dissertação - a superioridade de cristo no exercício de seu tríplice ofício, em relação ao...
TRANSCRIPT
RICARDO MOURA LOPES COELHO
A SUPERIORIDADE DE CRISTO NO EXERCÍCIO DE SEU TRÍPLICE OFÍCIO EM RELAÇÃO AO REALIZADO PELOS OFICIAIS DO ANTIGO
TESTAMENTO
Dissertação apresentada ao Centro Presbiteriano
Andrew Jumper como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Teologia, com
concentração em Teologia Sistemática.
Orientador: Dr. Heber Carlos de Campos.
SÃO PAULO2007
RICARDO MOURA LOPES COELHO
A SUPERIORIDADE DE CRISTO NO EXERCÍCIO DE SEU TRÍPLICE OFÍCIO EM RELAÇÃO AO REALIZADO PELOS OFICIAIS DO ANTIGO TESTAMENTO
Dissertação apresentada ao Centro Presbiteriano
Andrew Jumper como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Teologia, com
concentração em Teologia Sistemática.
Orientador: Dr. Heber Carlos de Campos.
APROVADA EM ____/_____/______.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________ DR. HEBER CARLOS DE CAMPOS - ORIENTADOR DOUTOR EM TEOLOGIA SISTEMÁTICA - CPAJ
_____________________________________________________ MS. JOÃO ALVES DO SANTOS MESTRE EM ANTIGO E NOVO TESTAMENTO - CPAJ
_____________________________________________________ DR. DANIEL DOS SANTOS DOUTOR EM ANTIGO TESTAMENTO - CPAJ
2
À minha esposa, companheira de espera, que
está naquele que disse: “Vinde a mim, todos os que
estais cansados e sobrecarregados, e eu vos
aliviarei”; e experimenta a segurança que só o nosso
perfeito Profeta, Sacerdote e Rei pode trazer.
3
AGRADECIMENTOS
Ao Deus trino que me cerca de cuidados revelando sua verdade a mim, me libertando do
jugo do pecado e me conduzindo Naquele que é o caminho, a verdade e a vida.
À minha esposa, Vanessa, pessoa mais importante para mim, que foi privada de minha
companhia e atenção diversas vezes, para que eu pudesse desenvolver este trabalho.
Aos meus pais, Maria de Fatima, Antonio Carlos e Reinaldo, que por toda a minha vida
me deram suporte e me ensinaram a enfrentar a vida e os seus desafios.
Aos meus avós, Joaquim (in memoriam), de quem me lembro todos os dias com muita
saudade, e Ida. Ambos se deram ao máximo para fazerem de minha vida a melhor possível.
Aos meus irmãos, Raphael e Anna Carolina, que sempre se preocuparam comigo com o
amor e o cuidado de irmãos mais velhos.
Ao Valdir Campos Lima, que como um pai intercedeu, proveu e esperou pelos resultados
de meu preparo para o pastorado, a quem também dediquei minha biblioteca particular.
Ao irmão João Noronha Neto (in memoriam), que sempre acreditou em meu chamado
pastoral, dedicando companheirismo e incentivo enquanto pôde.
À família Gomes, Wadislau e Beth, Daniel e Márcia, Davi e Adriana, que mesmo antes
de minha ida ao seminário já me influenciavam com a verdade divina, conforme vista nas
Escrituras.
Ao meu orientador, Dr. Heber, que desde os tempos de seminário me contagiou com a
paixão pela teologia, a qual me trouxe até o presente resultado.
À minha tia Isa, que com carinho me ajudou na correção.
À irmã Ana Maria Brito Sanches, que abdicou de parte de suas férias para revisar meu
trabalho de modo tão fraternal. Seu empenho é de valor inestimável para esse trabalho.
4
Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas
raízes, um renovo. Repousará sobre ele o Espírito do
SENHOR, o Espírito de sabedoria e de
entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza,
o Espírito de conhecimento e de temor do SENHOR.
Deleitar-se-á no temor do SENHOR; não julgará
segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá
segundo o ouvir dos seus ouvidos; mas julgará com
justiça os pobres e decidirá com eqüidade a favor dos
mansos da terra; ferirá a terra com a vara de sua boca
e com o sopro dos seus lábios matará o perverso. (Is
11.2-4)
5
RESUMO
A questão da superioridade de Cristo em relação aos oficiais e outros elementos do Antigo Testamento foi diretamente trabalhada pelo autor de Hebreus. Dentro de suas linhas, ficou evidente que a visão do autor era de que Jesus é o superior profeta, sacerdote e rei. A partir desta constatação, busca-se expor sistematicamente de que modo as Escrituras apresentam Jesus como sendo o profeta, sacerdote e rei superior no exercício desses ofícios em relação ao realizado pelos oficiais do Antigo Testamento. O trabalho basicamente compara Jesus com os oficiais mais centrais de cada ofício do Antigo Testamento: Moisés, Arão e Davi. Partindo do ofício profético, investiga-se a superioridade de Jesus em relação a Moisés sob três aspectos básicos encontrados nos profetas do Antigo Testamento: Jesus superior como revelador, provedor e operador de milagres. Em seguida aborda-se o ofício sacerdotal, focando Jesus como o sacerdote superior a Arão na qualidade de ofertor e quanto à sua oferta. Por último, o ofício real foi trabalhado quanto à superioridade de Jesus em relação a Davi por seu domínio, poder e tempo de reinado. Ao final, constatou-se que no exercício de seus três ofícios, Jesus foi superior por seis pontos que se tornaram recorrentes por todo o trabalho.
Palavras-chave: Ofícios; oficiais; Profeta; Sacerdote; Rei.
6
ABSTRACT
The issue about Christ’s superiority over the officials and other elements of the Old Testament had been directly approached by the author of the Epistle to the Hebrews. Following his arguments, it became evident that the author’s vision was that Jesus is the superior prophet, priest and king. From this point, Coelho tried to unfold systematically the way through which the Scriptures present Jesus as the superior prophet, priest and king at the exercise of those offices in relation to what has been done by the Old Testament’s officials. The work’s aim was basically to compare Jesus to the Old Testament’s most prominent officials: Moses, Aaron and David. Beginning with the prophetical office, it has been searched the superiority of Jesus over Moses under in three basic aspects found in the Old Testament’s prophets: Jesus is superior as a revelator, a provider and a miracle performer. Following this, priesthood is analyzed, focusing Jesus as a priest superior to Aaron as a giver and in his sacrifice. Finally, the kingly office was studied in relation to the superiority of Christ over David in his domain, power and in his reign’s duration. At the end, it was realized that there are six subjects that were in all offices, supporting Christ’s superiority.
Keywords: Offices; officials; prophet; priest; king.
7
SUMÁRIO
Introdução_________________________________________________________________10
Revisão de Literatura________________________________________________________13
A pessoa e obra de Cristo_________________________________________________________13A encarnação de Cristo__________________________________________________________________14As duas naturezas de Cristo______________________________________________________________21A ligação da pessoa e obra de Cristo_______________________________________________________25A obra de mediação____________________________________________________________________28Os ofícios de Cristo____________________________________________________________________30Conclusão____________________________________________________________________________36
1. A Superioridade de Cristo no exercício do Ofício Profético, Jesus é Maior que Moisés__38
1.1. Jesus é superior como revelador________________________________________________411.1.1 Superior devido o aspecto da perspicuidade_____________________________________________431.1.2. Superior devido à filiação de Jesus___________________________________________________441.1.3. Superior devido o aspecto definitivo da revelação feita por Cristo___________________________461.1.4. Superior devido o propósito da revelação______________________________________________511.1.5. Superior devido às implicações da ontologia do Filho na revelação__________________________551.1.6. Superior devido à ação ímpar do Espírito Santo (o Espírito de Cristo)________________________60
1.2. Jesus é superior como provedor________________________________________________631.2.1.Superior como provedor quanto às necessidades físicas____________________________________64
1.2.1.1. Jesus é superior na provisão porque é Deus_________________________________________661.2.1.3. Jesus é superior na provisão porque tinha o Espírito sem medida________________________681.2.1.3. Jesus é superior na provisão porque Deus abençoa por causa de seu nome_________________69
1.2.2. Superior como provedor quanto às necessidades espirituais________________________________72
1.3. Jesus é superior como operador de milagres______________________________________75
2. A Superioridade do Ofício Sacerdotal de Cristo, Jesus é Maior que Arão_____________81
2.1. Jesus é superior na qualidade de ofertor_________________________________________822.1.1 Superior quanto o amor_____________________________________________________________82
2.1.1.1. Superior quanto o amor pelos homens_____________________________________________822.1.1.2. Superior quanto o amor pelo Pai_________________________________________________86
2.1.2. Superior por ser perfeito____________________________________________________________872.1.2.1. A perfeição de Jesus de fato satisfez o Pai__________________________________________872.1.2.2. A perfeição de Jesus fê-lo sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedeque___________90
2.1.3. Jesus é superior quanto à aliança que estabeleceu________________________________________962.1.3.1. A aliança de Jesus é superior quanto ao santuário____________________________________972.1.3.2. A aliança de Jesus é superior quanto aos ritos e sacrifícios para remissão de pecados________982.1.3.3. A aliança de Jesus é superior quanto às promessas___________________________________992.1.3.4. A aliança de Jesus é superior quanto ao mediador____________________________________99
2.2. Jesus é superior quanto o sacrifício entregue____________________________________1022.2.1. Superior quanto à oferta feita_______________________________________________________103
2.2.1.1. A oferta era superior por ter dupla natureza________________________________________1042.2.1.1.1. A oferta foi superior por ter natureza humana__________________________________1052.2.1.1.2. A oferta foi superior por ter natureza divina____________________________________106
2.2.1.2. A oferta era superior por seu valor_______________________________________________1072.2.2. O sacrifício foi superior em seus Efeitos______________________________________________108
2.2.2.1. Porque os efeitos trouxeram liberdade do jugo da lei_________________________________1092.2.2.2. Porque os efeitos proporcionaram reconciliação com Deus____________________________1122.2.2.3. Porque os efeitos são permanentes_______________________________________________114
3. A Superioridade do Ofício Real de Cristo, Jesus é Maior que Davi_________________115
3.1. Jesus é superior em seu domínio_______________________________________________1163.1.1. Jesus é superior devido à natureza do domínio_________________________________________117
3.1.1.1. O domínio superior de Jesus é de natureza espiritual_________________________________118
8
3.1.1.1.1. Superioridade em relação à extensão do domínio espiritual________________________1203.1.1.1.2. Superioridade em relação à eficácia do domínio espiritual________________________121
3.1.1.1.2.1. A obra do Espírito Santo na eficácia do domínio de Cristo____________________1253.1.1.2. O domínio superior de Jesus é de natureza física____________________________________126
3.1.1.2.1. Superioridade em relação à extensão do domínio físico___________________________1263.1.1.2.2. Superior em relação à eficácia do domínio físico________________________________127
3.1.2. Jesus é superior em seu domínio por tê-lo conquistado por seus méritos_____________________1283.1.2.1. Um domínio físico conquistado por graça_________________________________________1283.1.2.2. Um domínio espiritual conquistado por graça______________________________________1303.1.2.3. Um domínio físico conquistado por mérito________________________________________1313.1.2.4. Um domínio espiritual conquistado por mérito_____________________________________132
3.2. Jesus é superior em seu poder_________________________________________________1333.2.1. Superior devido ao limite do poder__________________________________________________1343.2.2. Superior devido ao exercício do poder________________________________________________136
3.2.2.1. Porque o exerceu com santidade_________________________________________________1363.2.2.2. Porque o exerceu com sabedoria________________________________________________1373.2.2.3. Porque o exerceu com força____________________________________________________1383.2.2.4. Porque o exerceu com doçura e sutileza___________________________________________139
3.3. Jesus é superior devido ao tempo de reinado____________________________________140
Conclusão________________________________________________________________143
Bibliografia_______________________________________________________________149
Glossário_________________________________________________________________155
9
INTRODUÇÃO
O tema que aqui será abordado tem sua importância ressaltada pelo autor da Epístola aos
Hebreus. Nessa epístola o autor ensinou a seus leitores que Jesus é superior a tudo que há no
Antigo Testamento, mesmo porque, ele é o cumprimento de todas as promessas e de todos os
objetivos ali anunciados. Nos propósitos de revelar a Deus, satisfazer sua justiça e guiar seu
povo a ele mesmo, Jesus, segundo o autor de Hebreus, é aquele que cumpre todos eles.
Nesta epístola a questão da superioridade foi utilizada pelo autor para dar confiança e
segurança a seus destinatários de que o caminho seguido em Cristo era o caminho correto para
a salvação. Contudo, uma observação mais aprofundada das Escrituras sobre este assunto leva
o leitor a ver em diversos outros momentos a pessoa de Cristo sendo exaltada, ou descrita
como sendo superior aos oficiais do Antigo Testamento. Daí surge: em que sentido Jesus era
superior a eles? Qual a importância deste fato para um maior entendimento teológico tanto da
pessoa de Cristo, quanto da obra de salvação? Desta última pergunta pode-se ainda inferir
sobre de que modo a investigação da superioridade de Cristo pode aprofundar o entendimento
da ligação entre a pessoa teontrópica do Redentor e sua obra. Ainda, de que forma o restante
das Escrituras abordam tal tema e como o mesmo foi trabalhado?
A relevância dessas perguntas está na importância do assunto para melhor compreensão
da obra de salvação de Cristo. Tal relevância fundamenta-se na ênfase dada pelo autor de
Hebreus ao assunto, quando ele mostrou como a superioridade de Cristo poderia acrescentar,
esclarecer e abalizar o entendimento de seus leitores sobre a própria salvação.
A hipótese aqui levantada é que os ofícios desempenhados pelos oficiais do Antigo
Testamento eram, na verdade, o próprio Cristo agindo por meio deles. Isso conduz ao
entendimento de que Cristo é superior por ser, antes de tudo, o próprio sustentáculo da obra
10
realizada no Antigo Testamento. Tal ação do Filho naqueles oficiais se dava tanto pelo
Espírito Santo, ou o Espírito de Cristo, como em sua manifestação como o Anjo do Senhor.
Além disso, Cristo é o oficial que realizou de modo definitivo a obra, não havendo
sucessores nos ofícios desempenhados por ele, no sentido de progressão. Se Cristo cumpriu o
que devia ser feito através dos ofícios, então aqueles que o sucederam faziam sua obra não de
modo progressivo, mas de modo Cristocêntrico, ou seja, voltados para trás. Somado a isso, e
conseqüentemente, Cristo é o oficial superior por manter-se eternamente no exercício de seu
tríplice ofício. Não obstante, para que tudo isso fosse possibilitado, Jesus tinha de ter a dupla
natureza em sua pessoa, conforme o que será demonstrado nos capítulos que se seguem.
Para o desenvolvimento desses temas argumentação seguirá a ordem mais comum dos
ofícios de Cristo encontrada na literatura: profeta, sacerdote e rei. Em cada passo será feita
uma comparação entre um importante representante veterotestamentário de cada ofício com
Cristo. O mesmo será feito tendo em vista que, se o exercício do ofício feito por Cristo é
superior ao realizado por este oicial considerado tão central, então, obviamente, ele é superior
aos outros.
Para tanto, esta pesquisa não tem a pretensão de ser um estudo pormenorizado dos
ofícios de Cristo, nem mesmo da continuidade dos ofícios na Igreja de Cristo. O que se
pretende é abordar, do ponto de vista da teologia sistemática, os aspectos que tornam o
exercício dos ofícios feito por Cristo superior aos feitos por seus antecessores do Antigo
Testamento.
Como profeta, Jesus será comparado a Moisés, como foi feito em Hebreus 3. Neste
propósito, será comparada a atividade profética de Jesus nos pontos principais vistos nos
profetas do Antigo Testamento: o profeta revelador, provedor e operador de milagres. Estes
três aspectos podem ser vistos em profetas como Elias, mas em Cristo os mesmos foram
desempenhados de modo superior, definitivo e perfeito.
11
De igual modo, o segundo passo irá comparar o ofício sacerdotal de Cristo ao de um
personagem do Antigo Testamento. Como sacerdote, Jesus é superior a Arão, que foi o
primeiro sumo sacerdote e pai de toda a linhagem levítica. Jesus é melhor ofertor, e fez uma
oferta melhor do que fizeram Arão e seus sucessores.
Por último, o ofício real de Cristo será comparado ao de Davi e outros reis do Antigo
Testamento. Davi foi um importante personagem e o rei símbolo do reinado de Israel, mas, se
comparado a Jesus, seu reino era menor em domínio, poder e duração. Como nos outros
ofícios será demonstrado que Jesus como rei é superior e insubstituível.
No decorrer do trabalho, ficará demonstrado que existe uma íntima ligação do assunto
com várias áreas da teologia. Dentro da própria cristologia, a superioridade de Cristo no
exercício de seu tríplice ofício se mostra intimamente relacionada à pessoa divino-humana de
Cristo, avultando a relação intrínseca entre a pessoa e obra de Cristo. Além disso, a
pneumatologia se mostra muito importante para esse estudo, há uma relação clara entre a obra
de Cristo e a obra do Espírito, o que infere também na eclesiologia. A igreja de Deus é
governada pela ação do Filho, seu eterno profeta, sacerdote e rei, e pela ação do Espírito que é
o Espírito de Cristo.
Por essas razões e por esses meios, este trabalho se mostra relevante. Sua leitura em
muito ajudará aqueles que almejam um conhecimento mais profundo e aplicado da pessoa e
obra de Cristo.
12
REVISÃO DE LITERATURA
A pessoa e obra de Cristo
O assunto deste trabalho aborda, diretamente, a pessoa e obra de Cristo. Encontrar
literatura interessante a este estudo não é difícil. Isso se deve ao fato de que a pessoa e obra de
Cristo foi matéria de discussão desde o início da igreja. Tal pode ser visto no Evangelho de
João, que já lutava contra uma forma de gnosticismo. Também na Primeira Epístola aos
Conríntios, na qual Paulo tratou de heresias sobre a obra de Cristo (a ressurreição de Cristo,
no capítulo 15), ou na história da igreja, como pode ser visto na controvérsia ariana. Portanto,
as questões a serem exploradas existem desde o início da igreja e são centrais para a
cristologia.
As obras aqui abordadas, que compreendem períodos bem distintos da história da igreja,
demonstram este fato. São elas: Irineu de Lião, Contra as Heresias,Agostinho de Hipona no A
Trindade, Anselmo, Por que Deus se fez Homem?, João Calvino, Institutas da Religião
Cristã, B. B. Warfield no The Person and the Work of Christ, G. C. Berkhouwer, The Work of
Christ, as Teologias Sistemáticas de Charles Hodge, Herman Bavinck, Augustus Hopkins
Strong e Louis Berkhof, Karl Barth, Dádiva e Louvor, Brunner, The Mediator, Heber Carlos
de Campos, As Duas Naturezas do Redentor.
A bibliografia selecionada ajudará a entender a discussão sobre a pessoa e obra de Cristo
através da história. Compreendendo as idéias de autores em diferentes momentos históricos,
esta revisão demonstra que os pontos aqui abordados são de vital importância para o
entendimento da pessoa e obra do Redentor, visto que os mesmos são contemplados e
debatidos há muito pela teologia cristã. Como há uma ligação muito profunda entre esses
assuntos, essa revisão abordará temas relativos às duas áreas, buscando estabelecer a
13
importância do estudo da superioridade do exercício dos ofícios feito por Cristo perante o que
fora feito pelos oficiais do Antigo Testamento.
A encarnação de Cristo
A encarnação de Cristo é tema central e inicial de toda discussão sobre sua pessoa. Dois
aspectos básicos são tratados aqui: a necessidade da mesma e o nascimento virginal. Ambos
são alvos de grande discussão e debates têm sido traçados tanto sobre se Cristo de fato teria de
se encarnar, o que o levou a isso e quanto a se seu nascimento se, de fato, se deu por uma mãe
virgem.
A Necessidade da Encarnação
A necessidade da encarnação, ou porque Jesus tinha de ser homem, é o primeiro aspecto
a ser abordado sobre a pessoa de Cristo. Foi em sua encarnação que ele passou a existir como
a pessoa do redentor, possuidora de duas naturezas. Segundo informou Berkhof, desde o
escolasticismo se discute se a encarnação tem a ver com a redenção ou com a criação.1 Esta
afirmação pode ser confirmada pela obra clássica de Anselmo de Cantuária, na qual ele fez
uma extensa defesa da encarnação de Cristo, sempre associando a mesma à obra de redenção
do homem.2 A questão é se Cristo teria encarnado mesmo se o homem não tivesse pecado.
Ainda antes de Anselmo, a associação entre a encarnação e obra de redenção era aceita
como a doutrina bíblica verdadeira. Ireneu de Lião, no Contra as Heresias, já havia feito uma
1 Cf. BERKHOF, Luis. Teologia sistemática. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p.334.2 Passim, ANSELMO de Cantuária. Por que Deus se fez homem?. São Paulo: Novo Século, 2003,.
14
grande defesa da realidade da encarnação, contrariando gnósticos e defendendo que a mesma
só poderia ser feita pelo verbo de Deus encarnado.3
Calvino entendeu que a encarnação era necessária para que ele se tornasse como aqueles
a quem representaria em vida e na morte, tornando os homens participantes de suas coisas, e
também o inverso, tornando-se ele participante das coisas dos homens.4 Ou seja, Calvino
entendia que o estado de queda do homem tornou necessária a encarnação de Cristo, para que
este representasse aquele. Para este reformador, a Bíblia sempre associou a encarnação com a
obra de mediação.5
Warfield também ligou a necessidade da encarnação de Jesus à obra a ser realizada.
Segundo sua análise da epístola aos Hebreus, Jesus seria humilhado na terra e então
glorificado no céu, ao remover as ofensas de seus seguidores.6 Bavinck pensava da mesma
forma, e enfatizou que “a Escritura sempre relaciona a encarnação do Filho à redenção do
pecado e ao cumprimento da salvação”.7
Karl Barth, em seu comentário da Epístola aos Romanos, seguiu esta mesma direção.
Para ele, Cristo era a manifestação da justiça de Deus para um homem que retinha a verdade
de Deus e ouvia deste Deus o constante não, mas que em Cristo passa a ouvir o sim.8
Emil Brunner caminhou no mesmo sentido, ligando a encarnação à obra redentora. Para
ele a encarnação e o eterno propósito de encarnação não estão baseados numa imperfeição
inerente da criação, mas baseia-se na pecadora humanidade caída.9 Contudo, ele acompanhou
Karl Barth e definiu a obra de salvação basicamente como a simples encarnação, que seria a
transposição feita por Deus do abismo existente entre ele e o homem, deixando o restante da
3 Cf. IRENEU de Lião. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995, p.328-329.4 Cf. CALVINO, Juan. Insitución da religión cristiana. Barcelona: FELiRe, 1999,, II.12.2, p.342,343.
Doravante Inst..5 Cf. Ibid, II.12.4, p.344.6 Cf. WARFIELD, Benjamin Brekinridge. The person and work of Christ. Philadelphia: The Presbyterian and
Reformed Publishing Company, 1970, p.47ss.7 BAVINCK, Hermann. Teologia sistemática. Santa Bárbara d’Oeste: SOCEP, 2001, p.356,357.8 BARTH, Karl. Carta aos Romanos. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 137-149.9 Cf. BRUNNER, Emil. The Mediator. ?, Lutherworth, ?, p. 314.
15
obra para segundo plano, ainda que reconhecesse a necessidade da mesma.10 A razão para tal
é que o papel central de Jesus, tanto para Barth quanto para Brunner, era de revelar a Deus.
Brunner o definiu como a revelação especial de Deus, fato único da história, que se difere dos
demais, por não ser natural.11
Berkouwer entendeu que as Escrituras possuem passagens que “claramente lidam com a
conexão imediata entre a vinda de Cristo na encarnação da Palavra e da salvação de nosso
pecado e condição de perdido.”12 Para esse autor, o Emanuel tem de ser visto como o
cumprimento da profecia de salvação.13
Berkouwer também relatou autores que, segundo Van Oosterezee, defendiam a
encarnação do Verbo mesmo sem pecado: Ireneu, Tertuliano, Orígenes, Thomas de Aquino,
Duns Scotus e Osiander.14 Contudo, parece estranho incluir Ireneu, sendo que no Contra as
Heresias ele impreterivelmente liga a encarnação à necessidade de salvação, ou de
regeneração do homem. Ireneu defendeu que Cristo e Jesus são a mesma pessoa, contrariando
os gnósticos, dizendo: “que por nós sofreu, ressuscitou e voltará, na glória do Pai, para
ressuscitar todo homem, revelar a salvação e aplicar a regra do justo juízo a todos os que estão
submetidos ao seu poder.”15 Adiante, defendeu Ireneu:
Estas palavras (o que está no salmo 82.6,7) são dirigidas aos que recusam o dom da adoção filial, desprezam este nascimento sem mancha que foi a encarnação do Verbo de Deus, privam o homem da sua elevação a Deus e manifestam ingratidão para com o Verbo de Deus, que se encarnou por eles. Este é o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem e o Filho de Deus Filho do homem: para que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho de Deus. Nunca poderíamos obter a incorrupção e a imortalidade a não ser unindo-nos à incorrupção e à imortalidade. E como poderíamos realizar esta união sem que antes a incorrupção e a imortalidade se tornasse o que somos, a fim de que o corruptível fosse absorvido pela incorrupção e o mortal pela imortalidade, e deste modo pudéssemos receber a adoção de filhos?16
10 Cf. Brunner, op. cit., p. 314, 400 . Ver também BARTH, Karl. Dádiva e louvor, Artigos Selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p.394-398.
11 Cf. Brunner, op. cit., p. 26-30.12 BERKOUWER, G. C. The work of Christ. Grand Rapids: William B. Eerdmans Poblishing Co., 1965, p. 29.13 Cf. Ibid, p.29.14 Cf. Berkouwer, The work of Christ, p.25. Ireneu também é citado como defensor da encarnação mesmo sem
pecado por GONZÁLES, Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo vol. 1, a era dos mártires. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 113.
15 Ireneu, Contra as heresias, p.321.16 Ibid, p.336.
16
A citação acima parece indicar, à primeira vista, que o Verbo se encarnaria de qualquer
modo, para que houvesse a união entre Deus e o homem. Mas uma melhor análise dele e em
outros fragmentos de Contra as Heresias17, parece indicar o contrário. A queda é, na verdade,
um caminho inevitável do plano de Deus para que o homem, corruptível, pudesse ser unido a
Deus por meio do Verbo encarnado. De fato, o que Ireneu pareceu defender é que a
encarnação era indispensável para um homem criado com o plano de cair.
Apesar de discordâncias das motivações e das possibilidades quanto a encarnação da
Palavra de Deus, todos, até aqui, concordam em uma coisa: houve encarnação. Essa
afirmativa, no entanto, não se aplica a Paul Tillich, ou mesmo a Schleiermacher, a quem
Tillich citou constantemente. Para Tillich, Jesus não era o Logos encarnado, mas o possuidor,
ou melhor, o possuído pelo Logos.18 O Mediador, por esse fato, não é o Deus salvador, mas
um homem, com uma consciência religiosa plenamente desenvolvida que, por não precisar de
salvação, se torna salvador, sendo o arquétipo de tudo que o homem deve ser, tornado-se o
representante do homem essencial unido a Deus.19
A trindade, para Tillich, deve ser entendida, antes de tudo, a partir do Deus vivo que se
relaciona com o mundo através de suas personae, que nada mais são do que modos diferentes
de relacionamento com o mundo.20 Essa idéia de Tillich o conduz a uma forma de modalismo,
já combatida diversas vezes na história da igreja, e que se mostrou ineficiente para explicar as
evidências bíblicas de um Deus trino, que não apenas se manifesta, mas subsiste na pessoa do
Pai, do Filho e do Espírito.
17 Ibid, p.601.18 Cf. TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1986,
p.119.19 Cf. Tillich, Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p.117.20 Cf. Ibid, p.118.
17
O nascimento virginal
O nascimento virginal é o tema subseqüente à discussão sobre a encarnação do Filho.
Além da veracidade da encarnação da Segunda Pessoa da Trindade, o modo como isso se deu
é alvo de muitos debates na teologia. Se antes os autores estudados se preocupavam com a
realidade e com o que era a encarnação do Logos de Deus, a questão agora é sobre a realidade
da afirmativa bíblica do nascimento virginal de Jesus.
Ireneu entendeu o nascimento virginal como parte da obra de mediação de Cristo. Jesus
teria de recapitular em si todas as condições de Adão, e como Adão foi gerado da terra
“virgem”, então o segundo Adão, o novo representante teria de nascer de uma virgem.21 Maria
seria a provedora da semelhança humana e da imagem de Deus dada ao primeiro Adão, e sua
virgindade representava a da terra usada para modelar Adão.22
Berkouwer também defendeu o nascimento virginal de Cristo. Sua afirmativa nesse
sentido seguiu o caminho natural da interpretação que igreja deu às narrativas bíblicas do
nascimento do Senhor. Diante disto, Berkouwer enfatizou que as opiniões contrárias ao
nascimento virginal iniciaram-se com o questionamento da veracidade e autoridade das
Escrituras.23 Berkouwer entendeu que essa é justamente a importância do nascimento virginal:
os relatos bíblicos que o descrevem como o cumprimento do sinal anunciado pelo profeta
Isaías: “Portanto, o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que a virgem conceberá e dará à luz
um filho e lhe chamará Emanuel.” (Isaías 7.14).
Brunner, mesmo diante dos argumentos escriturísticos como os mencionados por
Berkouwer, entendeu que o nascimento virginal não era biblicamente comprovável. Em sua
obra, The mediator, Brunner defendeu que a “teoria” da concepção virginal obscurece o
significado da mensagem que Deus quis transmitir com a encarnação.24 Ele viu dificuldade em
21 Cf. Ireneu, Contra as heresias, p. 349.22 Cf. Ibid, p. 350.23 Cf. Berkouwer, The work of Christ, p. 97.24 Cf. Brunner, The Mediator, p. 322.
18
apoiar esta “teoria” por não ter visto nenhuma ênfase na mesma fora dos Evangelhos que a
mencionam (Mateus e Lucas). Por essa razão, Brunner atribui a doutrina ao dogma da igreja
visto no Credo Niceno.25 Este tipo de argumentação desconsidera o fato de que cada escritor
sagrado tinha a intenção de ensinar determinados assuntos e de dar ênfase a fatos que os
auxiliassem a comprovar as doutrinas por eles ensinadas.
Contudo, Brunner foi além. Partindo de um princípio que tem mais a ver com a biologia
do que com a teologia, Brunner argumentou que o nascimento virginal não faz jus à dupla
natureza de Cristo. Para que Cristo seja de fato homem, tem de ter tudo que o homem tem, ou
seja, receber o sêmen masculino; o contrário não é torná-lo grande, mas menor que todos os
outros homens, como se faltasse algo em Cristo que está presente em todos os outros
homens.26 Brunner concluiu que a “teoria” do nascimento virginal tinha mais a ver com o
helenismo e o ascetismo do que com a Bíblia.27
Por outro lado, Calvino, em tempos de pouco desenvolvimento da biologia e, mesmo
com grande influência católica ao seu redor, não se demonstrou ascético quanto ao
relacionamento sexual. Pelo contrário, Calvino não entendia que a relação entre homem e
mulher fosse pecado ou algo a ser rejeitado, ou mesmo que a mulher não contribuísse na
formação da criança, como foi costume se pensar assim.28 Em seu entendimento o nascimento
virginal de Cristo não está ligado ao seu estado de homem sem pecado, pois este se deu pela
ação do Espírito Santo, e tem a ver com o cumprimento da promessa de Deus.29
De igual forma pensou Bavinck, acrescentando não só a ação do Espírito Santo na
encarnação, mas a do próprio Filho. Segundo o autor, Cristo foi ativo em sua encarnação, se
fazendo carne e eliminando a vontade da carne e do homem, preparando para si mesmo uma
natureza humana, de modo virginal em Maria, sem ação de homem.30 Para Bavinck, de certo
25 Cf. Ibid, p.323,324.26 Cf. Ibid, p.325.27 Cf. BRUNNER, Emil. Dogmatik II, p. 421, in: Berkouwer, The work of Christ, p. 102.28 Cf. Calvino, Inst., II.13.3, p.354.29 Cf. Ibid, II.13.4, p.354,355.30 Cf. Bavinck, Teologia sistemática, p. 357-359.
19
modo, existe uma relação entre o nascimento virginal e a santidade de Cristo, mas não como
causa, mas como um resultado de uma geração sobrenatural que não coloca sobre Cristo a
culpa de Adão. Aparentemente, o que tornou Cristo sem pecado foi sua concepção
sobrenatural, da qual ele mesmo participou, dando a impressão de que Bavinck via que a pré-
existência de Cristo unida à sua impecabilidade, aplicada à concepção pelo Filho e pelo
Espírito, era a causa da impecabilidade da pessoa divino-humana, que se consumou numa
concepção assexuada e, conseqüentemente, no nascimento virginal.
Berkhof, ao fazer referência a Lucas 1.35, defendeu o nascimento virginal de Cristo. Em
sua opinião, seguindo as Escrituras, Cristo recebeu a natureza humana com a ação direta da
sobrenatural paternidade de Deus.31 Conforme enfatizou Heber Campos, essa paternidade fora
anunciada anteriormente a Maria, que recebeu do anjo a informação de que o fruto de seu
ventre seria envolvido pela ação sobrenatural de Deus.32 Além deste importante detalhe que
reforça a realidade do nascimento virginal, Campos ressaltou que Maria é ligada à virgem de
Isaías 7.14, texto sobre o qual Campos realizou extenso estudo sobre a palavra hebraica para
virgem, chegando à conclusão de que o texto se refere a uma virgem que não teve relações
com homens.33 Somado a isso, Campos também chamou a atenção para o fato de que José
intentou deixar Maria quando soube de sua gravidez e que também recebeu a vista do anjo
que lhe anuncio a vinda de Cristo, e revelou-lhe o nome e ação miraculosa do Espírito Santo,34
mostrando que ele não participou da concepção de Jesus e que se aceitou a situação é porque,
de fato, foi convencido por Deus, através do anjo em sonho.
Ficou evidente que a discussão sobre o nascimento de Jesus é importante. O milagre da
concepção e no nascimento de Cristo é fundamental para a fé Cristã, que se sustenta sobre o
Filho de Deus encarnado, profetizado como o Messias que nasceria de uma virgem. O
31 Cf. Berkhof, Teologia sistemática, p. 314.32 Cf. CAMPOS, Heber Carlos de. As duas naturezas do redentor. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 420.33 Cf. Campos, As duas naturezas do redentor, p. 414-419.34 Cf. Ibid, p. 420-425ss.
20
Redentor, ou Mediador, tem de ser aquele que cumpre todos os sinais anunciados pelos
profetas, ou não haveria motivo algum para que se confiasse nele.
As duas naturezas de Cristo
As duas naturezas de Cristo sempre foram alvo das mais acirradas lutas dentro da igreja
Cristã. Um simples estudo da história do cristianismo é o suficiente para se constatar quantas
heresias e quantas disputas foram travadas entorno do assunto. Houve quem negasse a
divindade de Jesus, e quem negasse sua humanidade, fazendo de Cristo um fantasma com
aparência de homem. Também houve aqueles que viam as duas naturezas de modo indistinto,
ou totalmente misturadas na pessoa do Redentor, e aqueles que viam a existência de Jesus de
uma forma esquizofrênica, que ora era o Cristo, o Logos divino, e ora era o homem Jesus. A
literatura, no passar desse tempo, não enfraqueceu a discussão, mas pareceu encontrar novas
versões para antigas idéias e novas formas de reafirmar o que foi decido como correto no
passado.
Ireneu de Lião já defendia a dupla natureza de Cristo no ano de 180 d.C. Ele já
identificava como heresia as teorias gnósticas que viam distinção entre o Verbo e Jesus, como
tendo o primeiro descido sobre o segundo num momento após o nascimento.35 Agostinho de
Hipona, em sua obra A Trindade, defendeu a divindade do Filho, tomando como pressuposto
a sua humanidade, e afirmando ser Jesus um com Deus Pai.36 Ou seja, desde o início da Igreja
a divindade do filho é defendida.
Anselmo também defendeu a dupla natureza de Cristo. Para ele, como será visto adiante,
somente o Deus-homem poderia ter feito a obra que era necessária. Anselmo descreveu Jesus
como tendo duas naturezas, e que as mesmas não se misturavam, pois, nesse caso, formariam
35 Cf. Ireneu, Contra as heresias, p.314, 315.36 Cf. AGOSTINHO de Hipona. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 33-37.
21
uma terceira que nem poderia ser homem para representar homem, nem poderia ser divina
para ter o valor necessário à oferta.37
Calvino entendeu que as Escrituras davam testemunho da dupla natureza de Cristo. Ele
defendeu o uso do termo homousios, que iguala a natureza do Filho com a do Pai, e repudiou
a doutrina de Sabélio que interpretou os termos Pai, Filho e Espírito como sendo apenas
títulos diferentes dados a Deus.38 Calvino ressaltou que o Verbo de Deus que criou todas as
coisas do Evangelho de João é o mesmo Filho de Deus que sustenta todas as coisas pela
palavra de seu poder de Hebreus.39 Adiante em sua obra, ao descrever o papel do Mediador,
Calvino defendeu que este deveria ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem.40
Por sua vez, Warfield mencionou diversos autores que eram contrários à doutrina das
duas naturezas de Cristo. Os autores, vistos em suas citações, rejeitavam a doutrina por causa
da dificuldade de explicá-la e por causa do conhecimento que o homem havia adquirido até
aquele momento.41 Para tais autores, entre os quais Warfield inclui Albert Schweitzer, a
doutrina das duas naturezas foi criação do Concílio de Calcedônia. Contudo, Warfield
remontou a existência da doutrina até os pais da igreja como Clemente de Roma, Mileto de
Sardes e Orígenes,42 finalmente ligando-a ao Novo Testamento, indicando que a doutrina
existe desde o início da igreja, sendo a perspectiva natural sobre a pessoa de Cristo.43
Neste ambiente do Novo Testamento, Warfield demonstrou que o Verbo encarnado do
Evangelho de João, ligado diretamente à natureza divina, é o mesmo Cristo mencionado por
Paulo em diversas passagens que o identificam como o Deus que encarnou (Fl 2): Jesus
37 Cf. Anselmo, Por que Deus se fez homem?, p. 107.38 Calvino, Inst., I.13.4, p.68,69.39 Cf. Calvino, Inst., I.13.7, p.71,72.40 Ibid, II.12.1, p. 341,342.41 Warfield, The person and the work of Christ, p. 211,212.42 Cf. Ibid , p. 214.43 Cf. Ibid, p. 215.
