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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Thaísa Duarte Ferreira As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede Rio de Janeiro 2014

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Page 1: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Psicologia

Thaísa Duarte Ferreira

As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da

Teoria Ator-Rede

Rio de Janeiro

2014

Page 2: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

Thaísa Duarte Ferreira

As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator-

Rede

Dissertação apresentada como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre, ao Programa

de Pós-graduação em Psicologia Social, da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área

de concentração: Psicologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt

Rio de Janeiro

2014

Page 3: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta

dissertação.

___________________________________ _______________

Assinatura Data

F383 Ferreira, Thaísa Duarte.

As associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede/ Thaísa Duarte Ferreira. – 2014.

83 f.

Orientador: Ronald João Jacques Arendt.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Instituto de Psicologia.

1. Vendedores de rua – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 2. Rio de Janeiro (RJ).

Guarda Municipal – Teses. 3. Política pública – Teses. I. Arendt, Ronald João

Jacques. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

es CDU 339.177(815.3)

Page 4: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

Thaísa Duarte Ferreira

As Associações de criminalidade à figura do camelô: Um estudo através da Teoria Ator-

Rede

Dissertação apresentada como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre, ao Programa

de Pós-graduação em Psicologia Social, da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área

de concentração: Psicologia Social.

Aprovada em 28 de março de 2014.

Banca examinadora:

____________________________________

Prof. Dr. Ronald João Jacques Arendt (Orientador)

Instituto de Psicologia – UERJ

______________________________________

Profª. Dr.ª Amana Rocha Mattos

Instituto de Psicologia – UERJ

_________________________________________

Prof.ª Dr.ª Cristina Mair Barros Rauter

Departamento de Psicologia - UFF

Rio de Janeiro

2014

Page 5: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

DEDICATÓRIA

Dedico a você, leitor.

Page 6: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais que me colocaram no mundo;

À minha família, em especial minha irmã pelo amor e carinho que tudo move mesmo à

distância;

Ao professor Ronald Arendt, meu orientador, por ter aceitado meu projeto e me

apresentado a Teoria Ator-Rede;

Aos camelôs e policiais que contribuíram com depoimentos, conversas,

esclarecimentos;

À minha gatinha, Pandora (em memória), por mostrar que o mundo podia ser

diferente;

Ao Federico, meu gato, por sua companhia nesse processo de criação;

A Uerj por disponibilizar nesse espaço físico bons encontros entre professores,

pesquisadores, alunos e curiosos;

À Irani Brandão e Victor Mera, pelo apoio e carinho;

Ao Baden Powell e Paulinho na Viola pelas suas belas canções que eu escutava

enquanto escrevia essa dissertação;

Ao professor Milton Athayde e a professora Deise Mancebo que me entrevistaram no

processo seletivo do mestrado;

À Ana Lúcia Maiolino que me despertou para o estudo do urbano ainda na graduação

e, posteriormente, me orientou na confecção da monografia de graduação junto com a profª

Ariane Ewald, a quem também agradeço por me ensinar a liberdade na escrita;

Aos amigos de coração Susana Vieira, Ester Cunha, João Vinícius, Camila Silva,

Ariadne Silva, Ana Alice Cafolla, Fernanda Muniz, Michelle Lustosa, Eduardo Farias,

Fernanda Aragão, Vinícius Rodrigues, Rafaela Carijó, Yan Navarro, Pedro Poças, Cyro

Novello, Fernanda Lobo, Heloisa Lobo, Ana Clara Carvalho, Felipe Amêndola e muitos

outros amigos que contribuíram e me apoiaram direta ou indiretamente;

Ao Dilmar Nascimento pelo bom encontro;

À banca Amana Mattos e Cristina Rauter por sua disposição sempre em esclarecer

qualquer dúvida;

À todos os participantes que contribuíram para este estudo existir;

Às ruas dessa cidade e de tantas outras que conheci e que me fascinam por seu

movimento, multiplicidade, encontros fugazes, sorrisos, protestos, conflitos e negociações;

Page 7: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

Ao Sri Sri Ravi Shankar por ter fundado o grupo Arte de Viver, que me ensinou a

respirar melhor e a meditar o que favoreceu o processo criativo;

À Capes.

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Eu vim plantar meu castelo

Naquela serra de lá,

Onde daqui a cem anos

Vai ser uma beira-mar...

Eu pairava no ar, e olhava a cidade

Passando veloz lá embaixo de mim.

Eram dez milhões de mentes,

Dez milhões de inconscientes,

Se misturam... viram entes...

Os quais conduzem as gentes

Como se fossem correntes

Dum rio que não tem fim.

Esse ruído

São os séculos pingando...

E as cidades crescendo e se cruzando

Como círculos na água da lagoa.

E eu vi nuvens de poeira

E vi uma tribo inteira

Fugindo em toda carreira

Pisando em roça e fogueira

Ganhando uma ribanceira...

E a cidade vinha vindo,

A cidade vinha andando,

A cidade intumescendo:

Crescendo... se aproximando.

Lenine

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RESUMO

FERREIRA, Thaísa Duarte. As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo

através da Teoria Ator-Rede. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de

Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Neste texto gostaria de apresentar uma investigação sobre as associações de

criminalidade investidas na figura do camelô através da Teoria Ator-rede. Diante da

realização de dois grandes eventos, a Copa do Mundo em 2014 e os jogos Olímpicos em

2016, foi estabelecido um plano municipal de ordem pública com diagnósticos e proposições

a fim de gerir a cidade do Rio de Janeiro. Uma dessas proposições envolve a política do

Choque de Ordem que parte do princípio que a desordem urbana é um deflagrador de

atividades criminosas. Assim, iniciou-se um processo de “higienização” das ruas da cidade,

que refletiu sobre o trabalho do camelô. Logo, as políticas públicas promovidas para esta

cidade aparecem como foco de discussão neste trabalho. Principalmente, como o tema da

criminalidade se vincula ou é vinculado à figura do camelô.

Palavras chaves: Camelô. Criminalização. Políticas Públicas. Teoria Ator-rede.

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ABSTRACT

FERREIRA, Thaísa Duarte. Associations crime figure of the camelô: a study by Actor-

Network Theory. 2014. 83 f. (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia,

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

In this text we would like to present an investigation into the crime associations

invested in figure of camelô by Actor-Network Theory. Before the completion of two major

events, the World Cup in 2014 and the Olympics in 2016, a plan was established municipal

public with diagnoses and proposals to manage the city of Rio de Janeiro. One of these

propositions involves the policy "Choque de Ordem" it assumes that urban disorder is a

trigger for criminal activities. Thus began a process of "cleaning" the streets of the city, which

reflected on the work of the street vendor. Soon, the public policies adopted for this city

appear as a focus of discussion in this work. Especially, as the theme of crime binds or is

linked to the figure of the street vendor.

Keywords: Camelô; Criminalization; Public Policy Actor-Network Theory.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………………………………………………………………. 11

1 TEORIA ATOR-REDE……………………………………………………… 15

1.1 Algumas considerações………………………………………………………. 15

1.2 Pesquisando com a teoria do ator-rede: uma “outra” possibilidade............ 20

2 OS CAMELÔS……………………………………………………………….. 26

2.1 Uma viagem no termo camelô.......................................................................... 26

2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática...................................... 28

3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.............. 35

3.1 O pensamento moderno……………………………………………………… 35

3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos.............................. 38

3.3 Do liberalismo rumo ao estado penal?......................................................... 40

4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA......................... 43

4.1 A guarda municipal no rio de janeiro............................................................. 45

5 POLÍTICAS PÚBLICAS................................................................................. 53

5.1 Algumas questões sobre a pesquisa............................................................... 53

5.2 Início da década de 80 e a política dos camelódromos............................... 57

5.3 a evolução da política de tolerância zero no rio de janeiro ....................... 62

5.4 The broken windows theory........................................................................... 63

CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 67

REFERÊNCIAS............................................................................................... 71

ANEXO A - Cadastramento de ambulantes....................................................... 75

ANEXO B – Evolução das Guardas Municipais no Brasil................................. 77

ANEXO C- Número máximo de comerciantes ambulantes com ponto fixo por

Região Administrativa.................................................................................. 78

ANEXO D- Mapas do perímetro de atuação das UOPs..................................... 80

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INTRODUÇÃO

Introduzir uma dissertação não é tarefa fácil, porque seria necessário, nessas poucas

linhas, relatar como eu me conectei ao assunto e como este se conectou a mim. Trabalho este

complicado de descrever o que nem sempre é possível descrever em palavras, pois estas, às

vezes, falham em sua tarefa de tradução: as palavras trazem, mas também traem o dito. Bom,

posto isto em mente, preferi iniciar contando minha trajetória e como o assunto camelô

atravessou meu caminho e eu o deles.

Minhas aproximações com os camelôs aconteceram mais ou menos neste período.

Quando ainda criança, uma amiga da minha avó participou do processo de concessão de

licença para trabalhar na região de Madureira, por volta da década de 90. Esta senhora possuía

uma papelaria e comercializava também seus produtos nas ruas, empregando uma pessoa para

trabalhar como camelô. Não sei por que essa lembrança permaneceu em mim. Talvez porque

os camelôs sempre me inspiraram curiosidade com sua infinidade de produtos, cores, sons que

instigavam meus sentidos. Também recordo que essa senhora de tempos em tempos ia ao

Paraguai buscar suas mercadorias, daí aprendi que “tudo de legal” que era possível para

minha família possuir vinha do Paraguai, essa era a sensação do momento no colégio público

em que eu estudava: as novidades vindas do Paraguai. Ao mesmo tempo, contrapondo a

imagem negativa que se instaurou posteriormente sobre os produtos paraguaios, no colégio,

tê-los era sinal de status e todos queriam consumir tais mercadorias.

Por outro lado, as minhas relações com o campo político sempre foram ambíguas.

Vinda de uma família de religiosos que acreditavam que “não se devia envolver em política”

porque esta se fazia pelas mãos dos homens que eram imperfeitos e nunca poderiam dar cabo

às soluções dos problemas humanas, pois sempre falhariam. Além disso, sempre escutava em

minha casa a máxima que diz “na política todos são corruptos” e, portanto, deveríamos ficar

longe deste assunto. Esse pensamento é levado a tal ponto que as pessoas são proibidas de

votar, em geral, anulam seus votos ou simplesmente não comparecem às urnas. De fato, essa

anulação política sempre me incomodou e rompendo com a religião, quando tirei meu título

de eleitor, eu votei. Queria participar das decisões do meu país. Porém, o assunto “política”

era tabu lá em casa. De forma inversa, tudo isso contribuiu para que eu me interessasse por

estudar políticas públicas e a atuação governamental. Assim, quando ingressei na graduação,

foram esses temas que mais me mobilizaram e pautaram minhas escolhas de estágio.

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Então, durante a graduação, ao cursar a matéria “Ética”, propus como trabalho final

uma discussão sobre a Pirataria em obras musicais. Mais tarde, este trabalho culminou no

tema da minha monografia, onde discuti mais profundamente o assunto. Naquele momento

não foi pertinente explorar a fundo o tema camelô e como este se relacionava com a pirataria,

visto que focava nos impactos desta para os artistas e sua relação com os direitos autorais.

Contudo, nas idas e vindas à Delegacia de Repressão a Crimes contra a Propriedade Imaterial

(DRCPIM), em entrevista com policiais e por ter acompanhado a apreensão de mercadorias, a

questão do modo como o camelô era tratado pelo governo e como ele surgia na cadeia de

vendas de produtos piratas, me chamou a atenção. Principalmente, por este ser acometido

tanto das ações policiais violentas quanto pelos prejuízos com a perda das mercadorias –

embora para esta última, eles tenham encontrado maneiras de amenizar os custos das ações

policiais.

Meu trabalho de campo, durante a monografia, envolveu conhecer DRCPIM - diga-se

de passagem, que isto ocorreu graças ao estágio que fiz na Delegacia Legal. Durante esta

minha passagem, um camelô se encontrava lá prestando depoimento por ter sido flagrado

comercializando produtos piratas. Um dos policiais fez questão de exibir o senhor e pedir para

que ele falasse quanto tempo trabalhava como camelô. Aquela situação de expô-lo,

apontando-o como vendedor de pirataria, como alguém “fora da lei” me causou certo

incômodo, afinal de contas não estava lá para julgar ninguém e não era repórter de programa

sensacionalista, era apenas uma aspirante a pesquisadora tentando entender como funcionava

a delegacia: sua função, como ocorriam as apreensões, o que era feito e etc. Contudo, este

evento me levou mais tarde a fazer alguns questionamentos quanto as políticas públicas que

geriam o camelô, e comecei a me perguntar se eles estavam sendo criminalizados ou não.

Embora, à princípio, eu tenha defendido o argumento sobre a ocorrência da criminalização, o

contato com a Teoria Ator-Rede redirecionou meu pensamento, não que eu tenha mudado

totalmente de opinião, apenas decidi olhar mais de perto e entender essa rede do camelô que

abarca políticas públicas, mercadorias, trabalho, economia, Guarda Municipal e etc. com mais

cautela.

Somado a isso, alguns períodos antes de iniciar minha monografia de graduação,

comecei a participar como estagiária voluntária do projeto: “Espaço Urbano e Subjetividade:

Um foco sobre as favelas do Rio de Janeiro”, coordenada, na época, pela Profª Ana Lúcia

Gonçalves Maiolino da UERJ. Foi a partir desse momento que despertei para o estudo do

“Urbano” e suas implicações, como, por exemplo, as questões referentes à exclusão

social/segregação espacial, à violência urbana e aos estigmas sociais e territoriais. Logo após

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terminar a graduação, ingressei no curso de Especialização em Sociologia Urbana, ministrado

pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na UERJ. Desta forma, foi possível agregar

uma bagagem de conhecimento maior sobre a cidade do Rio de janeiro: sua história,

transformações urbanas, a administração do espaço territorial (discussões acerca de

conflitos/negociações políticas e sociais), políticas públicas e etc. Então, aquele meu desejo

inicial de estudar os camelôs se tornou um projeto para o mestrado e a realização desta

pesquisa.

Este trabalho é fruto da pesquisa que realizei durante o mestrado ao longo dos anos de

2012 e 2013. Aqui, proponho um estudo acerca da associação da figura do camelô à

criminalidade, sobretudo, as mediadas pelo governo em suas políticas públicas.

Principalmente, a partir da década de 80, momento em que se inicia no Brasil o processo de

finalização da Ditadura Militar e a redemocratização do país. Assim, alguns temas referentes à

cidade e seus problemas, entre outros, surgem como discussão na pauta governamental. É

neste cenário que o assunto camelô ganha destaque e começa a ser pensado.

Atualmente, a cidade do Rio de Janeiro passa por grandes transformações em vistas de

sediar dois grandes eventos: a Copa do Mundo neste ano de 2014 e os Jogos Olímpicos de

2016. Diante desses dois grandes eventos a prefeitura do Rio de Janeiro desenvolveu um

Plano Municipal de Ordem Pública com diagnóstico e proposições a fim de gerir os temas

referentes à ordem e a segurança na cidade. Iniciando um processo de controle e retomada dos

espaços públicos, que acarretaram em impactos para o trabalho do camelô. Assim, houve a

inauguração da Secretaria Especial de Ordem Pública para dar cabo ao processo da

“retomada” dos espaços públicos pelo governo.

Desta forma, a fim de ordenar a cidade, lançaram mão da política do Choque de

Ordem, que foi baseada na Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows), formulada na

década de 80 nos Estados Unidos. Sua implementação a partir de 2008, na cidade do Rio de

Janeiro, ocorreu frente à ascensão do governo do atual prefeito Eduardo Paes e sustenta-se sob

o argumento de que a desordem urbana é um deflagrador de práticas criminosas o que gera

um sentimento de insegurança na população ao andar pelas ruas, fazendo com que esta evite

certas regiões. Isto causaria a degeneração de alguns lugares e, portanto, a diminuição da

atividade econômica dos mesmos (SEOP, 2010). Embora exista de fato a degradação de

alguns locais da cidade, tal política pretende, principalmente, dar uma resposta à questão da

“violência” no Rio de Janeiro frente à realização de dois grandes eventos: a Copa do mundo

em 2014 e os jogos Olímpicos em 2016 (SEOP, 2010).

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Foi a partir destas reflexões e diante de posturas cada vez mais truculentas da polícia

que percebi a importância de realizar um estudo que pudesse rastrear como o tema da

criminalidade surge neste cenário e se associa a figura do camelô, assim como, suas

implicações e produções. Logo, pesquisar as posturas adotadas pelo governo em relação a este

modo de trabalhar seria uma maneira de colocar em aspas o que se legitimou como tradição

em políticas públicas neste campo.

Para tanto, no primeiro capítulo realizo uma apreensão do que seria a Teoria Ator-

Rede a fim situar o leitor no campo de pesquisa. Em outro momento, clarifico como esta

teoria se insere como uma metodologia, lançando as bases do que norteou a elaboração deste

trabalho. No segundo capítulo discorro sobre os camelôs, salientando a origem deste termo e

como o mesmo começou a ser aplicado no Brasil, chamando a atenção para os significados

atribuídos a esta palavra. Da mesma forma, fala sobre as várias versões que o camelô

comporta. O terceiro capítulo parte da criação dos Estados modernos, passando pelas bases

que fundaram seu pensamento para compreender as ideias que fundamentaram a

modernização da cidade do Rio de Janeiro, bem como sua preocupação com a questão da

segurança. Já o quarto capítulo conta a história da formação das Guardas Municipais no Brasil

e, posteriormente, a criação desta guarda no Rio de Janeiro, as influências que sofreram e sua

função e atual estrutura. O quinto e último capítulo desenvolve o tema das políticas públicas,

no Rio de Janeiro, que gerem o trabalho do camelô. Assim, descrevo a política dos

camelódromos, além de relatar as origens das políticas entendidas como de “tolerância zero”,

sua difusão e aplicação nesta cidade. Finalizo expondo meu argumento sobre o que entendo

como sendo o processo de criminalização dos camelôs.

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1 TEORIA ATOR-REDE

1.1 Algumas considerações

Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Uerj, tive a

oportunidade de conhecer a Teoria do Ator-Rede (Actor-Network Theory – ANT)1 através do

meu orientador Ronald Arendt. Tal encontro proporcionou “outra” perspectiva e possibilidade

de pesquisar. Entre seus principais estudiosos, podemos citar, Bruno Latour, Michel Callon e

John Law. Os autores da Teoria do Ator-Rede propõem outra maneira de atuar no campo de

pesquisa ao estabelecer como objetivo da ANT, a renovação do significado de ciência e

social. Latour (2012b, p.17) busca na etimologia da palavra “social” resgatar uma sociologia

de associações: primeiro social significava “seguir”, depois “seguir alguém”, um “seguidor”,

um “associado” e posteriormente fazer referência a “alguma coisa em comum”. O autor

questiona a vulgarização do uso da palavra social: “quando os cientistas sociais acrescentam o

adjetivo ‘social’ a um fenômeno qualquer, aludem a um estado de coisas estável, a um

conjunto de associações que, mais tarde, podem ser mobilizadas para explicar outro

fenômeno”. Para o autor, isso não implicaria em um problema desde que a utilização do termo

‘social’ designasse algo que já está agregado e estabilizado, contudo, esvaziaria seu sentido

“caso ‘social’ passe a designar um tipo de material, como se o adjetivo fosse comparável,

grosso modo, a outros termos como ‘de madeira’, ‘de aço’, ‘biológico’, ‘econômico’,

‘mental’, ‘organizacional’ ou linguístico’.” (LATOUR, 2012b, p.17). Neste sentido, o

emprego de ‘social’ ou ‘contexto social’ teria a função de explicar a causa de alguns aspectos

residuais de outros domínios, como, direito, economia, psicologia e etc. Porém, o que seria “o

social”, “a sociedade”, esse bloco capaz de dar sentido a vários fenômenos? É justamente isso

que Latour questiona: a “sociedade/social” não existe tal como uma espécie de guarda-chuva

capaz de preencher de significados o que outras ciências não preenchem. O “social” não seria

entendido como “coisa”, como um tipo de material fixo.

Ainda que a maioria dos cientistas sociais prefira chamar “social” a uma coisa

homogênea, é perfeitamente lícito designar com o mesmo vocábulo uma série de

associações entre elementos heterogêneos. Dado que, nos dois casos, a palavra tem

1 Neste texto utilizarei as siglas ANT (Actor-Network Theory) e TAR (Teoria Ator-Rede) como sinônimos. As

duas formas se referem à mesma teoria: uma corresponde à sigla em inglês e a outra à sigla em português.

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a mesma origem – a raiz latina socius -, podemos permanecer fiéis às instituições

originais das ciências sociais redefinindo a sociologia não como a “ciência do

social”, mas como a busca de associações. Sob este ângulo, o adjetivo “social” não

designa uma coisa entre outras, como um carneiro negro entre carneiros brancos, e

sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, sociais. (LATOUR,

2012b, p. 23).

