material e

    simblica da vida. Nesta perspectiva, vislumbramos uma noo de cultura, de prticas e

    de manifestaes culturais intrinsecamente vinculadas ao social, entendendo o social

    como uma variante do modo de produo capitalista. Em outras palavras, toda pretenso

    de leitura cultural pressupe a leitura da sociedade como um todo.

    Assim, os grupos sociais iro expressar, no convvio do cotidiano, pela

    interao social, os conhecimentos adquiridos e construdos em condies histricas

    especficas. Conhecimentos que se traduzem em produes materiais e imateriais. A

    interpretao dos dois tipos de produo no pode desconsiderar que da organizao

    social e da vivncia espacial participa uma sociedade hierarquizada, dividida em

    classes sociais. Esse quesito alertado por Cosgrove (2003) na proposta de abordagem

    cultural geogrfica, aquela que considera uma leitura marxista da cultura.

    Outro autor que pensa a abordagem geogrfica cultural Gomes. Numa

    perspectiva mais conceitual ele sugere pensar a cultura como um conjunto de prticas sociais generalizadas em um determinado grupo, a partir das quais este grupo forja uma imagem de unidade e de coerncia interna. O conjunto destas prticas exprime os valores e sentimentos vividos por um certo grupo social e a delimitao de suas diferenas em relao a outros grupos (GOMES, 2001,p.93).

    A demarcao de diferenas de um grupo em relao ao outro, proposta por

    Gomes, est muito pry[LPDGDLGpLDGHVLVWHPDVVLPEyOLFRVHRSRVLo}HVVLPEyOLFDV

    presentes no pensamento de Bourdieu (1989) e Barth (1999), referenciados

    anteriormente. Estas idias possibilitam o entendimento da formao de identidades

    culturais.

    Almeida (2003; 2005) pensa a cultura a partir da relao de um determinado

    grupo como seu espao de vida. Para ela, a identidade cultural caracterizada pela

    vinculao dos sujeitos ao seu territrio. Os sentimentos de pertencimento neste

    territrio prevem a interiorizao e o compartilhamento de valores, cdigos sociais,

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    signos e smbolos criados coletivamente. Em outras palavras, a autora salienta uma

    identidade territorial.

    Claval apresenta o que denomina de f