discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

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0 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA DISCURSOS DA MÍDIA IMPRESSA SOBRE A VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE BELÉM DO PARÁ: CORPO, IDENTIDADES E REGIMES DE VERDADE. LILIANE AFONSO DE OLIVEIRA Orientadora: Ivânia dos Santos Neves BELÉM 2012

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Page 1: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO, LINGUAGENS E CULTURA

DISCURSOS DA MÍDIA IMPRESSA SOBRE A VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS

PÚBLICAS DE BELÉM DO PARÁ: CORPO, IDENTIDADES E REGIMES DE

VERDADE.

LILIANE AFONSO DE OLIVEIRA

Orientadora: Ivânia dos Santos Neves

BELÉM

2012

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LILIANE AFONSO DE OLIVEIRA

DISCURSOS DA MÍDIA IMPRESSA SOBRE A VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS

PÚBLICAS DE BELÉM DO PARÁ: CORPO, IDENTIDADES E REGIMES DE

VERDADE.

Dissertação apresentada a Universidade da Amazônia para obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia, inserida à linha de pesquisa: Análise do Discurso. Orientador(a): Profa. Dra. Ivânia dos Santos Neves

BELÉM

2012

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FICHA CATALOGRÁFICA

OLIVEIRA, Liliane Afonso de. DISCURSOS DA MÍDIA IMPRESSA SOBRE A VIOLÊNCIA

NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE BELÉM DO PARÁ: CORPO, IDENTIDADES E REGIMES DE

VERDADE. Belém, 2012. 105 p.

Dissertação de Mestrado. Universidade da Amazônia. Programa de Pós Graduação em

Comunicação, Linguagens e Cultura.

Orientador(a): Profa. Dra. Ivânia dos Santos Neves

Mídia. 2. Violência nas Escolas. 3. Análise do Discurso

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“Só a sabedoria pode dar ao homem uma resposta de Paz”.

(M.C. Porto)

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LILIANE AFONSO DE OLIVEIRA

DISCURSOS DA MÍDIA IMPRESSA SOBRE A VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS

PÚBLICAS DE BELÉM DO PARÁ: CORPO, IDENTIDADES E REGIMES DE

VERDADE.

Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação em

Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia.

BANCA EXAMINADORA

1__________________________________________(Orientador)

Profª. Dr. Ivânia dos Santos Neves / UNAMA

2____________________________________________(Membro)

Profª.Dr. Maria do Rosário Gregolin/ UNESP

3____________________________________________(Membro)

Profº. Dr. Claudio Roberto Rodrigues Cruz / UNAMA

Julgado em: ___/___/___

Conceito: ____________

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Dedico a realização desta Dissertação ao meu filho Pedro Ricardo, que mesmo em meu ventre pode me ajudar mais do ninguém a realizar esta pesquisa;

Aos meus pais Erivaldo Morais e Graça Afonso, que sempre me ensinaram os valores da vida que quero compartilhar com meu filho e alunos.

Ao meu esposo, Paulo Ricardo, pela paciência, companheirismo e dedicação para comigo;

À minha professora e orientadora desta Dissertação, Ivânia dos Santos Neves, que soube como fazer eu não desistir deste sonho, apesar das dificuldades.

Aos meus irmãos, amigos e professores que me oportunizaram estar concluindo o Mestrado, me apoiando e incentivando, cada um a sua maneira e possibilidades.

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Em primeiro lugar agradeço a DEUS, pela vida e saúde; por ter permitido eu chegar até aqui e

conquistar um sonho: Mestrado.

Grata sou a Deus por me conceder pais maravilhosos: Maria das Graças Afonso de Oliveira e Erivaldo Morais de Oliveira, pelo amor, pela confiança, pelos ensinamentos, e pelo apoio na

realização de mais esta etapa de minha vida.

Ao meu filho, Pedro Ricardo, que apesar de ainda no ventre foi a minha maior força para este trabalho. Um ser por quem tenho repleto amor e afetividade singular.

Ao meu esposo, Paulo Ricardo Gonçalves Alves de Oliveira, a quem quero agradecer com um carinho especial por ter tido muita paciência comigo na concretização deste sonho.

Aos meus irmãos, Erivane Afonso, Eliane Afonso e Erivaldo Júnior, pelo companheirismo, amor e

paciência dedicada.

Aos meus avôs paternos e maternos que sempre acreditaram em mim, e, com certeza, onde estiverem sempre torceram pelo meu sucesso. (In memorian).

Gostaria de agradecer especialmente a minha orientadora Prof. Dra. Ivânia dos Santos Neves, por ser o meu grande guia, responsável direta pela missão que agora se cumpre. As indicações, as dicas, as

correções, e até mesmo alguns contra tempos que passaram por esta relação entre orientadora-orientando. Tudo isto compôs uma somatória fundamental não só para a construção do pensamento

que se traduz nas páginas deste longo texto hoje entregue, mas como para a maturidade de toda uma vida a seguir: antes de tudo, dedico a esta grande doutora com carinho. Um texto escrito a quatro

mãos.

Gostaria também de agradecer a banca examinadora desta pesquisa, o Prof. Dr. Claudio Roberto Rodrigues Cruz, pelas brilhantes considerações que guiaram a confecção final deste trabalho,

principalmente no momento em que fui bolsista do Projeto Observatório de Violência nas Escolas/UNAMA, e também a Prof. Dra. Maria do Rosário Gregolin/ UNESP cujas observações

durante a Banca de qualificação foram igualmente imprescindíveis e, se dispôs a estar aqui hoje com seu extraordinário conhecimento neste evento que conclui a grande jornada que é o Mestrado.

Gostaria também de agradecer aos professores do Mestrado (Turma 2010), todos aqueles os quais tive

a honra de poder compartilhar de seus conhecimentos, seja durante as disciplinas que cursei, os seminários e palestras que assisti ou mesmo nas conversas pelos corredores da UNAMA, em especial à

Prof. Dra. Ivânia Neves, a quem passei a admirar pela competência e sabedoria.

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A equipe do projeto de Extensão Observatório de Violência nas Escolas, em especial aos Professores Reinaldo Pontes, Claudio Cruz, Jane Melo e Marly Sobral que sempre acreditaram no meu trabalho e

me proporcionaram momentos de grandes conhecimentos.

A todos os colegas do Mestrado (Turma 2010) que foram fundamentais para a elaboração desta pesquisa no convívio em sala de aula, nos grupos de estudo, nos debates, conversas e calorosas

discussões, em suma, dentro do cotidiano da vida acadêmica durante os dois anos em que estive frequentando esta instituição me proporcionando momentos inesquecíveis.

Ao meu primo e amigo Rodolfo de Sousa Afonso, uma pessoa muito especial que também me ajudou muito na realização deste sonho.

Aos meus amigos: Welton Lavareda, Hellen Monarcha, Sonia Maria Pereira do Amaral (que com sua inspiração construiu junto comigo e a Profª Ivânia o título desta Dissertação), Rubens Ferreira,

Juliana Farias, Danyel Ribeiro, Alessandro Coelho, Marly Sobral, Adelize Marques (grande incentivadora deste sonho), Francy (com sua fé e alegria me incentivaram a não desistir nunca), que

sempre estiveram comigo, direta ou indiretamente, torcendo pelo meu sucesso.

Aos amigos e funcionários da Universidade em geral, que estiveram sempre presentes nos diversos momentos acadêmicos nos quais estive envolvida.

Enfim, quero agradecer a todas as pessoas que se fizeram presentes, que se preocuparam, que foram solidárias, que torceram por mim, direta ou indiretamente.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO - “Deu no Jornal”: para começo de conversa ....... 12

Capítulo 1 - Procedimentos metodológicos ................................... 22

1.1. Aproximações ............................................................................. 22

1.2. Análise do Discurso .................................................................... 27

1.3. Sobre os discursos dos alunos no Observatório ........................ 30

1.3.1. De que lugar fala o aluno da escola pública? ......................... 31

1.3.2. “A primeira que saísse, elas iriam furar...” ................................ 33

1.4. Memória Discursiva ...................................................................... 36

Capítulo 2 - Discursos sobre a Violência ........................................ 40

2.1. A violência na escola e seu regime de verdade ......................... 41

2.2. Regras de vida da sociedade: os espetáculos da mídia acerca

da violência ..........................................................................................

45

2.3. A violência nas escolas .............................................................. 49

2.3.1. A violência na escola e seu novo sentido: o bullying .............. 53

Capítulo 3 - Análise do Discurso e Mídia: efeitos da história ao

vivo ...................................................................................................

60

3.1. Tragédias em ambientes escolares ........................................... 61

3.2. Os sentidos instituídos pela mídia impressa em Belém do Pará .. 65

3.2.1. Os dois maiores jornais impressos do Pará ............................ 69

Capítulo 4 - A espetacularização da violência na escola em

Belém do Pará ..................................................................................

75

4.1. Nas páginas de O Liberal ........................................................... 77

4.2. Nas páginas do Diário do Pará .................................................... 82

4.3. Ligando memórias ...................................................................... 88

4. 4. Docilização, ou o controle às avessas? ..................................... 92

Considerações Finais ....................................................................... 94

Referências ......................................................................................... 101

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RESUMO

O estudo pretende realizar uma leitura crítica de como o tema da violência nas escolas de Belém é retratada por dois jornais paraenses de grande circulação local, Jornal O Liberal e Diário do Pará. Pretende-se verificar a contribuição dessas informações no incentivo do “pânico moral” e da desconstrução da imagem da instituição escolar como espaço seguro de convivência e aprendizagem para crianças e adolescentes durante reportagem acerca de um crime ocorrido em uma escola pública da cidade de Belém por uma adolescente de 18 anos dentro da sala de aula. O objetivo desta pesquisa é retratar a influência que a mídia exerce na difusão e composição do fenômeno “violência nas escolas” e sobre o quadro da realidade retratado pelos jornais. Não se trata de avaliar se a mídia é benéfica ou prejudicial na difusão da informação sobre a violência nas escolas, mas de compreender e avaliar sua função como produtora de uma realidade específica. A mídia local impressa tem se revelado porta-voz de uma pluralidade de discursos que mobiliza e materializa o enorme arquivo que vem sendo construído nas últimas décadas acerca de um tema que se constitui um grave problema social: violência nas escolas. Tudo o que já se fora colocado em circulação a cerca da violência nos espaços escolares através da mídia ou dos alunos está significando no texto. Disso decorre a ideia de que todos esses sentidos já-ditos por alguém sobre a temática, em algum lugar, em um momento distinto, têm efeito sobre o que está posto neste material discursivo, conforme verificaremos na análise das matérias de jornais. Palavras Chave: Violência nas Escolas. Análise do Discurso. Mídia Impressa. O Liberal. Diário do Pará.

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ABSTRACT

The study intends to realize a critical reading of how the issue of violence in schools in Belém is described by the site of two vast circulation journal in Para, “O Liberal” and “Diário do Pará”. It intend to check the contribution of this information in incentive of the "moral panic" and defamation the image of the school as a safe space for living and learning for children and teenagers during a report about the crime occurred in a public school in the town of Belém for a teenager of 18 years in the classroom. The objective of this study is to demonstrate the influence that the media put in the divulgation and composition of the phenomenon "violence in schools” and about the reality picture described in the journals. This is not to evaluate if the media is beneficial or harmful in the dissemination of information on violence in schools, but to understand and analyze its function as a producer of a specific reality. The local journals has proved spokesman of a plurality of discourses that mobilizes and materializes the largest file that has been built in recent decades about a subject that is a serious social problem: violence in schools. Everything has already been put into circulation about violence in school spaces through the media or the student is meaning in the text. It follows the idea that all these senses has already told by someone about the issue, in somewhere, in a different moment, have an effect on what is put in this discursive material, as we shall find in the analysis of journals reports. Keywords: violence in schools. Analysis speech. Journals. “O liberal”. “Diário do Pará”.

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Poderia enumerar muitos exemplos do que considero

ser a abjeção dos corpos. Podemos notá-la, por exemplo, na

matança de refugiados libaneses: o modo pelo qual aqueles

corpos, aquelas vidas, não são entendidos como vidas. Podem

ser contados, geralmente causam revolta, mas não há

especificidade. Posso verificar isso na imprensa alemã quando

refugiados turcos são mortos ou mutilados. Seguidamente

podemos obter os nomes dos alemães que cometem o crime

e suas complexas histórias familiares e psicológicas, mas

nenhum turco tem uma história familiar ou psicológica complexa

que o Die Zeit alguma vez mencione, ou pelo menos nenhuma

que eu tenha encontrado em minhas leituras desse material.

Assim, recebemos uma produção diferenciada, ou uma materialização

diferenciada, do humano. E também recebemos,

acho eu, uma produção do abjeto. Então, não é que o

impensável, que aquilo que não pode ser vivido ou

compreendido não tenha uma vida discursiva; ele certamente

a tem. Mas ele vive dentro do discurso como a figura

absolutamente não questionada, a figura indistinta e sem

conteúdo de algo que ainda não se tornou real. Mas seria um

grave erro pensar que a definição do abjeto se esgota nos

exemplos que dou. Gostaria de protelar qualquer solução fácil

até encontrar um aparato conceitual que proporcionasse à

operação da abjeção uma espécie de autonomia relativa,

de até mesmo um vazio, uma falta de conteúdo . Exatamente

para não poder ser captada através de seus exemplos, de

modo que seus exemplos não pudessem se tornar normativos

do que queremos significar por abjeto. O que seguidamente

acontece é que as pessoas apresentam teorias abstratas sobre

coisas do tipo da abjeção, depois dão os exemplos, e então

os exemplos se tornam normativos de todo o resto. O processo

se torna paradigmático e acaba por produzir suas próprias

exclusões. Torna-se fixo e normativo no sentido de rigidez

Judith Butler

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INTRODUÇÃO

“Deu no Jornal”: para começo de conversa

Não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que

Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.

Paulo Freire

Nas últimas décadas, a preservação da Amazônia passou a ser uma das

maiores preocupações ambientais do planeta. E, em função desta imensa

reserva florestal, ainda hoje, alimentam-se fantasias de que se trata de um

paraíso edênico, onde existem populações nativas isoladas dos problemas da

globalização da economia e dos processos de mediação. É como se nesta

região, não houvesse o movimento da história.

Também alimenta o imaginário internacional, um outro discurso sobre a

região, este mais especificamente relacionado à Amazônia Paraense, que está

profundamente atravessado pela violência. No Pará, houve o massacre de El

Dourado dos Carajás, quando 19 sem terra foram mortos pela polícia,

aconteceu o assassinato da missionária Doroty Stang e de um número

incontável de sindicalistas. Isso sem contar os líderes de trabalhadores rurais,

que neste momento, encontram-se jurados de morte. Por este cenário, o

sudeste do estado apresenta um nível de violência semelhante à Faixa de

Gasa. Neste sentido, o sudeste paraense seria o lugar da barbárie.

Em sua tese de doutorado, onde analisa os discursos que circulam

sobre o estado do Pará na Folha de São Paulo, Marcos da Cunha mostra como

as matérias deste jornal forjam uma realidade em que a violência passa a

caracterizar a identidade de todas as pessoas que moram na região, inclusive

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aquelas que nunca estiveram envolvidas nas cenas de violência

disponibilizadas pela mídia.