Enquanto algumas teorias estão centradas na pesquisa a partir de polaridades como as

divisões sujeito/objeto ou natureza/sociedade, a ANT está interessada, justamente, no que se

processa ‘entre’ essas dicotomias, o que conectaria o sujeito ao objeto ou de que forma a

sociedade estaria associada à natureza e vice e versa (PEDRO, 2007). Isso ocorre porque a

ANT não entende o fazer-agir como uma relação de causalidade, no sentido de haver um

domínio sobre algo que faz com que um ator aja de determinada maneira: “Vivemos em um

sistema de relações. Na teoria ator-rede trata-se de descrever a rede de relações, de avaliar as

redes, observar o que elas fazem fazer e como aprendemos a ser afetados por elas”.

(ARENDT; FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006 p.60). A questão da ação é muito mais

uma questão de vínculos2 do que uma questão de determinismo x liberdade. Em uma relação

tanto humanos quanto objetos se modificam, um aprende com o outro (ARENDT;

FERREIRA; MORAES; TSALLIS, 2006). O músico se adapta ao instrumento, mas o

instrumento também se adaptado ao músico, ele se modifica com o tempo, com a forma com

que é utilizado, o músico deixa suas marcas e vícios no instrumento, assim como o

instrumento transforma a técnica do músico. Às vezes, ocorre a tal ponto que um

instrumentista apresenta dificuldades em fazer soar o instrumento de outro musicista. É, neste

sentido, que a ANT admite e se interessa pela presença dos meios técnicos que estão entre nós

e nos compõem como coletividade. Por isso, adota a presença tanto de humanos como de não-

humanos nas redes sociotécnicas e reconhece a capacidade de transformação e afetação dos

mesmos na circulação do social. O social circula através de uma série de associações

estabelecidas. Logo, estudá-lo envolve seguir o traçado das conexões firmadas.

Desta forma, deveríamos retomar o trabalho de exercer conexões e, como uma

formiga, seguir os caminhos que os atores fazem, deixando que estes nos deem as pistas sobre

como uma informação circula na rede.

Já não basta restringir os atores ao papel de informantes de casos de tipos bem

conhecidos. É preciso devolver-lhes a capacidade de elaborar suas próprias teorias

sobre a constituição do social. A tarefa não consiste mais em impor ordem, em

limitar o número de entidades aceitáveis, em revelar aos atores o que eles são ou em

acrescentar alguma lucidez à sua prática cega. Para empregar o slogan da ANT,

2 Neste caso, vínculo se refere ao que coloca em movimento, comove.

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cumpre seguir “os próprios atores”, ou seja, tentar entender suas inovações

frequentemente bizarras, a fim de descobrir o que a existência coletiva se tornou em

suas mãos, que métodos elaboraram para sua adequação, quais definições

esclareceriam melhor as novas associações que eles se viram forçados a estabelecer.

(LATOUR, 2012b, p. 31).

O termo ator se refere, não somente a pessoas, mas a tudo que é capaz de deslocar,

transformar, transferir, produzir sentido. Ator é tudo que possui agência, que é capaz de

transformar, porque sua principal característica não é sua ação, mas os efeitos dela, o que é

produzido a partir dela. A palavra “ator” não poderia vir sozinha, mas sempre na expressão

ator-rede, visto que o ator nunca vem só em sua ação, mas comporta um conjunto de

entidades que o fazem fazer: “a ação é tomada de empréstimo, distribuída, sugerida,

influenciada, dominada, traída, traduzida. Se se diz que um ator é um ator-rede, é em primeiro

lugar para esclarecer que ele representa a principal fonte de incerteza quanto à origem da

ação.” (LATOUR, 2012b, p.76).

Neste sentido, um trabalho que utilize teoria a Teoria do Ator-Rede deveria preocupar-

se em seguir os atores envolvidos na trama e deixar que eles tracem o movimento que a rede

faz. Mas o que são redes? Nas palavras de Rosa Pedro: “O conceito de redes sociotécnicas

envolve a ideia de múltiplas conexões que nos permitem acompanhar e delinear a produção

dos fenômenos.” (PEDRO, 2010, p.81). A autora continua dizendo que uma das

características da rede é seu caráter dinâmico e instável com grandes trocas entre os atores.

Diferentemente das redes de internet, onde seu compromisso está na circulação de

informação, as redes sociotécnicas envolvem transformação. Já não se trata tanto de uma

questão só de vínculos, mas do que esses vínculos produzem (ARENDT; FERREIRA;

MORAES; TSALLIS, 2006), o que fazem fazer.

Para melhor explicar como uma rede se processa é importante entender o conceito de

mediadores e intermediários, pois estes dois estão implicados no mistério do curso da ação,

no que faz fazer. Um intermediário é aquilo que transporta significado, porém, sem

transformá-lo: “um intermediário pode ser considerado não apenas como uma caixa-preta,

mas uma caixa-preta que funciona como uma unidade, embora internamente seja feita de

várias partes” (LATOUR, 2012b, p.65). Em contrapartida, os mediadores podem ser bem

mais complexos e comportar uma infinidade de conexões e sempre acarretam em

transformações, pois fazem outros fazerem coisas inesperadas: “Os mediadores transformam,

traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam.”

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(LATOUR, 2012b, p.65). Pois bem, um exemplo3 simples pode ser capaz de clarificar esses

dois conceitos e sua implicação no curso de ação: Um computador pode ser compreendido

como um intermediário quando este funciona bem, sem provocar mudanças, como uma

unidade. Por intermédio de um computador eu posso cumprir meu curso de ação e escrever

esta dissertação, terminando-a no tempo necessário. Enquanto o mesmo funcionar

normalmente, eu mal notarei sua existência no sentido de perceber toda sua composição, de

tudo que propiciou que o mesmo fosse inventado, pois ele permanece o mesmo por todo o

percurso da minha ação. Porém, se meu computador quebra por algum motivo, ele se tornará

um mediador, pois essa “unidade” terá que ser aberta para descobrir onde está a falha e seus

componentes aparecerão. Além de modificar minha ação - porque terei que mudar de

estratégia para seguir com meu objetivo de terminar esta dissertação -, essa “quebra” também

trará à tona uma série de componentes que quando associados fazem o computador existir

como tal. Logo, a mediação de uma série de conexões estabelecidas entre peças tecnológicas,

engenheiros, trabalhadores de indústrias, transportes de produtos, estradas, políticas de

importação, ensino de informática, formulação de conhecimento na área de tecnologia da

informação, entre outros, permitiram que hoje eu escrevesse esta dissertação desta maneira e

não de outra forma. Além disso, uma falha em um desses dispositivos me levaria a outro

percurso de ação. Por isso, estes dois conceitos de intermediários e mediadores estão

envolvidos no que faz fazer ou no que faz fazer desta maneira.

Ainda não sabemos como todos esses atores estão ligados, mas podemos declarar

como a nova posição preestabelecida antes do estudo começar, que todos os atores

que vamos desdobrar podem estar associados de tal modo que eles fazem outros

fazerem coisas. Isso não se faz transportando-se uma força que permaneceria a

mesma por todo o percurso como um tipo de intermediário fiel, mas gerando

transformações manifestadas pelos numerosos eventos inesperados desencadeados

nos outros mediadores que os seguem por toda a parte. [...] a concatenação dos

mediadores não traça as mesmas ligações e não requer o mesmo tipo de explicações

como um séquito de intermediários transportando uma causa (LATOUR, 2012b, p. 158).

Ainda para compreender o que é uma rede, é fundamental acrescentar o conceito de

tradução neste estudo. Pois será a partir desse conceito que os atores delinearão os

movimentos das redes ao atribuir significados a elementos nestas, levando em conta “suas

ações, linguagens, identidades e desejos” (PEDRO, 2010, p. 82). A tradução, então, pode ser

compreendida como uma conexão que transporta transformação (LATOUR, 2012b), envolve,

portanto: transcrever, transferir, deslocar, transpor (LATOUR, 2012a). Uma rede pode ser

3 Exemplo inspirado no livro:” Cogitamus – Seis cartas sobre las humanidades científicas” de Latour (2012a).

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definida “como aquilo que é traçado pelas traduções nas explicações dos pesquisadores.”

(LATOUR, 2012b, p.160). Através das traduções daríamos lugar a versões das realidades

dentro da rede. Porque quando uma tradução acontece, deixa sempre um pouco de quem a

compôs: a isso chamamos de versão. E, em se tratando do estudo de um evento, podemos

dizer que versão vem no plural, como versões das realidades tecidas. Porém, a tradução

também possui outra face e pode vir como visões. Aqui, a tradução também se processa com

um “quê” de quem a estabeleceu, mas assume outra forma. A visão trata-se de deslocar o

significado de algo em uma situação para outra situação sem levar em conta a alteração de seu

sentido ao supor que a atribuição de significado para um evento será o mesmo em outros

eventos. Isso porque a visão toma para si a existência de uma significação única para um

fenômeno, que será imposta por ela. Um exemplo pode tornar isto claro: uma propaganda da

TV Globo sobre seu jornalismo dizia “nós não somos versão, somos a fonte”. Nesta frase, a

Globo ao se colocar na posição de fonte, assume o lugar da única emissora capaz de transmitir

a “verdadeira informação” ou a “melhor informação”. Logo, a tradução que ela fará de uma

informação será segundo os moldes da “visão”. Outras versões dadas por outras emissoras ou

outros veículos de comunicação para um fenômeno, se não estiverem de acordo com as

significações emprestadas pela Tv Globo, serão desqualificas, porque a visão desta última

deve prevalecer sobre as outras e/ou servir de modelo de interpretação.

Já a versão reconhece as relações de diferenças e pretende uni-las. “Traduzir não é

explicar, ainda menos explicar o mundo dos outros, é colocar o que nós pensamos ou do que

temos experiência à prova do que os outros pensam ou têm experiência”4 (DESPRET, 2012,

p.7). Logo, traduzir através de versões diz respeito a multiplicar os significados possíveis,

mas, isso não envolve interpretação e sim, experimentar equivocações de sentidos

(DESPRET, 2012). Quer dizer deixar proliferar a alteridade, multiplicando a possibilidade de

histórias e, principalmente, tornar-se sensível a elas, permitindo ser afetado a ponto de colocar

à prova nossa própria versão ao experimentar tais equívocos de significados.

Portanto, seguir o traçado de uma rede, envolve seguir a produção de diferenças

deixadas pelos atores. Utilizar a Teoria Ator-Rede trata-se de lançar mão de um método para

apreender a fabricação e produção de fatos.

4 Tradução realizada por Ronald Arendt (2012).

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1.2 Pesquisando com a Teoria do Ator-Rede: Uma “outra” possibilidade

Estudar as associações de criminalidade vinculadas ao camelô à luz desta teoria se

mostra um bom caminho por ser eficiente em trilhar as dinâmicas envolvidas no campo de

pesquisa. Sobretudo, porque a Teoria do Ator-Rede se preocupa com as práticas que

contribuem para a constituição das redes e o que tais práticas ‘fazem fazer’. A ANT trata-se

muito mais de um método, que propõe uma posição de compreensão frente ao campo de

estudo, que envolve, principalmente, ganhar sensibilidade, o tornar-se sensível. Desta forma, a

pesquisa ganha mais cores, mais perguntas, mais inquietações, mais movimento porque

reconhece a atuação de vários atores, que através de suas traduções constituem redes. Logo,

estudar as identificações de criminalidade à figura do camelô através da Teoria do Ator-Rede

significa fazer o caminho das conexões estabelecidas que propiciam e/ou propiciaram tal fato.

O que faz fazer o camelô ser criminalizado? Como esta rede é tecida?

Contarei agora um caso de atuação das Ovelhas de uma região da Inglaterra, Cumbria,

para o leitor compreender como a TAR se insere como um método e o que significa a atuação

dos atores. Law e Mol (2008) se utilizam do caso da epidemia de febre aftosa, que ocorreu em

2001, para apresentar como os atores atuam com uma determinada conjuntura. O texto é

interessante, em especial, por apartar o “ator” da ideia antropocêntrica que o entende a partir

de conceitos de intencionalidade da ação e capacidade de controle/domínio sobre algo: o ator

atua e é atuado. Aqui um não domina o outro, mas compreende que o ator não atua sozinho.

Ele é autorizado e produzido em relação com outros atores. Portanto, outras figuras, que não

humanas, também atuam e são capazes de transformar uma situação.

No início do ano de 2001 uma epidemia de febre aftosa se espalhou pela Inglaterra.

Como forma de controle dessa epidemia, a política de governo previa o sacrifício dos animais

contaminados e dos que, possivelmente, pudessem transmitir a enfermidade para outros

devido ao contato e/ou proximidade com os infectados. Embora se tenha cumprido tal

determinação, a doença continuava a se alastrar. Como a política de controle da epidemia em

questão não produziu os efeitos esperados, Law e Mol (2008), relatam que a cada semana ela

era modificada e o fruto dessa mudança fazia relação com a forma como a epidemia era

entendida por diversas instâncias que colaboravam com o caso. Em meio a tudo isso o

governo anuncia uma grande matança preventiva de ovelhas. E essa situação gera

controvérsias e, logo, várias versões para ‘a ovelha’; ela atua e é atuada de diversas formas.

Os autores enumeraram alguns atores atuando com as ovelhas entre os tantos outros atores

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que não foram postos em questão: A ovelha veterinária; a ovelha epidemiológica; a ovelha

pecuária e a ovelha econômica. Apresento-lhes agora como ‘a ovelha’ foi atuada para

apreendermos o que compreende uma atuação, o atuar e ser atuado.

As ovelhas em atuação com os veterinários surgem como animais difíceis de formar

um diagnóstico da febre aftosa. Porque na maioria das vezes, a infecção toma sua forma

benigna nas ovelhas adultas. Mesmo diante de uma avaliação criteriosa do veterinário, a

doença pode passar desapercebida ou ser facilmente confundida com outra enfermidade. Por

isso, o diagnóstico só poderia ser confirmado através do exame laboratorial. Contudo, esse

procedimento era muito demorado e, naquele momento, não havia tempo para tanta espera.

Portanto, toda ovelha que o veterinário, através do exame clínico, suspeitasse estar infectada,

era enviada para o sacrifício. Embora na prática veterinária seja necessário uma confirmação

laboratorial da doença para determinar o sacrifício de um animal, naquela situação, a prática

se encontrava separada das determinações legais (LAW; MOL, 2008).

Já a ovelha atuada com a epidemiologia se converte em coletivos (uma propriedade,

por exemplo), não se tratava mais de diagnosticar qual ovelha estava infectada ou não, porque

a infecção em uma propriedade já anunciava a morte de todas as outras. Enquanto as

ordenações veterinárias se baseavam em exames clínicos, a epidemiologia trabalhou com

cálculos que indicavam a probabilidade da infecção. As práticas veterinárias e laboratoriais

foram importantes nos primeiros diagnósticos, porém, nesse momento, a lógica da

epidemiologia aparta-se delas. Embora houvesse controvérsias quanto a consistência do

modelo estatístico utilizado, optou-se pelo uso do cálculo para definir o raio do risco de

contágio e determinar as distâncias em que deveriam realizar a matança das ovelhas (LAW;

MOL, 2008).

Na atuação da ovelha com a economia, por causa do surto de febre aftosa, o Reino

Unido teve uma grande perda financeira. Por um lado, devido às restrições de compra e venda

de ovelhas, por outro lado, porque os preços de venda caíram bastante. Como forma de

compensar os prejuízos e incentivar a aderência dos pecuaristas à ‘política dos sacrifícios’

para conter a epidemia, o governo passou a pagar uma compensação sobre os animais

sacrificados. Na maioria das vezes, essa compensação era maior do que o valor de venda dos

animais e havia um grande custo financeiro em manter as ovelhas que estavam saudáveis.

Então, naquela situação, o sacrifício se mostrou economicamente mais interessante que outras

formas de solução (LAW; MOL, 2008).

Em relação à pecuária, a ovelha surge como parte de um rebanho. Não se trata

somente de uma questão econômica, mas envolve o tempo de constituição daquele rebanho, o

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cuidado para se ter um bom rebanho, a função das ovelhas nesse rebanho, os cruzamentos

durante gerações até que ele se desenvolva. E todas essas características construídas são

repassadas de geração em geração. Logo, a matança de algumas ovelhas ou de muitas

provocaria uma perda irreparável para um rebanho e, inclusive o desaparecimento deste para

sempre. A atuação das ovelhas com a pecuária é capturada pela relação com o tempo, o sexo,

a idade e o lugar, fatores que contribuem para a composição dos rebanhos (LAW; MOL,

2008).

Em meio a tais discussões, as ovelhas da Cumbria foram postas de lado da ‘matança

preventiva’. Foi levado em consideração a dificuldade em se formar rebanhos como aqueles.

Tratavam-se de rebanhos de campo aberto e este tipo de rebanho leva um bom tempo para se

formar. Pois as ovelhas precisam aprender a não se perderem e, posteriormente, ensinar as

ovelhas mais novas os limites do campo, onde podem pisar sem perigo e onde não devem ir.

Além disso, essas ovelhas contribuem para manter a paisagem local, pois “limpam” os

campos de plantas indesejáveis e mantêm a típica aparência da região (LAW; MOL, 2008).

Portanto, a atuação dessas ovelhas, suas características, o fazer certas coisas em vez de outras,

permitiram que elas modificassem a determinação daquela política de controle para a febre

aftosa. A atuação das ovelhas de Cumbria era mais interessante do que a sua extinção.

Desta maneira, visto as diversas formas em que a ovelha é atuada com outros atores

podemos dizer que ela é múltipla, porque aparece de diferentes modos de acordo com a

prática produzida. Não se pode falar em ‘a ovelha’ em especial, pois existem atuações para as

ovelhas, ou seja, versões distintas, mas que se comunicam em uma rede de relações

complexas (LAW; MOL, 2008). Uma versão não exclui a outra, porém todas contribuem de

alguma forma com as decisões tomadas frente à epidemia. Elas (as ovelhas) se fazem juntas,

as práticas no trato delas se convergem em algum momento. Contudo, isso não quer dizer que

as ovelhas são passivas, que apenas atuam sobre elas, porque a grande questão está no fato de

que se existem diversas formas de atuar ‘as ovelhas’, isso significa que estas também atuam

de modos distintos (LAW; MOL, 2008). Explorar as práticas de atuação da ovelha é uma

maneira de conhecer o que é uma ovelha. Porém, é importante dizer que tal investigação

sempre será parcial porque ‘a ovelha’ pode ser atuada de outras formas com outros atores que

não foram postos em cena no momento da investigação. Nessa exposição podemos notar que

os atores não atuam sozinhos, mas em colaboração com outros atores a tal ponto que seria

difícil dizer exatamente o que cada um faz: “A ação se move. É como um fluido viscoso”

(LAW; MOL, 2008, p. 88, tradução nossa). Desse modo, o que surge dessas combinações é

imprevisível porque as ‘agregações’ assim como os atores são criativos. Por outro lado, o

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fruto dessas atuações também tem a ver com a normatividade das atividades ali reunidas: de

modo algum as formas de tratamento previstas às epidemias de febre aftosa são neutras.

Diante disso, podemos dizer que “um ator é um momento de indeterminação que gera

acontecimentos e situações. Faz isso em conjunto com outros atores que o atuam, e este por

sua vez, atua” (LAW, MOL, 2008, p. 90, tradução nossa). Entendido dessa maneira o ator,

torna-se menos importante definir quem é ator. Porém, parece mais interessante explorar o

que eles fazem, como atuam, como são atuados. Qualquer coisa pode ser um ator, ou seja,

pode ser capaz de transformar uma situação.

Após esse relato, podemos compreender como a ANT se insere como um método,

como trabalhou com as controvérsias geradas por um evento (a epidemia de febre aftosa). Da

mesma forma não ignorou as traduções/versões da ovelha, permitindo que aquelas aflorassem

sem contudo resolvê-las, mas deixando que os atores as organizassem. Vale lembrar que

‘deixar que os atores organizem o social’ não quer dizer que o pesquisador não estará

intervindo de alguma maneira; quer dizer que o pesquisador não levará respostas prontas que

proponham uma explicação para o fenômeno. Não cabe a nós dizer o que é o quê. Porém,

deveríamos estar atentos e sensíveis para perceber como os atores se organizam e como

significam os fenômenos. Desta forma, dar vazão as controvérsias é um modo interessante

para compreender como o social é tecido. Bruno Latour lançou mão dessa ferramenta para

apreender os coletivos: as cartografias controvérsias (LATOUR, 2005 apud PEDRO, 2010).

Controvérsia faz relação a um debate, uma polêmica, que propõe sair de uma visão

dicotômica dos fatos como isto ou aquilo e privilegiar as “caixas- cinzas”, aquilo que ainda

não foi legitimado, mas permanece em aberto como interrogações (PEDRO, 2010). Desta

forma, a utilização desta metodologia implicaria em “seguir” os atores, deixar-se afetar por

eles, estar atento para perceber sua atuação ao permitir que eles falem por si e, descrever as

controvérsias existentes na dinâmica da rede. Esse seria um modo de “apreender a rede ‘tal

como ela se faz’” (PEDRO, 2010, p.88). Como salienta Latour se valer das controvérsias seria

uma maneira de não enquadrar os atores em categorias, mas deixar que eles próprios ordenem

e definam o social à sua maneira. Ao pesquisador caberia a tarefa de “rastrear conexões entre

as próprias controvérsias e não tentar decidir como resolvê-las” (LATOUR, 2012, p.44).