22
Cristo; que, com o Pai, é o único Deus.44 Esse é o mesmo do Evangelho de Marcos, que o
identifica como o “Filho de Deus” e o “Filho do homem”.45
Brunner aceitava a dupla natureza de Cristo, que era o grande paradoxo que tanto o
deslumbrou. Para ele, a presença de ambas em Jesus era um paradoxo que tornava o Redentor
o fato histórico único e central, pois ele derrubou as barreiras entre o homem e Deus, trazendo
a realidade da categoria não criada para a criada.46 Foi por essa transposição da barreira entre
Deus e o homem, que Jesus fez, que ele é chamado de Mediador. A figura do Mediador,
então, segundo Brunner, é daquele que, sendo Deus, encarna, atravessando o “golfo” entre
Deus e o homem, e se torna o Deus-homem.47
Barth não só aceitou a duas naturezas, pois as mesmas são necessárias para que Cristo
fosse o paradoxo do Deus totalmente outro, mas também homem,48 como as via unidas, porém
não misturadas. Ao descrever o papel das duas naturezas em Jesus, Barth viu que este era as
duas coisas, Deus e homem, inseparável e também inconfundível, ou seja, o que era divino
não se tornou humano e tão pouco o humano se tornou divino, ainda que tenha sido exaltado
por este.49
Hodge descreveu a pessoa de Cristo como tendo as duas naturezas. Ele afirmou que
Cristo tinha corpo verdadeiro, que pôde ser crucificado e tocado, bem como alma racional,
pois é descrito que Cristo nasceu, cresceu com o desenvolvimento natural de um homem,
tendo todas as fases próprias desse desenvolvimento.50 Augustus Hopkins Strong acompanhou
Hodge nessa mesma argumentação, enfatizando as sensações e limitações da humanidade de
Cristo.51 Hodge defendeu, inicialmente, a natureza divina apontando o fato de que foram
44 Cf. Warfield, The person and The work of Christ, p. 219-231.45 Cf. Ibid, p. 234.46 Cf. Brunner, The Mediator, p. 234-240, 242.47 Cf. Brunner, The Mediator, p.404.48 Cf. Barth, Dádiva e louvor, p.393-398.49 Cf. Ibid, p. 394, 395.50 Cf. HODGE, Charles. Teologia sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001, p.766-767.51 Cf. STRONG, Augustus Hopkins. Teologia sistemática. São Paulo: Hagnos, 2003, p.318-321.
23
atribuídos a Cristo os mesmos nomes, títulos e obras de Deus,52 e no mesmo sentido seguiu
Strong.53 Contudo, Hodge teve um grande cuidado em demonstrar que as duas naturezas de
Cristo não se misturavam, mas estavam presentes na pessoa do Redentor e comunicavam seus
atributos à pessoa, e não de uma natureza à outra, não havendo qualquer tipo de mistura ou
descaracterização de alguma delas.54
Strong distanciou-se de Hodge ao descrever a união das duas naturezas. De fato ele
entendeu que as duas naturezas estavam unidas, indivisivelmente e não misturadas, mas
defendeu que havia comunicação de atributos, ou melhor, a obras de Cristo deveriam ser
atribuídas a quaisquer das naturezas.55 No entanto, é difícil defender uma atribuição de obras a
qualquer das duas naturezas sem que isso signifique mistura entre elas. Se não se pode separar
as obras e entender a que natureza estão ligadas, é porque as elas estão misturadas. Berkhof
defendeu o contrário de Strong, afirmando que a obra deve ser aplicada à pessoa divino-
humana de Cristo e não a qualquer uma das naturezas, o que seria incorrer no erro da
communicatio idiomatum entre as naturezas e não entre cada uma das naturezas com a Pessoa
de Cristo.56
Por outro lado, Berkhof não entendeu que a união das duas naturezas não causasse
alguma influência entre elas. Além da communicatio idiomatum (comunicação de atributos
das naturezas à pessoa de Cristo), e da communicatio operationum (comunicação da obra
consumada), Berkhof defendeu a communicatio charismatum, que é a comunicação de dons, e
não de atributos, à natureza humana de Jesus por causa da natureza divina.57 Esses dons
foram:
(1) a graça e a glória de estar unida ao Logos divino, pela qual a natureza humana é elevada acima de todas as criaturas e até se torna objeto de adoração; e (2) a gratia habitualis… dons do Espírito, em
52 Cf. Hodge, Teologia sistemática, p. 767.53 Cf. Strong, op. cit., p.330-332.54 Cf. Hodge, op. cit., p.770-776.55 Cf. Strong, Teologia sistemática, p. 335.56 Cf. Berkhof, Teologia sistemática, p. 324.57 Cf. Idem.
24
particular os do intelecto, da vontade e de poder, pelos quais a natureza humana de Cristo foi exaltada acima de todas as criaturas inteligentes.58
Berkhof, contudo, ainda que tendo identificado tantas características e fatos das duas
naturezas, viu na união das duas um mistério ainda insolúvel. Ele constatou alguma
similaridade na antropologia quanto à união do corpo e da alma sem que estes se misturem,
mas ainda assim não como suficiente para se entender a profundidade da pessoa divino-
humana de Cristo.59
A ligação da pessoa e obra de Cristo
É neste ponto que a importância de se entender a realidade das duas naturezas de Cristo
se torna visível. Somente uma pessoa como ele, divino-humana, é quem poderia realizar a
obra que ele fez. Essa conexão entre a pessoa e obra de Cristo é largamente vista na literatura.
Berkouwer salientou que a pessoa e obra de Cristo são indivisíveis e que as Escrituras sempre
descrevem a pessoa de Cristo por sua obra, diante da qual a Igreja confessa em adoração ser
Cristo verdadeiro Deus e homem, reconhecendo a direta ligação entre a pessoa e obra de
Jesus.60 Segundo Berkouwer, toda dádiva de Cristo perde valor quando separada dele, pois ele
não pregou bênçãos em si mesmas, mas tudo a partir dele e com ele.61
Anselmo, buscando responder a pergunta: - por que Deus se fez homem?; debruçou-se
sobre a obra que deveria ser realizada. Partindo da incapacidade de um homem satisfazer a
vontade de Deus,62 ele mostrou que, mesmo assim, Deus queria que um homem satisfizesse
sua vontade, mostrando a necessidade de que o Redentor fosse humano.63 Considerando,
58 Berkhof, Teologia sistemática, p 324. 59 Cf. Ibid, p. 325.60 Cf. Berkouwer, The work of Christ, p. 19.61 Cf. Ibid, p. 20.62 Cf. Anselmo, Por que Deus se fez homem?, p. 21 e 109.63 Cf. Ibid, p.40.
25
então, o tamanho da dívida assumida pelo homem diante de Deus, Anselmo concluiu que
somente um homem com valor maior do que tudo que foi criado poderia pagar tal dívida, e
que somente Deus poderia providenciar tal valor e somente um ser divino poderia ter tal
valor.64 Por estas razões, concluiu Anselmo, é que somente um ser que fosse Deus-homem
poderia cumprir tal papel.65
Calvino, assim como Anselmo, ligou a pessoa divino-humana de Cristo com sua obra.
Cristo não poderia substituir homem sem ser homem, tão pouco obedecer a vontade de Deus
se não fosse servo.66 Ao mesmo tempo, Calvino admitiu que a obra realizada não poderia ter
sido feita por um mero homem, pois a mesma excede todas as faculdades humanas.67
Warfield, por sua vez, descreveu a teologia humanitária de Cristo, que defendia ser Jesus
apenas homem, ainda que acima da média.68 Contudo, Warfield considerou tal teologia anti-
bíblica e, levando em consideração toda a obra de Cristo e sua profundidade, bem como sua
dificuldade, não viu meios de que a mesma fosse realizada senão por uma pessoa divino-
humana.69 Segundo Warfield, Jesus teria afirmado que sua carreira era maior do que a que um
simples homem poderia suportar.70 Somente assumindo as duas naturezas como base para a
obra de Cristo é que, segundo Warfield, poder-se-ia explicar a vida singular de Jesus com sua
sabedoria, santidade, humilhação, amor, inteligência, dentre outros fatores que tornaram a
vida de Cristo mais do que a de um mero homem.71
Brunner deixou clara a ligação que a obra de Cristo tem com sua pessoa. Para ele, Cristo
era de fato homem para que pudesse, antes de tudo, tornar-se fato histórico, ou seja, teria de
entrar na categoria temporal para poder se tornar o evento histórico único.72 A necessidade de
64 Cf. Anselmo, Por que Deus se fez homem?, p. 104.65 Cf. Ibid, p.107, 108.66 Cf. Calvino, Inst., III.11.9, p. 564, 565.67 Cf. Ibid, III.11.9.p. 565.68 Cf. Warfield, The person and work of Christ, p. 189-208.69 Cf. Ibid, p. 207, 256.70 Cf. Ibid, p. 253.71 Cf. Ibid, p. 261, 262.72 Cf. Brunner, The Mediator, p. 26-28.
26
tal fato era a de que Deus se revelasse e, para tanto, Brunner entendeu que somente através de
Deus, Deus se revela, portanto, Cristo tinha de ser Deus, além de homem.73 A encarnação que
fez do Filho a pessoa divino-humana do Redentor, ao transpor o abismo entre Deus e os
homens, ligando-os novamente, é a obra de Cristo que, segundo Brunner, é a derrubada de
barreiras criadas pela culpa do pecado; uma exigência da santidade de Deus, e prometida pelo
pacto.74
De igual modo argumentou Barth. Cristo é o “diálogo no qual Deus e o ser humano se
encontram e estão lado a lado, trata-se da realidade do pacto firmado, mantido e cumprido por
ambos os lados.”75 Barth, portanto, descreveu a pessoa divino-humana do redentor como
sendo necessária para a obra de mediação entre Deus e os homens, garantindo o livre direito
de Deus frente o ser humano e deste perante Deus.76 A conclusão de Barth foi que Cristo se
tornou o revelador de Deus, aproximando-se de Brunner, e revelador do ser humano,
tornando-se em si mesmo o pacto.77
Strong ligou a dupla natureza de Cristo com sua obra, ressaltando a dupla representação
de Cristo: diante de Deus e dos homens.78 Sendo homem, Cristo poderia representar os
homens e fazer expiação e, como Deus, a oferta feita por Cristo, ele mesmo, teria valor
infinito.79 Strong ainda acrescentou que sendo Deus e homem Cristo poderia “mudar os
corações dos ofensores e constrangê-los à submissão e amor.”80
A obra de mediação
73 Cf. Ibid, p. 201, 212.74 Cf. Brunner, The Mediator, p. 399-404, 428, 455-477.75 Barth, Dádiva e louvor, p. 394, itálicos do autor.76 Cf. Barth, Dádiva e louvor, p. 395.77 Cf. Barth, Dádiva e louvor, p. 395.78 Cf. Strong, Teologia sistemática, p. 353.79 Cf. Ibid, p. 353.80 Ibid, p. 353.
27
A obra de mediação de Cristo é o ponto culminante de tudo o que foi visto. Esse é o
objetivo de toda a história do nascimento e das naturezas de Cristo, como já pode ser visto.
Contudo, de que modo definem a obra de mediação, ou o que está englobado nesta obra? Os
aspectos da obra de Cristo estão ligados à obra de Mediação, mas esta revisão busca em linhas
gerais o que trouxe esses aspectos (redenção, reconciliação, justificação, santificação, o envio
do consolador, chamado e etc), ou o que, de fato, Cristo realizou para alcançar os mesmo.
Ireneu entendeu que a obra de mediação começa no nascimento virginal em si. Para ele,
Jesus fez uma recapitulação da origem de Adão, ou seja, da terra virgem, e diz ter sido o
nascimento virginal tal recapitulação.81 O passo seguinte seria o de levar seus discípulos à
comunhão com Deus, para tanto, não bastaria uma confissão de boca, mas a conduta dos
discípulos deveria condizer com tal, por isso Cristo foi o revelador da lei que complementa o
Antigo Testamento.82 Por último, Cristo se entregou como resgate de nossa dívida, para que,
então, o Espírito habitasse no homem estabelecendo a comunhão entre Deus e homens.83
Anselmo desenvolveu melhor a representação dos homens por Jesus. Ao explicar a
necessidade da encarnação, Anselmo deixou claro que Jesus deveria representar homens
sendo homem, para morrer pelos menos, e ser Deus para ter valor infinito para representar
mais do que apenas um homem.84
Calvino, basicamente, entendeu a mediação por duas frentes. A primeira, a da obediência
à lei, que trouxe os favores de Deus para os salvos.85 A segunda frente foi sua morte, que
pagou a dívida com Deus e desviou sua condenação de sobre os eleitos.86 Dentro destas
frentes, Calvino desenvolveu a teologia do tríplice ofício de Cristo87, com a qual Hodge
descreveu a obra de mediação de Cristo; para isso, Cristo cumpriu em si mesmo todas as
81 Cf. Ireneu, Contra as heresias, p. 349.82 Cf. Ireneu, Contra as heresias, p. 401.83 Cf. Ibid, p. 519.84 Cf. Anselmo, Por Deus se fez homem?, p. 105.85 Cf. Calvino, Inst., II.17.3, p. 394-395.86 Cf. Ibid, II.17.87 Cf. Ibid, Profeta: II.15.1ss; Sacerdote: II.12.1, 4; Rei: II.6.2ss.
28
profecias e todas as figuras do Antigo Testamento.88 Como profeta, Cristo era a manifestação
e fonte de todo conhecimento, dando instruções pessoais, que é continuado pelos apóstolos e
pelas Escrituras.89 Como sacerdote ele agiu em favor dos homens, oferecendo um sacrifício,
agindo assim, como intercessor do povo.90 Como Rei, Cristo é soberano sobre todos que estão
em qualquer parte da criação, e como Rei do Universo e do mundo espiritual, Cristo conduz
os seus para sua glória.91
Brunner tem uma definição do ministério do mediador, segundo ele, muito teocêntrica.92
Antes de tudo, o Mediador é alguém que veio revelar a Deus, trazer o conhecimento
necessário para que os homens pudessem conhecer aquele que os criou, e para que Deus se
fizesse conhecer.93 O principal meio de Cristo mediar a relação entre Deus e o homem é
revelando, em si mesmo, a verdade, reaproximando o homem de Deus.94 Isso por ser a
verdade o bem absoluto, idêntico ao ser e a vontade do Deus pessoal.95 Essa revelação que
Cristo fez se deu na encarnação que possibilitou a comunhão do divino com o humano,
através de suas duas naturezas, a qual foi consumada pelo sacrifício de Cristo.96 Este sacrifício
tirou a culpa do homem que o separa de Deus; tal separação se deu, primeiro, por causa do
homem, que não esquece o passado, sempre remoendo seus pecados e, depois, porque Deus
não aceita pecado.97
Bavinck acompanhou a Calvino e Hodge ao descrever a obra de mediação. Ele descreveu
o Messias relatando sua obra a partir de seus ofícios de Profeta, Sacerdote e Rei.98 Berkouwer
88 Cf. Hodge, Teologia sistemática, p. 826.89 Cf. Ibid, p. 829.90 Cf. Hodge, Teologia sistemática, p. 830.91 Cf. Ibid, p. 926-938.92 Cf. Brunner, The Mediator, p. 408.93 Cf. Brunner, The Mediator, p. 26ss.94 Cf. Ibid, p. 28-33.95 Cf. Ibid, p. 212.96 Cf. Ibid, p. 400.97 Cf. Ibid, p. 443-482.98 Cf. Bavinck, Teologia sistemática, p. 321-328.
29
também descreveu os ofícios de Cristo, contudo ele ressaltou os momentos cruciais da vida de
Cristo para descrever a obra do Mediador: sofrimento, ressurreição, ascensão e glorificação.99
Para Berkouwer cada um desses momentos foi singular e de grande significado, sendo
que os sofrimentos de Cristo eram a mão de Deus guiando o homem para conduzir Cristo em
seu martírio, suportando o que o homem não poderia suportar, sendo ele um inocente, gerando
o bem de um sofrimento.100 Na ressurreição, Cristo derrotou a condenação do pecado, a morte,
e manifestou efetivamente a salvação.101 Então, após a ressurreição, o foco recai sobre a
ascensão de Cristo. Esta é a manifestação do poder, da glória e da majestade de Jesus. Em sua
ascensão, Jesus como homem deixou a terra para viver à destra de Deus, reinando e
dominando sobre a terra e sobre sua igreja, através do Espírito.102
Os ofícios de Cristo
Os ofícios de Cristo estão presentes em diversas das obras até aqui tratadas. Todas os
tratam como aspectos da obra de sua obra, ou como a definição da mesma. Berkouwer
levantou uma pequena e antiga discussão sobre a realidade dos ofícios de Cristo e a definição
dos mesmos103, contudo, tal discussão não será abordada nesta revisão, pois as outras obras
aqui trabalhadas não o fazem, e a presente dissertação já parte do pressuposto da realidade dos
ofícios de Cristo.
Calvino foi um grande defensor do tríplice ofício de Cristo. Ele entendia que Jesus de
fato era um oficial a começar por ser o Cristo, e por ter sido enviado por Deus ao mundo, ou
seja, comissionado para uma missão.104 Em seu ofício profético, Jesus, segundo Calvino, era o 99 Cf. Berkouwer, The work of Christ, p. 135-241100 Cf. Ibid, p. 135ss.101 Cf. Berkouwer, The work of Christ, p. 186.102 Cf. Berkouwer, The work of Christ, 202-232.103 Cf. Berkouwer, The Work of Christ, p. 58-87104 Cf. Calvino, Inst., II.15.1,2, 365,366.
30
cumprimento de todas as profecias, tanto no sentido de satisfazer o que elas anunciavam,
quanto no sentido de ser ele o clímax da revelação, pois ensinava todas as coisas,
esclarecendo o que fora ensinado sobre salvação pelos antigos profetas.105 Por este fato, Jesus
é o fim das profecias, pois se tornou o profeta acima de todos os outros, em quem se cumpre a
profecia de Deuteronômio 18.15, como pode ser visto em Mateus 3.17, 17.5.106
Além de profeta, Calvino viu Jesus como rei. Em seu reinado, segundo Calvino, Jesus
exerceria seu poder sobre sua igreja e sobre o indivíduo.107 Por isso, seu reino é de natureza
espiritual, caso contrário pouco se aproveitaria aos súditos de Jesus se seu reino fosse deste
mundo, tendo em vista o estado de miséria em que o crente ainda vive.108 Além disso, o poder
de Jesus é exercido por meio do Espírito Santo que dá dons à igreja, mantendo-a fiel, gloriosa
e firme eternamente.109
Quanto ao sacerdócio de Cristo, Calvino ressaltou o caráter mediatório do mesmo. O
pecador diante das portas cerradas do céu precisava de um mediador santo que o reconciliasse
com Deus.110 Devido à perfeição da obra e da pessoa de Cristo, o resultado é não só a
satisfação de Deus, como a confiança na morte e intercessão de Cristo.111
Charles Hodge concordou com Calvino quanto ao tríplice ofício. Ele viu inúmeras razões
bíblicas para tal, mas ressaltou que ainda que os ofícios ocorressem em pessoas distintas no
passado, ou mesmo que em algumas ocorresse mais de um ofício, os mesmos eram sempre
bem distinguidos. Em Cristo essa distinção era difícil, de forma que seus ofícios cumulavam
de forma mais cooperativa, pois enquanto ensinava agia como sacerdote cuidando do pecado
das pessoas e avançava com seu reino na alma daqueles que eram libertos da prisão do
105 Cf. Idem.106 Cf. Ibid., II.15.2, p. 366.107 Cf. Ibid., II.15.3, p. 367.108 Cf. Ibid., II.15.4, p. 368.109 Cf. Ibid., II.15.5, p. 369,370.110 Cf. Ibid., II.15.4, p. 371.111 Cf. Ibid., II.15.6, p. 371,372.
31
pecado.112 Ainda assim isso é estranho, pois a ênfase está, neste caso, em um ofício. Caso
contrário, todos os profetas poderiam ser chamados de sacerdotes e reis.
Quanto ao ofício profético, Hodge apresentou Jesus como “o grande órgão de Deus para
comunicar sua mente e vontade aos homens.”113 O funcionamento desse órgão foi executado
de quatro formas básicas, segundo Hodge.114 (1) Jesus é o logos divino, portanto, fonte de
todo conhecimento verdadeiro. (2) Sendo assim ele é o sustento de toda profecia, mesmo as
anteriores à sua encarnação. (3) Ele era a própria mensagem, ou seja, ele falava sobre si
mesmo. (4) E ainda continua profetizando por meio da operação de seu Espírito, que agiu nos
apóstolos tornando-os infalíveis quanto à revelação, da qual ainda se tem as Escrituras, as
quais ainda revelam por meio daqueles que são chamados ao ministério da palavra.
Hodge dedicou muito tempo ao sacerdócio de Cristo. Defendeu-o como sendo o
sacerdote que pode, verdadeiramente, aproximar o homem de Deus, algo que só foi feito
figuradamente pelos sacerdotes levíticos.115 E esse papel de fazer a obra de Deus em favor dos
homens é justamente a definição de sacerdote que Hodge retirou do Novo Testamento, para
ser mais exato de Hebreus, epístola essa que teria apresentado todas as provas do sacerdócio
de Cristo.116 Por fim, Hodge demonstrou a satisfação de Deus no sacerdócio de Cristo, como
sendo suficiente e final devido à perfeição de Jesus, portanto de sua oferta e obra, que de fato
salvam.117
Quanto o ofício régio de Cristo, Hodge reconhece-o como rei de toda a criação, 118
contudo coloca seu reino como sendo algo estabelecido antagonicamente ao de satanás,
criando um problema não só cronológico, como epistemológico.119 Sendo Deus o criador de
todas as coisas, como pode seu reino ser antagônico àquele que o sucedeu? Satanás foi quem
112 Cf. Hodge, Teologia Sistemática, p. 826.113 Ibid., p. 828.114 Ibid., p. 829.115 Cf. Ibid., p. 831.116 Cf. Idem.117 Cf. Ibid., p. 842-844, 854-874.118 Cf. Ibid., p. 931,932.119 Cf. Hodge, Teologia Sistemática, p. 929.
32
ser revoltou, não o contrário. Apesar disto, porém, Hodge defendeu consistentemente o
reinado de Cristo mostrando, assim como Calvino, que Jesus possui um reino espiritual, que
se estende nos corações dos que crêem, tendo em vista que a fé e o arrependimento são os
termos de admissão para seu reino.120 No entanto, ao enfatizar a espiritualidade do reino de
Cristo, Hodge foi tão categórico que limitou este reino ao dizer que Jesus não possui “poder
sobre a vida, a liberdade ou propriedade de seus membros; e porque todas as questões
seculares estão além de sua jurisdição.”121 Ele escreveu de modo tão enfático, que restringiu a
prerrogativa de Cristo ao simples ato de declarar a verdade de Deus, excluindo qualquer
domínio sobre questões não religiosas deste mundo.122
Tal posição não é compartilhada por Strong, que defendeu que o domínio de Cristo se
estende sobre todo o universo, pois ele o sustenta, governa e julga o mundo.123 Além disto,
assim com Calvino e Hodge, Strong entendeu que o reino de Cristo é espiritual e se faz
presente em sua igreja militante, a qual recompensará com a plena contemplação de sua
revelação no dia do juízo.124
Quanto ao ofício profético, Strong entendia que esse era exercido por um homem que
seria a boca Deus.125 Para exercer tal função, segundo Strong, Cristo teria usado os três
métodos tidos por ele como sendo dos profetas: ensino, predição e operação de milagres.126
Além disto, esse autor dividiu a obra profética de Cristo em quatro estágios. (1) Antes da
encarnação, sustentando os antigos profetas. (2) Quando encarnou, pregando diretamente. (3)
Por meio do Espírito em sua igreja. (4) Por último, na eternidade, revelando o Pai aos santos
em glória para todo o sempre.127
Strong trabalhou extensamente o ofício sacerdotal de Cristo, por quase cem páginas,
120 Cf. Ibid., p. 932,933.121 Ibid., p. 935.122 Idem.123 Strong, Teologia Sistemática, p. 467.124 Cf. Ibid., p.467,468.125 Cf. Ibid., p. 371.126 Cf. Idem. 127 Cf. Ibid., p. 372-374.
33
mostrando a centralidade do mesmo na cristologia. O exercício de tal ofício foi realizado em
dois aspectos: pela entrega da oferta e fazendo intercessão.128 Quanto à obra sacrificial, Cristo
a fez afirmando a santidade de Deus obedecendo a lei, fazendo-se o homem que todos
deveriam ser, além disso, entregou esse homem diante de Deus, trazendo sobre si os
sofrimentos ao receber as penalidades dos pecadores.129 Como intercessor, Jesus age
garantindo as bênçãos ao seu povo através dos méritos de sua obediência e sacrifício.130 Disso
vêem dois objetivos da intercessão de Cristo: garantir bênçãos temporais e assegurar as
dádivas divinas necessárias para a salvação.131
Por último, Strong abordou o ofício real entendendo que o mesmo está firmado na
soberania do Redentor. No entanto, essa soberania é a pertencente ao ser divino-humano e só
passou a ser exercida a partir da sua entrada no estado de exaltação.132 Ela tem de ser
distinguida da soberania pertencente ao Filho por ser Deus, pois lhe foi dada através de seu
ofício, a fim de dirigir todas as coisas no céu e na terra para a execução da salvação.133 Para
essa execução, Cristo dirige o universo, sustentando-o, governando e julgando o mundo,
revelando seu reino de poder.134 Seu reino de graça é revelado por meio de sua igreja
militante, a qual ele fundou, legisla e amplia na terra.135
Berkhof também trabalhou com esses aspectos de reino de poder e de graça, mostrando
justamente que o primeiro é o governo de Cristo sobre o universo e o segundo sobre sua
igreja.136 Porém, Berkhof ressaltou que mesmo em seu reino de poder, o Redentor o exerce
fazendo com que todas as coisas cooperem para o bem de sua igreja.137 Por sua vez, Strong
entendeu que a partir dessa igreja militante o Redentor fará a igreja gloriosa, a qual é seu povo
128 Cf. Strong, Teologia Sistemática, p. 375.129 Cf. Ibid., p. 376-379.130 Cf. Ibid., p. 464.131 Cf. Ibid., p. 465.132 Cf. Ibid., p. 466.133 Cf. Ibid., p. 466,467.134 Cf. Ibid., p. 467.135 Cf. Ibid., p. 467.136 Cf. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 407-412.137 Cf. Ibid., p. 411.
34
redimido e recompensado com a plena revelação do seu reino, o que ocorrerá na ressurreição
e no juízo.138
Berkhof ainda trabalhou com a natureza do reino de Cristo. Em seu texto, observa-se que
o reino de Cristo classificado como o reino de graça, conforme visto acima, é de natureza
espiritual, pois ocorre nos corações e nas vidas dos crentes. Além disso, é um reino espiritual
“porque leva direta e imediatamente a um fim espiritual, a salvação do Seu povo.”139[sic] Por
essa razão, além de espiritual, o reino de Cristo já é presente, pois já se manifesta nas vidas
dos crentes.140 Ademais, o reino de graça é futuro quanto à sua manifestação plena, a qual se
dará na volta de Cristo, quando tudo o que estive oculto for revelado a todos,
majestosamente.141 Apesar dessa descrição em termos de presente e futuro, para Berkhof, o
reino de Cristo é eterno, pois sempre existiu em meio à criação, pelo fato do Mediador ter
recebido na eternidade sua incumbência real, a qual não encontrará fim.142 Contudo, o reino de
poder não tem o mesmo caráter eterno, pois ele terminará com a consumação da obra
salvadora de Cristo.143 No entanto, tendo em vista que esse é o reino de Cristo com o fim de
conduzir todas as coisas para a salvação de seu povo, isso parece estranho, pois tendo
purificado a terra de todo o mal, o reino de poder e de graça deveriam fundir-se, já que os
efeitos de ambos os reinos se manteriam permanentemente.
Conclusão
Entender cada uma dessas partes tem grande importância. A obra do Mediador
desenvolve-se fundamentada em sua própria pessoa. Somente uma pessoa como ele poderia 138 Cf. Strong, op. cit., p. 468.139 Berkhof, Teologia Sistemática, p. 407.140 Cf. Ibid., p. 409.141 Cf. Ibid., p. 410.142 Cf. Ibid., p. 410,411.143 Cf. Ibid., p. 412.
35
desempenhar o papel descrito nas Escrituras. A necessidade de sua encarnação está
diretamente ligada com a questão da representação dos homens diante de Deus. Também o
nascimento virginal é central para compreensão de que ele é o Messias prometido que cumpre
todas as promessas do Antigo Testamento, bem como os ofícios estabelecidos nele.
As duas naturezas do Redentor são muito centrais para entendê-lo e à sua obra. A mais
ninguém seria possível realizar o sacrifício necessário, com a santidade que Cristo alcançou,
por ter cumprindo toda a lei. Fica clara, portanto, a ligação entre a pessoa e a obra de Cristo.
Os autores acima deram, ao longo da história Cristã, importantes contribuições para o
entendimento e para a confiança que se deve depositar nesse binômio. O papel desta
dissertação será o de demonstrar como tudo isso resultou na superioridade de Cristo no
exercício de seu tríplice ofício, enfatizando, mais uma vez, a ligação de seu ser e de sua obra.
Isso significa dizer que nessa dissertação será vista a correlação entre a pessoa de Cristo e
seus ofícios.
36
1. A SUPERIORIDADE DE CRISTO NO EXERCÍCIO DO
OFÍCIO PROFÉTICO, JESUS É MAIOR QUE MOISÉS
Cristo era claramente um profeta que pregava a Palavra de Deus servindo de seu porta-
voz, assim como Moisés, Elias, Isaías e tantos outros. O objetivo deste capítulo é descrever a
superioridade do exercício do ofício profético desempenhado por Jesus em relação aos dos
profetas do Antigo Testamento, sobretudo por Moisés.
Moisés foi escolhido como referência por ser o profeta mais celebrado entre os judeus,
conforme pode ser visto nas diversas citações sobre ele nos evangelhos. Foi ele quem deu a lei
ao povo de Israel e o libertou, retirando-o do Egito e guiando-o pelo deserto. Moisés foi o
mediador entre Deus e os homens no sentido de que levava os anseios do povo diante de
Deus, e servia de boca de Deus no meio do povo.
Além de revelar a vontade de Deus e prover o que era necessário, Moisés operou
milagres para que essas atividades fossem desenvolvidas. No intuito de prover a liberdade do
37
povo, Moisés abriu o Mar Vermelho, transformou seu cajado em serpente, fez brotar água da
rocha, e tantos outros feitos que realizou com poder sobrenatural. O mesmo pode ser visto em
Elias, o qual, além de pregador, deu comida à viúva de Serepta e a seu filho, por meio de um
milagre. (1Rs 17.9-16)
Fatos como esses também fizeram parte da vida de Cristo, no entanto, como profeta, ele
foi maior. Na verdade, ele é o profeta esperado para cumprir o que está em Deuteronômio
18.15-18 está escrito:
O SENHOR, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás, segundo tudo o que pediste ao SENHOR, teu Deus, em Horebe, quando reunido o povo: Não ouvirei mais a voz do SENHOR, meu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então, o SENHOR me disse: Falaram bem aquilo que disseram. Suscitar-lhes-ei um profeta do meio de seus irmãos, semelhante a ti, em cuja boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar.
Os versos acima revelam a certeza que Deus deu ao povo uma sucessão profética. Ainda
que o texto pareça indicar apenas um sucessor imediato de Moisés, uma avaliação mais
cuidadosa aponta para a sucessão profética. Segundo Walter C. Kaiser Jr., o texto apresenta
de forma genérica a promessa da sucessão profética, apenas dizendo que o sucessor seria um
israelita, semelhante a Moisés, autorizado a declarar a palavra de Deus com autoridade.144
Edward Young ressaltou que o contexto de Deuteronômio era o de preparação para a morte de
Moisés, dando instruções ao povo sobre o magistrado civil e sobre os sacerdotes, mas falando
destes não como indivíduos, e sim como instituições.145 Desta forma, não faria sentido pensar
em um indivíduo específico, mas numa sucessão.
Outro fator que aponta para a sucessão profética é o contexto de proibição da consulta
aos mortos, aos prognosticadores, aos feiticeiros, aos adivinhos, e a outras fontes que podem
ser vistas nos versos anteriores. O fato é que o povo entraria na terra prometida e encontraria
pessoas que praticavam todas essas abominações. Contudo, não há indicação de que tanto a
proibição, quanto o surgimento de tais pessoas no meio do povo estavam restritos a um
144 Cf. KAISER, Walter C., Jr. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 146.145 Cf. YOUNG, Edward J. My servants the prophets. Grand Rapids: WM B. Eeddmans Publishing Co., 1955, p.
30, doravante: My Servants.
38
momento, de forma que a necessidade de se identificar um profeta verdadeiro seria contínua,
daí a descrição dada por Moisés. Em outras palavras, a contínua presença daqueles que fazem
o que é abominação diante de Deus, indica a permanente necessidade de um mediador como
porta voz de Deus e pregue a verdade.146
Este, porta-voz, diante do fato de que pessoas da terra prometida surgiriam no meio do
povo fazendo o que era abominação, seria um dos israelitas. De modo algum o profeta poderia
ser um não israelita, deixando claro para o povo que os prognosticadores de Canaã não
deveriam ser ouvidos em hipótese alguma.147
Além disto, diante dos artifícios usados pelos abominadores, o profeta seria como
Moisés: alguém que ouviria a voz de Deus, a qual causou temor no povo na entrega dos Dez
Mandamentos, e serviria de mediador entre o povo e Deus. Portanto, aqueles que fossem
profetas nos moldes dados por Deus nestes versos, deveriam ser ouvidos, e não os
necromantes, feiticeiros, prognosticadores e agoureiros.
Quando o texto menciona a semelhança com Moisés, a idéia implícita é a do seu caráter
de mediador. O povo havia ouvido a voz de Deus, chorado e, então, pedido para que nunca
mais a ouvisse (Dt 18.16). Diante disso, Moisés passou a ser a boca de Deus no meio do povo,
servindo de mediador entre o SENHOR e Israel.148 Jesus é semelhante a Moisés como
mediador, pois também é a boca de Deus no meio dos homens, porém, de modo superior,
como será abordado. Por este fato, Jesus é o profeta final da sucessão profética. Ainda que
após Moisés somente nos dias de Samuel houve um grande profeta proeminente,149 é fato que
o povo de Israel sempre necessitou daqueles que, ao receberem a revelação de Deus, a
entregassem ao povo e o guiassem no caminho correto – foi por esta ligação entre receber a
146 Cf. KIEL & DELITZSCH, Commentary on the Old Testament, the fith book of Moses, Deuteronomy in: e-sword, arquivo eletrônico, copyright 2005.
147 Cf. Young, op. cit., p. 27.148 Cf. Young, My Servants, p. 27,28.149 Cf. GRONINGEN, Gerard Van. Criação e consumação. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 519.
39
revelação e cuidar para que o povo andesse segundo a mesma que o ofício profético era tão
intimamente ligado ao ofício real.150 Mas este aspecto será melhor abordado mais adiante.
O entendimento destes aspectos iniciais sobre o ofício profético é importante para o
entendimento do texto como um todo. Por sua vez, é essencial para a compreensão da
superioridade de Cristo no exercício do ofício profético vê-lo como o grande profeta
antecedido por aqueles que lhe preparavam o caminho. Para tal propósito, resta investigar
alguns aspectos que ajudam a elucidar em que sentido, ou de que forma Jesus foi superior no
exercício do ofício profético em relação ao realizado pelos profetas do Antigo Testamento.
1.1. Jesus é superior como revelador
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas, tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles. (Hb 1.1-4)
A epístola aos Hebreus foi escrita em resposta a um contexto de dúvida e apostasia. 151
Muitos estavam deixando de lado a pregação dos apóstolos, cedendo às argumentações de
judaizantes que procuravam introduzir os costumes veterotestamentários no cristianismo.
Conclui-se deste fato que os olhares daqueles cristãos estavam se voltando para o Antigo
Testamento, o que levou o autor da epístola a enfatizar o foco correto da atenção de seus
leitores.
150 Cf. Ibid, p. 519.151 Cf. CARSON, D. A., MOO, Douglas e MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1997, p. 446-448.
40
Nesse intuito, Jesus foi apresentado como aquele por meio de quem tudo deveria ser
interpretado. O autor não desprezou o que fora dado até então no Antigo Testamento, mas
apenas colocou abaixo do Filho. Observando-se atentamente os quatro primeiros versos da
epístola, o autor quis mostrar que é pelo Filho que todos deveriam conhecer e chegar a Deus,
pois aquele é o modo de revelação superior a todos os outros.
Os dois primeiros versos, de modo comparativo, se desenvolvem da seguinte forma:152
Tempo do Antigo Testamento Tempo do Novo TestamentoComo? muitas vezes e de muitas maneiras -Quando? no passado nestes diasPara quem? aos nossos pais a nósPor quem? pelos profetas por seu Filho
Kistemaker ressaltou que a falta de um paralelo no campo “como?” é devido ao caráter
“exclusivo, final e completo”153 da revelação no Filho. Isso é melhor entendido diante das
palavras de Jesus sobre si mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao
Pai senão por mim” (Jo 14.6). De nenhum profeta poder-se-ia dizer algo assim. Todos,
apoiados na verdade, indicavam o caminho e falavam da vida, mas não os eram. Enquanto
eles falavam de coisas que eram prometidas, Jesus as possuía.
Deste caráter definitivo da revelação feita por meio de Cristo depreendem-se três
aspectos do profeta-revelador, Jesus. O primeiro deles é o aspecto da perspicuidade da
revelação feita por Cristo. Cristo foi superior em suas palavras, no conteúdo de sua revelação,
não no sentido de acerto, pois tudo que fora revelado até ele estava correto, mas no sentido de
clareza e cumprimento, como será mais bem trabalhado a seguir.
Um segundo aspecto de Jesus como profeta-revelador é a questão ontológica. Suas
naturezas, divina e humana, são o fundamento de toda a sua obra, portanto, de sua
superioridade. Esse aspecto pode ser visto nos versos da Epístola aos Hebreus acima. Quando
152 Cf. KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento, Hebreus. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 44.
153 Cf. Kistemaker, Hebreus, p. 44.
41
o autor inspirado ressaltou que Jesus é o Filho de Deus, herdeiro de todas as coisas, por meio
de quem tudo foi criado, ele estava com o mesmo raciocínio dos judeus ao ouvirem Jesus
chamar Deus de Pai: “Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não
somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a
Deus” (Jo 5.18).
Um terceiro aspecto que pode ser depreendido do fato de Jesus ser o modo de revelação
definitiva é o caráter de sua atividade reveladora. Enquanto Moisés era conhecido por andar
com Deus, por tratar diretamente com ele, a revelação feita por Jesus levou os que o
rodeavam a identificá-lo como o Filho de Deus: “O centurião que estava em frente dele,
vendo que assim expirara, disse: Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus” (Mr
15.39). Essa declaração do centurião no momento da morte de Cristo é um exemplo de como
Jesus é um revelador único e inigualável, de quem foi dito ser ele a “expressão exata do ser de
Deus”, ou “resplendor da glória” de Deus.
1.1.1 Superior devido o aspecto da perspicuidade
A superioridade com relação à perspicuidade de Jesus sobre Moisés é clara. Moisés
jamais expôs os fundamentos da fé para o povo como Cristo o fez. A primeira e mais clara
razão para tal é o fato de que Moisés falava de um futuro Messias, apenas descrevendo-o, sem
poder mostrá-lo. Jesus era o tal Messias e podia pregar apontando para si mesmo, de tal forma
que as pessoas poderiam entender sua pregação com clareza, e não por meio das sombras dos
símbolos da Lei.