A mídia produz uma realidade brasileira, constrói um modo de

dizer essa realidade. A enunciação do jornal materializa a

expressão de determinados sujeitos sócio-históricos. A palavra

da mídia se caracteriza pelo lugar a partir do qual ela estará

produzindo seu discurso.

As diferenças culturais produzidas historicamente entre regiões

e estados brasileiros tendem a produzir discursos etnocêntricos

por parte de sujeitos representativos dos lugares/espaços,

apontados e reconhecidos como “centro”, relativo àqueles

identificados como “margens”. A “voz” da mídia representativa

daqueles que estão no “centro” econômico e de produção

cultural do país, no caso, “São Paulo” e “Rio de Janeiro”, tende

a identificar o estado do Pará, por uma teia de sentidos

circulantes e sutis, com a “barbárie”. (CUNHA, 2011, p. 308)

Em Belém, os níveis de violência não são tão diferentes, nem menos

alarmantes que os do sudeste do estado. A capital do estado é uma típica

cidade latino-americana e exibe uma paisagem marcada pela desigualdade

social. As políticas públicas estabelecidas pelos governos estaduais ignoram as

estatísticas e não enfrentam sistematicamente a questão da violência no

estado. Não há projetos com investimentos significativos em educação e saúde

e só muito recentemente reforçaram o efetivo policial do estado. No cenário

atual, há uma defasagem de escolas e delegacias. E, apesar das classes

populares estarem menos protegidas pelo Estado, todos vivem dentro de uma

realidade que, de fato, é violenta.

Por outro lado, este cenário de violência no estado do Pará não deve

criar um discurso generalizante em relação à população. Assim como acontece

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nos morros do Rio de Janeiro, nas favelas de São Paulo, nos subúrbios de

Buenos Aires, ou na Cidade do México, a violência advinda da desigualdade

econômica e do crime organizado não pode definir a identidade de pessoas,

que vivem nestas regiões violentas, mas que são trabalhadores e constroem

suas histórias, na medida do possível, paralelas a esta condição.

Outro aspecto que não pode ser ignorado, quando se fala em violência é

que não se deve supor que os atos de violência estão relacionados apenas às

questões econômicas. A violência não tem classe social, mas está submetida

às relações de poder que organizam a sociedade. Segundo Foucault (2006, p.

42):

Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o

poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos,

quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e

onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe−se muito bem que

não são os governantes que o detêm. Mas a noção de "classe

dirigente" nem é muito clara nem muito elaborada. "Dominar",

"dirigir”, ' "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado",

etc.. É todo um conjunto de noções que exige análise. Além

disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder,

através de que revezamentos e até que instâncias,

frequentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de

proibições, de coerções.

Como a violência não está restrita a classes sociais, ela acontece em

todos os espaços, quer seja num bairro de periferia, na escola de classe média

alta, ou mesmo no espaço doméstico, onde as famílias organizam suas

práticas cotidianas. A violência chega a estes menores lugares, onde os

micropoderes se estabelecem distantes das políticas do Estado, ainda que

bastante atravessados por elas. Ainda para Foucault (2006, p. 133):

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o poder no Ocidente é o que mais se mostra, portanto o que

melhor se esconde: o que se chama a "vida política", a partir do

século XIX, é (um pouco como a Corte na época monárquica) a

maneira pela qual o poder se representa. Não é ai nem assim

que ele funciona. As relações de poder estão talvez entre as

coisas mais escondidas no corpo social.

A violência é um fenômeno multi-determinado e não pode ser

circunscrita a determinados segmentos sociais, já que atinge a sociedade como

um todo. Ela pode ser fomentada pela família desagregada, que está presente

em todas as classes sociais, pelo crescente processo de exclusão social e

econômica de grande parcela da população e, naturalmente, pelos discursos

colocados em circulação naquela que nas últimas seis décadas tem sido uma

das principais formadoras das verdades sociais: a mídia.

O discurso sobre a violência pode ser discutido a partir de múltiplas

variantes, que se materializam na violência doméstica ou na violência das

facções criminosas, por exemplo. Naturalmente, a escola também é um lugar

em que a violência se estabelece e nela, diferentes sujeitos podem ser

identificados ou não como pessoas violentas. E é justamente esta identidade,

que se constrói dentro escola, mas que está profundamente encadeada com os

discursos construídos pela mídia, o principal objeto de estudo desta

dissertação.

Muito embora já existam ações de prevenção aos conflitos, em

diferentes graus nas escolas, o índice de violência nas escolas recrudesce a

cada ano. Isso evidencia, entre outras coisas, que estamos diante de um

fenômeno sem precedentes, e para o qual podem estar contribuindo fatores

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diversos, quer de ordem familiar, quer por inércia do poder público, ou mesmo

a quase indiferença da sociedade civil.

As estatísticas sobre a violência dentro dos espaços escolares estão

cada vez mais assustadoras e não são poucos os acontecimentos que

envolvem tanto alunos como professores em atos violentos. Este tipo de

violência já passou a fazer parte do cotidiano.

José Vicente Tavares dos Santos é um dos autores que mais tem

refletido sobre a questão teórica da violência. Para o pesquisador (1995), a

violência é reconhecida como um fenômeno complexo, multicausal e de difícil

definição. Ela deve ser tratada por profissionais que integram as diversas áreas

do conhecimento na procura de diferentes caminhos que viabilizem superar a

questão tanto no âmbito da sociedade como da escola.

Já Ana Paula Muller de Andrade (2001), que faz parte do grupo de

pesquisadores em Educação Ambiental que acredita na possibilidade da

inserção da Educação Ambiental nas escolas para superação da violência,

considera que a violência não deve interessar somente aos profissionais que

cuidam da área da segurança pública ou aos órgãos de justiça ou similares,

mas também àqueles profissionais que lidam diretamente com as

necessidades e motivações do ser humano, como os educadores, psicólogos,

além de médicos, enfermeiros, entre outros. O trabalho com o ser humano não

se restringe somente a estes profissionais e sim, diz respeito a todas as áreas

do conhecimento que, de forma multidisciplinar, devem compreendê-lo.

Nas duas últimas décadas, os índices de violência em ambientes

escolares aumentaram significativamente. Nos jornais de maior circulação na

cidade de Belém, na Amazônia, não é difícil encontrar notícias sobre alunos

Page 18: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

17

que praticaram atos de violência e nestas matérias, há uma recorrência de

conflitos que acontecem em escolas públicas.

Aqui, nesta pesquisa, procurei destacar as condições de produção

históricas que constituem os discursos sobre a violência na escola pública e na

mídia impressa. Para Gregolin (2003):

O discurso é a materialização da linguagem e carrega consigo

as manifestações ideológicas de ordem sócio-histórica

enunciadas pelos sujeitos do discurso, por isso mesmo a AD se

situa em três regiões do saber cientifico: a Lingüística, para

explicar os processos de enunciação; o Materialismo Histórico

para explicar os fenômenos sociais e o assujeitamento do

sujeito pela ideologia e a Psicanálise que explica a

subjetividade e a relação do sujeito com o simbólico.

A base teórica principal foram as referências da análise do discurso,

mais especificamente as análises das relações de poder e identidade

estabelecidas por Michel Foucault e os estudos que aproximam a teoria do

discurso com os estudos midiáticos.

Atualmente, estes dois jornais institucionalizam um discurso que

estabelece, generalizadamente, a escola pública como um espaço violento.

Sem qualquer preocupação ética, os dois veículos divulgam fotos e manchetes

sensacionalistas que expõem estudantes de escola pública, às vezes até

menores de idade.

Esta dissertação realizou uma leitura crítica sobre a forma como o tema

da violência, nas escolas de Belém e entorno, apareceu retratado por estes

jornais, e, pode verificar a contribuição dessas informações no incentivo do

“pânico moral” causado aos moradores da cidade e da desconstrução da

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imagem da instituição escolar como espaço seguro de convivência e

aprendizagem para crianças e adolescentes.

Analisei, especificamente, um acontecimento discursivo e sua

repercussão: um crime cometido por uma adolescente de 18 anos, em 2008,

ocorrido em uma escola pública da cidade de Belém, dentro da sala de aula. A

perplexidade social, diante do homicídio, e os interesses dos dois jornais gerou

uma série de reportagens sensacionalistas que, em parte, deixa ver o lugar de

onde os dois jornais falam.

O objetivo desta pesquisa foi analisar a influência que a mídia exerce na

difusão e composição do fenômeno “violência nas escolas”. Não se trata de

avaliar se a mídia é benéfica ou prejudicial na difusão da informação sobre a

violência nas escolas, mas de compreender e avaliar sua função como

produtora de identidades em relação à escola pública.

A maneira como as escolas são apresentadas, nestes jornais, revela as

condições precárias destes estabelecimentos e esta situação supostamente de

denúncia, poderia trazer algum benefício se houvesse algum retorno por parte

das políticas públicas no sentido de melhorar as escolas. Por outro lado, o

sensacionalismo apelativo das matérias apresentadas pelos dois jornais, de

certa forma, forja uma identidade generalizante sobre o aluno que estuda nesta

escola. Numa análise superficial destes jornais, constrói-se uma verdade

preconceituosa de que os alunos destas escolas são pessoas violentas.

Esse poder - contra o qual os sujeitos se digladiam em micro-

lutas cotidianas - classifica os indivíduos em categorias,

designa-os pela individualidade, liga-os a uma pretensa

identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é necessário

reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. É uma

Page 20: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

19

forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos.

(GREGOLIN, 2004, p. 16)

Procurei mostrar como a mídia, mais especificamente o funcionamento

dos dois jornais impressos de maior circulação local, por representar um

espaço social de fomento de discursos e falas e de promoção de significados,

participa do processo de construção da memória social. Nesta perspectiva,

foram abordados os mecanismos e as estratégias de construção da memória

discursiva da violência nos espaços escolares do Brasil a partir da sua

inscrição no discurso da imprensa escrita. Concebendo os jornais como lugares

de memória, tentamos entender o imaginário construído pela mídia jornalística

sobre a violência nos espaços escolares.

A mídia local impressa tem se revelado porta-voz de uma pluralidade de

discursos que mobiliza e materializa o enorme arquivo que vem sendo

construído nas últimas décadas acerca de um tema que se constitui um grave

problema social: violência nas escolas. Grande parte do que já se fora

colocado em circulação sobre violência nos espaços escolares, através da

mídia ou dos alunos entrevistados, ganhou sentidos nas análises. Disso

decorre a ideia de que todos estes sentidos já-ditos por alguém sobre a

temática, em algum lugar, em um momento distinto, têm efeito sobre o que está

posto neste material discursivo.

Muito além dos muros da escola, este complexo fenômeno social a que

se chama de violência, atinge índices alarmantes. São inúmeros os fatores que

podem levar uma criança ou um adolescente a um ato delitivo. Estudá-los é de

fundamental importância para desenvolver ações que vão prevenir e enfrentar

Page 21: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

20

o fenômeno da violência na sociedade como um todo e na escola mais

especificamente.

No primeiro capítulo desta dissertação, apresento o caminho

metodológico que percorri. Como cheguei a este tema e a esta perspectiva

teórica. Mostro como aconteceu a escolha da Análise do Discurso fazendo uma

reflexão teórica sobre as ferramentas da teoria fundamentais para as análises

aqui propostas.

No segundo capítulo, abordo sobre os discursos da Violência. Narrativas

que dão conta de atos “violentos”. Discuto como os discursos sobre violência

estão materializados em diferentes realidades e se filiam a diversas redes de

memória. Num segundo momento, tratarei sobre como esses discursos podem

ser discutidos a partir de múltiplas variantes.

No terceiro Capítulo faço uma análise do discurso da Mídia. Como estes

discursos participam da constituição das representações sociais, produzindo

sentidos, esquecimentos e silenciamentos. Analiso como a violência na escola

é espetacularizada pela mídia, como as tragédias que acontecem no ambiente

escolar são uma recorrência em diversas partes do planeta. Analiso também as

condições de produção históricas dos dois jornais de maior circulação na

cidade de Belém. Procuro mostrar por que há tanto interesse em colocar em

circulação matérias sensacionalistas que evidenciam a violência nas escolas

públicas de Belém.

No quarto capítulo apresento a espetacularização da violência na escola

em Belém do Pará. Analiso a forma como os dois jornais, O Liberal e Diário do

Pará, jornais de maior circulação em Belém divulgaram o acontecimento de

uma tragédia ocorrida entre duas alunas em uma sala de aula de Escola

Page 22: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

21

Pública de Belém no ano de 2008 causando um “pânico moral” na população

paraense. Apresento como o corpo, nos dois jornais em análise, considerado

como texto, proporciona uma série de significações e pode ser lido também a

fim de que se tenha maior conhecimento das características de determinada

situação.

No último capítulo, abordo a exposição do corpo cada vez mais em cena

nos espetáculos midiáticos da sociedade atual. Diante das matérias divulgadas

pelos dois jornais estabeleço enunciados que compõem o sistema para separar

agrupamentos e elementos que serão tratados como uma unidade para a

construção de significações a partir dos corpos impressos em folhas de jornais

impressos. Faço uma apresentação mais detida do que os veículos de

comunicação apresentaram acerca do acontecido no ambiente escolar, o

sensacionalismo em busca da consolidação como veículos populares.

Page 23: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

22

Capítulo 1

Procedimentos metodológicos

É pelo estudo dos mecanismos que penetram nos corpos, nos gestos, nos

comportamentos, que é preciso construir a arqueologia das ciências

humanas.

Michel Foucault

Neste capítulo, apresento o percurso teórico-metodológico desta

dissertação. Procurei mostrar como cheguei ao tema violência na escola e ao

seu recorte nas reportagens relativas ao crime cometido por uma adolescente

de 18 anos, em 2008, na cidade de Belém.

Na segunda parte, tratei mais especificamente das categorias da análise

do discurso e sua aproximação com minha pesquisa inicial sobre violência na

escola, que de certa forma, traduz a perspectiva interdisciplinar do Programa

de Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da Unama.

1.1. Aproximações

Iniciei minha vida acadêmica na Universidade da Amazônia (UNAMA)

em 2006, no curso de graduação em Letras, com habilitação em Língua

Portuguesa. Como aluna na área de Letras, eu me dediquei ao máximo durante

a graduação ao aprofundamento teórico em meu campo de atuação

profissional. Meu desejo, no entanto, era ir além das discussões específicas do

curso, queria entrar em contato com outras teorias capazes de contribuir para

uma formação interdisciplinar e, sobretudo, participar da busca de

Page 24: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

23

entendimento sobre problemas reais que ainda carecem de análises mais

aprofundadas.

Com o objetivo de ampliar minha formação acadêmica, ingressei, como

bolsista da área de Letras, no Programa “Observatório de Violência nas

Escolas” – Brasil / Núcleo Pará, mantido pela UNAMA. Este programa teve

início com um projeto de pesquisa-extensão criado em 2004, em cooperação

com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

(UNESCO) que deu início a uma série de outros projetos voltados para a

violência na escola.

Participei durante dois anos consecutivos (2007-2008) dos trabalhos do

observatório e comecei a adquirir um repertório teórico e empírico sobre o tema

violência na escola. No período em que participei mais ativamente das

pesquisas, estive em uma escola particular de classe média alta e em uma

escola pública de Belém entrevistando professores, técnicos e alunos sobre o

manejo de conflitos diante de atos de violência na escola. Esta experiência

aumentou ainda mais meu interesse por pesquisas e ações voltadas para o

enfrentamento da violência junto às escolas.

