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* Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade 1 André Luís Campos Vargas 2 Introdução Este trabalho mobiliza alguns elementos constitutivos de nosso projeto de dissertação, no qual temos como objetivo principal analisar o que chamamos discurso de/sobre o par solidariedade/economia solidária. Esse discurso manifesta- se pelo Projeto Esperança/Cooesperança (PEC), sediado em Santa Maria (RS), e está vinculado (inicialmente) à realização de um evento anual denominado Feira do Cooperativismo (FEICOOP). Os elementos constitutivos dessa discursividade que mobilizamos são, além dos discursos de/sobre, o interdiscurso, a paráfrase e a polissemia. 1 Este texto vincula-se ao Projeto de Dissertação intitulado Gramatização de saberes em rede: Solidariedade aprendente e ensinante, desenvolvido sob orientação da Prof.ª Dr. Verli Petri (UFSM/PPGL). 2 Professor do SENAC, Santa Maria (RS); Mestrando em Letras/Estudos Linguísticos – PPGL - UFSM - Laboratório Corpus.

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*

Repetições, retomadas e deslocamentos no discurso de/sobre solidariedade1

André Luís Campos Vargas2

Introdução

Este trabalho mobiliza alguns elementos constitutivos de nosso projeto de

dissertação, no qual temos como objetivo principal analisar o que chamamos

discurso de/sobre o par solidariedade/economia solidária. Esse discurso manifesta-

se pelo Projeto Esperança/Cooesperança (PEC), sediado em Santa Maria (RS), e

está vinculado (inicialmente) à realização de um evento anual denominado Feira do

Cooperativismo (FEICOOP). Os elementos constitutivos dessa discursividade que

mobilizamos são, além dos discursos de/sobre, o interdiscurso, a paráfrase e a

polissemia.

1 Este texto vincula-se ao Projeto de Dissertação intitulado Gramatização de saberes em rede: Solidariedade aprendente e ensinante, desenvolvido sob orientação da Prof.ª Dr. Verli Petri (UFSM/PPGL). 2 Professor do SENAC, Santa Maria (RS); Mestrando em Letras/Estudos Linguísticos – PPGL -UFSM - Laboratório Corpus.

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Para tanto, buscamos aporte teórico-analítico na Análise de Discurso (AD),

especialmente em trabalhos de Michel Pêcheux e Eni Orlandi. Para este artigo,

propomo-nos a analisar, ainda de modo preliminar, cartazes da Feira do

Cooperativismo (1ª a 7ª edições), quanto às imagens e enunciados que se repetem

e se modificam, que permanecem e/ou ganham novo estatuto.

Nosso estudo visa a, sobretudo, compreender alguns processos discursivos

encadeados, aparentemente, como resistência à globalização, uma vez que a

FEICOOP objetiva, entre outras coisas, que seus participantes (feirantes)

empreendam práticas que se sobreponham à exclusão social e produtiva.

Breve história da FEICOOP

O Projeto Esperança3, vinculado ao Banco da Esperança da Diocese de

Santa Maria (RS), é um experiência “de geração de renda baseada nos princípios da

economia solidária, onde a ordem dominante é invertida e o trabalho é posto à frente

do capital” (Cigana, 2007, p. 55). O Projeto Esperança, coordenado desde sua

criação pela Irmã Lourdes Dill, foi idealizado nos anos de 1980, pelo então Bispo

Diocesano de Santa Maria (RS), Dom José Ivo Lorscheiter, que instigava a Cáritas

(RS) a criar e desenvolver os Projetos Alternativos Comunitários (PACs), como

formas de construir o desenvolvimento solidário e sustentável perante urgências

sociais como o desemprego, o êxodo rural, a fome, a miséria e a exclusão.

Em 1989, surge a Cooesperança - Cooperativa Mista dos Pequenos

Produtores Rurais e Urbanos, que congrega e mobiliza grupos organizados com

vistas à comercialização direta da produção oriunda dos empreendimentos solidários

do campo e da cidade.

Em janeiro de 2003, foi criada a Teia Esperança, a rede dos

empreendimentos solidários associados ao Projeto Esperança/Cooesperança, que

conta com 40 espaços fixos de comercialização, e tem por objetivo articular os

Empreendimentos Solidários, associados ao Projeto Esperança/Cooesperança.