Nos livros de Êxodo, Números, Levítico e Deuteronômio, podem ser vistos os sinais
feitos por Deus através de Moisés, para indicar o caminho, para dar fé, e para dar esperança
42
de uma futura salvação. O povo se direcionava por meio destes sinais da Lei dada através de
Moisés. Mas, mesmo com a chegada na terra prometida, o povo ainda não havia atingido o
final da jornada. Como ensina a epístola aos Hebreus, capítulo 4, ainda havia mais um
descanso a ser alcançado por Cristo ao completar sua obra, fazendo os seus entrarem,
“confiadamente, junto ao trono de glória”. Ou seja, o descanso que foi apenas apontado por
Moisés tornou-se real e definitivo em Cristo.
Enquanto Moisés falou de uma salvação, de um descanso, Cristo os tornou realidade e
deixou claro o caráter dos mesmos. As pessoas não tinham total noção de como seria o
Messias, sobre o objetivo do plano de Deus com seu povo, e, conforme pode ser visto no
Sermão do Monte, da correta interpretação da Lei. Este fato pode ser verificado pela rejeição
de Jesus e pela interpelação final dos discípulos a ele, quando estes lhe perguntaram sobre a
hora em que Jesus iria restaurar o reino a Israel (At 1.6). Jesus era aquele que em nada
tropeçou na Lei, mas, mesmo assim, os escribas e fariseus, tão apegados ao que eles achavam
ser a lei, o perseguiram até a morte, demonstrando não terem reconhecido em Jesus o objetivo
da Lei.
É inegavelmente que Moisés foi o grande profeta do Antigo Testamento, sendo aquele
que inaugurou o período da Lei. Ele foi o legislador que deu ao povo de Israel o que recebera
de Deus: o parâmetro pelo qual se devia andar e seguir ao Senhor. Por outro lado, Jesus era o
próprio Deus encarnado, aquele que antes se revelara por meio de palavras e de sinais e que,
agora, se faz presente falando, não através de conceitos, idéias, ou de símbolos, mas com a
realidade plena e concreta, ou melhor, encarnada. O que era tipo em Moisés, passa a ser real
em Cristo. O que antes era a verdade divina em palavras e símbolos, adentra a realidade caída
dos homens, tornando-se tudo o que homem deveria ser. A mudança é tão radical que não
43
importa mais a simbologia do lugar de adoração que envolvia o culto e seu ambiente, mas,
sim, a realidade da adoração (Jo 4.24).154
1.1.2. Superior devido à filiação de Jesus
A segunda parte de Hebreus 1.2 diz: “a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo
qual também fez o universo”. Jesus não apenas falou da herança, mas a possuía para poder
distribuir. Cristo é um modo único e superior de revelação, pois ele não somente revelou, mas
efetuou sua palavra nos que creram – não há pregação mais clara do que aquela que vai além
das palavras, permeando as atitudes e até os mais simples gestos. Ele promete uma herança
própria, e não de terceiros. Tudo que existe pertence ao revelador Jesus, conforme o verso
enfatizou ao dizer que todas as coisas foram criadas por ele.155 Ao contrário dos profetas,
Jesus é herdeiro e não co-herdeiro (Rm 8.17), não dependendo de ninguém para receber sua
herança, pois ele é o Filho.156 Logo, Jesus é o profeta que trouxe a herança consigo, realizando
o que os outros apenas profetizaram.
Na própria epístola aos Hebreus, essa questão da herança filial foi utilizada para mostrar
a superioridade de Jesus sobre Moisés. Em Hebreus 3.1-6, fala-se de Moisés com grande
consideração e valor, mas ele é definido como servo, possuidor de menor glória do que o
Filho, que dá melhor testemunho do que Moisés. Adiante, no fim do capítulo 3, e no capítulo
4, o autor de Hebreus mostrou que muitos não creram na pregação de Moisés e não entraram
no descanso da terra prometida. Mas em Cristo há outro descanso, superior, final, pois é
154 Cf. PLUMER, William S. The Rock of our salvation: a treatise respecting the natures, person, officies, work, sofferings, and glory of Jesus Christ. Harrisonburg: Sprinkle Publications, 1995, p. 128. Doravante, Rock.
155 Cf. Ibid, p. 46.156 Cf. Hagner, Hebreus, p. 33.
44
subseqüente ao primeiro e sem sucessores, que torna a incredulidade em Cristo mais séria do
que em Moisés.
Enquanto o testemunho de Moisés apenas indicava um descanso físico, sombra do que
viria, o de Cristo é o descanso definitivo, o descanso espiritual de conformidade com a lei.157
Certamente, a incredulidade nos tempos de Moisés na hora da entrada na terra prometida
poderia não só relacionar-se à entrada na terra, mas também com o próprio Messias, ou seja, o
próprio Cristo. Contudo, uma coisa não indicava necessariamente a outra, pois aqueles
condenados a não entrar na terra por causa da falta de fé poderiam, durante os trinta e oito
anos seguintes de caminhada no deserto, chegar ao arrependimento, indicando que apenas
Canaã foi perdida, mas não a Nova Jerusalém.
O Filho era aquele que pregava sobre si mesmo na casa de seu Pai. Jesus é o profeta
cheio de autoridade, nunca usando a expressão “assim diz o Senhor”, como o fez Moisés (Ex
4.22), ao invés disto, dizia: “eu vos digo” (Lc 13.24).158 Moisés recebia sua palavra da boca de
Deus, mas Cristo era aquele que inspirava os seus a pregarem. Moisés jamais inspirou, ou
serviu de fundamento para um profeta que o sucedeu. Jesus é aquele cujo Espírito se moveu
em seus apóstolos, os inspirando a pregar, curar e escrever, pois o que ele recebera do Pai,
entregou ao Espírito (Jo 16.14). Jesus é como um filho que conhece a intimidade do pai e
pode falar dele com maior propriedade e profundidade: Moisés era servo, que apenas pôde
falar o que lhe foi ordenado, sem conhecimento total daquele que o comissionou. Por esse
fato, também, a pregação de Jesus é, em muito, superior à de Moisés. Jesus tinha
conhecimento superior para revelar, pois somente ele viu o Pai (Jo 1.18), de forma que todos
os tesouros de sabedoria e conhecimento estão ocultos nele (Cl 2.3).159
157 Cf. Kistemaker, Hebreus, p. 150.158 Cf. SANDERS, J. Oswald. The incomparable Christ, the person and work of Christ. Chicago:Moody Press,
1982, p. 97. Doravante The incomparable Christ.159 Cf. Owen, Biblical theology, p. 601.
45
1.1.3. Superior devido o aspecto definitivo da revelação feita por Cristo
Diante destes fatos, talvez o que mais evidencie a superioridade de Cristo sobre Moisés é
que o tempo deste último passou, enquanto o de Cristo permanece presente. Seja por meio do
seu Espírito, pelos escritos do Novo Testamento, e na esperança de seu retorno, quando ele se
manifestará em toda a sua glória, o tempo de Cristo jamais passou.160 Esse fato é devido ao
caráter de cumprimento da revelação de Jesus. Todos os seus antecessores anunciaram a sua
vinda como sendo a plenitude da ação de Deus sobre seu povo, e ao falar, agir, orar e mesmo
pensar Jesus mostrou ser o cumprimento de todas as promessas feitas. Ao instituir a Ceia, ele
mostrou que já realizou a obra de redenção, que ele permanece presente com os seus e que
ainda virá terminar o que iniciou.
Enquanto Deus usou os profetas do passado de formas variadas, o Filho se mostrou
definitivo, como visto acima. No passado, ou “aos nossos pais” (Hb 1.1), Deus usou teofanias,
oráculos, elementos da natureza, homens e mulheres que tinham estilos, métodos, até mesmo
línguas diferentes, já que o povo deixou o hebraico para o aramaico durante o exílio
babilônico.161 Em Cristo, todos esses modos de revelação se tornaram obsoletos, sendo ainda
utilizados apenas os registros nas Escrituras, pois a revelação progressiva de Deus chegou ao
seu clímax. Cristo inaugurou uma era única, fazendo chegar o “momento crucial do plano que
Deus havia traçado ao longo dos séculos e milênios, de modo que, por definição, chegamos
aos últimos dias”.162 Anthony Hoekema entendeu que o autor de Hebreus estava fazendo um
160 Cf. Ibid, p. 128.161 Cf. ACHER, Gleason L., Jr. Merece confiança o Antigo Testamento?. São Paulo: Vida Nova, 1998, 3ª ed.,
p.48.162 Cf. HAGNER, Donald A. Novo comentário bíblico contemporâneo, Hebreus. São Paulo: Vida, 1997, p. 32.
Doravante Hebreus.
46
contraste com os sumo-sacerdotes do Velho Testamento, pois eles eram provisórios, enquanto
Cristo é o cumprimento escatológico e de caráter final.163
Por outro lado, John Owen entendeu que a expressão “últimos dias” teria outro
significado, ou melhor, se referia a outro período. Para ele, essa passagem de Hebreus indica o
fim da igreja judaica que, segundo Owen, é descrito em Números 24.14.164 Contudo, essa
passagem parece ter um fundo muito mais escatológico do que Cristológico, no sentido de que
aponta mais o fim dos tempos do que a vinda do Messias, o que seria o fim da igreja judaica e
o início da Cristã. Ainda que seja um bom argumento para o autor de Hebreus dizer que Jesus
é o fim do período dos patriarcas, ou dos judeus, parece mais natural à teologia do pacto
entender que a expressão “últimos dias” indica a vinda do Messias até o findar da história.
Isso confirma o fato de que as igrejas judaica e cristã são uma, que vivem sob o mesmo pacto
e que possuem o mesmo salvador. Outra razão é que, entender últimos dias como a vinda do
Messias até o fim da história, faz de Jesus o último grande profeta de toda a história, tanto
para judeus, como para cristãos, não o colocando apenas como o profeta da Igreja Cristã.
Portanto, “últimos dias” tem seu início com a vinda do Filho, o Messias prometido no
Antigo Testamento e, por este ser insubstituível, tais dias se estenderão até “o último dia”. Foi
Deus quem iniciou toda a criação e ele mesmo, por meio do Filho, é quem inaugura sua
finalização, ou o cumprimento de seu propósito. Ele é o “alfa e o omega, o primeiro e o
último o princípio e o fim” (Ap 22.13), ele dá início ao conhecimento revelando-o, e o eleva
até o último patamar se tornando o Emanuel; é o clímax da revelação, portanto, do
conhecimento. Matthew Henry, comentando Provérbios 1.7, escreveu argumentando a favor
de que o conhecimento tem sua centralidade no próprio Deus:
Ele lançou esta verdade, que o temor do Senhor é o princípio do conhecimento; esta é a principal parte do conhecimento; este é o conhecimento primário; que é: (1) De todas as coisas para serem conhecidas, esta é a mais evidente, que Deus é para ser temido, para ser reverenciado, servido, e louvado; este é o princípio do conhecimento, de modo que não conhecem nada aqueles que não conhecem isso.165
163 Cf. HOEKEMA, Anthony. A Bíblia e o futuro. São Paulo: Cultura Cristã, 1989, p. 27.164 Cf. Owen, John, Biblical theology. Morgan: Soli Deo Gloria Publications, 1996, p. 598,9.
47
Contudo, é importante entender que os modos de revelação anteriores a Cristo é que se
tornaram obsoletos, e não a revelação em si. O que fora dito por meio dos profetas era Palavra
de Deus, assim como o que foi dito e mostrado pelo Filho. Calvino ressaltou que a forma do
primeiro verso estabelece uma concordância entre a lei e o evangelho, “por que Deus, que é
sempre o mesmo, cuja Palavra é imutável e cuja verdade é inabalável, falou em ambos
igualmente”,166 ou seja, não há desprezo, mas continuidade e progressão.
Cristo, portanto, encerrou a progressão da revelação, mas, além do visto até aqui, este
aspecto definitivo da revelação por meio de Cristo pode ser visto no sustento que ele mesmo
dava a toda atividade profética (Ef 2.20). Jesus, como profeta, é definitivo porque ele é o
sustento de tudo que fora dito pelos profetas até então e daqueles que o sucederam, portanto,
se ele é o sustento que agora se manifesta. Sua atividade profética é superior e definitiva, pois
é sustentadora. Aquele que sustenta é a fonte de tudo que se apóia nele, por isso, Jesus é a
revelação definitiva de Deus.
Os profetas falaram daquilo que lhes era dado, Jesus, por outro lado, era a própria
mensagem e aquele que sustentou os próprios profetas anteriores a ele, e continua sustentando
aqueles que dão testemunhos dele até os dias de hoje. Jesus é a verdadeira luz que ilumina o
homem (Jo 1.9), portanto, era ele quem direcionava e lançava luz sobre os profetas do Antigo
Testamento através de seu Espírito (Nm 11.17, 24.2; Ne 9.30; Is 48.16; Ez 2.2), e também,m
como o Anjo do Senhor, reconhecido como a segunda pessoa da trindade (Ex 3.2; Nm 22.35;
Zc 1.11,12, 3.1, 3.5). Além disto, o Filho era a sabedoria de Deus personificada que, segundo
a descrição de Provérbios 8, Deus a possuía antes que todas as coisas fossem criadas, e o
homem que a ela “acha, acha vida e alcança o favor do SENHOR” (Pv 8.35).
Todo esse sustento dado aos profetas do Antigo Testamento tem a ver com o eterno
comissionamento do Filho. Antes mesmo de encarnar, o Filho já havia recebido o
165 Cf. HENRY, Matthew. An exposition, with practical observations, of the proverbs, arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7.
166 Cf. CALVINO, João. Exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997, p. 30, doravante Hebreus.
48
comissionamento do Pai para exercer os ofícios através dos quais ele revelaria o Pai, satisfaria
sua justiça e guiaria o seu povo até o destino dele. Por isso é dito que Cristo foi conhecido
antes da fundação do mundo (1Pe 1.20) e, conseqüentemente, pela graça, foi dada aos eleitos,
antes da fundação do mundo, a certeza da adoção em Cristo (Ef 1.4).167 Além disto, Cristo é
chamado de “Cordeiro que foi morto antes da fundação do mundo” (Ap 13.8), mostrando que
o Filho sempre exerceu os ofícios que lhes foram confiados pelo Pai. Isso significa que os
ofícios dos profetas veterotestamentários eram, de fato, os ofícios de Cristo manifestados e
tipificados nos oficiais do Antigo Testamento.
Na encarnação do Filho, portanto, a sucessão profética encontra seu ápice e objetivo.
Aquilo que foi iniciado em Deuteronômio 18.15, é consumado em Jesus. Ele é o profeta
definitivo de quem se ouviu o Pai dizer: “Este é meu filho amado, em quem me comprazo; a
ele ouvi” (Mt 17.5). Ouvir Jesus é ouvir a mais clara e contundente revelação de Deus. Nele
se vê o amor do Pai pelos seus (Jo 3.16) e sua santidade em querer o justo pagamento pela
ofensa cometida contra ele. Jesus é o grande prazer do Pai, pois é um com ele. É interessante
notar que os profetas do Antigo Testamento, ainda que sustentados pela segunda pessoa da
trindade, a Palavra de Deus personificada, sempre diziam: “assim diz o SENHOR”; depois de
Cristo, aqueles que se encarregaram de pregar e registrar a Palavra de Deus, passaram a dizer
“Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei” (1Co 11.23), por exemplo. Pela
continuação deste texto, fica claro que “Senhor” é a forma de Paulo chamar Jesus, mostrando
que é deste que ele tem recebido a revelação da verdade. O fato de receber de Jesus indica que
depois dele não existem mais profetas como no Antigo Testamento, mas sim testemunhas
daquele que é o profeta por excelência, para quem, de Moisés até João Batista, os profetas
preparam o caminho. Quando ele finalmente chegou, nunca mais deixou seu posto de profeta,
nem mesmo o deu a outro seu ofício.
167 Cf. Bavinck, Teologia sistemática, p. 367.
49
Jesus, portanto, continua exercendo seu oficio profético após sua ascensão. Como já
mencionado, os apóstolos recebiam a revelação do próprio Cristo, cumprindo a ordem do
Senhor de serem suas testemunhas (At 1.8). Depois de ter sido tipificado e aguardado pelos
antigos profetas, Jesus se revela e não mais trará novos oficiais como aqueles, pois não faria
sentido ser tipificado depois de ser revelado claramente. Na igreja cristã, Jesus é o único
profeta, que tem como porta-vozes seus discípulos, os quais registraram nas páginas do Novo
Testamento todo o testemunho necessário à igreja para que conhecesse seu Noivo. No
entanto, Cristo não tem sucessores, pois ninguém pode revelar a Deus como ele, mas ele
possui testemunhas, que pregam a Palavra; portanto, são profetas num certo sentido, mas a
função destes não é a de porta-voz de Deus, mas de Cristo. Conforme elucidou Strong:
A inspiração dos apóstolos, a iluminação de todos os pregadores e cristãos a fim de entenderem e desenvolverem o sentido da palavra que eles escreveram, a convicção dos pecadores; tudo isto faz parte da obra profética de Cristo e da participação do Espírito Santo.
Em virtude da união deles com Cristo e da participação do Espírito de Cristo, todos os cristãos se tornam, num sentido secundário, profetas, bem como sacerdotes e reis… Toda a verdadeira profecia moderna, contudo, é apenas uma nova publicação da mensagem de Cristo – a proclamação da mensagem de Cristo – a proclamação e exposição da verdade já revelada na Escritura.168
Havia progressão até culminar em Cristo, agora há apenas reafirmação do que fora dito
por Cristo. Não existem mais novas revelações, tendo em vista que o que há de mais profundo
e claro sobre o ser de Deus já foi revelado: o Filho. Não existem novos profetas ungidos e
comissionados da forma como os profetas do Antigo Testamento. Aqueles eram tipos do
grande profeta, dando sempre vislumbres de como ele seria e, na verdade, era ele quem agia
por meio deles. Depois de revelado, o Profeta Jesus não dá mais vislumbres desse seu ofício
por meio de uns pouco comissionados, mas revela de uma vez por todas uma nação inteira de
pessoas que, por estarem nele, viverem por ele e pregarem sobre ele, são feitas profetas (1Pe
2.9,10). Jesus é o profeta definitivo, pois ele revelou por meio dos profetas do Antigo
168 Strong, Teologia sistemática, p. 374.
50
Testamento, revelou ao encarnar-se, continuou pelos apóstolos e pela Igreja e permanecerá
revelando o Pai eternamente na glória (cf. Is 64.4; Jo 16.15, 17.24,26; 1Co 13.12).169
1.1.4. Superior devido o propósito da revelação
Tudo o que foi visto até aqui quanto ao aspecto definitivo está alicerçado na verdade de
que Jesus é o cumprimento do propósito de Deus em se revelar. É interessante o modo como
as Escrituras narram a criação, afirmando que Deus apenas por sua palavra fazia com que as
coisas surgissem do nada (Gn 1). Este fato aponta para o desejo de Deus se revelar, que, ao
que tudo indica, é o propósito dele ter criado todas as coisas. Como bem explicou Van
Groningen:
Não se afirma diretamente em Gênesis 1.1-25 o motivo pelo qual Deus decidiu criar e, desse modo, fazer-se conhecido a outros além da própria Trindade. Em Gênesis , no entanto, a repetida declaração “e Deus disse” indica seu desejo de falar, de expressar-se, e de fazer-se conhecido. Deus fez o que ele quis fazer.170
O ato de criar, portanto, foi motivado pelo propósito de Deus dar-se a conhecer. Como
visto acima, Deus fez o que quis, portanto, expressou o que estava em seu ser, seu desejo. De
fato, tendo em vista a complexidade e a variedade da criação, o Criador quis manifestar
extensamente seu ser, dando a conhecer diversos atributos. O salmo 19, por exemplo,
contempla diversos desses atributos como a glória (v.1), a onipresença de Deus (v.6), dentre
outros. O salmista tornou a revelação de Deus algo tão básico, tão próprio à criação, que não
existem barreiras de linguagens,171 todos podem “ouvir a sua voz” (v.4), ainda que não haja
som, linguagem ou palavras (v.5). Na verdade, aquilo que fora dito por Deus, que foi a grande
força motriz de toda criação, continua ecoando em cada criatura, confirmando dia a dia seu
169 Cf. Strong, Teologia sistemática, p. 374.170 Van Groningen, Criação e consumação, p. 26.171 Cf. CALVINO, João. O Livro dos salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, p. 412.
51
propósito de revelar aquele que a criou. Calvino também entendeu esse mesmo propósito para
a criação quando escreveu:
Quando miramos os céus, não podemos senão ser arrebatados, pela contemplação dos mesmos, para Aquele que é seu grande Criador; e a bela ordem e maravilhosa variedade que distinguem os cursos e estações dos corpos celestes, juntamente com a beleza e esplendor que se manifestam neles, não podem senão fornecer-nos uma evidente prova de sua providência.172 [sic]
Mesmo aqueles seres que não possuem qualquer sombra de inteligência são parte de uma
vasta e complexa revelação do ser eterno e infinito que as criou. Contudo, quando Deus
terminou de criar, ele não alcançou completa satisfação em seu propósito de revelar-se, pois
ainda havia e há muito que revelar. Nas palavras de Van Groningen:
A motivação que fez com que Deus criasse, também o moveu por meio da história à medida que sustenta ao cosmos, a despeito do pecado e de seus efeito. Essa motivação também o fez prosseguir no seu alvo a ser completado na consumação. De fato, a motivação para a consumação primariamente se fez evidente no princípio. Tão certo como Deus começou criando o cosmos, ele o trará à sua completa consumação.173
Quando o homem é contemplado, verifica-se o clímax da criação. Tal ocorre, não porque
o homem tenha força, mente ou habilidades que o faça superar os animais, mas porque todas
estas coisas estão nele como fruto da imagem de Deus com a qual foi criado.
De forma bem resumida, a imagem de Deus no homem é ensinada em Gênesis 1.26,27.
Obviamente que esta questão deve abranger muitos outros textos das Escrituras para que seja
bem elucidada, contudo, para este momento, basta entender que o homem tem a imagem de
Deus para revelá-lo e representá-lo na terra.174
O homem revela a imagem de seu Criador no domínio sobre a terra.175 Também por ser
relacional. Quando o texto sagrado diz: “homem e mulher os criou” (Gn 1.27), está, na
verdade, mostrando um aspecto da imagem de Deus, e não enfatizando a diferença entre os
dois; pelo contrário, está enfatizando que o homem e a mulher se complementam.176 Esta
172 Ibid, p. 413.173 Ibid., p. 29. 174 Cf. HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 82.175 Cf. Ibid., p. 26.176 Cf. Ibid., p. 26.
52
forma de existência em dois sexos mostra o desejo de comunhão da parte de Deus.177 Este
mesmo desejo era evidenciado quando Deus andava no jardim com Adão e Eva.178 Este
propósito do homem ser um meio de revelação de Deus é resumido nas palavras de Bavinck:
Adão foi criado à imagem de Deus, em verdadeiro conhecimento, justiça e santidade, para que, como profeta, proclamasse as palavras de Deus, como rei dominasse de forma justa sobre todas as outras criaturas, e como sacerdote dedicasse a si mesmo e tudo quanto possuía a Deus como um sacrifício de louvor.179
Porém, a imagem de Deus não gerou toda a revelação possível a seu potencial devido à
queda. Isso significa que o homem não foi, nem é, tudo que poderia ser, tanto como homem,
quanto como revelador de seu Criador. Cristo é aquele que veio ser tudo o que o homem
poderia ser e exercer perfeitamente todas as suas funções. Como visto no texto de Bavinck,
essas funções estão relacionadas ao tríplice ofício, de forma que Cristo veio ser o profeta,
sacerdote e rei que o homem não pôde ser.180
De fato, Jesus é a consumação do propósito revelacional de Deus, de modo que ele é a
completa satisfação do Pai. Não foi sem motivo que na ocasião do batismo de Jesus o Pai
disse: “Este é meu filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3.17). Em Marcos 1.15 pode ser
vista uma declaração muito significativa, que demonstra que toda a história foi movida para
que tudo convergisse para o Filho: “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo;
arrependei-vos e crede no evangelho”. A expressão “está cumprido”, no grego,
Peplh,rwtai,, é um verbo que está no indicativo perfeito, o que indica que toda uma ação foi
feita no passado para que seus efeitos fossem sentidos no presente daquele que faz a
declaração.181 Portanto, ao dizer que o tempo está cumprido, Jesus afirmou que o tempo foi
arranjado, ou foi feita uma ação no passado que conduziu todas as coisas até sua chegada, a
qual aproxima o Reino de Deus.
177 Cf. Van Groningen, Criação e consumação, p. 28.178 Cf. Ibid., p. 28.179 Bavinck, Teologia sistemática, p. 367.180 Ibid. p. 367.181 Cf. TAYLOR, William Carey. Introdução ao estudo do Novo Testamento grego. Rio de Janeiro: JUERP,
2001, p. 128.
53
Paulo entendeu da mesma forma. Em Efésios 1.15 ele diz que Deus fez todas as coisas
convergirem para Cristo, mostrando que nele o Criador satisfaz seu propósito de se revelar.
Não é difícil de aceitar e entender esse fato quando expressões como: “resplendor da glória” e
“expressão exata do ser de Deus” são usadas para definir a revelação sem igual feita através
do Filho. Se o propósito da criação é o de revelar, Jesus é a revelação máxima e definitiva de
Deus, pois quem o vê, vê o Pai (Jo 14.9).
1.1.5. Superior devido às implicações da ontologia do Filho na revelação
Além de possuidor de todas as coisas, o Filho é um com o Pai. O autor de Hebreus
exaltou a revelação de Deus em Cristo ao máximo, defendendo que os dois são um. A frase
“resplendor de sua glória, expressão exata de seu ser” demonstra claramente que, para o autor
de Hebreus, todas as características que enalteceram a pessoa do Redentor, até aqui, estão
baseadas no fato de que o Filho e o Pai comungam da mesma essência, ou seja, a mesma
glória. Nenhum outro profeta revelou tão profundamente o ser de Deus, pois Cristo é o
“resplendor de sua glória”; ele é homoousios com o Pai, ou seja, possui a mesma essência.
Jesus é o modo de revelação que transforma a todos os seus em reveladores de sua
própria glória (2Co 3.13-18). Enquanto Moisés cobria o rosto para que ninguém visse sua face
desvanecendo da glória de Deus, em Cristo não há véu, pois não há desvanecimento da glória
de Deus, pois Cristo é o profeta superior em quem a glória de Deus é permanente.182 Esse
simbolismo, conforme explicou Robertson, foi utilizado por Paulo para mostrar que os judeus
182 Cf. ROBERTSON, O. Palmer. Cristo dos pactos. Campinas: Luz Para o Caminho, 1997, p. 174.
54
de seu tempo ainda tinham o véu sobre a lei, pois não perceberam o caráter transitório de
Moisés, o que é permanente em Cristo.183
A natureza de Deus vista no Filho torna a pessoa do Redentor mais do que apenas um
revelador, mas todo o referencial de realidade. É a pessoa divino-humana do Filho que o
possibilita dizer de si mesmo ser o “caminho, a verdade e a vida” (Jo 14.6). É muito
significativo que o autor da epístola aos Hebreus tenha mencionado o fato de ser Cristo o
criador de todas as coisas com o Pai, pois se ele é criador, ele é a fonte da verdade, do
significado e da realidade de todas as coisas. Este fato, em Hebreus, conduz seus leitores a
entenderem suas vidas, sua salvação e toda a realidade por meio desta pessoa que é criadora,
um com o Pai e que realizou a obra de salvação. O Evangelho de João confirma esta verdade:
“a saber, a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todo homem” (Jo 1.9). Como bem
lembrou Lloyd-Jones ao comentar esta passagem do Evangelho de João:
Ora, há uma luz à parte do evangelho. Tomem todo vislumbre humano de iluminação moral inteligente, tomem tudo o que há no mundo que limita as trevas de satanás, de onde vieram? A Bíblia diz que a luz que há em toda pessoa, quer seja não-regenerada, quer seja regenerada, vem de Deus, de Cristo. Qualquer luz que exista tem vindo dEle.184 [sic]
Portanto, se Cristo é luz até mesmo para os incrédulos, os crentes não precisam mais
fixar seus olhos na lei e nas obras da lei para entenderem sua posição diante de Deus. Basta
olhar para Cristo, seu ensino e obra; basta olhar para seu Criador. Conforme disse Calvino:
“Por outro lado, é evidente que o homem nunca chegará ao conhecimento de si mesmo, se
primeiro não contemplar o rosto de Deus e, depois de havê-lo contemplado, decidir a
contemplar a si mesmo”.185 Contudo, isso não quer dizer que a lei seja inútil e não deva ser
seguida, mas sim, que em Cristo ela ganha todo o seu significado e obediência buscados por
Deus. Aos crentes resta seguí-la como ressurretos dentre os mortos, sendo esta obediência
uma oferta a Deus (Rm 6.13), e não como meio para alcançar a salvação.
183 Cf. Ibid, p. 175.184 JONES, Martyn Lloyd. Deus o Pai, Deus o Filho. São Paulo: PES, 1997, p. 374.185 Cf. Calvino, Inst., I.1.2, p. 4.
55
Portanto, Cristo é o único referencial. O intento dos judaizantes de introduzir os ritos
veterotestamentários, conforme pode ser visto na epístola aos Hebreus, não faria sentido
diante do Filho, que é Criador e, mais do que isso, é sustentador, de modo que ele é o
referencial, e não mais a lei. No Filho não só se tem conhecimento de si mesmo, como
também por ele se é sustentado através da ação do Espírito Santo, ou o Espírito de Cristo, pois
essa ação se dá de acordo com a obra do Filho (Jo 15.26, 16.7).
Cristo é tão superior aos outros modos de revelação que ele não só revela, como sustenta
o que revela, mesmo naqueles que vieram depois dele como testemunhas. Não pode haver
outro referencial de segurança que não o Filho, o mesmo que sustenta a salvação dos seus
fazendo a purificação dos pecados destes (Hb 1.3). A partir desse ponto, o autor de Hebreus
enfoca a natureza humana de Cristo de modo mais claro, não que a mesma não seja levada em
consideração nos outros versos, mas essa parte torna mais clara a necessidade das duas
naturezas de Cristo, pois ele tinha de ser Deus-homem, para revelar o Pai perfeitamente aos
homens e fazer purificação perfeitamente no lugar dos homens. Calvino explicou que a união
das duas naturezas na pessoa do Redentor era necessária à revelação de Deus, pois esse fato
trouxe à luz a majestade do Pai que estava oculta,186 ou seja, é o eterno sendo manifesto no
temporal.
Nessa manifestação, o Filho revelou a santidade de Deus, por exemplo, ao entregar-se
como propiciação pelos pecados dos homens. Nisto se vê que a glória de Deus não se
manifesta simplesmente pela divindade do Filho, mas sua humanidade é que a tornou tão
singular. Jesus, segundo sua natureza humana, era a luz do mundo (Jo 8.12), e, conforme
comentou Philip Edgcumbe Hughes: “não é tanto… a glória da deidade do Filho brilhando
por meio de sua humanidade, mas… a glória de Deus sendo manifesta na perfeição de sua
humanidade, completamente harmonizada com a vontade de Deus.”187
186 Cf. Calvino, Hebreus, p. 34. Mais detalhes sobre a ligação das naturezas de Cristo com sua obra podem ser vistos na revisão de literatura acima.
187 Philip Edgcumbe Hughes, in: Kistemaker, Hebreus, p. 47.
56
Certamente que a perfeição da humanidade de Jesus estava ligada à sua deidade, mas o
foco é a glória de Deus manifesta no homem Jesus que revela aos homens a plenitude do ser
humano, portanto, o caráter perfeito e santo de seu Criador. Jesus não é simplesmente o Deus
perfeito, mas o homem perfeito, arquétipo daquilo que todos devem ser. Moisés jamais pode
revelar com sua própria vida o resultado da obra de salvação completada. Na verdade, em seu
tempo não havia revelação o suficiente que demonstrasse com profundidade e detalhes qual
era o intento final de Deus.
Ainda que Moisés fosse alvo dos olhares do povo, sendo ele um referencial, sempre
havia a Lei à sua frente. Elias também pregava por meio da Palavra de Deus, sempre
apontando para a revelação de Deus e não para o revelador. Em Cristo, a pregação aponta
para o revelador. Moisés pregou sobre o Messias (Ex: Gn 3.15), Elias pregou sobre o Messias
através de seu ministério de anunciar o julgamento de Deus188 (Ex: 1Rs 18.17-40). Por sua
vez, Cristo pregou sobre si como sendo o Messias de quem os profetas falaram. Pedro
enalteceu esta superioridade de Cristo como revelador de Deus ao dizer que os profetas
falaram dele (1Pe 1.10). Jesus revelou-se, enquanto os antigos o revelaram. O que era sombra
nos antigos, se tornou claro em Cristo. Os profetas apontavam para Cristo, a lei apontava para
Cristo, e este apontava para si mesmo. Como está escrito em 1 Pedro 1.10 e 11:
Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam.
Jesus é o objetivo do ofício profético, pois ele é o grande profeta que cumpre todas as
profecias e desempenha perfeitamente seu ofício. Conforme bem explicou Bavinck:
Mas todos esses homens (os oficiais do Antigo Testamento) eram pecadores, portanto, não podiam cumprir verdadeiramente seus ofícios, assim como o povo como um todo, eles apontavam para outro, que seria profeta, sacerdote e rei ao mesmo tempo, e que seria chamado de Ungido do Senhor em um sentido único (Is 6.1). Cristo é o cumprimento de toda a revelação do Velho Testamento. Ele é a contraparte de todo o povo de Israel e de todos os seus profetas, sacerdotes e reis. De fato, é Cristo que através do
188 Cf. Van Groningen, Revelação, p. 399.
57
testemunho dos profetas, sacerdotes e reis de Israel dá testemunho de si mesmo e prepara a Sua vinda (1Pe 1.11).189
Este texto mostra que, na verdade, Cristo não só foi o conteúdo da revelação, mas
também conduziu todos os profetas do Antigo Testamento para que tudo culminasse nele
mesmo. O Filho encarnado é superior, pois ele foi o sustentador de todos os que o
antecederam. De fato, era o próprio Cristo falando por meio destes homens, os quais nos
lugares e tempos determinados, anunciaram o advento do Filho em carne.190 Nas palavras de
Louis Berkhof sobre os meios que Jesus exerceu seu ofício profético, este aspecto de
sustentador do ofício profético pode ser resumido da seguinte forma:
Ele exerceu Seu ofício profético imediatamente, como Anjo do Senhor do período do Velho Testamento, e como o Senhor encarnado, por meio dos Seus ensinos e também do Seu exemplo, Jo 13.15; Fp 2.5; 1Pe 2.22. E o exerceu mediatamente, através da operação do Espírito Santo, por meio dos ensinos dos profetas do Velho Testamento e dos apóstolos do Novo, e o exerce agora mesmo, pelo Espírito que Habita nos crentes, como também pela instrumentalidade dos ministros do Evangelho. Isto significa também que ele dá continuidade à Sua obra profética objetivamente e externamente, e subjetivamente e internamente mediante o Espírito, que é descrito como o Espírito de Cristo.191
Jesus, portanto, é profeta superior por ser quem é. Ele é a Palavra de Deus que se
manifestou por meio dos antigos profetas, sustentando, assim, toda a obra feita por eles. Além
disto, sendo a palavra encarnada (Jo 1.14), ele cumpriu tudo o que fora dito pelos profetas
sobre o Messias, mostrando ser ele o profeta mais importante de todos, o único que podia
pregar tendo a si mesmo como fonte, anunciando ser ele mesmo o “caminho, a verdade e a
vida” (Jo 14.6). Essa declaração de Cristo está apoiada no fato de ser ele o “Logos” divino,
fonte de toda a sabedoria, de forma que, enquanto Moisés pregava por inspiração divina,
Cristo pregava segundo a vontade de Deus tendo em si mesmo a Palavra a ser pregada.192 É
interessante este fato, pois, que Jesus recebia a ação do Espírito Santo é incontestável, tendo
em vista, por exemplo, seu batismo e sua ida para ser tentado no deserto. Contudo, ele referiu-
se ao Espírito como fonte da palavra somente em relação aos discípulos (Mt 10.20; Mr 13.11).
189 Cf. Bavinck, Teologia sistemática, p. 368.190 Cf. Owen, Biblical theology, p. 843.191 Berkhof, Teologia sistemática, p. 360.192 Cf. Hodge, Teologia sistemática, p. 829. Conferir também Strong, Teologia sistemática, p. 373.
58
Quanto a ele vê-se: “Eu porém vos digo” (Mt 5.22,28,32,34,39,44, 19.9; Mr 9.13; Jo 4.35,
16.7); o que é óbvio, pois ele é a Palavra encarnada. Contudo, isso não quer dizer que o fato
de Jesus ser profeta não o fosse por meio do Espírito. Sendo Deus, ele mesmo era a fonte de
sua palavra. Mas como homem, ele escolheu ser como um servo (Fl 2.6,7), precisando,
portanto, para ser reconhecido em forma humana e como profeta ungido de Deus, da ação do
Espírito Santo.
1.1.6. Superior devido à ação ímpar do Espírito Santo (o Espírito de Cristo)
A ação do Espírito Santo, como é claramente vista na Escritura, ocorreu de modo ímpar
em Cristo. Isso é assim por ele ser o Filho de Deus encarnado.193 De fato, desde sua
concepção, vê-se a ação do Espírito Santo. Sendo Maria virgem, o próprio Espírito gerou em
seu ventre o Filho de Deus, e o protegeu para que a natureza caída de Maria não o
contaminasse com a culpa e a condenação de Adão (Rm 5.12-14).194
Além disso, a filiação divina de Jesus se confirmou pela descida do Espírito Santo em
seu batismo, evidenciando, além da filiação, a espontaneidade do Filho em sofrer como servo
do Senhor, já que, sendo filho, ele não precisava agir como servo.195 Foi pelo Espírito também
que Jesus foi levado e conduzido pelo deserto para ser tentado por Satanás e vencê-lo,
mostrando ter ele poder sobre as hostes malignas (Lc 4.1) e que sua relação com o Espírito era
sem medida (Jo 3.34), visto que todos os outros profetas eram pecadores; portanto, ainda
sofriam com o domínio de Satanás neste mundo.
193 Cf. Heber Campos, As duas naturezas do redentor, p. 106.194 Cf. Sinclair Ferguson, O Espírito Santo, p. 53.195 Cf. Ibid., p. 59.
59
Após a tentação no deserto, tendo vencido o príncipe deste mundo, Jesus voltou para a
Galiléia no poder do Espírito, e foi glorificado por todos ao pregar (Lc 4.15,22). O próprio
Senhor Jesus mencionou a profecia de Isaías sobre a presença do Espírito de Deus naquele
que iria apregoar o ano aceitável ao Senhor (Lc 4.19), e a deu como cumprida por ele. Logo,
ele é aquele sobre quem o Espírito repousa, e é através dele que o Espírito age.196 Ainda que
Jesus seja a própria Palavra de Deus encarnada, é pelo Espírito Santo que toda essa glória se
manifesta por meio de sua humanidade. Há, portanto, uma cooperação e uma relação
inseparável na economia divina da ação do Filho encarnado e do Espírito, o que faz de Cristo,
por ser quem ele é, um profeta superior também na presença do Espírito em sua vida e obra.