Durante a graduação, para realizar minha pesquisa de conclusão de

curso, senti a necessidade de investigar, na condição de bolsista de extensão,

como jovens alunos, sujeitos da pesquisa “Manejo de Conflitos no espaço

escolar: Interface entre escola pública e privada” entendiam a violência na

escola, por meio da Análise do Discurso.

Nesta primeira aproximação com a Análise do Discurso, pude perceber a

importância deste tipo de análise e comecei a entender melhor o lugar de onde

falavam os alunos entrevistados. Como tive acesso às entrevistas que

Page 25: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

24

aconteceram nas escolas púbicas e na particular, cheguei a algumas

conclusões iniciais sobre as condições de produção dos discursos que circulam

nestas duas escolas sobre a violência.

A escola pública estadual apresentava um ambiente em péssimo estado

de conservação, com salas pichadas, carteiras quebradas e riscadas, policiais

dentro da escola fazendo uma espécie de ronda, grades. A sensação era de

que os alunos não pertenciam àquele espaço, que por ser público, acabava

sendo de ninguém. Esta falta de identificação dos alunos com o ambiente

escolar, de certa forma, acaba se materializando nas próprias condições do

prédio.

Ao contrário da escola pública, a particular apresenta um ambiente em

ótimo estado de conservação, com salas climatizadas, carteiras pintadas, bem

conservadas. Nesta escola particular, os alunos se sentem parte do espaço,

como se não estivessem ali de passagem, à espera de um local melhor

(defendem o espaço, protegem). O que não significa que nunca danifiquem a

escola, mas, como se trata de uma escola particular, a manutenção não deixa

ver estas marcas.

Os alunos recebem tratamento de clientes: existe um cuidado dos

professores e da direção ao se referirem aos alunos e suas famílias, o que não

parece existir dentro da escola pública estadual. Estas diferenças atravessam

profundamente os discursos que os alunos colocam em circulação sobre a

violência na escola.

Na escola particular, em nenhum momento, durante as entrevistas, fala-

se sobre violência física de forma explícita. A violência que aparece nas falas

dos alunos vem profundamente marcada por um silenciamento: não se fala do

Page 26: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

25

corpo e nem de agressões verbais mais sérias. Parece que os conflitos se

restringem à relação professor x aluno. Ficou a impressão de que nesta escola

os alunos nunca se desentendem de forma mais séria. Tudo é absolutamente

contornável pela equipe pedagógica, que tem muita intimidade com eles.

Pelos depoimentos recolhidos pelo Observatório, parecia que nesta

escola não havia filhos de famílias desestruturadas, que eles não participavam

de uma sociedade marcada pela desigualdade e que não estavam expostos

aos discursos violentos exibidos pela mídia.

Nesta primeira aproximação, durante a graduação e na condição de

bolsista do Observatório, pude perceber a importância dos lugares de fala

destes alunos e de seus professores. Não havia neutralidade em seus

discursos. Comecei a melhor ouvir e a criar mais condições para que a voz dos

alunos pesquisados, sobretudo os da escola pública, pudessem ganhar novos

sentidos.

Meu objetivo, no entanto, naquele momento, quando terminava a

graduação e ainda não dominava bem as categorias de analise, esteve limitado

ao estudo das marcas linguísticas dos alunos. O objetivo do trabalho de

conclusão de curso se restringiu a mostrar linhas ideológicas a partir de seus

depoimentos, com uma comparação dos discursos entre alunos da escola

pública e privada de Belém.

Estas primeiras análises sobre a violência na escola, de certa forma,

ficaram circunscritas ao ambiente escolar. E àquela altura, ainda não havia

uma disciplina específica de Análise do Discurso no curso de Letras da

Universidade da Amazônia. A disciplina só passou a ser ofertada para os

alunos que ingressaram a partir de 2008. Esta ausência dificultou bastante o

Page 27: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

26

aprofundamento teórico nesta área. Nesta pesquisa inicial, as análises não

chegaram à perspectiva histórica que envolve os discursos sobre violência na

escola.

Em 2010, ingressei no Mestrado em Comunicação, Linguagens e

Cultura da Universidade da UNAMA. Este programa faz uma abordagem

interdisciplinar, a partir de três áreas de concentração: Letras, Artes e

Comunicação. Durante a realização das disciplinas, pela primeira vez entrei em

contato com a Análise do Discurso e com os estudos dos processos de

mediação, o que naturalmente delineou novas direções para minha pesquisa.

No Mestrado, ampliei bastante meu universo de pesquisa sobre a

violência. Vou além das falas dos alunos e passo a localizá-las no jogo da

história em que eles se instituem. Procurei entender as movimentações de

sentido em torno da violência na escola e como estes discursos apareciam na

literatura, na legislação, na história da educação no Brasil e, naturalmente,

revisitei o arquivo do Observatório da Violência.

No decorrer da pesquisa, em função das disciplinas que conduziam a

análises interdisciplinares, produzi alguns artigos que me levavam para as

exterioridades dos depoimentos recolhidos pelo observatório. Afinal, eles não

estavam imunes às relações de poder estabelecidas inclusive pela mídia.

Assim, cheguei até as reportagens dos dois maiores jornais impressos do

estado.

Page 28: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

27

1.2. Análise do Discurso

Nesta minha segunda incursão pela Análise do Discurso, assumo novas

posições diante do problema da violência na escola e, quando revistei as

entrevistas analisadas no TCC, olhei para as exterioridades dos discursos

colocados em circulação pelas falas dos alunos entrevistados pelo

Observatório. “A análise do discurso é um campo de pesquisa cujo objetivo é

compreender a produção social de sentidos, realizada por sujeitos históricos,

por meio da materialidade das linguagens”. (GREGOLIN, 2007, p. 11).

O discurso deve ser tomado como ponto de articulação entre os

fenômenos linguísticos e os sócio-históricos. Para o Profº Cleudemar Alves

Fernandes (2005), coordenador do Grupo de Pesquisas em Análise do

Discurso da Universidade Federal de Uberlândia:

[...] o discurso não é a língua e nem a fala, mas, como uma

exterioridade, implica as duas para a sua existência material;

realiza-se, então, por meio de uma materialidade linguística,

cuja possibilidade firma-se em um, ou vários sistemas

(linguísticos e/ou semióticos) estruturalmente elaborados.

(FERNANDES, 2005, p. 24),

Estudar o discurso é caracterizar as inscrições ideológicas contraditórias

que coexistem nas diferenças sociais, inscritas na produção discursiva dos

sujeitos, na materialidade discursiva. A Análise do Discurso desenvolve seus

estudos sobre as visões de mundo inscritas no discurso, ou seja, a

identificação do sujeito a partir da sua história no lugar complexo de

determinações (não apenas econômica) em que atua.

Page 29: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

28

Uma das primeiras coisas a compreender é que o poder não

está localizado no aparelho de Estado e que nada mudará na

sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora,

abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais

elementar, quotidiano, não forem modificados. (FOUCAULT,

2006, p. 85)

Em Arqueologia do Saber, livro publicado em 1969 por Michael Foucault,

com ideias determinantes para a construção da análise do discurso, o autor

reflete sobre os seus trabalhos anteriores e sistematiza uma série de conceitos

determinantes para a abordagem do discurso. Para Foucault (2000, p. 136): “os

dizeres e fazeres inserem-se em formações discursivas, cujos elementos são

regidos por determinadas regras de formação”. Complementando suas

reflexões, Foucault nos diz que o “discurso é o espaço em que saber e poder

se articulam”.

Foucault estabelece explicitamente as relações entre os

dizeres e os fazeres, isto é, as práticas discursivas

materializam as ações dos sujeitos na história. A discursividade

tem, pois, uma espessura histórica, e analisar discursos

significa tentar compreender a maneira como as verdades são

produzidas e enunciadas. Assim, buscando as articulações

entre a materialidade e a historicidade dos enunciados, em vez

de sujeitos fundadores, continuidade, totalidade, buscam-se

efeitos discursivos. (GREGOLIN, 2007, p.15)

Assim, o estudo do discurso considera em suas análises não apenas o

que é dito, mas as relações que esse dito estabelece com o que já foi dito

antes e, até mesmo, com o não-dito, atentando, também, para a posição social

e histórica dos sujeitos e para as formações discursivas às quais se filiam os

discursos. Ou seja, em um momento histórico, há algumas ideias que devem

Page 30: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

29

ser enunciadas e outras que precisam ser caladas. Segundo Gregolin (2007, p.

15) “silenciamento e exposição são duas estratégias que controlam os sentidos

e as verdades”.

Estas condições de possibilidade de discurso são formações discursivas

que sustentam os saberes em circulação numa determinada época. Por meio

da análise do discurso Foucaltiana, estabelecem-se as relações entre os

dizeres e os fazeres, isto é, as práticas discursivas materializam as ações dos

sujeitos na história. O discurso possui uma profundidade histórica, e realizar

suas análises significa tentar compreender a maneira como as verdades são

produzidas e enunciadas.

Compreender o discurso é passar para este “segundo nível”, ou seja, é

passar da funcionalidade da língua para a sua intencionalidade; é des-cobrir,

como na língua podem estar acumulados, ou traçados, significados e intenção

de outrem, e tentar delinear o discurso com outros significados que não

aqueles do seu enunciador; é despir a língua de um vestuário e lhe dar outro. É

praticamente fazer uma arqueologia do significado presente na língua.

O discurso vem a ser a função de uso da língua em determinado

contexto, materialmente relacionado às intenções dos falantes, por isso, a

intencionalidade não existe como uma condição “psicológica pura” para a

existência do discurso.

De acordo com Michel Pêcheux (1990, p. 53): “todo enunciado é

linguisticamente descritível como uma série de pontos de deriva possível

oferecendo lugar a interpretação [...] sempre suscetível de ser/tornar-se outro”.

Esse lugar a que Pêcheux refere-se é o do outro enunciado que dá lugar a

interpretação, manifestação do inconsciente e da ideologia na produção dos

Page 31: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

30

sentidos e na constituição dos sujeitos. Também para ele, não há sujeitos

individuais no discurso, há “formas-sujeito”, ou seja, um ajustamento do sujeito

à ideologia. Nos seus estudos sobre Pêcheux, Gregolin (2003, p. 27), afirma

que:

O sujeito não é considerado como um ser individual, que

produz discursos com liberdade: ele tem a ilusão de ser o dono

de seu discurso, mas é apenas um efeito do ajustamento

ideológico. O discurso é construído sobre um inasserido, um

pré-construído (um já-lá), que remete ao que todos sabem, aos

conteúdos já colocados para o sujeito universal, aos conteúdos

estabelecidos para a memória discursiva.

O individuo, ao produzir seu discurso, não expressa a sua consciência

livre de interferências. Ao contrário, aquilo que ele enuncia pode ser resultado

de memórias discursivas que lhe são anteriores e que foram por ele

internalizados em função da questão sócio-histórica a que estamos todos

submetidos, a partir da qual são constituídas nossas representações sobre o

mundo.

1.3. Sobre os discursos dos alunos no Observatório

Para finalizar este capítulo, vou tratar da questão do corpo como

materialidades do poder. Questiono a escola pública dos dias de hoje e retorno

ao depoimento de uma aluna da escola pública, recolhido no Observatório, em

2008 para mostrar como a vulnerabilidade do corpo se instituiu como um

discurso estabilizado nestas escolas.

Page 32: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

31

1.3.1. De que lugar fala o aluno da escola pública? Até os anos de 1970, a sociedade brasileira dava outros sentidos para

as escolas públicas. As famílias mais abastadas mantinham seus filhos na rede

pública. Não se falava, por exemplo, em cotas nas universidades para seus

alunos, nem tampouco estas escolas eram concebidas genericamente como

espaços de insegurança.

É importante afirmar que, atualmente, há escolas modelos na rede

pública e uma infinidade de professores empenhados em ações pedagógicas

com resultados efetivos, apesar das dificuldades de infraestrutura. A imagem

que se tem sobre estas escolas, no entanto, está bem distante de ser o lugar

preferido em que as famílias gostariam de ter seus filhos estudando.

A escola pública dos dias de hoje precisa ser entendida em sua

heterogeneidade. De forma geral, reclama por mais investimentos, e precisa

ser reconhecida como o espaço que abriga a maioria das crianças e dos jovens

brasileiros. Segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios) de 2009, a cada dez alunos no ensino fundamental e médio no

Brasil, oito estudam em escola pública. São 40,6 milhões de crianças e jovens

(85% do total), o que representa a grande maioria dos estudantes brasileiros.

A matéria, a seguir, narra um acontecimento envolvendo um caso de

homofobia. Um dos desfechos da situação mostra como a sociedade brasileira

já “normalizou” a ineficiência da escola pública.

Page 33: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

32

A solução encontrada para o problema marca o descrédito social e a

naturalidade com que se aceita a violência: “O adolescente agredido será

transferido para a rede particular de ensino”.

As reportagens exibidas pela mídia sobre violência na escola são

recebidas com certa “normalidade” pela sociedade brasileira, porque a própria

escola pública demandou novos efeitos de sentidos.

O conceito foucaultiano de formação discursiva transformou-se

em um operador fundamental do método proposto para a

análise dos discursos na medida em que instituiu o território da

História como o campo das produções de efeitos de sentido. A

partir desse conceito central, história e materialidade dos

enunciados se interpenetram para construir os sentidos.

(GREGOLIN, 2004. p. 05)

No próximo tópico, retomo uma entrevista realizada pelo Observatório

que também mostra o funcionamento desta aceitação da violência na rede

pública.

Aluno de 15 anos apanha em escola pública após assumir que é homossexual 20/03/2012 | 13h24min

Um estudante de 15 anos do Colégio Estadual Onofre Pires, em Santo Ângelo

(RS), está há uma semana sem ir às aulas após ser agredido por um colega de

turma. O caso foi registrado como lesão corporal na Delegacia de Polícia de Pronto

Atendimento (DPPA) da cidade gaúcha, na última terça-feira (13). De acordo com a

Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul (SERS), o aluno agressor está

suspenso pela direção da escola. O adolescente agredido será transferido para

a rede particular de ensino. Ambos são alunos do 1º ano do ensino médio. Na

tarde desta terça-feira (20), haverá uma reunião com representantes do colégio, do

Ministério Público, da Polícia Civil e do governo estadual.

Fonte: http://www.paraiba.com.br/2012/03/20/32767-aluno-de-15-anos-

apanha-em-escola-publica-apos-assumir-que-e-homossexual

Page 34: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

33

1.3.2. “A primeira que saísse, elas iriam furar...”

As falas dos alunos da escola pública e da escola particular de classe

média alta, entrevistados pelo Observatório, colocam em circulação uma série

de discursos que deixam evidências sobre o lugar social de onde falam e sobre

suas práticas discursivas em relação à violência. É possível observar, a partir

destas falas, como o discurso sobre a violência na escola dialoga com a mídia,

atravessa os corpos destes alunos, perceber o que eles silenciam, quais são as

interdições sobre o tema e como funcionam as estratégias das escolas que

procuram, ou não, evitar as situações de violência, ou que atuam no sentido de

puni-las.

