dis_ndele nzau_a língua portuguesa em angola
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UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Departamento de Letras
A Lngua Portuguesa em Angola
Um Contributo para o Estudo da sua Nacionalizao
Domingos Gabriel Ndele Nzau
Tese para obteno
do Grau de Doutor em Letras
(3 ciclo de estudos)
Orientador: Prof. Doutor Jos Carlos Venncio Co-orientador: Prof. Doutora Maria da Graa dAlmeida Sardinha
Covilh, Agosto de 2011
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ii
Dedicatria
Rosa, minha esposa
(pelo amor)
Letcia
(pela alegria)
e
Neyma e Luzia
(pelo carinho)
Rosita e Palucha
(pela pacincia)
Me e s manas
(por todos os motivos)
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iii
Agradecimentos
A elaborao deste trabalho s foi possvel graas a ajuda de muitas pessoas, umas com
participao directa e activa, outras, mesmo sem pronunciarem palavra alguma, assumiram-
se como lenitivo da ansiedade. Nesta ptica, torna-se melindroso citar nomes, temendo o
risco de cairmos no ridculo de esquecimento. Entretanto, como temos de agradecer,
queremos, sem classificar nenhuma hierarquia, dirigir o nosso agradecimento:
Universidade da Beira Interior (UBI), na pessoa do Professor Antnio dos Santos Pereira,
Presidente do Departamento de Letras, pelo incentivo e compreenso.
Ao Professor Jos Carlos Venncio e Professora Maria da Graa de Almeida Sardinha, pela
disponibilidade, ensinamentos e apoio cientfico.
Ao Yaya Filomo Cubola lembra-se do debate durante a travessia do Tejo? pela amizade,
sugestes, enfim, o saber inesgotvel.
Embaixada de Angola em Portugal, na pessoa do seu Embaixador, Dr. Jos Marcos Barrica,
pela viabilizao da deslocao a Angola para o estudo emprico.
Ao Governo Provincial de Cabinda, pelo valiosssimo apoio econmico.
Ao GEPE (Gabinete de Estatstica e Planeamento da Educao), pelo material fornecido sobre
o ensino da lngua portuguesa no estrangeiro, que muito enriqueceu a investigao.
Aos amigos que nos ajudaram durante a realizao do estudo emprico, manifestamos
reconhecimento que sem o vosso valioso apoio ser-nos-ia difcil obter os dados que se
revestiram de importncia fundamental para a prossecuo dos objectivos desta investigao.
Por isso, que fique gravado o esforo de todos, de modo particular os sr.s Francisco Nionje e
Maria Madalena Zau (Cabinda), Mwamba Garcia Neto e Antnio Parclito (Luanda), Malogrado
Jos Dalama e Almeida Dipinda (Bengo), P.e Graciano Kapingala e Maria Teresa Nalueio
Custdio (Huambo). Associamos, aqui, o nome da Paula Mesquita, pela disponibilidade e apoio
na traduo do resumo.
Por ltimo, mas no menos importante, queremos agradecer famlia em geral e, em
especial, Rosa, minha esposa, pelo apoio, confiana e pacincia incansavelmente
demonstrados, enquanto durou a investigao.
A todos, o nosso profundo BEM-HAJA!
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iv
Resumo
O desenvolvimento de uma investigao sobre um pas como Angola reveste-se de alguns
aspectos muito particulares no s pela vastido geogrfica, como, de igual modo, pela
diversidade cultural, lingustica e histrica de que portador, onde lnguas e culturas de
origem africana e europeia se entrecruzam, tentando, em simultneo, delimitar espaos e
mentalidades. Pretendendo encontrar solues advindas desta problemtica, vrios trabalhos
tm vindo a lume, no sentido de proporem caminhos considerados mais adequados em prol de
uma s harmonia.
Nesta perspectiva, a abordagem da temtica lingustica angolana sugere alguma prudncia:
primeiro, por ser uma rea sensvel que envolve questes de identidade individual ou
colectiva; segundo, por se tratar de uma sociedade de tipo pluralista, onde coabitam povos
com lnguas e culturas prprias e, consequentemente, indivduos que tentam manter as suas
identidades. No seio desta osmose cultural e lingustica se vem realizando a lngua
portuguesa, que, desde a sua introduo no sculo XV, passando pela proclamao como
lngua oficial em 1975, at actualidade, tem vindo a conhecer um processo de expanso
territorial, com dinmicas de contornos algo irreversveis. Em consequncia do processo
expansional, observa-se a acentuao do contacto da mesma lngua com indivduos residentes
em zonas outrora de exclusividade das denominadas lnguas nacionais de origem africana,
tendo como efeito um aumento galopante do nmero de falantes maternos e no maternos.
Perante as evidncias, numa altura em que se perspectiva o futuro da nao angolana
atravs de distintas iniciativas polticas, sociais, acadmicas e outras, envolvendo entidades
especficas, problematizar os mitos que ainda pairam sobre o passado e o presente da lngua
portuguesa, visando perspectivar o seu futuro, no apenas legtimo e imperioso, como ,
igualmente, desafiador. O percurso para a materializao do desafio gira, assim, em torno de
quatro questes centrais: nacionalizao da lngua portuguesa, democratizao de ensino
(bilinguismo), conscincia de assuno e distribuio da frequncia do seu uso.
Deste modo, antes de partirmos para a anlise baseada em mtodos quantitativos e
qualitativos, propusemos, como ponto de partida, por um lado a problemtica das etnicidades
angolanas e a relao estabelecida entre lngua e sociedade, tendo como pano de fundo o
exame do panorama lingustico angolano e as funes da lngua portuguesa em Angola
respectivamente, e, por outro a trajectria da lngua portuguesa em busca da nacionalizao.
Constatamos, ainda que os resultados suscitem prudncia quanto a generalizaes em termos
nacionais, a existncia de um processo em curso, que pode emergir na nacionalizao da
lngua portuguesa a curto, mdio ou longo prazo. Tal constatao deriva do facto de os
resultados fornecidos pela empiria revelarem uma clara tendncia de assuno da lngua
-
v
portuguesa, a par de uma frequncia cada vez mais generalizada do uso desta, assim como de
uma conscincia de cooperao recproca entre esta e as suas congneres de origem africana.
Finalmente, propomos para investigaes futuras a confirmao da tendncia anunciada, com
recurso investigao emprica mais abrangente, de maior representatividade nacional,
albergando, em proporcionalidade, no apenas falantes de lngua portuguesa em situao de
lngua materna ou segunda, mas, de igual modo, as duas principais zonas habitacionais da
populao angolana: zona rural e urbana.
Palavras-chave
Conscincia lingustica, distribuio da frequncia do uso da lngua portuguesa,
nacionalizao da lngua portuguesa e democratizao de ensino.
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vi
Abstract
Research on a country like Angola implies many specificities, not only regarding geographical
range, but also its cultural, linguistic, and historical diversity. African- and European-based
languages and cultural intersect here, and tentatively delineate spaces and mentalities.
Several works have come to light attempting to offer solutions to these problems, suggesting
more adequate ways towards sound harmony.
From this perspective, approaching Angolan linguistics requires caution. In the first place, it
is a sensitive area involving questions of individual and collective identity; secondly, this is a
pluralist society, where peoples with different languages and cultures cohabit, trying to
preserve their identities. Amidst this cultural and linguistic osmosis, the Portuguese language
has found its way, and since its introduction in the 15th century to becoming an official
language in 1975, its has expanded throughout the territory until today, with seemingly
irreversible dynamics. As a consequence of the expansion process, there is accentuated
contact of inhabitants of formerly Angolan-language speaking areas with Portuguese,
fostering a great increase in the numbers of first- and second-language speakers.
In face of the evidence, at a time when the future of the Angolan nation is considered from
different political, social, and academic perspectives, involving specific entities, to
problematise the myths still hovering over the past and present of the Portuguese language
and to estimate its future is not only legitimate and urgent, but also challenging. The
challenge lies in four central questions: the nationalisation of the Portuguese language, the
democratisation of education (bilinguism), awareness of appropriation and distribution of the
frequency of use.
Before beginning the analysis based on quantitative and qualitative methods, the starting
point will be issue of Angolan ethnicities and the relation established between language and
society, having as background the overview of the Angolan linguistic landscape and the
functions of the Portuguese language in Angola, respectively. Additionally, the trajectory of
the Portuguese language towards nationalisation will also be discussed. Though results require
prudence as to generalisations to a national level, the process is ongoing and may emerge at
short, medium, or long term in the nationalisation of Portuguese. This conclusion derives
from the empirical data, which reveal a clear tendency to appropriation of the Portuguese
language, in line with a growingly generalised frequency of its use, as well as an awareness of
reciprocal cooperation between this language and its African counterparts.
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vii
Finally, we propose for future research the confirmation of the identified trend, resorting to
more wide-reaching and representative research, encompassing not only first- and second-
language speakers of Portuguese, but equally the two main habitation areas of the Angolan
population: the rural and urban areas.
Keywords
Linguistic awareness, distribution of frequency of the use of Portuguese, nationalisation of
the Portuguese language, democratisation of education.
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viii
ndice
Pg.