Aceitar as várias versões significa que compreendemos que em matéria de ciência nem todos

estarão de acordo sobre um assunto. Isso porque um mesmo evento pode dar lugar a várias

versões e se fôssemos olhar de perto, de fato, nenhuma poderia ser considerada ‘certa’ ou

‘errada’. Primeiro, porque esse não é objetivo da ANT, segundo, porque os fenômenos são

heretogêneos e híbridos, possuem muitas facetas e cada ator, provavelmente, se conectará

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apenas com algumas de suas partes. Por outro lado, se o social é um agrupamento residual de

outros materiais que não são “sociais”, as controvérsias, traduções e versões contribuiriam

para reagregá-lo, traçando a fina rede de conexões que o faz existir.

Sobre a hibridez e heterogeneidade dos fatos é possível percebê-los quando lemos de

forma atenta uma notícia de jornal, revista e etc. Em uma mesma matéria podemos encontrar

reunidas nela questões políticas, científicas, econômicas, religiosas e tantas outras. Por

exemplo, nos debates sobre a legalização do aborto no Brasil observamos discursos de cunho

religioso: “abortar é acabar com uma vida, assassinar uma pessoa”; nessa mesma frase a

ciência biológica poderá argumentar a favor ou contra sobre o que é vida, se há vida no início

da gestação; a Psicologia também poderia fazer seu discurso sobre as possíveis consequências

à mulher/mãe, ou mesmo os dilemas estas enfrentam; algumas mulheres poderiam levantar a

questão, como uma questão política, que somente a mulher deve ter o poder de decidir sobre o

seu corpo; alguns funcionários de hospitais poderiam argumentar que a não legalização do

aborto provoca muitas outras complicações para a mulher e/ou bebê quando esta tenta fazer

um aborto em local inapropriado, ocasionando a morte dos dois ou más formações no bebê

e/ou rejeições e abandonos após o parto e, portanto, esse fato aumenta os custos com saúde

para o governo.

Nesse exemplo, discursos de diferentes campos de atuação se misturam e se

apresentam entrelaçados sobre a questão de uma forma que não é possível separá-los ou tomar

uma decisão sem levá-los em conta. Questões políticas surgem com questões econômicas,

biológicas, religiosas, psicológicas. Isso porque o trabalho de purificação e separação que a

Modernidade pretendeu fez, na verdade, proliferar ainda mais os híbridos e florescer a

heterogeneidade dos fenômenos. Não há ciência pura e simplesmente, assim como não há “o

social” separado de suas articulações. O que seria marcado somente pela sociedade (humanos)

ou pela ciência (natureza) não existe, pois esses dois se misturam. A modernidade, segundo

Latour (1994), tenta cindir humanos e natureza, associando-os em polos distintos. Enquanto

os assuntos humanos estariam a cargo da política e se fariam presentes pela representação

governamental; as questões da natureza estariam a cargo das ciências e representadas pela

figura dos laboratórios. Isso, em consequência, provocou a aceleração e proliferação dos

híbridos. Porque o trabalho de separação e purificação entre conhecimento (ciência) e poder

(política) não levou em conta o processo de mediação, tão presente nos coletivos. Não foi

posto como questão que nenhum coletivo sobrevive sem mistura-se, ou seja, não é possível

agregar diversos atores e supor que estes não se afetarão. Em contrapartida, tornar os híbridos

impensáveis não os fez desaparecer, só os fez proliferar mais e mais em surdina. O preço

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disso foi a incapacidade dos modernos de pensar a si mesmos (LATOUR, 1994). Enquanto

mantivermos essa cisão teremos dificuldades em compreender as articulações no social, seus

híbridos e sua heterogeneidade. As políticas públicas pautadas nessas divisões, igualmente,

serão ineficientes por não experienciar o coletivo tal como ele se faz e perderão a capacidade

de pensar a si mesmos. Portanto, meu interesse está em rastrear como o tema da criminalidade

circula na rede, não como informação, pois já vimos que nossa rede não significa informação,

mas transformação. Desta forma, será possível apreender o que liga a ideia de criminalidade

ao camelô, mais precisamente, como se estabelecem essas conexões. A partir daí poderíamos

pensar nesse agrupamento de coletivos, dito sociedade, como ele está se fazendo. Pois pensar

a si mesmo abre caminho para outras possibilidades de atuação, mais interessantes nos

coletivos.

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2 OS CAMELÔS

2.1 Uma viagem no termo camelô

Figura tão comum das grandes cidades, o camelô parece acompanhar seu reboliço, seu

movimento. Bastando existir um lugar de grande circulação de pessoas para lá o

encontrarmos. Anunciando as novidades do momento, vendendo produtos de acordo com as

épocas festivas, com cópias perfeitas ou não de grandes marcas, essas vendas, muitas vezes,

são acompanhados de performances. Esse personagem das cidades é, geralmente, conhecido

por vender de tudo um pouco e a preços mais baixos. Contudo, também é encarado com

desconfiança, pelos que compram nele, em relação à qualidade de suas mercadorias e às

garantias que pode oferecer. Embora não seja possível precisar o início dessa atividade, a

palavra ‘camelô’ tem suas origens na Europa.

Curiosamente o termo camelô surgiu na França, ainda no século XII, para designar os

vendedores ambulantes das ruas de Paris que ofereciam casacos de pele de camelo

provenientes do norte da África e Oriente Médio do qual chamavam de khmalat. Por ser de

difícil pronúncia para os europeus a palavra se tornou Camelot. Esse termo era utilizado tanto

para denominar o produto como o vendedor. Porém, algumas vezes, esses ambulantes

ofereciam casacos de peles feitos de um material inferior, sendo apenas uma imitação da

mercadoria anunciada. Por isso, o termo foi vulgarmente associado a vendedores de

falsificações o que justificou o significado incorporado pelo verbo cameloter quando surgiu

no século XVII, na França: ele era utilizado tanto para designar um tipo de mercadoria mais

rude, de segunda linha, como para se referir a uma pessoa pouco cortês. No Brasil, o termo foi

incorporado no século XX e abrasileirado para camelô (DANNEMANN, 2010). Aqui se

manteve o sentido pejorativo do qual derivou o vocábulo, contudo, não foi utilizado para

denominar a mercadoria, somente o vendedor.

É possível encontrar registro na literatura da palavra Camelot na cidade do Rio de

Janeiro, Brasil. No livro “A Alma Encantadora das Ruas” do jornalista João do Rio, escrito no

início do século XX, no segmento “O que se vê nas ruas” na parte sobre as “pequenas

profissões”, João do Rio descreve as ocupações que ele chama de exóticas e que muitas vezes

são realizadas pelos “invisíveis” da cidade, e que movimentam as ruas desta. Nesta parte do

livro o jornalista se refere a algumas atividades que envolvem vendas, falsificações,

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enganações, jogos... Como os ciganos que vendiam anéis de plaquet dizendo ser de ouro, os

selistas que catavam do lixo selos intactos de charutos caros para falsificá-los, os ratoeiros que

passavam pelos cortiços comprando ratos para depois vendê-los (RIO, 1991). Porém é no

subcapítulo, “Os Mercadores de Livros e a Leitura das Ruas”, que João do Rio faz alusão ao

termo Camelot. Ele usa esse termo para se referir aos vendedores de livros ambulantes que

andavam pela cidade batendo de porta em porta, mas que também colocavam tabuleiros nas

ruas. Esses comerciantes eram compostos, predominantemente, por africanos. O autor

descreve a sua existência desde o ano de 1840 quando já negociavam com as livrarias e

comercializavam nas ruas. Porém, é a partir do início do século XX que relata o considerável

aumento do número de camelots circulando na cidade devido às possibilidades de altos

ganhos em um dia com a venda de literatura popular. Na época, Rio fez críticas a esse grupo,

sobretudo, por causa dos produtos que vendiam: os livros relatavam histórias de crimes e

devaneios e por isso acreditava-se que poderia influenciar os leitores:

Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens

primitivos, balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes,

piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração

de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. (RIO, 1991, p.62).

Neste registro sobre o camelô na cidade do Rio de janeiro no início do século XX,

podemos observar como ele aparece atrelado à ideia de um comércio popular e, neste caso, a

uma literatura consumida, principalmente pelos pobres. Também é possível perceber como

este fato traz uma crítica do autor ao aumento dos “camelots” pela possibilidade daquela

literatura ser um incentivador de crimes. Assim, desde os primeiros registros na literatura o

camelô surge vinculado a uma imagem negativa que o liga à ideia de contribuir com o crime,

e, por isso, sua possível proliferação preocupa.

Esse sentido depreciativo para designar camelô o acompanhou por várias épocas na

cidade do Rio de Janeiro, podendo ser observado nos discursos que propunham reformas na

cidade e condenavam esse tipo de trabalhar. O camelô é vez ou outra, associado à ideia de

sujeira das ruas da cidade, à ideia de violência, de falsificação, de financiar o crime

organizado. Todos esses argumentos já foram utilizados para fundamentar as políticas de

governo que tratam desse grupo e formular leis que procedem com a ideia de higienização das

ruas da cidade. Propondo a extinção e/ou controle desse tipo de trabalho. Durante meu

trabalho final de graduação, ao abordar o tema da pirataria de mídias, foi possível observar,

através de matérias de jornais e de programas de combate à pirataria alguns discursos que

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seguiam este caminho, como, por exemplo, uma cartilha antipirataria, destinada ao

consumidor, dizer que a compra de produtos piratas financiava o crime organizado, porém

sem maiores exposições sobre como isto acontecia (APCM, 2010).

2.2 Versões do camelô: a multiplicidade de sua prática

Minhas aproximações com o campo de estudo, em especial, com o camelô que mais

contribuiu em depoimentos, trocas, informações, indicações de pessoas e de leituras ocorreu

no meu primeiro ano de mestrado, em 2012, durante uma palestra do candidato a prefeito do

Rio de Janeiro, Marcelo Freixo. Tal palestra discutia a defesa de uma cidade para todos seus

habitantes. Em meio à discussão, o camelô Carlos5, fez uma pergunta sobre como o candidato

Freixo resolveria a questão do camelô porque entrava governo e saía governo e nada mudava,

de fato. Após a palestra, procurei Carlos para conversar e disse que estava estudando uma

possível criminalização dos camelôs e que me preocupava, principalmente, com a violência

que eles eram acometidos nas ruas e se ele topava conversar comigo, me contar mais sobre

sua história. Carlos ficou interessado por saber que alguém estava estudando os camelôs na

cidade do Rio de Janeiro e se mostrou bastante solícito pra conversar. Neste dia trocamos

nossos contatos, e-mail e telefone. Encontramos-nos algumas vezes na universidade que

cursei o mestrado, Uerj. Foram encontros informais, onde expus minhas ideias, fiz algumas

perguntas, tirei algumas dúvidas sobre o caminho que eu estava levando minha discussão e

pedi a opinião dele nas minhas questões. Eu estava interessada se minhas “hipóteses” se

confirmavam ou não. Depois comecei a acompanhá-lo no seu trabalho nas ruas e este chegou

a me indicar alguns amigos camelôs interessados em conversar. Entre encontros e

desencontros mantínhamos sempre contato por e-mail, às vezes enviava parte do que eu havia

escrito e, às vezes, ele me enviava sites, blogs com matérias sobre os camelôs e, às vezes,

vinha com notícias de acontecimentos, bem como, eu muitas vezes lia alguma reportagem

sobre os camelôs e o consultava para saber se ele estava a par do assunto.

Assim, em um dos nossos encontros, quando eu acompanhava Carlos em seu trabalho,

este me chamou a atenção para a importância de diferenciar o camelô do ambulante: “O

camelô é aquele cara que monta banca em um lugar fixo e não anda pela rua; o ambulante

5 Nome fictício escolhido pelo próprio camelô.

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não tem lugar fixo, ele não fica parado, circula pela rua”. Esta diferenciação também foi

relatada pela antropóloga Mafra (2005) em sua dissertação de mestrado, onde o título já faz

essa distinção, “A ‘pista’ e o ‘camelódromo’: camelôs do centro do Rio de janeiro”. A ‘pista’

se referia, principalmente, aos ambulantes que circulavam no entorno do camelódromo da

Uruguaiana. Como foi apresentado anteriormente, o termo “camelô” derivou de comerciantes

que circulavam pelas ruas de Paris e eram conhecidos como “camelot” (DANNEMANN,

2010). Da mesma forma, na cidade do Rio de Janeiro, em relatos literários (RIO, 1991),

quando essa palavra foi incorporada ao nosso cotidiano, também se referia a comerciantes que

circulavam pelas ruas: os africanos que vendiam livros de porta em porta.

Parece que, ao longo da história, o que hoje em dia nós chamamos de “camelô” é uma

versão do que hoje nós conhecemos como “ambulantes”. Então o “camelô” (atual) seria uma

tradução/versão do “camelô” anteriormente. Bom, isso pode ter gerado uma confusão no

leitor, que deve ter lido a frase anterior mais de uma vez para entender. Pois bem, esse assunto

também não parece muito claro para os camelôs. Continuando a conversa com Carlos, este me

diz que desde criança trabalha como camelô (desde os seus cinco anos), pois quando seus pais

se separaram, com o aumento do aluguel, sua mãe encontrou dificuldades em mantê-lo e, por

isso, ele e seu irmão foram vender doces no trem. Ele se referiu à palavra “camelô” para

designar esta prática, então, eu intercedi e disse, “mas isso não é camelô, é ambulante como

você acabou de me falar”, ele respondeu “é verdade, é ambulante, você tem razão, eu

confundi”. Rimos da situação6, mas será que realmente há essa divisão marcada entre camelô

e ambulante? E se há, quando ela se estabeleceu?

A questão não é que o Carlos se confundiu; da minha memória de infância (anos

80/90), nas minhas viagens de trem com minha avó até Santa Cruz para visitar uma tia que

morava em Sepetiba, não denominavam de “ambulantes” as pessoas que comercializavam nos

trens, mas eram conhecidos como camelôs. Ambulante sempre foi associado, muito mais, aos

vendedores que circulavam nas praias. Porém, quando os camelódromos são instaurados

(década de 80/90) há, além da determinação de locais para as práticas dos camelôs, a

intensificação da repressão e regras quanto ao que pode ser comercializado. Então, essa

fronteira entre camelô e ambulante torna-se um pouco mais evidente. O camelô é reconhecido

6 De fato, eu quis provocá-lo para pensar sobre suas contradições, porém, após apontamento da banca, me

perguntei se eu não estava tentando “resolver” tais versões para camelô e tentando dar sentido à elas, em vez

de permitir que o mesmo me contasse suas versões e estar por satisfeita descrevê-las. Isso foi interessante para

eu mesma reavaliar meu modo de conduzir uma pesquisa e perceber como, muitas vezes, embora procuremos

por métodos alternativos de pesquisa que não caiam nas velhas dicotomias, explicações e categorizações de um

método científico moderno, em muitos momentos nos vemos reproduzindo-os sem nos darmos conta. Isso foi

um aprendizado para estar cada vez mais atenta e sensível a fala do outro.

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31

e legitimado de alguma forma pelas leis e possui lugar para o exercício da camelotagem, ele

se fixa em um ponto, porém o ambulante podia ser tanto o camelô que não havia conseguido

cumprir as exigências do governo para exercitar seu trabalho e precisava ‘circular’ para fugir

da repressão, como poderia ser aquela pessoa, que por escolha ou pela demanda do produto

que comercializa, preferiu ser ambulante a se fixar em um ponto.

A lei nº 1876 de 1992, de fato, não faz diferenciação ao se referir a esses dois grupos.

Porém, em 2008, admite-se essa separação quanto ao entendimento de práticas diferentes. A

partir deste ano, seguindo os critérios da lei de nº 1876, houve uma pequena modificação nas

exigências para obtenção de licenças e a abertura para cadastramento de um grande número

de ambulantes através do Cadastro Único do Comércio Ambulante (CUCA). A diferença do

ano de 1992 para o de 2008 é que se permitiu que qualquer pessoa requeresse licença, já que

nos termos daquele ano (92) fazia-se parte dos critérios de concessão: idade, pessoas com

mais tempo na função, condição física, situação penal, estado civil, número de filhos entre

outros. Porém, essa “abertura” para todos se cadastrarem só ocorreu na primeira fase de 2009.

A partir da segunda, seguiram-se critérios parecidos com os que ocorreram em 1992. Após

2008 o solicitante deveria ter mais de 18 anos e se enquadrar em uma das seguintes

situações:7 ser ex-detento; ter mais de 45 anos, estar desempregado a mais de um ano, ter

alguma necessidade física específica e ser portador do protocolo de processo com pedido de

autorização para comércio ambulante com data anterior a 31 de dezembro de 2008 (SEOP,

2009). Assim, no ano de 2009, o governo realizou o cadastramento das atividades comerciais

exercidas no espaço público, incluindo: bancas de jornais, chaveiros, quiosques de plantas,

ambulantes que atuam no asfalto e nas praias. Essas medidas foram, sobretudo, reflexo da

postura do governo municipal diante dos grandes eventos que a cidade do Rio de Janeiro será

sede, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Tal discurso aponta para a necessidade de

retomar o território público e ordená-lo a fim de receber esses dois eventos e dentro deste

projeto está incluso o ordenamento do comércio ambulante das ruas e praias. O processo de

normatização das práticas desse grupo foi parecido com o que ocorreu com os camelôs na

década de 80/90 durante a criação dos camelódromos: também ocorreram padronizações

quanto ao material utilizado, tipos de mercadorias permitidas, e, principalmente, a

intensificação na fiscalização e aumento da repressão.

Dentre as falas da prefeitura presentes na manutenção do CUCA - em documento

apresentando as ações do Seop8, em 2011 -, estão: ter controle efetivo sobre as atividades

7 Ver anexo A 8 Secretaria especial de ordem pública.

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econômicas no espaço público, promover a legalidade dessas atividades e incentivar o

empreendedorismo entre os ambulantes (SEOP, 2011). Este último vem acompanhado da

ideia de “entrar” para a legalidade através do projeto “Empresa Bacana”, que apresenta as

possíveis vantagens que o ambulante teria ao se tornar legal, como: a possibilidade de

comercializar com grandes empresas, de poder empregar com carteira assinada, tornando-se

um micro empresário e, portanto, aumentando sua renda (SEOP, 2011). Bom, este discurso

trata-se de um documento oficial, emitido pelo governo, que é diferente do que o próprio

ambulante entende por sua prática e quais possibilidades, o mesmo, enxerga e comunica em

uma entrevista ao falar do seu modo de trabalhar e objetivos. Os discursos podem até ser

parecidos, mas carregam sentidos distintos de acordo de onde se fala: um oficial e outro da

experiência de quem vivencia as ruas. É curioso notar uma sensível mudança e interesse do

governo ao apoiar o desenvolvimento de ambulantes em torná-los empresários em um

momento de crise do trabalho assalariado e transformações dos modos de trabalhar, já que os

“ditos” ambulantes e/ou camelôs existem faz tempos. Tal situação me levou a recordar da tese

de doutorado da antropóloga Rosana Pinheiro Machado com o título “Made in China”, onde a

mesma visita fábricas chinesas e encontrou um incentivo e o discurso recorrente sobre a

possibilidade de chineses que vinham do campo se tornarem empresários, contudo, a maior

parte desses chineses falia e não obtinha os lucros desejados. O sonho de enriquecer, na

maioria das vezes, não acontecia9. Pergunto-me se isso se aplica a nossa situação, quantos

camelôs/ambulantes se tornarão empresários realmente?

Outra questão quanto às denominações e práticas que dariam sentidos as palavras,

camelô e ambulante, é interessante de notar: tornar-se ambulante, na ocasião da criação dos

camelódromos, pode-se dizer, foi uma atuação (tradução) dos camelôs em relação à política

da época que se tornou mais rigorosa com os que atuavam nas ruas. Então, circular pela

cidade era uma forma de fugir da repressão. No entanto, os camelôs desenvolveram um

mostruário das mercadorias no estilo de um paraquedas, porque assim era mais fácil recolher

tudo e correr rapidamente. Quando o camelô se fixa em um ponto, podemos dizer, que o uso

desse termo para essa prática foi uma versão do camelot, aquele ambulante das ruas de Paris.

E, posteriormente, o ambulante foi uma tradução/versão do camelô. E, portanto, quando essa

transformação acontece, as políticas também focam seu discurso no “tornar-se legal” para o

grupo dos ambulantes, e, principalmente, procuram exercer controle sobre este grupo com

processo semelhante ao que ocorreu com os camelôs.

9 Para maiores informações ver: MACHADO, Rosana Pinheiro. Made in China: produção e circulação de

mercadorias no circuito China-Paraguai-Brasil, 2009.

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Vale lembrar que ao se falar em ‘versão’ não quer dizer que camelôs e ambulantes são

antagônicos, nem que são sinônimos, porque conservam características próprias quanto as

suas atuações. Porém, embora tenham diferenças, possuem muitas semelhanças e suas

práticas se tocam em vez de se excluírem. Uma forma de comercializar pode contribuir com a

outra de acordo com a necessidade imposta pelo momento. E melhor, elas convivem juntas.