3 Para elaborarmos este breve histórico acerca do Projeto Esperança (Cooesperança), valemo-nos dos dados divulgados no site do projeto http://www.esperancacooesperanca.org.br, e em matérias publicadas em: http://consolbrasil.com.br/index/index.php?option=com_content&task=view&id=13&Itemid=30 e em: http://desafios2.ipea.gov.br/sites/000/17/edicoes/37/pdfs/rd37not08.pdf acesso em 03/10/2009.

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A partir de então, estabeleceu-se uma melhor distribuição desde o local de produção

até os Pontos de Comercialização Direta em Santa Maria e região.

Os eixos que mobilizam o modo de atuação do Projeto

Esperança/Cooesperança e a Teia Esperança são especialmente: a autogestão, a

agroindústria e a agricultura familiar, a agroecologia, o trabalho dos catadores/as, o

artesanato, a economia popular solidária, a comercialização direta, o consumo justo,

ético e solidário. Tais eixos são, sobretudo, pautados no princípio do

desenvolvimento sustentável e são permeados por um sentido que resiste à lógica

do poder e do mercado.

Atualmente, o Projeto Esperança organiza em torno de 230 empreendimentos

solidários urbanos e rurais, beneficiando aproximadamente 4,5 mil famílias de 30

municípios.

Mas é em 1994 que acontece a 1ª FEICOOP sob o fio condutor da

solidariedade, e tendo como eixos a organização, a cooperação e a construção

participativa, como meio de ser conquistada uma melhor qualidade de vida, em

contraponto à comercialização capitalista baseada nas relações de produção com

finalidade precípua do lucro. A 1ª FEICOOP, via divulgação em cartazes que reúnem

imagens e enunciados, é o nosso ponto de partida, pois nos fornece a materialidade

que analisamos.

De fato, é sobre esse cenário que lançamos nosso olhar com o intuito de tê-lo

como determinante do sentido, pois pensamos que sob tais condições (sociais,

econômicas, ideológicas) são produzidos determinados efeitos de sentidos e não

outros.

Coisas a saber, o novo do velho

No presente artigo, explicitaremos algumas das noções da Análise de

Discurso (AD) que se relacionam aos nossos objetivos e que serão mobilizadas nas

análises. Para tanto, começaremos pelo conceito de interdiscurso que é concebido

por Pêcheux como sendo um “todo complexo” que abriga uma multiplicidade de

saberes (discursivos) correlacionados a um lugar de sentido, do qual “algo fala”

sempre “antes, em outro lugar e independentemente” (Pêcheux, 1997, p. 162).

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Já em Orlandi (1999, p. 31), temos que o interdiscurso “torna possível todo

dizer e (...) retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do

dizível, sustentando cada tomada da palavra”. Ou seja, o interdiscurso é concebido

também como uma forma de memória (social ou coletiva) a qual vincula cada sujeito

à sua ‘realidade’ por um sistema de evidências e de significações que atualiza

(presentifica) o dizer.

É na memória que se inscrevem os sujeitos e os sentidos, mostrando-nos as

coisas a saber, não como uma elaboração de aprendizagem, mas com um

deslizamento de sentidos metafóricos que são produzidos nos discursos. Dessa

forma, podemos dizer que não há sentidos literais, prontos, mas há, sim,

possibilidades de interpretação, já que os sentidos são da ordem do simbólico e

constituem-se em processos discursivos, na relação entre interlocutores.

Ainda para refletirmos sobre o interdiscurso, podemos compreendê-lo em seu

funcionamento através da relação entre paráfrase e polissemia: entre o “mesmo” e o

“diferente”. A paráfrase reitera o “mesmo”, a memória, o dizível, enquanto que a

polissemia admite, permite, abre-se para o “outro”, e temos o deslocamento dos

sentidos, ruptura de processos de significação (Cf. Orlandi, 1999). Nessa relação, a

memória acaba estruturando-se entre a paráfrase e a polissemia, podendo vir a

produzir efeitos outros, que não os esperados, efeitos metafóricos, promovendo a

ressignificação, a transferência de sentidos. Isso nos remete para o que é externo às

condições de produção, constituído pela ideologia e pela historicidade, mas que é

também constitutivo do processo.