Introduo ................................................................................................. 16
1. A problemtica da investigao ..................................................................... 16
2. Delimitao da investigao ......................................................................... 22
3. Proposta da investigao ............................................................................. 23
4. Definio de conceitos-chave ........................................................................ 25
4.1 Enquadramento sociolingustico .................................................................... 25
4.2 Acerca do contacto de lnguas ..................................................................... 31
5. Trajectria analtica da investigao ............................................................... 39
5.1 Esquema da estrutura da investigao ............................................................ 41
Captulo 1: Angola: Lnguas e Etnicidades .......................................................... 42
1.1 Introduo ............................................................................................. 42
1.2 Comunidades tnicas angolanas .................................................................... 46
1.2.1 Comunidades tnicas no bantu ................................................................. 47
1.2.2 Comunidades tnicas bantu ...................................................................... 48
1.3 Para uma descrio do panorama lingustico angolano ......................................... 49
1.3.1 Lnguas angolanas de origem africana .......................................................... 50
1.3.1.1 Lnguas bantu de Angola ........................................................................ 54
1.3.1.2 A designao de lnguas bantu ................................................................ 56
1.3.1.3 Classificao e caracterizao das lnguas bantu ........................................... 56
1.3.2 A lngua de origem europeia de Angola o portugus ........................................ 59
1.3.2.1 Preliminares ...................................................................................... 59
1.3.2.2 Circuitos de angolanizao do portugus .................................................... 59
1.3.2.3 Acerca do contacto de lnguas: implicaes no portugus em Angola .................. 61
1.3.2.3.1 Interferncias lingusticas ................................................................... 64
1.3.2.3.2 Consideraes sobre a variao lingustica em Angola .................................. 74
Captulo 2: Lngua e Sociedade: das Funes da Lngua numa Sociedade s Funes da
Lngua Portuguesa na Sociedade Angolana .......................................................... 77
2.1 Introduo ............................................................................................. 77
2.2 Lngua e linguagem ................................................................................... 77
2.3 Linguagem e comunicao .......................................................................... 80
2.4 Carcter vocal da linguagem ....................................................................... 81
2.5 Linguagem como instituio humana .............................................................. 83
2.6 Relao lngua vs utente ............................................................................ 84
2.7 Funes da lngua numa sociedade ................................................................ 85
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ix
2.7.1 Funo identificadora da lngua ................................................................. 87
2.8 Funes e estatutos da lngua portuguesa na sociedade angolana ........................... 88
2.8.1 Estatutos da lngua portuguesa em Angola ..................................................... 89
2.8.1.1 Estatuto de prestgio da lngua portuguesa em Angola .................................... 90
2.8.2 Trs funes da lngua portuguesa em Angola ................................................ 91
2.8.2.1 Funo comunicativa ............................................................................ 91
2.8.2.2 Funo democratizadora ....................................................................... 92
2.8.2.3 Funo identificadora da lngua portuguesa ................................................ 92
Captulo 3: A Lngua Portuguesa em Busca da Nacionalizao .................................. 94
3.1 Introduo ............................................................................................. 94
3.2 Os primeiros momentos de contacto com Angola ............................................... 94
3.2.1 Da horizontalidade verticalizao das relaes ............................................. 95
3.3 A incipiente conquista do interior ................................................................. 96
3.3.1 A particularidade angolana ....................................................................... 98
3.4 Da transio para a independncia ................................................................ 99
3.4.1 Aco da poltica lingustica colonial .......................................................... 101
3.4.2 Aco da poltica lingustica dos dirigentes no ps-independncia ....................... 102
3.5 Da independncia ao declinar do sculo XX .................................................... 105
3.5.1 Acerca da angolanidade em lngua portuguesa: uma nova identidade? .................. 108
3.6 A lngua portuguesa na actualidade: perspectivas para o sculo XXI ....................... 113
3.6.1 Carcter irreversvel da expanso territorial da lngua portuguesa ...................... 113
3.6.2 Para a nacionalizao e naturalizao da lngua portuguesa .............................. 116
3.7. A necessidade de uma alfabetizao bilingue ................................................. 118
3.7.1 Que bilinguismo para Angola? ................................................................... 120
3.7.2 Achegas ao ensino em/de portugus em Angola ............................................. 122
3.7.3 Que professor para o ensino em/de portugus em Angola? ................................ 124
3.7.4 Que formao para o professor de portugus em Angola? ................................. 125
Captulo 4: Contribuio da Empiria ................................................................ 128
4.1 Justificao e descrio das opes metodolgicas ........................................... 128
4.2 Especificao dos objectivos ...................................................................... 128
4.3 Formulao de hipteses .......................................................................... 129
4.4 Recolha de informao ............................................................................. 131
4.4.1 Pesquisa qualitativa: entrevista ................................................................ 133
4.4.1.1 Tipo de entrevista .............................................................................. 133
4.4.1.2 Acerca dos entrevistados ..................................................................... 133
4.4.1.3 Procedimentos .................................................................................. 134
4.4.2 Pesquisa quantitativa: inqurito ............................................................... 135
4.4.2.1 Caracterizao .................................................................................. 136
-
x
4.4.2.2 Seleco dos inqueridos e aplicao do questionrio .................................... 136
4.4.2.3 Populao e amostra .......................................................................... 137
4.5 Apresentao dos resultados ...................................................................... 139
4.5.1 Perfil dos inquiridos .............................................................................. 139
4.5.2 Distribuio da frequncia do uso e grau de assuno da lngua portuguesa ........... 143
4.6 Discusso dos resultados ........................................................................... 152
Consideraes Finais ................................................................................... 163
1. Concluses gerais da investigao ................................................................. 163
2. Limitaes da investigao ......................................................................... 167
3. Sugestes para futuras investigaes ............................................................. 169
Bibliografia ............................................................................................... 171
Anexos .................................................................................................... 182
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xi
Lista de Figuras
Figura 1: Esquema da estrutura da investigao .................................................... 41
Figura 2: Fases da vitalidade das lnguas ............................................................. 43
Figura 3: Mapa da zona lingustica H .................................................................. 55
Figura 4: Sistema voclico da maioria das lnguas bantu ........................................... 57
Figura 5: Famlia de lnguas Indo-Europeia ........................................................... 59
Figura 6: Disposio dos registos da linguagem ...................................................... 63
Figura 7: Elementos que confluem na formao da VAP ........................................... 63
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xii
Lista de Tabelas
Tabela 1: Pases que asseguram o ensino do portugus no estrangeiro .......................... 19
Tabela 2: Falantes de pases de lngua oficial portuguesa (em milhes) ........................ 20
Tabela 3: Dimenses de bilinguismo de Harmes ..................................................... 34
Tabela 4: Top 10 das lnguas mais divulgadas na Internet ......................................... 42
Tabela 5: As dez lnguas maternas mais faladas no mundo ........................................ 43
Tabela 6: Formao dos reinos de Angola ............................................................ 49
Tabela 7: Famlias de lnguas de frica segundo Westermann ................................ 51-52
Tabela 8: Ramificaes da famlia de lngua congo-cordofaniana segundo Greenberg ........ 53
Tabela 9: Famlias de lnguas de frica segundo Greenberg ................................... 53-54
Tabela 10: Realizao das vogais /e/ e /o/ .......................................................... 65
Tabela 11: Realizao da consoante /r/ .............................................................. 66
Tabela 12: Variao do nmero dos nomes em kimbundu e no portugus ...................... 67
Tabela 13: Morfologia do verbo em kimbundu e no Portugus .................................... 68
Tabela 14: Expresses nominais de uso quotidiano ............................................. 73-74
Tabela 15: Expresses verbais de uso quotidiano ................................................... 74
Tabela 16: Algumas expresses de gria e calo angolanos ........................................ 76
Tabela 17: Estimativa da populao de Angola de 1845 a 1970 ................................. 100
Tabela 18: Pases e lnguas oficiais vizinhos dos PALOP .......................................... 111
Tabela 19: Respostas dos inquiridos ................................................................. 137
Tabela 20: Provncia de residncia dos inquiridos ................................................. 139
Tabela 21: Gnero dos inquiridos ..................................................................... 140
Tabela 22: Idade dos inquiridos ....................................................................... 140
Tabela 23: Escolarizao dos inquiridos ............................................................. 141
Tabela 24: Residncia habitual dos inquiridos ..................................................... 141
Tabela 25: Provncia de residncia dos inquiridos ................................................. 142
Tabela 26: Provncia de nascimento dos inquiridos ................................................ 142
Tabela 27: Grau de domnio da lngua portuguesa ................................................. 144
Tabela 28: Lnguas de origem africana dos inquiridos ............................................ 147
Tabela 29: Razes por que fala a lngua portuguesa .............................................. 156
Tabela 30: Frequncia do uso do portugus/locais (em %) ....................................... 157
Tabela 31: Itens constantes da 3 parte do questionrio ......................................... 160
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Lista de Grficos
Grfico 1: Frequncia do uso da lngua portuguesa no meio familiar ........................... 145
Grfico 2: Frequncia do uso da lngua portuguesa no meio laboral ............................ 145
Grfico 3: Frequncia do uso da lngua portuguesa no meio escolar ........................... 146
Grfico 4: Frequncia do uso da lngua portuguesa com amigos ................................ 146
Grfico 5: Frequncia do uso da lngua portuguesa com desconhecidos ....................... 146
Grfico 6: Uso das lnguas nacionais de origem africana ......................................... 147
Grfico 7: Lngua de melhor transmisso de pensamento e sentimento ....................... 148
Grfico 8: Preferncia de lngua para o ensino oficial ............................................ 148
Grfico 9: Faixa etria que mais usa a lngua portuguesa ........................................ 149
Grfico 10: Portugus a lngua mais falada em Angola ......................................... 150
Grfico 11: Os angolanos acham tambm sua a lngua portuguesa ............................. 150
Grfico 12: Os angolanos apresentam resistncia lngua portuguesa ......................... 151
Grfico 13: Deixar de falar o portugus e falar apenas as lnguas africanas................... 152
Grfico 14: A lngua portuguesa um perigo vitalidade das lnguas africanas.............. 152
Grfico 15: Grau do domnio da lngua portuguesa ................................................ 156
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xiv
Lista de Siglas e Acrnimos
a.C.: Antes de Cristo (tempo cronolgico anterior ao nascimento de Jesus Cristo).
ALALC: Associao/Aliana Latino-Americano de Livre Comrcio.
CEDEAO: Comunidade Econmica dos Estados da frica Ocidental.
DGIDC: Direco-Geral de Inovao e de Desenvolvimento Curricular.
CPLP: Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa.
d.C.: Depois de Cristo (tempo cronolgico posterior ao nascimento de Jesus Cristo).
EUA: Estados Unidos da Amrica.
GEPE: Gabinete de Estatstica e Planeamento da Educao (GEPE).
ILTEC: Instituto de Lingustica Terica e Computacional.
IMN: Instituto Mdio Normal.
INIDE: Instituto Nacional de Investigao e Desenvolvimento da Educao.