Em outras passagens as Escrituras mostram a dependência do homem Jesus do Espírito: Rm
6.4 e Hb 9.14 (na ressurreição); Lc 4.32 (autoridade por meio do Espírito); Mt 12.18
(milagres por meio do Espírito) e tantas outras passagens.
A obra do Espírito tem tamanha ligação com Cristo, que ele passou a ser chamado de o
Espírito de Cristo (Rm 8.9). Em Romanos 8.9-11, é possível ver que ter o Espírito é ter Cristo,
pois a vida conquistada por Cristo é aplicada por meio do Espírito. Nas palavras de R. C.
Sproul: “É ele (o Espírito) quem aplica a obra de Cristo às nossas vidas, levando-nos à plena
conformidade com a imagem de Cristo.”197 Calvino, em seu comentário do mesmo trecho da
Epístola aos Romanos, usou palavras fortes que demonstram a inseparável união econômica
do Cristo e do Espírito:
Aqueles em quem o Espírito não reina não pertencem a Cristo; portanto, aqueles que servem à carne não são cristãos, pois os que separam Cristo de seu Espírito fazem dele uma imagem morta, ou um cadáver. Devemos ter sempre em mente o conselho do apóstolo, ou seja: que a graciosa remissão de pecados não pode ser desmembrada do Espírito de regeneração. Tal coisa seria o mesmo que fazer Cristo em pedaços.198
196 Cf. CALVINO, João. Exposição de Romanos. São Paulo: Edições Paracletos, 1997, p. 270.197 SPROUL, R. C. O ministério do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 115.198 Calvino, Romanos, p. 270.
60
Essas palavras de Calvino ajudam a entender que a obra de Cristo está
indissoluvelmente ligada a do Espírito. Na atividade profética isso não era diferente,
conforme o próprio Senhor enfatizou:
O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar sobre os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável ao Senhor”(Lc 4.18,19).
O que Jesus disse em João 16.7-14 mostra que a atividade pneumatológica é, na verdade,
cristocêntrica. Nesta passagem Jesus conforta os discípulos quanto à sua ida, dizendo que o
Espírito viria na qualidade de consolador. Ao descrever a obra que este faria, Cristo revelou
aos discípulos que a mesma seria feita em torno dele. Em primeiro lugar, o Espírito só viria
quando Cristo subisse (v.7). Em segundo lugar, o Espírito faria uma obra de convencimento
do pecado, da justiça e do juízo (v.8). O convencimento do pecado seria porque o mundo não
crê em Jesus (v.9). Da justiça, pois Jesus iria para o Pai e não seria mais visto (v.10). Do juízo
porque o príncipe deste mundo já está julgado (v.11), o que foi feito pela consumação da obra
do Filho. O comentarista J. Ramsey Michaels resume a relação destes fatores com Cristo da
seguinte forma, ajudando na elucidação do texto:
Pecado se define não com quebra de um jogo de leis, mas como a rejeição de Jesus… Justiça se define não em termos de obediência a um jogo de leis, mas como afirmação divina, a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos… Identifica-se o julgamento aqui, como em outras partes do Evangelho, como sendo a vitória de Jesus sobre Satanás, de modo especial na paixão do Senhor.199
Esses três aspectos, de fato, foram cumpridos no dia do Pentecostes, e apontados por
Pedro.200 Isso comprova que a ação do Espírito é totalmente cristocêntrica, tendo em vista o
fato de que o sermão de Pedro naquela ocasião não enfatizou o Espírito, mas a Jesus Cristo.
Esse sermão, portanto, também era a comprovação do que está em João 16.13, que diz que o
Espírito guiaria os discípulos “a toda a verdade”. Além disso, é interessante lembrar as
palavras de Jesus, sobre ele mesmo, em João 14.6, quando afirma ser ele mesmo a verdade.
Isso significa que a ação do Espírito de guiar a toda a verdade é o mesmo que guiar a Cristo.199 MICHAELS, J. Ramsey. Novo comentário bíblico contemporâneo, João. São Paulo: Vida, 1994, p. 291.
Destaques do autor200 Cf. Hendriksen, João, p. 726.
61
Por último, a obra cristocêntrica do Espírito é ensinada por Jesus no verso 14 de João 16.
Cristo ensinou que seria glorificado pelo Espírito pelo fato deste anunciar o que receberia de
Cristo, ou seja, tudo “o que Cristo tiver feito, está fazendo, for fazer (para a Igreja) constitui o
tema do ensino do Espírito Santo.”201 Hendriksen lembrou que isso é assim, pois Jesus já
havia declarado que tudo que o Pai tinha era dele, portanto, o ensino da salvação pertencia a
Jesus.202 Por isso, é compreensível nestes versos que o Espírito Santo tem uma ligação ímpar
com o ministério de Jesus, continuando-o naqueles que são suas testemunhas.
Devido a essa operação única do Espírito em Jesus, ou entorno dele, é que ele ficou
sendo chamado de o “Espírito de Cristo” (Rm 8.9; Fl 1.19; 1Pe 1.11). Sendo Jesus quem ele é,
sua superioridade como profeta sobre Moisés também se deu pela ação do Espírito Santo.
Desde sua concepção até a continuidade de seu ministério pela ação do Espírito em suas
testemunhas, Jesus é o profeta que mostra ter o Espírito sem medida (Jo 3.34), sendo ele o
objetivo da pneumatológica, enquanto todos os outros profetas eram apenas instrumentos.
Como a Palavra de Deus encarnada, ele foi aquele que recebeu o Espírito de Deus sem
medida, tornando-se o possuidor do Espírito e um com ele;203 logo, distribuidor do mesmo.
Além disto, sendo quem era, Jesus foi o cumprimento de todo o propósito de Deus de se
revelar, pois ele é o “esplendor da glória” de Deus e “expressão exata de seu ser”. Isso tornou
Jesus não só o clímax da revelação de Deus, como a definição, ou o seu final, não havendo
mais novas revelações, apenas testemunhos sobre o Filho.
1.2. Jesus é superior como provedor
201 Ibid., p. 729.202 Ibid., p. 729.203 Cf. Sinclair Ferguson, O Espírito Santo, p. 70. É salutar que se entenda que possuir e ser um não tem
desdobramentos ontológicos, mas são resultados da economia divina na obra de salvação, conforme pode ser visto na argumentação de Sinclair Ferguson.
62
Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Deu-lhes a comer pão do céu. Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. Então, lhe disseram: Senhor, dá-nos sempre desse pão. (João 6.31-34)
O papel de provedor não é difícil de ser encontrado na atividade profética. Diversas
vezes Moisés foi procurado pelo povo, não só para revelar, mas para prover alimento e água,
ou outra coisa que fosse necessária para a peregrinação pelo deserto. Observando essa história
desde o início, pode-se aferir a importância do caráter provedor do profeta Moisés, bem como
em outros profetas. Como líder, Moisés era constantemente procurado pelos israelitas para
que lhes desse o que fosse necessário para o sustento. Porém, o fato de que outros profetas
também cuidaram de necessidades básicas de muitas pessoas, comprova que essa pode ser
considerada uma característica presente na atividade profética. Tal afirmação pode ser
apoiada no fato de que a multidão, no texto acima, menciona Moisés como provedor do maná,
e foi cobrado de Jesus um sinal semelhante que o identificasse como profeta de Deus, para
que a multidão cresse nele; ou seja, era esperado que um profeta agisse sobre as necessidades
das pessoas.
1.2.1. Superior como provedor quanto às necessidades físicas
No início, Moisés proveu libertação da escravidão. Ao encarar Faraó e ao conduzir o
povo na saída do Egito, Moisés já se mostrava como um profeta que provia o que fosse
necessário ao povo, desde a liderança – que além de profeta lhe dava o caráter do oficio de rei
– até mesmo o caminho pelo mar que se abriu para que o povo passasse (Ex. 5-14.31).
Portanto, mais do que revelar a vontade de Deus, Moisés deu ao povo o que lhe faltava para
sobrevivência, ou para que chegassem à terra prometida.
63
Durante o tempo no deserto, o povo pôde usufruir seu profeta-provedor diversas vezes.
Quando sentiram sede em Mara, Moisés clamou ao Senhor, que por sua vez lhes deu águas
doces, antes amargas e impróprias para o consumo (Ex 15.22-27). Após esse episódio, Moisés
ouviu mais uma vez o clamor do povo, pedindo que aquele providenciasse comida, e Deus
respondeu com o maná (Ex 16.1-10). Contudo, o povo ainda não estava satisfeito e pediu
carne a Moisés, o Senhor respondeu dando as codornizes (Ex 16.11-21).
Em Refidim, o povo pediu água novamente a Moisés, e Deus respondeu orientando a
Moisés que ferisse a rocha no Horebe (Ex 17.1-7), que passou a se chamar Meribá. Numa
segunda ocasião, Moisés feriu a rocha de Meribá duas vezes, quando deveria apenas ordenar
para que saísse água, buscando suprir a sede do povo (Nm 20.1-13).
Elias, sendo profeta, também proveu o que era necessário às pessoas que participaram de
seu ministério. Em Serepta, ele encontrou-se com uma viúva que tinha comida para apenas
uma refeição para si e seu filho, mas, sob a palavra do profeta, ela lhe deu de comer primeiro,
e não faltou mais alimento em sua casa (1Rs 17.9-16). Elias também pediu e trouxe chuva
para que o rei Acabe visse o poder de Deus e que Elias era seu profeta (1Rs 18.41-46).
O substituto de Elias, Eliseu, também proveu ao povo necessitado. Em Jericó, Eliseu
tornou as águas boas para o consumo, provendo a toda cidade (2Rs 2.19-22). Noutra ocasião,
Eliseu proveu azeite para que uma viúva pagasse sua dívida com seu credor (2Rs 4.1-7). No
episódio da morte na panela, Eliseu tirou o efeito das ervas venenosas e proveu alimento para
os profetas (2Rs 4.38-41).
Outros fatos poderiam ser citados, nos quais algum profeta proveu o que era necessário
ao povo, mas todos eles seriam pequenos diante da providência do profeta Jesus. Em todos os
casos acima, os profetas proveram aos que estavam à sua volta, porém não o fizeram por
conta própria. Tanto Moisés quanto Elias, ou Eliseu, eram apenas homens com a porção
limitada do Espírito, enquanto Jesus é o próprio Deus encarnado que teve a ação sem medida
64
do Espírito Santo em seu ministério e revelou uma nova realidade de relacionamento com
Deus baseada em seu nome.
Na multiplicação dos pães e dos peixes, ele, de uma vez, alimentou, com sobras, mais de
cinco mil pessoas, considerando que as mulheres e crianças não foram contadas no relato
bíblico (Mt 14.21). Numa segunda multiplicação, por volta de quatro mil pessoas comeram,
mostrando que a quantidade não era problema para o provedor Jesus (Mt 15.32-39).
Os discípulos continuamente viviam da providência do profeta Jesus. Numa
oportunidade, a da necessidade de pagar os impostos, Jesus providenciou o dinheiro da boca
de um peixe para que a taxa fosse paga (Mt 17.27). Tantas outras vezes os discípulos
comeram em lares que abriam suas portas segundo a palavra de Cristo, fazendo com que os
discípulos vivessem dependendo de seu mestre.
Somente assumindo as duas naturezas como base para a obra de Cristo é que, segundo
Warfield, poder-se-ia explicar a vida singular de Jesus, com sua sabedoria, santidade,
humilhação, amor, inteligência, dentre outros fatores que tornaram a vida de Cristo mais do
que a de um mero homem.204 Porém, essa realidade era operada no Espírito Santo, aquele
companheiro de Jesus responsável, desde a concepção, pela comunicação de atributos das
naturezas à pessoa do Redentor, como inteligência, sabedoria, vontade e poder (Is 11.1,2; Lc
1.35,80, 2.40,52).205 Portanto, o poder encontrado em Jesus para realizar a obra provedora se
dava por meio da ação do Espírito e por sua natureza divina.
1.2.1.1. Jesus é superior na provisão porque é Deus
204 Cf. Warfield, The person and work of Christ, p. 261, 262.205 Cf. Berkhof, Teologia sistemática, p. 324. Ver também: Hodge, Teologia sistemática, p. 396.
65
Houve momentos na caminhada de Jesus nos quais ele desejava manter em oculto sua
identidade (Mt 8.4206). Em outros momentos, seu intento era de revelar sua verdadeira
identidade, muito maior do que a de um carpinteiro. Em Mateus 9.1-7 vê-se a narrativa da
cura de um paralítico, na qual Jesus buscou revelar mais profundamente sua identidade.
Antes mesmo de curar o paralítico, Jesus, vendo sua fé, declara que seus pecados estão
perdoados (v.2). Diante de tal declaração os escribas o acusaram de blasfêmia, já que somente
Deus poderia perdoar pecados (v.3). Aceitar Jesus como Deus seria inadmissível, contudo, era
o que ele iria mostrar ao dizer: “Pois qual é mais fácil? Dizer: Estão perdoados os teus
pecados, ou dizer: Levanta-te e anda? Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre
a terra autoridade para perdoar pecados -- disse, então, ao paralítico: Levanta-te, toma o teu
leito e vai para tua casa.” (Mt 9.5,6). Neste ponto, Jesus mostra ter poder divino para curar,
além de perdoar pecados.
Como visto acima, não se pode ver as ações de Jesus sem considerar sua natureza divina,
bem como a humana. No caso desta cura, Jesus mostrou que seu poder em prover a cura
àquele paralítico vinha do fato dele ser Deus. Ele demonstrou poder agir livremente na
realidade física e espiritual, provendo a cura física daquele paralítico e perdão à sua alma.207
Todo esse poder provinha do fato de ser ele Deus, o que trouxe benefícios muito maiores ao
paralítico do que qualquer outro profeta-provedor poderia trazer: um corpo são como símbolo
de uma alma sã.
Por ser Deus, Jesus se mostra muito mais abrangente em sua ação provedora do que
qualquer outro profeta. Todos dependeram do poder divino para agirem. Jesus era o próprio
Deus encarnado que a tudo sustenta (Hb 1.3). Na verdade, Jesus é o poder por trás de todas as
206 Cf. Hendriksen, Mateus, p. 554; Hendriksen entendeu que a razão pela qual Jesus não queria que o curado falasse com outras pessoas sobre sua cura, mas só aos sacerdotes, para que esses não pudessem rejeitar a cura por ter sido feita por Jesus e para que houvesse provas de que esse respeitava e seguia a lei Moisés, dando argumento contra futuras acusações. Contudo, em Marcos 1.45, a continuação do texto parece indicar que Jesus não queria a multidão cercando-o e impedindo-o de entrar nas cidades para pregar. O fato é que, por algum motivo, Cristo queria discrição sobre sua pessoa.
207 Cf. Hendriksen, Mateus, p. 594.
66
ações provedoras dos profetas. Ele, o profeta por excelência, que não apenas concedia seu
ofício aos seus antecessores, para que fosse anunciado e esperado, mas que também lhes
concedia poder para sustentá-los em suas atividades (Nm 22.22-27; Jz 2.1-4; 1Rs 19.7; 2Rs
1.3).
Portanto, Jesus é superior como provedor por ser Deus. Sua provisão revela sua
divindade e traz benefícios ainda mais profundos do que os dos outros profetas – os quais
serão mais bem trabalhados na seção sobre as necessidades espirituais. Além disto, o fato de
ser ele o provedor divino e por toda a sua ação como Anjo do Senhor, fica evidente ser ele o
sustentador de toda a atividade provedora dos profetas.
1.2.1.3. Jesus é superior na provisão porque tinha o Espírito sem medida
O Senhor Jesus não pode ter sua ação dissociada da ação do Espírito Santo. Desde sua
concepção, como já foi visto, a ação de um está essencialmente ligada à do outro. Por esse
motivo, quando se pensa na superioridade de Jesus como provedor, não se pode ignorar a ação
do Espírito, o qual desceu sem medida sobre Jesus (Jo 3.34). Em Lucas 4.18-19 está
registrado o discurso de Jesus sobre o cumprimento da profecia de Isaías 61.1-3: “O Espírito
do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para
proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os
oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor.”
A profecia indica que o ungido do Senhor teria o Espírito Santo a fim de evangelizar,
libertar e curar. As necessidades físicas seriam atendidas pela operação do Espírito Santo
naquele que veio pregar o “ano aceitável do Senhor”. Jesus abriria os olhos dos homens cegos
pela prisão do pecado ao libertá-los, mas também traria cura em suas vidas, como já havia
realizado muitas vezes até o dia dessa pregação na sinagoga, e ainda faria outras vezes:
67
proclamação das boas novas aos pobres (Lc 6.20, 12.32); a libertação do pecado (Lc 13.16; Jo
8.31ss); a cura de cegos (Lc 7.21,22); a libertação de oprimidos (Mt 11.28ss; Jo 7.37).208
Pelo Espírito, Jesus seria o profeta que não só proveria ao povo, mas inauguraria uma
nova situação: o “ano aceitável ao Senhor”, o ano da reconciliação anunciado por suas
palavras e ações. A expressão, “ano aceitável ao Senhor”, é uma referência ao ano do jubileu,
no qual era declarada a liberdade a todo povo de Israel, ficando livres todos os que estavam
cativos.209 O uso feito por Jesus foi para falar da libertação do jugo do pecado. Contudo, essa
libertação não deixa de ser uma providência física, tendo em vista os efeitos do pecado no
corpo humano, mostrando que as curas e as providências de alimento que Jesus fez eram
símbolos de uma realidade espiritual. Por isso, Jesus era superior, pois sua provisão era não
somente um cuidado sobre o corpo, mas símbolo de uma realidade a qual só poderia ter sido
inaugurada pelo profeta ungido com o Espírito sem medida.
1.2.1.3. Jesus é superior na provisão porque Deus abençoa por causa de seu nome
Não foram poucas as vezes que Jesus demonstrou ser o profeta provedor. Mas o grande
diferencial é o que Jesus disse aos discípulos sobre o pedido feito a Deus: “Naquele dia, nada
me perguntareis. Em verdade, em verdade vos digo: se pedirdes alguma coisa ao Pai, ele vo-la
concederá em meu nome.”210 (Jo 16.23). Nenhum profeta do Antigo Testamento tinha tamanha
importância diante do Pai. Todos eram homens escolhidos e usados por Deus, mas nenhum
poderia dizer aos seus seguidores que pedissem algo para Deus em seu próprio nome. Moisés,
208 Cf. Hendriksen, Lucas, p.345.209 Cf. HENRY, Mathew. An exposition, with practical observations, of the gospel according to St. Luke, in:
arquivo eletrônico E-Sword, v. 7.7.7 copyright 2005.210 A intenção deste ponto não é explicar o que é pedir em nome de Jesus, mas apenas demonstrar sua realidade e
peso para o aspecto de profeta provedor de Jesus.
68
Elias, Samuel, Isaías, todos eram porta-vozes de Deus, mas não deram a ninguém a instrução
para que se achegarem a Deus usando seus nomes.
Há uma relação profunda entre Deus, sua revelação feita pelo Filho encarnado e seus
discípulos. Após a vinda do Espírito de Cristo, a confusão na qual se encontravam os
discípulos ao ouvirem da partida de seu mestre iria se dissipar pela ação instrutora do Espírito
(Jo 14.26). Mais do que isso, o Espírito lhes concederia tudo o que seria necessário para que
realizassem a obra que lhes fora outorgada. Nas palavras do comentarista William
Hendriksen:
Agora aprendemos que não só pedir é em nome de Cristo, mas também dar. O Pai dará em harmonia com sua inteira revelação redentora que se centra no Filho, e com base em seu amor pelo Filho e no sacrifício deste. A união dos crentes com Cristo tem dois resultados práticos: de um lado, os amigos de Jesus são perseguidos por causa dele (15.21); do outro lado, eles são abençoados por amor a ele.211
Qual profeta revelou a Deus tão profundamente que, por amor deste oficial, Deus ama e
concede contínuas dádivas em seu nome? Em Números 14.20 é possível ver Deus
considerando o clamor do mediador do povo de Israel, Moisés, ao pedir que Deus não os
destruísse por causa de seus pecados. Considerando este clamor, Deus mudou a direção de sua
ação, contudo, não poupou os pecadores e não permitiu que entrassem na terra prometida. Ou
seja, Deus teve grande consideração pelo mediador Moisés, mas isso em nada se compara
com a possibilidade de um crente pedir algo em nome de Jesus e receber de Deus por amor
desse nome. Israel não passou a pedir as coisas em nome de Moisés, mas através dele, para
que ele fosse diante de Deus no lugar do povo. Jesus é o profeta que revelou o amor de Deus
tão profundamente que, por amor desse nome, Deus atende o pedido.
Nenhum homem tem dignidade o suficiente para pedir algo a Deus diretamente. Todos
os pedidos humanos seriam rejeitados por Deus não fosse sua misericórdia e graça em
considerar os méritos do profeta Jesus como se fossem das próprias pessoas. Somente através
de Jesus é que o pecador pode entrar com confiança diante do trono de Deus (Hb 4.16). Desta
211 HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento, João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 736.
69
forma, somente através de Jesus o homem pode ter esperança de alcançar o que pede a Deus,
pois somente pelo Filho se entra na presença do Pai.212
No Antigo testamento vê-se Jacó pedindo que sua posteridade invocasse seu nome (Gn
48.16). Contudo, esse pedido de Jacó nada tem a ver com a possibilidade do crente pedir algo
a Deus em nome de Jesus. Para aquele patriarca o ato de invocar seu nome não era uma
questão de alcançar algum mérito diante de Deus, mas de manter viva na mente do povo que
tudo o que fosse alcançado seria por meio da aliança estabelecida entre Deus e ele.213
Por outro lado, como pensava Calvino, usar o nome de Cristo é reconhecer ou declarar-
se filho de Deus. Ao comentar a oração do Senhor ele escreveu:
“Porque ao chamar Deus de Pai, nos dirigimos a ele em nome de Jesus Cristo; pois quem poderia ter confiança para chamar Deus de Pai? Quem seria tão atrevido que usurpasse a honra do Filho de Deus, senão houvéramos sido adotados como filhos pela graça em Cristo, o qual, sendo seu verdadeiro Filho por natureza, nos tomou por irmãos para que, o que é seu por natureza, pelo benefício da adoção, seja nosso, se com verdadeira fé aceitarmos essa tão grande magnificência.”214
Segundo essas palavras de Calvino, o simples fato de chamar Deus de pai é orar em
nome de Jesus. Por nenhum outro profeta o crente poderia se achegar a Deus na confiança de
se estar falando com seu Pai. Somente aquele que ensinou a seu povo a orar em seu nome
poderia levá-lo ao relacionamento filial. Somente pelo profeta Jesus pode o crente alcançar
boas dádivas diante de Deus, pois Cristo é seu filho em quem ele se compraz. É por esse
prazer no Filho que o Pai concede boas dádivas àqueles que usam o nome de Jesus.
Contudo, é necessário entender melhor o que é pedir em nome de Cristo. De forma bem
sucinta, Mathew Henry, comentando João 16.23, explicou que pedir em nome de Jesus é pedir
reconhecendo o próprio estado de indignidade para receber qualquer favor de Deus, o que
deve fazer o crente depender totalmente de Cristo e de sua justiça.215 Fica claro nessas
palavras que o simples uso do nome de Jesus nas orações não funciona como uma sentença 212 Cf. Juan Calvino, Inst., III.20.17, p. 685. Em pontos como este se vê claramente a ligação intrínseca dos três
ofícios de Cristo, de modo que, não há como isolá-los e ignorar a mútua influência entre eles.213 Cf. Ibid., III.20.25, p. 692.214 Cf. Juan Calvino, Inst., III.20.36, p. 705.215 Cf. HENRY, Mathew. An exposition, with practical observations, of the gospel according to St. John, in: E-
Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.
70
mágica que faz coisas acontecerem. O que traz os benefícios não são os fonemas do nome de
Jesus, mas sim, o fato de se estar verdadeiramente nele. Aquele que não tem a disposição
correta diante de Deus, que usa o nome de Jesus apenas como um meio de se alcançar algo e
não como o fundamento de uma vida levada diante de Deus (Hb 4.14-16), nada alcança e, de
fato, sequer está orando em nome de Jesus. Esse será como um estranho que chega a uma casa
pedindo permissão para entrar em nome de uma pessoa a qual nem sabe descrever. Assim são
aqueles que não se vêem dependentes de Cristo, por não o conhecerem, não têm consciência
de sua própria situação, pois ainda não viram a luz que revela a distância entre o pecador e
Deus.
Portanto, Jesus como profeta é superior aos demais no aspecto de provedor das
necessidades físicas. Além de dar o que foi necessário para o corpo, Cristo deixou uma nova
realidade aos seus seguidores, dando a estes a possibilidade de pedir em seu nome. Ele não só
revelou com maior profundidade, clareza e poder, mas também revelou uma nova realidade de
relacionamento com o Pai que, com base em seus méritos, concede benefícios àqueles que
pedem em nome do Filho e dele dependem.
1.2.2. Superior como provedor quanto às necessidades espirituais
Em sua atividade provedora, Jesus mostrou-se superior também quanto à provisão feita
as necessidades espirituais. Ao prover às necessidades físicas, Jesus constantemente provia às
necessidades espirituais, mostrando que, muito mais do que o sustento físico, ele dava o
sustento espiritual da vida eterna. Enquanto os profetas como Moisés deram o pão do dia a dia
e a água para matar a sede, cada vez que fora necessário, e, somado a isso, o ensino e a
revelação da vontade de Deus, Jesus disse de si mesmo: “aquele, porém, que beber da água
71
que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte
a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.14); mais à frente no mesmo evangelho: “Eu sou o pão da
vida; o que vem a mim jamais terá fome” (Jo 6.35).
Moisés proveu muito diante as necessidades espirituais do povo; contudo, era apenas
sombras do que Jesus seria: o pão que dá a vida. Moisés recebeu a revelação da Lei e a
transmitiu ao povo, de modo que os israelitas tinham uma diretriz para relacionarem-se com
seu Deus. O culto, com todos os seus ritos e símbolos, também era uma importante
contribuição para a vida espiritual do povo, que precisava aprender o peso do pecado e o
conceito de substituição. Porém, tudo isso era apenas símbolo que, em si mesmos, não
satisfazia a justiça de Deus. Esses ritos eram importantes para ensinar o povo de que, pela
demonstração de obediência e fé na Palavra de Deus, haveria perdão dos pecados através dos
sacrifícios, que serviam de manutenção da aliança. Contudo, em Cristo, todos os ritos
alcançaram seu objetivo de satisfazer a justiça de Deus. O que Jesus fez foi tão superior que
nunca mais precisou ser repetido, pois ele supre de uma vez por todas às necessidades
espirituais.216 Cristo, finalmente, revelou a justiça de Deus, provendo a satisfação necessária
pela ofensa feita a ele, pagando os pecados que estavam impunes, suportados pela tolerância
divina, no lugar daqueles que viviam na fé do Messias (Rm 3.25,26).
Tal manifestação da justiça em Cristo revela ainda mais sua superioridade. Observando
bem o texto de Romanos, citado acima, percebe-se que Jesus não foi a manifestação da justiça
apenas àqueles que vieram após ele, mas a todos os que nele creram (Jo 3.16), o que inclui os
crentes do Antigo Testamento que criam na vinda do Messias e esperavam ansiosamente por
esse acontecimento.217 Como bem resumiu John Owen: “a fé dos santos sob o Antigo
Testamento dizia respeito principalmente a pessoa de Cristo – tanto pelo que era, quanto o
216 As questões sobre os ritos e o sacrifício de Cristo serão melhor abordadas no capítulo sobre o sacerdócio. Neste momento elas são abordadas no sentido de ordenanças transmitidas pelo profeta, que visavam o relacionamento espiritual com Deus.
217 Cf. HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento, Romanos. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 178,179.
72
que haveria de ser na plenitude dos tempos, quando ele tornara-se a semente da mulher”.218
Aqui se vê o apóstolo Paulo lançando toda a confiança no Senhor Jesus, mostrando que o
homem nada pode sem ele. Por outro lado, Karl Barth chega a uma estranha conclusão de que
em Cristo o homem pode confiar em outro homem,219 contrariando a idéia central do texto. O
intento de Paulo, claramente, é de retirar todo o mérito do homem, que não pode satisfazer a
justiça de Deus com os símbolos do Antigo Testamento, e colocá-lo em Cristo. Dessa forma,
não há qualquer valorização do homem como um ser confiável. Pelo contrário, há sim a
afirmação de que o homem carece da glória de Deus (Rm 3.23) e que tudo o que ele consegue
por si só é a morte como salário de seu pecado (6.21-23).
As revelações feitas ao povo no Antigo Testamento eram importantes para as suas
necessidades espirituais, contudo não eram suficientes, pois precisavam ser suplementadas.
Jesus foi o profeta que ao revelar a vontade de Deus o fez de modo definitivo, não havendo
mais necessidade de acréscimos e repetições. Ao revelar o amor de Deus em seu próprio
corpo, Jesus deu o alimento espiritual que, ao ser provado, dá a vida eterna de uma vez por
todas (Jo 4.14, 6.35). Cristo é superior a Moisés, também, por ser aquele que sustentou a
necessidade da justificação diante de Deus tanto para os que o antecederam, quanto para
aqueles que o sucederam, sendo ele mesmo o sustento de tudo o que foi feito e ensinado por
Moisés, como meio de cumprir a aliança com os ritos e símbolos dados por Deus.
É interessante ressaltar, também, o fato de que, ao prover às necessidades físicas do povo
de Israel, Moisés estava também atendendo as necessidades espirituais. Ao ver o cuidado de
Deus, o povo teria sua fé alimentada e sua confiança fortalecida, mesmo que isso não tenha
sido uma regra, o que é devido ao pecado do povo, e não a uma falha de Deus. Quanto a isso,
as Escrituras lembram que todo alimento no deserto, como a água da Rocha de Meribá e o
maná, eram tipos, ou sombras do verdadeiro alimento: o pão Jesus (1Co 10.1-4). Desse modo,
218 Owen, The works, vol I, p. 101.219 Cf. Barth, Romanos, p. 161.
73
Cristo esteve presente na providência sobre a Igreja e sobre o povo no deserto, ainda que de
modo figurado, mas sempre sendo o referencial do povo. A própria palavra “rocha” no
cântico de Moisés, como nos salmos, é uma alusão à obra redentora de Cristo.220 Ainda hoje,
Jesus alimenta seu povo do mesmo modo como o fez desde o deserto: com seu sangue e com
sua carne (Jo 6.54).221
Cristo é profeta-provedor superior a todos os outros. Esteve no sustento de todo o povo
no deserto, alimentou multidões nas multiplicações de pães e peixes. Sustentou os discípulos
durante todo o tempo em que andaram juntos, e pelo período em que o povo caminhou pelo
deserto, como pode ser visto na figura da “rocha”, e continua alimentando sua igreja até os
dias de hoje. Ainda, deu o alimento que dá a vida incomparavelmente melhor do que tudo o
que pode ser visto nos profetas: seu sangue e sua carne. Nenhum profeta poderia dar a vida
através de seu corpo, somente o profeta-provedor, Jesus.
1.3. Jesus é superior como operador de milagres
“E tu, levanta o teu bordão, estende a mão sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco… Então, Moisés estendeu a mão sobre o mar, e o SENHOR, por um forte vento oriental que soprou toda aquela noite, fez retirar-se o mar, que se tornou terra seca, e as águas foram divididas.” (Ex 14.17,21)
“Alguém me tocou, porque senti que de mim saiu poder.” (Lucas 8.46)
A realização de milagres sempre foi muito comum na vida dos profetas. Eles
testificavam que Deus enviara o profeta que pregava e operava milagres.222 Contudo, é
220 Cf. KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento, 1 Coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 452, 453.
221 Cf. CALVINO, João. 1 Coríntios. São Paulo: Edições Paracletos, 1996, p. 295, 296. ver também, Groningen, Revelação, p. 217.
222 Cf. PACKER,.James Inner Teologia concisa. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 55.
74
interessante observar que, na narrativa bíblica, o milagre está abaixo da verdade pregada. O
intuito não era de chamar a atenção para o milagre, mas para a mensagem que era confirmada
pelo milagre, que apenas mostrava que o pregador era um enviado de Deus.223 Esse
testemunho divino sobre o profeta, o apóstolo, ou outro enviado, é correntemente visto nas
Escrituras.
Moisés operou milagres em diversos momentos em sua carreira profética. Sob a palavra
de Moisés, Arão lançou seu bordão que virou serpente e comeu os bordões dos sábios e
encantadores do Egito, que também viraram serpente (Ex 7.8-13). Sob a palavra de Moisés
vieram as dez pragas (Ex 8-12.36). Moisés abriu o mar Vermelho diante do povo (Ex 14.21) e
transformou as águas amargas em água doce (Ex 15.22-27). Além desses, muitos outros
milagres na vida de Moisés poderiam ser expostos aqui, mas estes são suficientes para mostrar
que, como profeta, Moisés era um operador de milagres, assim como Elias o foi.
Elias fez com que aparecesse farinha e azeite na casa da viúva de Serepta (1Rs 17.12-16)
e, logo após este acontecido, ressuscitou o filho dessa viúva (1Rs 17. 21, 22). Ele mostrou ser
enviado de Deus ao clamar e fazer cair fogo do céu, que consumiu um novilho sobre um altar
encharcado (1Rs 18.20-40). Seu sucessor, Eliseu, ainda presenciou o último milagre na vida
de Elias, quando eles foram separados por cavalos de fogo, e, então, Elias subiu ao céu num
redemoinho (2Rs 2.9-11).
Como sucessor de Elias, Eliseu também operou muitos milagres. Logo após a subida de
Elias, Eliseu pegou seu manto e com ele tocou as águas do rio Jordão, que se dividiram (2Rs
2.13-14). Eliseu fez com que as águas de Jericó se tornassem boas para o consumo (2 Rs 2.19-
22) e fez um machado flutuar (2Rs 6.1-7). Naamã, o comandante do exército da Assíria,
também experimentou do poder dos milagres de Eliseu e, sob a palavra deste, ele mergulhou
sete vezes nas águas do rio Jordão, ficando livre de sua lepra (2Rs 5.1-14).
223 Cf. Hodge, Teologia sistemática, p. 473.
75
Voltando os olhos para Jesus, quando este estava com os discípulos, revelando-lhes que
iria para junto do Pai, para preparar-lhes lugar (Jo 14.1-3), Felipe pediu para que Cristo lhes
mostrasse o Pai (v.8). A resposta do Senhor foi vergonhosa para Felipe, pois aquele disse que
era um com o Pai, portanto, quem o visse veria o Pai (v.9). Ao dizer que era um com o Pai,
obviamente, Jesus estava deixando clara sua natureza divina, e isso ele o fez, segundo sua
resposta a Felipe, por meio de suas obras (v.11). Essas obras incluíam toda a revelação da
verdade, de modo perspícuo, mas também as operações de milagres, que sempre foram
demonstrações do poder de Deus agindo em seus servos, e que, em Cristo, o revelaram como
sendo um com o Pai. Charles Hodge explicou essa relação da operação de milagres com a
divindade de Cristo da seguinte forma:
Indubitavelmente, a mais elevada evidência da verdade é a própria verdade; como a mais elevada evidência do bem é o próprio bem. Cristo é seu próprio testemunho. Sua glória o revela como Filho de Deus a todos aqueles cujos olhos não se acham cegos pelo deus deste mundo. O ponto que os milagres se destinam a demonstrar não é tanto a verdade das doutrinas ensinadas, mas a divina missão do Mestre. Este último, aliás, cumpre o propósito do primeiro. Mas quando o homem se apresenta como mensageiro de Deus, ser ele recebido ou não como tal depende primeiro das doutrinas que ensina, e, segundo, das obras que concretiza. Se não apenas ensina doutrinas conformes à natureza de Deus e consistentes com as leis de nossa própria constituição, mas também realiza obras que evidenciam o poder divino, então sabemos não apenas que as doutrinas são genuínas, mas também que o Mestre foi enviado por Deus.224
Portanto, quando Jesus disse: “Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao
menos por causa das mesmas obras.” (Jo 14.11); ele estava afirmando que suas obras não
apenas mostravam ser ele enviado de Deus, mas, além disso, o fato dele ser o Filho encarnado
de Deus, o Emanuel. Certamente, tal conclusão era devido à superioridade de seus milagres.
Outro aspecto importante de Jesus como operador de milagres é que estes eram
acompanhados do perdão de pecados. Constantemente, Jesus recebia pessoas que se tornaram
crentes nele por verem seus sinais. Por tal atitude de confiança nesse Messias profeta-
operador de milagres, essas pessoas recebiam, além da cura, a solução para seu maior
problema, o pecado. Jesus, por exemplo, o fez diante da fé do paralítico (Mt 9.2; Lc 5.18-26)
e do choro da mulher que lhe enxugou os pés com os cabelos (Lc 7.48). Somente Jesus
concedeu o perdão divino, indo além de apenas o pregar.224 Hodge, Teologia sistemática, p. 473.
76
Esse aspecto mostra claramente a ligação do ofício profético com o sacerdotal de Cristo.
Como profeta Jesus anuncia o perdão divino e como sacerdote ele o conquista e o garante.
Apesar da revolta dos escribas e fariseus (Lc 5.21), Jesus tem a prerrogativa divina para
perdoar pecados, algo que nenhum outro profeta tinha, podendo, no máximo, anunciar o
perdão de Deus (2Sm 12.13). Jesus, através do milagre, mostrou ter o poder para perdoar
pecados, quando ele disse aos escribas e fariseus: “Qual é mais fácil dizer: Estão perdoados os
teus pecados, ou: Levanta-te e anda?” (Lc 5.23); ele imediatamente ordenou ao paralítico que
levantasse, demonstrando que sua palavra tem poder, portanto, ele poderia conceder o perdão.
Craig Evans bem lembrou que o intuito de Jesus era mostrar que qualquer pessoa poderia
dizer que os pecados estão perdoados, mas realizar o prodígio de curar uma deficiência física
seria uma grande demonstração de poder.225 Jesus, mais do que anunciar o perdão, revelou por
seus milagres que veio conceder perdão.226 Com isto, ele mostrou ser muito mais do que um
simples profeta, mas o profeta que era um com o Pai, parte da Trindade.227
Nesse capítulo, portanto, procurou-se sustentar que Jesus é superior a todos os profetas.
Foram abordados aspectos básicos de sua atividade profética e comparados aos dos antigos
profetas, chegando-se à conclusão de que a obra feita por Jesus em muito superou a dos
outros. Num primeiro aspecto, a superioridade se deu por causa da superior perspicuidade da
revelação feita por Jesus, que trouxe à luz aquilo que Moisés e os outros só puderam fazer por
meio de sombras. Além disso, mostrou-se que Jesus foi superior no aspecto definitivo da
revelação feita por ele. Enquanto Moisés revelou a instauração de uma sucessão profética,
Jesus mostrou ser o objetivo da mesma, tendo em vista o fato de que, se o objetivo de Deus é
o de revelar-se, então Jesus é o clímax por ser ele o cumprimento de tudo que fora dito por
seus antecessores e por ser ele a mais perfeita revelação do Pai, conforme Hebreus 1.1-4.
225 Cf. EVANS, Craig A. Novo comentário bíblico contemporâneo, Lucas. São Paulo: Vida, 1996, p. 105.226 Cf. HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento, Lucas, vol. I. São Paulo: Cultura Cristã,
2003, p. 400,401.227 Cf. Berkhof, Teologia sistemática, p. 95.