Dessa forma, a compreensão da multiplicidade dos fenômenos estudados se mostra

interessante, pois a partir dela que podemos pensar na formação de realidades que são

múltiplas. Partindo disto, poderíamos reavaliar nossas concepções de política ao levar em

conta as várias nuances envolvidas nas práticas cotidianas. Sobre este ponto é importante

esclarecer o que é multiplicidade e como este termo se diferencia de pluralidade.

De acordo com Annemarie Mol (2007) pluralidade tem a ver com perspectivismo, que

se relaciona com a forma de tradução pautada nas visões, termo já mencionado no capítulo

anterior. A pluralidade pode ser entendida como as várias formas com que especialistas

diferentes, com histórias diversas representam um objeto a partir de sua visão e a sua maneira.

Parte ainda do princípio de que existe uma realidade, um objeto intocado, singular onde um

especialista irá explicar de acordo com sua perspectiva. Neste caso, as visões se excluiriam

mutuamente, não havendo um ponto de encontro entre elas capaz de fazer com que ecoem

juntas ou possam trabalhar em conjunto.

Outra maneira de conceber a pluralidade é pensá-la a partir da construção, ou seja,

como certas versões sobre a realidade foram tidas como “a verdadeira” em lugar de outras.

Assim se preocupa com a história de sua formação e o que possibilitou o seu sucesso, quais

grupos e/ou pessoas estavam envolvidos nesta alternativa. Da mesma forma, alternativas

possíveis existiram, porém desapareceram em detrimento de outra ao longo da história e isso

ainda se assemelha ao perspectivismo no sentido de que as possibilidades, ou melhor, as

realidades possíveis não se tocam, mas se excluem em detrimento da perspectiva (MOL,

2007).

Em contrapartida a multiplicidade leva em conta o que é posto em cena, a realidade é

performada, feita em vez de somente observada: “Em lugar de ser vista por uma diversidade

de olhos, mantendo-se intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários

instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas”. (MOL, 2007, p.6). A

multiplicidade pode ser compreendida quando diferentes versões sobre um evento se

relacionam tecendo realidades múltiplas, porém, sem que uma exclua a outra. Essas realidades

convivem juntas, às vezes, uma precede a outra nas práticas cotidianas e/ou são praticadas em

conjunto, ou seja, elas colaboram entre si.

Page 34: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

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A partir disto poderíamos dizer que o trabalho do camelô é múltiplo ou plural?

Sabemos que o termo camelô é comumente utilizado para designar várias práticas de trabalho,

como por exemplo, pessoas que vendem produtos no ônibus, trem e etc; pessoas com um

ponto fixo na rua que utilizam bancadas, os que simplesmente carregam seus produtos nas

mãos; existem os que trabalham em camelódromos e fazem uso de barracas padronizadas ou

os que possuem barracas e as colocam em pontos fixos nas ruas, tem os que mudam de lugar

de épocas em épocas e uma infinidade de maneiras de realizar este trabalho, visto que só falei

do ponto de vista da localização e do tipo de material usado para expor seus produtos. Outra

maneira de ser pensado o camelô é a partir de suas mercadorias, há os que vendem

falsificações de marcas, os que fazem cópias piratas, os que vendem artesanatos, confecções

próprias de roupas, eletrônicos, comidas e bebidas e mais uma infinidade de coisas. Todas

essas maneiras de trabalhar do camelô coexistem juntas e uma não excluiu a outra no processo

histórico, mas foram sendo incorporadas de acordo com as necessidades e políticas do

período. Por este viés podemos dizer que o exercício da camelotagem é múltiplo, pois

comporta uma infinidade de práticas que performam de maneiras diversas e convivem juntas.

Mas, de fato, em que ponto eles se tocam tecendo realidades múltiplas?

Acredito que uma questão atravessa os camelôs e relaciona as diferentes práticas de

trabalho dos mesmos: as políticas que incidem sobre o seu controle. Está aí um ponto que

perpassa as práticas de camelotagem transformando-as: como lidar com a ideia de ilegalidade

que acaba por gerar políticas que atuam com este trabalhar do ponto de vista da criminalidade

e, logo, mediam suas práticas. Por esse viés é possível pensar em realidades múltiplas, que

envolvem práticas diversas, mas que ecoam juntas em determinado ponto. Os atores

envolvidos nesta rede farão suas traduções através de versões que implicam na maneira de

lidar com as medidas de repressão no trabalho do camelô. Como, por exemplo, o

desenvolvimento do mostruário paraquedas; os camelôs que se fixavam em algum ponto

passarem a circular; a criação de um sistema de colaboração entre os camelôs, onde eles se

ajudam para repor as mercadorias quando o ‘rapa’ confisca as mesmas. Por esse viés podemos

dizer que existem ‘os camelôs’, com atuações diversas que convergem.

Assim, ao descrever as práticas da camelotagem, poderíamos compreendê-las a partir

do que Annemarie Mol escreveu sobre a coexistência de realidades múltiplas do objeto

performado, onde elas “não estão simplesmente em oposição umas em relação às outras, ou

no exterior umas das outras. Cada uma pode suceder a outra, aparecer em vez da outra e [...]

incluir a outra. Isto significa que o que é ‘outro’ também está dentro.” (MOL, 2007, p. 18). O

que esta autora destaca é que nossas concepções tradicionais de políticas dificilmente

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compreendem esta noção de várias realidades colaborando entre si e, por isso, a necessidade

de se criar outras concepções de políticas. Desta forma, através da TAR poderíamos pensar

em alternativas às políticas públicas atuais, ou mesmo contribuir com transformações nesta.

Porque “o que a ‘multiplicidade’ implica é que embora as realidades possam ocasionalmente

colidir umas com as outras, noutras alturas as várias performances de um objeto podem

colaborar e mesmo depender umas das outras.” (MOL, 2007, p.15).

Page 36: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

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3 O TRAÇADO MODERNO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

3.1 O pensamento Moderno

Latour (1994) aponta que a modernidade pode assumir muitos significados de acordo

com o autor utilizado para conceitua-la. Porém, se fôssemos pontuar semelhanças em seus

discursos, poderíamos dizer que, em geral, quando suscitam os termos ‘moderno’,

‘modernização’ e ‘modernidade’, estes surgem relacionados com a passagem do tempo. De

que modo? A ideia que abriga o emprego dessas palavras (modernidade, moderno e

modernização), faz menção a um contraste entre o passado e o presente/futuro: um novo

regime; uma aceleração do mundo; rupturas, uma revolução do tempo. Além disso, tais

sentidos, acima enumerados, relativos à Moderno se encontram ativados por meio de

polêmicas e brigas onde vencedores e perdedores são elencados: Os Antigos x Os Modernos.

Portanto, para o autor, ‘Moderno’ se faria duplamente assimétrico: por apontar uma ruptura na

passagem do tempo regular e por sublinhar um combate onde sempre há vencidos e

vencedores.

A fim de ilustrar ao que Latour está se referindo, podemos dizer que a Modernidade,

como projeto, triunfou através das revoluções burguesas europeias que reivindicavam o fim

do Absolutismo, o Antigo Regime. A instauração do Projeto Moderno foi marcada pela

ascensão da burguesia através das revoluções que a acompanharam a partir de 1600, a citar, as

revoluções inglesas: Puritana e Gloriosa; a Revolução Industrial; a Revolução Francesa. Estas,

somado a Declaração de Independência dos Estados Unidos compuseram o cenário propício

para a consolidação da época Moderna, lançando mão do que seriam os Direitos Universais

dos Homens.

Mattos (2011), ao discutir o tema da liberdade entre os jovens na nossa sociedade

atual, perpassa pelas bases filosóficas que permearam o Projeto Moderno. Ressaltando no

trecho a seguir no que se fundamentou a crítica ao Antigo Regime:

A ideia de sujeito que emerge com os autores iluministas das ciências sociais,

nascidas nos séculos XVII e XVIII, e que tematizaram o poder e as relações entre homens e Estado, exalta a necessidade de emancipação de fato e de direito dos

homens em relação ao poder despótico do Rei, e traz o elogio de uma racionalidade

encarnada no cidadão. Entre os pensadores que discutiram o governo democrático

ou, ao menos, a necessidade de que o monarca não governe acima da lei dos

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homens, percebemos a conexão entre a noção de sujeito racional, autônomo, capaz

de introspecção, e a noção de indivíduo comum, que tem seus interesses próprios e

que vive num Estado moderno regido por convenções e leis, feitas pelos homens e

para os homens (MATTOS, 2011, p.25).

Deste modo, o Iluminismo teve forte influência na construção da Modernidade, que

através de seus pensadores prepararam as bases que formariam os Estados Modernos, a citar:

Descartes, com a universalização da racionalidade; Locke por pensar a liberdade política

através do contrato entre sociedade civil e governo; Montesquieu ao propor a separação dos

poderes: legislativo, executivo e judiciário; Voltaire, que criticou o poder da Igreja no Estado,

propondo um governo sem a influência desta última; Rousseau e sua crítica à propriedade

privada e a ideia de que o poder político deveria estar na mão no povo.

Assim, vemos com a derrubada dos governos absolutistas, a ascensão de um Estado

Democrático encarnado na figura da República. No campo político/econômico, optou-se pela

consolidação do liberalismo, que, por sua vez, se inspirou nos ideais Iluministas do século

XVII e XVIII. Assim como, a adoção do modelo capitalista regendo as relações econômicas.

Segundo Latour (1994) a Modernidade é muitas vezes definida a partir do humanismo,

seja pontuando o nascimento do indivíduo ou apontando sua morte. Para o autor, esse

pensamento, ainda comporta um hábito tipicamente moderno por ser assimétrico. Além disso,

se esquece dos “não-humanos” e a importância destes na constituição social, visto que

possuem agência, são atores e se fazem presentes no curso de ação. Portanto, Latour prefere

pensar a Modernidade como uma atitude, em vez, de um tempo. Neste sentido, a

Modernidade trabalharia no manejo de duas atitudes: a de separação e misturas. Ou seja, a

separação em categorias da Natureza e da Sociedade. Em contrapartida, tal trabalho faria

proliferar os híbridos e as categorizações, porque na mesma medida em que crescem as

misturas, crescem o trabalho de separação em novas categorias e quanto mais categorias, mais

misturas.

Sob esse viés, é interessante notar as aproximações de Latour com a discussão de

Hüning e Guareschi10

(2005) no texto “Efeito Foucault: desacomodar a psicologia”, quando

estas autoras discorrem sobre o Projeto da Modernidade apontando “o sonho da pureza” e a

“busca da ordem” como temas afins a tal projeto. As autoras percorrem pelos estudos de

Bauman (1998 e 1999) para discutir como a modernidade se constituiu nos ideais da beleza,

da pureza e da ordem e para mantê-los “empenhou-se em criar mecanismos que dessem conta

de limpar a sujeira e ordenar a desordem” (HÜNING, GUARESCHI, 2005, p.115-116).

10 As autoras discutem a modernidade e suas questões na produção de conhecimento e não como um momento

histórico.

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Como já apontado em Latour (1994), esses mecanismos seriam, a categorização, a

classificação, que buscariam estruturar o mundo de modo a suprimir as ambivalências,

colocando cada coisa em seu devido lugar:

A preservação da ordem e a inteligibilidade do ambiente colocaram-se no centro das

atenções da racionalidade. Mas estes ideais de modo algum se restringiram à ordem

ou a pureza das coisas e, conforme este autor [Bauman], uma das mais importantes

“corporificações da ‘sujeira’” deu-se sobre os “outros seres humanos”, mais

especificamente sobre certas categorias de pessoas que atrapalhariam a perfeita

organização desse ambiente. (HÜNING; GUARESCHI, 2005, p.116, grifo do autor)

Nisto incorreria uma das críticas de Latour (1994) à Modernidade, o trabalho de

separação, a busca pela pureza acompanhada das categorizações se mostraria impossível,

visto que onde há coletivos, há misturas e, portanto quanto mais categorização, maior o

número de misturas e reuniões antes impensadas e improváveis. Então, na verdade, o que a

Modernidade propiciou foi exatamente o oposto de seu desejo ideal: a criação de toda sorte de

híbridos.

Embora a Modernidade tenha sido a impulsionadora do trabalho de hibridez, esta,

como apontam Hüning e Guareschi (2005) não aceita outra ordem como possibilidade,

admitindo apenas uma como a correta e qualquer ocorrência fora desta ordem, seria entendida

como ‘os outros’: “Os outros, são também os fora da ordem, que como tais, têm de ser

eliminados: adequar-se ou desaparecer, serem retirados dos espaços reservados aos

normatizados.” (p.116, grifo do autor).

Portanto, podemos afirmar que uma das grandes questões da Modernidade é a sua

dificuldade em lidar com a alteridade, enquanto estava, graças ao trabalho de purificação e

separação, produzindo-a cada vez mais. Isto incorre em um problema para os modernos, como

já salientado no início desta dissertação: a impossibilidade de pensar a si mesmo já que

ignorariam “as misturas” e diferenças existentes nela própria. Neste sentido, trazendo esta

discussão para a compreensão do que ocorre em uma cidade, as diversas práticas,

acontecimentos, agrupamentos, se formos modernos teremos dificuldade em lidar com a

alteridade. E um dos tratamentos aplicados a esta, pode envolver a sua supressão ou repressão.

A citar, um tema que vez ou outra se faz presente na pauta de políticas públicas para a cidade

do Rio de Janeiro: a revitalização dos espaços urbanos. A ideia de revigorar um espaço,

insuflando vida onde esta não existe, poderia levar as duas situações citadas acima: a

supressão ou repressão de certas práticas nos espaços urbanos. Além disso, abre um campo de

discussão sobre o que é um ambiente sem vida e o que significa vitalidade, ou melhor, o que é

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um ambiente vivaz? Quais os significados empregados que determinaram a divisão de

ambientes com e sem vida? Por quem e para quem tais locais são vistos assim? Mais adiante

veremos a utilização desses mecanismos na modernização da cidade do Rio de Janeiro no

início do século XX.

3.2 Início do século XX: modernização da cidade e conflitos

No final do século XIX, com a proclamação da República, surge a necessidade de dar

a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, ares modernos a fim de abolir com a

imagem de um país atrasado e escravocrata. Assim, para marcar esta transição, no início do

século XX o presidente do Brasil, Rodrigues Alves, dá o aval para que o Prefeito Pereira

Passos inicie as reformas necessárias na cidade do Rio de Janeiro. As reformas urbanísticas

implementadas, no plano arquitetônico, foram inspiradas na reforma de Paris no século XIX e

procuravam embelezar a cidade, pondo fim aos cortiços do centro e dando lugar a outras

construções. Além disso, há a preocupação com a abertura de vias e, portanto, adaptação da

cidade aos automóveis. Mas essa reforma não se faz somente no traçado dos arquitetos e

engenheiros, ela também se processa nos corpos e nesse campo encontramos a higienização

da população através das mãos do médico sanitarista Oswaldo Cruz.

Outro lado da atuação dessas transformações urbanas estão os conflitos entre a polícia

e os grupos populares na cidade do Rio de Janeiro. Durante a modernização da cidade, na

passagem do século XIX e XX, a polícia teve seu papel em garantir o processo civilizatório e

manter a ordem, permitindo o que seria o desenvolvimento da cidade rumo ao progresso

(RODRIGUES, 2002). Em 1870 a expansão demográfica era evidente, acompanhado do

crescimento da Indústria têxtil, transformando a sociedade carioca. Além das mudanças de

hábitos e comportamentos, aumentam-se os índices de criminalidade e violência. É quando

esses conflitos atingem as políticas de habitação e as condutas de civilidade advindas de um

país de base agrícola que a polícia aparece como forma de manter o controle e exercer a

autoridade pública (RODRIGUES, 2002).

A cidade do Rio de Janeiro, que deveria ser o centro político e cultural do Brasil, não

poderia conviver com o que não fosse moderno, devendo excluir do seu centro tudo o que

atrapalhasse o processo da construção do homem civilizado. Assim, era necessário retirar as

quitandeiras negras ambulantes do mercadinho africano, os barbeiros ambulantes da região

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central e etc. A cidade não podia mais permanecer com sua ‘cara’ de trabalho, pois precisava

se revestir de capital europeia civilizada. A medida adotada para que isto se concretizasse, foi

o embelezamento da cidade e, assim, a exclusão das atividades de seu centro que não fossem

condizentes com este ideário. (RODRIGUES, 2002). Isto foi duplamente importante, pois

atuou na exclusão dos grupos populares da área central, assim como incorporou os negros,

que chegavam à cidade após a abolição da escravidão, às obras existentes, anulando seu

possível potencial de revolução (RODRIGUES, 2002).

Como foi mencionado no tópico anterior, uma das questões da modernidade é a sua

dificuldade em lidar com a alteridade. Então, uma das maneiras de tratar aquilo que não foi

normatizado seria através da supressão e/ou repressão. Bem, na cidade do Rio de Janeiro, o

modelo de desenvolvimento adotado rumo à modernização se fez através da intervenção

autoritária do Estado: “O projeto republicano mostrou seu caráter conservador quando

expressou a necessidade de retomar o controle e estabelecer a ordem numa perspectiva não

tão antiga quanto à das permanências coloniais” (RODRIGUES, 2002, p.28). Deste modo, a

modernização ocorreu segundo os padrões políticos das elites que se revelou em seu ideal de

progresso através de uma pedagogia do “civilizar-se”.

Mais de um século depois, assistimos à situação semelhante: a vontade de vestir outra

roupagem a cidade do Rio de Janeiro que seja condizente com uma cidade global capaz de

atrair o investimento estrangeiro. Isto faz com que se façam reformas na cidade que envolve,

entre outros, expulsão de grupos populares do centro, zona sul e outras áreas nobres e

turísticas para dar lugar à nova roupagem de cidade cosmopolita. Tal processo ocorre por

intermédio do discurso da realização de dois grandes eventos “importantes” mundialmente: a

Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Contudo, tal fato só poderia acontecer se certos grupos

fossem colocados no patamar da criminalidade, da ilegalidade, pois é a partir deste

pensamento que as medidas de controle, supressão e/ou repressão, poderiam ser exercidas

livremente. Do mesmo modo, outro ponto importante de notar, é que novamente a polícia tem

seu papel de reprimir qualquer situação que se mostre contrária às reformas. Posso citar o

exemplo recente da ocupação do Museu do Índio no entorno do maracanã e como essa

manifestação foi sufocada violentamente pela polícia em prol das obras para a Copa do

Mundo.

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3.3 Do Liberalismo rumo ao Estado Penal?

O liberalismo foi uma forma de se pensar a garantia da liberdade individual diante dos

desmandos dos governos monárquicos, Absolutistas, existentes na Europa, por volta dos

séculos XVII e XVIII. A criação de direitos universais através da Constituição e o respeito a

esta foi uma maneira de possibilitar a convivência entre os indivíduos na sociedade e as

liberdades pessoais frente ao governo (MATTOS, 2011). A ascensão dos Estados

democráticos e a adoção do liberalismo também significava o alcance da liberdade política.

Neste momento, a regulação entre governo e sociedade civil se faria através das leis, em vez

de estar subjugado pelas vontades de um rei. Isto significaria a possibilidade de escolher

políticos que pudessem representar os interesses e direitos dos indivíduos, permitindo que

estes estivessem livres para o exercício de sua liberdade individual. Porém, como muito bem

salientou Benjamin Constant, isto poderia incorrer em um perigo para os Modernos, pois na

medida em que daríamos ênfase às liberdades privadas, poderíamos deixar de lado a

fiscalização e administração da vida política, e, assim, nos afastarmos, cada vez mais, das

decisões no campo político (CONSTANT, 1985).

Por outro lado, Hannah Arendt (1972) demonstra como o tema da liberdade política

esteve presente, muitas vezes, atrelado à ideia de segurança. Desde os séculos XVII e XVIII,

sendo ampliada nos séculos XIX e XX, quando a política estaria, não somente, identificada

com o tema da liberdade, mas comprometida com a proteção do processo vital. O Estado

deveria, então, intervir assegurando o “desenvolvimento uniforme do processo vital da

sociedade como um todo” (p.196). Partindo desta autora para os dias atuais, podemos

observar como muitos governos ditos neoliberais - por exemplo, Estados Unidos e Brasil - se

ocuparam do tema “segurança” de várias maneiras para justificar suas ações, quer seja ela: a

segurança contra o terrorismo, o tráfico, a segurança no trabalho e etc. Será que estaríamos

exagerando neste tema? Talvez a preocupação com a segurança atualmente seja tanta que

qualquer ato ou conduta que possa ser interpretado como ameaçador desta seja punido,

criminalizado e seja alvo de repressão.

Mendonça (2011) ao falar do poder de polícia, discorre sobre a intervenção do Estado

no campo da segurança de forma a limitar o exercício dos direitos individuais em prol dos

interesses públicos. Neste sentido, o poder de polícia teria o papel de brecar os abusos da

atividade particular capazes de comprometer o bem-estar social. Como relata:

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[...] Num primeiro momento o Estado de Direito desenvolveu-se baseado nos

princípios do liberalismo, em que a preocupação era a de assegurar ao indivíduo

uma série de direitos subjetivos, dentre os quais a liberdade. [...] A regra era o livre

exercício dos direitos individuais amplamente assegurados [...] a atuação estatal

constituía exceção, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para

assegurar a ordem pública. A polícia administrativa era essencialmente uma polícia

de segurança.