ISCED: Instituto Superior de Cincias da Educao.
i. : Isto .
LNOA: Lnguas Nacionais de Origem Africana.
LNOE: Lnguas Nacionais de Origem Estrangeira.
LO: Lngua Oficial.
LOP: Lngua Oficial Portuguesa.
LP: Lngua Portuguesa.
L1: Lngua Materna, a 1 em termos de aquisio e que mais se domina.
L2: Lngua Segunda, aprendida depois da L1.
MED: Ministrio da Educao.
MERCOSUL: Mercado Comum do Sul.
NC: Nasal-Consoante.
OEA: Organizao dos Estados Americanos.
OEI: Organizao de Estados Ibero-Americanos.
ONU: Organizao das Naes Unidas.
PALOP: Pases Africanos de Lngua Oficial Portuguesa.
PB: Padro Brasileiro (Portugus do Brasil).
PE: Padro Europeu (Portugus de Portugal).
P.e: Padre.
RDC: Repblica Democrtica de Congo (ex-Zare).
SADC: Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral.
Sr.s: Senhores.
UA: Unio Africana.
UE: Unio Europeia.
UNESCO: Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura.
VAP: Variante Angolana de Portugus (Portugus Angolano).
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Introduo
1. A problemtica da investigao
A escolha do ttulo A Lngua Portuguesa em Angola: um Contributo para o Estudo da sua
Nacionalizao para designarmos a nossa investigao no inocente. Com efeito, ela
resulta do desafio de querermos ser tambm partcipes duma discusso em crescendo desde a
dcada de 80 do sculo XX, porm mais vincadamente a partir da dcada de 90, sobre a
questo da nacionalizao da lngua portuguesa. Tal discusso procura problematizar se se
pode reconhecer lngua portuguesa o estatuto de lngua nacional e no apenas lngua oficial
e veicular como, de resto, habitual design-la, ou se, pelo contrrio, se deve reservar o
estatuto nacional apenas s lnguas de origem africana. Estamos, pois, perante uma
temtica pertinente - tal como so as questes relacionadas com o modelo organizacional que
melhor se adequa realidade angolana, as questes de interesse econmico e a valorizao
dos padres de referncia e de unidade nacional apesar do seu carcter sensvel, por
envolver sentimentos de identidade.
Em termos de abordagem, a histria ganha um lugar de destaque conferido pelo valor de
argumento metodolgico, visto que muitos investigadores tm vindo a realar a
impossibilidade de compreender e explicar as sociedades sem levar em conta a sua histria.
o caso de Braudel, ao debruar-se em torno da valorizao daquela, em la longue dure, um
conceito que transferiu da historiografia alem para uma formulao francesa mais gil e
operatria, em sua opinio (Braudel apud Henriques 2004). Convm, aqui, citar, na senda da
valorizao da histria, o nome de Jacques le Goff, historiador gauls, que a destaca como
novidade que emerge de la longue dure e no como ruptura, ao aludir que: plutt quune
rupture, jaime voir lhistoire comme une nouveaut qui se dgage de la longue dure
(Henriques, op. cit., p. 7). Com efeito, do ponto de vista do domnio cientfico, consideramos
que a investigao se enquadra na sociolingustica, pois, ao contrrio de a maior parte dos
trabalhos de investigao sobre o portugus em Angola parecer privilegiar as descries
lingusticas, nesta privilegiamos uma abordagem sociolingustica, na esperana de que a
investigao possa trazer elementos passveis de ajudar os decisores a definir uma poltica
lingustica assente na real situao de Angola, um pas etnicamente heterogneo.
Quanto ao domnio sociolingustico, sabe-se que desde a sua autonomizao na segunda
metade do sculo XX, a sociolingustica no cessa de dar contributos tericos e prticos, nem
pra de revelar descobertas, muitas ainda por (re)descobrir. Um dos vrios contributos da
referida cincia na sua relao com a comunidade e que representa, em nossa opinio, um
progresso enorme no campo das cincias sociais a legitimao do par lngua vs cultura. Esta
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17
dicotomia sociolingustica permite que a lngua seja considerada um veculo de cultura, pois
ao ser seu principal transporte e catalisador, a lngua incute sempre cultura, podendo ser um
instrumento que a inocula. Em virtude dos contributos da sociolingustica, ainda possvel
questionar os limites da ideia de Saussure que declara essencial lngua o papel de
instrumento de comunicao, um entendimento que os comparativistas, pelo contrrio,
consideraram uma causa de degenerescncia (Ducrot & Todorov, 1978). De facto, uma lngua,
mais do que ser utilizada como instrumento ao servio de determinada comunidade humana,
acaba, ela prpria, por utilizar os membros dessa comunidade. Neste contexto, um
elemento no apenas passivo, instrumentalizado para veicular ideias, desejos, volies, mas
tambm, um elemento activo de formatao da prpria razo humana. Ela desencadeia nos
utilizadores reaces que ainda esto por descobrir; formata e trabalha-os do mesmo modo
que a geografia, o meio ambiente e todos os inputs digamos naturais trabalham os
indivduos, adequando-os vida. Os nossos ideogramas, as nossas aspiraes e os nossos
sonhos no apenas so encaminhados, mas tambm retidos num vai e vem de emoes. Deste
modo, solcito e tem cabimento admitirmos que, por estas razes, a lngua um elemento
vivo com princpio activo. Tal princpio, que como de ADN lingustico se tratasse, um
operador vivo e cativo em cada lngua, que se pode, qui, comparar informao gentica.
Um dos grandes desafios da cincia em geral, que, por honestidade, reconhecemos no ser o
nosso nesta investigao, pode passar por descobrir e ir determinando, em vrias etapas, esse
elemento com princpio activo das lnguas. Poderemos estar, nesta perspectiva, no caminho
do progresso cientfico, ao permitir, progressivamente, e admitir ou ir admitindo como uma
determinada lngua pode contribuir para a formatao de determinados tipos de cgito, ou
seja, determinados tipos de viso do mundo. Qualquer indivduo que no consiga mergulhar
na conscincia, no ambiente de trabalho psicolgico e sociolingustico do ADN da lngua
pode ficar alheio da realidade profunda dessa mesma lngua. assim que em traduo, por
exemplo, podemos dizer que se torna necessrio ao tradutor mergulhar no ambiente
(socio)lingustico do ADN vigente da lngua para se traduzir, com sucesso, um determinado
texto. Ao registar, descrever e analisar factos sociais da lngua e os da lngua na sociedade, a
sociolingustica apresenta-se como o domnio cientfico ideal da nossa abordagem.
Efectivamente, os temas que compem o objecto desta investigao devem, diremos, se no
na totalidade, pelo menos muito significativamente s reas cientficas como a lingustica e a
sociologia, com fortes nuances com a histria, e na combinao desta com aquelas. Trata-se
de uma operao feita luz da interdisciplinaridade, ou seja, em convivncia pacfica entre
as cincias, uma vez que estas tm vindo a admitir, cada vez mais, nas suas abordagens,
relaes dialgicas entre si. Nesta ptica, solcito e tem cabimento que a sociolingustica
seja o domnio cientfico de excelncia, na medida em que o destaque recai sobre a
nacionalizao de uma lngua, neste caso, da lngua portuguesa em Angola. Todavia, temos
conscincia que a reflexo no deve perder de vista o caminho feito no passado, sob pena de
-
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sermos rotulados como defensores de uma viso exclusivamente mercantilista da lngua
portuguesa, ignorando-a, conforme alerta Trigo (Trigo, 2009), pelo facto de funcionar como
cimento nacional, ou como lngua da geografia dos afectos.
De facto, muito se tem falado e feito, ao longo dos tempos, desde a criao de Portugal,
particularmente desde que este pas se (re)criou expansivamente, nos sculos XV e XVI. Na
mesma poca, a lngua portuguesa viajou com Portugal, recriando-se semelhana daquele.
Falada inicialmente por menos de um milho de pessoas (Esperana, 2008), estendeu-se por
vrios continentes, onde, cronologicamente, Guin-Bissau (1446), descoberta, ao que parece,
por lvaro Fernandes; Cabo Verde (1460 e 1462), respectivamente, ilhas do grupo Sotavento e
Barlavento, descobertas por Antnio de Noli e Diogo Afonso; So Tom e Prncipe (1470 e
1971), respectivamente, por Joo de Santarm e Pro Escobar; Angola (1482), por Diogo Co;
Moambique (1498), por Vasco da Gama (em frica); Brasil (1500), por Pedro lvares Cabral
(na Amrica); e Timor-Leste (1512 a 1520) (na sia), no tempo de D. Afonso de Albuquerque,
ganham particular importncia, no apenas por serem condminos da lngua portuguesa, mas,
sobretudo, por esta lngua ser a lngua oficial (LO) destas antigas colnias portuguesas
espalhadas pelo mundo.
Depois da descolonizao, a mesma lngua no voltou portuguesa Europa, enraizando-se nos
novos territrios conquistados, tornando-se num bem pblico nacional, internacional e mesmo
intercontinental. Espalhada pelo mundo, a lngua portuguesa tem vindo a ganhar um nmero
crescente de falantes, sobretudo como lngua segunda (L2), sendo mesmo ensinada em vrios
pases de lngua oficial no portuguesa como Andorra, Blgica, Espanha, Frana, Holanda,
Luxemburgo, Reino Unido, Alemanha e Sua (na Europa), Nambia, frica do Sul e Suazilndia
(em frica), Canad, Boston e So Francisco (na Amrica) e Austrlia (na Austrlia) (GEPE1,
2009). Entretanto, para alm dos dados fornecidos por esta entidade educacional, fruto da
actual dinmica de expanso, a lngua portuguesa ensinada tambm no Zimbabwe, no caso
da zona SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral), e no Senegal, em
relao CEDEAO (Comunidade Econmica dos Estados da frica Ocidental). Merece ser
referenciada a Guin-Equatorial, pas da frica Ocidental que aspira integrar a CPLP
(Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa). Para tal propsito, adoptou o portugus como
lngua oficial (LO), ao lado do espanhol e do francs, por ser uma condio prvia para
integrar a comunidade. Quanto ao espao da comunidade do MERCOSUL (Mercado Comum do
Sul), h que considerar um crescente ensino da lngua portuguesa na Argentina, no Uruguai e
no Paraguai, assim como em outros pases da Amrica Latina que no integram o MERCOSUL.