O corpo está centro das relações que envolvem o sujeito, o

discurso e as instituições, fazendo a história do cotidiano por

meio das posições que ocupa, dos desejos que suscita, do

imaginário que dá os contornos do homem de hoje em dia, seja

na rua, seja na escola, seja em casa, seja na mídia. (MILANEZ,

2006, 13)

O discurso é uma construção social de enunciados que caracterizam o

modo de agir ou de pensar de alguém ou de um grupo específico. Essa

construção, não individual, e que só pode ser analisada considerando seu

contexto histórico-social e suas condições de produção traduz a visão de

mundo do homem através de seu discurso, então, constituído por muitas falas

e muitos dizeres, que são determinados pelas regras sociais de comunicação,

pelas condições de produção históricas e por regras e convenções sociais.

A situação narrada por uma aluna da rede pública mostra de que lugar

social ela fala. A seleção dos acontecimentos, a seleção das palavras e até

mesmo a falta de interdição em relação ao corpo, que pode a qualquer

Page 35: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

34

momento ser exposto à violência, aos poucos, vão revelando a forma como ela

se situa no mundo.

Uma vez, a gente jogou bola aqui no colégio de tarde. Era

apostando dinheiro, só que ninguém sabia, os diretores,

ninguém, era tudo escondido. Eram as meninas do colégio X

contra nós. Na hora de pagar, as meninas daqui perderam e

não quiseram pagar e começaram a dizer que não poderiam

pagar, porque não podia fazer jogo apostando dentro da

escola. Mas se elas ganhassem, elas iriam querer o dinheiro.

As meninas do colégio X ameaçaram furar a gente, elas

esperaram a gente aí fora. A primeira que saísse elas iriam

furar. A gente teve que ficar até a noite, o diretor chamou a

polícia e disse que a gente só deveria sair quando a polícia

chegasse. A gente falou que não ia ficar porque, eu pelo

menos, não tinha nada a ver com isso. Eu falei pra ele que eu

ia embora, porque o dinheiro da aposta estava todo na mão de

uma menina, essa menina pegou e foi embora escondido, foi

pra casa dela, ela quem puxou a briga e deixou a gente aí. A

gente foi lá pro campo, essas meninas começaram a falar que

elas iam furar a gente. Porque elas não eram molecas pra

gente fazer isso com elas. O diretor quis interferir, mas as

alunas não deixaram. Às vezes, eles tentam ajudar, mas a

gente não colabora.

Alunas de outras escolas estavam na quadra de esporte. O que significa

que o acesso às dependências da escola é livre. Era uma competição

esportiva, em que apostaram dinheiro e não havia um professor de educação

física, nem ninguém da equipe pedagógica da escola. Durante o jogo, alguma

situação mais violenta poderia tranquilamente virar uma tragédia. Nem mesmo

a presença do diretor, depois que aconteceu o conflito entre as alunas,

conseguiu contornar a situação. Foi necessário chamar a polícia e as alunas da

Page 36: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

35

escola não obedeceram ao que ele estabeleceu. A situação que se seguiu ao

jogo poderia ter terminado em uma manchete de algum jornal sensacionalista.

O funcionamento de uma escola deveria ser regido por normas e regras

que valorizassem não apenas a interação de cada aluno na sala, mas também

a convivência social dele com as outras turmas e com a instituição como um

todo.

A situação relatada por esta aluna deixa ver que a escola não tem suas

próprias estratégias para estabelecer uma estrutura mínima de convivência em

seu espaço. Os indivíduos que transitam por lá, com seus corpos expostos à

violência, sem garantias, assumem a identidade de sujeitos violentos, afinal,

nada garante que a narradora e suas colegas não reagiriam aos anunciados

atos de violência. Neste sentido, todas as alunas envolvidas neste

acontecimento estavam passivas de “furar” ou ser “furada”.

A escola, onde aconteceram os fatos narrados, é uma das maiores

escolas públicas da cidade, funciona em três turnos: manhã, tarde e noite, com

mais de dois mil alunos regularmente matriculados. As salas iniciam o ano com

mais de 40 alunos. A maioria dos professores trabalha em mais de uma, de

duas ou até mesmo de três escolas da rede pública. Uma parte destes

professores possui contratos temporários e muitas vezes, não passam mais de

um ano letivo na escola. A equipe pedagógica, por sua vez, resume-se ao

diretor, a uma vice-diretora e a duas orientadoras educacionais.

Com este quadro tão reduzido, não se pode esperar uma escola

envolvida de perto com as práticas sociais dos alunos, nem mesmo com

aquelas que acontecem no espaço escolar. As iniciativas positivas, que

Page 37: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

36

acontecem nesta escola, são em função de atitudes isoladas de professores,

que mesmo com um cenário tão desfavorável, resolvem fazer a diferença.

A escola é uma das mais importantes instituições sociais. Acredita-se

que, nela, os jovens viveriam em segurança. Os professores e a equipe

técnica, em tese, acompanhariam os principais movimentos dos alunos no

espaço escolar. Embora a narrativa da aluna materialize uma realidade

bastante inesperada, as expectativas sociais, em relação à escola, incluem

estratégias de controle dos acontecimentos em que os alunos estariam

envolvidos. O que aparece nos discursos dos alunos entrevistados revela como

esta escola está desestruturada para tratar do manejo de conflitos em seu

espaço.

1.4. Memória Discursiva

A fala da aluna, que relatou o episódio na quadra da escola, coloca em

circulação uma memória discursiva que retoma outros acontecimentos, como

por exemplo, as matérias dos jornais sobre violência, os noticiários da TV. Ela

constitui suas condições de produção na atualidade e mostram a que memórias

discursivas eles estão filiados.

É possível que o desconforto com relação à violência se dê pela

dificuldade das escolas, em geral públicas, em trabalhar com temas

relacionados ao medo e à agressividade no universo escolar. Mas as

estatísticas mostram que é cada vez urgente a escola sair desta “suposta

neutralidade”, já que seu silêncio, de certa forma, reforça a violência, e encarar

seu papel social, partindo para o enfrentamento desta situação

Page 38: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

37

As condições de produção de um discurso da violência no ambiente

escolar levam em conta os sujeitos, a situação e a memória discursiva. É esta

última que torna possível toda formação discursiva fazer circular formulações

anteriores. Trata-se de um saber que torna possível todo o dizer e que retorna

como pré-construído, “já dito” noutro momento e lugar conferindo ao dizer a

sua sustentabilidade. Ou conforme nos diz Maingueneau (1998, p.96), celebre

linguista e proeminente estudioso no campo do discurso, que “o discurso é

recoberto pela memória de outros discursos” e se apóia em uma tradição, mas

cria pouco a pouco a sua tradição. Para Jean Jacques Courtine (1981, p. 72):

Toda produção discursiva se efetua em determinadas

condições conjunturais de produção e remete, põe em

movimento e faz circular formulações anteriormente já

enunciadas, como um efeito de memória na atualidade de um

acontecimento.

Courtine (1981) considera a memória e o esquecimento indissociáveis.

Pêcheux também contribui com seus estudos sobre memória e nos diz que a

memória é o lugar do conflito, da tensão, da retomada. Não há memória fixa.

Não há memória sem esquecimento, pois só retomamos o que perdemos.

Para Pêcheux (1990, p. 56):

Uma memória não poderia ser concebida como uma esfera

plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo

conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de

um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de

divisões, de disjunções, de desdobramentos e de retomadas,

de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos,

replicas, polêmicas, e contra-discursos.

Page 39: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

38

O autor entende memória como um espaço móvel e não heterogêneo.

Ele também considera memória discursiva como “aquilo que, face a um texto

que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ [...] de

que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”.

Contudo, a memória não seria este depósito de implícitos, pois o

acontecimento discursivo novo desloca e desgruda os implícitos. Pêcheux

postula uma espécie de jogo de força da memória entre a regularização

(estabilização parafrástica) e a desregulação da rede dos implícitos.

Janine Bendorovicz Trevisan (2000, p. 33), em seus estudos sobre as

formações imaginárias do sujeito italiano adverte que a “memória não é uma

simples lembrança de um passado”, o que considera uma concepção

imobilista. Na sua visão e na de Pêcheux o acontecimento do discurso é o

ponto de encontro entre uma memória e uma atualidade.

Em seus estudos sobre o efeito de memória, Courtine (1981, p. 53)

aborda a relação entre interdiscurso (tempo longo de uma memória) e

intradiscurso (tempo curto da atualidade de uma enunciação). Para o autor, a

“memória discursiva “relaciona a existência histórica do enunciado aos sentidos

das práticas discursivas reguladas pelos aparelhos ideológicos”.

Trevisan (2000, p. 35) nos diz que:

Em síntese, para se falar de memória discursiva, é necessário

falar do processo de construção de sentidos e do efeito de

realidade que eles produzem, é preciso buscar também pistas

ou marcas que indiquem a presença do interdiscurso no

intradiscurso, analisando a memória e sua relação com o

esquecimento.

Page 40: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

39

Mas a memória discursiva não é um sistema fechado.

Só por sua existência todo discurso marca a possibilidade de

uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos:

todo discurso é um índice potencial de uma agitação nas

filiações sócio-históricas de identificação na medida em que ele

constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um

trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou

não, mas de todo modo atravessado pelas determinações do

inconsciente)... (PÊCHEUX ,1997, p. 56)

Hoje, reanalisando o episódio acontecido na quadra da escola,

compreendo que a fala da aluna é resultado de conjuntos discursivos que lhe

são anteriores e que foram, por ela, internalizados em função da questão sócio-

histórica a que todos estão submetidos. Filiam-se a uma memória discursiva.

Mas como estão inseridos no jogo da história, por mais austeras que sejam as

relações de poder em que estão envolvidos estes “alunos violentos”, a verdade

que a mídia e a própria realidade constrói sobre eles, sempre poderá ser

revista. As identidades são sempre provisórias.

Page 41: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

40

Capítulo 2

Discursos sobre a Violência

A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.

(Jean-Paul Sartre)

Desde os primeiros registros históricos do Ocidente, há narrativas que

dão conta de atos “violentos”. Os discursos sobre violência estão

materializados em diferentes realidades e se filiam a diversas redes de

memória. Eles se constituem entre a regularidade e a instabilidade dos

sentidos que lhes são dados pelas condições em que são produzidos. No

Império Romano, atirar pessoas às feras fazia parte do cotidiano e, nestas

circunstâncias, não eram considerados atos violentos. Em nossos dias, os cada

vez mais famosos embates de Vale Tudo, em que lutadores já saíram mortos

dos ringues, parecem desafiar os sentidos de violência no Ocidente.

Na escola, até os anos de 1970, mesmo nas grandes cidades, o uso da

palmatória não era considerado com ato violento. Há poucas décadas, educar

crianças era sinônimo de castigar, quando faziam alguma coisa errada. Não faz

muito tempo que a palmatória era usada nas escolas, ou então uma criança

Page 42: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

41

mal comportada era colocada virada para a parede, usando um chapéu de

burro.

Dentro da tradição literária brasileira, há uma grande quantidade de

romances que tratam da realidade das escolas e revelam muitos

acontecimentos em que alunos e professores protagonizam situações de

violência no ambiente escolar. No romance “O Ateneu”, de Raul Pompéia, por

exemplo, trata-se de uma narrativa na primeira pessoa, em que o personagem

Sérgio, já adulto, conta sobre seu tempo de aluno interno no Colégio Ateneu. A

ação do livro transcorre no ambiente fechado e corrupto do internato, onde

convivem crianças, adolescentes, professores e empregados. Toda a trama se

organiza a partir de acontecimentos que envolvem o ambiente escolar.

Estes são apenas alguns exemplos de atos violentos que ilustram a

história da violência nos espaços escolares e eram usados com o objetivo de

“educar” as crianças. Neste capítulo, analiso como estes diferentes discursos

sobre a violência atravessam os estudos sobre violência na escola.

2.1. A violência na escola e seu regime de verdade

Nos dias de hoje, quando a sociedade brasileira deixou de acatar as

agressões físicas sofridas por crianças e jovens como procedimentos

educativos, depois da criação do ECA-Estatuto da Criança e do Adolescente,

as escolas tiveram que repensar seus métodos e a palmatória, assim como os

castigos corporais já não são mais aceitáveis.

O processo que conduziu a estas mudanças conceituais em relação à

violência na escola, entretanto, não ocorreu sem tensões. Durante

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42

praticamente toda a segunda metade do século XIX e até na atualidade, são

intensos os debates sobre as formas de “punição” mais apropriadas. Há uma

longa discussão entre professores, educadores, pedagogos, sociólogos, pais

de alunos e outros profissionais do ensino.

O fenômeno da violência nas escolas tem assumido proporções tais, que

a escola, em várias situações, fica sem saber que medidas tomar. Todavia, tem

se tornado cada vez mais difícil compreender o espaço escolar como um

campo de reflexão e ação, voltada para a construção de uma cultura de paz e

cidadania nas escolas.

Segundo Márcio Ferrari e Cynthia Costa (2009), especialistas em

violência nas escolas, pesquisas do Instituto Cidadania e da Fundação Perseu

Abramo mostram que “a violência é o tema que mais preocupa os brasileiros

entre 15 e 24 anos (55% do total), à frente de emprego (52%) e da Educação

(17%)”. O que se percebe é que o fenômeno da violência está cada vez mais

presente no horizonte das novas e futuras gerações, porém as escolas ainda

não compreenderam que precisam realizar uma intervenção pedagógica.

Além da mudança de currículos, métodos de ensino e manuais didáticos,

há propostas pedagógicas que defendem a criação de novos regulamentos

escolares, de modo a instituir uma relação "civilizada" entre mestres,

funcionários e alunos.

Em termo de legislação, no Brasil, uma das primeiras regulamentações

sobre a violência escolar, instituída em 1854, abolia a prática dos castigos

corporais. A primeira lei geral de ensino do Império, de 1827, não estabelecia

os castigos corporais como uma prática aceita, mas também não os interditava.

Em função deste silêncio do Estado, sem infligir a lei, estes castigos eram

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43

aplicados e dividiam as opiniões das famílias e dos educadores. O

Regulamento de 1854, que promoveu diversas mudanças nas regras

anteriores, estabelecia, no lugar dos castigos físicos, punições que iam da

repreensão e realização de tarefas fora do horário escolar à comunicação aos

pais para castigos maiores e expulsão da escola.

Segundo Luiz Fernando Conde Sangenis (2008, p. 1), estudioso em

Educação no Brasil:

Alguns pais, entretanto, tentavam burlar a lei que já não mais

mencionava os castigos físicos, chegando por vezes a

consenti-los por escrito. Não havia consenso entre educadores,

higienistas e pais e mesmo depois da lei de 1854, muitos

professores ainda recorriam aos castigos físicos, o que

causava conflitos com a Inspetoria e os delegados de

Instrução. Para implantar o novo modelo disciplinar baseado na

argumentação e em regras morais, o Estado passou a incluir o

tema na seleção e formação dos professores, além de punir os

que descumpriam a lei.

Apesar da nova orientação oficial implementada na época, os castigos

físicos ainda foram praticados por muito tempo, como pode ser constatado nos

periódicos da época, que também noticiavam acontecimentos relacionados à

violência praticada por professores e técnicos. O que pela lei deveria “ter se

encerrado em 1854 ou até mesmo em 1827, conviveu, ainda que relegada,

com as novas práticas”. (Sagenis, 2008, p. 1).