Importa trazer, para esse trabalho, a noção de ideologia, pois consideramos

(cf. Pêcheux, 1997) que não há realidade sem ideologia, qual seja a impressão de

que a produção do sentido só pode ser “este” e que o sujeito é a origem dos

sentidos que produz. Dessa forma, pode-se concordar que são as imagens que

permitem que as palavras “colem” às coisas (cf. Orlandi, 1999). O que nos leva a

pensar no gesto de interpretação como lugar em que tanto se inscrevem a repetição,

como efeito do já-dito, da historicidade, no domínio da memória institucional

(arquivo); quanto a repetição que possibilita os diferentes sentidos, no domínio dos

efeitos da memória (interdiscurso).

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Imagens em movimento (de sentidos)

Tendo em conta essas noções rapidamente explicitadas, arrolamos a seguir

os objetos de nossa atenção, os cartazes de sete edições da FEICOOP, partindo da

primeira, conforme segue:

Im14- Cartaz da 1ª Feicoop - 1994 Im2 - Cartaz da 2ª Feicoop - 1995

4 Im = Imagem.

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Im3 - Cartaz da 3ª Feicoop - 1996 Im4 – Cartaz da 4ª Feicoop - 1997

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Im5 – Cartaz da 5ª Feicoop – 1998 Im6 – Cartaz da 6ª Feicoop - 1999

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Im7 - Cartaz da 7ª Feicoop – 2000

Fonte de Im1 a Im7: Revista do histórico dos 15 Anos da Feira de Santa Maria: Uma experiência aprendente e ensinante, 2008.

O discurso sobre e o discurso de

Consideraremos, nesta análise inicial, a assertiva de que o discurso sobre é

formulado desde uma memória constitutiva, oferecendo uma gama de formulações,

doutrinamentos, veiculados, muitas vezes, por uma voz de autoridade e de verdade

que parece harmonizar as diferentes vozes dos discursos de. O discurso sobre é,

ainda, uma das formas decisivas da institucionalização dos sentidos, uma vez que

engendra uma espécie de mecanismo controlador dos sentidos, um funcionamento

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incessante para manter um sentido literal, um efeito de direcionamento a um centro,

a um alvo visível e indiscutível.

A fim de compreendermos como se formula esse discurso sobre

solidariedade, recortamos enunciados (E) em que o nome solidariedade figura, bem

como outros que o circundam e o significam. O primeiro deles, que constitui o corpus

de análise, é o enunciado que aparece envolvendo a parte superior do emblema do

Projeto Esperança Cooesperança (Im4 a Im6), qual seja:

E1 - A transformação pela solidariedade.

Por E1, podemos dizer que ‘solidariedade’ é uma designação bastante

difundida, em circulação na atualidade, inscreve-se em uma rede de sentidos que

nos conduz a pensar em união, humanismo, fraternidade, mão estendida, apoio,

reciprocidade, cooperação, assistência moral e/ou financeira, enfim, há todo um

elenco de sentidos que enfeixam processos parafrásticos, nos quais há sempre algo

que se mantém. Ao passo que, ainda em E1, o nome “transformação” enseja um

funcionamento da polissemia, na qual há um deslocamento, uma ruptura nos

processos de significação, um movimento possível para um lugar outro (poderíamos

antecipar em nossa reflexão inicial, o deslocamento de uma economia sob o jugo do

capitalismo, para uma economia solidária/cooperativismo alternativo).

No entender de Mariani (2001), o processo de produção do discurso (ou de

sentidos) da solidariedade articula-se em uma filiação discursiva disseminada nos

domínios de saber da religiosidade, da moral e do direito, ou seja: campanhas de

caridade, de filantropia, de SOS a desabrigados, flagelados, enfim, de um intenso

apelo midiático e, poder-se-ia dizer, ostensivo ao cidadão, impondo-lhe uma

manifestação (colaboração) inescapável. O que também pode ser lido da seguinte

forma, de acordo a autora: a valorização do individualismo e das responsabilidades individuais vai aumentando na mesma proporção em que se defende uma coletivização nacional, enquanto repartição de culpas, destas mesmas responsabilidades sociais e individuais (Ibid., 2001, p. 45).