Um segundo momento se inicia quando o Estado liberal começa a transformar-se em

Estado intervencionista; a sua atuação não se limita mais à segurança e passa a se

estender também à ordem econômica e social [...]. (DI PIETRO, 2007 apud

MENDONÇA, 2011, p.35, grifo do autor).

Sobre esta questão é interessante notar as estudos de Loïc Wacquant sobre a passagem

de um Estado Social para um Estado Penal. Em entrevista concedida à revista Fractal em

2005, ao falar no contexto da sociedade americana, explica que o Estado Social opera

garantindo proteção ante as oscilações do mercado de trabalho. Contudo, com a promoção de

um Estado mínimo, pensado no projeto neoliberal, em relação às questões sociais e

econômicas, o Estado passaria a atuar fortemente no campo penal como forma de legitimar

sua autoridade e se fazer presente (WACQUANT, 2008).

As transformações do trabalho no contexto do capitalismo contemporâneo

produziriam o que Wacquant chamou de dessocialização do trabalho assalariado, porque este,

longe de ser um ponto de garantias, seria fonte de insegurança e instabilidade: “(...) agora o

trabalho em si mesmo é inseguro, há subempregos, subsalários, trabalhos temporários ou sem

nenhum tipo de segurança empregatícia.” (WACQUANT, 2008, p. 3). Portanto o próprio

trabalho seria um deflagrador de insegurança e pobreza. Então o Estado na impossibilidade de

responder de forma eficiente à demanda por garantias sociais ofereceria como alternativas

para promover aquela sensação, políticas penais e a polícia através do discurso da necessidade

de segurança criminal:

Isso porque expandir o Estado Penal lhes permite, em primeiro lugar, abafar e conter

as desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da estrutura social pela

simultânea desregulamentação do mercado de trabalho e decomposição da rede de

segurança social. (WACQUANT, 2007, p. 203).

Essa seria uma medida para ocultar e/ou tirar o foco da insegurança social existente.

Diante de uma crise do trabalho assalariado, a criação de empregos não seria mais uma

solução à pobreza e seguridade social se este for uma fonte de instabilidade e precariedade.

Wacquant, assim como Arendt chama a atenção para o tema da segurança no campo político e

um posicionamento dos governos frente a ela. Enquanto em Arendt aparece como a garantia

do processo vital da sociedade, em Wacquant surge como uma virada, a impossibilidade de

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43

garantir esse processo e o aparecimento do Estado no campo Penal como forma de se fazer

presente.

Logo, esta demanda por segurança pode ser compreendida quando lemos autores que

pensaram sobre e liberalismo e questões como a liberdade política por demonstrarem como o

papel do governo foi pensado como o dever de garantir a segurança do desenvolvimento do

processo vital da sociedade. Em um segundo momento, o Estado passa a atuar intervindo em

questões econômicas e sociais. Em contrapartida, a experiência da garantia de segurança foi

falha em muitos outros aspectos, transmutando-se, assim, para uma segurança criminal, que

interpreta o produto dessa ineficiência como um crime. Abordando várias questões ditas

socioeconômicas – por exemplo, baixos salários, falta de emprego, empregos precários,

atividades informais, entre outros - como uma questão de criminalidade, desordem e etc.

Como por exemplo, as transformações do trabalho contemporâneo que levaram muitas

pessoas ao trabalho informal (e às vezes ilegal) ter como resposta medidas truculentas de

controle.

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44

4 A CRIAÇÃO DA GUARDA MUNICIPAL BRASILEIRA

A Guarda Municipal no Brasil, como denominação, é muito antiga. Sua função quase

sempre esteve atrelada à segurança urbana, porém, não podemos dizer que a atual Guarda

Municipal veio diretamente da antiga Guarda Municipal, ocorreram, na verdade, vários

pontos de mediação até se chegar a Guarda Municipal do Rio de Janeiro que conhecemos

hoje. Como veremos mais adiante a primeira Guarda Municipal brasileira acabou por gerar

outras ‘polícias’ e, posteriormente, essas ‘outras polícias’ influenciaram na formação da

mesma.

Já em 1550, o governo de Portugal se preocupou em promover uma Polícia mais

rigorosa no Brasil Colônia, assim como, uma Justiça que estabelecesse penalidades rígidas

para os tipos de crimes. Era a promoção de medidas de controle e repressão visando à

proteção das províncias de possíveis invasões de criminosos que ocorriam nos povoados.

Assim foram criados os livros das Ordenações. Dentre estes, estava o Livro V, das

Ordenações Filipinas, que deram surgimento às primeiras polícias urbanas (RAMOS, 2010).

Esse policiamento se fazia pelos Quadrilheiros, moradores dos povoados eleitos pela

autoridade local para permanecer por três anos no cargo. Nota-se que esse serviço não era

remunerado e a escolha dos Quadrilheiros ocorria de acorda com a boa conduta do civil e a

comprovada lealdade à Coroa Portuguesa. Aos poucos essa organização foi perdendo força e,

progressivamente, dando lugar aos Pedestres, Serviços de Ordenanças, Corpos de Milícias e

Guardas Municipais (CARVALHO, 2011). Como primeira polícia remunerada na Brasil,

encontramos o Regimento de Cavalaria Regular da Capital de Minas Gerais, que surgiu em

1775 e em 1780 passou a ser comandado pelo Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o

Tiradentes (RAMOS, 2010).

Com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil, houve a necessidade de desenvolver

uma polícia de segurança na cidade do Rio de Janeiro. Assim, por meio de decreto em 13 de

maio de 1809 foi criada a Divisão Militar da Guarda Real. Esse mesmo decreto homologava a

existência das Guardas Municipais Permanentes no Brasil (CARVALHO, 2011). Sendo essa a

primeira menção a denominação Guarda Municipal. Após a Independência do Brasil, a

Guarda Real - em sua maioria composta por portugueses - se desestruturou e insurgiu contra o

sistema em abril de 1831. Em vistas disso, a Regência Provisória decretou a criação, em junho

de 1831, do Corpo de Guardas Municipais na Corte e estendeu-o a outras Províncias. Em

1866, com a reestruturação da polícia da Corte, houve a ordenação de duas polícias: uma

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militar e outra civil. A antiga Guarda Municipal foi, então, transformada no corpo militar e

em 1889 já se encontrava toda militarizada. Sua função nesta época era a de defesa da

soberania nacional e servia como 1ª Linha de força auxiliar do Exército. Da mesma forma,

junto com a Guarda Cívica contribuía com o patrulhamento da capital do Império

(CARVALHO, 2011).

Após a proclamação da República, as Guardas Municipais ainda permaneceram

atuando em seus respectivos municípios e assumiram, entre outras funções, a de fiscalizar se

os comerciantes estavam em dia com seus impostos, assim como, a aplicação de multas. A

desobediência aos Guardas implicava em punições que poderiam ser multas e, inclusive,

penas (CARVALHO, 2011). Em 1902, decretou-se uma reforma do serviço policial e a

polícia foi dividida em duas: uma civil - organizada por delegados das circunscrições urbanas

e suburbanas, inspetores e agentes de segurança – e outra militar, exercida pela brigada

policial. Porém, as funções de cada uma das duas polícias não estavam bem definidas e

separadas, chegando ao ponto delas possuírem atribuições iguais.

Com a Revolução Constitucionalista de 1932, a Guarda Civil foi incorporada como

força auxiliar do Exército e o Marechal Zenóbio da Costa, devido a sua atuação na Revolução,

veio a assumir em 1935 o cargo de Inspetor Geral da Polícia Municipal da cidade do Rio de

Janeiro, permanecendo neste, até 1936. Posteriormente, Zenóbio da Costa criou o Pelotão de

Polícia Militar da Força Expedicionária Brasileira e, após a Segunda Guerra Mundial, a

Polícia do Exército. Esta última, não existia no Brasil até a sua participação na Segunda

Guerra Mundial: Quando por inspiração no modelo americano Military Platoon Police,

existente nos acampamentos das Divisões de Infantaria e responsáveis, entre outros, por

manter a ordem no local e pela guarda dos presos de guerra, desenvolveram a Polícia do

Exército no Brasil (CARVALHO, 2011).

Com a instauração do Estado Novo os estados e municípios foram perdendo

autonomia e a poder público se centralizando em nível federal:

Se a Guarda Municipal e a Guarda Civil eram ainda úteis como instrumento de

contenção popular, elas iam perdendo a posição antes desfrutada para as Forças

Armadas, em especial para o Exército; para evitar rebeliões civis e policiais contra o

poder central, elas foram despindo-se gradativamente de suas autonomias, por meio

do poder público federal, que aos poucos foi limitando cada vez mais suas atribuições, chegando ao ponto de torná-las inúteis e onerosas (CARVALHO, 2011,

p.11).

Assim, com a promulgação da Constituição da República em 1946, surgiram as

polícias militares. Cabendo as mesmas a manutenção da ordem do Estado através da

Page 46: Dissertação:  As Associações de criminalidade à figura do camelô: um estudo através da Teoria Ator-Rede

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promoção da segurança interna. Já com o Golpe Militar de 1969, os municípios ficaram

impossibilitados, de fato, de exercerem o poder de segurança pública:

Através do Decreto-Lei 667 e suas modificações, garantiu-se às Polícias Militares, a

Missão Constitucional de Manutenção da Ordem Pública, dando-lhes exclusividade

do planejamento e execução do policiamento ostensivo, com substancial

reformulação do conceito de "autoridade policial", assistindo-se, também, a

extinção de "polícias" fardadas, tais como: Guarda Civil, Corpo de Fiscais do DET,

Guardas Rodoviários do DER e Guardas Noturnos (CARVALHO, 2011, p.12, grifo

do autor).

Somente com a queda do Regime Militar que as outras polícias puderam voltar ao

cenário brasileiro e os municípios retomarem seu poder de administrar sua segurança pública.

Desse modo, através da Carta Magna de 1988 ficou facultada aos municípios a criação de

uma guarda municipal. Da mesma forma, os constituintes da República criaram um sistema de

segurança pública, onde os órgãos policiais mantivessem atribuições distintas, porém,

estivessem interligados na promoção dos direitos dos cidadãos em prol da coletividade,

funcionando no combate a criminalidade (CARVALHO, 2011).11

É interessante notar que o termo “ordem” ou frases como “manutenção da ordem

pública” só foram mencionado como atribuições da polícia, na história do policiamento no

Brasil, em momentos de ditadura. E, como veremos ao longo dessa dissertação, o uso desse

termo não se perdeu com o fim da Ditadura Militar, ele continua presente nos discursos

governamentais quando tratam da questão da segurança pública ou administração dos espaços

públicos.

4.1 A Guarda Municipal no Rio de Janeiro12

De acordo com as informações do site do Governo Municipal do Rio de Janeiro

(2010), a criação da Guarda Municipal do Rio de Janeiro (GM-Rio) foi gerada pela lei

Municipal 1.887/92 e, oficialmente, implementada através do Decreto Municipal 12.000, de

1993, que instituiu a Empresa Municipal de Vigilância S.A (EMV) como seu órgão

administrador. Assim, em 1993 a Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) ficou

11 Vide anexo B.

12 Todas as informações referentes a criação da Guarda Municipal do Rio de Janeiro e sua estrutura foram

retiradas do site do Governo Municipal do Rio de Janeiro e podem ser acessadas no link

http://www.rio.rj.gov.br/web/gmrio/

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responsável por todo o processo do concurso da Guarda Municipal, visto que a GM-rio não

existia oficialmente ainda. Após o concurso, a prefeitura incorporou 2mil agentes de

segurança, sendo 250 destes, originários dos 340 vigilantes que atuavam na Gerência de

Vigilância e Segurança Patrimonial da Comlurb. Até então foram realizados seis concursos:

em 1993, 1995, 1997, 2002, 2008 e 2011. Somente em outubro de 2009, através da Lei

Complementar nº100, que a Guarda Municipal tornou-se uma autarquia e extinguiu a

Empresa Municipal de Vigilância S.A. Atualmente, possui um efetivo de 7.500 guardas e 380

funcionários administrativos. De maneira geral, segundo o parágrafo 1º do artigo 183 da

Constituição Estadual do Rio de Janeiro e o artigo 30 da Lei Orgânica do Município do Rio

de Janeiro, a Guarda Municipal tem como função colaborar com a segurança pública e

proteger o patrimônio municipal. Mais especificamente, o ponto que interessa a esta pesquisa,

encontramos como função da GM-Rio:

Proteger bens, serviços e instalações municipais do Rio de Janeiro; [...] vigiar os espaços públicos, tornando-os mais seguros em colaboração com os órgãos

responsáveis pela segurança pública em nível federal ou estadual; exercer o poder

de polícia no âmbito do Município do Rio de Janeiro, inclusive sancionatório,

ressalvadas as hipóteses em que, por força de lei, a atribuição seja privativa de outra

categoria funcional, situação em que poderá auxiliar a fiscalização com a prática de

atos meramente materiais (GMRIO, 2010).

Contudo, foi em 1999, com o Decreto nº 17.93113

, que a Guarda Municipal ampliou

seus poderes e passou a atuar na retenção de mercadorias dos ambulantes e camelôs. Através

deste decreto, os guardas municipais ficariam responsáveis pela desobstrução dos bens

públicos municipais e deveriam impedir a sua má utilização. Desta forma poderiam reter as

mercadorias de ambulantes ou camelôs irregulares que estivessem ocupando indevidamente

os bens públicos sem a presença de uma autoridade fiscal da Coordenadoria de Licenciamento

Fiscal (CLF) no local. Além disso, este decreto menciona a autorização do uso de

“providências cautelares” de acordo com a necessidade da situação. O que seriam essas

“providências” fica em aberto e pode dar lugar a uma série de práticas. De fato o Decreto não

menciona o uso de violência nessas atuações, mas ao deixar vaga tais medidas, permite que o

guarda atue da forma que achar relevante. E, visto que a ideia é desobstruir os espaços

públicos que tenham o seu uso indevido, de fato, qualquer ação vale, inclusive a violenta para

13 O decreto nº 17.931, na íntegra, da Guarda Municipal foi retirado do site: http://policiamunicipal24horasgm

.blog spot.com.br/2011/11/decreto-n-n-17931-de-240999.html

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garantir tal façanha. Também é a partir desse decreto que a Guarda Municipal ganha o famoso

grito tão conhecido nas ruas “olha o rapa!”14

Quanto à estrutura da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, esta foi incorporando

agrupamentos especiais aos poucos e hoje conta com os: Grupamento Especial de trânsito

(1ºGET, 2ºGET e 3ºGET), Grupamento de Apoio ao Turista (GAT), Grupamento de Cães da

Guarda (GCG), Grupamento de Ronda Escolar (GRE), Grupamento de Defesa Ambiental

(GDA), Grupamento Especial de Praia (1ºGEP e 2ºGEP). Além desses agrupamentos,

encontramos o Grupamento de Operações Especiais (GOE), que foi criado a partir da fusão de

três outros grupamentos: o Grupamento Tático Móvel (GTM), Grupamento de Ações

Especiais (GAE) e Grupamento de Guardas Motociclistas (GGM) somado a parte do GCG.

Este último, foi criado em 2011 como demanda da implantação das Unidades de Ordem

Pública (UOPs):

Temos um produto novo, que são as Unidades de Ordem Pública. Para a implantação das novas unidades é necessária uma pré-ocupação da área, sem

violência e pacificamente. Para facilitar a instalação da UOP, essa pré-ocupação será

feita pelo GOE. Para isso, os guardas do GOE necessitam de mais equipamentos e

treinamentos específicos para uma necessidade eventual de um conflito, que

pretendemos evitar sempre (GMRIO, 2011).

O GOE chama a atenção porque é, justamente, o grupo que atuará no controle urbano.

Ele é responsável por atuar em situações de calamidade pública - neste caso, calamidade

pública quer dizer ações em conflitos e que apoiem a defesa civil municipal, salvamento e

resgate e fazem uso de armas “não-letais”15

como spray de pimenta e taser16

, escudo, capacete

e uniforme camuflado.

Então, a estrutura da GM-Rio conta com dez grupamentos especiais, quinze

inspetorias e oito Unidades de Ordem Pública. Onde as suas atividades são ministradas por

quatro diretorias: Diretoria de Operações (DOP), Diretoria de Recursos Humanos (DRH),

Diretoria Administrativa e Financeira (DAF) e Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento

Tecnológico (DPDT).

14 “o rapa” foi a forma como os camelôs começaram a chamar os Guardas Municipais que recolhiam suas

mercadorias na rua. A frase “olha o rapa” ficou famosa porque a gritavam para alertar os ambulantes/camelôs sobre a vinda dos guardas.

15 Letalidade tem a ver com a maior possibilidade de causar a morte, porém, não quer dizer que uma pessoa

atingida por essas armas não possam vir a óbito ou ter consequências graves. Por exemplo, uma pessoa alérgica

à pimenta pode ter um grande comprometimento se atingido por um spray de pimenta. E, diga-se de passagem,

a utilização dessas armas têm ocorrido de forma intensa e, muitas vezes, arbitrária. Basta conversar um pouco

com os camelôs para constatar isso.

16 Taser é uma arma que quando disparada provoca choques contra a pessoa.

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Algo interessante de notar na GM-Rio é a influência militar exercida nela. Como

patrono da mesma, foi decretado em 1996 pelo Prefeito César Maia, o Marechal do Exército

Euclides Zenóbio da Costa. O Marechal foi considerado Herói da Segunda Guerra Mundial e

foi o primeiro comandante da Polícia Municipal do Rio de Janeiro, em 1934, na época do

Prefeito Pedro Ernesto Batista. Zenóbio da Costa ocupou alguns cargos militares, chegando a

Ministro do Exército em 1954, onde permaneceu por mais quatro anos até ser nomeado

Marechal. Além dessa influência militar na GM-Rio, é possível citar seu atual Comandante, o

Capitão Leandro Matieli, que em seus dez anos de atuação na Polícia Militar ocupou, entre

outros, os cargos: de oficial de operações no Grupamento Especial Tático Móvel (Getam), foi

chefe das seções de planejamento do Batalhão de Polícia de Choque (BPChoque) e do

Batalhão de Policiamento em Vias Especiais (BPVE), além de atuar no plano estratégico de

policiamento nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro em 2007. Somado a essas funções

que o Capitão exerceu, ele ainda ministra vários cursos na Secretaria Nacional de Segurança

Pública e é instrutor do curso de Policiamento Ostensivo na formação de soldados da Polícia

Militar do Rio. Da mesma forma, em 2009 foi convidado pela Coordenadoria Especial

Militar a participar da logística de segurança do prefeito Eduardo Paes.

Diante das exposições acima, foi possível observar como a Guarda Municipal do Rio

de Janeiro possui influência da Polícia Militar e do Exército. Certamente, essa influência terá

repercussões nas práticas adotadas cotidianamente, visto que seu treinamento e comando são

realizados por militares. Pelo que foi visto, seu comandante participou de áreas militares que

envolviam, entre outras, o planejamento de Batalhão de Polícia de Choque. Embora, de fato, a

Guarda Municipal seja um órgão que deva contribuir para com segurança municipal, podemos

dizer que no Rio de Janeiro ela incorporou táticas militares. E, em se tratando da preservação

da Ordem Pública, a polícia militar é a polícia repressiva imediata. Tal fato pode esclarecer os

discursos da Seop17

, claramente, pautados em ações repressivas, assim como as atuações

violentas, ao menos parcialmente, da GM-Rio em relação aos ambulantes e camelôs na cidade

do Rio de Janeiro. As associações que geraram a Guarda Municipal e os interesses

subjacentes a tais associações propiciaram, entre outros, as atuações dessa Guarda no nosso

cotidiano.

17 Secretaria Especial de Ordem Pública.

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4.2 Relatos de mediações

Já foi exposto no início desta dissertação o conceito de mediação. Lembrando que esta

incorre sempre em uma transformação, pois aparece como um ponto chave no curso da ação.

Ela opera quando algo “falha” e, portanto, atua modificando o fluxo da ação ao fazer os atores

fazerem coisas inesperadas. É, justamente, essa transformação que caracteriza a mediação.

Dito isso, contarei duas histórias da atuação de mediações que relacionam camelôs e guardas

municipais18

:

No final do ano de 2011, por volta do mês de Novembro, comentei com minha colega

de estágio docente da graduação que estava participando do processo seletivo para ingressar

no mestrado e que meu projeto falava da “criminalização do camelô” e que eu pretendia

estudar a Guarda Municipal também. Ao revelar isso, esta colega me contou que seu irmão

era guarda municipal e que, há pouco tempo, havia enfrentado uma situação muito difícil em

seu trabalho, que ela ficava até arrepia e nervosa de lembrar. Eu, curiosa, perguntei do que se

tratava. Quando me respondeu que no término do curso de formação da guarda municipal a

turma foi levada à Central do Brasil a fim de reconhecer o seu campo de atuação. Essa colega

continuou dizendo que seu irmão nunca gostou de “violência” e de se “envolver com brigas”,

que entrou para a Guarda Municipal porque em vistas da sua situação pessoal necessitava de

um emprego que lhe garantisse estabilidade, já que se tornaria pai em pouco tempo. Embora a

corporação tenha proposto a ele participar de um setor dentro da Guarda que possui ação mais

truculenta devido ao seu porte físico e altura, o mesmo recusou.