Outros atos, que hoje são considerados violência, mas que foram

instituídos pelo Estado, são os castigos psicológicos, que apareceram como

opção em detrimento ao físico. Esta modalidade, cuja ação se efetua de

Page 45: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

44

maneira mais sutil, já que não deixa marcas explícitas no corpo, traz outros

efeitos ao indivíduo.

Segundo a ABRAPIA (Associação Brasileira Pais, Infância e

Adolescência), pode-se caracterizar violência psicológica como rejeição,

depreciação, discriminação, desrespeito, desqualificação, negligência, bullying

(intimidação, perseguição e isolamento da criança), omissão de

responsabilidades e punições exageradas. (ABRAPIA, 2005).

Por fim, as interdições sociais em relação à violência estão

profundamente relacionadas àquilo que Foucault (2007) analisa como verdade

social:

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a

múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de

poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua

“política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela

acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as

instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros

dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as

tendências e os procedimentos que são valorizados para a

obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo

de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2007,

p. 05)

Atos de violência assumem traços particulares, principalmente em

lugares que predominam culturas heterogêneas e de organização social

complexa – como no caso do Brasil –, seja em suas formas materiais ou

simbólicas. A violência é um fenômeno que se faz presente em contextos

diversificados, inclusive no ambiente escolar, tal como os meios de

comunicação em geral estão a divulgar diariamente. Corroborando com

Page 46: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

45

Foucault, os regimes de enunciação que são colocados em circulação servem

para estabelecer o nexo entre as pretensões mais gerais das autoridades e as

práticas cotidianas, “cada sociedade tem seu regime de verdade”.

2.2. Regras de vida da sociedade: os espetáculos da mídia acerca da

violência

Numa primeira leitura, as definições de violência são conflituosas entre

si, porque se propõem a estabelecer um sentido único para um fenômeno

multi-determinado, que para ser entendido necessita ser compreendido em

suas particularidades históricas e culturais. Segundo o Dicionário Houaiss

(2001), violência vem a ser a “ação ou efeito de violentar, de empregar força

física (contra alguém ou algo) ou intimidação moral contra (alguém); ato

violento, crueldade, força”. No aspecto jurídico, o mesmo dicionário define o

termo como o “constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém, para

obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem; coação”.

No entanto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define violência

como “a imposição de um grau significativo de dor e sofrimento evitáveis”

(Conselho Regional de Medicina, 1998). Mas estudiosos afirmam que a

definição é muito mais ampla e ambígua do que essa mera constatação de que

a violência é a imposição de dor, a agressão cometida por uma pessoa contra

outra; mesmo porque uma definição de dor também coloca em circulação uma

série de aspectos subjetivos difíceis de definir.

De acordo com Ana Carolina Machado Ferrari (2011, p. 01), especialista

em Educação Inclusiva e no fenômeno da violência:

Page 47: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

46

Na comunidade internacional de direitos humanos, a violência

é compreendida como todas as violações dos direitos civis

(vida, propriedade, liberdade de ir e vir, de consciência e de

culto); políticos (direito a votar e a ser votado, ter participação

política); sociais (habitação, saúde, educação, segurança);

econômicos (emprego e salário) e culturais (direito de manter e

manifestar sua própria cultura). As formas de violência, que são

definidas como violação da lei penal, como assassinato,

seqüestros, roubos e outros tipos de crime contra a pessoa ou

contra o patrimônio, formam um conjunto que se convencionou

chamar de violência urbana, porque se manifesta

principalmente no espaço das grandes cidades.

Corroborando com a autora, a violência urbana não compreende apenas

os crimes hediondos, mas todo e qualquer efeito que provoque sobre as

pessoas e as regras de convivência na sociedade. A violência urbana intervém

no tecido social e prejudica a qualidade das relações sociais, ou seja, a

qualidade de vida das pessoas. Observa-se que a cidade pode ser um local

onde se gera e também por onde se pode erradicar a violência, pois é nela que

estão englobadas as regras de vida da sociedade, e todo efeito que pode

provocar sobre seus indivíduos.

Marilena Chauí (2000, p. 337), filósofa e historiadora da filosofia

brasileira observa que:

Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força

física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir

de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é

violação da integridade física e psíquica, da dignidade humana

de alguém. Eis que o assassinato, a tortura, a injustiça, a

mentira, o estupro, a calúnia, a má-fé, o roubo são

considerados violência, imoralidade e crime.

Page 48: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

47

De acordo com a autora (1999, p. 03), “a violência se opõe à ética,

porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade,

como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou

passivos”.

A antropóloga e coordenadora do Núcleo de Pesquisas das Violências

(NUPEVI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Alba Zaluar (2000),

observa ser próprio da violência perturbar acordos e regras que pautam as

relações, o que lhe confere uma carga negativa. Enfim, a violência gera

sofrimento, causa danos físicos e psicológicos, humilhação, desespero,

desamparo, desesperança e anuncia a barbárie onde todos podem ser vítimas.

A violência assume traços particulares, principalmente em lugares que

predominam culturas heterogêneas e de organização social complexa – como

no caso do Brasil –, seja em suas formas materiais ou simbólicas. Este é um

fenômeno que se faz presente em contextos diversificados, inclusive no

ambiente escolar, tal como os meios de comunicação em geral estão a divulgar

diariamente.

O discurso sobre a violência pode ser discutido a partir de múltiplas

variantes, que se materializam na violência contra a mulher, na violência das

facções criminosas, na violência familiar e até na violência escolar.

A violência, no Brasil, não é presente somente nas grandes cidades.

Hoje, a violência tem estado de forma muito presente no dia-a-dia da

população em geral, seja em noticiários veiculados pela mídia, em conversas

com amigos ou por alguém que sofreu algum tipo de violência. E como bem

apontam os dados de violência contra mulher, no Brasil, ela não é restrita a

uma classe social, embora circule na mídia e nas escolas um discurso

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48

estabilizado sobre o perfil de pessoas violentas que está associado ao baixo

poder aquisitivo.

A dificuldade das instituições de segurança pública em conter o

fenômeno da violência contribui decisivamente para a degradação urbana, uma

vez que a pobreza, a desigualdade social e o decrescente acesso popular à

justiça e a impunidades dos mais ricos no sistema judiciário não são mais

problemas exclusivos das grandes metrópoles. As causas da violência têm

diferentes procedências e demandam diferentes atitudes do Estado e da

sociedade civil, como um todo, para serem superadas.

Estudiosos afirmam que a violência urbana pode ser evitada desde que

políticas de segurança públicas e sociais, que não traduzam as desigualdades

econômicas do país, sejam colocadas em ação. A compreensão de que a

violência é um problema da sociedade, não significa substituir as funções do

Estado, mas trabalhar em conjunto para diagnosticar, identificar as causas e os

motivos da violência.

Atualmente, a sociedade passa por sérios conflitos relativos aos valores

humanos e atitudes, tal como o culto ao consumismo, o individualismo, o que

dificulta a concretização de uma educação comprometida em formar cidadãos

que estabeleçam formas interativas mais harmônicas à comunidade onde

vivem. Em meio a esta crise, um importante elemento ganhou destaque na

formulação dos discursos sobre a violência e sobre os atos de violência, a

mídia. Kellner (2001), líder teórico da cultura da mídia em geral nos diz que:

Os espetáculos da mídia demonstram quem tem poder e quem

não tem, quem pode exercer força e violência e quem não.

Dramatizam e legitimam o poder das forças vigentes e mostram

aos não-poderosos que, se não se conformarem estarão

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49

expostos ao risco de prisão ou morte. Para quem viveu imerso,

do nascimento à morte, numa sociedade de mídia e consumo,

é, pois, importante, aprender como entender, interpretar e

criticar seus significados e suas mensagens. (KELLNER, 2001,

p. 10)

Nos próximos capítulos, falarei mais especificamente sobre desta

relação da mídia com a violência escolar.

O espaço escolar, em que convivem diferentes sujeitos, tais como

estudantes, educadores, técnicos e outros segmentos com os quais nos

deparamos diante de narrativas acerca de ações violentas, e que são

estruturadas a partir de um indivíduo agressor (podendo ser reprodutor de

agressões sofridas anteriormente) e uma vítima, há que se observar que tais

discursos oferecem múltiplas possibilidades de análise no campo da educação

interdisciplinar, quer na perspectiva da responsabilidade social quer na forma

de controle e superação da violência no âmbito escolar.

2.3. A violência nas escolas

A dificuldade em definir um discurso homogêneo sobre a violência,

também é observada no âmbito da violência escolar. Para Reinaldo Pontes

(2007, p. 74), pesquisador do fenômeno da violência e criador do Observatório

da Violência na Escola no Pará: “a discussão acerca da problemática da

violência nas escolas, efetuadas por teóricos das diferentes áreas das Ciências

Sociais, é extremamente heterogênea e, em alguns casos, até conflitantes”.

Pontes (2007, p. 74-83) faz referência aos estudos realizados nos

Estados Unidos sobre violência na escola, em sua avaliação, “os tipos de

Page 51: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

50

violências mais comumente trabalhados centram um olhar sobre o fenômeno

das gangues e da xenofobia”. Na literatura norte-americana, também temos

autores como Hayden (2002), Blaya e Debarbieux (2002) que utilizam termos

como delinqüência juvenil para caracterizar atos ilegais ou potencialmente

sujeitos a medidas penais. Flannery (1997) refere-se a termos como agressão,

conflitos e condutas.

Em relação à Inglaterra, nos estudos sobre a violência “há um

complicador adicional ao fato de que no dicionário, o vocábulo violência tem

como indicador apenas a violência física” (PONTES, 2007, p. 83). Neste

sentido, toda a violência psicológica sofrida por estudantes e por que não dizer

também professores e técnico estaria fora das análises sobre a violência na

escola.

Para Pontes (2007, p. 85), o estudioso Bernand Charlot (2002) é um dos

autores que aponta dificuldades em definir violência escolar. Para Charlot

(2002, p. 432), célebre professor filósofo francês dedicado aos estudos das

relações com o saber, principalmente a relação dos alunos de classes

populares com o saber escolar nos diz que a violência escolar se remete a

“fenômenos heterogêneos, difíceis de delimitar e ordenar”, mas também porque

desestrutura “as representações sociais que têm valor fundador: aquela da

infância (inocência), da escola (refúgio de paz) e da própria sociedade

(pacificadora no regime democrático”.

Charlot (2002, p. 434) amplia o conceito de violência escolar,

classificando-a em três níveis:

a. Violência: golpes, ferimentos, violência sexual, roubos,

crimes, vandalismos; b. Incivilidades: humilhações, palavras

Page 52: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

51

grosseiras, falta de respeito; c. Violência simbólica ou

institucional: compreendida como a falta de sentido de

permanecer na escola por tantos anos; o ensino como um

desprazer, que obriga o jovem a aprender matérias e

conteúdos alheios aos seus interesses; as imposições de uma

sociedade que não sabe acolher os seus jovens no mercado de

trabalho; a violência das relações de poder entre professores e

alunos. Também o é a negação da identidade e da satisfação

profissional aos professores, a obrigação de suportar o

absenteísmo e a indiferença dos alunos.

Os estudos realizados por teóricos norte-americanos, franceses,

ingleses e brasileiros acerca da violência nas escolas procuram dar ênfase em

aspectos específicos de cada sociedade em questão.

Para Charlot (2002) é preciso, inicialmente compreender que existem

variações nesta relação entre escola e violência. Para eles existe a “violência

na escola, a “violência à escola” e a “violência da escola”:

A violência na escola é aquela que se produz dentro do espaço

escolar, sem estar ligada à natureza e às atividades da

instituição escolar: quando um bando entra na escola para

acertar contas das disputas que são as do bairro, a escola é

apenas o lugar de uma violência que teria podido acontecer em

qualquer outro local. Pode-se, contudo, perguntar-se por que a

escola, hoje, não está mais ao abrigo de violências que outrora

se detinham nas portas da escola.

A violência à escola está ligada à natureza e às atividades da

instituição escolar: quando os alunos provocam incêndios,

batem nos professores ou os insultam, eles se entregam a

violências que visam diretamente à instituição e aqueles que a

representam. Essa violência contra a escola deve ser analisada

junto com a violência da escola: uma violência institucional,

simbólica, que os próprios jovens suportam através da maneira

como a instituição e seus agentes os tratam (modos de

Page 53: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

52

composição das classes, de atribuição de notas, de orientação,

palavras desdenhosas dos adultos, atos considerados pelos

alunos como injustos ou racistas...).

Esta distinção é necessária: se a escola é largamente (mas

não totalmente) impotente face a violência na escola, ela

dispõe (ainda de margens de ação face à violência à escola e

da escola.(CHARLOT, 2002, p. 434-435)

Por que se preocupar com tais distinções? Não podemos ignorar que

estas distinções orientam os professores e pesquisadores para pensarem a

relação efeito e causas da violência, e também os leva a pensar

preventivamente sobre o que fazer com cada situação. “Devemos perguntar

por que a escola, hoje, não está mais ao abrigo de violências que outrora eram

detidas em suas portas”, e o que “legalmente” pode a escola fazer face a essas

situações.

Contrariando a perspectiva histórica da construção social da violência,

muitos pesquisadores da área e a própria opinião pública pensam a violência

como um fenômeno novo, que teria surgido nos anos 1980 e se teria

desenvolvido nos anos 1990. Basta um olhar um pouco mais atento, no

entanto, para atestar que a violência na escola não é tão nova assim. Para

Charlot (2002, p. 432):

No “século XIX, houve, em certas escolas de 2º Grau, algumas

explosões violentas, sancionadas com prisão. Da mesma

forma, as relações entre alunos eram freqüentemente bastante

grosseiras nos estabelecimentos de ensino profissional dos

anos 50 ou 60.

Em todas as suas possíveis variações, a violência na escola não é um

fenômeno radicalmente novo. Basta lembrar os castigos duros a que eram

Page 54: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

53

submetidos os alunos que descumpriam as regras. Por outro lado, não

podemos desconsiderar que a escola, embora possa representar um espaço

de mudanças, ela traduz as práticas culturais das sociedades.

Durante a última Ditadura Militar, no Brasil, que teve início em 1964, as

práticas de tortura foram instituídas pelo próprio Estado. Neste período, tanto

nas universidades, como nas escolas, as práticas de violência autorizadas

faziam parte de todas as instituições brasileiras.

O que podemos afirmar sobre a atualidade é que a violência na escola

ganhou novos formatos, que materializam o momento histórico em que

vivemos, porque a sociedade brasileira passou por muitas transformações.

2.3.1. A violência na escola e seu novo sentido: o bullying

Educar um aluno, no século XXI, tem se tornado algo muito complicado,

devido à ausência de modelos e de referenciais educacionais. Os pais

mostram-se cada vez mais atrapalhados na educação das crianças, estão

ocupados e focados com o mercado do trabalho e pouco tempo dispõem para

dedicarem-se aos filhos. Esta responsabilidade, por sua vez, é atribuída

exclusivamente à escola, aos psicólogos, ou, em caso de famílias de menor

poder aquisitivo, muitas vezes, os filhos são entregues à própria sorte.