77
Viu-se que do aspecto definitivo poder-se-ia depreender o aspecto ontológico de Jesus.
Pelo fato de Jesus ser quem ele é, o Deus-homem, a Palavra encarnada, a sabedoria
personificada de Deus, o Emanuel, o papel de revelador por ele desempenhado seria em muito
superior. Ele é o único referencial de verdade e aquele que sustentava e continuou a sustentar
aqueles que vieram a ser reconhecidos como profetas. Também na questão ontológica se viu
que Jesus tinha uma relação diferenciada com o Espírito Santo, fato este que o tornou o
Espírito de Cristo, fazendo de Jesus o doador do Espírito, enquanto os profetas simplesmente
experimentaram sua presença e ação em suas vidas.
Esses aspectos mostram também o caráter singular da obra de Cristo, deixando claro que
Jesus era o revelador final, alvo e conteúdo das profecias de seus antecessores, sendo que até
ele houve progressão da revelação, mas, após, apenas testemunho sobre ele mesmo. Isso
através da ação singular do Espírito que ficou tão intrinsecamente ligada a Jesus, de forma
que seus sucessores receberam poder para serem testemunhas do próprio Cristo, e não para
trazer novas revelações. Além disto, o revelador Jesus era singular por seu conhecimento total
de todas as coisas, enquanto os dos outros profetas era limitado à mensagem. Jesus revelava e
conhecia os desígnios de Deus e os fatos sobre a vida de todos que estavam à sua volta,
mostrando que o conhecimento era parte do caráter de sua revelação.
Como profeta, Jesus se mostrou superior também como provedor. Ele agiu de modo
muito semelhante ao feito por muitos profetas que proveram às necessidades daqueles que
estavam próximos. Contudo, Jesus revelou uma nova relação com o Pai, dando seu nome
como penhor diante de Deus, para que os seus seguidores pedissem bênçãos. Jesus alimentou
grande multidão e, mais do que isso, continua a alimentar seu povo dando seu nome como
meio de relacionamento com Pai, segundo o que foi visto na seção 1.2.1.3. Somado a isso,
Jesus foi superior como provedor das necessidades espirituais, dando aos seus a manifestação
da justiça necessária diante de Deus, bem como a revelação em seu próprio corpo do amor de
78
Deus. Estar em Jesus é estar com o grande provedor das necessidades espirituais, pois ele
atende a todas.
Cristo também deu grande demonstração de superioridade na operação de milagres. Ele
mostrou que por mais grandiosos que fossem os milagres feitos por Moisés e os outros
profetas, nenhum deles poderia ser reconhecido como sendo Deus, da forma como ocorreu
com ele. A conclusão daqueles que viam as obras de Jesus, era a de que ele era o Filho de
Deus, mostrando que, certamente, havia algo de superior em suas manifestações de poder.
O que foi visto até aqui lança luz sobre a superioridade de Cristo, mas muito ainda pode
ser visto. Jesus exerceu ainda os outros dois ofícios que o Antigo Testamento relatou:
sacerdote e rei. Nos próximos capítulos, portanto, serão abordadas, respectivamente, a
superioridade de Cristo no exercício do ofício sacerdotal e a superioridade de Cristo no
exercício do ofício real.
79
2. A SUPERIORIDADE DO OFÍCIO SACERDOTAL DE
CRISTO, JESUS É MAIOR QUE ARÃO
O autor de Hebreus fez uma descrição detalhada do ofício sacerdotal de Cristo. Suas
palavras iniciais referem-se à formação do Filho como homem que nasce e se desenvolve para
se tornar o sumo sacerdote que terá todas as coisas debaixo dos seus pés (Hb 2.5-9). Esse
desenvolvimento, segundo o autor de Hebreus, foi da vontade do Criador, a fim de
aperfeiçoar, quanto à sua humanidade, o autor da salvação de muitos filhos (v.10). Tal
aperfeiçoamento se deu através dos sofrimentos do salvador que participa de todas as
fraquezas da carne, para que seus irmãos se vissem livres do poder da morte e tivessem ao seu
lado o sumo sacerdote que, por ter vencido a tentação, mostra-se poderoso para socorrer a
outros tentados (v.10-18).
Essa descrição inicial oferece uma importante visão do sacerdote Jesus. Sua disposição
em se tornar semelhante aos homens, passando por seus sofrimentos, mostra, antes de tudo,
um sacerdote amoroso. Esse amor o levou às últimas conseqüências para livrar seus irmãos,
algo que nenhum outro sacerdote faria. Esse ato tornou possível entender porque Jesus é
superior aos seus antecessores, mesmo a Arão, quanto ao amor.
Certamente, Arão tem um grande e importante lugar na história da salvação do povo de
Deus. Contudo, tal importância no exercício de seu ofício nem se aproxima do que foi
realizado por Jesus. O objetivo deste capítulo é justamente o de mostrar essa superioridade de
80
Cristo sobre Arão, no exercício de seu ofício sacerdotal. Os próximos passos objetivam
investigar de que forma Jesus foi superior a Arão como ofertor e no sacrifício realizado.
2.1. Jesus é superior na qualidade de ofertor
“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos.” (Jo 15.13)
Na qualidade de ofertor, Jesus foi superior em diversos aspectos a Arão. Tudo o que este
oficial podia fazer era seguir as ordens da lei, mas que apenas, conforme Paulo, tornava
evidente o pecado e a miséria humana (Rm 5.20). Cristo foi o sacerdote tão superior a Arão,
que a lei deixou de ser um jugo, ou peso sobre o crente. E no exercício de tal obra Jesus
mostrou-se superior no amor, na perfeição e no pacto estabelecido.
2.1.1 Superior quanto o amor
Certamente, quando a pessoa de Jesus é contemplada sob a perspectiva de sua obra, o
amor salta aos olhos. Por ser ele quem é e por ter feito o que fez, Jesus não deixa dúvidas de
sua superioridade em amar. Ele amou os homens aos quais ele representou, mostrando ser um
sacerdote que intercede amorosamente pelos seus, e também amou ao Pai, por quem veio
realizar a obra de redenção, para satisfazer sua justiça. É sob esse dois prismas que se deve
olhar o amor superior do sacerdote Jesus.
81
2.1.1.1. Superior quanto o amor pelos homens
Algumas passagens do Pentateuco relatam atitudes de Arão que podem evidenciar seu
amor pelos homens. Em seu sonho de ver seu povo liberto e experimentar o cumprimento das
promessas de Deus feitas a Abraão, Arão expô-se a situações adversas. Ainda no início da
história da libertação do povo de Israel do Egito, Arão demonstrou amor por seus
compatriotas servindo de porta voz de Moisés diante do faraó, arriscando ofendê-lo e ser
morto (Ex 4.14, 5.1, 7.1). Arão também evidenciou seu amor pelo povo ao continuar em sua
posição de líder, importando-se com todos, mesmo depois do povo murmurar contra ele (Ex
16.2; Nm 16.41). No entanto, Essas demonstrações do amor de Arão pelo povo são pequenas
diante do que Cristo demonstrou.
No texto de Hebreus utilizado no início deste capítulo, ficou evidente o amor de Jesus
por seus irmãos. Levando em consideração o texto de Filipenses 2.5-8, segundo o qual Jesus,
sendo Deus, não se prendeu a esse fato e esvaziou-se ao tomar forma de servo não sendo
reconhecido como Deus que era, mas como homem, vê-se, então, que a atitude de se tornar o
sumo sacerdote de seus irmãos exigiu muito do Senhor.
Arão era um israelita da tribo de Levi e recebeu, juntamente com sua descendência, a
incumbência de cuidar do serviço religioso do povo de Israel. Para um homem que vivia
como escravo no Egito ser liberto e passar a dirigir o exercício mais importante de toda uma
nação é um ganho muito grande, mesmo com o peso da própria responsabilidade. No caso de
Jesus, conforme foi visto, ele é o Emanuel, o Deus que encarnou para ser reconhecido, em
primeiro lugar, como um servo, mas não um simples servo, e sim como o servo sofredor (Is
53). Ou seja, Arão deixou a escravidão para ser homem livre e líder no meio do povo; Cristo
deixou a glória no céu para fazer-se servo sofredor. Ele era “livre de toda essa desordem que
invadiu inteiramente nossa natureza (o pecado), e tornou toda obediência difícil e a perfeição
82
impossível (ao homem)”,228 mesmo assim, o Filho se encarnou, tomando forma para si esse
sofrimento. Tal sofrimento, conforme Mowinckel, já era esperado pelo servo na incumbência
de trazer expiação e paz entre Deus e seu povo.229 Isso significa que nem mesmo o sofrimento
destinado ao Messias fez com que Jesus retrocedesse de sua missão, demonstrando o maior
amor de todos: “o de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos” (Jo 15.13). Sobre
esse amor explicou Hendriksen:
Naturalmente é verdade que este amor de Cristo não pode em todos os sentidos ser um padrão para nosso amor recíproco. No que diz respeito ao seu valor infinito, caráter substitutivo e gloriosas conseqüências redentoras, seu ato de amor, pelo qual ele determinou entregar sua vida por nós, não pode jamais ser um padrão para nosso amor pelos irmãos. Nesses aspectos, esse amor é absolutamente ímpar e não pode ser copiado.230
Os resultados da obra de Cristo demonstram a singularidade de seu amor. Nenhuma
amor poderia produzir tais atitudes e resultados em pessoas que nem mereciam,
respectivamente: auto-negação total, sofrimento de cruz e reconciliação com Deus.231
Explicando a justificação pela obra de Cristo, Paulo escreveu aos romanos dizendo que
dificilmente por um justo alguém se animaria a morrer (Rm 5.7), mas Cristo foi aquele que,
com profundo amor, morreu por pecadores (v.8). Karl Barth lembrou bem que tal amor se
manifestou quando o homem se encontrava num estado de miséria, no qual ele não teria a
capacidade de receber-lo.232 Foi Deus amando o homem sem ser influenciado pelo amor do
próprio homem, mas pelo simples beneplácito de sua vontade.233
Hebreus 4.15 também evidencia o amor de Cristo ao dizer: “Porque não temos sumo
sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas
as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado.” Cristo, a fim de tornar-se o sumo sacerdote
que se compadece amorosamente de seus irmãos, lança-se ao sofrimento da tentação a fim de
cumprir todo o papel destinado a ele como homem, para que “Acheguemo-nos, portanto,
228 OWEN, John. The glory of Christ. Chicago: Moody Press, 1956, p. 119.229 Sigmund Mowinckel, He that cometh, p. 209. Apesar de sua hermenêutica de crítica-literária, ele faz um bom
resumo da vida e importância do servo sofredor.230 Hendriksen, João, p. 700, itálicos do autor.231 Cf. John Owen, op. cit., p. 111.232 Cf. Karl Barth, Carta aos Romanos, p. 253.233 Cf. Calvino, Romanos, p. 184.
83
confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça
para socorro em ocasião oportuna” (v.16). Arão já era homem tentado e caído quando tornou-
se sumo sacerdote, não tendo havido mudança em sua vida ou pessoa. No Filho ocorreu uma
drástica mudança do Deus que se fez reconhecer como servo de pecadores. Ele vivia em seu
estado de eterna glória e encarnou, assumindo a natureza humana e suas limitações, de modo
que passou a sofrer o que era próprio dos pecadores (dores, aflições e temores humanos), mas
sem pecar.234 Jesus sofreu e não cedeu às tentações feitas por Satanás no deserto, apesar da
fome e da sede (Mt 4.2-11). Temeu a dor da morte quando pediu ao Pai que afastasse dele o
“cálice”, mas preferiu a vontade do Pai e manteve-se em sua missão (Mt 26.39). Sentiu-se
abandonado pelo Pai quando estava pregado na cruz; no entanto, sabia que o Pai estava com
ele, tendo clamado e entregado seu espírito a ele (Mt 27.46-50). O fato é que o Filho desceu
da glória de sua divindade para, sendo redentor, sofrer por pecadores, motivado apenas por
seu amor, já que os pecadores, em si mesmos, não possuem nada que motive tal atitude.
Em tudo isso se pode ver que a ação amorosa de Cristo foi em muito superior à de Arão.
Como um mero homem, o sacerdócio de Arão não lhe trouxe as exigências vistas em Cristo.
Pouco adiantaria a morte de um homem pecador, que em nada satisfaria a justiça de Deus.
Além disso, Arão tinha muito pouco a perder se comparado a Cristo. Para esse, a morte
significou a humilhação final do Deus que se fez homem, para ser reconhecido como servo.
Jesus foi rejeitado pelos seus (Mt 27.16-26), açoitado por aqueles que eram menores do que
ele (Mt 27.26), escarnecido por pecadores (Mt 27.28,29,44) e condenado junto com ladrões
(Mr 15.27). Quão profundo não é o amor daquele que é o ser absoluto e está acima de todos e
que, mesmo assim, assume a natureza de sua criação para se deixar humilhar, a fim de pagar a
dívida de pecadores e conduzir-los à comunhão com seu Deus. Por mais amor e dedicação
que Arão tivesse tido em seu ofício sacerdotal, ele seria apenas sombra do que veio a ser o
amor de Cristo.
234 Cf. Calvino, Hebreus, p. 118.
84
2.1.1.2. Superior quanto o amor pelo Pai
É necessário que se diga que, apesar da humilhação do Filho em se fazer de servo, isso
não significa que não houve prazer nele. Quando Jesus disse que a sua comida é fazer a
vontade daquele que o enviou (Jo 4.34), ele estava demonstrando sua profunda ligação com o
Pai; portanto, com a satisfação do mesmo. Ao encarnar, de fato, Jesus estava fazendo a
vontade do Pai, pois esse o enviara (Jo 4.34, 5.30, 6.38). Portanto, sua humilhação foi uma
atitude de amor não só pelo homem, mas também pelo Pai, o que dava grande prazer ao Filho,
já que cumprir a vontade do Pai lhe era tão essencial.
A obediência de Jesus ao Pai já é prova suficiente de seu amor, mas, somado a isso,
Jesus revelou com clareza que seu amor pelo Pai era sua motivação. No evangelho de João
14.31, encontra-se o discurso de Jesus no qual ele afirma amar o pai e que demonstra esse
amor ao mundo obedecendo-o. Sendo a obediência uma demonstração de amor, Jesus tem de
ser superior a Arão nesse sentido, pois esse diversas vezes desobedeceu a Deus e não cumpriu
perfeitamente com suas obrigações.
Até mesmo a demonstração de amor pelo homem foi uma demonstração de amor pelo
Pai. Como disse Owen: “Era um deleite inconcebível para ele ter um panorama da libertação
da humanidade para a glória de Deus”.235 O prazer de Cristo, como dito acima, era de fazer a
vontade do Pai, pois isso redundaria em glória ao Pai. De fato, o amor de Cristo pela
humanidade é a manifestação do amor do Pai pela humanidade236, pois foi ele quem primeiro
235 John Owen, The glory of Christ, p. 112.236 Idem, p. 112. Ver também: MURRAY, John. Collected writings of John Murray, vol. I, The claims of truth.
Endiburgh: The Banner of Truth Trust, 1976, p. 77.
85
amou o homem (1 Jo 4.16-19).
2.1.2. Superior por ser perfeito
A perfeição de Jesus foi um tema amplamente abordado pelo autor da epístola aos
Hebreus para demonstrar a superioridade de Jesus como sacerdote. Por isso, esse se mostra
um importante ponto da superioridade do sacerdócio de Jesus a ser tratado aqui. Tal perfeição
pode ser abordada, de acordo com o que apresentou o autor de Hebreus, por dois aspectos.
O primeiro aspecto é que a perfeição de Jesus satisfez o Pai. Essa satisfação se refere à
sua justiça e significa que, por ser perfeito, Jesus foi o único sacerdote que exercitou seu
ofício com perfeição, alcançando o objetivo de trazer redenção sobre os seus.
O segundo aspecto é que a perfeição de Jesus o fez sacerdote eterno. Esse está ligado
com o juramento do Salmo 110.4, no qual o Messias é identificado como um sacerdote
conforme Melquisedeque e que seria sacerdote para sempre. Nesse ponto serão abordados
tanto o significado de Jesus ser um sacerdote “da ordem de Melquisedeque”, através de uma
análise de Hebreus 7, quanto de que forma isso faz de Jesus o sacerdote eterno de seu povo.
2.1.2.1. A perfeição de Jesus de fato satisfez o Pai
Em Hebreus 5.1-9, o autor compara o sacerdócio de Jesus ao de Arão, mostrando que a
perfeição de Jesus o faz maior do que Arão. Nos versos de 7 a 10 fica evidente que a vida de
Jesus com todos os seus sofrimentos e, como já visto, sem pecado, fez dele o autor da
salvação, que significa dizer que há uma ligação direta entre a impecabilidade de Jesus e o
serviço sacerdotal que ele prestou.
86
Para Calvino não havia perfeição alguma no sacerdócio do Antigo Testamento. Ele
mostrou que até mesmo as vestimentas sacerdotais cheias de adorno eram símbolos de uma
santidade ausente no sacerdote, ou seja, o que era requerido para o adequado desempenho do
ofício estava ausente nos sacerdotes levíticos.237 Contudo, isso não quer dizer que os
sacerdotes não tinham serventia, pois os mesmos, como tipos de Cristo, conduziam o povo ao
conhecimento de que não se poderia achegar-se diante de Deus sem estar coberto. A própria
declaração do sacerdote de que o adorador estava “coberto”, quando a oferta era feita,
indicava essa verdade.238 A repetição de tal rito tinha o propósito de revelar o Messias que
viria e cobriria seu povo de uma vez por todas. Parece, portanto, que o propósito de Deus para
os sacerdotes do araônicos não era o de satisfazer sua justiça, mas o de apontar a necessidade
de um sacrifício superior que o fizesse. Isso por causa da imperfeição, tanto da oferta como do
ofertor. Nesse último caso é que se vê superioridade de Cristo como ofertor, devido sua
perfeição que satisfez a justiça divina.
Em Romanos 3.25 a perfeição do sacerdócio de Cristo é mais uma vez afirmada. O texto
diz que Deus deixou “impune” ou, como o termo grego “pa,resin” parece indicar, “deixou
passar” ou “omitiu-se” quanto ao pecado do povo antes de Cristo, tendo em vista o que esse
viria fazer. Como bem enfatizou Hendriksen: “Além disso, como amiúde em Romanos, somos
informados de que a maravilhosa bênção da justificação é para aquela pessoa, tão-somente
para ela, que tem fé em Jesus.”239 Ou seja, Deus tolerou a impunidade dos pecados anteriores à
morte de Cristo, tendo em vista a manifestação deste, que cumpriria cabalmente as exigências
do Pai quanto ao pagamento das ofensas cometidas. Arão era um devedor, assim como todo o
povo, não podendo satisfazer a Deus nem quanto à sua pessoa, tão pouco quanto à sua oferta.
Deus suportou a imperfeição de Arão e de seus sucessores, pois aguardava a vinda de Cristo,
fato garantido pelos decretos divinos.
237 Calvino, Hebreus, p. 198,199.238 Cf. Van Groningen, Revelação messiânica, p. 213.239 Hendriksen, Romanos, p. 179.
87
Alguns poderiam dizer que Deus não estava sendo justo ao manter os pecados
“anteriormente cometidos” impunes. Contudo, injustiça seria Deus dizer que traria salvação
ao povo e deixar que as pessoas tentassem resolver seus pecados diante dele através do
sacrifício de animais que, por si mesmos, não possuíam valor suficiente para representar
homens e pagar seus pecados. O que Deus fez foi aguardar a vinda do sacerdote prometido
desde a fundação do mundo, para que ele realizasse expiação pelo pecado.
Em Hebreus 7.27 e 28, o autor, mais uma vez, mostrou que a perfeição de Cristo faz com
que seu exercício do ofício sacerdotal seja superior ao de seus antecessores. Por serem
pecadores, os sacerdotes ofereciam sacrifícios por si mesmo e repetidas vezes, mostrando que
a enormidade de seus pecados não era superada pela expiação pretendida através de animais,
cujo valor era derivado da verdade ensinada sobre Cristo240, mas que não era o suficiente para
trazer a expiação necessária por si mesmos.241 Enfim, sendo imperfeito e tendo de apresentar
ofertas repetida vezes, Arão não poderia aplacar a ira divina, pois essa também pesava contra
ele.242
Também deve ser ressaltado que a imperfeição dos sacerdotes araônicos revelava a
necessidade de que alguém validasse suas obras, para que fossem aceitas por Deus. Tal
necessidade foi continuamente suprida por Cristo, pelo fato de que ele sempre foi o
fundamento do ofício sacerdotal. A Confissão de Fé de Westminster expõe muito bem esse
ponto:
Ainda que a obra da redenção não fora realmente realizada por Cristo senão depois de sua encarnação, contudo a virtude, a eficácia e os benefícios dela, em todas as épocas sucessivas desde o princípio do mundo, foram comunicados aos eleitos por meio das promessas, tipos e sacrifícios, pelos quais ele foi revelado e significado como a Semente da mulher que devia esmagar a cabeça da serpente , como o cordeiro morto desde o princípio do mundo, sendo ele mesmo ontem, hoje e para sempre.243
O trecho destacado elucida o fato de que tudo o que fora feito pelos sacerdotes levíticos
tinha sua eficácia ligada à verdade sobre Cristo representada por eles. O povo se via redimido 240 Cf. Calivno, Inst., III.4.30, p. 500. Ver também: Van Groningen, Revelação messiânica, p. 213.241 Cf. Kistemaker, Hebreus, p. 294.242 Cf. Calvino, Hebreus, p. 200.243 MARRA, Cláudio Antônio Batista, editor. Confissão de fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 1999,
VIII.VI, p. 54.
88
pelos sacrifícios, mas Deus os aceitava por ver a representação da obra do Redentor através
deles.
A superioridade de Jesus como sumo sacerdote, portanto, está relacionada com sua
perfeição. Por ser sem pecado, Jesus fez a obra que os sacerdotes não puderam fazer. O texto
bíblico diz que Jesus ofereceu o devido sacrifício, pois ele “fez isto uma vez por todas,
quando a si mesmo se ofereceu.” (Hb7.27). Aquela contínua oferta não era mais necessária,
pois Jesus foi o sacrifício final, de modo que a “expressão uma vez por todas revela que o
sistema levítico tinha chegado ao fim.”244 Por ser perfeito, Jesus tornou a figura do sacerdote
segundo a descendência de Arão obsoleta, pois a oferta final foi feita com base na perfeição
daquele que a fez, satisfazendo a justiça de Deus.
2.1.2.2. A perfeição de Jesus fê-lo sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedeque
A superioridade de Jesus como sacerdote eterno se dá, também, por outro fator.
Enquanto os sacerdotes seguiam a lei que estabeleceu a descendência de Arão como a
linhagem da qual deveriam vir os sacerdotes (Ex 29.8,9), Jesus foi feito sacerdote por
juramento (Sl 110.4). Esse aspecto da superioridade do sacerdócio de Cristo foi claramente
explicado por Kistemaker, quando disse:
Deus colocou sumos sacerdotes pecadores no ofício pela lei; ele nomeou seu Filho como sumo sacerdote por meio de juramento. A superioridade do Filho em relação aos sumos sacerdotes araônicos é demonstrada pelo escritor de Hebreus sucintamente, pois o juramento era de maior importância do que a lei promulgada. Uma lei pode ser revogada; um juramento permanece para sempre. O Filho não está sujeito à fraqueza ou mudança, porque ele “foi feito perfeito para sempre”.245 [sic]
Não só pela eternidade própria da divindade de Cristo, mas também pela intrasitoriedade
de um juramento é que seu sacerdócio permanece. Tal juramento refere-se ao que é
encontrado no salmo 110.4: “O SENHOR jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote para
244 Kistemaker, Hebreus, p. 295.245 Kistemaker, Hebreus, p. 296.
89
sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.”; e a mudança na lei refere-se ao que foi dito no
verso 12 de Hebreus 7. O sacerdócio e a lei são intrinsecamente ligados de modo que, se há
mudança de sacerdócio, tem de haver mudança na lei.246 Tendo o sacerdócio saído da
linhagem levítica e passado a Cristo, aquele que tornou desnecessária a repetição de
sacrifícios, a lei cerimonial obviamente mudou. Portanto, prevaleceu o juramento de Deus. 247
É neste sentido que a lei é revogada e o juramento permanece.
O caráter do sacerdócio de Melquisedeque foi explicado em Hebreus 7, para que se
entendesse em que sentido Cristo é sacerdote de sua ordem. Nos versos 1 e 2, o autor de
Hebreus o apresenta, relembrando o que está em Gênesis 14. Ele foi identificado como o rei
de Salém e sacerdote de Deus a quem Abraão entregou o dízimo dos despojos de sua luta
contra os reis que capturaram seu sobrinho, Ló. Já houve muitas discussões sobre a identidade
de Melquisedeque, algumas especulando se de fato ele era um ser humano; contudo, não
existem evidências textuais para se pensar nele como sendo alguém além de um homem. 248
A partir do verso 3, vê-se a descrição da superioridade de Melquisedeque. Nesse verso, é
dito que ele não tem pai, mãe e nem genealogia. Tais expressões eram utilizadas para órfãos,
crianças abandonadas, ilegítimas ou rejeitadas ou para deuses que vieram a existir sem um pai
ou mãe.249 Neste texto elas devem ser interpretadas de acordo com o contexto da história de
Gênesis, e não atribuí-las à vida de Melquisedeque, de modo a pensar nele como sendo algo
além de um homem.250 O fato é que, num livro com tantas genealogias, contando a história de
um sacerdote – cujo ofício é essencialmente ligado à genealogia pela lei – sem nenhuma
genealogia atribuída, torna-se um caso único e digno de admiração. O que o autor de Hebreus
quis ressaltar foi que Melquisedeque não se tornou sacerdote por nenhuma sucessão legal,
246 Cf. Henry, Mathew. An exposition, with pratical observations, of the Epistle to the Hebrews. Arquivo eletrônico, e-sword, v.7.9.8, 2008.
247 Cf. Ibid.248 Para mais interpretações de quem seria Melquisedeque ver: GILL, John. Christ, a priest after the order of
Melchizadek,. Paris: The Baptist Standar Bearer, 1999, in: www.monergism.com, acessado em 02/10/2007.249 Cf. Kistemaker, Hebreus, p. 263.250 Cf. Ibid., p. 264.
90
mas, tão somente, pela vontade de Deus. O que deve ser entendido por “sem genealogia” é o
sacerdócio de Melquisedeque, ou seja, que ele não recebeu seu sacerdócio de seu pai, ou o
teve transmitido por uma mãe que nasceu numa família de sacerdotes.251
Dessa falta de genealogia o autor de Hebreus entendeu que Melquisedeque não
transmitiu seu sacerdócio, sendo ele o único. Portanto, se Melquisedeque não transmitiu seu
sacerdócio a um descendente, como ocorre no sacerdócio araônico, ele continua para sempre
como o sacerdote de sua ordem. Neste sentido, ele é semelhante ao Filho, ou seja, se torna um
tipo de Cristo, pois Jesus se tornou sacerdote sem ter ligação com a tribo de Levi, assim como
Melquisedeque. O Senhor não teve pai ou mãe ligados ao sacerdócio, tão pouco descendentes
que continuassem, ou substituíssem-no em seu sacerdócio.252 Por outro lado, Jesus também
não é substituto de Melquisedeque, pois os sacerdócios de ambos são distintos, sendo iguais
nas características, caso contrário, não se poderia dizer que o sacerdócio de Melquisedeque é
perpétuo, nem o de Cristo ser eterno; em Jesus Melquisedeque teria seu substituto e, neste,
Jesus teria alguém que o antecedera.
Além disso, o comentarista Leslie Allan fez uma tradução interessante do Salmo 110.4
para o assunto desta seção. Em sua tradução do hebraico para o inglês, o termo ytir'b.DI
foi traduzido para “pattern”, que significa padrão.253 Isso significa que não foi o sacerdócio
em si de Melquisedeque que foi comparado ao de Cristo, mas suas características. Isso nos
leva a entender que foram sacerdócios semelhantes, ainda que distintos.
Depois de ter apresentado Melquisedeque e explicar seu sacerdócio, o autor de Hebreus
demonstrou sua superioridade sobre Abraão. Tal superioridade é explicada a partir do dízimo
entregue por Abraão a Melquisedeque, proveniente dos despojos de sua batalha para libertar
seu sobrinho, Ló (Hb 7.4; Gn 14.20). A importância de tal fato está na atitude espontânea de
251 Cf. GILL, John. Hebrews, in arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.252 Cf. Kistemaker, op. cit., p. 262,263.253 Cf. ALLEN, Leslie. Word biblical commentary, vol. 21, Psalms 101-150. Arquivo eletrônico, Logos Library
Sistem, v. 2.1e, 1998.
91
Abraão, o grande patriarca de Israel, em reconhecer o sacerdócio e a superioridade de
Melquisedeque sobre ele como representante de Deus, mesmo sem lei ou genealogia que o
indicasse. Diante disso, a conclusão do autor de Hebreus é simples, pois, tendo em vista que
os descendentes de Levi254 recolhiam o dízimo segundo o regimento da lei (v.5), que pode ser
quebrada, Melquisedeque recebeu o dízimo por reconhecimento de sua superioridade de
representante de Deus, pela qual ele não só recebeu o dízimo, como também abençoou a
Abraão (v.6). Ora, se Abraão deu o dízimo e ainda foi abençoado por Melquisedeque por ser
este superior (v.7), então, o sacerdócio de Melquisedeque é superior ao dos levitas, visto que
esses eram inferiores a Abraão, seu patriarca.
Pode-se somar a esta argumentação o que está escrito em Gênesis 14.18. Nesta passagem
está descrito que Melquisedeque era rei e sacerdote. Além desses títulos que lhe conferiam
grande pompa, sua atitude de oferecer, ou prover a Abrão pão e vinho, alimentos típicos da
realeza, demonstra sua superioridade sobre Abrão.255 Abrão havia conquistado paz para o rei
de Salém, agora, esse rei oferece hospitalidade e bênção, a qual não só é recebida por Abrão,
como também é retribuída com a décima parte, o que demonstra um tipo de pacto entre as
partes, no qual a maior abençoa a menor.256
Com essa construção, o autor de Hebreus entendeu que, se Abraão pagou dízimo a
Melquisedeque, de fato, seus descendentes levitas também o fizeram em sua pessoa (v.9), pois
eram representados por seu patriarca. Contudo, os descendentes de Levi recebem o dízimo
geração após geração seguindo o mesmo sacerdócio de Arão. Melquisedeque, por outro lado,
não teve substitutos, ele é “aquele de quem se testifica que vive” (v.8) – essa expressão segue
a mesma idéia da palavra “perpetuamente” do verso 3.
254 Kistemaker ressaltou que o nome de Levi foi tomado no lugar de Arão, pois aquele é mais próximo de Abraão do que esse e para mostrar que o serviço de coleta de dízimo pertencia à toda a tribo de levi; ver Hebreus, p. 266.
255 Cf. WENHAM, Gordon J. Word biblical commentary, vol. 1, Genesis 1-15. Arquivo eletrônico, Logos bible library system, 1998.
256 Cf. Ibid.
92
Depois de ter demonstrado a superioridade do sacerdócio de Melquisedeque sobre o
levítico, ao autor de Hebreus passou a focalizar a pessoa de Jesus mais diretamente. Ele inicia
essa seção com uma pergunta: “Se, portanto, a perfeição houvera sido mediante o sacerdócio
levítico (pois nele baseado o povo recebeu a lei), que necessidade haveria ainda de que se
levantasse outro sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque, e que não fosse contado
segundo a ordem de Arão?” (v.11), conforme o Salmo 110.4. A Imperfeição do sacerdócio
levítico ficou evidente no fato de que ele não recebeu o adjetivo “perpétuo” (dihnekh,j),
como foi feito com o sacerdócio de Melquisedeque.257 Devido a esta imperfeição, o autor de
Hebreus anuncia a mudança que deverá haver na lei, pois deveria haver mudança de
sacerdócio (v.12), para se alcançar a perfeição desejada.
As mudanças que iriam ocorrer eram profundas. A primeira foi apontada pelos versos 13
e 14: a mudança da tribo de onde viria o sacerdote. Pela lei o sacerdócio viria da tribo dos
levitas (Ex 29.8,9), o que, a partir de Jesus, não seria mais assim, pois, mesmo não
pertencendo à tribo de Levi, ele tem um sacerdócio superior, que não lhe foi dado por ordem
da lei, mas pelo poder de sua vida indissolúvel. Essa expressão, indissolúvel, mostra a
superioridade daquele que é tipificado sobre seu tipo. Melquisedeque é dito ser vivo (v.8) , ou
ter sacerdócio perpétuo (v.3) por não ter tido substitutos, ou seja, as expressões “vivo e
“perpétuo” referem-se unicamente ao seu sacerdócio. Contudo, a expressão utilizada para
Cristo indica que sua vida em si não tem fim, portanto, seu sacerdócio também não tem fim.258
Diante disso, o autor de Hebreus enfatizou mais uma vez a promessa do Salmo 110.4 (v.17)
para relembrar que o sacerdócio de Cristo não precisava ser segundo a descendência de Arão,
e nem seria temporário como foi o de todos os sacerdotes que vieram dessa descendência,
pois todos morreram.259
257 Cf. Kistemaker, Hebreus, p. 274.258 Cf. Gill, Hebrews, arquivo eletrônico.259 Cf. Kistemaker, op. cit., p. 278.
93
Diante dessas considerações, o autor de Hebreus descreve diretamente as mudanças que
ocorreram. Segundo ele, frente à “fraqueza e inutilidade” do sacerdócio levítico (v.18), esse
deveria ser deixado de lado em favor da esperança que o sacerdócio de Cristo traz, segundo a
ordem de Melquisedeque (v.19). A questão, conforme o verso 18, é que “a lei nunca
aperfeiçoou coisa alguma”, o que já foi visto anteriormente, valendo lembrar que o objetivo
fundamental dos sacrifícios, portanto do ofício sacerdotal, era pedagógico e o de ligar a
pessoa a Cristo, sem, de fato e por si mesmo, fazer a purificação desejada. Diante de tal
inutilidade da lei, o autor propõe a segurança do juramento divino (v.20,21), que traz o fiador
de superior aliança (v.22).
A segurança que essa superior aliança traz está no fato de que os antigos sacerdotes, a
começar de Arão, tiveram um sacerdócio passageiro, pois todos morreram (v.23). Contudo,
Jesus é o sacerdote que permanece para sempre. Essa descrição do sumo sacerdote Jesus
conduz o leitor ao fato de que, sendo perfeito, Jesus não poderia ficar sob o domínio da morte,
podendo exercer seu sacerdócio eternamente. Sendo a morte o salário do pecado (Rm 6.23),
Jesus não poderia ficar sob seu domínio por ser sem pecado e eterno, tendo em vista os
atributos comunicados à sua pessoa, provenientes de sua natureza Divina. O contraste entre os
versos 23 e 24 de Hebreus 7 é profundo, pois mostra de um lado muitos sacerdotes
temporários e, do outro, um único sacerdote permanente: Jesus.
Através desta comparação entre o sacerdócio de Arão e o de Jesus, o autor mostrou a
superioridade deste sobre aquele. Enquanto o sacerdócio de seus antecessores era passageiro,
o de Jesus é permanente. Diante do fato de todos terem sido pecadores e, portanto, sujeitos à
morte, Jesus venceu a morte e continua ao lado do Pai intercedendo.260 Cristo é o sacerdote
segundo a ordem de Melquisedeque que permanece para sempre, contudo não simplesmente
por não ter substitutos, mas por que vive parar sempre. Jesus é aquele que tem em suas mãos
o poder sobre a morte, conseguido ao completar sua obra sacerdotal, na qual ele se fez
260 Cf. Kistemaker, Hebreus, p. 288,289.
94
pecado, para fazer justiça por nós (2Co 5.21), e entregou-se à morte para ressuscitar e mostrar
em si mesmo o que aconteceria com aqueles que nele cressem.
2.1.3. Jesus é superior quanto à aliança que estabeleceu
Dentro da história da aliança Deus revelou-se progressivamente ao povo, como visto no
capítulo sobre o ofício profético. No período de revelação de Moisés, Deus deu diversas leis e
promessas para a atividade cúltica do povo. Dentre elas havia a vestimenta dos sacerdotes e
do sumo sacerdote, que eram cheias de adornos e simbologias. Também foi prescrita a
construção do Tabernáculo, o principal lugar onde Arão exercia seu ofício, o qual era usado:
nos ritos de sacrifícios; para a reunião do povo em torno da promessa de Deus de que haveria
remissão de pecados; como representação da habitação de Deus no meio de seu povo. E foram
prometidos uma terra que manaria leite e mel e um Messias para conduzir o povo. Tudo isso
eram ritos, sacrifícios, construções feitas pelo homem e promessas ainda não muito claras.
A narrativa bíblica mostra que, com o tempo, o povo progrediu em seu relacionamento
com Deus. Ele alcançou a terra prometida (Js 3), iniciando sua conquista e, no tempo de
Salomão, construiu o templo no qual Deus habitava no meio do povo. Contudo, todos os seus
líderes, em especial seus sacerdotes, foram falíveis e cometeram erros em relação às suas
responsabilidades.
Desde Arão essa imperfeição pode ser verificada. Quando o povo ainda estava no
deserto, por ocasião da ida de Moisés ao monte para receber de Deus a lei, Arão atendeu a
ansiedade e a incredulidade do povo e o liderou na fundição de um bezerro de ouro (Ex 32.1-
4). Além dele, vê-se Eli sendo condescendente com o erro de seus filhos, envergonhando o
sacerdócio (1Sm 2.22-28). Mesmo Samuel, que foi um grande servo de Deus, também não
95
obteve sucesso com seus filhos, pois os mesmos eram avarentos, aceitavam subornos e
pervertiam o direito do povo, motivando-os a pedir um rei para si (1Sm 8). Em Oséias 4.6, o
profeta do Senhor trouxe uma dura palavra contra os sacerdotes que não cumpriam seu papel
corretamente, mostrando que o que foi dito em Hebreus 7.26,27 era a dura realidade do
sacerdócio que era exercido por homens fracos, pecadores imperfeitos.
Em Cristo essa realidade mudou. Sem as imperfeições que seus antecessores possuíam,
Jesus pode dizer que seu sangue é o sangue da nova aliança (Mc 14.24). O Senhor realizou em
si todas as exigências do pacto, inaugurando um novo e permanente tempo, no qual aqueles
antigos símbolos não são mais necessários. Jesus trouxe mudanças quanto ao santuário, aos
sacrifícios, às promessas e à noção de mediação, conforme segue.
2.1.3.1. A aliança de Jesus é superior quanto ao santuário
Na nova aliança inaugurada por Cristo, tudo foi superior. O Santuário, que antes foi o
tabernáculo e, posteriormente, o templo construído por Salomão, em Cristo passou a ser o
verdadeiro tabernáculo, ou a casa construída por Deus, e não pelos homens (Hb 3.5,6, 8.2).