Voltemos ao reconhecimento de campo na Central do Brasil pelos Guardas

Municipais: A turma de alguns poucos Guardas começou a transitar entre os camelôs e um

alvoroço se instalou. O irmão dessa amiga viu uma senhora se desesperar e cair no chão ao

tentar “proteger” suas mercadorias. Enquanto isso, outros camelôs trataram de criar “estacas”

a partir de caixotes de madeira para entrar em confronto com a Guarda Municipal. Diante

dessa situação, o irmão da minha colega só pensava em não “bater” nos camelôs por se

considerar mais forte e por isso podia machucá-los. No entanto, em determinado momento,

um dos camelôs parte em sua direção e quase o acerta com a “estaca” fabricada naquele

momento. Posta essa situação para o Guarda e frente à possibilidade de ser atingido, quando

ele se dá conta já está em confronto com os camelôs e batendo em muitos deles. Saídos

18 Quando digo camelô e guardas municipais não pretendo apresentá-los como únicos atores atuando. Eles fazem

apenas parte de uma rede.

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daquela circunstância, já no posto da Guarda Municipal, alguns guardas tomaram trem para

retornarem a suas casas e, embora o irmão dessa amiga utilize este meio de transporte, neste

dia decidiu por fazer outro caminho. Muitos camelôs também fazem uso do trem para

retornar as suas casas e, obviamente, alguns reconheceram os guardas. O embate que havia se

instala na Central do Brasil repercutiu no trem e dois guardas quase foram linchados. Após

esse acontecimento, o irmão dessa colega ficou muito assustado com sua ação sobre os

camelôs e pediu para mudar de área dentro da corporação. Ele foi transferido para um

departamento mais tranquilo e hoje seu trabalho consiste em patrulhar uma praça na cidade do

Rio de Janeiro.

Bem, e o que isso tem a ver com a tal da mediação? Latour (2012a) diz que sempre

que algo ‘dá errado’ é o momento de tomarmos nota da sucessão dos fatos, pois nessas

circunstâncias podemos nos dar conta da materialidade das coisas, no sentido de perceber a

composição dos fenômenos, ou seja, quais rodeios ocorrem até que um curso de ação ganhe

desfecho. Embora Latour ao fazer este comentário se refira à presença da técnica em nosso

cotidiano sem que a percebamos, podemos utilizar esse método por demonstrar o processo de

mediação. No relato acima exposto, quando os guardas saem para reconhecer seu campo de

atuação algo não funciona bem e interrompe o curso de ação. O que deveria ser apenas um

reconhecimento se torna um caos, uma batalha entre camelôs e guardas municipais. Embora

os guardas não estivessem em operação naquele momento, as tantas outras intervenções da

Guarda Municipal sobre os camelôs atuaram naquela situação, as políticas de segurança

pública atuaram, a corporação da Guarda Municipal atuou, as estacas de caixote de madeira

atuaram, entre outros atores. A reunião desses atores naquela circunstância gerou um

confronto que se estendeu frente ao encontro de alguns guardas e camelôs no trem. Por sorte

ou azar, um grupo de camelôs e guardas quando terminam seu expediente utilizam o mesmo

meio de transporte para voltar as suas casas e, às vezes, o confronto se estende fora do seu

horário de trabalho. A associação desses atores fez com que eles fizessem coisas inesperadas:

a visita da turma recém-formada da guarda municipal ao local onde os camelôs trabalham

provocou a fabricação de estacas para resistir às operações da Guarda, que confiscam suas

mercadorias. Por sua vez, um dos guardas municipais que resistia ao confronto, a praticar atos

de violência, quando percebe já está batendo em alguns camelôs. Por outro lado, entrar em

contato com aquela realidade, para o guarda, irmão da minha colega de trabalho, foi de tal

maneira assustadora que o levou a mudar de cargo.

Enquanto esse último relato esteve focado, principalmente, na história de uma pessoa,

o próximo focará mais na corporação. Trata-se de outro caso de confronto entre a Guarda

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Municipal e os Camelôs. No dia 24 de janeiro de 2014, uma sexta-feira, os jornais noticiam

um confronto entre a Guarda Municipal e os camelôs na Rua da Uruguaiana no Centro da

cidade do Rio de Janeiro. O noticiário apresentava imagens de um carro da GM-Rio sendo

virado de cabeça para baixo pelos camelôs enfurecidos. Em outro momento passam imagens

de alguns guardas feridos entrando em um hospital.

Sexta-feira é o dia em que os camelôs fazem “um pagode”, no camelódromo da

Uruguaiana, após o encerramento de suas atividades à noite. O confronto começou quando um

guarda pediu para um camelô retirar sua banca porque ele não tinha autorização para trabalhar

naquele local e o camelô retrucou dizendo que não se retiraria. A partir daí mais um confronto

se instalou entre guardas e camelôs, porém, esse tomou repercussão na mídia televisiva.

Passada a sexta-feira, entrei em contato com o camelô Carlos para perguntar o que havia

acontecido, quando ele me alertou que seria bom eu ir ao camelódromo na segunda porque

quando isso acontecia a Guarda costumava revidar. Todos esperavam essa revanche, inclusive

eu, porém para nossa surpresa a Guarda não revidou, em vez disso, ameaçou entrar em greve

reivindicando melhorias nas condições de trabalho e, de fato, uma parte dos guardas da UOP

(Unidade de Ordem Pública) do centro, o fizeram. Os guardas alegavam falta de segurança

em seu trabalho, além disso, reivindicavam por equipamentos adequados para o exercício de

suas atividades (O GLOBO, 2014). Podemos citar essa situação como uma conjuntura onde a

mediação se processa. Enquanto esperava-se que os guardas retrucassem ao ato de confronto

contra os camelôs, algo ali aconteceu que mudou o rumo do curso de ação: a proibição do uso

de equipamentos não letais pela Guarda Municipal desde setembro de 2013 atuou naquela

circunstância, reorganizando os outros atores que também atuaram de outra maneira, fazendo

coisas inesperadas. Como por exemplo, os camelôs se encorajarem para entrar em confronto a

ponto de apedrejar algumas viaturas e virar um carro da Guarda Municipal enquanto

esbravejavam que já estavam cansados “de perder mercadorias para os guardas”. Como

relatado no Jornal online, A Nova Democracia (2014), um dos camelôs dizia: Eles vêm aqui e

roubam a gente, batem, humilham, são violentos de todas as forma [...] Na verdade, o povo já

está cansado dessa situação! Chega uma hora que temos que reagir mesmo e da forma que

for necessário. Então, desta vez, foram os guardas que recuaram e, posteriormente, decidiram

por fazer greve.

Outra questão sobre os conflitos entre guardas municipais e camelôs é que os guardas

também são acometidos dos efeitos desses confrontos. No site da GM-Rio, na parte sobre a

academia da Guarda Municipal, relatam que decidiram por inserir no treinamento

motivacional anti-estresse, visto que um grande número de guardas entraram com pedido de

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auxílio-doença – 200 no total em um período de dois anos – devido a quadros de depressão,

ansiedade e estresse:

Para combater a depressão, o estresse e a ansiedade comuns à profissão de guarda

municipal, a Academia da Guarda desenvolve treinamento motivacional com

palestras, trabalhos manuais, dinâmica de grupo, atividades lúdicas, alongamento,

caminhadas em trilhas da Floresta da Tijuca e Morro da Urca e aulas de tai chi

chuan. O programa foi desenvolvido após o comando da Guarda constatar que a

depressão, o estresse e a ansiedade foram responsáveis por quase 200 pedidos de

auxílio-doença nos últimos dois anos. Conduzido por psicólogas, pedagogas e instrutores, o treinamento visa melhorar o bem-estar do guarda no trabalho e,

consequentemente, manter o padrão dos serviços prestados. Já passaram por este

treinamento 216 guardas dos Grupamentos de Ações Especiais (GAE) e Tático

Móvel (GTM), que atuam no controle urbano inibindo a ação de ambulantes ilegais.

Até julho de 2006, passarão pelo curso todos os guardas da Coordenadoria de

Trânsito (GM-RIO,2010).

Neste sentido parece que os conflitos não exercem transformações apenas no trabalho

dos camelôs, que se adaptaram, transformando suas práticas para lidar com as atuações da

GM-Rio, eles também atuam nas práticas da Guarda Municipal, sejam elas: o

desenvolvimento de um programa anti-estresse ou a reivindicação de melhorias nas condições

de trabalho, sob a ameaça de iniciar greve na corporação.

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5 POLÍTICAS PÚBLICAS

5.1 Algumas questões sobre a pesquisa

Em um dos encontros com o camelô Carlos19

, este levantou uma questão muito

interessante. Já nos conhecíamos há algum tempo e, embora tivéssemos poucos encontros, ele

sempre comentava que queria conversar sobre “algumas coisas” comigo antes do início, de

fato, da pesquisa, e neste dia decidiu me contar o que o afligia. Começou falando:

“Quando você leva alguém pra sua casa é porque você confia nessa pessoa, certo?

Então, se eu trago você aqui e te apresento aos meus companheiros de trabalho é

porque eu estou confiando em você e peço que você tenha cuidado com o que vai

escrever, porque você estuda em uma universidade pública e está trabalhando para o

Estado também e eu não sei quem vai ler o que você escrever e o que vão fazer com

isso. Eu tenho medo do que eu vou contar pra você e você criar uma política mais

reacionária ainda”.20

No momento, eu ri e disse que aquela não era a minha intenção. Porém todas aquelas dúvidas

e incertezas me levaram a abrir um campo de discussão de assuntos que estão conectados: a

relação de confiança em uma pesquisa entre pesquisador e pesquisado, como o tema

“segredo” está implicado nesta relação e por último, qual o alcance de uma pesquisa, o que

esta pode produzir ou na vida dos participantes ou em coletivos.

Carlos tem razão em pensar duas vezes antes de me contar algo. Porque, de fato, que controle

um pesquisador possui sobre o que podem vir a fazer com sua pesquisa? Mais adiante entendi

que sua preocupação não era somente pela questão política: ele seguiu dizendo que no ano de

2009 foi ameaçado de morte por milicianos porque resistia, junto com outros camelôs, em

trabalhar em um local que deveria ser desocupado. Isso o levou a mudar de cidade com sua

família, visto que rondavam sua casa e ameaçavam seus parentes.

Bom, controle sobre a posterior utilização de uma pesquisa é difícil obter, porém,

pode-se ter responsabilidade com os relatos, com o que se escolhe escrever e o que se escolhe

não escrever, omitir, talvez manter em segredo.

19 Nome fictício escolhido pelo camelô.

20 Entrevista concedida pelo camelô Carlos em 29 de novembro de 2013.

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A psicóloga e filósofa, Vinciane Despret (2011), escreveu um belo texto sobre a função do

“segredo” nas profissões de ‘cuidados’, principalmente, na psicoterapia. Embora seu texto

esteja voltado, sobretudo, para as práticas psicoterápicas, a autora aborda o assunto nas

práticas de pesquisa. Buscando a etimologia da palavra “segredo”, propõe alguns sentidos que

este pode produzir:

[...] definindo o segredo como aquilo que organiza o que se mostra e o que se

esconde. O bom senso nos diz: qualquer coisa que somente eu sei, mas que não se

tem como segredo, não o é: o segredo apenas existe para designar (mostrar) o que

está oculto. Mas insistir sobre o que está escondido pode nos enganar: se há algo a guardar dos segredos da família é que todos da família, ou quase todos, os

conhecem. Este ‘ou quase’ nos convida a diminuir e aumentar um pouco nossa

definição. A etimologia nos oferece um recurso auspicioso ao propor repensar o

segredo a partir do termo do qual ele é proveniente: secretus, que é a forma no

particípio passado de secernere: separar. (DESPRET, 2011, p. 12).

O segredo, então, instaura uma separação entre quem pode ou não conhecer e o que se

pode conhecer. Como ressalta Despret, o segredo também produz uma interioridade ao

instaurar aquilo que é íntimo e só pode ser dito em regime de confidencialidade. Isso remete à

produção de um domínio privado e um domínio público, que poderia ser acessado por

qualquer um. Assim, a criação desse espaço da intimidade, visaria em um primeiro momento

proteger ao paciente. Já, em relação à pesquisa, protegeria o participante de arcar com

possíveis consequências de seu discurso. Logo, a omissão de seus nomes, deixaria implícita a

ideia de que os pesquisados “confessariam coisas” que não diriam em público21

(DESPRET,

2011).

Por outro lado, essa proteção viria em mão dupla, na medida em que a criação de um

espaço do “íntimo” também significaria proteger o psicoterapeuta, criando um campo onde só

o profissional capacitado para atuar na esfera da intimidade pudesse trabalhar. Então, o

segredo garantiria a legitimidade e autonomia da profissão, protegendo-a de críticas externas.

Por exemplo, diante de um caso, em um trabalho que envolve uma equipe, estaria na mão do

profissional decidir o que compartilhar com os “outros” - e eu arriscaria dizer o que o

pesquisador escolhe compartilhar em uma pesquisa. O segredo, além de fazer uma cisão entre

algo que é privado e algo que é público, também separa o que desejamos mostrar do que

desejamos esconder, pelo sentimento de orgulho ou de vergonha. Portanto, essa escolha

implicaria em uma questão política também (DESPRET, 2011).

21 Despret demonstra em seu texto que nem sempre é assim. Na ocasião de uma de suas pesquisas se deparou

com uma situação contrária: o pesquisado queria que seu nome aparecesse no texto. Após esse fato a autora

reconsiderou sua forma de pesquisar, passando a perguntar aos participantes da pesquisa se eles desejavam

incluir seus nomes ou preferiam permanecer anônimos.

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É justamente neste ponto que eu gostaria de chegar: na questão política subjacente às

pesquisas. Voltando ao início dessa história, eu estava enfrentando uma situação de

confiança/desconfiança do pesquisado em relação a minha pesquisa: o que eu faria com o que

ele me dissesse; o que poderia ser feito do meu trabalho por outrem e se eu me comprometeria

em resguardar sua integridade e de seus amigos “protegendo-os”, ao omitir certos pontos, de

possíveis represálias. Como já ressaltei anteriormente, o pesquisador não possui um controle

do que pode ser feito com sua pesquisa, porém, este pode ter responsabilidade pelo que relata.

De que forma? Sendo cuidadoso com o que escolhe deixar dentro ou fora do texto. Isso não

quer dizer eliminar o que não está de acordo com a hipótese da pesquisa, quer dizer entender

que nem tudo que foi dito em uma relação de confiança pode ser posto no campo do público,

alguma parte terá que permanecer em segredo. Por uma questão de proteção e segurança das

duas partes, pesquisado e pesquisador. Porém, é importante entender que tais escolhas

envolvem um posicionamento político também. Admitimos, atualmente, que nenhuma

pesquisa é desinteressada, elas podem ser desinteressantes, porém, quase sempre elas

respondem a algum interesse. Geralmente, correspondem a alguma demanda do contexto

histórico; a alguma demanda privada ou pública; mas sempre respondem a algo, a algum

interesse. Não pensem o interesse como algo ruim, este moveu muitas pesquisas importantes.

Eu também tenho os meus, tenho demandas em relação à atual situação da cidade do Rio de

janeiro e à disseminação de práticas violentas.

Portanto, ao nos depararmos com uma pesquisa embasando uma política pública,

deveríamos nos perguntar quais interesses estão implicados nela. Donna Haraway (1995)

levanta a questão da responsabilização nas pesquisas científicas ao desarrumar o mito da

objetividade nas ciências. Esta autora coloca em cheque a ideia de uma visão inocente e

desapaixonada sobre o objeto, onde o pesquisador seria capaz de tudo ver e conhecer sobre o

mesmo, como o “olho de Deus”, visto que só este estaria apto a tal proeza. Neste caso,

objetividade e neutralidade não seriam palavras afins: “Objetividade não diz respeito a des-

engajamento, trata de um estruturar mútuo e comumente desigual, trata-se de assumir riscos

num mundo no qual ‘nós’ somos permanentemente mortais, isto é, não detemos o controle

‘final’.”(HARAWAY, 1995, p. 41). Haraway propõe que esta posição de “Deus” não é

possível, pois o objeto é ativo e possui agência e, portanto, estabelece tantas outras conexões

que não podemos apreendê-lo em sua totalidade. Devido à impossibilidade de se conectar

com suas múltiplas facetas, podemos apenas nos conectar parcialmente. Isto quer dizer que

não se pode ser auto-idêntico com o objeto, apenas ver junto, realizando conexões que são

parciais. Logo admitir isto envolve aceitar que o conhecimento é parcial e situado, podemos

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apreender apenas uma parte do que estudamos, de acordo com o que foi posto em cena

naquele momento da pesquisa. Por outro lado, a implicação em uma das facetas do tema

investigado, significaria que estamos, também, assumindo um posicionamento político ao

escolhermos aquilo que desejamos nos conectar. Deixar claro isso é assumir uma posição

marcada, ou seja, que admita nossas conexões. É isto que traz abertura para a

responsabilização na formação do conhecimento científico. Como explicita Haraway no início

do trabalho citado: “Este texto é um argumento a favor do conhecimento situado e

corporificado e contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e,

portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de ser chamado a prestar contas.”

(HARAWAY, 1995, p. 22).

Ao discutir a questão da construção do conhecimento nas ciências, a autora, destaca

que aquele envolve um movimento de poder entre as fronteiras da formação de significados:

“todo conhecimento é um nódulo condensado num campo de poder agonístico.”

(HARAWAY, 1995, p. 10). Isso quer dizer que no campo do saber científico há uma busca

por ser reconhecido como a “verdade verdadeira”, que será universalizada e vista como a

prática ou visão correta sobre determinados eventos, em detrimento de outras versões sobre o

mesmo. Contrariamente, para Haraway, a formulação do conhecimento não significaria o

encontro de uma verdade irrefutável e incontestável. No campo da construção social, a luta

por significantes que estaria em jogo (HARAWAY, 1995). Disto isto, a autora, pode

contribuir para pensarmos na legitimação e universalização de políticas públicas e a produção

de significados subjacente a elas.

Muitas políticas são formuladas a partir de pesquisas científicas, elas estão

entrelaçadas em seus discursos. Como exemplo, posso citar a atual política que rege a cidade

do Rio de Janeiro. Percorrendo seu caminho até aqui, me deparei com uma situação curiosa:

ela foi constituída a partir de experimentos nos EUA na década de 60, realizados pelo

psicólogo social Philip Zimbardo. Possivelmente, aquele experimento se dirigia a alguma

demanda daquele contexto e possuía uma finalidade que atualmente possa não fazer mais

sentido. Tal experimento embasou posteriormente uma política anticrime nos anos 80, sendo

incorporada à cidade de Nova Iorque nos anos 90 e, posteriormente, seguiu como modelo de

política anticrime para outras cidades mundo afora. Contudo, será que tal política é passível

de generalização para a cidade do Rio de Janeiro?22

Se levarmos em conta as contribuições de

22 Aqui não pretendo desconsiderar a importância de políticas “antigas”, pois entendo a continuidade do

conhecimento. Sem elas não teríamos elaborados as políticas mais recentes. Contudo, acredito ser interessante

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Donna Haraway, questionaríamos à quais interesses ela correspondia. Será que são as mesmas

que dispararam sua composição nos Estados Unidos? Pode-se dizer que a criminalidade é a

mesma? Bem, se os eventos não são idênticos e não conseguimos apreendê-los em sua

totalidade, certamente, existirão diferenças e semelhanças. Assim, em parte, haverá afinidades

entre os mesmos e a política apresentará utilidade parcialmente.

Portanto, trazer uma pesquisa para o campo da responsabilização, ou seja, colocar em

questão a capacidade de responder por ela, pela situação em que foi gerada, abre caminhos

para se pensar em ‘outros possíveis’ dentro da construção do saber. Se uma pesquisa foi

desenvolvida a partir de uma situação, esta envolve conexões que foram tecidas naquele

momento. Logo, ela é passível de ser contestada, modificada e adaptada, ou mesmo, ser

considerada inadequada para outro contexto, com outras demandas e configurações distintas.

Em suma, iniciei o tópico relatando uma situação que me deparei no campo de pesquisa: as

dúvidas do pesquisado em relação ao que poderia ser feito com esta pesquisa. Em meio a toda

discussão que foi tecida, levantar a ideia de uma escrita capaz de responsabilização

significaria deixar claro quais conexões são estabelecidas frente à pesquisa e, portanto, quais

interesses ela corresponde. Pois, assim, ela pode “prestar contas” em relação às demandas e

interesses no momento em que foi formulada. Como ressaltei, anteriormente, de fato,

não tenho controle com a posterior utilização desta pesquisa, porém, posso responder à

preocupação dos participantes com um criterioso cuidado ao escolher o que permanece nos

relatos e o que fica de fora.