O que se observa, atualmente, é que as famílias possuem grande

dificuldade de educar seus filhos emocionalmente e, tampouco, sentem-se

preparadas para resolver conflitos por meio do diálogo e da negociação de

regras. Muitas vezes dizem um “não” arbitrário ou um “sim” permissivo, sem

fundamentação, sem nem entender o que acontece na vida do filho. Tomam

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54

decisões que não estão pautadas no diálogo, na compreensão, na tolerância,

no limite e no afeto.

As escolas também vêm se mostrando inabilitadas a trabalhar com a

afetividade. Os alunos mostram-se agressivos, reproduzindo muitas vezes a

educação familiar, seja por meio dos maus-tratos, do conformismo, da exclusão

ou da falta de limites revelados em suas relações interpessoais.

Os educadores não conseguem detectar os problemas, e muitas vezes,

também demonstram desgaste emocional com o resultado das várias situações

próprias do seu dia sobrecarregado de trabalhos e dos conflitos em seu

ambiente profissional e pessoal. Muitas vezes, devido a isso, alguns

professores contribuem com o agravamento do quadro, rotulando com apelidos

pejorativos ou reagindo de forma agressiva ao comportamento indisciplinado

de alguns alunos.

Não há uma receita de como educar os filhos, pois cada família é um

mundo particular com características peculiares. Mas, apesar dessa

constatação, não se pode ignorar o problema e deixar que acontecimentos

violentos aconteçam, sem que os educadores (um dos primeiros responsáveis

pela educação e orientação dos filhos e alunos) façam algo a respeito.

O número de conflitos relacionais nos espaços escolares é tão elevado,

que eles já são considerados um problema de saúde pública. É preciso

desenvolver um olhar mais observador tanto dos professores quanto dos

demais profissionais ligados ao espaço escolar. Se a escola estivesse

preparada para lidar com estas situações, poderia perceber os primeiros sinais

de violência, procurar neutralizar os agressores e transformar os espectadores

em principais aliados.

Page 56: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

55

A Violência nas escolas diz respeito a todos os comportamentos

agressivos e antissociais, incluindo os conflitos interpessoais, danos ao

patrimônio e atos criminosos, humilhações e demais abusos aos alunos. Logo,

o fenômeno se caracteriza por toda violência física ou não-física, desde os

simples insultos, a fazer piadas e gozar com as crianças, etc. Neste quesito, o

Bullying é uma forma de pressão social, que pode por muitas vezes, acarretar

traumas muito importantes na vida dos alunos que são sujeitos diariamente a

este tipo de maus-tratos.

São inúmeros os casos reais que a mídia tem revelado sobre agressões

sofridas por crianças dentro das escolas que acabaram em grandes tragédias.

Esses muitos casos de agressões e violências entre os alunos, já bastante

disseminados pela mídia, demonstram uma realidade assustadora que muitos

desconhecem, ou não percebem, trazendo à tona a discussão sobre o

fenômeno bullying, o grande vilão de toda essa história. Mas o que é? Quais as

causas? Como prevenir? Segundo Cléo Fante, (2005, p. 28), presidente do

Centro Multidisciplinar de Estudos e Orientação sobre o Bullying Escolar

(CEMEOBES):

Sem termo equivalente na língua portuguesa, define-se

universalmente como “um conjunto de atitudes agressivas,

intencionais e repetitivas, adotado por um ou mais alunos

contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento”. Insultos,

intimidações, apelidos cruéis e constrangedores, gozações que

magoam profundamente, acusações injustas, atuação de

grupos que hostilizam, ridicularizam e infernizam a vida de

outros alunos, levando-os à exclusão, além de danos físicos,

psíquicos, morais e materiais, são algumas das manifestações

do comportamento bullying.

Page 57: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

56

A palavra bullying é derivada do verbo inglês bully, que significa usar a

superioridade física para intimidar alguém. Também toma aspecto de adjetivo,

referindo-se a “valentão”, “tirano”. Como verbo ou como adjetivo, a terminologia

bullying tem sido adotada em vários países como designação para explicar

todo tipo de comportamento agressivo, cruel, intencional e repetitivo inerente

às relações interpessoais. As vítimas são os indivíduos considerados mais

fracos e frágeis dessa relação, transformados em objeto de diversão e prazer

por meio de “brincadeiras” maldosas e intimidadoras.

Já disse, anteriormente, que o fenômeno da violência é polissêmico. Há

muitos significados ou várias formas de exercê-la, indo desde um olhar de

reprovação ou mais agressivo, de uma risada irônica a um golpe mortal.

Segundo Chalita (2008, p. 82), também pesquisador do fenômeno, o bullying é

um comportamento “ofensivo, aviltante, humilhante, que desmoraliza de

maneira repetida, com ataques violentos, cruéis e maliciosos, sejam físicos

sejam psicológicos”.

Para Chalita (2008, p.110), a escola, deve ser um “local de acolhimento

e de estímulo ao desenvolvimento e ao crescimento intelectual, sem desprezar

as necessidades pessoais, sociais e afetivas dos alunos”. Corroborando com o

autor, a escola, um espaço de desenvolvimento social e educacional,

infelizmente, tem se deparado com grandes modificações da sociedade e suas

diferentes formas de violência que prejudicam seu funcionamento, impedindo

que cumpra sua função institucional, que é ensinar.

Além de comprometer a identidade da escola, a violência destrói o

direito dos indivíduos de se tornarem cidadãos. Beatriz Oliveira Pereira (2002),

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57

pesquisadora do Núcleo de Estudos em Violência e Ansiedade Social da

Universidade Federal de Juiz de Fora em seus estudos alerta para o papel

educacional e cultural da escola. Ela afirma que:

A educação e a cultura deveriam tender a eliminar as formas

agressivas de resolução de tensões que provocam as

diferenças individuais. A educação deveria valorizar e

promover os comportamentos de empatia, a negociação verbal,

o intercâmbio de ideias, a cedência de ambas as partes na

procura da justiça, no direito à igualdade de oportunidades para

todos e no direito à diferença de cada um. Educar para a

liberdade com igualdade de direitos e obrigações em que os

direitos de um terminam onde começam os direitos dos outros.

(PEREIRA, 2002, p.11).

O bullying pode variar em intensidade, magnitude, permanência,

gravidade e prejudicar o direito de todos, dependendo do contexto escolar em

que se instala. Instituições escolares sem conhecimento sobre o fenômeno ou

omissas, que admitem comportamentos preconceituosos e discriminatórios,

são o alicerce para que essa forma de violência atinja todos os níveis de

estágio. O contexto escolar abriga o maior índice desses abusos, pois o

preconceito precede as agressões. Palco do desenvolvimento humano desde a

infância, a escola, entrelaça seu objetivo sócio-educacional a atitudes

antissociais ocultas, desencadeadas pelo fenômeno.

Nos últimos anos, na mídia, o bullying passou a ser a explicação para

diversos tipos de violência nos espaços escolares. A mídia tem levado o

bullying para a sociedade com bastante intensidade e esta divulgação é

fundamental para que as escolas sejam levadas a realmente se informarem

sobre o assunto e se responsabilizarem pela prevenção, antes de tudo, e pelo

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58

combate ao bullying. Por outro lado, é importante analisar a forma e o conteúdo

de exposição dos vários tipos de violência pela mídia.

Estudos indicam que as simples “brincadeirinhas de mau-gosto” de

antigamente, hoje denominadas bullying, podem revelar-se em uma ação muito

séria. Causam desde simples problemas de aprendizagem até sérios

transtornos de comportamento responsáveis por índices de suicídios e

homicídios entre estudantes.

Mesmo sendo um fenômeno antigo, mantém ainda hoje um caráter

oculto, pelo fato de as vítimas não terem coragem suficiente para uma possível

denúncia. Isso contribui com o desconhecimento e a indiferença sobre o

assunto por parte dos profissionais ligados à educação. Pode ser manifestado

em qualquer lugar onde existam relações interpessoais.

No capítulo 04, quando analiso a morte de uma aluna em uma escola

pública, um dos argumentos da aluna agressora faz referência ao bullying. Em

sua defesa, para tentar amenizar suas atitudes violentas que culminaram com

a morte da colega de turma, ela alega que há muito tempo era alvos de

chacotas e piadas dentro de sala de aula.

A repercussão da violência na mídia, de forma irresponsável, pode

causar danos irreparáveis a uma comunidade. Por exemplo, o simples fato de

se noticiar uma tragédia em uma escola pública, baseando-se no depoimento

de pessoas do entorno da escola, sem verificar com mais acuidade a situação,

pode acarretar: diminuição no preço dos imóveis naquele local; deterioração da

qualidade de vida da população em virtude do medo e do aumento da

percepção da violência local; fragilização da instituição escolar e das relações

sociais, entre outras questões. Por outro lado, sonegar, omitir ou maquiar

Page 60: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

59

informações sobre crimes pode significar efeitos tão perversos ou até piores do

que os citados acima, incluindo riscos objetivos para a vida das pessoas.

Portanto, ao revelar dados, noticiar eventos criminais e abordar

determinados assuntos envolvendo violência e criminalidade, é preciso pensar

nas conseqüências desse tipo de informação.

A violência nas escolas do Brasil preocupa cada vez mais alunos, pais e

professores. Quem estuda nos colégios particulares parece ser protegido por

um esquema onde se incluem câmeras, crachás eletrônicos e vigias

disfarçados. Nas escolas públicas, é a polícia que garante a segurança dos

alunos, mas apenas do lado de fora. Só que as ameaças, há muito tempo, já

ultrapassaram os muros.

Dependendo dos traços de personalidade e das experiências cotidianas,

a violência na mídia satisfaz diferentes necessidades: "compensa" frustrações

e carências em meio a ambientes problemáticos, ao mesmo tempo em que

oferece "emoção" às pessoas que vivem em áreas menos problemáticas.

Apesar das inúmeras diferenças culturais, os padrões básicos das

implicações ligadas à violência na mídia são semelhantes em todas as partes

do mundo. As "características de recompensa" da agressividade pela mídia são

mais sistematicamente incentivadas do que as formas não agressivas de lidar

com a própria vida, fazendo prevalecer, dessa forma, o risco da violência na

mídia.

Page 61: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

60

Capítulo 3

Análise do Discurso e Mídia: efeitos da história ao vivo

Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e

espetáculos ajuda a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o

tempo do lazer, modelando opiniões políticas e contextos sociais e

fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade. O

rádio, a televisão, o cinema e outros produtos da indústria cultural

fornecem os modelos daquilo que significa ser homem ou mulher,

bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente.

Douglas Kellner

Os discursos da mídia, de forma geral, participam da constituição das

representações sociais, produzindo sentidos, esquecimentos e silenciamentos.

Assim, estes discursos tem fundamental papel no fomento de memórias,

especialmente de memórias institucionais e/ou coletivas. A mídia participa do

processo de produção de sentidos dos fatos, tanto fortalecendo memórias do

passado, como construindo memórias do futuro e, portanto, contribuindo na

constituição do imaginário social.

Com relação a essa movimentação de sentidos que a mídia acaba

instituindo, Gregolin (2007, p. 16) nos diz que:

Esse efeito de “história ao vivo” é produzido pela

instantaneidade da mídia, que interpela incessantemente o

leitor através de textos verbais e não-verbais, compondo o

movimento da história presente por meio da ressignificação de

imagens e palavras enraizadas no passado. Rememoração e

esquecimento fazem derivar do passado a interpretação

contemporânea, pois determinadas figuras estão

constantemente sendo recolocadas em circulação e permitem

os movimentos interpretativos, as retomadas de sentidos e

seus deslocamentos. Os efeitos identitários

Page 62: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

61

Neste capítulo, analiso como a violência na escola é espetacularizada

pela mídia. Mostro como as tragédias que acontecem no ambiente escolar são

uma recorrência em diversas partes do planeta e começo a analisar as

condições de produção históricas dos dois jornais de maior circulação na

cidade de Belém. Procurei mostrar por que há tanto interesse em colocar em

circulação matérias sensacionalistas que evidenciam a violência nas escolas

públicas de Belém.

3.1. Tragédias em ambientes escolares

O que nos parece bastante grave, além da violência em si, é o fato de que as

várias formas de violência, produzidas no cotidiano da sociedade, parecem não

mais indignar à população brasileira. É como se ela fosse "aceita" por todos, a

ponto de a população conviver com esta realidade sem maiores traumas, ou

seja, a própria vida parece não ter maior significado, chegando a ser banalizada.

Matar ou morrer não faz maior diferença

Aida Silva

No início do ano de 2011, um acontecimento discursivo, a tragédia na

escola municipal Tasso da Silveira, em Realengo, na cidade do Rio de Janeiro,

deixou a sociedade brasileira profundamente pesarosa. Wellington Menezes de

Oliveira, ex-aluno, sem nenhuma dificuldade, entrou na escola, atingiu

mortalmente 12 crianças e depois de suicidou.

Page 63: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

62

A fotografia abaixo mostra os momentos que se seguiram à tragédia e o

desespero dos familiares, que desejavam saber notícias sobre as crianças. A

presença do carro dos bombeiros e as fitas de isolamento revelam a tristeza do

acontecimento, sem que para isso haja a exposição dos corpos dilacerados

das crianças assassinadas.

Em outros sites, ou mesmo nos cadernos de polícia dos jornais

impressos, neste momento, era possível encontrar fotografias e até filmes que

mostravam o cenário sangrento em que se transformou a escola. Certamente,

estas fotos com os corpos das crianças mortas, ainda que a lei proíba sua

exibição, tem um público consumidor significativo. Muitas pessoas compram os

jornais impressos por causa dos cadernos de polícia.

No dia da tragédia, em Mendoza, na Argentina, estava acontecendo o

Congresso Mundial sobre Violência Escolar e o Congresso Ibero-Americano

sobre Violências nas Escolas que reunia especialistas no fenômeno da

Violência do mundo inteiro e eu estava presente no Evento. Lamentavelmente,

Figura 01:Tragédia em uma escola pública em Realengo

Luiz Gomes/Futura Press

Page 64: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

63

apenas alguns minutos após a abertura do evento, a mídia começou a

transmitir notícias sobre a tragédia da escola de Realengo.

Em numerosas entrevistas a jornais e redes de rádio e televisão, os

pesquisadores especialistas do mundo inteiro frisaram os sutis indícios de

vitimação de alunos pelo bullying, que requerem ação imediata dos

educadores, como parte da missão escolar de ensinar/aprender a conviver. Da

mesma forma que colegas latino-americanos destacaram também a

necessidade do controle das armas de fogo. Na oportunidade, o Congresso

inteiro reuniu-se com os Observatórios de Violências para avaliação de seus

trabalhos e estabelecimento de novas metas.

Tragédias como a de Realengo, no Rio de Janeiro, sempre provocaram

grande comoção pública, indignação e obviamente, tristeza pelas muitas

crianças perdidas no atentado. Além desses sentimentos, tais fatos provocam

também uma grande cascata de “especialistas”, mobilizados em velocidade

estonteante pela mídia, para dar laudos e explicações quase matemáticas

sobre as motivações do assassino e a exposição sensacionalista dos fatos.

A cultura contemporânea da mídia cria formas de dominação

ideológica que ajudam a reiterar as relações vigentes de poder,

ao mesmo tempo em que fornece instrumental para a

construção de identidades e fortalecimento, resistência e luta.