Em Cristo, todos os que crêem podem entrar no santo dos santos (Hb 10.19), o lugar que antes
era separado somente ao sumo sacerdote e, mesmo ele, tinha de se purificar antes de entrar
(Ex 26.31-35, 40.3). O sumo sacerdote Jesus rasgou o véu que separava o santo lugar do santo
dos santos (Hb 10.19,20), os quais eram parábolas, apenas “comidas, e bebidas, e diversas
abluções, impostas até ao tempo oportuno de reforma.” (Hb 9.9,10)
O tabernáculo era a representação de que Deus habitava com seu povo, o que confirmava
a aliança que dizia: “Tornar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus.” (Ex 6.7)261. Ao cumprir
de seu ofício sacerdotal, Jesus fez o que Arão e seus sucessores não puderam fazer, ou seja, a
261 Cf. Roberteson, Cristo dos pactos, p. 46.
96
purificação dos pecados (Hb 10.11-28), a despeito da contínua repetição dos sacrifícios (Hb
7.26-28; cf. Rm 3.25). Assim, a reforma de Cristo foi implementada e consistiu, quanto à
habitação de Deus, em que ele deixou de habitar no templo feito por mãos humanas e fez de
todos os crentes habitação de seu Espírito (1 Co 6.19). Hoje, o cristão vive a realidade de João
4.22-24 e adora o Pai sem que o lugar importe. O judeu ainda vive a realidade conforme
descrita por Mathieson: “Arão morreu e foi sepultado; o tabernáculo e sucessivos templos
desapareceram; Israel, hoje, está sem sacerdote e sem sacrifício; porque eles não conhecem
nosso grande Sumo Sacerdote, e não compreendem o significado do Calvário.”262
2.1.3.2. A aliança de Jesus é superior quanto aos ritos e sacrifícios para remissão de pecados
A superioridade da aliança de Cristo em relação à habitação de Deus foi estabelecida
pela mudança nos ritos e sacrifícios. Anteriormente, como já visto, Arão e seus sucessores
tiveram de repetir continuamente os sacrifícios, pois os mesmos eram imperfeitos e sem valor
para substituir homens (Hb 7.26-28, 9.11,12). Cristo fez o sacrifício perfeito, ou seja, que não
pede repetição, pois alcança o objetivo de remir de pecados, ao substituir homens, a ponto de
Jesus fazê-lo apenas uma vez para, então, assentar-se à destra de Deus (Hb 10.11-18). A
mudança é tão drástica, que Jesus fez um chamado inimaginável num contexto onde somente
a lei estava clara: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos
aliviarei.” (Mt 11.28). Jesus oferece o descanso que somente a aliança firmada em seu sangue
pode trazer, pois não há mais o que ser ofertado a Deus a fim de satisfazer sua justiça e
reconciliá-lo com os homens, que Cristo já não tenha ofertado: obediência e sangue (Hb 5.8,
9.14).
262 MATHIESON, J. E. The supremacy and sufficiency of Jesus Christ our Lord. Edinburgh: William Blackwood and Sons, 1897, p. 125,126.
97
2.1.3.3. A aliança de Jesus é superior quanto às promessas
As promessas feitas na lei também se tornaram pequenas diante das promessas firmadas
no sangue de Cristo (Hb 8.6). Kistemaker diz que: “As promessas da antiga aliança foram
feitas junto com a lei de Moisés; as promessas da nova aliança incluíam as leis de Deus
colocadas na mente e escritas no coração de seu povo, o ensino do conhecimento do Senhor e
o perdão de pecados (8.10-12)”.263 Isso significa que as promessas feitas na lei foram feitas
com base em ritos e santuários inúteis (Hb 7.18), com mediadores falhos, além de não serem
claras e, com o tempo, se mostraram distantes de um povo que não conseguia cumprir a lei.
Em Cristo essa realidade muda. A promessa de bênção e vida se torna uma realidade bem
visível e presente na vida dos que crêem no mediador perfeito (Hb 9).
2.1.3.4. A aliança de Jesus é superior quanto ao mediador
Um fato óbvio de todos os aspectos da superioridade da aliança estabelecida por Cristo é
a superioridade do Mediador da aliança. O que foi visto anteriormente está fundamentado no
fato de Jesus ser superior também como mediador. Todo ofertor, ou sacerdote, conforme pode
ser visto no glossário, era um mediador da aliança que tinha o papel de levar diante de Deus
as petições e as ofertas dos adoradores. Esse é um elemento claro e recorrente da aliança de
Deus com o homem, devido o fato de que o homem não é digno de se achegar diante de Deus;
ele sempre precisa de alguém que o cubra e o represente. Nesse papel, Jesus foi em muito
superior àqueles que, na verdade, eram seus tipos.
263 Kistemaker, Hebreus, p. 311.
98
Algo muito interessante que demonstra a superioridade do mediador Jesus é sua
independência quanto à oferta. Todos os sacerdotes do Antigo Testamento ofereciam algo
fora de si mesmos, os animais. Jesus foi o sumo sacerdote que ofereceu a si mesmo, seu
próprio sangue. A morte dos antigos sumos sacerdotes, ou de qualquer outro homem, nada
poderia fazer para a purificação de seus semelhantes, pois, devido ao pecado, seriam como a
ovelha manchada que não era aceita por Deus. Contudo, Jesus é o sumo sacerdote que teve
algo a oferecer de si mesmo, seu próprio corpo e sangue, tomando o lugar de todos os
crentes.264
Na qualidade de mediador, Arão realizava suas obrigações sacerdotais. Contudo, toda a
obra realizada por Arão e seus sucessores, não realizou a real purificação por si mesma.
Segundo Paulo, em Romanos 3.25, o que realizou purificação, mesmo na igreja do Antigo
Testamento, foi o fato de que Jesus viria fazer justiça sobre o pecado que ainda estava
impune. Portanto, se estava impune e foi punido em Cristo, em quem estava proposto fazer-se
a justiça, a purificação que o mediador Arão e seus sucessores faziam, era, na verdade,
dependente de Cristo. Disto se entende que o Mediador Jesus é o alicerce de todos os
mediadores-sacerdotes do Antigo Testamento.
A superioridade de Jesus na qualidade de mediador da aliança também pode ser vista
quanto ao seu exemplo. Como ficou claro no fato dele apresentar sua própria oferta por ser ele
quem era, ficou claro também que Jesus é o modelo de vida que todos devem seguir. Arão foi
um líder dentro do povo, o patriarca de todos os sumos sacerdotes e homem de grande valor;
contudo, não é visto em nenhum lugar no Antigo Testamento um ensino que o coloque, ou a
qualquer outro sumo sacerdote, como referência ou padrão a ser alcançado. No entanto, no
Novo Testamento vê-se Jesus tornando-se padrão de vida para todos os crentes. Em 1
Coríntios 11.1, Paulo pediu aos leitores de sua carta que o imitassem quanto à sua atitude: de
ser imitador de Cristo. Outros textos mostram como Jesus Cristo se tornou o padrão de vida
264 FLAVEL, John, The works of John Flavel, vol. I. Endiburgh: The Banner of Truth Trust, 1997, p. 156.
99
de todos os que crêem (Rm 8.29; Ef 5.1,2; Hb 12.1). Na verdade, o propósito da predestinação
de Deus foi o de tornar homens caídos em imagem de Cristo (Rm 8.29). Alister Mcgrath
resumiu bem esta idéia ao dizer:
Uma questão central da espiritualidade e ética cristã diz respeito à natureza da existência cristã, em relação às dimensões ética e espiritual. O Novo Testamento é fortemente cristomórfico em sua visão em relação à vida redimida, isto é, ele afirma que Jesus Cristo não apenas torna essa vida possível; mas também a modela. A imagem do Novo Testamento de “ser segundo Cristo” expressa muito bem esta noção. As questões envolvidas são de alguma importância, especialmente quanto à questão da maneira pela qual Jesus Cristo pode ser um exemplo ético ou espiritual para os cristãos.265
Jesus, portanto, é o mediador que se tornou padrão de todos aqueles que querem viver a
vida que ele proporciona.
Outro fator que aponta para a superioridade de Jesus como mediador é que ele é o Filho
em sua casa (Hb 3.6). Moisés, por meio de quem Deus estabeleceu a aliança do sacerdócio
levítico, era o servo na casa de seu Senhor, mas Cristo é o Mediador e Filho, o que o torna
proeminente sobre Moisés.266 Na verdade, conforme pode ser visto no texto de Hebreus 3.6, a
casa a qual o autor se refere é a própria igreja: “a qual casa somos nós”. Tal verdade pode ser
confirmada pelo texto de 1Pedro 2.5, no qual se lê: “também vós mesmos, como pedras que
vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes
sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo.” A Igreja, ou o Corpo
de Cristo, é o lugar de sua atuação, sendo Moisés parte desse corpo, ou casa, ele está abaixo
de Jesus, recebendo a atuação deste.267 A imagem que se forma dessa verdade é a descrita por
John Murray: “Mas Cristo é o sacerdote sobre seu trono”.268 Ele é o sacerdote que reina sobre
seu povo, que está sentado à direita de Deus (Hb 1.3), mostrando, mais uma vez, a inter-
relação entre os ofícios de Cristo.269
265 MCGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica. São Paulo, Shedd Publicações, 2005, p. 406.
266 John Murray, Collected writings of John Murray, p. 46,47.267 Ibid., p.46268 Ibid., p. 47.269 Oscar Cullman, Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Líber, 2001, p. 120.
100
2.2. Jesus é superior quanto o sacrifício entregue
“E a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam santificados na verdade. Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste”. (Jo 17.19-21)
Essas palavras da oração de Jesus antes de sua morte mostram bem o empenho desse
Sumo Sacerdote em oferecer a oferta cabal pelo pecado de seu povo. Conforme o texto, no
intuito de trazer salvação para este, Jesus andou em obediência, resistindo ao pecado,
aperfeiçoando-se para ser o sacrifício devido a Deus. Lloyd-Jones descreveu enfaticamente a
dedicação de Jesus para esse propósito: “Ele era plenamente devotado a Seu Pai. Ele Se deu,
Ele Se consagrou totalmente. Estava inteiramente à disposição do Seu Pai, e é por isso que o
Pai pôde usá-lo para realizar esta grande salvação que desfrutamos.”270. Na direção de ser o
salvador de seu povo, Jesus fez a vontade do Pai; foi homem com perfeito relacionamento
com o Pai, para que sua oferta pudesse ser aceita por ele no lugar dos homens. Jesus estava
trazendo a glória da perfeição à humanidade, ao tornar-se o único homem manteve perfeito.
Ao fazer-se oferta a Deus, Jesus mostrou ser superior ao sacerdócio levítico também na
oferta, conforme asseverou Oscar Cullman:
É precisamente sacrificando-se, indo, portanto, ao mais fundo da humilhação, que Jesus exerce a função mais divina que se conhece em Israel: a de mediador sacerdotal. Daí o elo estreito que aparece na Epístola aos Hebreus entre a idéia de Soberano Sacerdote e a de Filho de Deus. A dialética própria do Novo Testamento, que descobre a majestade mais alta na humilhação mais profunda, se manifesta, graças à noção de sumo sacerdote, na morte expiatória de Jesus. Aí reside a grande importância desta concepção cristológica. Jesus realiza de uma vez o antigo sacerdócio judaico e, cumprindo-o, o torna supérfluo.271
Por melhor que fosse a oferta feita por Arão, ela não poderia ser comparada à feita por
Jesus. A oferta feita por aquele mostrava o quanto ele era pequeno e sem valor, tendo de
derramar sangue de animais, pois o dele mesmo não adiantaria nada. Jesus, por sua vez,
270 JONES, Martyn Lloyd. Santificados mediante a verdade. São Paulo: PES, 2006, p. 53.271 Oscar Cullman, Cristologia do Novo Testamento, p. 124.
101
ofereceu um sacrifício superior que o mostrou como o único sacerdote capaz de realizar a
obra de reconciliação com Deus, mostrando com sua morte que, em sua humilhação, estava
presente a glória de seu ser perfeito e valioso, capaz de satisfazer a justiça de Deus. Portanto,
a superioridade deste sacrifício de Cristo pode ser vista em pelo menos dois aspectos: quanto
à oferta e quanto aos seus efeitos, conforme segue.
2.2.1. Superior quanto à oferta feita
Hebreus 7.26,27 fala sobra a superior oferta que Jesus fez. O texto sagrado diz:
Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus, que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do povo; porque fez isto de uma vez por todas, quando a si mesmo se ofereceu.
O texto é claro ao definir a superioridade da oferta feita por Jesus. Antes de tudo, o autor
da Epístola aos Hebreus identificou Jesus como a própria oferta, e, para mostrar sua
superioridade, ele o descreveu Jesus como sendo “santo, inculpável, sem mácula, separado
dos pecadores e feito mais alto do que os céus” (Hb 7.26). Por este motivo, o Senhor não tinha
necessidade de apresentar sacrifícios por si mesmo, como faziam os sumo sacerdotes que o
antecederam. Portanto, sua oferta foi perfeita, por ser ele o sacerdote perfeito.
A perfeição dessa oferta pode ser fundamentada em pelo menos dois aspectos: sua
natureza e seu valor. Ambos os aspectos estão intimamente ligados, mas podem ser visto por
dois lados diferentes. A natureza da oferta deve ser vista no sentido de sua instrumentalidade,
enquanto a questão do valor da oferta deve ser visto quanto à eficácia da mesma. Se por um
lado a oferta era cabal para os propósitos pretendidos devido sua natureza, a mesma era a
oferta eficaz para alcançar esses propósitos devido seu valor.
102
2.2.1.1. A oferta era superior por ter dupla natureza
A oferta feita por Jesus foi superior a entregue por Arão e seus sucessores por sua
natureza ímpar. Focalizando a dupla natureza de Jesus, pode-se entender essa superioridade.
Como já foi abordado na revisão de literatura, a dupla natureza da pessoa do Redentor é a
base de sua obra. Somente por ser Deus-homem é que Jesus poderia realizar sua obra. Como
explicou John Flavel:
Este é um ato do Deus-homem; nenhum outro foi capaz de satisfazer um erro infinito feito a Deus. Mas pela união das duas naturezas em sua maravilhosa pessoa, ele pôde fazê-lo por nós. A natureza humana fez o que era necessário em seu tipo: deu a matéria a ser sacrificada; a natureza divina estampou a dignidade e o valor sobre a oferta, tornando-a uma compensação necessária.272
Portanto, toda a pessoa do Redentor foi dedicada a Deus, conforme também explicou
Plumer: “Sua divindade foi o altar, o qual santificou sua oblação (pois foi sua divindade, e a
obra do Espírito, que impediram a imputação da culpa de Adão). Toda a sua pessoa fez a
oferta, ou apresentou o presente. E toda a sua natureza humana foi sacrificada (pois a morte é
própria de sua humanidade).”273 Portanto, a superioridade da oferta feita por Cristo também
provém de sua dupla natureza.
2.2.1.1.1. A oferta foi superior por ter natureza humana
Em primeiro lugar, somente sendo homem é que Jesus poderia representar homens.
Animais não têm o mesmo valor que homens, tão pouco possuem a mesma posição diante de
Deus para poder substituí-los. Além disso, foi o homem quem pecou, portanto, era o homem
quem deveria sofrer as penalidades da lei.274 Conforme defendeu William Grudem: “a menos
que Cristo fosse plenamente homem, ele não poderia ter morrido para pagar a pena dos
272 John Flavel, The works of John Flavel, vol. I, p.179.273 William S. Plumer, Rock, p. 152.274 Cf. Berkhof, Teologia sistemática, p. 319.
103
pecados do homem.”275 Somente dessa forma Jesus poderia ser um sacrifício verdadeiramente
substitutivo.
Em segundo lugar, o fator que demonstra a superioridade da natureza da oferta feita por
Cristo quanto à humanidade dele, é o aperfeiçoamento da oferta. Os animais ofertados por
Arão e seus sucessores não haviam satisfeito a vontade de Deus em ter seus preceitos
obedecidos, portanto, não poderiam satisfazer plenamente a justiça de Deus. Como explicou
Charles Hodge:
A lei de Deus é imutável. Não pode nem ser anulada nem prescindida. Isso é assim tanto com respeito aos seus preceitos quanto à sua penalidade. Tal é a natureza de Deus como santo, que ele não pode deixar de exigir que suas criaturas racionais sejam santas. Nunca pode deixar de ser-lhes obrigatório amar e obedecer a Deus.276
Jesus, portanto, tinha de ser homem para obedecer a lei como homem, algo que nenhum
animal das ofertas araônicas poderia fazer, e nem mesmo outro homem pôde fazê-lo. Tendo
feito isso, Jesus tornou-se a oferta que poderia representar o homem na obediência da lei,
satisfazendo plenamente a vontade de Deus, ele. As ofertas veterotestamentárias não
poderiam fazer o mesmo que Cristo fez, pois não tinham natureza humana para representar
homem e obedecer às ordens divinas; tão pouco natureza divina, para satisfazer plenamente a
Deus.
Assim como os animais ofertados sofriam, Jesus sofreu. Ele teve sua carne rasgada e seu
sangue derramado; contudo, seu sofrimento para tornar-se a oferta perfeita não se deu
somente no momento de seu martírio. Como visto em sua superioridade sobre os ofertores do
Antigo Testamento em relação ao amor, Jesus deixou sua glória divina para ser tratado como
homem caído, embora nunca houvesse pecado. Ele deixou de lado o conforto celeste para
tomar sobre si as enfermidades, dores e limitações humanas. Sua vontade era recriar a
275 GRUNDEM, William. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 445.276 Charles Hodge, Teologia sistemática, p. 852. Esse ponto de Hodge tem a ver com o relacionamento do
homem com a lei de Deus. Por sua vez, Deus pode considerar uma lei já cumprida e não mais necessária, como ocorre com o sacerdócio araônico; Deus o considera obsoleto, pois Cristo é sacerdote perfeito, consituído por força de um juramento e não da lei.
104
natureza humana, conforme ensinou Paulo em Efésios 4.22-24,277 tornando-a nele a oferta
perfeita. Já os animais ofertados não poderiam fazer o mesmo, podendo, no máximo, perder
suas vidas.
2.2.1.1.2. A oferta foi superior por ter natureza divina
Assim como por sua natureza humana, Jesus foi superior às ofertas entregues pelo
sacerdócio levítico devido à sua natureza divina. Sendo Deus, o Mediador pode representar
mais de um homem por ter valor infinito. Ainda que algum outro ser humano fosse aceito por
Deus, ele poderia apenas representar um único ser humano, pois esse seria todo o seu valor.
Contudo, a divindade de Cristo conferiu valor infinito à sua oferta, permitindo-lhe representar
a todos quantos desejasse.278
Outro aspecto do valor da natureza divina do Redentor é a abrangência temporal e
numérica dos efeitos do sacrifício. Se Jesus não fosse Deus, sua oferta teria pouco valor e não
poderia substituir todos os crentes em toda a história, tão pouco superar a multidão de seus
pecados (Rm 5.12-21): “foi a natureza divina do Redentor que tornou possível o sacrifício de
uma vida em favor e no lugar de muitas vidas, e as salvou todas”.279 Isso significa dizer que,
não existem limites temporais que não possam ser transpostos pelo infinito valor da divina
oferta feita por Jesus.
A divindade de Cristo também o fez oferta superior de modo que pode suportar toda a ira
de Deus sobre si. Ainda que um homem fosse aceito para representar outro morrendo por ele,
esse jamais poderia suportar o peso da ira de Deus devido à multidão de pecados, e isso de
277 Cf. RICHARDSON, Alan. An introduction to the theology of the New Testament. New York: Harper and Row, Publishers, 1958, p. 242.
278 Cf. Strong, Teologia sistemática, p. 353,354.279 CAMPOS, Heber Carlos de. A pessoa de Cristo, as duas naturazas do redentor. São Paulo: Cultura Cristã, p.
115.
105
apenas um único homem. Contudo, Jesus é o sacrifício que suportou o peso de todos os
pecados daqueles que lhe fora dado pelo Pai. “Por essa razão, a natureza humana que levou o
castigo sobre si teve que ter o apoio da natureza divina.”280
Mesmos os grandes personagens da história bíblica não puderam satisfazer a Deus.
Como já foi visto, todos pecaram e envergonharam o nome do Senhor, mas todos eles viviam
na aliança com Deus, o que os colocou em Cristo. Como escreveu Paulo: “nos predestinou
para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua
vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado”
(Ef 1.5,6); ou seja, a graça de Deus é concedida por causa de Cristo. É para Cristo que seu
povo deve voltar os olhos, a fim de ter as promessas de Deus cumpridas em suas vidas, 281 pois
somente ele pode alcançá-las, sendo o único capaz de satisfazer a Deus, pelo fato de que
nenhum outro tinha natureza divina.
2.2.1.2. A oferta era superior por seu valor
A questão do valor da oferta de Cristo está muito próxima da questão das naturezas,
porque é dependente da dupla natureza do Redentor. Como já foi visto, nenhuma outra oferta
feita pelos antigos sacerdotes poderia ter o valor da oferta de Jesus, pois não eram homens
para que pudessem representar homens, e não eram divinas para ter o valor infinito.
De modo muito simples, a divindade e a humanidade deram a Jesus valor superior a
todas as outras ofertas. Arão e seus sucessores só ofereceram animais. Cristo ofertou-se e, por
sua humanidade, fez-se um verdadeiro representante daqueles que ofenderam a Deus. Além
disso, por sua divindade, possui valor infinito, capaz de satisfazer a Deus. A oferta não só
280 Idem, p. 7.281 Cf. Calvino, Inst., III.2.32, p. 436.
106
alcançou o valor ideal para o propósito de alcançar a redenção e a reconciliação entre Deus e
os homens, mas também satisfez a justiça de Deus.
Como já foi abordado anteriormente, as ofertas entregues pelos antigos sacerdotes
tinham um importante papel na vida do povo de Israel. Contudo, a contínua necessidade de
sacrifícios mostra que tais ofertas não pagavam a dívida diante de Deus, evidenciando o
pouco valor delas. Por outro lado, por ter satisfeito a justiça de Deus, a oferta de Cristo não
necessita de repetição. Em quatro momentos, o autor da epístola aos Hebreus usa a expressão,
“de uma vez por todas” (evfa,pax, a[pax), em contraste com a repetição de sacrifícios
araônicos: 7.27; 9.12; 9.26; 10.1-10. A repetição é por causa do valor ínfimo das ofertas feitas
desde Arão, enquanto a oferta de Jesus, feita “de uma vez por todas”, mostra-se como a mais
valiosa e cabível possível. Portanto, não só a oferta de Cristo tinha o valor necessário, como
ele foi efetivamente usado e aplicado para pagar a dívida dos eleitos diante de Deus.
2.2.2. O sacrifício foi superior em seus Efeitos
O sacrifício de Jesus, além ter sido superior quanto à oferta, também o foi quanto aos
efeitos produzidos. Certamente, quando algo mais apropriado e de maior valor é entregue para
um determinado objetivo, produzirá resultados proporcionalmente superiores aos produzidos
por aquilo que é inferior.
Neste sentido, a oferta de Jesus produziu efeitos muito superiores aos das ofertas
entregues pelos antigos sacerdotes. Pode-se mencionar que o sacrifício de Jesus trouxe
liberdade do jugo da lei, assim com proporcionou reconciliação com Deus e tudo isso de
modo permanente. Dentre os muitos efeitos que poderiam ser citados, esses parecem englobar
107
os principais aspectos, ou melhor, benefícios que demonstram a superioridade dos efeitos
produzidos pelo sacrifício de Cristo.
2.2.2.1. Porque os efeitos trouxeram liberdade do jugo da lei
Na epístola aos Gálatas 5.1, Paulo escreveu: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou.
Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão.” Segundo
Hendriksen, os destinatários dessa carta haviam deixado o paganismo e suas muitas
exigências, mas estavam sendo tentados a aderir aos judaizantes e se colocar sob um novo
jugo: da lei de Moisés.282 Nos versos posteriores, Paulo mostra quão profundamente errada é
essa atitude: “De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei; da graça
decaístes.” (v.4). Tais palavras têm tanto peso devido ao efeito do sacrifício de Cristo de
libertar o pecador do jugo da lei.
Ao entregar-se como sacrifício a Deus, Jesus tirou toda a necessidade de cumprimento da
lei com a finalidade de se alcançar justiça, ou salvação diante da ira de Deus. A lei que
estabelecia o derramamento de sangue como pena pelo pecado já foi cumprida “de uma vez
por todas” (Hebreus), e agir como se ela tivesse de ser cumprida novamente era ignorar toda a
obra de Cristo. Por este motivo é que Paulo diz “decair da graça” aquele que voltar-se para as
exigências da lei e circuncidar-se, o que funciona, no texto de Gálatas, como um símbolo de
que a pessoa estava vivendo de acordo com as exigências da lei.283 Paulo não desmereceu o
papel da circuncisão. Ele apenas ensinou que tal prática já havia acabado com a vinda de
Cristo. Ela teve seu lugar, mas em Cristo circuncisão ou incircuncisão são iguais, pois o que
conta é a fé nele.284 Aqui há uma tensão entre o peso do jugo da lei, que escraviza o homem
282 Cf. HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento, Gálatas. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 278,279.
283 Cf. STOTT, John W. A mensagem de Gálatas. São Paulo: ABU, 2000, p. 122.284 Cf. CALVINO, João. Gálatas. São Paulo: Paracletos, 1998, p. 156.
108
pois não consegue cumprí-la, e a graça de ter Cristo como justificador pessoal que cumpre
todas as exigências da lei e satisfaz a justiça divina no lugar do homem. John Stott dá uma boa
explicação para essa tensão quando escreveu:
Em outras palavras, devemos desfrutar a gloriosa liberdade de consciência que Cristo comprou para nós através do perdão. Não devemos cair na idéia de que temos de ganhar a nossa aceitação junto a Deus através da obediência. O quadro parece ser o de um boi arcado sob um pesado jugo. Uma vez libertado desse jugo esmagador, ele tem a capacidade de erguer-se novamente (cf. Lv 26.13).
O mesmo acontece na vida cristã. Uma vez estivemos sob o jugo da lei, subjugados por exigências as quais não tínhamos capacidade de atender, como também por sua terrível condenação por causa de nossa desobediência. Mas Cristo atendeu às exigência da lei em nosso lugar. Ele ‘nos resgatou do jugo da lei’ (Gl 3.13). E agora removeu o jugo de nossos ombros e nos libertou para que pudéssemos ficar de cabeça erguida.285
Segundo Stott, o que crê em Cristo está livre da obrigação de seguir uma lei, para
alcançar a salvação, que lhe é impossível cumprir, mas também se vê livre da morte que é a
condenação prevista na lei para aqueles que a descumprem. Os sacrifícios araônicos não
podiam produzir tais efeitos. Como já foi visto, os animais não eram homens, de modo que,
nem mesmo a lei poderiam cumprir, portanto, não poderiam retirar esse jugo de sobre os
crentes. Tão pouco aqueles sacrifícios poderiam livrar o ofertante da morte, pois, como não
tinham o valor necessário, não satisfaziam a justiça de Deus, mantendo a necessidade de
derramamento de sangue.
Em Cristo, a morte perde seu domínio sobre aqueles que estão nele. Romanos 6.9 diz que
“a morte já não tem domínio sobre ele (Cristo)”, e pelo desenvolvimento do texto esse fato é
aplicado aos crentes mostrando que, em Cristo, eles não mais recebem o salário do pecado, a
morte (6.23a). Hendriksen salienta que a palavra “salário” (ovyw,nia) tem um sentido
militar, o que torna o salário como um soldo para aquele que serve o general, no caso, o
pecado.286 Tal idéia comunica bem a noção de que há um peso sobre aquele que recebe o
salário, mostrando que é dominado por algo. Contudo, tal domínio é dissipado por Cristo que,
contrastando com o salário que é a morte, provê o dom gratuito que é a vida eterna (Rm
6.23b).
285 Ibid., p. 121.286 Cf. Hendriksen, Romanos, p. 276.
109
Sendo o sacrifício que morreu e ressuscitou, Jesus venceu a morte e aquele que tinha o
domínio sobre a morte, “à saber, o Diabo” (Hb 2.14). O aguilhão da morte, o pecado, aquele
que fere a todos, foi vencido por Cristo, e, unidos a ele, aquele aguilhão pode ser retirado,
juntamente com a servidão do pavor da morte.287 “Redenção – a morte de Cristo por nós – é,
portanto, fundamental, diz Paulo, para entrar na nova vida – Cristo vivendo em nós – a qual é
totalmente livre da penalidade do pecado e também significativamente livre de seu poder
dominador sobre nós.”288
Os sacrifícios de Arão e seus sucessores tinham sua importância. Contudo, seus efeitos
não podem ser comparados aos efeitos do sacrifício de Jesus. Somente ele com sua oferta de
vida, poderia dizer: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos
aliviarei.” Jesus é aquele que alivia do peso da lei e traz real salvação e esta, como defende
Alan Richardson, “é obtida apenas pela resposta obediente da fé à proclamação da ação de
Deus em Jesus Cristo.”289 A única obra que resta ao homem é crer, o que também é um dom
de Deus (At 11.18, 16.14; Fl 1.29, 2.12-13), o qual só pode ser usufruido por aqueles que
foram libertos do jugo da lei.
2.2.2.2. Porque os efeitos proporcionaram reconciliação com Deus
Um estudo superficial do Antigo Testamento levará a pessoa a entender que os
sacrifícios realizados pelos sumo sacerdotes aplacavam a ira de Deus. Contudo, relembrando
Romanos 3.25, vê-se que, na verdade, o que aplacava a ira de Deus era o fato dele já ter
determinado manifestar sua justiça em Cristo Jesus, ou na descrição de João: “Cordeiro que
foi morto desde a fundação do mundo” (Ap 13.8). O que significa que Jesus foi eleito para a
287 Cf. John Murray, Collected writings, p. 39.288 Frank A. James III, The atonment in the life of the christian and the church, in: The glory of atonement.
Downers Grove, p. 411.289 Alan Richardson, An introduction to the theology of the New Testament, p. 24.
110
missão de ser o cordeiro imolado já na eternidade,290 o que foi levado em consideração por
Deus já no Antigo Testamento, devido à certeza da realização histórica de seu decreto.
John Murray fez uma boa explicação mostrando a relação do pecado, da ira de Deus, da
alienação de Deus e da reconciliação em Cristo:
O pecado envolve culpa e a morte de Cristo é a provisão por nossa culpa. Pecado evoca a ira de Deus e propiciação é o que concilia a ira de Deus. Pecado aliena-nos de Deus e reconciliação é dirigida à exigência surgida do pecado. O pecado nos confia à servidão dele mesmo e a de Satanás. Redenção é a provisão para esta servidão, a morte de Cristo é nosso resgate.291
Para todas as necessidades e deficiências causadas pelo pecado, o sacrifício de Cristo é a
provisão correta para resolvê-las. Não há nada mais adequado para pôr fim à alienação entre
Deus e o homem causada pelo pecado do que Jesus. Em seu sacrifício ele trouxe paz entre
Deus e os justificados: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1). É simples observar nesse verso que a paz não veio por
nenhum outro caminho que não Cristo, diante disto, ouvi-lo dizer: “Eu sou o caminho” (Jo
14.6); passa a ter muito mais sentido.
De fato, é somente por meio do sacrifício de Jesus que a paz com Deus pode ser
estabelecida na vida de homens que outrora estavam “mortos em seus delitos e pecados”, que
andavam “segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito
que agora atua nos filhos da desobediência” (Ef 2.1,2). Sem os efeitos do sacrifício de Cristo
em sua vida, o homem só pode andar segundo as “inclinações” da carne, fazendo sua vontade,
confirmando a natureza de filho da ira (Ef 2.3). Em Cristo a paz é estabelecida (Rm 5.1). As
inclinações, outrora segundo a carne, portanto contrárias a Deus, voltam-se a ele, a ponto de
levar os que eram inimigos de Deus – pois se há paz agora é porque houve guerra – a
assentar-se nos lugares celestiais, em Cristo (Ef 2.4-6).
290 Cf. KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento, Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 486.
291 John Murray, Collected writings, p. 38.
111
Os efeitos da reconciliação produzidos pelo sacrifício de Cristo são tão profundos que,
além da paz com Deus, o pecador pode ser adotado por ele se estiver em Cristo. A Confissão
de Fé de Westminster ensina o seguinte sobre a adoção:
A todos os que são justificados, Deus se digna fazer participantes da graça da adoção em e por seu único Filho Jesus Cristo. Por essa graça, eles são recebidos no número e gozam liberdade e privilégios dos filhos de Deus, têm sobre si o nome dele, recebem o Espírito de adoção, têm acesso, com ousadia, ao trono da graça, e são habilitados a clamar: “Abba, Pai”; são tratados com piedade, protegidos providos e corrigidos por ele, como por um pai; nunca, porém, abandonados, mas selados para o dia da redenção, e recebem as promessas como herdeiros da eterna salvação.292
A Confissão de Fé acertadamente relaciona a justificação com a adoção, pois essa só
pode existir se aquela se estabelecer. Dentro do estabelecimento da reconciliação, além da paz
com Deus, Cristo proporciona a adoção de seus justificados, que passam a ser seus irmãos,
tornando-o o primogênito entre muitos irmãos (Rm 8.29). Não há outro meio para ser adotado
por Deus senão estar em Cristo. Em Efésios 1.5 Paulo deixou claro que a adoção está
predestinada desde a eternidade a ser realizada em Cristo. O período dos sacrifícios araônicos
passou e somente o sacrifício de Cristo traz justificação.
Mais uma vez, a superioridade de Cristo quanto sua relação com o Espírito Santo pode
ser aplicada, pois também na adoção se vê sua ação. É por meio da ação do Espírito que os
filhos de Deus podem clamar “Abba Pai” (Rm 8.12-17), e como já visto, é
cristocentricamente que o Espírito age nos servos de Deus. Por mais este fato, portanto, vê-se
a superioridade do sacrifício de Cristo, pelo qual há reconciliação com Deus, resultando na
adoção, aplicada pelo Espírito da adoção.
2.2.2.3. Porque os efeitos são permanentes
Os efeitos do sacrifício de Cristo também são superiores aos de Arão e seus sucessores
por serem permanentes. A declaração do autor de Hebreus ao descrever a contínua
necessidade de sacrifício do sacerdócio levítico, contrastada com o sacrifício de Cristo feito
292 CFW, XII,I, p. 70.
112
de uma vez por todas (Hb 7.26-28), o que evidencia mais esta superioridade dos efeitos do
sacrifício de Cristo.
O sacerdócio levítico foi caracterizado pela constante necessidade de apresentar
sacrifícios. Os sacerdotes eram imperfeitos, pecadores, e suas ofertas eram igualmente
inadequadas para alcançar a justiça divina, sendo assim, o derramamento de sangue era
constante e ineficaz. Jesus ofereceu o sacrifício que não precisou de repetição, pois seus
efeitos duram eternamente, pois são eficazes no propósito de satisfazer a justiça de Deus. Em
Hebreus 9.12, o autor diz que Cristo não derramou sangue de bodes e bezerros, mas o seu
próprio, o qual alcançou de uma vez por todas a redenção, sendo esta caracterizada como
eterna, ou seja, um único sacrifício obteve efeitos eternos. Por outro lado, os sacrifícios
ineficazes para estabelecer justiça, tinham o papel de conduzir a pessoa a Cristo,293 mas,
mesmo nesse propósito, eles foram falhos, ou insuficientes, tendo em vista que Cristo veio e
foi rejeitado por seu próprio povo. Portanto, Jesus é superior em seu sacrifício também por ter
esses efeitos permanentes por toda a eternidade.
3. A SUPERIORIDADE DO OFÍCIO REAL DE CRISTO, JESUS
É MAIOR QUE DAVI
293 Cf. João Calvino, Hebreus, p. 231.
113
Diversas declarações bíblicas apontam para o ofício real de Cristo. Contudo, para a
correta abordagem deste ofício é necessário que se diferencie o Filho como rei, devido sua
divindade, e devido à sua humanidade. Strong disse que o ofício real
deve ser distinto da soberania que Cristo possuía em virtude da sua natureza divina. O reinado de Cristo é a soberania do Redentor divino-humano que lhe pertencia por direito desde o momento do seu nascimento, mas que foi exercido plenamente a partir da sua entrada para o estado de exaltação.294
Por outro lado, Berkhof lembrou que o reinado do Filho como Deus e seu reinado
outorgado por ser o Redentor sempre pertenceram a ele. Ele explicou que esse último é parte
do primeiro, mas como uma nova forma, sendo administrado para um novo fim.295 Isso
significa dizer que o Filho sempre teve o mesmo poder. Contudo, ao ter se encarnado, o
Redentor teve de ser aperfeiçoado em sua natureza (Hb 2), tanto para que pudesse ser o
profeta e sacerdote perfeitos, quanto para ser o rei perfeito.
O fruto desse aperfeiçoamento, visto no reinado de Cristo, é que será comparado com o
reinado de Davi. Este foi um valoroso rei de Israel, que estabeleceu um reinado de obediência
e busca da glória de Deus. Mesmo assim, em muitos momentos demonstrou que só poderia
ser sombra do grande rei de Israel, o qual conduziria seu povo a Deus.
Para esclarecer tal comparação, serão abordados três aspectos do reinado de Jesus em
comparação com o de Davi. Essa comparação será feita quanto ao domínio, o poder e o
tempo de reinado de Cristo com os de Davi.
3.1. Jesus é superior em seu domínio
“Toda autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt 28.18)
294 Strong, Teologia sistemática, p. 466,467. Ver também Berkhof, Teologia sistemática, p. 407.295 Cf. Berkhof, op. cit., p. 407.
114
Por domínio deve-se entender o reino de Cristo. Portanto, o que será abordado nesta
seção são as fronteiras ou o alcance do governo de Jesus. Para tanto, esse verso do evangelho
de Mateus apresenta de forma simples e abrangente tais fronteiras. De acordo com o texto,
não há fronteiras; Cristo declara-se senhor de toda a criação. Diante do tamanho de seu
domínio já é possível ver sua superioridade sobre Davi.
Lembrando da promessa de Deus para Abraão, portanto, a Israel, quanto à terra
prometida (Gn 15.18), a mesma tinha fronteiras definidas. Elas limitaram o reinado de
qualquer um que viesse a se tornar rei de Israel. Nenhum rei teria um reinado maior do que o
prometido por Deus. Na verdade, nem mesmo o rei Davi, que foi um grande líder militar,
conseguiu conquistar toda a terra que fora prometida por Deus. Nesse sentido, portanto, vê-se
que o domínio de Cristo é em muito superior ao de Davi.
Por outro lado, algumas situações na vida de Jesus parecem contradizer o que o texto de
Mateus 28.18 diz. Sendo o rei que domina sobre tudo e todos, Jesus diversas vezes pediu para
que seu poder não fosse revelado por aqueles que experimentaram algum milagre realizado
por ele. Foi assim com o leproso (Mt 8.4), também com os cegos (Mt 9.30), e ainda com ele
mesmo, ao abster-se de pedir ao Pai que enviasse legiões de anjos para socorrê-lo (Mt
26.53).296 Parece estranho que aquele que diz de si mesmo ter todo o poder não queira que o
mesmo seja visto por todos. Contudo, segundo Hendriksen, é exatamente isso que Jesus
desejou a fim de esperar o momento certo: “É a investidura de Cristo ressurreto com essa
soberania sem restrições e universal que Jesus agora reivindica para si e que especialmente
dentro de uns poucos dias, depois de sua ascensão ao céu, começa a exercer.”297 O momento
certo, então, seria após a ressurreição de Jesus, quando ele completaria sua vitória sobre
aquele que tinha o poder sobre a morte, o Diabo, e ascenderia ao céu para assentar-se à direita
de Deus (Rm 8.34; Cl 3.1; Hb 1.3).