No Oriente, a presena de Timor Leste, pas da CPLP, pode ser considerada a porta de
entrada para o ensino da lngua portuguesa em alguns pases da regio e reforar, no caso das
antigas possesses portuguesas do Oriente (Macau, Malaca, Goa, Damo e Diu) e no caso
particular da China, o interesse pela lngua portuguesa.
1 Gabinete de Estatstica e Planeamento da Educao.
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Todos estes factores, aliados ao desenvolvimento das relaes econmicas e culturais e
presena de comunidades portuguesas importantes em vrios cantos do mundo, podem fazer
dela uma lngua do futuro, cujo sucesso depende de boas polticas para a sua difuso e
internacionalizao (MED, Portugal, 2005). Da reavaliao dos dados cedidos pelo GEPE,
referentes a pases onde a lngua portuguesa actualmente ensinada, resulta a tabela mais
actualizada que se segue.
Tabela 1: Pases que asseguram o ensino do portugus no estrangeiro
Europa frica Amrica Austrlia sia
Alemanha Guin-Equatorial Argentina Austrlia China
Andorra Nambia Canad Damo
Blgica R. frica do Sul EUA (Boston) Goa Diu
Espanha Senegal EUA (S. Francisco) Macau
Frana Suazilndia Paraguai Malaca
Holanda Zimbbue Uruguai
Luxemburgo Venezuela
Reino Unido
Sua
Fonte: Adaptao nossa.
A lngua portuguesa tem sido, de igual modo, por si s, a pedra angular que alicera
motivaes e gera instituies e projectos. Citamos, no pela relevncia, mas a ttulo
informativo, a criao de uma zona PALOP em frica, acrnimo de pases africanos de lngua
oficial portuguesa, ou a fundao de uma entidade CPLP no mundo, semelhana das suas
congneres Commonwealth (no caso dos pases de lngua inglesa), La Franconphonie (para os
pases de lngua francesa), a Liga de Estados rabes (Karim apud Esperana, idem) ou ainda
La Hispanofonia (no caso da comunidade dos pases de lngua espanhola). Mantm, de igual
modo, relaes com vrias instituies internacionais como a UA (Unio Africana); a CEDEAO
e SADC, em frica; a OEA (Organizao dos Estados Americanos), na Amrica (Norte e Sul); o
MERCOSUL e a ALALC (Associao/Aliana Latino-Americano de Livre Comrcio), na Amrica
Latina; a OEI (Organizao de Estados Ibero-Americanos), no caso da Europa e Amrica; a UE
(Unio Europeia), na Europa; a UNESCO (ONU); e a Unio Latina, no caso da frica, Amrica,
sia e Europa.
Mediante o exposto, sem sermos redutores, mas procurando, contudo, mitigar dissonncias2,
tudo o que se disse refere-se unicamente lngua portuguesa. Alis, esta tanto pode ser
sedimentadora de interstcios e clivagens nas comunidades dos falantes, como, no convvio
com outras lnguas, principalmente as das antigas colnias, atribuem quase sempre a
arrogncia, parecendo, deste modo, sobrepor-se mais do que dialogar com elas o quanto
baste. A mesma lngua culpabilizada pela morte das outras, em muitos casos para absorver
medocres polticas lingusticas nos novos Estados ps-coloniais. Entretanto, reconhecendo-lhe
2 Por exemplo, o facto de a lngua portuguesa motivar a consumao de um acordo ortogrfico entre os pases membros da comunidade CPLP, cujas expectativas goradas nos impelem a consider-lo mais motivador de desacordos do que de acordos.
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algum entrosamento com aquelas, considera como pea-chave para a solidificao do
esprito nacional, um dado imprescindvel ao projecto de construo de naes em pases
lingustica e culturalmente heterogneos como este em apreo. ainda a mesma lngua que,
no espao lusfono, surge nas siglas de algumas organizaes como elemento fundador de
partida, isto , -LP (lngua portuguesa) em CPLP; -LOP (lngua oficial portuguesa) em
PALOP, cambiantes designativos de uma lngua cujo nmero de falantes nativos no mundo,
em franco crescimento, ronda os cerca de 244 milhes, representando 3,7% da populao
mundial (Banco Mundial apud Esperana, 2008).
Tabela 2: Falantes de pases de lngua oficial portuguesa (em milhes)
Pases de Lngua Oficial Portuguesa
Populao (em milhes)
Ranking mundial
Brasil 191.6 5
Moambique 21.4 49
Angola 17.0 56
Portugal 10.6 74
Guin-Bissau 1.7 145
Timor Leste 1.1 151
Cabo Verde 0.5 161
So Tom e Prncipe 0.2 182
Total 244 3.7% Percentagem da populao
Fonte: Esperana, 2008.
H, por conseguinte, razes e contedos de vria ordem, quer sejam do foro lingustico e
sociolingustico, quer poltico, econmico e ideolgico, que a lngua portuguesa tem
capitalizado e se prestam, em nossa opinio, para um trabalho de carcter cientfico como o
de uma tese de doutoramento. Para ns, a feitura da histria e da vida, no dia-a-dia, e pelos
acontecimentos, por um lado, e a feitura do discurso sobre a histria ou sobre a vida, por
outro, englobam dois nveis distintos. O primeiro, imediato, mais ou menos irreflectido,
espontneo e pragmtico, e o segundo, mais racional e analtico, capacitando o homem para
uma gesto mais producente do prprio nvel pragmtico da sua existncia. Mesmo que
muitos indivduos no mundo dispensem uma reflexo (analtica, terica) sobre as suas vidas
para, supostamente, melhor fazerem gesto de si mesmos; mesmo que certos decisores
polticos achem que as suas prticas, ignorando o estado insalubre do ambiente, dispensem
lies da cincia para melhor escolherem as mesmas prticas e apostarem na reduo de
vigor cincia, um trabalho como o nosso significa, a nosso ver, um contributo para o
esclarecimento de fenmenos que envolvem a Humanidade, cujo valor efectivo consistir em
tornar o Homem mais capacitado, mais competente, portador de performances que o levem a
cultivar e usufruir da prpria Vida.
com esta conscincia de utilidade, ainda que relativizada circunstancialmente pelo seu
carcter pioneiro, que a nossa investigao se prope como um discurso sobre um segmento
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da dimenso evolutiva, multirradicular e mesmo pluri-desenvolvimentista da lngua
portuguesa, com maior incidncia a partir do ps-descolonizao.
Angola, Estado africano criado em 1975, em resultado da descolonizao portuguesa, hoje,
sem dvida, um dos grandes condminos da lngua portuguesa. O desafio de elaborao de um
tal discurso de rigor cientfico sobre a temtica enunciada , praticamente, o de vertermos
sobre o que e poder vir a ser Angola para a lngua portuguesa e o que a lngua
portuguesa e poder ir a ser para Angola. Este exerccio, cuja meta a nacionalizao da
lngua portuguesa, apoia-se na averiguao do grau de assuno e da distribuio da
frequncia do uso da mesma lngua. um assunto que nos parece central, devido ao perfil de
Angola, e, igualmente, tendo em conta aquilo que tem acontecido e de que se tem falado
pragmaticamente, sem, no entanto, se aprofundar sociolinguisticamente o papel da lngua
portuguesa nesse pas lusfono.
Numa altura em que insignes e visionrias palavras de Pessoa - A lngua portuguesa a
minha Ptria tm feito pleno sentido; em que se perspectiva o futuro da nao angolana,
tendo, a par da etnicidade, a questo lingustica como central, a temtica anunciada orienta-
nos tambm para encetarmos, ponderarmos e assumirmos com maior conscincia o controle
dos efeitos do alcance de iniciativas passadas, presentes, emergentes e ulteriores em torno
da lngua portuguesa. Neste desafio cientfico, o enfoque incide na lngua portuguesa e o
horizonte aponta para a sua nacionalizao, partindo do pressuposto de que uma lngua no
apenas um instrumento, um servidor, um elemento prestador de servio ao homem, quando a
usa como seu falante ou seu utente. Uma lngua , em si, um codex formatador; um
dispositivo que formata o seu utente. Ao mesmo tempo que o utente dela se serve, ela acaba
por ir formatando, com o seu codex circunstancial prprio, esse utente. nesta ptica que
a lngua portuguesa pode ter o efeito de ajudar a desenvolver uma identidade nacional nova,
nascida do somatrio das identidades tnicas, com o selo do estatuto poltico que lhe
atribudo pelo Estado, pese embora se considerar a incerteza manifestada por Hodges (2002)
quanto possibilidade de a sua afirmao poder interferir negativamente na diversidade
cultural (e sobretudo lingustica)3 angolana.
De facto, a lngua portuguesa est, hoje, circunstancialmente imbuda, entre outros
elementos, de um cdex nacional, podendo, com ela, Angola acelerar a sua partida para a
realizao do projecto ideolgico do Estado angolano: a construo de uma nao angolana.
3 Parntese nosso.
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2. Delimitao da investigao
Para facilitar a operacionalizao dos parmetros de uma investigao, a delimitao em
planos variados parece ser um mtodo eficaz, ao permitir estabelecer balizas, quer ao nvel
do assunto e da extenso, quer ao de outros factores, nomeadamente os meios humanos, os
recursos econmicos e a exiguidade de prazo. Nesta investigao, a delimitao obedece a
dois planos definidos, como a seguir apresentamos.
Enquanto procura de um quadro terico contributivo para o processo da nacionalizao da
lngua portuguesa em Angola, o plano temtico constitui um debate de autores, na senda da
interdisciplinaridade. Trata-se de um rodopio cogitacional de orientao (socio)lingustica,
visando avaliar os nveis de conscincia da assuno e o grau da frequncia do uso da lngua
portuguesa em Angola, em busca da nacionalizao. Entretanto, no se trata de orientao
sociolingustica do ponto de vista variacional, mas, sim, em questionar, com recurso
empiria, se a situao actual da lngua portuguesa permite discutir a sua nacionalizao, uma
vez que algumas vozes, incluindo certas figuras polticas, perfilam nesse objectivo.