Afirmamos que a cultura da mídia é um terreno de disputa no

qual grupos sociais importantes e ideologias políticas rivais

lutam pelo domínio, e que os indivíduos vivenciam essas lutas

através de imagens, discursos, mitos e espetáculos veiculados

pela mídia. (KELLNER, 2001, p. 10-11)

Na outra ponta desta história, existem as pessoas que produzem as

diferentes materialidades da mídia. Diante desta situação e dos objetivos da

Page 65: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

64

minha pesquisa, faço duas perguntas: a) qual é a mídia que expõe corpos

dilacerados? e b) quais os corpos que podem ser expostos pela mídia?

No Brasil e no mundo, os casos de violência na escola sempre

ganharam muito destaque na mídia. A tragédia de Realengo, como ficou

conhecido este acontecimento, provocou uma série de discussões sobre as

condições de segurança nas escolas públicas. E, por mais que especialistas se

empenhem em demonstrar os problemas psiquiátricos do assassino, não há

uma explicação plausível que justifique a morte de alunos em sala de aula.

Este tipo de tragédia acontece em diversas partes do mundo. Nos

Estados Unidos, a recorrência destes assassinatos em ambientes escolares

desafia uma sociedade com mecanismos de controles de violência muitos mais

efetivos que os sistemas de segurança no Brasil. A crueldade deliberada

direcionada aos outros gera e alimenta a violência, como podemos observar

pelos massacres em escolas de toda parte do mundo, noticiados pela mídia.

Fante (2005) faz um histórico dos assassinatos ocorridos em escolas

internacionais, de 1997 a 2002:

Em 1997, na cidade de West Paducah, Kentucky, um

adolescente de 14 anos matou a tiros três companheiros de

escola, após a oração matinal, deixando mais cinco feridos. Em

1998, em Jonesboro, Arkansas, dois estudantes, de 11 e 13

anos, atiraram contra a sua escola, matando quatro meninas e

uma professora. Também em 1998, em Springfield, Oregon,

um adolescente de 17 anos matou a tiros dois colegas e feriu

mais vinte. Em 1999, dois adolescentes, de 17 e 18 anos,

provocaram a tragédia de Columbine, em Littleton, Colorado.

Com explosivos e armas de fogo, assassinaram 12

companheiros, um professor e deixaram dezenas de feridos.

Em seguida, suicidaram-se. Ainda em 1999, uma semana após

o massacre de Columbine, em Taber, Canadá, um adolescente

Page 66: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

65

de 14 anos disparou ao seu redor, matando um colega de

escola. Outros massacres ainda foram noticiados na década de

1990, na Escócia, no Japão e em vários países africanos. Em

novembro de 1999, na Alemanha, um estudante de 15 anos

matou a facadas uma professora. Em março de 2000, um aluno

de 16 anos matou a tiros o diretor da escola e depois tentou o

suicídio. Em fevereiro de 2001, um jovem de 22 anos matou a

tiros o chefe de sua empresa; depois se dirigiu à sua ex-escola,

matou o diretor e suicidou-se com explosivos. Na Alemanha,

em abril de 2002, na cidade de Erfurt, um jovem de 19 anos

chacinou 16 pessoas: duas garotas, 13 professores, uma

secretária e um policial que atendeu ao chamado de

emergência; em seguida, suicidou-se. (FANTE, 2005, p. 21-

22).

Estas situações mobilizam a opinião pública no mundo inteiro. E, sem

dúvida, cabe à mídia divulgá-las, mas, a exposição sensacionalista das vítimas,

ou a falta de ética com que estes assuntos são tratados variam de acordo com

os interesses de quem dá a notícia.

3.2. Os sentidos instituídos pela mídia impressa em Belém do Pará

Belém, capital do estado do Pará, considerada como a “Metrópole da

Amazônia” possui uma população de 1 392 031 habitantes (IBGE/2010),

aproximadamente segundo dados do Wikipédia (2010) e está situada às

margens da Baía de Guajará, o principal portão de entrada da bacia

Amazônica.

A capital segundo dados do Wikipédia (2010) está entre as dez cidades

mais movimentadas e atraentes do Brasil. Tem a agitação das grandes

Page 67: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

66

cidades, mas, por sua geografia privilegiada, cercada por rios e baía, ainda

guarda uma intensa relação com as paisagens naturais da região. A população

da cidade é bastante heterogênea, formada, principalmente, por descendentes

de portugueses, africanos e dos índios Tupinambás, nativos habitantes da

região à época da fundação.

No cenário da comunicação, a cidade conta hoje com 06 grandes

emissoras de televisão, três grandes jornais impressos, emissoras de rádio FM

e AM e dois provedores de banda larga, que já levaram a internet a cabo para

todas as regiões da cidade. As redes sociais já começam a demarcar um

espaço considerável, principalmente entre os jovens e já não se pode

estabelecer uma diferença de acesso em função de classes sociais, pois, nas

áreas de periferia da cidade, os jovens acessam de espaços públicos, quer

sejam as salas de internet nas escolas, quer sejam nas lan houses espalhadas

por todos os bairros da cidade.

A Grande Belém configura-se, hoje, como o maior aglomerado urbano

da região, visto que sua expansão urbana gerou um crescimento geográfico

vertiginoso, atingindo uma população de 2,1 milhões de habitantes (estimativa

IBGE/2008). Belém possui o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humana)

entre as capitais nortistas. Segundo o oficial de coordenação da ONU no Brasil,

Jean Bernardini em entrevista ao Portal CT, o IDH é “a contrapartida do

desenvolvimento para além do PIB [produto interno bruto]”. Com este índice, a

ONU analisa não somente o crescimento econômico de uma cidade, estado ou

região, mas a qualidade de vida que esses locais apresentam.

As principais atividades econômicas da cidade estão voltadas para o

setor de serviços. Há quatro grandes universidades na cidade e três grandes

Page 68: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

67

shoppings centers que movimentam intensamente o comércio na região. A

produção industrial é quase inexistente e não há nos espaços da cidade

atividade agrícola consistente. O que significa que o mercado de trabalho

também é bem restrito. De forma geral, a oportunidade de empregos para os

jovens é bastante escassa.

Segundo estudos para a Cartografia de homicídios na cidade de Belém,

Jorge Wilson Pinheiro de Araujo (2008) profere que:

Na última década, a Cidade de Belém, com mais de 2.116

milhões de habitantes (IBGE, 1990), concentrava quase 900

mil pessoas abaixo da linha de pobreza, o que correspondia

43,96% da população, ou seja, quase um milhão de pessoas

sobreviviam com o equivalente hoje a R$ 175,00 (cento e

setenta e cinco reais) por mês. Entre 2004 e 2005, o aumento

do contingente populacional abaixo da linha da pobreza foi de

12,56% no Estado do Pará e de 4,84% na Cidade de Belém.

Ainda em 2005, nada menos que 48% da população ocupada

no Estado do Pará estavam no mercado informal, quer dizer,

haviam mais de 1,5 milhão de pessoas nessa condição. Pior,

mais de um terço da população ocupada, que é de 3,1 milhões,

ganha no máximo um salário mínimo por mês. Na Cidade de

Belém, em 2005, cerca de 400 mil pessoas, ou metade da

população ocupada, estavam no mercado informal. Além disso,

havia quase 130 mil “desocupados”, o que equivalia a mais de

12% da PEA (População Economicamente Ativa). Isso significa

que mais da metade dos trabalhadores da Cidade de Belém,

ocupados ou desocupados, sobreviviam em condições

precárias, sem quaisquer direitos sociais ou trabalhistas.

Nos últimos 20 anos, as políticas públicas não enfrentaram esta situação

e houve pouco investimento na educação e na segurança pública. Tampouco

se criaram estratégias para fomentar a criação de novos mercados de trabalho

Page 69: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

68

na cidade. Diante deste cenário, os índices de violência alcançaram níveis

alarmantes, a falta de perspectiva e a impunidade criaram na cidade uma

grande sensação de insegurança. A desigualdade social parece dividir a

cidade: existe uma Belém que vive os benefícios tecnológicos do início do

século XXI, com seus computadores sofisticados, seus carros confortáveis,

seus apartamentos de luxo e uma outra em que boa parte da população não

tem direito a nada.

A questão da violência urbana não pode mais deixar de ser observada

somente do ponto de vista policial, pois não se podem responsabilizar os

órgãos de segurança pública e simplesmente lamentar o número de vítimas. O

problema afeta a sociedade como um todo, portanto a insegurança é uma

questão social.

Belém é uma cidade da América Latina, de fortes contrastes econômicos

e sociais, apresentando grandes disparidades entre ricos e pobres, uma cidade

híbrida. Naturalmente, todos estes elementos constitutivos também se

traduzem na realidade das escolas da cidade.

Page 70: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

69

3.2.1. Os dois maiores jornais impressos do Pará

Quanto à quarta regra, a da exterioridade: não passar do discurso

para o seu núcleo interior e escondido, para o âmago de um

pensamento ou de uma significação que se manifestariam nele; mas,

a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade,

passar às suas condições externas de possibilidades, àquilo que dá

lugar à serie aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras.

Michel Foucault

O jornal Diário do Pará foi fundado em 1982, pelo jornalista Laércio

Barbalho, pai de um dos políticos paraenses de maior destaque na mídia

nacional, Jáder Barbalho. Ex-governador, ex-deputado, atualmente senador

pelo estado Pará, Jáder responde a uma série de processos de corrupção, já

pediu afastamento do Senado pra não ser caçado e nas últimas eleições,

quando novamente foi eleito com senador, a princípio, foi impedido de tomar

posse, em função da Lei da Ficha Limpa, mas conseguiu reverter na Justiça

esta decisão.

Um dos principais objetivos deste jornal, na época de sua fundação era

levar para as ruas um periódico que desafiasse as dificuldades impostas pelo

regime militar existente na época e ajudar na primeira candidatura de Jáder

Barbalho ao governo. A primeira edição do jornal foi às ruas no dia 22 de

agosto de 1982 e surgia fazendo parte de um cenário político conturbado. A

eleição de Jader Barbalho naquela época para o governo do estado

representava a abertura política e surgia como uma reação contra a ditadura

militar.

Desde sua fundação, O Diário do Pará procurou atingir ao maior número

possível de eleitores. O preço mais barato que os outros jornais e a exploração

de cenas de violência são características deste jornal.

Page 71: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

70

Em 2012, o Diário do Pará completa 28 anos e há 14 anos está sob o

comando de Jader Barbalho Filho. Ele ressalta que um dos maiores desafios

do jornal foi melhorar a relação com sua origem política e emplacá-lo como um

meio de comunicação pluralizado.

Não temos porque negar que três sócios do Diário são

políticos, mas não há mal em ter sócios políticos desde que

tenhamos a pluralidade como meta. O leitor não quer saber

quem é o dono se o produto final for bom, representando todas

as nuances da sociedade. Não adianta se gabar de não ter

político como sócio e vetar A, vetar B, vetar C e se comportar

de forma parcial, defendendo interesses políticos de grupos

partidários e de forma incondicional determinados governos.

(Diário do Pará, 2009)

“A pluralidade como meta” evoca uma neutralidade que contradiz a

história do jornal e, principalmente o apelo sensacionalista das manchetes que

tem por objetivo atingir o maior número possível de eleitores.

O jornal O Liberal, também nasceu de interesse políticos-eleitorais. O

periódico surgiu a partir da iniciativa do ex-militar do exército, Magalhães

Barata, outra grande referência da política local, que durante mais de 20 anos

foi a principal liderança política do estado. Criado em 1946 para dar uma

sustentação ao Partido Liberal (como era chamado o Partido Social

Democrático) e para apoiar a candidatura de Moura de Carvalho ao governo do

estado, o jornal foi criado para neutralizar com os ataques vindos do extinto

jornal Folha do Norte, que lhe fazia oposição.

Em 1966, o empresário Rômulo Maiorana comprou o periódico, que

promoveu grandes transformações na estrutura de O Liberal. Em seis anos nas

mãos dos novos proprietários, em plena Ditadura Militar, assume a posição de

Page 72: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

71

jornal mais lido da região norte e passa a ser distribuído em todos os

municípios do estado e também no eixo Rio-São Paulo. Com os avanços

tecnológicos e a linha editorial mais avançada em relação aos demais jornais,

O Liberal transformou-se em um dos maiores jornais produzidos no Brasil.

Após a morte do empresário, em 1986, o jornal ficou sob o comando do filho

mais novo, Rômulo Maiorana Júnior.

Os dois jornais estão envolvidos com questões políticas, apesar de

terem sido criados em épocas diferentes e também serem voltados para

públicos diferentes. O Diário do Pará carrega um discurso popular e procura

atingir todas as classes sociais, meta que está sendo alcançada e em pouco

tempo se transformou no segundo jornal mais lido da região. No ano de 2000,

para deter o crescimento do Diário do Pará, as Organizações Rômulo Maiorana

- ORM criaram o Amazônia Jornal, com um formato diferente, que a princípio

se propunha a trabalhar com uma linguagem mais popular que O Liberal. Em

2007, no entanto, os dois jornais das ORM unificaram suas redações e

passaram a publicar matérias muito semelhantes.

Hoje, no estado do Pará, a oposição entre os grupos políticos

proprietários dos dois jornais de maior circulação é bastante evidente para a

população. Ao longo destes 20 anos de existência desta concorrência, em

muitas ocasiões, eles polarizaram as discussões e trocaram agressões em

suas editorias e suas reportagens. A disputa eleitoral desenfreada promovida

pelos dois jornais não interdita matérias sensacionalistas que possam alcançar

o maior número possível de leitores.

Na sociedade contemporânea, a mídia pode ser entendida como um

poderoso dispositivo de produção de identidades. As matérias veiculadas são

Page 73: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

72

suportes de leitura que tem como efeito a produção de subjetividades à medida

que apresenta estilos de existência díspares. As páginas destes dois jornais

funcionam como um dispositivo de constituição de identidades.

Em sua tese de doutorado, em que analisa os sentidos do corpo nas

páginas impressas da revista Superinteressante, Niton Milanez (2006, p. 47)

afirma que a experiência da leitura de produtos da mídia “caracteriza uma

experiência da alteridade para os leitores na medida em que se inscrevem num

campo de saberes e códigos preestabelecidos que o atravessam e constituem

sua percepção da “realidade”“.

Segundo Pierre Bourdieu (1997, p. 22), importante sociólogo francês, a

mídia exerce uma forma particular de violência simbólica. Para este sociólogo,

cujas contribuições alcançam as mais variadas áreas do conhecimento

humano, inclusive educação, cultura e mídia, a violência simbólica é uma

violência que se realiza com a cumplicidade dos que a sofrem e dos que a

exercem, uma vez que nesse processo "uns e outros são inconscientes de

exercê-la ou de sofrê-la" Para Bourdieu (1997, p. 141), a guerra de audiência

e a busca insensata pelo furo jornalístico, submetidos à lógica comercial,

produzem "uma representação do mundo prenhe de uma filosofia da história

com sucessão absurda de desastres sobre os quais não se compreende nada

e sobre os quais não se pode nada". O autor considera que existe um

“comportamento cínico na imprensa” e que seu maior efeito se dá na falta de

interesse do público por uma moral. Os meios de comunicação, de modo geral,

colocam para o público determinados temas de seu interesse, como a questão

da violência. As pessoas têm grande parte da realidade social que lhes é

fornecida pela mídia, por empréstimo. A mídia posteriormente apresenta ao

Page 74: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

73

público uma lista daquilo que elege como necessário para opinar, discutir e

comercializar.