5.2 Início da década de 80 e a política dos camelódromos

Durante a década de 80, o tema camelô toma evidência, sendo um período de

elaboração de políticas para este grupo. Patrícia Delgado Mafra (2005) em sua dissertação de

mestrado discorre sobre os camelôs do centro do Rio de janeiro, em especial os localizados no

camelódromo da Uruguaiana. A autora mostra como este lugar foi palco de diversas disputas

e impasses. Uma delas se refere à implantação dos camelódromos, projeto desenvolvido em

1984, durante o mandato do Prefeito Marcello Alencar. Sua proposta era a implantação de

espaços destinados ao comércio popular que ficariam espalhados pela cidade. O camelódromo

questionar a quais demandas respondiam e analisar se fazem jus as nossas necessidades atuais. Podemos

aprender com o passado, porém, podemos reconsiderá-lo para um futuro.

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do centro seria, então, na Praça Onze, sendo inaugurado naquele mesmo ano abaixo de vaias e

protestos dos camelôs que estavam insatisfeitos com a escassez de vendas. Por este motivo,

solicitaram ao Governador Leonel Brizola uma solução urgente sob a ameaça de retornar as

ruas.

Mafra relata que o projeto dos camelódromos foi uma maneira de tentar desafogar o

centro da cidade dos ambulantes que comercializavam naquela região. Assim a criação de

espaços “legais” para o exercício da camelotagem tinha seu outro “lado da moeda”, pois

sugeria que não haveria mais justificativa para a utilização dos espaços das ruas pelos

camelôs. O que, na verdade ocorreu, foi o aumento da repressão, chegando a ser elaborado um

decreto que determinava a prisão de quem comprasse em camelôs que não estivessem

instalados nos camelódromos. Porém, o governo desistiu de implantar tal determinação, pois

alegavam que inclusive policiais compravam nos camelôs (MAFRA, 2005). Aqui abro um

parêntese para relatar minha experiência no estágio da Delegacia Legal da Polícia Civil: em

uma das delegacias em que fiz estágio, um senhor ia lá oferecer aos policiais filmes que ele

baixava da internet e vendia para outrem. Era curioso porque em nenhum momento os

policiais o alertaram que aquilo era crime, o denunciaram ou o autuaram. Como relatou a

policial Lúcia da DRCPIM (Delegacia de Repressão aos Crimes de Propriedade Imaterial)

sobre o consumo de produtos piratas em entrevista concedida a mim:

Qualquer pessoa compra: juiz, promotor, delegado, policial, médico, professor, o enfermeiro,

qualquer pessoa compra Pirataria. É muito difícil uma pessoa deixar de adquirir um produto

porque ele não sabe a sua origem. É muito difícil, se a coisa for interessante e o preço for

bom e aquilo lhe convém, a pessoa compra independente da classe social.23

Essas contradições estão presentes do cotidiano. O policial, juiz, perito e etc., são se

encontram separados das práticas comuns nas cidades, eles também partilham da experiência

de viver em uma cidade grande onde o consumo é estimulado a todo o momento e atuam

nelas como qualquer outra pessoa moradora de grandes centros urbanos.

Fechando parêntese e continuando com o relato da implantação dos camelódromos:

Mafra (2005) elege o ano de 1994 como o de maior número de notícias sobre violência e

conflitos entre a Guarda Municipal e os camelôs, pois dois fatos foram importantes nesta

23 Entrevista concedida em 30 de março de 2010 durante a elaboração da monografia: Um estudo do fenômeno

da Pirataria em uma sociedade de consumo: da criação artística até os camelôs, 2010.

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época: a criação da Guarda Municipal24

e do Camelódromo da Uruguaiana. Este espaço da

Rua da Uruguaiana pertencia à companhia de Metrô, logo após a sua inauguração em 1983. A

partir de 1988 começou a circular a informação de que aquela área daria lugar a um

camelódromo que receberia os camelôs que permaneciam no centro da cidade. Aquela região

não estava nos planos do projeto da política dos camelódromos, sendo uma conquista obtida

pelos camelôs. Em vez de camelódromo, aquele local fazia parte da pauta política de

revitalização, limpeza e recuperação dos espaços das ruas do Centro do Rio de Janeiro que se

iniciou em 1989 com a volta de Marcello Alencar a prefeitura da cidade. O então prefeito

voltou atrás quanto ao projeto dos centros populares de comércio e como uma forma de

limitar o número de camelôs na cidade decidiu por suspender as inscrições e renovações de

autorização para o uso de áreas públicas:

Marcello Alencar, em lugar de criar camelódromos, adotou outra estratégia para

coibir a atuação dos camelôs: suspendeu as inscrições e as renovações de

autorizações para o uso da área pública e recorreu a uma medida que associa um

plano de reformulação do Código de Posturas do município a projetos de tratamento

urbanístico. “Para essas ruas [do Centro da cidade] pensamos em criar áreas de

circulação que naturalmente criem constrangimento para a fixação do comércio

ambulante, revela o secretário de Fazenda Edgar Monteiro.” (MAFRA, 2005, p.75).

Em 1994 o tema camelô retoma ao cenário das discussões políticas quando

César Maia assume o governo municipal. O prefeito anuncia que fará uma grande operação no

centro da cidade e que realocará um grande número de camelôs para outras áreas do Rio de

Janeiro, mas para que os mesmos pudessem participar deste programa teriam que declarar a

origem de suas mercadorias. Contudo, os camelôs estavam interessados no espaço da Rua da

Uruguaiana e, em meio a tantos projetos para aquela área, iniciou-se o processo de negociação

por aquele espaço para formar o camelódromo da Uruguaiana (MAFRA, 2005). Mas como

relata Mafra: “O processo de remoção dos camelôs para os terrenos da Uruguaiana foi apenas

uma das etapas da ‘grande operação’ cujo objetivo principal era ‘retirar’ os camelôs das ruas

do Centro e iniciar um ‘plano de revitalização da área’.” (MAFRA, 2005, p. 80).

A política do camelódromo ainda permanece na pauta da prefeitura. Em julho de 2012

foi inaugurado o Mercado Popular Leonel Brizola (nome do governador do Rio de janeiro na

época da inauguração do primeiro camelódromo) na região da Central do Brasil para realocar

os camelôs que comercializavam no entorno do Terminal rodoviário da Central do Brasil.

24 Mafra se refere ao ano de 1994 como a data de criação da Guarda Municipal no Rio de Janeiro. Nos registros

aos quais tive acesso, datam o final de 1993. Contudo, possivelmente, uma atuação expressiva da GM-Rio

tenha se iniciado em 1994.

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Contudo, em entrevista ao Jornal Extra em janeiro de 2013, os camelôs denunciam a falta de

consumidores e a necessidade de criar outras estratégias para continuar com suas vendas:

alguns preferem ir para as ruas e correr o risco de perder suas mercadorias a ficar no

camelódromo e ter prejuízos. Por isso, dos 607 boxes disponíveis, apenas 50 abrem

diariamente, além disto, os comerciantes precisam pagar algumas taxas por mês que somam o

valor de R$ 150 reais (EXTRA, 2013). Diante desta situação muitos camelôs desistiram do

lugar e voltaram para as ruas. Parece que a experiência da década de 80 e 90 dos

camelódromos não influenciou na implantação dos mesmos. O camelódromo da Uruguaiana

funcionou muito bem por ser um lugar de passagem de muitas pessoas, entretanto, o primeiro

camelódromo inaugurado, na Praça Onze, teve as mesmas dificuldades e reclamações que o

da Central do Brasil e acabou abandonado pelos camelôs que preferiram voltar para as ruas. É

importante lembrar que o exercício da camelotagem é proibido para quem não possui

autorização da prefeitura para utilizar aquele ponto independente da origem de suas

mercadorias (MAFRA, 2005). Logo os camelôs que se arriscam nas ruas podem perder suas

mercadorias mesmo que possuam autorização para trabalhar nos camelódromos.

A criação de camelódromos tem seus dois lados da moeda. Por um lado, pode ser

interessante para o camelô se fixar em um ponto onde não “sofrerá” as consequências da

repressão deste grupo. Por outro lado, os camelódromos vêm acompanhados da intensificação

das medidas de controle na rua sob o discurso que se há locais para o exercício da

camelotagem não há motivos para o camelô permanecer nas ruas ilegalmente. Contudo, esses

espaços comportam apenas uma parte dos camelôs e o processo de realocação dos camelôs

deixa muitos outros de fora. Além disso, em geral os espaços não possuem muita estrutura e

como relata Mafra (2005), a maioria das reformas realizadas no camelódromo da Uruguaiana

foram financiadas pelos próprios camelôs. Essa precariedade da estrutura na qual são

entregues os camelódromos é confirmada pelo camelô Carlos, este relata que os terrenos são

disponibilizados sem estrutura nenhum, são terrenos vazios, sem nada e em princípio nenhum

camelódromo dá certo, até que vai passando de camelô para camelô até funcionar. O próprio

Carlos diz que prefere não se incluir nas políticas que visam a formalidade e legalidade dos

camelôs porque, para ele, tudo o que envolve o Estado não é bom.

Outra questão pertinente se refere ao processo com que os espaços para o exercício da

camelotagem são criados: As concessões de licenças, em geral, ficam fechadas por muito

tempo e quem pretende se legalizar pode ficar em uma espera de anos. De épocas em épocas

vagas são abertas. Contudo, essas vagas não comportam o grande número de camelôs e

muitos ficam ‘de fora’, além disso, de início os camelódromos não funcionam bem. Quando

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essas vagas são preenchidas, as concessões são suspensas por tempo indeterminado, porém,

tal medida não faz com que os camelôs não legalizados “desapareçam”. Por outro lado,

aumenta-se a repressão nas ruas sob a justificativa de que o governo proporcionou a

possibilidade do camelô se tornar “legal” e que a sua permanência nas ruas ocorre por conta e

risco do camelô que não quer se legalizar. Então, a responsabilidade por continuar nas ruas,

recai somente sobre o camelô já que o governo fez a sua parte. Bem, este processo junto com

as associações negativas vinculadas aos camelôs, sejam elas advindas do governo ou de

iniciativas privadas, que entendo como a criminalização do camelô.

Algumas dessas associações, que constatei durante a formulação da minha monografia

de graduação, se relacionavam com o discurso que a venda de produtos piratas ou falsificados

pelos camelôs não arrecadavam impostos e que isso teria impacto na formulação de empregos

formais (FERREIRA, 2010). Isso é controverso, como salienta Pontes (2012) em sua

dissertação de mestrado sobre o burlar e a criação de mitos sobre a tecnologia - como, a ideia

que software pirata estragaria o computador ou cd pirata estragaria o aparelho - a fim de evitar

tal prática. Isto me remeteu aos discursos encontrados contra a pirataria e os camelôs e, assim

a formação de mitos em torno desta figura, como por exemplo, a afirmação que a ilegalidade

dos camelôs e a não arrecadação de impostos teriam influência negativa sobre a criação de

trabalhos formais, ou seja, o dinheiro arrecadado poderia ser utilizado na criação de postos de

trabalho. De maneira inversa, se pensarmos melhor, a pirataria e os camelôs produzem muitos

empregos formais, a citar: a criação de uma delegacia especializada em crimes de propriedade

imaterial, a DRCPIM, que além de contar com policiais especializados no assunto, mobiliza o

emprego de peritos para avaliar as mercadorias, de instrutores que treinaram os peritos, os

policiais e etc. Da mesma forma, os camelôs também produziram a multiplicação do número

de Guardas Municipais e órgãos que pensaram no seu controle, formuladores de políticas

públicas para este grupo, órgãos administrativos que concedem licenças, também produz

empregos para os que trabalham nas fábricas produzindo as mercadorias (embora neste caso,

não se possa dizer que de fato eles são formais, isso dependerá das leis dos países em que os

produtos são fabricados), entre outros não enumerados aqui. Portanto, se a pirataria e os

camelôs empregam no trabalho informal e/ou ilegal, eles também empregam no campo formal

e legal.

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5.3 A Evolução da política de Tolerância Zero no Rio de Janeiro

Enquanto no tópico anterior discorri sobre a política dos camelódromos e a sua relação

com o processo de criminalização do camelô, neste tópico me deterei às políticas ditas de

“tolerância zero”. Bom, pensando pelo ponto de vista da criminalização deste grupo, a volta

do camelódromo faz sentido atualmente, em vistas ao projeto de transformação da cidade do

Rio de Janeiro até o ano de 2016, data da realização dos jogos olímpicos. Portanto, retorna-se

a ideia de transformação dos espaços urbanos, porém, agora esta se apresenta somada ao

discurso da retomada dos territórios públicos que estão sendo utilizados indevidamente ou que

se encontram abandonados pelo poder público e, por isso são locais propensos a proliferação

de crimes.

Assim, a Secretaria Especial de Ordem Pública (SEOP) foi criada em 2008, após a

eleição do prefeito Eduardo Paes e tem como atribuição combater “as práticas irregulares”

que de alguma forma estariam impedindo o desenvolvimento da cidade (SEOP, 2010). A

leitura feita pelo SEOP é que a integridade do espaço urbano reduz a violência e a tradução

realizada da cidade é que esta possui uma cultura da ilegalidade, que poderia ser verificada

em seu histórico: uma desconsideração por aquilo que seria um bem comum de todos, os

espaços públicos, podendo ser verificado através da observação de mesas e cadeiras nas

calçadas, estacionamentos ilegais, construções ilegais, entre outros. Além disto, segundo o

SEOP, esse “problema” seria agravado pela questão da criminalidade no cenário da cidade do

Rio de Janeiro (SEOP, 2010). Logo, as políticas implantadas a partir do diagnóstico deste

órgão, se ocupariam com a retomada dos espaços públicos considerados “degradados” ou

utilizados “indevidamente”.

Assim, em um primeiro momento do programa, a cidade passaria por um “Choque de

Ordem”, que envolveria o combate às práticas irregulares que impedem o desenvolvimento da

cidade e o restabelecimento da ordem pública. Desta forma, atuariam nas ocupações, tidas

como indevidas, nas praias e ruas; nas construções irregulares; no transporte clandestino e etc.

O objetivo dessa política envolve passar da ilegalidade para a legalidade certos grupos. Em

contrapartida, a ordenação dos espaços públicos teria o efeito de prevenir crimes futuros

(SEOP, 2010). Esta secretaria teria como projetos: Institucionalização e estruturação do

SEOP; cadastramento das atividades econômicas nas áreas públicas; desenvolvimento da base

de dados da Ordem Pública; desenvolvimento do sistema de relatórios e estatísticas da Ordem

Pública; desenvolvimento do sistema de licenciamento e fiscalização georreferenciado;

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elaboração de proposta do novo código de posturas e desenvolvimento da campanha de

divulgação, comunicação e mobilização em relação à Ordem Pública.

A política do Choque de Ordem no Rio de Janeiro foi baseada na experiência da

cidade de Nova Iorque na década de 90, tem sua base na Política das Janelas Quebradas

(Broken Windows). Como foi exposto, sua finalidade está no restabelecimento da autoridade

pública e seus objetivos são: garantir o uso “correto” do espaço público; viabilizar a sensação

de um ambiente ordenado e ampliar a formalidade das atividades econômicas (SEOP, 2010).

E como isto se reflete no trabalho do camelô? Entre os sete projetos proposto pelo PMOP

(Programa Municipal de Ordem Pública), um deles se refere ao cadastramento e

recadastramento das atividades econômicas nas áreas públicas, para assim realizar um grande

banco de dados que torne mais fácil controlar e identificar aqueles que não cumprem as

normas de condutas municipais (SEOP, 2010). Esse cadastramento tanto traz transformações

nos equipamentos utilizados para venda de seus produtos, visto que propõe padronização,

como pretende exercer controle sobre um número maior de camelôs. Por outro lado,

intensifica-se o trabalho de repressão sobre os que não conseguem corresponder às

expectativas do governo. Tal situação parece remeter às políticas da década de 80/90 durante

a instalação dos camelódromos, quando houve um grande número de cadastramento de

camelôs. Contudo, tal fato acarretou, em conjunto, o aumento da repressão aos que não se

enquadravam as propostas do governo, sendo marcado por um período de grandes confrontos

e negociações.

A atual situação não parece ser muito distante daquele cenário, cada vez mais se

assiste em notícias de jornais, nas redes sociais ou como testemunha ocular, situações de

conflito entre a guarda municipal e os camelôs. O que parece ser inovador nesse projeto é que

ele faz uma leitura da cidade a partir da criminalidade e a questão da violência é abertamente

posta em cena, talvez como uma maneira de justificar claramente as medidas e ações

implantadas neste governo quanto ao uso dos espaços públicos.

5.4 “The Broken Windows Theory”

Curiosamente, a política do Broken Windows originou-se a partir de estudos dentro da

Psicologia nos Estados Unidos. Em 1969, o professor em Psicologia Social, Philip Zimbardo,

realizou um experimento onde abandonou dois carros em bairros diferentes: um em uma

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região pobre de Nova Iorque e outro em uma região nobre da Califórnia e observou os

acontecimentos. Em pouco tempo, o carro abandonado no bairro pobre já havia sido

desmontado e quebrado, enquanto que, no bairro nobre, o outro carro permaneceu intacto por

uma semana até que Zimbardo decidiu quebrar uma das janelas para ver o que aconteceria.

Então, notou que a partir daquele momento, o mesmo processo ocorrido do bairro pobre se

estabeleceu no bairro nobre: o desmanche do carro (ANDRADE, 2011). O que se concluiu

desse experimento foi que o fator pobreza não era um determinante para justificar crimes e

atos de violência, visto que os dois carros foram depenados independente do bairro. Logo, um

ambiente deteriorado seria muito mais significante para criar um ambiente propício ao crime,

pois sua imagem traria consigo a impressão de desordem e abandono, provocando a sensação

nas pessoas de que a lei não chega naquela região (ANDRADE, 2011).

Esse experimento ficou conhecido como “Broken Windows” e, embora os

experimentos de Zimbardo sejam um tanto questionáveis quanto aos seus métodos e

objetivos, ele foi, posteriormente, utilizado para embasar uma política de combate ao crime

nos Estados Unidos. Desenvolvida em 1982 por George Kelling (psicólogo criminologista) e

James Wilson (cientista político), a “Broken Windows Theory” parte do princípio que o

combate aos pequenos delitos favorece a diminuição dos crimes mais graves. Isto porque não

dar importância para certos tipos de comportamentos que visam à degradação do ambiente

deixa implícito que ali a lei não chega, promovendo a decadência do espaço público e

contribuindo para que crimes mais sérios ocorram. Assim, como relata Kelling25

em entrevista

ao programa Roda Viva em 2000, o nome “Janelas Quebradas” (Broken Windows) é uma

metáfora para ilustrar uma situação: se há uma janela quebrada e ninguém a conserta, isto dá

margem para que outras janelas sejam quebradas porque provoca a sensação de que “a lei”

não passa por ali, permitindo que o ambiente se deteriore o que gera a ideia de abandono do

lugar – neste caso, abandono do poder público. Portanto, para Kelling, tal fato deveria ser

combatido em uma interação entre a polícia e a comunidade.

Porém a importação desta política para a cidade do Rio de janeiro foi pensada nos

moldes da “tolerância zero”, termo difundido também nos EUA, que Kelling (o criador do

Broken Windows Theory) afirma nunca ter utilizado ao responder a críticas sobre a mesma no

programa Roda Viva:

25 Programa Roda-Viva, entrevista com George Kelling, exibido na TVE, Rio de Janeiro, no dia 12/06/2000, das

22h00 às 23h30, produzido pela TV Cultura, São Paulo.

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Eu jamais escrevi a expressão "tolerância zero". Eu acho que ela simplifica demais

uma questão muito complexa. O que eu defendo e discuti com James Wilson

[criminologista norte-americano da Universidade de Harvard e um dos autores da

Teoria das Janelas Quebradas], no início dos anos 1980, e depois o coloquei no

livro, é que o argumento é uma metáfora. Assim como uma janela que é deixada

quebrada é sinal de que ninguém se importa e acaba levando a outros danos,

determinados comportamentos, se ignorados, são sinais de que ninguém se importa,

e acabam levando a crimes mais graves e à decadência urbana. O que eu vi e o que

eu escrevi é sobre a polícia dentro das comunidades, desenvolvendo conceitos sobre

um comportamento adequado e trabalhando com os cidadãos para reforçar o sentido

comunitário. Tudo isso, claro, dentro da lei. Não sei de onde vem a expressão "tolerância zero"[...] (KELLING, 2000).

Em outra passagem discorre:

O que se perde na expressão "tolerância zero" é que a ênfase na tolerância se

concentra na polícia, e não nos cidadãos. Por isso, eu sou contra a expressão

"tolerância zero". Eu a usei livremente nos EUA, dizendo que a extrema esquerda

gosta da "tolerância zero" porque eles se sentem como fascistas, e a extrema direita

gosta da "tolerância zero" porque é um instrumento de controle total. O que eu digo

é que não é nenhuma das duas coisas. O que queremos é uma solução de centro,

buscando um consenso sobre um comportamento adequado. Polícia e cidadãos devem trabalhar juntos para fortalecer esse consenso (KELLING, 2000).