O plano temtico representa, do mesmo modo, um debate acerca do aproveitamento das
benesses do elemento sociolingustico lngua, neste caso, lngua portuguesa, no projecto
angolano de construo de uma nao. Alis, mesmo se houver espao, como natural num
trabalho desta natureza, para se perspectivar a variao lingustica, a abordagem no se
cingir perspectiva de mudana lingustica, mas, principalmente, no plano de histria da
lngua, por este ltimo ser terreno permevel anlise de questes relacionadas, entre
outras, com a poltica lingustica, a democratizao de ensino, o estatuto poltico e as
funes sociais da lngua portuguesa em Angola, no quadro de uma sociedade pluralista,
pluritnica e plurilingue.
Quanto ao plano cronolgico, os assuntos discutidos nesta investigao situam-se entre o
perodo de transio para a independncia e o perodo ps-independncia, se bem que rasgos
de outros momentos - anteriores transio ou posteriores ao sculo XX - se possam
intrometer para melhor complementaridade. O realce do perodo cronolgico definido pode
justificar-se assim: i) pelo facto de ser um perodo crucial no processo sobre a
autodeterminao de Angola e a respectiva criao do Estado angolano que, a partir do feito,
se responsabiliza pela materializao do projecto nacional4; ii) pelo facto de o ps-
independncia, na sua relao com o ps-colonialismo, representar um acentuar de
animosidades entre os Estados emergentes do processo da descolonizao e as potncias
colonizadoras, por corresponder ao perodo do questionamento da modernidade
europeia/ocidental como modelo nico de modernizao (Venncio, 2009). Nesta perspectiva,
4 Entretanto, o projecto de construo da nao fracassou com o eclodir da guerra civil, pondo em causa a unidade aparentemente criada em torno da luta de libertao colonial.
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correspondeu ao momento fundamental na definio do futuro da lngua portuguesa em
Angola, uma vez que a sua natureza pluritnica e plurilingue e/ou multilingue5 dificultava
uma previso correcta do futuro da lngua em anlise; iii) pelo facto de o mesmo perodo,
principalmente as ltimas dcadas do sculo XX e a primeira dcada do sculo XXI,
corresponderem fase de maior revelao da ideia escondida pela expresso lngua
veicular a maneira artificiosa encontrada pelos decisores polticos de no chamar
nacional lngua do colonizador.
3. Proposta de investigao
Desde a sua introduo no sculo XV, passando pela proclamao como lngua oficial a 11 de
Novembro de 1975, at actualidade, a lngua portuguesa tem vindo a conhecer uma
dinmica traduzida num crescente nmero de falantes em situao de lngua segunda.
Todavia, apesar de nos ltimos anos a procura crescente das produes angolanas e
brasileiras (Esperana, op. cit.) poder tambm contribuir para o aumento da cifra de falantes
no maternos, a realidade angolana atpica no contexto africano. Tal particularidade no
reside no facto anteriormente referido nem to-pouco por assinalar uma expanso territorial
cuja dinmica assume, cada vez mais, contornos irreversveis. Resulta, sim, daquilo que
podemos apelidar de processo de assuno da lngua portuguesa que tem marcado o perodo
ps-independncia angolano, desde a dcada de 80.
Em termos concretos, o processo de assuno da lngua portuguesa traduz-se num aumento do
nmero de falantes que a tm como lngua materna e nica, uma situao sem paralelo em
toda a frica Subsariana (Hodges, 2002; Venncio, 1992/93), permitindo estimar que num
futuro breve possa colocar-se na posio de uma das lnguas maternas mais importantes de
Angola em termos quantitativos (Pepetela: 1986:11). O inqurito realizado em 1996 coloca o
portugus na posio de segunda lngua mais importante de Angola, com cerca de 26% de
falantes maternos, apenas ultrapassado pelo umbundu (30%), mas posicionando-se muito
frente de kimbundu e kicongo, com 16% e 8% respectivamente (Hodges, op.cit., pp. 46-47).
Actualmente, no obstante a precariedade de alguns dados por falta de censos actualizados,
estes, na ausncia de outros mais fiveis, tm revelado que a LP tem vindo a ultrapassar a
barreira da urbanidade, ao deixar de ser falada apenas em meios urbanos ou em espaos
outrora da exclusividade das lnguas nacionais de origem africana. Esta crescente
popularizao da lngua portuguesa f-la surgir como lngua mais falada no contexto nacional,
5 Segundo Franois Grin, o plurilinguismo supe uma diversidade calculvel, ou seja, que o nmero de lnguas em presena esteja especificado, ao contrrio de multilinguismo que retoma a noo geral de diversidade das lnguas, sem identificao das lnguas que constituem essa diversidade. Cf.: Franois Grin (2005). O ensino das lnguas estrangeiras como poltica pblica. Paris: Relatrio Encomendado pelo Haut Conseil de Levalution de Lecole.
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ultrapassando todas as outras lnguas de Angola6, podendo j ser falada por mais de 90% dos
angolanos, embora uns se expressem melhor do que outros7. Eis por que parece difcil
encontrar, sobretudo no seio da camada jovem, algum que, se no fale, pelo menos
compreenda o portugus. Excepto alguns Estados insulares, nenhum outro pas de frica
apresenta similitudes com Angola em relao proeminncia ganha pela lngua europeia da
ex-potncia colonizadora junto das massas populares (Hodges, op. cit.), deitando por terra
todos os medos e expectativas que lhe auguraram futuro sombrio, ou melhor incerto para
sermos mais contidos - no ps-independncia8.
Estamos, nesta ptica, perante um passado que no o seu presente e os ablativos de um
futuro que certamente se apregoa muito para alm, nem do passado colonial que o gerou,
nem do presente ruidoso, nem do futuro, apesar de tudo, ainda por esclarecer. Em face do
quadro descrito e atendendo ao objectivo principal da investigao, que passa pelo processo
da nacionalizao da lngua portuguesa, levantamos, adiante, trs interrogaes de partida:
Conforme referimos, desde a adopo como lngua oficial do Estado na dcada de 70,
passando pelas dcadas de 80 e 90 do sculo XX, at ao dealbar do sculo XXI, a lngua
portuguesa tem vindo a conhecer um processo de expanso territorial, cuja dinmica aponta
para um carcter irreversvel. Em consequncia, acentua-se o contacto com indivduos
residentes em zonas rurais, tendo como efeito um aumento galopante do nmero de falantes
no maternos. Paralelamente, verifica-se um crescimento do nmero de falantes maternos,
uma ferramenta imprescindvel tanto para a naturalizao, como para a nacionalizao de
uma lngua. Ora, perante o fenmeno de expanso territorial da lngua portuguesa e em
conformidade com o quadro conceptual de lngua nacional, ser pertinente continuar a
considerar o portugus como lngua estrangeira? Sabendo-se que em Angola a temtica
lingustica envolve questes de identidade individual e/ou colectiva; que no pas coabitam
povos com lnguas e culturas diferentes, que, naturalmente as tentam preservar, estaro
criadas as condies para que a lngua portuguesa possa ser considerada a lngua nacional
de Angola ou, pelo contrrio, existem sentimentos de resistncia? Para que tal processo de
nacionalizao seja pacfico, no ser, ento, necessrio o desenvolvimento de uma poltica
lingustica que proteja a diversidade, nomeadamente a institucionalizao do bilinguismo e
do ensino bilingue?
6 Pepetela. In www.diarioliberdade.org. Acedida a 29.04.2010, s 2h00. 7 Pepetela. Idem, ibidem. 8 Em causa est a manifestao de inquietao por Jacinto Prado Coelho, ao questionar o futuro do portugus como lngua literria (subentendendo em frica) (Ferreira, 1988), ou o caso de Guiuseppe Tavani, crtico e sociolinguista italiano, que punha em causa a pertinncia cientfica e ideolgica de uma eventual deciso no sentido de se conferir lngua portuguesa um estatuto privilegiado, em Problemas da expresso lingustico-literria nos pases africanos de independncia recente (Tavani, 1976).
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4. Definio de conceitos-chave
4.1 Enquadramento sociolingustico
Como j afirmmos, a sociolingustica o domnio privilegiado da presente investigao. A
sua histria, assim como a relao que os precursores desta cincia lhe atriburam com a
lingustica sugere-nos, de imediato, a seguinte interrogao: so ou no, lingustica e
sociolingustica, dois nomes volta do mesmo conceito? Em jeito de resposta, se verdade
que inicialmente a fronteira entre ambas as cincias carecia de nitidez, fazendo com que as
discusses em torno de questes do campo de estudo da sociolingustica carecessem de
(de)limitao, no deixa de ser tambm verdade que cada uma foi construindo o seu objecto
prprio ao longo do tempo. Tanto numa quanto noutra, tal autonomizao ter ocorrido a
partir de finais do sculo XIX, mas com maior incidncia ao longo da 1 metade do sculo XX.
Antes desse perodo, a sociolingustica no se constitua verdadeiramente como disciplina
autnoma, pese embora os debates que vo marcar o seu futuro j fervilhassem no seio
acadmico de ento. Basta, para o efeito, recuarmos aos finais do sculo XIX e princpios do
sculo XX, altura em que Antoine Meillet, opondo-se a Saussure, coloca a tnica no carcter
social da lngua. A divergncia suscitou duas posies que acabaram por constituir os dois
mbitos de abordagem sociolingustica de ento: uma posio que no reduz a sociolingustica
ao estudo do aspecto social da lngua, mas que ela a prpria lingustica; outra que admite a
complementaridade entre uma lingustica centrada na questo da gramaticalidade e uma
sociolingustica preocupada com a dimenso social das lnguas (Maingueneau, 1997).