296 Cf. HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento, Mateus, vol. II. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 698.
297 Hendriksen, Mateus, vol. II, p. 699.
115
Diante disto, então, vê-se que a única restrição do domínio de Cristo foi a auto-imposta,
e, mesmo assim, passageira. Jesus sempre teve todo poder em suas mãos, visto que é Deus,
mas queria cumprir seu papel como Mediador da aliança como um homem, para então exercer
todo o poder que era dele por direito e outorgado a ele por comissão, ao ter cumprido sua
missão quanto aos seus ofícios profético e sacerdotal e, então, ascendido aos céus.
Ainda que o domínio de Cristo seja sem fim sobre toda a criação, não é evidente para
todos que ele exerce esse domínio. Mesmo estando à destra do Pai por ter cumprido toda a sua
missão (Hb 1.3), Jesus ainda não é reconhecido por todos como o senhor de todas as coisas
(Cf. Hb 2.8). Esse fato está relacionado, como se segue, com a natureza espiritual do domínio
de Cristo. As seções seguintes visam abordar os aspectos pormenorizados de seu domínio,
mostrando que, devido à sua natureza, à forma de sua ascensão ao poder e ao exercício desse
poder, o domínio de Jesus é superior ao de Davi.
3.1.1. Jesus é superior devido à natureza do domínio
Por natureza entende-se aquelas características mais básicas que definem o domínio de
Cristo. No caso, o domínio do Redentor se estende tanto espiritual, quanto fisicamente.
Dentro dessas características, o domínio de Jesus se revela superior ao de Davi devido a
alguns aspectos que abrangem a extensão e a eficácia do ofício real sobre seus domínios.
Portanto, segue-se uma investigação sobre os aspectos que mostram a superioridade de Cristo
sobre Davi em seu domínio espiritual e físico.
3.1.1.1. O domínio superior de Jesus é de natureza espiritual
116
O primeiro aspecto quanto à natureza do reino de Cristo em comparação ao de Davi é
que o reino de Cristo é espiritual. Os méritos de Cristo, que o levaram a ser o rei de seu reino,
estão ligados à realidade espiritual da vida humana, enquanto o reino dado graciosamente a
Davi só lhe deu soberania limitada sobre seus súditos. O domínio espiritual de Jesus lhe
possibilitou conduzir verdadeiramente seus súditos de acordo com sua vontade. Por mais
poderoso que Davi pudesse se tornar, ele não teria poder pleno sobre a vida espiritual de seu
povo, ainda que como líder tivesse alguma influência.
Os reis de Israel tinham o papel de conduzir o povo de Deus em seus caminhos,
conforme pode ser visto no glossário. A influência destes sobre a vida espiritual do povo era,
basicamente, a de manter a lei de Deus como o regimento do reino e de manter uma conduta
compatível com essa lei, a fim de ser exemplo. Sendo assim, Davi poderia fazer muito pouco
quanto à vida espiritual de seus súditos, se comparado com Cristo, podendo, no máximo,
buscar manter o pacto com Deus como a lei reguladora de seu reino. Isso, no entanto, não
garantia que ele estivesse conduzindo seus súditos a Deus, pois servia como um controle
puramente externo, já que Davi jamais teve acesso ao interior de seus súditos.
Por sua vez, Cristo é aquele que tem um domínio espiritual. De acordo com Berkhof,
esse reino espiritual “é o governo mediatário [sic] estabelecido nos corações e nas vidas dos
crentes. Ademais, ele é espiritual porque leva direta e imediatamente a um fim espiritual, a
salvação do Seu povo.”298 Isso significa que, no intuito de manter o pacto e conduzir o povo
de Deus a ele mesmo, Jesus tem a melhor situação e condições de fazê-lo, pois seu reino é de
natureza espiritual e alcança áreas da vida de seus súditos as quais Davi não alcançou, pois
este é limitado por sua pecaminosidade e pela natureza puramente física de seu reino.
Um aspecto interessante do reino espiritual de Cristo é o seu relacionamento com as
coisas materiais. Diferentemente dos os reis terrenos, Jesus não se valeu dos tesouros da terra
298 Berkhof, Teologia sistemática, p. 407.
117
para tornar-se rei. Observando bem os dias do Redentor na terra, é possível ver que ele não
tinha nenhum tesouro ou bens, nem mesmo onde reclinar a cabeça (Mt 8.20). Ele nasceu num
estábulo e foi colocado numa manjedoura que não eram dele (Lc 2.1-7); comia na casa de
seguidores (Lc 19.5); usou uma jumenta emprestada para sua entrada triunfal em Jerusalém
(Mt 21.2-10) e até foi sepultado num túmulo que não era dele (Mc 15.45,46). Ninguém diria
que tão miserável vida era a de um rei. No entanto, Jesus mostrava-se como o rei de um reino
poderoso que iria julgar a todos (Lc 22.29,30), um reino que não é deste mundo, do contrário
seu poderio bélico teria tentado libertá-lo das mãos dos judeus (Jo 18.36). Jesus nunca buscou
os meios terrenos para estabelecer seu reino, pois este é espiritual.
A superioridade de tal reino mantém-se até os dias de hoje. O poderio de Davi já passou,
e não fosse a Bíblia não se teria muitas notícias de sua existência, pois foi sobrepujado por
outros reinos deste mundo. Por outro lado, o reino de Jesus, por ser de natureza espiritual, é
superior, pois pode ser visto desde o primeiro homem que creu e viveu no pacto de Deus,
Adão, e mostra-se ainda mais claramente no clamor daqueles que disseram: “Hosana ao Filho
de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas!” (Mt 21.9); e
ainda pode ser visto em sua igreja hoje, a qual ele governa.
Através desse governo também se pode ver o domínio espiritual de Jesus. Ele governa
sua igreja não por meio da força de armas, ou por decretos escritos à pena, ou ainda pela
posse de muitos tesouros, mas subordinando as almas dos eleitos ao seu governo espiritual e
dirigindo todas as coisas para o bem deles (Rm 8.28).299 Ele conquista essas almas não por um
poder bélico, mas lutando contra as fortificações internas da mente de um pecador, que lutam
contra o avanço do evangelho.300 Porém, se ele conduz todas as coisas para o bem dos seus,
então seu domínio também inclui a esfera física da existência – o que será exposto adiante.
299 Cf. Flavel, The works of John Flavel, vol. I, p. 199.300 Cf. Ibid., vol. I, p. 199.
118
Por sua vez, Davi, por ter um governo quase que exclusivamente civil, ou físico, que não
diferenciava os crentes dos incrédulos, ou os circuncisos de coração dos incircuncisos, não
pôde alcançar os melhores resultados no intuito de conduzir seu povo na aliança. Ele não
conseguiu conduzir-se perfeitamente na aliança, quanto mais a seus súditos. A superioridade
do reino espiritual de Jesus se vê no fato dele agir nos corações dos pecadores, podendo unir
todo o seu povo, onde quer que esteja, expandindo seu domínio até o ponto desejado, por ter
ele cumprido todas as postulações da aliança, da qual ele é o Mediador. Para isso, ele usa tudo
o que existe para que gere o bem à sua igreja (Rm 8.28).
3.1.1.1.1. Superioridade em relação à extensão do domínio espiritual
Dentro de suas atribuições reais, Davi exercia algum domínio espiritual sobre Israel. O
mesmo, no entanto, definia-se apenas em sua influência sobre seus súditos, seja na
manutenção do pacto, ou ao registrar a revelação de Deus vista nos salmos. Ainda que Davi
pudesse obrigar a nação a ser reconhecida como o povo do pacto, isso não garantia que seus
súditos se vissem como povo da aliança, ou que a aceitassem como padrão de vida. Isso
significa dizer que o fato de seus súditos serem externamente identificados com o pacto não
implicava serem eles internamente seguidores do pacto.
Em sua própria vida Davi demonstrou fraquezas espirituais. Essas fraquezas trouxeram
grandes problemas ao seu reino. Na ocasião de seu adultério com Bate-seba, enquanto seu
exército estava na batalha, Davi estava em seu palácio e, tendo acordado tarde, viu a esposa
de Urias, cobiçou-a e consumou seu desejo pecaminoso (2Sm 11.1-4). Outra ocasião foi a
revolta de seu filho Absalão (2Sm 15). Nesse caso, a fraqueza de Davi em deixar de perseguir
um assassino (2Sm 13.39) lhe impediu de fazer valer a lei de Deus. Em tudo isso se vê que o
119
rei Davi, mesmo tendo experimentado muitas vitórias, possuía fraquezas espirituais que o
tornavam inapto para ter um governo espiritual plenamente eficaz.
Esse fato restringia muito o domínio espiritual de Davi sobre seu povo, definindo-o
como uma simples influência, ainda que de muito valor. Por sua vez, Jesus exerceu um
domínio espiritual muito mais extenso sobre seus súditos. Ele exerce domínio total sob seus
súditos, de modo que os conduz pelo caminho correto. Ele faz muito mais do que
simplesmente influenciar, ele efetivamente controla a seus discípulos e domina sobre todos os
aspectos de suas vidas. Esse domínio, contudo, será mais bem abordado na seção sobre o
exercício do poder, mas para esta seção pode-se entender que Jesus é superior a Davi na
extensão de seu domínio espiritual pois governa áreas da vida de seu povo as quais Davi
jamais teve alcance, como será descrito na seção seguinte.
3.1.1.1.2. Superioridade em relação à eficácia do domínio espiritual
Cristo é aquele que alcança todo o território que lhe está proposto. Lembrando do que foi
trabalhado na seção anterior, seu território é essencialmente espiritual; portanto, seu domínio
se dá no coração dos crentes. Para aferir o alcance do domínio de Cristo é necessário, então,
avaliar sua obra de conquista de território, ou de alcance de vidas. Quanto a esse alcance Jesus
disse: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o
lançarei fora… Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o
ressuscitarei no último dia.” (Jo 6.37,44) Nesses versos fica evidente que o território a ser
alcançado por Jesus são pessoas. Além disso, essas pessoas lhe são dadas pelo Pai e todas
chegam às suas mãos, e ele não perde nenhuma delas (Rm 8.38,39).
120
O domínio de Jesus é superior ao de Davi, pois, sendo espiritual, reúne todos aqueles que
são verdadeiros súditos. Na história de Davi é possível encontrar momentos em que pessoas
se levantaram contra ele, inclusive dentro de sua própria casa (2Sm 15). Contudo, por ser
espiritual, o domínio de Jesus não possui traidores, pois todos os seus súditos são sustentados
por ele, sendo afastados da iniqüidade, impedidos de andarem em seus próprios caminhos e
ajudados diante da tentação (1Co 10.13).301
Como um governador espiritual, Jesus foi, e é eficazmente perfeito. Todos os que lhe são
dados chegam às suas mãos e tornam-se governados por esse Rei perfeito. Além disso, seu
domínio, mesmo naqueles que já estão sob seu governo, progride tornando-se ainda mais
abrangente. Essa progressão é o desenvolvimento da salvação por meio da santificação até a
glorificação. Portanto, Cristo está aumentando seu domínio a cada avanço de sua obra na vida
de um súdito. O avanço do domínio de Jesus em um súdito é de tal forma que a vida deste é a
vida de seu Rei, conforme descreveu Paulo: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou
eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.19b,20a).
Como foi abordado anteriormente, o rei era o responsável por conduzir o povo da aliança
em seus termos. Isso era feito através de seu exemplo em seguir as leis de Deus e em
estabelecer a justiça em seu reino por meio dessa mesma lei. Contudo, houve reis que foram
retos diante de Deus, mas que não conseguiram evitar que no meio de seu povo existissem
ímpios. Também houve reis que não andaram em retidão, agravando o estado de pecado no
meio do povo. Seja como for, nenhum deles poderia proclamar-se um vitorioso em conduzir o
povo de Deus nos caminhos do pacto.
A fidelidade que não foi possível ser implantada no povo de Deus por meio dos reis do
Antigo Testamento, o foi pela ação de Cristo. Há muito pouca participação de qualquer rei ou
oficial do Antigo Testamento na fidelidade do povo a Deus. Por mais que tenham se
esforçado, eles não tinham o alcance e a eficácia de Jesus. Somente através do Rei dos reis é
301 Cf. Flavel, The works, vol. I, p. 204. Doravante The works.
121
que o objetivo real de conduzir o seu povo a Deus se concretiza. Como já foi abordado, o
próprio rei Davi demonstrou suas fraquezas e sua incapacidade em manter-se perfeito no
cumprimento da lei de Deus.
Além de Davi, o grande rei Salomão, conhecido por sua sabedoria, e por sua riqueza,
também não conseguiu andar perfeitamente nos caminhos do Senhor. Ele adulterou (1Rs
11.3), e abriu as portas do reino à idolatria (1Rs 11.4-8). Tudo isso mostra a fraqueza dos
antigos reis, que, em muitas situações não conseguiram se manter nas leis de Deus, muito
menos conduzir seu povo nelas. Isto aponta para a pequena ou mesmo nula eficácia do seu
governo espiritual sobre o povo.
Jesus, no entanto, é o rei que conduz seu povo de modo a não perder nenhum súdito.
Somente ele foi capaz de cumprir totalmente o pacto, satisfazendo a Deus e garantindo a
salvação daqueles sobre os quais ele estende seu reino espiritual. O catecismo de Heidelberg
diz: “Como Rei, ele nos governa por sua Palavra e Espírito e nos protege e guarda na salvação
que conquistou para nós”302 Jesus é o rei santo tratado como pecador, para que seus súditos
fossem tornados justiça diante de Deus (2Co 5.21). Nenhum outro rei poderia ter feito isso,
pois nenhum tinha justiça própria a ser dedicada a Deus. Todos eram pecadores e apenas
sombras do grande Rei dos reis.
Jesus é o rei que ressuscitará no último dia todas aqueles que o Pai lhe deu, não perdendo
ou lançando fora nenhum deles. Isso significa dizer que aqueles sobre os quais Jesus
estabelece seu reino jamais se desviam do caminho que lhes foi proposto. Essa verdade tem a
ver com a doutrina da perseverança dos santos, conforme é descrita pela Confissão de Fé de
Westminster: “Os que Deus aceitou em seu Bem-amado, eficazmente chamados e santificados
pelo seu Espírito, não podem cair do estado de graça, nem total nem finalmente; mas com
302 BRÈS, Guido de. Confissão de fé e catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 48.
122
toda a certeza hão de perseverar nesse estado até ao fim, e estarão eternamente salvos.”303
Adiante continua a CFW:
Esta perseverança depende, não do próprio livre-arbítrio deles, mas da imutabilidade do decreto da eleição, precedente do livre e imutável amor de Deus Pai, da eficácia do mérito e intercessão de Jesus Cristo, da permanência do Espírito e da semente de Deus neles, da natureza do pacto da graça e de tudo o que gera também a sua exatidão e infalibilidade.304
Cristo preserva seu povo de várias outras formas.305 Ele é o rei que o liberta do peso de
ter de obedecer a lei para alcançar a salvação, e o coloca sob a direção do Espírito (Gl 5.18).
Também liberta seu povo do domínio do pecado e de seu salário: a morte (Rm 6.14,23). Além
disso, ele dá proteção nos perigos (Jo 17.12), carrega as cargas e enfermidades de seus súditos
(Is 42.11; Mt 11.29), traz paz sobre a vida deles (Rm 14.17) e, finalmente, faz tudo cooperar
para a salvação deles.
Por todas essas razões Jesus foi superior a Davi quanto à eficácia de seu reinado. Davi
foi um rei valoroso, com o coração convertido ao Senhor, porém, sua conduta mostrou que
não tinha como dirigir seu povo até seu Deus. Ainda que em seu tempo o povo fosse dedicado
às coisas de Deus, somente Jesus pôde dizer que nenhum súdito do reino seria perdido, que
todos seriam conduzidos ao Senhor, como era seu objetivo.
3.1.1.1.2.1. A obra do Espírito Santo na eficácia do domínio de Cristo
Dentro deste governo sobre sua igreja há outro fator que aponta para a natureza espiritual
do reino de Cristo como sendo superior ao reino de Davi, que é a ação do Espírito Santo sobre
seus súditos.306 Conforme já foi exposto, Jesus foi ungido com o Espírito sem medida e isso
estabelece uma ligação intrínseca entre a obra do Redentor e a obra pneumatológica. Dentre
303 CFW, XVII,I, p. 89.304 Confissão de fé de Westminster,, p. 89,90, XVII,II.305 Cf. John Flavel, The works, p. 206,207.306 Cf. Berkhof, Teologia sistemática, p. 407.
123
as ações do Espírito como sendo o Espírito de Cristo estão aquelas que estabelecem o reino de
Cristo nos corações de seus súditos (At 2.41, 5.14, 6.7, 8.14, 11.24; Rm 8.2,7-9,15; 2Ts
2.13,14). Além disso, ele intercede diante da debilidade dos crentes (Rm 8.26), dá dons a eles
para que edifiquem o corpo de Cristo (Rm 12.3-8; 1Co 12; Ef 4.7-14) e abre-lhes o
entendimento das coisas espirituais (1Co 2.14) e, principalmente, habita neles (1Co 6.19). Por
ser o Espírito de Cristo, seu trabalho é manter o reino do Filho operante no coração dos
súditos do grandioso Rei.
Por esta razão, é que Jesus ainda não é reconhecido como sendo o Senhor de toda a
criação. Pela ação pneumatológica, o domínio espiritual do Redentor não possuir traidores, de
modo que seu reino se desenvolve e avança de modo sutil, através da soberania do Redentor
que move o mundo por meios plausíveis, ou razoáveis, que não causam espanto ou chamam a
atenção para seu avanço.307 Isso significa dizer que, Cristo exerce seu controle sobre as coisas
sem violentar a ordem natural delas, ou mesmo sem forçar as volições humanas, orientando
tudo de acordo com sua vontade, governando as situações, o que inclui as escolhas das
pessoas.308 O avanço do Reino de Cristo, então, parece ser algo puramente humano, um
simples fenômeno social. Esse domínio espiritual só irá manifestar-se a todos os seres
humanos como o governo definitivo e soberano de toda a criação no fim, quando todo joelho
se dobrar e toda língua confessar que Jesus Cristo é o Senhor (Fl 2.10).
3.1.1.2. O domínio superior de Jesus é de natureza física
O reino de Cristo (que é o reino de Deus) não tem preocupação territorial, pois ele diz
respeito mais ao modo de Deus governar. Todavia, a extensão territorial não pode ser
desprezada, porque o universo tem conotações territoriais. Portanto, não é errado mencionar a
superioridade do domínio físico de Jesus sobre o de Davi.
307 Cf. Ibid., p. 206.308 Cf. PERMAN, Matt. The consistency of divine soverignty and human accountability. Disponível em
www.monergism.com, acessado em 18/09/2003.
124
3.1.1.2.1. Superioridade em relação à extensão do domínio físico
Em termos de extensão, ou simplesmente de tamanho, o reino de Cristo também superou
ao de Davi, bem como ao de qualquer outro rei. Mais uma vez vale a pena lembrar que
nenhum rei de Israel conseguiu conquistar toda a terra que foi prometida por Deus a Abraão.
Ainda que nos tempos de Josué Deus tenha cumprido sua promessa de dar a Israel a terra de
Canaã (Js 21.43), a infidelidade do povo o fez perder territórios. Nem mesmo Salomão, que
teve um reino ainda maior que o de seu pai, conseguiu alcançar todo o território descrito na
promessa a Abraão (Gn 15.18-21). Ainda que qualquer rei de Israel, incluindo Davi, tivesse
conquistado todo o território prometido, a extensão do domínio seria menor que o de Cristo.
O domínio de Cristo em termos físicos é parte seu plano de conquista, pois ele precisa ter
domínio sobre toda a criação, para que ele seja concretizado. Como Rei, Jesus demonstrou
que seu domínio atinge esferas não atingíveis por Davi, ou seja, o seu domínio é absoluto
sobre os elementos da natureza (Mt 8.26), sobre as doenças que ele curou, sobre os reis da
terra e seus domínios, e todas as outras potestades, incluindo as espirituais. Por isso, pode-se
dizer que o domínio de Cristo se estende sobre territórios jamais alcançáveis para Davi, ou a
seus sucessores. Nenhum deles pode curar, habitar o interior de um homem ou controlar os
elementos da natureza, ou mesmo dominar todos os reinos da terrra, muito menos as
potestades espirituais no cumprimento do seu ofício. Portanto, Jesus é rei superior a Davi por
ter um domínio de extensão jamais imaginada por seus antecessores do Antigo Testamento.
3.1.1.2.2. Superior em relação à eficácia do domínio físico
125
É interessante também abordar a questão da eficácia do domínio físico de Davi em
comparação ao do Redentor. Davi foi um rei de muitas vitórias, alcançou grande parte do
território prometido por Deus, mas, ao ser comparado com Jesus, seu domínio físico é
inferior. Por melhor rei que fosse, Davi não pôde evitar revoltas dentro de seu reino, inclusive
dentro de sua própria casa. Ele, claramente, não tinha pleno domínio absoluto sobre seu
território.
Por outro lado, Jesus o tem. A Bíblia é repleta de declarações clara sobre o total controle
de Cristo sobre seu reino. Em particular, Romanos 8.28 mostra esse domínio de modo bem
abrangente: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados segundo o seu propósito”. A segurança do apóstolo Paulo de que
todas as coisas cooperam para o bem dos que amam a Deus está no fato de que Jesus é o rei
que domina sobre todas as coisas, e mostrou esse domínio ao realizar toda a obra de redenção
de forma tão definitiva e segura que nenhum ser da criação pode mudar o que foi feito por ele
(Rm 8.31-39).
Além disso, Jesus é o rei que domina in loco. O fato de Davi não ter domínio pleno sobre
seu território está intimamente ligado à limitação espacial de sua presença. Ele não poderia
estar em todos os lugares de seu reino, junto a seus súditos, observando e controlando o que
acontecia. Por sua vez, Jesus, por dominar internamente em seus súditos, pode estar em todos
os lugares por onde se estende seu reino. Desta forma, Jesus é superior a Davi na eficácia de
seu domínio físico por estar em todos os seus súditos, pela habitação do Espírito.
Além disso, Apocalipse o descreve como o rei vitorioso sobre seus inimigos: “Pelejarão
eles contra o Cordeiro, e o Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis;
vencerão também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com ele.” (Ap 17.14). Nenhum
rei ou potestade poderá sobrepor-se a Jesus. Todos os que se lançarem contra seu reino sairão
126
derrotados, pois ele é o Rei dos reis. Seu governo é eficaz a tal ponto que não existem
opositores, todos já estão condenados e com a derrota decretada desde a eternidade. Somente
um poderá ter em seu manto e em sua coxa a inscrição: “REI DOS REIS E SENHOR DOS
SERNHORES” (Ap 19.16; capitais presentes na ARA). A Bíblia não descreve nenhum outro
rei tão eficaz em estabelecer e manter seu reino como Cristo.
3.1.2. Jesus é superior em seu domínio por tê-lo conquistado por seus méritos
Outro aspecto da natureza do domínio de Jesus em comparação ao de Davi é que o de
Cristo foi conquistado por mérito, enquanto que o de Davi lhe foi dado por graça. Jesus,
portanto, revelou-se superior a Davi também quanto à forma como alcançou seu governo,
tanto no aspecto físico, quanto no aspecto espiritual.
3.1.2.1. Um domínio físico conquistado por graça
Davi recebeu seu reino pela graça de Deus. Assim como todo pecador, Davi não poderia
ter mérito diante de Deus. Portanto, para tornar-se rei isso teria de ser-lhe concedido. Em 1
Samuel 16 está descrita a história da unção de Davi como rei de Israel. Samuel foi à casa de
Jessé para ungir aquele que Deus havia escolhido como substituto de Saul, que havia se
desviado dos caminhos de Deus. Depois de ver todos os filhos de Jessé, Samuel viu a Davi e,
contrariando suas expectativas (1Sm 16.6,7), Deus ordenou que fosse ungido. Davi em nada
era superior a seus irmãos, nem mesmo possuía características que o tornassem elegível como
rei, pelo menos diante dos homens. Mas, curiosamente, Samuel, mesmo após ter
127
acompanhado a derrocada de um homem tão impressionante na estatura e na beleza,
continuou olhando a aparência, ao estranhar a escolha de Deus por Davi.
Deus não segue os padrões humanos, os quais ele já mostrara não serem os corretos.
Enquanto Samuel só podia ver o que estava por fora, a aparência, Deus conhecia a cada um
dos filhos de Jessé.309 Isso não pode ser entendido de modo a dar algum mérito a Davi por ser
quem ele é. Seu bom coração não era fruto de seu esforço, pois o homem tem um coração
desesperadamente corrupto (Jr 17.9). Contrariando a possibilidade de mérito, o próprio Davi
escreveu no Salmo 7.9, “Cesse a malícia do ímpio, mas estabelece tu o justo”. A palavra
usada para “estabelece” (!nEAkt.W), foi escrita no imperfeito piel, na 2ª pessoa do
singular. Tal palavra quer dizer, portanto: aquele que faz, cria ou prepara;310 e por estar no piel
ela significa que seu agente, no caso Deus, é o causador de algo,311 e, por estar no imperfeito,
significa uma continuidade, ou uma repetição na ação,312 no caso, de estabelecer o justo. Ou
seja, segundo Davi, é o próprio Deus quem continuamente forma, cria ou estabelece o justo,
tirando deste o mérito de ser quem ele é. Significa dizer que quando Deus olhou o coração de
Davi e quis ungi-lo, ele estava olhando para sua própria obra no coração de Davi. Portanto,
não há mérito na conquista do reinado de Davi.
3.1.2.2. Um domínio espiritual conquistado por graça
Além de seu domínio físico, Davi teve um certo domínio espiritual sobre Israel. Como é
sabido, o rei de Israel tinha o dever de conduzir seu povo na aliança, o que é essencialmente
uma atividade espiritual. Nesse sentido, Davi foi um rei convertido ao Senhor e submisso à
sua Palavra, não obstante suas demonstrações de possuidor de natureza caída. Sendo assim,
ele tinha o poder de estabelecer as diretrizes da espiritualidade do povo.
309 Cf. HENRY, Mathew. An exposition, with practical observations, of the first book of Samuel, in: arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.
310 Cf. John N. Oswald, verbete !wK. kûn,, in: DITAT, p. 708.311 Cf. KELLEY, Page H. Hebraico Bíblico, Uma Gramática Introdutória. São Leopoldo: Sinodal, 1998, p. 140.312 Cf. ibid., p. 173.
128
Em seu reinado ele manteve a lei de Deus como a lei de Israel, conforme pode ser
inferido em seu conselho ao seu filho Salomão (1Rs 2.3,4). Isso tinha grande importância,
pois influenciava o povo a observar a verdade divina e andar em conformidade com a mesma.
Contudo, esse tipo de domínio sobre o povo de Israel, sendo fruto de sua posição de rei
ungido por Deus, pertenceu a Davi pela graça de Deus. Foi o próprio Senhor quem,
graciosamente, o colocou e o conduziu como governador sobre Israel, como pode ser visto no
início de seu reinado em Hebrom (2 Sm 2.1).
Também como escritor inspirado Davi influenciou seus súditos. Além de manter as leis
de Deus e de ser fiel ao pacto, Davi influenciou e governou a vida espiritual de Israel por
meio de seus escritos inspirados, que o ajudavam a conhecer melhor a Deus e a cultuá-lo.
Neste caso, novamente, se vê a mão graciosa de Deus, pois todos esses escritos foram dados a
Davi por inspiração. Davi não escreveu baseado em conclusões próprias, mas pela ação do
Espírito Santo (2 Tm 3.16).
Enfim, em todos os aspectos de seu domínio espiritual sobre seus súditos, Davi os
alcançou por graça. Seja como o rei que governa sobre a terra, ou sobre os padrões espirituais
de seu povo, Davi só pôde exercer domínio por tê-lo recebido pela graça de Deus.
3.1.2.3. Um domínio físico conquistado por mérito
Diferentemente do que ocorreu com Davi, Jesus alcançou seu domínio físico por mérito
próprio. Como homem, o Mediador foi comissionado por Deus, mesmo assim, seu poder
como rei sobre todas as coisas, tão distinto de qualquer outro, só foi alcançado após ter ele
cumprido perfeitamente sua obra sacerdotal. Isso implica que Jesus alcançou seu poder por
mérito próprio. Na verdade, ele havia recebido seu poder do Pai (Mt 28.18), porém, não no
129
sentido de receber algo que não possuía, pois Jesus tem poder derivado de si mesmo,313 mas,
sim, em sua natureza humana. Para exercer o poder como Deus-homem, Cristo teve de fazer a
purificação dos pecados (Hb 1.3) e passar pela ressurreição.314
Enquanto os antigos reis recebiam poder para um ministério específico e passageiro,
Jesus o recebeu para ser o soberano rei sobre todas as coisas e ser reconhecido como tal
eternamente (Fl 2.10; Jd 4). Toda a sua obra realizada como o Redentor divino-humano era
uma preparação de sua humanidade para ser exaltada junto com sua divindade, a fim de ser o
glorioso Redentor em toda a sua pessoa. Como homem, Jesus tinha de cumprir seu papel para
que pudesse usufruir o que lhe estava proposto e o que já era seu como Deus (Fl 2.5-11; Hb
1.3).
Davi e seus sucessores acumulavam bens e tesouros a fim de enriquecerem e fortalecer
seus reinos. Isso se fazia necessário devido à dependência que o homem tem de coisas
materiais para sobreviver. Contudo, Jesus foi superior na origem de seu poder, de tal forma
que não tinha necessidade de coisas materiais que lhe dessem riqueza e poder. Sendo de
origem humilde, usando tudo que lhe foi possível por empréstimo, Jesus exerceu um poder
que em muito excedeu a seus antecessores. Ele não tinha tesouros, mas podia manipular a
matéria, expulsar demônios e curar a quem desejasse. Jesus exercia seu poder concedido pelo
Espírito, realizando a obra de salvação, através da qual ele pôde assentar-se à destra da
Majestade. Isso significa dizer que em sua pessoa divino-humana Jesus exerce soberania real
sobre todas as coisas através de seus próprios méritos.
3.1.2.4. Um domínio espiritual conquistado por mérito
313 Cf. John Flavel, The works, p. 212.314 Cf. Hendriksen, Mateus, vol 2, p. 698,699.
130
Em Hebreus 1.3 está escrito: “depois de ter feito purificação dos pecados, assentou-se à
destra da Majestade, nas alturas”. Conforme a expressão “depois” indica, “assentar-se à
destra da Majestade, nas alturas”, ao que parece, é conseqüência de “ter feito purificação dos
pecados”. Há, portanto, uma relação de mérito com o domínio alcançado por Jesus com seu
ofício sacerdotal, pois o domínio lhe foi plenamente dado, de acordo com o indicado pela
ação de assentar-se à destra da Majestade, após ter completado sua obra mediatória.315
Para Calvino o mesmo poder de Jesus que lhe permitiu purificar os pecadores, lhe
permitiu assentar-se à destra de Deus.316 Isso leva ao entendimento de que somente após
revelar seu poder sobre o pecado é que Jesus pôde exercer seu poder de realeza acima de
todos. O que parece é que Cristo estava conquistando seus súditos, para então assumir seu
reinado sobre o universo. Segundo John Flavel, Cristo, de fato, reina retirando a influência do
pecado em seus servos,317 o que é parte da obra de seu ofício sacerdotal – vê-se aqui, mais
uma vez, a intrínseca relação entre os ofícios de Cristo.
O reino de Cristo, conseqüentemente, é superior ao de Davi por ser de natureza
meritória. “Ele não está no trono por um ato de graça, mas por seus incríveis méritos”.318 Ele é
digno do lugar onde está, pois além de ser Deus, é o homem que realizou toda a obra de
redenção por seus súditos.
3.2. Jesus é superior em seu poder
“Vi e ouvi uma voz de muitos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares, proclamando em grande voz: Digno é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor.” (Ap 5.11, 12)
315 Cf. Kistemaker, Hebreus, p. 49.316 Cf. Calvino, Hebreus, p. 37.317 Cf. John Flavel, The works of John Flavel, vol. I, p. 204.318 Cf. Plumer, Rock, p. 170.
131
Essa revelação que João teve dos últimos dias impressiona pela descrição do poder do rei
Jesus. Ainda que João se refira a ele como “o Cordeiro”, fica evidente que esse Cordeiro tem
status de rei, a ponto de ser ovacionado por uma multidão que proclama suas virtudes. Diante
disso, fica evidente que aquele que teve de morrer no lugar de muitos fê-lo para se tornar o rei
que conquistou os seus súditos com seu sangue – o que mais uma vez evidencia a ligação
entre os ofícios de Cristo.
O texto de Apocalipse transcrito acima forma um interessante contraste com aqueles que
mostram Jesus pedindo para que as pessoas não contassem que haviam sido curadas. Por
algum tempo ele pediu sigilo sobre seu poder. Mesmo assim, ele foi reconhecido como rei por
muitos, mas de modo muito modesto diante do quadro visto por João na ilha de Patmos,
descrito no texto supracitado. Quando este dia chegar, todo o poder de Jesus será revelado a
todos, de modo que muitos correrão de sua presença, ainda que multidões de remidos ficarão
de pé diante dele (Ap 6 e 7).
Contudo, antes desse dia, as Escrituras anteciparam com muitos exemplos o poder do rei
Jesus, o qual é sem comparação. Nenhum rei teve tanto poder ou soberania sobre o que quer
que fosse. Jesus foi superior a todos em seu poder devido a diversos aspectos, conforme se
segue.
3.2.1. Superior devido ao limite do poder
Uma simples leitura da história de Davi mostra que, apesar de rei, seu poder era limitado.
Em diversas situações Davi mostrou ser um simples homem cujas fraquezas estavam à mostra
para que todos pudessem ver. Nem ele, nem seus sucessores, conseguiram conquistar toda a
132
terra prometida por Deus a Abraão. Ele, como já foi visto, não conseguiu vencer o pecado
dentro de si, nem manter a união em seu lar. Sem poder para dirigir as questões pessoais, Davi
também teve pouco poder como rei. Ainda que ele tivesse feito várias conquistas, em sua
missão de guiar o povo a Deus, ele foi falho a partir de sua própria família.
Além de suas imperfeições, a mortalidade limitou o poder de Davi, e de seus sucessores.
Todos um dia morreram, colocando um fim a seus reinados. Em Cristo, esse quadro é
totalmente diferente. Em primeiro lugar, como rei ele tinha domínio sob si mesmo, de modo
que nem mesmo nas mais adversas situações, como no deserto (Mt 4.1-11), ele se desviou de
seu caminho. Davi, nem mesmo estando descansado, casado e em seu palácio, resistiu ao
pecado do adultério (2Sm 11.1-4).
Em segundo lugar, nada impede que Jesus alcance e continue a alcançar seus objetivos.
Enquanto Davi e seus sucessores não conseguiram tomar posse de toda a terra prometida,
Jesus conquista com seu sangue todas as almas que lhe foram dadas pelo Pai e as mantém no
caminho, governando suas vidas. Essa ação se dá por meio do Espírito de Cristo, que, como já
foi visto, é quem convence o homem da verdade e é por ele que a igreja é governada (1Co
12). Por mais que se esforçasse, Davi era limitado em poder, não podendo fazer tudo que lhe
estava proposto como guia do povo de Deus.
Em terceiro lugar, Jesus demonstrou ter poder sobre os elementos da natureza. Mesmo
que tenha contado com alimento oferecido em lares nos quais ele foi recebido, Jesus
demonstrou ser capaz de alimentar a quem desejasse quando multiplicou os pães e os peixes
(Mt 14.17-19). Ele, na tranqüilidade de quem pode manipular os elementos da natureza,
mandou que a tempestade e o mar se acalmassem (Mt 8.23-27). Curou por diversas vezes,
fazendo, assim, grandes demonstrações de poder sem limites. Davi, por sua vez, teve de ir
atrás de alimento em quantidade suficiente para si e para seus homens (1Sm 25.4-8), pois não
tinha poder para multiplicar o pouco que possuía.
133
Em quarto lugar, Jesus não só podia manipular a natureza, como, em seu estado de
exaltação, tem todas as coisas debaixo de seus pés.319 No salmo 8.6 vê-se a abrangência do
poder de Cristo que lhe estava prometido desde o Antigo Testamento: “Deste-lhe domínio
sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois, todos, e também os
animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos
mares.” Ainda que Davi não tenha feito uma referência direta ao Ungido de Deus, ou ao
Messias, ele apresenta um tema inerente ao conceito messiânico, que é o conceito da
realeza.320 Em princípio Davi se referiu ao domínio que Deus deu aos homens sobre as obras
de sua criação, porém, este conceito só se viu em sua plenitude em Cristo, aquele que de fato
dominou sobre todas as coisas. Como já foi visto, ele manipulou a matéria, curou e deu ordens
à natureza, o que revela seu domínio sobre todas as coisas, o qual ficará ainda mais evidente
em seu retorno, quando será finalmente revelado como o grande rei da criação.
Em quinto lugar, Jesus é o rei que tem poder superior, capaz de proteger seus súditos.
Davi lançou-se em grandes batalhas e quando ainda muito moço lutou com Golias. Contudo,
quando já era rei e desfrutava de toda a glória do seu reinado, matou Urias para ficar com sua
esposa. Ao invés de defender a vida de seus súditos, Davi tirou a vida de um deles por
motivos egoístas, a fim de esconder seu pecado e satisfazer seus desejos carnais. Por outro
lado, o rei Jesus é aquele que entregou sua vida para que seus súditos a tivessem (Rm 5). Ele
mostra-se como o grande rei abnegado, capaz de sofrer até a morte pelos seus. E esse
sofrimento de fato gerou livramento sobre seu povo, que não teme mais a morte e a ira de
Deus, podendo estar seguro que permanecerá firme até o fim, pois é o seu grande rei quem vai
adiante dele (Rm 8.26-39).
Essa proteção dada por Jesus a seus súditos não é uma simples questão carnal. Seu poder
sem limites protege os seus não só dos perigos, mas livra-os do pecado (Rm 5.12-21; 1Co
319 Cf. John Flavel, The works, p. 212.320 Cf. Van Groningen, Revelação, p. 312.
134
10.13), e também dos problemas internos que tiram a paz (Cl 3.15).321 Seus súditos podem
sentir-se seguros em todas as áreas da vida, pois o poder de seu rei não encontra limites. Jesus
é o todo poderoso rei que domina sobre terra e céu.