Portanto, colocar a política das Janelas Quebradas em prática sob o prisma da

“tolerância zero” tira do foco a proposta de Kelling que sugere a realização de uma

investigação e conhecimento da situação local em conjunto com as pessoas envolvidas para se

pensar em soluções (KELLING, 2000). O que se perde com a expressão “Tolerância zero” é

essa possibilidade de interação e negociação para dar lugar a uma posição de controle total,

extremamente repressiva. Contudo, no próprio discurso de Kelling há incoerências, como por

exemplo, atribuir à polícia o poder discricionário, apontando que esta por atuar diretamente

com a população poderia avaliar qual ação melhor tomar no momento. Mas a polícia

realmente poderia ter uma avaliação de qual seria a melhor maneira de agir? Tal fato retira da

figura policial seus próprios interesses e papel que esta se vê no dever de cumprir. Como

confiar a uma única corporação o lugar de administrar situações que extrapolam seu trabalho,

que envolvem tantas questões e pessoas que vão além de uma intervenção policial? Outra

questão: será que nossa Guarda Municipal está bem preparada para administrar o uso do

espaço público? E será que cabe somente a ela realizar intervenções quanto ao uso desse

espaço?

Neste sentido, podemos pensar esta política no funcionamento da cidade do Rio de

Janeiro quando Wacquant aponta o Brasil como um dos principais importadores das políticas

americanas anticrime de “tolerância zero”. Amplamente difundidas durante o mandato do

prefeito Rudolph Giuliano, na cidade de Nova Iorque, através da figura de Willian Bratton,

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um grande consultor em policiamento urbano que passou a dar conferências pelo mundo após

ter sido demitido do Departamento de Polícia desta cidade em 1994. Para o autor este tipo de

política é muito eficiente em “encenar” para o público o compromisso em acabar com o crime

urbano. Contudo, mostram-se extremamente ineficazes por facilmente se aliarem aos

estereótipos dos pobres urbanos que sentiriam mais letalmente os efeitos destas políticas. No

Brasil estas medidas tomariam maiores proporções devido ao “uso rotineiro da violência letal

pela Polícia Militar, sob a alegação de manutenção da ordem.” (WACQÜANT, 2007, p.206).

Isto se apresentaria como reflexo de uma tradição da violência, construída pela escravidão e

conflitos agrários e atualizada no período da ditadura (WACQÜANT, 2007).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho procurei descrever a atuação de alguns atores que atuaram no processo

de criminalização do camelô. A partir da multiplicidade e heterogeneidade dos camelôs,

podemos observar as suas várias versões e, portanto as tantas formas em que atuam e são

atuados em relação a outros atores. Assim, ele atua em relação aos moradores das cidades, as

políticas públicas, as Guardas Municipais, com a modernidade, entre outros atores. Isso quer

dizer que os camelôs são afetados pelas práticas desses atores que, por sua vez, acabam por

transformar as práticas dos camelôs, como por exemplo: após a Guarda Municipal obter

permissão para apreender as mercadorias dos camelôs, estes desenvolveram um mostruário

em formato de paraquedas, mas essa atuação também se refletiu pelas ruas da cidade, quando

a famosa frase “olha o rapa” antecedeu a correrias pelas ruas e vielas da cidade. Assim como,

em meu trabalho de campo, encontrei em uma loja que dava saída para duas ruas um cartaz

que proibia a entrada de ambulantes naquele local, muito provavelmente eles utilizavam a loja

para ludibriar a Guarda. Em contraponto, essa atuação não é só uma atuação da Guarda

Municipal em relação aos camelôs, ela expressa, na verdade, a forma como o governo atua em

relação aos camelôs, mas também se relaciona com outras instâncias como o projeto moderno

e a adoção do liberalismo, que se preocupou com a liberdade política dos homens em relação

ao governo, onde este, deveria se fazer presente somente nas questões de segurança.

Da mesma forma, a tarefa inversa também ocorre, a afetação não se faz em mão única.

Os camelôs também atuam com as agências acima citadas. A sua prática suscitas as práticas

dessas instâncias, como os exemplos citados no tópico sobre mediações: as situações ali

ocorridas afetaram transformando as atuações dos guardas municipais, levando, no primeiro

relato, um guarda a pedir mudança de posto e, no segundo, os guardas reivindicarem

melhorias nas condições de trabalho sob a ameaça de fazer greve. Igualmente, o aumento do

número de camelôs e o uso do espaço público que estes fazem, também afetam os governos,

levando-os a atuar na tentativa de conter e controlar esse coletivo. Neste sentido, podemos

dizer que todos esses dispositivos, entre outros que não foram aqui explicitados, são evocados

nas cenas de confronto entre camelôs e guardas municipais e todos eles se relacionam com o

processo de criminalização dos ambulantes. Por isso, se diz que os atores atuam com outros

atores, uma rede nunca se faz sozinha, mas com a conexão de vários atores que vão

transformando a rede através de seu trabalho de mediação.

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Diante do que foi exposto é possível dizer que a cidade do Rio de Janeiro apresenta

um histórico de políticas públicas que privilegiam o uso da repressão através de argumentos

higienistas em relação ao uso dos espaços públicos. A ideia de ordenação das ruas esteve

presente em vários momentos quando a questão do trabalho do camelô tornou-se aguda. Em

meio a conflitos e negociações, apesar de alguns avanços em relação à legitimação do

trabalho do camelô, este nunca escapou totalmente das identificações de criminalidade.

Associações estas que estiveram presentes desde o início do uso deste termo.

Embora tenham ocorridos períodos de cadastramento de um grande número de

camelôs para obter “licenças”, estes também vieram acompanhados de forte repressão. Ser

incluído no trabalho formal também significou se adequar as exigências do governo, assim

como, estar pronto para o controle exercido pelo mesmo. Além disso, a possibilidade de

legalização sempre veio acompanhada de maior repressão por parte do Estado para os que não

conseguiam se adequar, visto que a abertura para a formalização justificou as ações de

coerção. Em contrapartida, a “legalização” ocorre para uma pequena parte dos camelôs e,

logo após essa possibilidade de obter licenças, são suspensas e permanecem assim por um

bom tempo. Então, os camelôs que pretendem se formalizar enfrentam uma espera infindável

durante anos. O que, de fato, acontece é o camelô buscar outros meios para trabalhar: como

alugar o ponto de alguém que possui licença, ou permanecer nas ruas sem autorização, ou

ainda, recorrer às milícias, quando estas existem no local, a fim de se “proteger” das medidas

repressivas. Desta forma, o camelô pode ser acometido duplamente pela violência gerada

através das posturas de controle adotadas pelo governo: Ou pela Guarda Municipal ou pelas

milícias. Esta última esteve presente no caso que relatei do camelô Carlos, que precisou

mudar de cidade com sua família por causa das ameaças de morte de milicianos enquanto

resistia a trabalhar em um local dominado por este grupo.

Foi este processo que chamei de criminalização do camelô: A campanha pela

formalização dos mesmos, que dará cabo de apenas uma parte dos camelôs. Porém, tal

campanha dera utilizada como argumento para justificar as ações repressivas. O pensamento

parte do princípio que se existe lugar para o exercício da camelotagem ou foram liberadas

concessões, se o camelô continua ilegal a responsabilidade, ou melhor, a irresponsabilidade é

dele. Da mesma forma, as concessões de licenças são suspensas logo em seguido e

permanecem assim por anos. Contudo, esta medida não faz com que o camelô desapareça das

ruas da cidade. O que isto implica é a associação dos camelôs com grupos “tidos” como

criminosos: os milicianos. Nesta situação, de fato, pode-se dizer que os camelôs estão

“envolvidos” com a criminalidade. Tal fato reforça as justificativas por parte do governo que

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apontam os camelôs como associado ao crime. E assim, sucessivamente, como um círculo

uma situação alimenta a outra: as justificativas se justificam.

Por esse viés, podemos observar que o atual projeto de ordem pública fundamenta suas

propostas a partir do argumento da existência de uma cultura da ilegalidade e, daí a

necessidade de um “choque de ordem”, nome que leva um dos programas que visam a

reordenação e retomada dos espaços públicos pelo governo. Contudo, por que não poderíamos

pensar em uma cultura da criminalidade que é deflagrada pelas próprias políticas públicas

quando traduz alguns fenômenos que ocorrem nas cidades através da interpretação criminosa?

Ou melhor, quando as próprias políticas alimentam a rede que associa certos coletivos à

criminalidade? E, também, por que não se falar em uma cultura da violência ou em uma

tradição em políticas que preze por medidas truculentas de repressão?

Uma política que faça uma tradução da cidade pelo viés do crime interpretará vários

acontecimentos do ponto de vista da criminalidade e sua resposta será por uma demanda

maior por segurança. Por outro lado, a experiência por garantia de segurança do

desenvolvimento vital dos cidadãos pelo Estado se mostrou falha em muitos aspectos,

transmutando-se, assim, para uma segurança criminal, que interpreta o produto dessa

ineficiência como um crime. Abordando várias questões sociais como uma questão de

criminalidade, desordem e etc. Como por exemplo, as transformações do trabalho

contemporâneo que levaram muitas pessoas ao trabalho informal e, às vezes ilegal, ter como

resposta medidas truculentas de repressão. Desta forma a criminalização de parte da

população será inevitável.

Embora o crime, de fato, exista na cidade do Rio de Janeiro, esse modelo de

“tolerância zero” acaba por incidir nos estereótipos de parte da população, tornando a cidade

um espaço muito mais de conflito e menos de negociação. Por esse viés, outras questões

podem ser levantadas, como por exemplo, o fato de que a maioria dessas políticas é importada

de outros países e traz consigo significações desses locais. Não quero aqui dizer que uma

política não possa ser universalizada. Porém, antes que se pense em importar uma política,

deve-se compreender em qual conjuntura e quais atores estão envolvidos no fenômeno que

essas políticas pretendem dar conta. Será que são as mesmas que as nossas?

Na cidade do Rio de Janeiro, parece que a questão de olhar para dentro a partir do

olhar de fora sempre foi uma tônica em nossa cidade. Desde as reformas do Prefeito Pereira

Passos, no início do século XX, que pretendia modernizar a cidade segundo os parâmetros de

Paris. Como reflexo desta reforma, diante da expulsão das camadas populares que habitavam

cortiços, estes subiram os morros da região central, sendo esse fato um dos percussores das

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favelas. Da mesma forma, atualmente, a política que gere os espaços da nossa cidade, foi

importada de experiências no território dos Estados Unidos, assim como, a arquitetura

utilizada nas reformas do centro da cidade são de base americana. O que isto me parece é que

conhecemos muito pouco sobre nós mesmos e a importação de políticas, em vez de abrir

espaço para nos pensarmos, tem o efeito inverso. Acabamos por tentar sufocar, controlar e

reprimir aquilo que não conhecemos.

Parafraseando a modernidade e sua fixação pelo trabalho de separação e pureza,

podemos dizer que aplicamos na cidade do Rio de Janeiro este processo. A tentativa de

purificar, separando em quantas forem necessárias as situações para tratá-las separadamente,

só fez com que mais fenômenos “estranhos” surgissem, sem contudo, dar cabo a deles. E tal

fato se reforça sucessivamente. Uma das questões da modernidade, como salienta Latour

(1994) é a sua dificuldade em lidar com os híbridos e, assim, a alteridade, porque trabalha

com a forma de tradução pautada na visão, onde não há lugar para “outros possíveis”. Porém,

a negação da existência da alteridade não as faz desaparecer. Portanto, a oportunidade que se

perde é a de pensar a si mesmo. Neste sentido, finalizo provocando o leitor com a pergunta:

será que nossas políticas pensam na cidade como ela é? Será que nossas pesquisas procuram

fazer isso ou só repetem modelos importados?

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ANEXO A - Cadastramento de ambulantes

Ordem Pública

Cadastramento de ambulantes começa hoje A Secretaria Especial da Ordem Pública (Seop) promove a partir do dia 22 de junho um cadastramento geral do comércio ambulante, com o objetivo de fiscalizar esta atividade e reordenar o espaço público. O cadastramento é obrigatório para todos os ambulantes – exceto os das areias das praias - que possuam autorização emitida até 31/12/2008. O ambulante que não comparecer terá sua licença automaticamente cancelada e só poderá se inscrever na Fase 2, sem garantias de manter sua licença. Para ser reconhecido como ambulante é obrigatório estar inscrito como autônomo na Previdência Social. Apenas uma autorização será concedida por ambulante, que só poderá trabalhar num ponto fixo e determinado pela Prefeitura. Para se candidatar a uma licença, é preciso se inscrever em um dos 19 postos de inscrição (ver tabela abaixo), das 10 às 16h, nas datas definidas de acordo com a data de nascimento do candidato. As inscrições são gratuitas. Como será o cadastramento O cadastramento será feito em duas etapas (Fase 1 e Fase 2), gerando o Cadastro Único do Comércio Ambulante (Cuca). O ambulante que quiser ter um auxiliar terá que informar no ato da inscrição e levar cópias da carteira de identidade e do CPF do ajudante. O ambulante terá que recolher encargos trabalhistas referentes ao auxiliar, exceto se ele for parente de primeiro grau. FASE 1 Começa no dia 22 de junho - é obrigatória para o ambulante que já possui autorização. Ninguém pode representar o ambulante, nem mesmo por procuração. Os documentos necessários para a Fase 1 são (originais e cópias): a. Autorização concedida antes de 31 de dezembro de 2008; b. Identidade do titular e do auxiliar, se houver; c. CPF do titular e do auxiliar, se for o caso; d. Comprovante de residência do Município do Rio de Janeiro (conta de luz, gás ou água em nome do ambulante. Caso a conta não esteja em nome do ambulante será preciso uma declaração do titular de que ele reside em sua companhia; e. Comprovante de matrícula escolar dos filhos menores, se houver; f. Declaração indicando os produtos que pretende vender; g. Declaração indicando o local em que guardará as mercadorias. A Fase 1, além de identificar e selecionar os ambulantes autorizados, vai definir a quantidade de autorizações disponíveis para a Fase 2. FASE 2 Para a Fase 2, que começa em 10 de agosto, poderá se inscrever qualquer pessoa maior de 18 anos que pretenda ser ambulante na cidade do Rio de Janeiro. Mas para isso o candidato ou candidata à vaga precisa atender a uma das

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seguintes condições: a. Pessoa com necessidades físicas específicas, b. Pessoa com idade superior a 45 anos, c. Desempregado há mais de um ano, d. Ex-detento e. Portador de protocolo de processo com pedido de autorização para comércio ambulante com data anterior a 31 de dezembro de 2008. Documentos obrigatórios (originais e cópias) Os documentos necessários para a Fase 2 são: a. Identidade do titular e do auxiliar, se for o caso; b. CPF do titular e do auxiliar, se houver; c. Comprovante de residência do Município do Rio de Janeiro (conta de luz, gás ou água em nome do ambulante. Caso a conta não esteja em nome do ambulante será preciso uma declaração do titular de que ele reside em sua companhia; d. Prova de incapacidade física, se não for notória; e. Declaração da Secretaria estadual de Justiça, quando ex-detento; f. Carteira de trabalho, se estiver desempregado; g. Certidão de nascimento dos filhos menores, se houver; h. Carteira de vacinação de filhos menores, se houver; i. Comprovante de matrícula escolar dos filhos menores, se houver; j. Protocolo de pedido de autorização para comércio ambulante anterior a 31 de dezembro de 2008; k. Declaração indicando os produtos que pretende vender; l. Declaração indicando o local em que guardará as mercadorias. Prazos de inscrição: Fase 1 (22 de junho a 17 de julho) De 22/06 a 26/06 – Grupo 1 – nascidos nos meses de janeiro, fevereiro e março De 29/06 a 03/07 – Grupo 2 – nascidos nos meses de abril, maio e junho De 06/07 a 10/07 – Grupo 3 – nascidos nos meses de julho, agosto e setembro De 13/07 a 17/07 – Grupo 4- nascidos nos meses de outubro, novembro e dezembro Fase 2 (10 de agosto a 04 de setembro) De 10/08 a 14/08 – Grupo 5 – nascidos nos meses de janeiro, fevereiro e março De 17/08 a 21/08 – Grupo 6 – nascidos nos meses de abril, maio e junho De 24/08 a 28/08 – Grupo 7 – nascidos nos meses de julho, agosto e setembro De 31/08 a 04/09 – Grupo 8- nascidos nos meses de outubro, novembro e

dezembro

Veja matéria completa Publicado em 22/06/2009

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ANEXO B – Evolução das Guardas Municipais no Brasil

Fonte: Carvalho, 2011.

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ANEXO C- Número máximo de comerciantes ambulantes com ponto fixo por Região

Administrativa

I-REGIÃO ADMINISTRATIVA (PORTUÁRIA)

Saúde, Gamboa, Santo Cristo e Caju - 500

II - REGIÃO ADMINISTRATIVA (CENTRO)

Centro e Cidade - 1000

III - REGIÃO ADMINISTRATIVA (RIO COMPRIDO)

Catumbi, Rio Comprido, Cidade Nova e Estácio - 500

IV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (BOTAFOGO)

Flamengo, Glória, Laranjeiras, Catete, Cosme Velho, Botafogo, Humaitá, Urca - 1000

V - REGIÃO ADMINISTRATIVA (COPACABANA)

Leme e Copacabana - 800

VI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (LAGOA)

Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico, Gávea, Vidigal, São Conrado - 600

VII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (SÃO CRISTÓVÃO)

São Cristóvão, Mangueira e Benfica - 500

VIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (TIJUCA)

Praça da Bandeira, Tijuca, Alto da Boa Vista - 700

IX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (VILA ISABEL)

Maracanã, Vila Isabel, Andaraí e Grajaú - 500

X - REGIÃO ADMINISTRATIVA (RAMOS)

Manguinhos, Bonsucesso, Ramos e Olaria - 800

XI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (PENHA)

Penha, Circular da Penha, Brás de Pina, Cordovil, Lucas, Vigário Geral, Jardim América -

1000

XII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (INHAÚMA)

Higienópolis, Jacaré, Maria da Graça, Del Castilho, Inhaúma, Engenho da Rainha, Tomás

Coelho - 500

XIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (MÉIER)

São Francisco Xavier, Rocha, Riachuelo, Sampaio, Engenho Novo, Lins de Vasconcellos,

Méier, Todos os Santos, Cachambi, Engenho de Dentro, Água Santa, Encantado e Pilares -

1200

XIV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (IRAJÁ)

Vila Kosmos, Vicente de Carvalho, Vila da Penha, Vista Alegre, Irajá, Colégio - 500

XV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (MADUREIRA)

Campinho, Quintino, Cavalcanti, Engenheiro Leal, Cascadura, Madureira, Vaz Lobo, Turiaçu,

Rocha Miranda, Honório Gurgel, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro, Marechal Hermes - 1500

XVI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (JACAREPAGUÁ)

Jacarepaguá, Anil, Gardênia Azul, Cidade de Deus, Curicica, Freguesia, Pechincha, Taquara,

Tanque, vila Valqueire, Praça Seca - 600

XVII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (BANGU)

Deodoro, Vila Militar, Campo dos Afonsos, Sulacap, Magalhães Bastos, Realengo, Padre

Miguel, Bangu, Senador Camará - 800

XVIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (CAMPO GRANDE)

Santíssimo, Campo Grande, Senador Vasconcellos, Inhoaíba, Cosmos - 800

XIX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (SANTA CRUZ)

Paciência, Santa Cruz, Sepetiba - 400

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XX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (ILHA DO GOVERNADOR)

Ribeira, Zumbi, Cacuia, Pitangueiras, Praia da Bandeira, Cocotá, Bancários, Freguesia,

Jardim Guanabara, Jardim Carioca, Tauá, Moneró, Portuguesa, Galeão, Cidade Universitária -

500

XXI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (PAQUETÁ) - 50

XXII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (ANCHIETA)

Guadalupe, Anchieta, Ricardo de Albuquerque, Parque Anchieta - 500

XXIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (SANTA TERESA) - 150

XXIV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (BARRA DA TIJUCA)

Joá, Itanhangá, Barra da Tijuca, Camorim, Vargem Grande, Vargem Pequena, Recreio dos

Bandeirantes, Grumari - 500

XXV - REGIÃO ADMINISTRATIVA (PAVUNA)

Coelho Neto, Acari, Barros Filho, Costa Barros, Pavuna - 600

XXVI - REGIÃO ADMINISTRATIVA (GUARATIBA)

Guaratiba, Barra, Pedra de Guaratiba - 300

XXVII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (ROCINHA) - 400

XXVIII - REGIÃO ADMINISTRATIVA (JACAREZINHO)

Jacarezinho, Vieira Fazenda - 300

XXIX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (COMPLEXO DO ALEMÃO)

Complexo do Alemão, Bonsucesso, Olaria, Inhaúma, Esperança - 300

XXX - REGIÃO ADMINISTRATIVA (COMPLEXO DA MARÉ)

Complexo da Maré, Vila Esperança, Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro, Praia

de Ramos, Timbau, Hercílio Dias, Baixa do Sapateiro, Maré, Nova Holanda, Rubem Vaz,

Parque União, Roquette-Pinto - 500

TOTAL : 18.400

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ANEXO D- Mapas do perímetro de atuação das UOPs.

UOP Tijuca

UOP Centro

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UOP Leblon

UOP Ipanema

UOP Copacabana

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UOP Glória, Catete e Flamengo

UOP Méier

Fonte: SEOP, 2010.