O facto de a primeira posio implicar a recusa dos pressupostos e mtodos da lingustica
dominante, que, qui, cometeria o erro de excluir a variao lingustica e, portanto, de
trabalhar com os dados artificiais, e tambm de situar no sistema lingustico processos
efectivamente dependentes de factores sociais, despoletou nos anos 60 e 70 do sculo XX, nos
Estados Unidos da Amrica, uma forte polmica baseada, fundamentalmente, na noo de
locutor-ouvinte ideal pertencente a uma comunidade lingustica homognea, apoiada na
lingustica generativa. Assim se abriu o caminho para o surgimento e afirmao da
sociolingustica como cincia autnoma, envolvendo o ambiente e a dinmica que a seguir se
descreve.
Por influncia do estruturalismo9 europeu, John Boas e Edward Sapir, dois professores
universitrios, fundaram as primeiras escolas de lingustica americana, as primeiras a receber
influncias exteriores devidas s novas cincias humanas: psicologia social do comportamento
9 Convm referir que este termo pode ser aplicado, para designar, apenas, uma escola lingustica (por exemplo, a de Saussure), ou ainda para designar a totalidade de escolas lingusticas. Entretanto, todas apresentam concepes e mtodos que implicam a definio de estrutura em lingustica (Dubois, 2007, op.cit., p. 248). A concepo generalizada da linguagem do ponto de vista estruturalista de conceber a lngua como sistema que deve preservar a identidade das suas unidades e cuja funo essencial comunicar informaes da maneira mais econmica possvel. (Maingueneau, op. cit., p.48).
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(behaviorismo) no caso das teorias de Boas e sociologia no caso da lingustica de Leonard
Bloomfield. Entretanto, a lingustica americana era muito marcada pelas investigaes
antropolgicas, devido necessidade de descrever um grande nmero de lnguas ndias, cuja
estrutura se afasta muito das lnguas europeias (Maingueneau, op. cit.). Deste modo, com a
obra Language, de Bloomfield, considerado como especialista das lnguas indo-europeias
(Ducrot & Todorov, op. cit.), e sobretudo com Methods in Structural Linguistics, de Zellig
Sebbetai Harris, o estruturalismo transforma-se numa nova teoria designada por
distribucionalismo, ao procurar definir as unidades pertinentes apenas com base nas suas
distribuies, isto , no conjunto dos seus contextos (Maingueneau, idem, ibidem).
de salientar que outros nomes como Weinreich, Fergunson e Fishman figuram na lista de
investigadores que deram mote ao surgimento da sociolingustica, ao tentarem descortinar
situaes resultantes do contacto de lnguas, entre as quais o fenmeno da diglossia.
Entretanto, embora se reconhea mrito a todos os nomes mencionados, contribuindo cada
um, com maior ou menor impacto, para a afirmao da sociolingustica, merecem realce, por
vrias razes, os nomes de Edward Sapir e William Labov. O primeiro, Sapir, impulsionador do
estruturalismo na perspectiva americana10, observou as diferenas de formas gramaticais e
lexicais entre homens e mulheres na tribo californiana dos yanas, se bem que a crtica da
altura tivesse atribudo ao seu trabalho um cunho de curiosidades antropolgicas (Favrod,
1980). Compreende-se, nesta perspectiva, a notoriedade de Sapir no mbito dos estudos
antropolgicos e lingusticos. O segundo, Labov, para muitos investigadores a estrela maior no
domnio da afirmao da sociolingustica enquanto cincia autnoma, e, por isso, considerado
como pai da sociolingustica, fez investigaes que tiveram um impacto revolucionrio,
acabando por dissipar, ou mesmo resolver, problemas que at ento a lingustica
(saussuriana) no resolvera, enquadradas na questo da variao lingustica.
As investigaes de Labov, baseadas no ingls falado em Nova Iorque, causaram grande
impacto e admirao, ao revelarem que certas variaes fonticas apresentavam uma estreita
correlao com a origem social. Nesta ptica, este investigador americano defendia que as
variaes dos fonemas estariam ligadas situao de comunicao, acrescentando que um
indivduo no pronuncia os sons da mesma maneira nas conversas banais, quando fala em
pblico ou quando l em voz alta. Mesmo assim, estes desvios variam, afiana Labov,
conforme o estatuto socioeconmico do locutor (Favrod, op. cit.). Na mesma teia de
contributos sociolingustica e na linha da perspectiva variacional da linguagem, associamos
o nome de Karl Buher, ao atribuir uma dupla funo ao cdigo lingustico. Para este psiclogo
de origem alem, que viveu at morte em Los Angeles (EUA), para alm da funo
10 importante, todavia, distinguir o Estruturalismo francs do americano: enquanto o primeiro agrupava estudos diversificados como a Semiologia, a Semntica, a Psicanlise e a Etnoantropologia, o segundo, americano, referia-se a uma simples escola de estudos puramente lingusticos, sob o impulso de Edward Sapir. Deste modo, pode-se afirmar, apesar da diferena de trabalhos, que Roland Barthes, Claude Levi-Strauss, Jacques Lacan so mais ou menos estruturalistas.
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representativa de transmisso dos sentidos, a linguagem comportaria um aspecto expressivo,
dado que certas variveis indicam as caractersticas pessoais do locutor: regio de origem,
profisso, nvel de educao, etc. A linguagem, na ptica de Buher, constituiria, assim, um
signo de reconhecimento social tanto como um instrumento de comunicao (idem). Estava,
deste modo, aberto o caminho para a legitimao das variaes lingusticas, matria que se
tornou cannica e indissocivel de qualquer abordagem de situaes de contacto de lnguas
como o nosso estudo, e que adiante apresentamos.
Retomando a questo da evoluo dos estudos sociolingusticos, fundamentalmente no que
concerne ao surgimento, inferimos que a sociolingustica surge como consequncia da procura
dos limites, das complementaridades e das hierarquias possveis entre as cincias sociais;
ergue-se numa poca de constantes buscas capazes de dar respostas a questes que at
altura a lingustica se mostrou incapaz de fornecer; aparece, enfim, numa fase em que as
atenes dos linguistas ultrapassavam os limites primitivos estabelecidos lingustica,
partindo para a anlise das relaes entre sistemas, usos lingusticos e factos sociais, e
passando a admitir, embora desconfiadamente, as sobrevivncias de uma determinada
filosofia e sociologia da linguagem, sendo que esta ltima tinha como pretenso servir-se dos
factos da lngua e do discurso como meios para alcanar um melhor conhecimento dos factos
sociais, utilizando e discutindo para a sua formao as descries e as concluses da
lingustica (Gramadi, 1983).
Assim sendo, sociologia da linguagem e sociolingustica passam a significar, para alguns
investigadores, a mesma cincia: o formalista russo Roman Jakobson, guisa de exemplo,
considera que a sociologia da linguagem aqui usada como sinnimo de sociolingustica -
parte integrante da lingustica; Joshua Fishman e os seus colaboradores corroboram esta ideia
sinonmica entre sociologia da linguagem e sociolingustica, pese embora Fishman ter tentado
estabelecer, por vezes, certas diferenas, ao considerar a sociologia da linguagem uma
sociolingustica integrada nas perspectivas da sociologia. Quanto a ns, consideramos que
essa discusso no nossa, uma vez que no querermos tomar posio na matria em
discusso. Entretanto, esclarecemos que a nossa preferncia terminolgica privilegia a
sociolingustica, opo justificada mais por razes de ordem discursiva do que conteudstica.
Uma das cincias que lado a lado com a sociolingustica nasce da sequncia de dinmicas em
torno da paradigmatizao das cincias sociais, no perodo ps-segunda grande guerra, a
partir dos trabalhos de Osgood, Miller, Carrol, Sebeok e Chomsky, a psicolingustica, cincia
com a qual a sociolingustica tem afinidades inegveis, do mesmo modo que as duas as tm
com a lingustica. No foi em vo que se considerou a psicolingustica, nos anos 60 do sculo
XX, ter sido estimulada consideravelmente pela lingustica generativa, de Chomsky. Um dos
grandes contributos desta corrente de pensamento lingustico chomskiano a abertura do
debate em torno do carcter inato das estruturas gramaticais, ao atribuir lingustica a
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finalidade de construir um modelo de competncia dos locutores. Por influncia da
transversalidade da teoria chomskiana, uma vez que estuda processos psicolgicos ligados
produo da linguagem verbal, a psicolingustica , hoje, na sua relao com a
sociolingustica, uma rea de estudo multidisciplinar que abarca questes que vo desde os
processos de produo e interpretao dos enunciados, passando pelos processos de
memorizao, patologia da linguagem at ao processo de aquisio da linguagem11.
No primeiro processo, a produo e interpretao dos enunciados constitui um debate
tripartido em torno da relao linguagem, pensamento e cultura, visto que se trata de um
processo que questiona como o locutor passa de uma inteno de significao para a emisso
de uma srie de sons ou de signos escritos; como um locutor controla a sua produo
enquanto a leva a cabo ou, por outro lado, como se opera, mentalmente, a segmentao da
cadeia verbal em unidades (palavras a texto); como se identifica uma palavra, tendo em
conta as variaes de pronncia considerveis, conforme os momentos ou locutores, e qual o
papel dos conhecimentos propriamente lingusticos e o dos conhecimentos enciclopdicos no
processo de interpretao.
O mesmo no se pode dizer acerca da memorizao, segundo processo, pois este funciona
como uma continuidade do processo anterior, quer dizer: uma vez produzido o enunciado e
desvendado o obscuro, h que armazenar a informao, impedindo o esquecimento. Nesta
ptica, a preocupao da memorizao desvendar como as palavras, as frases e os textos
esto presentes na memria, questionando se so representaes lingusticas ou, por outro
lado, informaes transformadas em representaes de um tipo diferente.