Nessa perspectiva, no processo discursivo em análise e, especificamente em

E1, temos um jogo de relações em confronto no interior mesmo do sistema

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dominante (capitalismo). Para ilustrar essa questão, diríamos que seja possível

correlacionar ao que Pêcheux procurou esclarecer do seguinte modo: “ao falarmos

de ‘reprodução/transformação’, estamos designando o caráter intrinsecamente

contraditório de todo modo de produção que se baseia numa divisão de classes”

(Pêcheux, 1997, p.144).

Dessa forma, a solidariedade desencadeia o surgimento de novas

designações, como economia solidária (Im5 e Im7), por exemplo. Além disso,

sobredetermina o social pelo solidário, e este último pelo que se vincula ao

produtivo, cidadão, associativo. Nesse modo de significar solidariedade, o real de

um saber “colono”, oriundo do então feirão colonial, é substituído por categorias,

elementos, discursos do urbano em torno de organização política, administrativa,

jurídica e comercial (da venda direta aos consumidores). Podemos então dizer:

organizam-se sentidos na ordem do discurso sobre, o que redundaria em uma deriva

ideológica que homogeneíza a forma de significar o rural, o campo.

Isso nos conduz, necessariamente, a recortes discursivos bem específicos,

estabelecendo relações entre domínios discursivos, como nos cartazes (Im6 e Im7)

que proclamam a FEICOOP como sendo um evento de âmbito estadual e, nos

mesmos cartazes, à designação cooperativismo, é acrescentado o adjetivo

alternativo, e, principalmente, a FEICOOP passa a ser denominada como:

E2 - O maior evento do cooperativismo alternativo do RS (Im6 e Im7).

No que diz respeito ao nome ‘cooperativismo’, tomamos como entendimento

que, na AD, distinguem-se as noções de produtividade e criatividade, nas quais, pelo

dizer de Orlandi (1999, p. 37), a primeira vem a produzir a variedade do mesmo,

enquanto que a segunda, demanda um trabalho que vem instar um conflito ao já

produzido e ao que se busca instituir. Ou seja, podemos observar, na inserção

central dos cartazes, nas respectivas imagens ao alto, a seguinte repetição da

designação:

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Im1 - cooperativismo

Im2 - cooperativismo

Im3 - cooperativismo

Im4 - cooperativismo

Im5 - cooperativismo

Por esse viés, a sucessão de repetições de cooperativismo sustenta o sentido

de ‘solidariedade’ por um processo parafrástico, de estabilização, em uma

formulação que retorna e, portanto, reafirma o mesmo dizer: O maior evento do

cooperativismo alternativo do RS (E2). Percebemos uma mudança de estatuto

significativa, visto que o advento de ‘tornar-se maior’ afilia novos sentidos ao

movimento cooperativo/solidário, elevando-o a uma condição superior, de

consolidação em um lugar relevante: a FEICOOP é (inquestionavelmente) o maior

evento do cooperativismo.

Com o objetivo de compreendermos essas relações de sentido, buscamos

observar como a ideologia produz uma impressão de transparência do sentido, o

que faz funcionar como uma evidência – um senso de certeza no qual o sentido só

pode ser “este” – e da qual nos permitimos assinalar o discurso sobre como sendo

um processo discursivo organizador, uma espécie de um guarda-chuva, sustentado,

por um lado, pela repetição de enunciados e de imagens, o que configura uma

estabilidade de pré-construídos; e, por outro, pelos procedimentos de “fazer-crer” e

“fazer-ver” que pode fazer emergir outros sentidos (cf. Pêcheux,1997). Há, portanto

uma voz que organiza diferentes discursos de, reunindo e homogeneizando diversas

forças de produção, desde o artesão até o colono.

O discurso de, por exemplo, poderia ser atribuído ao colono, pois ele está em

um lugar de fundação, da força de trabalho e de produção. Mas, isso não é simples,

pois a organização desses discursos se dá na complexificação e instalação de

demandas, em que se inscreve o sujeito urbano, que produz, por uma tecitura de

competências e de saberes, o discurso sobre, e, por ele, produz-se o suposto

controle de sentidos, efeito que referimos anteriormente. Reafirmamos a condição

de “suposto controle de sentidos”, visto que não há garantia desse controle. A

qualquer tempo e lugar, algo inerente ao discurso de pode vir a emergir,

desestabilizando o que estaria estabilizado, fazendo irromper vínculos de

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associação ao discurso sobre, permitindo um novo olhar para o que parecia

esquecido, apagado, mas que faz parte de uma fundação, de uma referência

histórica.