3.2.2. Superior devido ao exercício do poder
Ainda quanto ao poder, Jesus se mostrou superior a Davi, e a seus sucessores, também
no seu exercício. Por várias razões que serão abordadas aqui, Jesus mostra-se ser o grande rei
de Israel, enquanto seus antecessores eram apenas sombra. Ele exerce seu poder de modo
santo, sábio, forte e afável a seu povo.322
3.2.2.1. Porque o exerceu com santidade
Quando se olha a história de Jesus, vê-se que em nenhum momento ele usou de algum
subterfúgio, até mesmo diante das maiores dificuldades. Em toda a sua caminhada, até os dias
de hoje, Jesus reina de modo santo. Como disse Plumer:
Nosso Rei não pode errar. Ele nunca errou com ninguém. Tendo ele posto em seu coração salvar pecadores, ele não poderia abrir as portas do paraíso para nenhum deles até ele ter se confinado pelo juramento e pelo pacto para satisfazer todas as suas exigências de justiça, e trazer eterna justiça.323
No propósito de ser o rei que conduz seu povo a Deus, Jesus tinha de ser santo. Ele
jamais poderia cumprir a aliança e satisfazer a Deus por meio do pecado; isso colocaria a
perder toda a sua obra. Portanto, ele não errou em nenhuma situação e nenhuma falta lhe pode
ser imputada de modo justo. Pilatos, ao interrogar Jesus, chegou a essa conclusão (Lc 23.22).
321 Cf. John Flavel, The works, p. 205,206.322 Cf. Ibid., p. 217ss.323 Plumer, Rock, p. 166.
135
Por diversas vezes os inimigos de Jesus também tiveram de admitir sua retidão, sem poder lhe
imputar falta alguma (Lc 6.6-11, 11.53-12.1ss; Jo 8.1-11).
No caso de Davi isso foi diferente. Ele, sim, teve muito do que ser culpado e do que se
arrepender, como visto anteriormente. No exercício de seu poder, Davi não pôde ser santo
como o foi Jesus. O máximo que Davi pode ter tido foi o coração convertido ao Senhor, o que
era evidenciado pelo arrependimento de seus maus caminhos, o que não lhe tirava a culpa por
seus pecados.
3.2.2.2. Porque o exerceu com sabedoria
Além de santo, Jesus é sábio no exercício de seu poder. Em nenhum momento as atitudes
de Jesus ameaçaram ou atrapalharam sua missão. Suas atitudes e seu raciocínio foram os
melhores possíveis, sempre o conduzindo ao cumprimento de seus planos. Plumer descreveu
da seguinte forma a sabedoria do rei Jesus:
De acordo com a profecia, ele procedeu com prudência em todas as coisas (Is 52.13). Ele jamais se enganou. Ele ordenou e estabeleceu seu reino com o saber da onisciência. Ele liderou os seus pelo caminho direito, para que fossem à cidade em que habitassem (Sl 107.7). Ele os ensinou a todos no caminho da sabedoria; ele os liderou nos caminhos corretos. Quando eles fossem, seus passos não poderiam ser restringidos; e quando eles corressem não tropeçariam.324
Portanto, ele é o rei que conduz seus súditos da melhor forma, demonstrando toda a sua
sabedoria. John Flavel também viu a sabedoria de Cristo ao reinar, em sua providência aos
seus súditos. Ele destacou, corretamente, que a obra de salvação que se deu pelos sofrimentos
do Medidor é uma grande demonstração de sabedoria. Alguém que atravessou tanto
sofrimento produzir benefícios tão profundos como a salvação, só pode ser fruto da
sabedoria.325 Essa também se manifesta na providência de fazer todas as coisas caminharem
para a salvação, ou para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8.28).326
324 Ibid., p. 166, itálicos do autor.325 Cf. John Flavel, The works, p. 217.326 Cf. Ibid., p. 217.
136
Mas quando se olha para o grande rei Davi, esse quadro é diferente. Mesmo que tenha
sido um bom rei, e agido com grande sabedoria em diversos momentos, ele foi falho e muito
estulto em outros momentos. O caso mais claro de sua falta de sabedoria, foi quando ele foi à
Baalá levar a arca da aliança de volta para seu lugar (2Sm 6). Para cumprir esse propósito ele
a colocou para ser puxada por carro de bois, mesmo tendo a lei especificando que o modo
correto era que duas varas fossem colocadas em suas argolas, para que fosse carregada pelos
levitas (Ex 25.12-15; Nm 1.50). Devido a esta atitude, num determinado momento, os bois
tropeçaram e Uzá amparou a arca para que não caísse, sendo morto pelo Senhor (2Sm 6.6,7).
A morte de Uzá passou a ser uma grande demonstração de falta de sabedoria da parte de Davi,
que conhecia o modo correto descrito por Deus em sua lei. Mas ele, em sua estultícia, preferiu
seus próprios meios. Por melhor rei que fosse, Davi não se viu livre de seus erros que
demonstravam sua sabedoria limitada.
3.2.2.3. Porque o exerceu com força
O Senhor Jesus também se mostra como um rei de grande força.327 As declarações
bíblicas sobre ela são impressionantes. Ele é o rei que sustenta a tudo em seu reino, de quem
todas as coisas dependem (Jo 5.17; Hb 1.3). Além disso, é capaz de conduzir todas as coisas
para que redundem no bem de seu povo (Rm 8.28). Ele controla até mesmo o inimigo para
que sirva a seus propósitos (Ap 2.10). Em tudo isso o Redentor se mostra como o soberano
Senhor de todas as coisas (Ap 19.16; Pv 8.15,16), punindo a seus inimigos (Sl 110.2) e
recompensando providencialmente aqueles que o servem (Mt 19.29).
Davi, por outro lado, mostrou-se fraco. Como já foi visto, ele se deixou dominar pelo
pecado, e essa falha o atrapalhou no propósito de conquistar a terra prometida. Ainda que
327 Cf. John Flavel, The works, p. 213-216.
137
Deus tenha dado grande poder a seu reinado, através de muitas vitórias, Davi não cumpriu
cabalmente seu papel como rei. Mesmo diante de tantas batalhas, ele não conseguiu todo o
território prometido por Deus, pois ocupou-se muito com suas fraquezas morais.
Jesus não é vencido por nenhuma fraqueza. Ele não deixa de conquistar nenhum
território que lhe fora proposto. Seu reino não é prejudicado por suas falhas em resistir ao
pecado. Suas atitudes não trazem problemas internos ao bom andamento de seu reino. Aquela
perfeição moral necessária ao seu ofício sacerdotal, também se mostra imprescindível para o
bom estabelecimento e para a boa administração de seu reino. Ele é o rei sem fraquezas que
venceu o inimigo e não deixa seu trono desguarnecido por problemas causados por suas
atitudes. Ele tem força na luta contra aqueles que se levantam buscando impedir o avanço de
seu reino, e teve força para vencer as tentações internas, que poderiam enfraquecer seu reino.
3.2.2.4. Porque o exerceu com doçura e sutileza
Mesmo tendo tamanha força, Jesus mostra-se um rei dócil e sutil. Enquanto Davi tinha
mãos sujas de sangue de seus inimigos, e também de inocentes, como é o caso de Urias, Jesus
mostra-se como um rei que dirige todas as coisas sem causar espanto ou escândalo. Mesmo
diante do inimigo, seu ensinamento foi de amor: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu
próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos
que vos perseguem;” (Mt 5.43,44). Jesus nunca ensinou o uso da violência ou da força contra
os inimigos, ao contrário, ensinou a dar a outra face diante da agressão (Lc 6.29). Por sua vez,
Davi foi chamado por Deus de homem de sangue (2Sm 16.8).
Essa docilidade vista no Senhor em muito é explicada pelo fato de Jesus reinar com
sutileza. Diferentemente de qualquer outro rei, Jesus pode fazer com que toda a sua vontade
seja cumprida sem forçar ninguém a nada. Ele dirige todas as coisas sutilmente e de modo
138
plausível, ao ponto das pessoas pensarem que fazem tudo por si mesmas.328 Esse poder que o
Pai deu a Jesus é descrito, por exemplo, em Provérbios 21.1: “Como ribeiros de águas assim é
o coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o seu querer, o inclina”. Ou ainda no
Salmo 115.3: “No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada.” Sendo assim, Jesus
pode conduzir a tudo e a todos da forma como quiser, usando toda a sua criação para cumprir
sua vontade. É a forma dócil, sutil e soberana de Cristo exercer seu poder.
3.3. Jesus é superior devido ao tempo de reinado
“Então, ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos.” (Ap 5.13)
Esse texto de Apocalipse traz uma verdade sobre o reinado de Jesus que também o
mostra como sendo superior ao de Davi. A expressão grega tou.j aivw/naj tw/n
aivw,nwn significa claramente “para todo o sempre”, o que indica a óbvia intenção de João
de descrever Jesus como rei que reina para sempre, cujo reino jamais terá fim.
Essa característica o mostra Jesus como um rei superior a todos os outros, pois Davi e
seus sucessores terminaram seu reinado quando morreram, passando o poder para o seguinte.
Jesus, ao contrário, não possui sucessores, pois não morre. Ele é o grande rei eterno, tipificado
pelos reis temporários do Antigo Testamento. Nele se cumpre a promessa feita a Davi:
“Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será
estabelecido para sempre.” (2Sm 7.16). Jesus é o rei que sempre terá seu trono estabelecido
sobre toda a criação.
328 Cf. John Flavel, The works, p. 206.
139
Contudo, esse reino de Cristo teve um começo. Ainda que os premilenistas
dispensacionalistas entendam que o reino mediatário de Cristo só irá começar quando ele
inaugurar o milênio,329 a posição geralmente aceita pela igreja é a de que Jesus é rei desde a
eternidade e age como tal desde a queda (Pv 8.23; Sl 2.6).330 Isso significa que Cristo é o rei
por detrás de todos os reis do Antigo Testamento. Por meio deles, e também dos juízes, o
Filho “levou a cabo a Sua obra como Rei”.331 Porém, esse reinado não se tornou público, tão
pouco foi inaugurado espiritualmente nos corações de seus súditos antes de sua ascensão,
quando ele assentou-se à destra de Deus como o Rei que realizou a obra de resgate de seu
povo (Hb 1.3).
Quanto ao término deste reino não há divergências entre as correntes teológicas. Todas
entendem que a duração do reino de Cristo é de fato eterna,332 como vinha sendo enfatizado
no início desta seção. Essa verdade é amplamente ensinada pelas Escrituras (Sl 45.6, 89.36,
37; Is 9.7; Dn 2.44; 2Sm 7.13,16; Lc 1.33; 2Pe 1.11), que mostram que Jesus é superior a
Davi por ter um reino sem fim, além de ser ele o rei por detrás de Davi.
Diante de tudo o que foi exposto neste capítulo, Jesus é o rei superior a Davi. Ainda que
este tenha sido um grande rei, quando comparado a Jesus, seu reino passageiro se torna
pequeno. Na verdade, ele é parte do reino de Cristo, ainda por ter suas fronteiras alargadas.
Isso significa dizer que Jesus é o rei que sempre reinou sobre seu povo, e ele deixou isso claro
ao ascender aos céus, para assentar-se à “destra da Majestade” (Hb 1.3).
329 Cf. HOYT, Herman A. em: CLOUSE, Robert G. Milênio, significado e interpretações. Campinas, Luz Para o Caminho, 1990, pp. 75-83.
330 Cf. Berkhof, Teologia sistemática, p. 410.331 Cf. Ibid., p. 410.332 Cf. Ibid., p. 410.
140
CONCLUSÃO
Os oficiais do Antigo Testamento eram homens valiosos diante de Deus. O propósito
desta dissertação não foi menosprezá-los. Porém, por mais valiosos que eles tenham sido,
Jesus é superior a todos eles com tamanha distância que, ao ser feita a comparação, o que fica
evidente neles são suas imperfeições. Certamente, eles tiveram sua importância e foram
141
grandemente usados por Deus em sua obra, cumprindo o propósito de Deus para seus ofícios.
Contudo, esse propósito não era o mesmo visto em Cristo, pois somente este poderia
satisfazê-los perfeitamente.
Através de alguns temas recorrentes essa verdade ficou evidenciada. Em primeiro lugar,
a relação de Cristo com o Espírito Santo se mostrou um dos alicerces de sua superioridade.
Como foi amplamente visto, Cristo foi ungido com o Espírito sem medida. Tal fato tornou a
obra de ambos tão ligada que o Espírito Santo passou a ser chamado o Espírito de Cristo.
Toda a sua obra passou a ser exercida cristocentricamente, mostrando que a pessoa do
Redentor é única e superior a de todos os oficiais do Antigo Testamento. Enquanto todos
dependiam do Espírito para realizarem suas obras, Cristo é aquele que tem o Espírito sem
medida, enviando-o como o continuador de sua obra (Jo 15.26,27).
Profetas como Elias foram conhecidos pela presença do Espírito Santo em suas vidas.
Mas em Cristo a presença do Espírito fez de sua obra profética muito superior a todos os
outros. Enquanto o Espírito inspirava os antigos profetas, fazendo progredir a revelação de
Deus e tornando-a mais clara, após a vinda do Messias, ele passa a guiar todos a Cristo e
convencê-los de sua verdade, apontando agora não por meio de sombras, mas pela clara
presença do Emanuel.
Como sacerdote, Cristo também teve de contar com o Espírito. Foi por meio dele que sua
santa concepção foi realizada, de modo a tornar Jesus uma oferta sem mancha de pecado. Foi
por ser perfeito que Jesus pôde ser a oferta cabal a Deus, o que foi garantido pela concepção
santa de Jesus.
Somado a isso, o Espírito é aquele que faz o reino de Jesus avançar nos corações dos que
crêem. É por meio de sua ação que o reino de Cristo se torna presente no interior dos que
crêem. O Espírito de Cristo é aquele que inaugura, ou leva o reino de Jesus para o coração da
pessoa, intercede diante da debilidade dos crentes, dá-lhes dons para que edifiquem o corpo
142
de Cristo e abre-lhes o entendimento das coisas espirituais. Portanto, a obra de mediação de
Jesus por meio de seus ofícios é superior a de seus antecessores pela ação de seu Espírito.
Além do Espírito Santo, um segundo tema recorrente, que ajuda a sustentar a
superioridade de Jesus no exercício de seu tríplice ofício, é sua perfeição. Tal fator foi
preponderante para que, como profeta, Jesus pudesse revelar o Pai. É inconcebível que algum
pecador, ou seja, alguém que é imperfeito seja chamado de “expressão exata do ser de Deus”
ou “resplendor de sua glória”.
Jesus foi o homem perfeito, tentado em todas as coisas mas sem pecar. Não por acaso,
ele, sendo homem, pôde dizer: “Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). De fato, em sua
perfeição, Jesus revelou o Pai, e tudo o que lhe fora ordenado revelar, de modo inigualável.
Também em seu ofício sacerdotal essa perfeição foi uma condição indispensável. Por ter
sido o homem perfeito, Jesus se fez a oferta aceitável a Deus. Diferentemente dos outros
sacerdotes que ofertavam pelos próprios pecados, Jesus podia ir diante de Deus sem despertar
sua ira e representar outro homem, satisfazendo cabalmente a justiça divina.
Além disto, como o rei perfeito, Jesus cumpre devidamente seu papel. Ele não se perde
em meio aos seus pecados, deixando súditos se perderem e territórios por conquistar. Ele é o
rei perfeito que governa perfeitamente seu reino, sem que nada interfira. Ele, certamente,
conduzirá seu povo à vitória final, levando-o ao gozo eterno de seu Pai.
Um terceiro tema recorrente aqui abordado, e que sustenta a superioridade de Jesus em
seu tríplice ofício, é o caráter de cumprimento. Jesus é o messias prometido no Antigo
Testamento, e, como tal, diversos aspectos de sua obra foram anunciados. Jesus foi anunciado
como profeta (Dt 18.15), sacerdote (Sl 110.4; Is 53) e rei (Zc 14.9). Porém, o caráter de
cumprimento não foi visto como uma simples questão de cumprir as profecias sobre ele, mas
de cumprir de uma vez por todas as exigências dos ofícios de profeta, sacerdote e rei.
143
Conforme foi visto, Jesus é o profeta definitivo. Nele a revelação alcançou seu clímax.
Jesus cumpriu o papel de profeta a tal ponto que, após ele, não houve profeta como foram os
antigos: Moisés, Isaías, Jeremias, Miquéias e outros. Jesus não teve substitutos no papel de
profeta, pois seria uma regressão, já que ninguém poderia revelar a Deus tão perfeitamente
como ele. Aqueles que sucederam a Jesus apenas elucidaram seus ensinos e apontavam para
ele diretamente. Não houve mais progressão na revelação de Deus, apenas desenvolvimento
do que já havia sido revelado por Cristo. Portanto, Jesus é o profeta definitivo.
Além de ser o profeta definitivo, Jesus é o sacerdote definitivo. Como ficou bem
aparente no estudo de sua semelhança com Melquisedeque, Jesus é o “sacerdote para sempre”
(Hb 7.21). Ele cumpriu de uma vez por todas as obrigações dos sacerdotes, ao apresentar a
oferta definitiva que de fato satisfez a justiça divina, representando os seus como o sacerdote
contra quem Deus não tinha nada. Ademais, o Senhor é um sacerdote que não morre, jamais
abandonando, ou necessitando de alguém que o substitua em seu posto de sacerdote.
Como rei, Jesus também se mostra definitivo. Jesus é o rei eterno, ou seja, ele sempre
ficará no trono de Davi, não havendo sucessores. Jesus é o rei que cumpre cabalmente todas
as obrigações e expectativas lançadas sobre ele.
Intimamente ligado à questão de Jesus ser definitivo está o quarto tema recorrente, que
foi a questão da permanência. Jesus não apenas cumpriu todas as obrigações que seus ofícios
exigiram dele, mas permanece cumprindo com elas. Isso significa que Jesus não deixou seus
ofícios, mas continua sendo o profeta que fala e revela com e através de seu povo, pois, em
Cristo, todos são profetas por pregarem e revelarem sua verdade ao mundo. Além disto, Jesus
é o sacerdote eterno, tendo não só satisfeito a justiça divina, como continua a interceder junto
ao Pai pelos seus. E essa posição de intercessor é exercida à destra do Pai, de onde ele não só
intercede pelos seus, como também governa seu povo, mantendo-se eternamente em seu
144
trono, de onde virá e se revelará como rei de toda a criação, mas que, por enquanto, revela
essa verdade àqueles seus súditos já conquistados.
Um quinto tema recorrente é o de Jesus como o grande oficial por trás de todos os
outros. Todos os rei, profetas e sacerdotes o foram por que Jesus os sustentou na pessoa do
Filho ainda não encarnado. Jesus era o Anjo do Senhor que sustentou a progressão da
revelação de Deus. Também foi o cordeiro imolado na fundação do mundo; a garantia de que
as ofertas apresentadas pelos antigos sacerdotes tinham seu efeito alcançado pela promessa de
que seu sangue seria derramado no espaço e no tempo. Ele é o rei que sempre teve todo o
poder em suas mãos, concedendo-o a quem queria para reinar sobre seu povo. Na verdade,
toda autoridade dos antigos reis era fundamentada na majestade de Cristo, o rei eterno, que
sempre reinou e sempre reinará, mas cujo poder só será evidente a todos na ocasião de seu
retorno.
O sexto e último tema recorrente foi a dupla natureza do Redentor. A superioridade de
Cristo mostrou-se fundamentada também sobre o fato de Jesus ser o Deus-homem. Não fosse
sua existência misteriosa, Jesus não poderia ser o profeta que foi, ao ponto de ter dito: “Quem
me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Tão pouco poderia ter ele todo o conhecimento que tinha e
ser, ainda, a própria verdade encarnada. Portanto, se ele é o profeta definitivo e permanente, é
porque ele é o Deus-homem.
Também para ser o sacerdote que foi, Jesus teve de ter duas naturezas. Por ser o Deus
encarnado, ele foi concebido por obra do Espírito, ficando livre da imputação da culpa de
Adão, que viria através de sua natureza humana. Portanto, Jesus nasceu santo, e permaneceu
santo, podendo ser a oferta perfeita em sua humanidade, sendo digna de ser apresentada
diante de Deus para satisfazê-lo finalmente, e tendo valor infinito em sua divindade para
poder cobrir todos a quantos desejasse.
145
Em seu ofício real, Jesus também mostrou que sua dupla natureza era necessária.
Somente sendo o Deus-homem é que Jesus poderia ter realizado toda a sua obra que lhe
conduziu à sentar-se à destra da Majestade (Hb 1.3). Somente tendo essa insondável
existência é que o Redentor poderia assentar-se em tão sublime trono e ter o reino espiritual,
como foi visto ser o dele. Só sendo assim, Jesus poderá voltar e revelar-se como o Rei dos reis
e Senhor dos senhores, como aquele que têm todas as coisas debaixo de seus pés (Hb 1.13).
Por tudo isso depreende-se a superioridade de Cristo no exercício de seu tríplice ofício
em relação ao que foi realizado pelos oficiais do Antigo Testamento. Jesus é o Redentor de
seu povo, pois somente ele poderia realizar e cumprir todas as obrigações que seus ofícios
exigiam. Somente ele poderia ter toda a glória em suas mãos para realizar essa obra. Isso não
só torna Jesus o centro da soteriologia, como também lança luz sobre a doutrina da
depravação total do homem, mostrando que este, de forma alguma pode salvar-se, já que
nunca teve a capacidade de cumprir as obrigações da lei.
Mais do que isso, o Redentor Jesus mostra-se como o seguro caminho. A doutrina da
perseverança dos santos tem muito a ganhar com este estudo, pois pode fundamentar-se,
também, na superioridade de Cristo, para mostrar o competente e firme salvador que o crente
possui. A falta de auto-confiança para a salvação que a depravação total traz encontra solução
na total confiança num Redentor superior, inigualável, até mesmo para os mais valorosos
heróis da fé.
Essas implicações que o estudo da superioridade de Cristo tem sobre outras doutrinas,
como a pneumatologia, a depravação total e a perseverança dos santos, são enriquecedoras
para o estudo teológico. Isso mostra não só a riqueza da teologia e sua utilidade para o
exercício da fé, como também sua consistência, sustentando o fato de que o estudo teológico
não é uma falsa ciência, mas uma verdade concisa e abrangente.
146
Também para a teologia calvinista, especificamente, esse tema mostra-se muito
importante. Sendo Cristo superior a todos os oficiais do Antigo Testamento, a ênfase
reformada Solo Christo mostra-se não só verdadeira, mas também fundamental, pois serve de
ponto de partida para o estudo de todo o restante da teologia. Entendendo a superioridade de
Cristo, diversos temas como os já citados, mais ainda a graça, a expiação, a pneumatologia, a
eclesiologia, e todos os outros, podem e devem ser estudados cristocentricamente, para que o
lugar do homem e Deus fiquem claros em cada uma delas.
Enfim, pretendeu-se mostrar nesse trabalho de que forma as Escrituras revelam Jesus
como superior aos oficiais do Antigo Testamento. Também buscou-se evidenciar como esta
superioridade ajuda a entender o papel único de Jesus na salvação de seu povo, além de
mostrar que não só seu papel era único, mas sua pessoa era a única para tal papel. O que foi
feito por Jesus não poderia ter sido feito por nenhum outro.
Resta, portanto, o desejo do autor desta dissertação de que este trabalho sirva de
edificação para os súditos dos grande Rei Jesus. Mais do que isso, e antes disso, que sirva de
proclamação da glória do Redentor, tanto de sua pessoa, como de sua obra, para que, pela
loucura da pregação, outros possam ouvir e serem feitos súditos e parte do reino de Deus pela
ação do Espírito de Cristo.
BIBLIOGRAFIA
ACHER, Gleason L., Jr. Merece confiança o Antigo Testamento?. São Paulo: Vida
Nova, 1998, 3ª ed.
AGOSTINHO de Hipona. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994).
ANSELMO de Cantuária. Por que Deus se fez homem?. São Paulo: Novo Século, 2003.
BARTH, Karl. Carta aos romanos. São Paulo: Novo Século, 2000.
147
____________. Dádiva e louvor, artigos selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1996.
BAVINCK, Hermann. Teologia sistemática. Santa Bárbara d’Oeste: SOCEP, 2001.
BEEKE, Joel R. A busca da plena segurança. São Paulo: Puritanos, 2003.
BERKHOF, Luis. Teologia sistemática. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990.
BERKOWER, G. C. The work of Christ. Grand Rapids: William B. Eerdmans
Poblishing Co., 1965.
BRÈS, Guido de. Confissão de fé e catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã,
1999.
BRUNNER, Emil. The mediator. Londres, Lutherworth Press, 1942.
CALVINO, Juan. Institucion de la religión cristiana. Barcelona: FELiRe, 1999.
CALVINO, João. A verdadeira vida cristã. São Paulo: Novo Século, 2003.
_____________. 1 Coríntios. São Paulo: Paracletos, 1996.
_____________. exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997.
_____________. exposição de Romanos. São Paulo: Paracletos, 1997.
_____________. Gálatas. São Paulo: Paracletos, 1998.
_____________. O livro dos salmos. São Paulo: Paracletos, 1999.
CAMPOS, Heber Carlos de. As duas naturezas do redentor. São Paulo: Cultura Cristã,
2004.
______________. Cristologia, ou soteriologia objetiva, apostila de aula.
CARSON, D. A., MOO, Douglas & MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento.
São Paulo: Vida Nova, 1997.
CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de bíblia, teologia e filosofia, vol 1 A-C.
São Paulo: Hagnos, 2001.
COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Inspiração e inerrância das escrituras. São Paulo:
Cultura Cristã, 1998.
148
CULLMAN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Líber, 2001.
EATON, Michael A. No condenation, A New Theology of Assurance. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1997.
EVANS, Craig A. Novo comentário bíblico contemporâneo, Lucas. São Paulo: Vida,
1996)
FERGUSON, Sinclair. O Espírito Santo. São Paulo: Os Puritanos, 2002.
FLAVEL, John. The works of John Flavel, vol. I. Endiburgh: The Banner of Truth Trust,
1997.
GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993.
GILL, John. Hebrews, in arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.
GRONINGEN, Gerard Van. Criação e consumação, vol. I. São Paulo: Cultura Cristã,
2002.
_________________. Revelação messiânica no Antigo Testamento. Campinas: Luz Para
o Caminho, 1995.
GRUNDEM, William. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2002.
HARRIS, Laird R., ARCHER, Gleason L. e WALTKE, Bruce K. Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
HAGNER, Donald A. Novo comentário bíblico contemporâneo, Hebreus. São Paulo:
Vida, 1997.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento, Gálatas. São Paulo: Cultura
Cristã, 1999.
_____________. Comentário do Novo Testamento, João. São Paulo: Cultura Cristã,
2004.
_____________. Comentário do Novo Testamento, Lucas, vol. I. São Paulo: Cultura
Cristã, 2003.
149
_____________. Comentário do Novo Testamento, Mateus, vol. I. São Paulo: Cultura
Cristã, 2001.
_____________. Comentário do Novo Testamento, Mateus, vol. 2. São Paulo: Cultura
Cristã, 2001.
_____________. Comentário do Novo Testamento, Romanos. São Paulo: Cultura Cristã,
2001.
HENRY, Mathew. An exposition, with practical observations, of The First Book of
Samuel, in: arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.
_______________. An exposition, with practical observations, of The gospel according
to St. John, in: arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.
_______________. An exposition, with practical observations, of The gospel according
to St. Luke, in: arquivo eletrônico E-Sword, v. 7.7.7 copyright 2005.
______________. An exposition, with practical observations, of the Proverbs, in:
arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.
HILL, Charles E. & JAMES, Frank A., editors. The glory of the atonement. Downers
Grove: InterVasity Press, 2003.
HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001.
HOEKEMA, Anthony. A Bíblia e o futuro. São Paulo: Cultura Cristã, 1989.
____________. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
____________. Salvos pela graça. São Paulo: Cultura Cristã, 1997.
IRENEU de Lião. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995.
JONES, Martyn Lloyd. Santificados mediante a verdade. São Paulo: PES, 2006.
KAISER, Walter C. Jr. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
KELLEY, Page H. Hebraico Bíblico, uma gramática introdutória. São Leopoldo:
Sinodal, 1998.
150
KIEL, Carl & DELITZSCH, Frederik. Commentary on the Old Testament, the fith book
of Moses, Deuteronomy in: in: arquivo eletrônico de E-Sword, v. 7.7.7, copyright 2005.
KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento, Apocalipse. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004.
___________________. Comentário do Novo Testamento, Hebreus. São Paulo: Cultura
Cristã, 2003.
___________________. Comentário do Novo Testamento, 1 Coríntios. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004.
___________________. Comentário do Novo Testamento, 2 Coríntios. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004.
LLOYD-JONES, Martyn. Deus o Pai, Deus o Filho. São Paulo: PES, 1997.
LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão. São Paulo: Unesp, 1998.
MACKINTOSH, H. R. The doctrine of the person of Jesus Christ, New York: Charles
Scribner’s Sons, 1912.
MARRA, Cláudio Antônio Batista, editor. Confissão de fé de Westminster. São Paulo:
Cultura Cristã, 1999.
MATHIESON, J. E. The supremacy and sufficiency of Jesus Christ our Lord. Edinburgh:
William Blackwood and Sons, 1897.
MEISTER, Mauro Fernando. Uma breve introdução ao estudo do pacto in: Fides
Reformata vol. 3 n° 1, 1998.
MICHAELS, J. Ramsey. Novo Comentário bíblico contemporâneo, João. São Paulo:
Vida, 1994.
MCGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica. São Paulo, Shedd
Publicações, 2005.
151
MOREY, Robert A. The saving work of Christ: studies in the atonement. Sterling: Grace
Abounding Ministries, 1980.
MORRIS, Leon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003.
MOWINCKEL, Sigmund. He that cometh. Oxford: Basil Blackwell, 1956.
MURRAY, John. Collected writings of John Murray, vol I: the claims of truth.
Endiburgh: The Banner of Truth Trust, 1976.
OWEN, John. A declaration of the glorious mystery of the person of Christ, the works of
John Owen, vol. I. London: The Banner of Truth Trust, 1987.
____________. Biblical theology. Morgan: Soli Deo Gloria Publications, 1996.
____________. The glory of christ. Chicago: Moody Press, 1956.
PACKER, James Inner. Teologia concisa. São Paulo: Cultura Cristã, 1999.
PERMAN, Matt. The consistency of divine soverignty and human accountability.
Disponible em www.monergism.com, acessado em 18/09/2003.
PLUMER, William S. The rock of our salvation. Harrisonburg: Sprinkle Publications,
1995.
RICHARDSON, Alan. Introduction to the theology of the New Testament. Nova York:
Harper & Row, Publishers, 1958.
ROBERTSON, O. Palmer. Cristo dos pactos. Campinas: Luz Para o Caminho, 1997.
SANDERS, J. Oswald. The incomparable Christ, the person and work of Christ.
Chicago:Moody Press, 1982.
SCHAFFER, Francis. A obra consumada de Cristo. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
SPROUL, R. C. O ministério do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 1997.
STOTT, John W. A mensagem de Gálatas. São Paulo: ABU, 2000.
STRONG, Augustus Hopkins. Teologia sistemática. São Paulo: Hagnos, 2003.
152
TAYLOR, William Carey. Introdução ao estudo do Novo Testamento grego. Rio de
Janeiro: JUERP, 2001.
TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo:
ASTE, 1986.
VAN TIL, Cornelius. A survey of Christian epistemology. Phillisburg: Presbyterian and
Reformed Publishing Co., 1969) arquivo eletrônico.
VANHOYE, Albert. Old Testament priests and the new Priest according to the New
Testament. Petersham: St. Bede’s Publications, 1986.
VOS, Geerhardus. Biblical theology, Old and New Testaments. Endiburgh: the Banner of
Truth Trust, 1996.
WARFIELD, Benjamin Breckinridge. The person and work of Christ. Philadelphia: The
Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1970.
YOUNG, Edward J. My servants the prophets. Grand Rapids: WM B. Eeddmans
Publishing Co., 1955.
GLOSSÁRIO
Ungido: Os oficiais do Antigo Testamento iniciavam, ou eram eleitos, para o exercício de
seus ofícios, a partir da unção (Ex 29.7; 1Sm 10.1, 16.3; 1Rs 19.16-21). Não somente pessoas
eram ungidas, mas, também, objetos (Ex 29.36, 30.26-29; Nm 7.84-88), a fim de que fossem
utilizados no exercício do ofício sacerdotal, mantendo a estreita ligação entre unção e os
ofícios. Portanto, mesmo que o termo “ungido” fosse utilizado referindo-se quase que
153
exclusivamente ao rei,333 (1Sm 2.10; 2Sm 22.51; Sl 2.2; 18.50), ele também possui ligação
direta com os outros dois ofícios. Segundo Van Groningen, o termo “ungido” e seus
correlatos “referem-se à pessoa divina, real, sagrada, reveladora, representada por vários
ofícios e personalidades, que têm tarefas especificamente designadas, metas determinadas e os
meios para atingi-las.” Para que tudo isso fosse realizado, Van Groningen apontou quatro
aspectos da unção: designar, apontar ou eleger; separar ou consagrar; ordenar ou atribuir;
qualificar ou equipar para o ofício e suas tarefas.334 A unção, portanto, é o princípio dos três
ofícios.
Ofício: Os ofícios de Cristo são os descritos por Calvino: Profeta, Sacerdote e Rei; através
dos quais Cristo desempenhou sua obra.335 Ofício é o comissionamento dado a uma pessoa por
iniciativa de outra, sendo que, no Antigo Testamento, o símbolo deste comissionamento era a
unção.336 O ofício é algo externo à pessoa, de modo que seu significado e autoridade são
dados apenas indiretamente à pessoa, para que esta cumpra seu comissionamento, sempre
ficando clara a noção de dependência de Deus.337
Profeta: Essa palavra tem um significado amplo e tem como idéia essencial a noção de que o
profeta é o porta-voz de Deus.338 Eles eram membros do povo, separados para uma íntima
relação com Deus, de forma que suas palavras eram consideradas a própria Palavra de Deus.
Essa idéia de porta-voz está mais ligada à palavra hebraica aybin" (nabhi), que faz mais
referência à proclamação do que o recebimento da revelação de Deus.339 As palavras
utilizadas para descrever o profeta como aquele que recebe a revelação de Deus por meio da
333 Cf. HAMILTON, Victor P. in: HARRIS, Laird R., ARCHER, Gleason L. e WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 885, doravante DITAT. Ver também MOWINCKEL, Sigmund. He that cometh. Oxford: Basil Blackwell, 1956, p.4-6.
334 Cf. GRONINGEN, Gerard Van, Revelação messiânica no Antigo Testamento. São Paulo: Luz Para o Caminho, 1995, 22-27; doravante Revelação.
335 Cf. Calvino, Inst., Profeta: II.15.1ss; Sacerdote: II.12.1, 4; Rei: II.6.2ss; 15.3ss; 16.15ss. 336 Cf. Berkouwer, The work of Christ, p. 63.337 Cf. Ibid, p. 64.338 Cf. Robert D. Culver, in: DITAT, p. 905.339 Cf. Idem, p. 1384.
154
visão é ha,ro (ro’eh)340 e hz<xoh; (hozeh).341 Além de receber e transmitir a
revelação de Deus, os profetas, como explicou Van Groningen, eram responsáveis por repetir,
explicar, aplicar a Palavra de Deus e, também, deviam guiar o povo para que respondessem
corretamente à palavra, e, ainda, eram os agentes no ritual de unção (2 Sm 23.1-7).342
Sacerdote: A palavra hebraica para sacerdote é !h,Ko (kœhen). Em muitos textos
se referem ao oficial-mor, ou, como no caso de Ira, o Jerita, de “conselheiro confidencial”
(Ex.: 2Sm 8.18) ou os primeiros nas mãos do rei (Ex.:1Cr 18.17).343 Exceto por estes casos,
esta palavra usada para descrever o “ministro das coisas sagradas, especialmente dos
sacrifícios”.344 No princípio, todos eram seus próprios sacerdotes (Gn 4.3, Jó 1.5), mas no
tempo de Noé este papel passou a ser exercido pelo patriarca da família (Gn 8.20, 12.8). Com
a saída do povo de Israel do Egito e sua reestruturação como nação que retoma sua própria
liderança, Israel recebe sua primeira legislação escrita que define e restringe como sacerdotes
a Arão e seus descendentes (Lv 8 e 9). Eram obrigações dos sacerdotes:345 fazer expiação,
sacrificando animais (Lv 3.16, 4.26,31,35, 5.6,10, 14.31, 17.6); purificar do povo, declarando
impuro o que se encontrava nesta condição, inspecionando-se até mesmo os lares (Lv 13.11,
14.15) e colocando à prova os casos de adultério (Nm 5.11-31); ouvir a confissão de fé dos
adoradores e receber suas ofertas (Dt 26.1); ajudar homicidas quando não intencionais (Dt
19.1-13) e auxiliar forasteiros (Ex 23.9); instruir e supervisionar a instrução do povo (Ml 2.7);
preservar e manter o livro da lei ao alcance do rei (Dt 17.18; 2Rs 22.11, 23.2); servir de juiz
nas desavenças dentro do povo de Israel (Dt 17. 8-13).
Rei: A palavra hebraica para rei, %l,m, (melek), era utilizada para toda pessoa de grande
autoridade, imperador e governantes (Jr 46.2 imperador Nabucodonosor, Dn 5.30 governador
340 Cf. Ibid, p. 1384, 1385.341 Cf. Ibid, p. 447.342 Cf. Van Groningen, Revelação, p. 34.343 Cf. J. Barton Payne, in: DITAT, p.704.344 Cf. Ibid, p. 705.345 Cf. Van Groningen, Revelação, p. 33, todas as oito funções foram descritas com base neste mesmo texto.
155
Dario, subalterno de Ciro),346 desta forma, sua simples ocorrência não indica a pessoa que
recebeu o ofício real. Para que tanto seja identificado, a ação da pessoa denominada “melek”
deveria ser voltada para a manutenção do pacto, portanto, deveria atender as prescrições
pactuais para tal ofício. O rei era ungido libertador do povo por meio de lutas e a quebra de
jugo de servidão, buscando a paz (1Sm 9.16).347 Além disso, o rei deveria governar sobre o
povo (1Sm 10.1), regulando sua própria vida e a do povo pela vontade revelada de Deus (Dt
17.18; 1Rs 3.8,9).348 Assim, o rei era um pastor sobre o povo de Deus, alimentando-o,
cuidando e conduzindo dentro da aliança (Sl 78.71,72; Ez 34.1; Cf. Jz 21.25). O Rei era
aquele que representava o poder soberano de Deus, zelando para que o povo seguisse a
palavra dada pelo profeta e fosse diante do sacerdote levar sua oferta e cultuar a Deus.
Superioridade: A superioridade de Jesus deve ser entendida no sentido de que no exercício
dos ofícios ele o fez com maior profundidade, maior clareza, com caráter definitivo e como
cumprimento de expectativas trazidas pelas promessas do Antigo Testamento quanto ao
Messias. Por outro lado, estes aspectos da superioridade do Filho não podem ser entendidos
como se o que fora feito pelos oficiais do Antigo Testamento fosse menos obra de Deus, ou
menos necessário, na verdade, era justamente a preparação para que Jesus pudesse realizar seu
papel de profeta, sacerdote e rei no meio de um povo que já aprendera a ter essas figuras
como essenciais. Num sentido denotativo da palavra superior, Jesus o foi por ser o Filho na
casa do Pai, e não o servo (Hb 3), por isso ele tinha mais autoridade e era melhor no exercício
de seus ofícios, pois o fez sem pecar, dando melhor testemunho daquele que o enviara (Hb
4.15).
346 Cf. Robert D. Culver, in: DITAT, p. 842.347 Cf. Van Groningen, Revelação, p. 34.348 Cf. Ibid, p. 35.
156
157