Quanto ao processo de patologia da linguagem, o terceiro da nossa sequncia, a sua
etimologia grega (pathos: sofrimento, doena + logos: tratado, cincia) sugere, como
objecto, doenas, isto , enfermidades relacionadas com a linguagem e/ou diversas
perturbaes da linguagem: dislexia (perturbao da capacidade de ler ou dificuldade na
reproduo ou compreenso da linguagem); afasia de expresso (dificuldade ou incapacidade
de expresso); afasia sensorial (dificuldade ou incapacidade de compreenso); alexia
(incapacidade patolgica ou congnita de ler ou cegueira verbal); agrafia (dificuldade ou
incapacidade de escrita); outras perturbaes devidas a uma patologia mental (autismo,
esquizofrenia, etc). Segundo Maingueneau (op. cit.), a partir do sculo XIX, graas aos
trabalhos de Paul Broca (1824-1880), o estudo das afasias ficou ligado ao da localizao, no
crebro, das diferentes capacidades lingusticas.
Vejamos, por ltimo, o processo da aquisio da linguagem que, pela importncia de que se
reveste, lhe dedicamos maior ateno. A aquisio da linguagem um dos problemas centrais
da prpria lingustica actual, j que apresentam, em simultneo, carcter universal e
11 Para mais detalhes, pode cf. Dominique Maingueneau, op. cit., pp. 64-66.
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caractersticas idiossincrticas. No primeiro caso, as capacidades lingusticas desenvolvem-se
paulatinamente, semelhana de outras faculdades como a locomoo e a percepo. Este
paradigma leva a inferir que o recm-nascido capaz de adquirir qualquer lngua, visto
estarem prontos a funcionar, desde o nascimento, os seus sistemas nervoso e muscular que
permitiro o aparecimento ulterior da linguagem (Favrod, op. cit.). No segundo caso, apesar
de o mecanismo de aquisio estar pronto, a especificidade do meio lingustico onde a
criana cresce pode condicionar a prtica ou a aquisio de outra lngua diferente do falar
materno (idem).
Existem trs perspectivas principais que divergem quanto abordagem em torno da aquisio
da linguagem: o associacionismo, o behaviorismo e o inatismo. A aquisio da linguagem, na
perspectiva da escola associacionista, baseia-se na imitao dos adultos, tendo esta corrente
vigorado durante muito tempo. No entendimento da escola associacionista em psicologia, a
ligao estabelecida entre as significaes e as palavras pela criana semelhante quela
que criada pelos reflexos condicionados de Pavlov. Os linguistas e psiclogos behavioristas
remetem para reforo. Por exemplo, enquanto Thorndike refere que a criana opera uma
seleco entre todos os sons que pronuncia na origem, guiando-se pelas reaces dos que a
rodeiam, Bloomfield e Skinner, linguista e psiclogo behavioristas, respectivamente, associam
a linguagem a um simples sistema de hbitos adquiridos (idem).
No que concerne ao inatismo, Chomsky dispara crticas em vrias direces. Censura a
lingustica saussuriana porque, em sua ptica, ao ter mais em vista um sistema de elementos
do que regras, Saussure reduz a linguagem a uma espcie de inventrio, sem poder gerador.
Para Chomsky, existe um mecanismo de aquisio da linguagem que, no essencial, seria
transmitido hereditariamente. O facto de as crianas normais assimilarem, em muito pouco
tempo, gramticas muito complexas leva a pensar que os seres humanos so geneticamente
predispostos para a linguagem (Favrod, op. cit). Por outras palavras, a criana possui,
partida, um conjunto de faculdades lingusticas complexas, particularmente a de
compreender ou de formar enunciados nunca antes ouvidos. A imitao, tese defendida pelos
behavioristas, no d conta desta fora criadora, remata Chomsky (idem).
Em termos particulares, ao behaviorista Skinner, Chomsky censura aquilo que considera ser
anlise de comportamento apenas exterior, ignorando a estrutura interna do organismo e o
modo como ele recebe e elabora as mensagens. Esta concepo vigorou at dcada de
sessenta do sculo XX, altura em que os generativistas americanos abandonam a prudncia de
Chomsky, fazendo da hiptese uma certeza, ao declararem inato, por intermdio de Katz,
tudo aquilo que se relaciona com a aprendizagem, utilizao e inteligncia da linguagem.
Katz sustenta que no h mais nada que possa explicar que certas propriedades se encontram
em todas as lnguas naturais. Lenneberg, na teia de Katz, reala que o desenvolvimento
lingustico de um indivduo estritamente determinado pelo processo de maturao,
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concluindo que as estruturas gramaticais, latentes no organismo, so apenas actualizadas
(idem).
Convm referirmos que antes da afirmao da sociolingustica como cincia autnoma, a
situao da face social da lngua j tinha, de certo modo, despertado a ateno de alguns
linguistas, incluindo Saussure. Entretanto, tratou-se de um interesse pouco incisivo, que
consistia em situar processos dependentes de factores sociais no sistema lingustico, visto
que, de uma maneira geral, os linguistas excluam, quase sempre, do seu campo de estudo, as
variaes do uso. Ferdinand de Saussure, por exemplo, manifesta no Cours uma preocupao
ligada prpria lingustica, ou seja, definir o seu objecto e encontrar os seus prprios
mtodos. Por outras palavras, preocupa-se, primeiramente, com a autonomizao da
lingustica (j que era uma cincia nova) face as congneres tais como fisiologia, psicologia,
lgica, filosofia, sociologia e histria, que lhe podiam ensombrar a posio, e das quais
dependia total ou parcialmente. Nesta perspectiva, lanar bases suficientes para o estudo das
relaes entre as lnguas e os utentes no constitua prioridade para Saussure (Gramadi, op.
cit.). Ainda assim, o contributo de Saussure de extrema importncia, visto que com o
genebrino se evidencia a oposio lingustica histrica dominante em todo o sculo XIX que,
ao tratar a lngua como objecto fsico submetido a leis de evoluo fontica, parece
negligenciar a dimenso psicolgica e social da linguagem, definindo-se com rigor o quadro
epistemolgico da lingustica.
A ideia que atenua a incidncia de questes relacionadas com a variao, no campo da
lingustica daquele perodo, realada por Ducrot e Todorov, ao aludirem que nunca se tinha
negado a relao entre a linguagem, por um lado, e a sociedade ou comportamento, por
outro, se bem que at altura nenhum acordo estava feito entre os investigadores quanto
natureza dessa relao. Por isso, concluem: estamos mais empenhados, mais do que numa
disciplina nica, num conjunto de respostas e de investigaes cuja incoerncia se reflecte
at na multiplicidade de denominaes: sociologia da linguagem, sociolingustica,
etnolingustica, antropologia lingustica, lingustica antropolgica, etc. (Ducrot & Todorov,
1978: 85). Deste modo, a sociolingustica busca inspirao no mtodo sociolgico para
registar, descrever e analisar, sistematicamente, factos sociais da lngua e os desta na
sociedade. Esse comportamento torna a variao lingustica, entendida como um princpio
geral e universal passvel de ser descrita e analisada cientificamente, seu objecto de estudo
(Mollica & Barros, 2004).
Como cincia autnoma, a sociolingustica tem-se tornado um campo profcuo de estudos
cientficos, semelhana do que vem acontecendo com as novas reas cientficas que
floresceram nas dcadas do seu surgimento. Sendo uma corrente cientfica que se prope a
descrever diferentes variedades coexistentes no seio de uma comunidade lingustica,
relacionando-as com as estruturas sociais (Favrod, op. cit.), ou podendo ainda ser
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considerada uma das sub-reas da lingustica que estuda a lngua em uso no seio das
comunidades de fala, voltando a ateno para um tipo de investigao que correlaciona
aspectos lingusticos e sociais (Mollica & Barros, op. cit.), a sociolingustica ganha fortes
ligaes lingustica, antropologia (...) sociologia, etnologia e poltica. Compreende-se, pois,
por que considerada uma rea cientfica abrangente, multidisciplinar e multifacetada.
Entende-se, de igual modo, por que as vrias reas e sub-reas relacionadas com a
diversidade lingustica e os problemas de contacto interlingustico, bem como as suas
implicaes e regulamentao do uso das lnguas constituem matrias que maior interesse
ganham nesta nossa investigao. Feita esta pequena incurso na sociolingustica, por ser o
principal domnio cientfico da investigao, funcionando como ponto de partida para
atingirmos alguns conceitos pertinentes, com fortes ligaes ao fenmeno de contacto de
lnguas, passamos, de imediato, a destac-los.
4.2 Acerca do contacto de lnguas
Uma das principais dimenses humanas a dimenso social. Esta implica que o ser humano
no viva isoladamente, pois est em constante interaco quer com outros seres humanos,
quer com seres no homlogos. Os contactos abrem caminhos para uma imensidade de
atitudes tanto positivas, por exemplo a solidariedade, quanto negativas, como o caso da
explorao ou a dominao. Do ponto de vista (scio)lingustico, o contacto de lnguas pode
igualmente ser encarado como fenmeno positivo ou negativos, favorecendo, porm, a
diversidade lingustica. Esta expresso - diversidade lingustica - usada no contexto da
coexistncia de indivduos que no falam a mesma lngua quer se trate de uma situao
passageira, quer de uma situao enraizada, como o caso de Angola. Actualmente, cada
vez mais recorrente o apelo valorizao da diversidade lingustica, ao permitir o
reconhecimento da identidade lingustica de cada sujeito, a par do seu desenvolvimento
cognitivo e emocional. Em sentido contrrio devem apontar as baterias contra a glotofagia,
tendo em conta a relao semntica que mantm com o fenmeno da morte de lnguas.
Um dos fenmenos sociolingusticos derivados da diversidade lingustica o multilinguismo,
fenmeno que ocorre em sociedades tipicamente pluralistas, em situaes nas quais os
locutores utilizam, concomitantemente, vrias lnguas. De acordo com a perspectiva do
Instituto de Lingustica Terica e Computacional (ILTEC, 2003-2005), a expresso utilizada
quando se referem situaes em que coexistem falantes de vrias lnguas, em geral de
provenincias culturais diferenciadas, havendo necessidade de institucionalizar, como oficial,
uma ou mais lnguas. O termo aplica-se perfeitamente realidade angolana, uma vez que
este pas, muito antes da sua proclamao como Estado soberano em 1975, j era um
territrio marcado por vrias lnguas de origem africana, a que se veio juntar a lngua
portuguesa, lngua oficial. Nesta ptica, era e continua a ser um territrio multilingue.