Dessa forma, podemos mais uma vez recorrer à Orlandi, em sua insistência

do que seja a história, na ótica da AD. A história está ligada a práticas e não ao

tempo em si. O que significa se colocar no interior de um confronto de sentidos (cf.

Orlandi, 1990). Ainda, por esse olhar, temos um jogo entre imaginário e simbólico,

uma relação da produção de sentido com o “seu lugar” para levá-lo para “outro”

como se fosse o próprio (Ibid., p. 37). Nessa perspectiva de suspensão e de

movimento, podemos situar os seguintes enunciados5:

E3 - Mais qualidade de vida (Im1 a Im3).

E4 - Há 10 anos construindo o associativismo, o trabalho, a solidariedade

e a cidadania (Im4).

E5 - Há 11 anos construindo o associativismo, o trabalho, a solidariedade

e a cidadania (Im5).

Com base nesses enunciados, podemos compreender que a consolidação do

discurso de/sobre a solidariedade mostra-se com uma visibilidade de apelo social

que reafirma sentidos e quer atribuir historicidade à FEICOOP. Instaura-se uma

temporalidade cronológica que visa a referendar (10 – 11 anos, E4, E5), via

intradiscurso, efeitos de verdade e de autoridade e, assim, configurar e afirmar a

existência desde sempre de uma prática em torno dos elementos ‘construídos’ (E4 e

E5), de sentidos inscritos em uma memória.

Desse modo, podemos dizer que tais evidências cristalizadas, naturalizadas,

só podem se dar dessa maneira pelo imbricamento da história com o poder. Uma

relação tensa entre o estabilizado e o constitutivo de novos dizeres, ou seja, o

discurso de e o discurso sobre encontram-se em tensão, mesmo porque não há

garantias de que o discurso de irrompa no discurso sobre ou vice-versa. Todavia,

em qualquer tempo e lugar, algo próprio do discurso de (do pequeno produtor rural,

5 Com grifos nossos.

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por exemplo) pode emergir, desestabilizando o discurso sobre, presentificando o real

do discurso, sentidos negligenciados, silenciados etc.

Da mesma maneira, entendemos que a intensificação dos sentidos (O maior evento – E2; mais qualidade de vida – E3) é um processo marcante no interior das

formulações. Tais enunciados ostentam um lugar de já-dito e ao mesmo tempo de

atualidade, assim como remetem ao funcionamento da ideologia, a qual não está

relacionada à falta, mas ao excesso, à saturação que produz o efeito de evidência

(cf. Orlandi, 1990).

O movimento das imagens

Pela sucessão de imagens, podemos exemplificar esse jogo de repetições

pelo que segue: nas Im1 a Im3, a união (cooperativada) é simbolizada pela imagem,

em primeiro plano, de um desenho manual em preto e branco que expressa um

aperto de mãos sobre um sol nascente.

Abaixo dessa imagem, também com o desenho traçado em linha pura, sem

sombreamentos, três elementos estão perfilados: o queijo, o vinho e o pão. Estes

podem ser considerados como produtos característicos do trabalho artesanal de

pequenos produtores que então integravam o Feirão Colonial, a organização

rudimentar que a FEICOOP sucedeu.

No entanto, o vinho e o pão, também podem ser entendidos como elementos

de ordem religiosa, o sangue e o corpo de Cristo, isto é, remetem a um dizer que é

anterior, calcado em uma memória e uma história, nesse caso, aquelas dos

princípios constitutivos do Projeto Esperança – um movimento social da Diocese de

Santa Maria. Este nos parece ser um primeiro indício, uma primeira pista de que

essa rede de formulações e reformulações está vinculada a um discurso religioso,

um lugar de fundação no qual se insere a igreja como constitutiva de um discurso

(“eu sou” o caminho, a verdade e a vida, que explica a origem do homem como obra

divina e, propenso à fraternidade, a união de “todos iguais”, perante o criador).