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Do ponto de vista do contedo da expresso, o multilinguismo no se restringe apenas a
inventariar lnguas, mas, sobretudo, a questionar como diversas lnguas de uma sociedade
podem estar armazenadas nas memrias; se estaro dissociadas ou interpenetradas; o modo
como o sujeito as mobiliza, ao passar de uma para outra. Cremos, pois, que o multilinguismo
faz parte de uma reflexo lingustica que postula a existncia de uma linguagem para l da
variedade das lnguas particulares, apelando, por sua vez, vrios conceitos com ligao
estreita ao fenmeno de contacto lingustico, entre os quais o bilinguismo, a diglossia e
outros afins.
Pela importncia de que o bilinguismo se reveste, vejamos tal conceito mais
pormenorizadamente. De facto, as ltimas dcadas do sculo XX, a par da conjuntura actual,
marcadas pelo fenmeno da globalizao e por um frequente contacto entre povos, lnguas e
culturas diferentes, apresentam-se como um quadro propcio para o surgimento de
populaes que falam mais do que uma lngua, favorecendo os contextos multilingues. A
abordagem destas situaes foi ignorada durante muito tempo, at altura em que se
comea a verificar um crescente interesse pelas questes relacionadas com o conhecimento
das minorias tnicas, fundamentalmente pelas cincias sociais contemporneas. A partir da,
aumenta, simultaneamente, o interesse pelo comportamento lingustico desses grupos sociais.
Em consequncia, o fenmeno bilingual no s veio ribalta, como tambm se tornou uma
das temticas dominantes e mais relevantes no domnio sociolingustico da actualidade. Os
estudos que se tm realizado nas ltimas dcadas, de que se reconhecem avanos
significativos, deixam transparecer que no mundo, cerca de metade da populao bilingue
(Grosjean, 1982), podendo este fenmeno estender-se a quase todos os pases do mundo.
Em termos conceptuais, o bilinguismo foi considerado, durante muito tempo, como a simples
aptido de um indivduo para falar uma segunda lngua, to facilmente como o seu idioma
materno (Favrod, op. cit.), sendo bilingue o indivduo que manifestasse competncia
comparvel numa outra lngua, para alm da sua primeira lngua, e que tambm revelasse
capacidade de utilizar uma e outra, em todas as circunstncias, com semelhante eficcia
(Sigun & Mackey, 1986). Esta aptido foi associada a comunidades de elite, levando o
bilinguismo a ser percepcionado, num longo espao de tempo, como um facto exclusivo de
uma elite cultivada. Entretanto, circunstncias familiares ou sociais que favorecem contactos
interlingusticos, por exemplo a questo da emigrao de trabalhadores das pequenas
localidades para as grandes metrpoles, acompanhados de suas famlias, conferem a este
fenmeno, inicialmente visto como elitista, uma ampla abordagem e uma diversidade de
pontos de vistas. Da que, nos tempos actuais, o bilinguismo seja considerado um conceito
sociolingustico aplicado para referir a competncia lingustica de alguns falantes que
possuem capacidade de comunicar e de se expressar em duas lnguas diferentes (ILTEC, op.
cit.).
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Para uma melhor anlise do fenmeno, visto que se trata de um conceito dinmico, a crtica
tem proposto algumas classificaes, do mesmo modo que lhe tem atribudo dimenses. Nesta
perspectiva, segundo o modo de aprendizagem da lngua segunda (doravante L2), Ducrot,
psiclogo americano, distingue bilinguismo composto (compound) do bilinguismo coordenado:
enquanto o primeiro tipo ocorre quando as estruturas da L2 so apenas acrescentadas s da
lngua materna (L1), o que acontece no caso da aquisio de uma lngua em contexto escolar,
em que a lngua aprendida serve de referncia ao cdigo no materno; o segundo o tipo de
bilinguismo em que o locutor consegue distinguir, de forma radical, os dois cdigos (L1 e L2),
e pratica cada cdigo segundo a lgica que lhe prpria (Ducrot apud Favrod, op. cit.). H
tambm a considerar o bilinguismo natural, em oposio ao bilinguismo artificial. O primeiro,
normalmente empregue como sinnimo de plurilinguismo natural, refere a aprendizagem de
lnguas durante a infncia, podendo, segundo a opinio de alguns investigadores, conduzir a
uma melhor prtica de linguagem. Em contrapartida, o bilinguismo artificial do tipo escolar.
raro, efectivamente, que uma criana bilingue mantenha em p de igualdade duas lnguas.
Nesta ptica, embora Sigun e Mackey (op.cit.) concebam o bilinguismo a partir da
semelhana da eficcia do uso de uma e outra lngua, ideia em voga durante muito tempo, h
tambm a considerar que mesmo nos casos em que o indivduo entre em contacto com duas
lnguas, desde a infncia, e as empregue facilmente na fase adulta, uma ser sempre mais
privilegiada do que a outra, mesmo que, em termos de uso, o indivduo no transparea esse
privilgio. Deste modo, aquela que no seio de duas lnguas, que tentam manter equilbrio,
sobressai, considerada a lngua materna do indivduo. Outro dado de realce prende-se com
o carcter depreciativo que alguns investigadores, inclusive nomes ilustres das cincias
sociais, associaram ao fenmeno do bilinguismo: i) para Durkheim, o bilinguismo seria
responsvel pela estagnao cultural das regies onde existe, quando se debrua a propsito
da sua terra natal, a Alscia (Favrod, 1980: 46); ii) muitos outros psiclogos responsabilizam o
bilinguismo precoce, no plano individual, pelo surgimento de situaes de perturbao
patolgicas como a dislexia, ou, noutros casos, a diminuio do quociente intelectual das
crianas (Favrod, idem, ibidem). Em contrapartida, estudos posteriores feitos em indivduos
bilingues acabaram por destruir tais concepes anteriores, ao considerarem o bilinguismo
uma forma de resoluo de problemas sociais. Portanto, no oferece, de modo geral, reversos
negativos (Tavani, 1976) nem prejudica o desenvolvimento intelectual ou psicolgico do
bilingue, podendo, pelo contrrio, contribuir para o desenvolvimento intelectual ou
psicolgico dos sujeitos (ILTEC, op. cit.).
Contudo, a avaliao de situaes de bilinguismo requer muita ateno, em primeiro lugar
devido ao perigo de enviesamento dos resultados, tendo em conta o tipo de testes utilizados;
em segundo lugar porque o enviesamento pode levar a confundir a linguagem do bilingue com
as suas capacidades mentais. Investigadores do fenmeno de bilinguismo defendem que um
bilingue precoce pode esquecer totalmente a sua prpria primeira lngua. Uma das situaes
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em que o esquecimento pode ocorrer a emigrao definitiva. Neste caso, o bilinguismo
reduz-se a um perodo de transio muito breve nas crianas. Contudo, as suas reaces
podem estar dependentes de numerosos factores extra-lingusticos, por exemplo: lnguas
utilizadas pelos pais, pelo meio, carcter mono ou multilingue da sociedade circundante,
vontade de integrao no pas que acolhe, etc. Para alm das classificaes anteriores, tm
sido propostos outras tipologias de bilinguismo. Lambert, guisa de exemplo, fala de
bilinguismo aditivo, para se referir situao em que a aprendizagem de uma lngua segunda
no impede nem substitui o desenvolvimento e a aprendizagem da lngua materna. Em suma,
por ser percepcionado em diversas dimenses, muito do que nos apresentam acerca do
fenmeno de bilinguismo so recortes particulares dessas dimenses. Para uma compreenso
dessa diversidade de dimenses do bilinguismo, apresentamos o quadro-sntese proposto por
Harmes e Blanc (Harmes & Blanc, 2000).
Tabela 3: Dimenses de bilinguismo segundo Harmes
Dimenso
Denominao Definio
Competncia relativa
Bilinguismo balanceado L1=L2
Bilinguismo dominante L1>L2 ou L1
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elevados, e onde a hierarquia social era mais acentuada. Esta posio foi rejeitada por John
Bumperz, para quem um fenmeno comparvel diglossia ocorre quando se associa um
registo de lngua a uma determinada situao (Bumperz citado por Favrod, op. cit.). Uma vez
que este conceito se confunde largamente com o bilinguismo, convm esclarecermos que
enquanto o bilinguismo implica necessariamente a coexistncia de lnguas, este factor
prescindvel pela diglossia, visto que aqui os dois nveis ou as duas variedades (high e low)
pertencem mesma lngua. Nesta ptica, a diglossia no um fenmeno exclusivo de
situao de multilinguismo.
Considerando a realidade angolana, h lugar para referirmos os conceitos de lngua nacional,
lngua materna, lngua segunda, lngua no materna e lngua estrangeira. Baseando-nos na
definio proposta no projecto sobre a Diversidade Lingustica na Escola Portuguesa,
desenvolvido pelo Instituto de Lingustica Terica e Computacional, no binio 2003-2005,
nota-se uma relao estreita entre lngua nacional e lngua materna. No entendimento dos
autores do projecto, a lngua nacional a lngua materna de um grupo de indivduos que
pertencem a um pas, cuja lngua oficial pode ser diferente. Ainda em torno de lngua
nacional, o Dicionrio Temtico da Lusofonia, sob a direco e coordenao de Fernando
Cristvo, define-a como uma lngua falada em determinado territrio que, por plasmar
marcas de uma herana especfica ou cdigo de afirmao de originalidade tico-cultural,
pode configurar um elemento caracterizador de uma conscincia nacional e, nos casos mais
evoludos, ser suporte de uma expresso literria autnoma Cristvo (Dir. e Coord),
Amorim, Marques & Moita, 2007: 606). Situao idntica se vive em muitos pases africanos,
ex-colnias de potncias europeias.
Aplicando tal conceito realidade angolana, o portugus a lngua oficial, ou seja, aquela
que os dirigentes polticos determinaram, apesar da sua origem estrangeira, para ser usada
nas relaes administrativas, na escolarizao e nas relaes internacionais,