Também a partir de Im4, a arte manual dos desenhos e sua significação pelo

aperto de mãos e pelos elementos representativos, o queijo, o vinho e o pão são

substituídos pela inserção do símbolo do Projeto Esperança/Cooesperança, que o

apresenta como instituição promotora da FEICOOP.

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Pode-se perceber que os elementos correlacionados (pão e vinho, corpo e sangue),

ao serem substituídos, parecem querer levar, neste segundo momento, a um

apagamento da instituição igreja, já que emerge a articulação de um discurso de

cunho social representado pelas designações associativismo, trabalho, solidariedade

e cidadania. No entanto, ao invés de apagamento, o que se pode perceber é um

deslocamento de sentidos já que, ao inscrever a noção temporal (há 10 anos, há 11

anos - E4, E5), remete a uma identificação com o idealismo precursor assentado na

liderança religiosa do Bispo Diocesano de Santa Maria (RS), Dom José Ivo

Lorscheiter.

Um efeito que também pode ser observado pela descrição do símbolo Projeto

Esperança, em forma de um círculo (Im4 em diante), figura geométrica que significa

processo contínuo, sem começo nem fim, agregados à imagem inicial (Im1 a Im3) do

aperto de mãos, agora sobrepostas ao emblema mundial do cooperativismo, e em

seu interior faz constar os dizeres: Santa Maria (RS), Projeto Esperança

Cooesperança, isto é, a figura remete à compreensão de globo, global, também

inerente à apologia encetada pela globalização de um mundo sem fronteiras.

Conclusão

Poderíamos dizer, finalmente que, ao nos lançarmos ao trabalho de

investigação de determinadas noções, teoricamente, já nos colocávamos em relação

com as análises, como asseveramos logo no início, mas desde já compreendemos

que, para tal análise, é imprescindível novas formulações que tomem mais

profundamente o embate de mudanças cada vez menos controladas, como é o caso

do capitalismo, de um lado e, de outro, os processo institucionais que resistem ou

transformam(se) nesse embate de representações. O presente trabalho nos

possibilitou a experimentação, entre teoria e análise, trazendo possibilidades de

interpretação aos questionamentos iniciais, porque a forma de tratamento que o

corpus recebe não advém de uma região estagnada ou cristalizada do conhecimento

científico, podendo sempre alterar-se. E ao alterar-se, torna-se outra e é, de fato, o

caráter marcante das possibilidades que a AD nos oferece. Há o diferente no

mesmo, há uma articulação imbricada, quase em simbiose e ao mesmo temo em

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confronto, entre o político e o simbólico que envolve um estar sempre “entre”

sentidos, desconstruindo evidências do imaginário e fazendo irromper o irrealizado,

o que está por vir, o outro, o possível do impossível, o reformulável, na tensão entre

os discursos sobre e de. Diríamos, somos partícipes de um jogo sempre aberto para

a interpretação outra.

Referências CIGANA, Caio. Melhores práticas. Uma utopia chamada esperança. Desafios do desenvolvimento. n. 37. Nov. 2007: IPEA, Segmento. p. 54-59.http://desafios2.ipea.gov.br/sites/000/17/edicoes/37/pdfs/rd37not08.pdf

MARIANI, Bethania. Questões sobre a solidariedade. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Cidade atravessada. Os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001. ORLANDI, Eni. P. Discurso e texto. Formulação e circulação dos sentidos. 2. ed. Campinas: Ed. Pontes, 2005. ______. (Org.). Discurso fundador. A formação do país e a constituição da identidade nacional. 3. ed. Campinas: Pontes, 2003. ______. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. ______. As formas do silêncio. No movimento dos sentidos. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. ______. Terra à vista! Discurso do confronto: velho e novo mundo. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni P. Orlandi (et al.). 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. ______. O discurso. Estrutura ou acontecimento? Trad. de Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas: Pontes, 2008. Revista do histórico dos 15 Anos da Feira de Santa Maria: Uma experiência aprendente e ensinante. Projeto Esperança/Cooesperança, Diocese de Santa Maria e Apoiadores, Santa Maria, RS, 2008. * A imagem que abre este texto foi elaborada, a partir de recortes do corpus de estudo, por Rejane Vargas, a quem agradecemos pelas contribuições.