A questão da violência é parte dessa lógica jornalística, constituindo o

foco privilegiado da mídia, tanto do ponto de vista do evento em si quanto dos

seus atores e das políticas públicas de contenção da criminalidade.

No próximo capítulo, analiso as matérias que estes dois jornais

veicularam, no dia 18 de junho de 2008, sobre a morte da estudante Soraya de

15 anos, na sala de aula de uma escola pública em Belém do Pará.

Page 75: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

74

O mundo se tornou imagem e as imagens se tornaram

hoje, definitivamente, um ato de mostrar e, portanto, de

demonstração, que se organizam primeiro em torno

das imagens que se dão a ver. Dessa maneira,

constitui-se o cenário do espetáculo midiático, « uma

nova dimensão da realidade se lê através da

universalidade do espetáculo e o homem se faz

essencialmente olhar, em detrimento dos outros

sentidos. » (LE BRETON, 1985, p.203). Isso faz com

que a distância se instale como acontecimento, nesse

caso, infinitamente menos distanciado, fazendo da

imagem um choque ou um jamais-vu, possibilitando a

exploração do horror, nos limites extremos que o ‘ver’

pode proporcionar enquanto realidade dada em seu

aspecto bruto e sua brutalidade.

Nilton Milanez

Page 76: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

75

Capítulo 4

A espetacularização da violência na escola em Belém do Pará

No dia 17 de junho de 2008, dentro de uma sala de aula da Escola

Estadual Renato Conduru, na cidade de Belém, as desavenças entre duas

estudantes culminaram com a morte da adolescente Soraya Marinho, de 15

anos. Eis aí um acontecimento que imediatamente se discursivisou na mídia

local e nacional.

É preciso renunciar a todos estes temas que têm por função

garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta

presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É

preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso

em sua irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em

que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser

repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado, até nos

menores traços, escondido bem longe de todos os olhares, na

poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua

presença de sua origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua

instância. (FOUCAULT, 2000, p. 28)

Ao longo de toda esta dissertação, apresentei uma série de outros

acontecimentos relacionados à violência na escola e procurei mostrar como a

própria definição de violência oscilou de acordo com as transformações por que

foi passando a sociedade brasileira. Os acontecimentos que envolveram as

estudantes Soraya Barbosa Marinho e Edilene dos Santos Gonçalves na

escola estadual Renato Conduru fazem parte de um contexto maior

relacionado à violência na escola.

Page 77: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

76

Retomando as definições de Charlot (2002, p. 434-435) de “violência na

escola”, a “violência à escola” e “violência da escola”, a partir deste

acontecimento, a repercussão na mídia e a posição do poder público, é

possível afirmar que os alunos, suas famílias e os professores envolvidos neste

tipo de situação estão expostos a estas três formas de violência.

A forma como os dois jornais de maior circulação na cidade divulgaram

este acontecimento, somada aos mais altos índices de assaltos e homicídios

registrados na área metropolitana de Belém, naquele ano, causou um “pânico

moral” na população paraense.

Jornal O Liberal, Caderno Polícia, 18.06.2012

O acontecimento

A estudante Soraya Barbosa Marinho, de 15 anos, foi assassinada ontem com duas

facadas dentro da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Renato Pinheiro

Conduru, localizada no bairro de Val-de-Cães, em Belém. A agressora é uma colega de

classe de Soraya. Edilene dos Santos Gonçalves, de 18 anos, foi encaminhada para a

Seccional Urbana da Sacramenta, onde foi autuada em flagrante pelo crime de homicídio

qualificado.

O crime ocorreu por volta das 16h30, dentro da sala 802 da escola. Soraya e Edilene

cursavam a 8ª Série, na turma 8R01. Há algum tempo, elas vinham discutindo por motivos

banais, segundo colegas de classe. Ontem, um alisante de cabelo teria sido o motivo de

mais uma briga que terminou em tragédia. Soraya foi atingida com dois golpes de faca de

cozinha (faquinha de serra), sendo que um dos golpes atingiu a área do pescoço.

O crime ocorreu no horário de aula, e foi o professor quem tentou socorrer a estudante,

mas não houve tempo. Familiares da vítima ficaram indignados e acreditam que o colégio

tenha culpa, já que Edilene saiu da escola no horário do recreio e retornou algum tempo

depois, com a faca. A acusada confessou que não se dava muito bem com Soraya.

Entretanto, ela disse à delegada Ana Rita Reis que não queria matar a adolescente. 'Ela

disse que ouvia uma voz dizendo ‘vai lá e mata’. Mas a intenção, segundo ela, era dar um

susto e fazer com que Soraya a respeitasse', relatou a delegada.

Page 78: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

77

Neste capítulo, analiso como as folhas impressas destes dois jornais

materializaram com palavras e imagens esta tragédia. Não me preocupei em

analisar os mínimos detalhes estruturais dos jornais. Fixei meus olhos nas

fotografias e nos enunciados verbais que mostram como a espetacularização

do corpo da estudante Soraya funcionou como um dispositivo discursivo que

ajuda a forjar uma identidade para o aluno da escola pública na cidade de

Belém.

4.1. Nas páginas de O Liberal

Dividindo espaço com uma fotografia de um momento afetivo entre dois

famosos humoristas da televisão brasileira (Renato Aragão e Dedé Santana),

com uma referência ao Anuário do Pará, uma fotografia do então técnico da

seleção brasileira de futebol e bem ao lado da manchete “Alimentação

consome mais de um mínimo”, a capa do jornal O Liberal, de 18 de junho de

Jornal Diário do Pará – 18.06.2008 – Caderno Polícia

No intervalo da aula, Edilene foi até sua casa pegar um livro de Estudos Amazônicos e

acabou pegando uma pequena faca de serra e a enfiou na “jugular” da vítima. “Tava

com muita raiva, ela me ofendeu, estou muito arrependida, não queria fazer isso, ela

ficou gritando na sala que eu era puta e uma qualquer, fiquei com raiva”, defendeu-se.

As adolescentes estudavam juntas desde o inicio do ano na escola, que fica no meio de

um centro de tensão social (...) O professor Augusto, que estava na sala de aula no

momento do crime afirmou que iniciava a aula, quando percebeu Edilene já indo para

cima da Soraia. “Pensei que fosse algo nas costas, não vi que era uma faca, ainda

segurei a Edilene”, frisou.

Page 79: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

78

2008 trouxe, aos leitores, a imagem de uma estudante, menor de idade, 15

anos, assassinada por uma colega de sala durante a aula em uma escola da

rede pública de ensino de Belém, Renato Pinheiro Conduru.

Em meio a estas imagens e textos que apresentam a crônica do

cotidiano, a morte da estudante ganha cores de naturalidade. Ao mesmo tempo

em que espetaculariza a violência, a mídia também a banaliza. Os efeitos de

sentidos produzidos por esta capa de jornal remontam a uma memória cada

vez mais institucionalizada sobre a violência na escola pública.

Devemos olhar essas materialidades como um nó em uma

rede, que faz da leitura um campo complexo de discursos, de

vidas passadas e contos que ainda estão por vir, num

entrecruzamento de tempo presente, passado e futuro. Mas

para que assim o seja, a obra não pode ser considerada como

uma unidade imediata nem como unidade certa ou

homogênea. (MILANEZ, 2006, p. 22)

Figura 1 – Capa completa do Jornal O Liberal 18/06/2008

Page 80: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

79

A análise da imagem da capa do Jornal confere à adolescente Soraya,

de 15 anos, uma representação hostil. Mostrar um sujeito debruçado ao chão,

ensanguentado, trajando a farda da escola e umas listras (efeito de sombra)

que implicitamente remetem a presença ambígua das grades, que

supostamente representariam a preocupação com a segurança do espaço

escolar. Assim como também remete a um lugar inseguro, em que se faz

necessário a presença de grades. Alunos reféns da violência. Na manchete, há

muito mais uma intenção de sensacionalismo do que o estímulo ao debate e à

discussão.

A importância do acontecimento é revelada na reportagem com a

utilização do destaque na Capa, com fontes em tamanhos grandes e em

negrito “Estudante mata colega durante aula”. Realizando uma análise mais

detalhada, verifica-se que a palavra “durante” foi para marcar que o crime foi

realizado não somente nas dependências da escola, mas dentro de uma sala

de aula, com a presença de um professor.

A seleção dos acontecimentos, a seleção das palavras e até mesmo a

falta de interdição em relação ao corpo, que foi exposto à violência, aos

poucos, vão revelando a forma como o jornal situa o corpo de uma estudante

da escola pública, no mundo.

Na chamada da capa para a matéria completa, no caderno de polícia, há

mais um elemento que reforça este efeito de sentido pautado na banalidade da

violência na escola pública. No mesmo enunciado em que aparece a morte de

Soraya, há também chamada para uma situação de tortura numa penitenciária

no município de Bragança. É como se fossem dois acontecimentos da mesma

ordem, embora um tenha acontecido na escola, supostamente um lugar de

Page 81: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

80

educação e outro na penitenciária, espaço de punição, para onde vão os

criminosos.

Ainda nesta chamada, há outra informação que merece destaque, a

suposta causa do crime, “um alisante de cabelo motivou a nova briga”. Para

aquele tipo de leitor que se limita em ler apenas a capa do jornal, tudo estaria

explicado e as razões seriam internas. O crime foi cometido por um

desentendimento entre duas alunas de escola pública, portanto, “pessoas

violentas”, capazes de se agredir por um alisante de cabelo. A falta de

infraestrutura da escola e a omissão do Estado não participariam das tensões

que culminaram com esta tragédia.

Na matéria do caderno de polícia, a fala do comandante da polícia

reafirma a identidade dos estudantes das escolas públicas, quando aceita a

existência de “escolas violentas”. Trata-se, portanto, de uma identidade

institucionalizada, que não está restrita à mídia, embora os enunciados dos

jornais muita antes de questionar a naturalidade da situação, reforcem este

discurso.

Chamada da capa de O Liberal de 18/06/2008. As duas já não se davam bem há tempos, dizem alunos da Escola Estadual

Renato Pinheiro Cunduru. Ontem, um alisante de cabelo motivou nova briga.

Soraya foi atingida com uma faca de cozinha. Em Bragança, há tortura na cadeia,

denuncia promotora.

(Caderno de Polícia 1,2 e 4.)

Page 82: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

81

No texto, não há qualquer referência ao significativo número de escolas

violentas, 60. A possível estranheza desta informação reside no fato da escola

Renato Conduru não figurar nesta relação. Para Foucault (2004, p. 17-19):

Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de

exclusão, apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo

tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto

de práticas como a pedagogia, é claro, como sistemas dos

livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de

sábios outrora, os laboratórios de hoje. Mas ela é também

reconduzida, mais profundamente, sem dúvida, pelo modo

como o saber é aplicado em uma sociedade, como é

valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.

Nas reportagens da página 03, do Jornal O Liberal do dia 18 de junho

apresenta-se o título “Assassina diz que não era respeitada”, como pode ser

observado na manchete abaixo. O título é expansivo. Usa-se a palavra

“assassina” ao invés de “suspeita” ou “acusada”, já que Edilene ainda não teria

sido julgada para ser considerada, de fato, assassina.

Escolas Violentas

O comandante da Companhia Independente de Policiamento Escolar (Cipoe) da Polícia

Militar, major Janderson Viana, disse ontem que não havia policiamento na Escola Renato

Conduru no momento em que ocorreu o assassinato da jovem Soraya Barbosa Marinho,

de 15 anos. De acordo com ele, a escola não consta da lista de escolas violentas (60)

que o órgão atende.

(Jornal O Liberal, Caderno Polícia, 18.06.2012)

Page 83: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

82

De que lugar fala este jornal que aceita com naturalidade uma relação

com 60 escolas consideradas violentas e estampa uma manchete chamando

uma estudante de assassina? Ao invés de aparecerem enunciados que

questionem a relação de 60 escolas, o que aparece são argumentos que

procuram responsabilizar apenas os alunos pela questão da violência. Como já

dito, no primeiro capítulo, são estes conjuntos de enunciados que compõe um

discurso (FOUCAULT, 2000).

4.2. Nas páginas do Diário do Pará

De acordo com Danilo Angrimi (1994, p. 16) em seu livro “Espreme que

sai sangue: Um estudo do sensacionalismo na imprensa” onde retrata como

jornais sensacionalistas fazem para conseguir o maior número de vendas, a

“manchete deve provocar comoção, chocar, despertar a carga pulsional dos

Figura 02 - Página 03/ Jornal O Liberal

Page 84: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

83

leitores”. Percebe-se que as notícias violentas, geralmente oriundas dos

cadernos de polícia são as que mais fitam o leitor. Observemos a capa do

Diário Polícia do Jornal Diário do Pará e a capa do Jornal O Liberal, ambos do

dia 18 de junho de 2008:

A manchete em caixa alta e negrito Estudante mata colega durante

aula, assim como acontece no primeiro jornal, não esboça qualquer

preocupação ética em expor as duas estudantes. A imagem, sem créditos do

fotógrafo, valoriza o uniforme da escola. Se Edilene estudasse em uma escola

particular, anunciante do jornal, seria que sua imagem seria exposta com o

uniforme da escola, na capa do jornal?

Como já foi dito no capítulo anterior, este jornal é de propriedade da

família do senador Jáder Barbalho. Se, neste momento, ele fosse o governador

Figura 03 - Capa do Diário do Pará,18/06/2008

Page 85: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

84

do estado, será que o uniforme da escola pública seria interditado na capa, ou

a identidade destes alunos não afeta quem está à frente nem do governo

estadual?

O corpo, nos dois jornais em análise, considerado como texto, apresenta

uma série de significações e pode ser lido também a fim de que se tenha maior

conhecimento das características de determinada situação, pois, a partir da

alteração das relações sociais, as representações dos corpos também são

alteradas.

A capa também mostra a faca, objeto do crime utilizado pela estudante

Edilene contra a estudante Soraia Marinho. No título “Estudante mata colega

em sala de aula”, no jornal Diário do Pará não deixa explícito se há ou não a

presença do professor. A manchete apenas afirma que uma estudante matou

outra colega em uma sala de aula.

Na chamada da capa para a matéria do caderno de polícia, aparece uma

referência ao motivo do crime, que não fala no “alisante de cabelo”, mas a

forma como será descrito este acontecimento no caderno de polícia ganha uma

conotação que é bem mais sensacionalista do que a relação que o primeiro

jornal faz das razões da estudante Soraya.

Os cadernos policiais noticiam a violência sim, mas fazem isso com

estardalhaço, com sensacionalismo. Os jornais não se limitam a noticiar o que

Chamada da capa do Diário Polícia do Diário do Pará de 18/06/2008.

Soraia foi morta com duas facadas no pescoço no início de uma aula. A

assassina, uma colega de classe, matou porque a vítima teria zombado dela.

O crime revoltou o bairro de Val-de-Cans.

Páginas 6 e 7.

Page 86: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

85

está acontecendo com o cuidado na apuração das informações. A notícia da

tragédia ocorrida na escola estadual Renato Conduru fala por si só. A notícia é

chocante e forte em sua essência. Não é necessário realçar tanto isso com

exposição de imagens sensacionalistas.

O Caderno de Polícia é o carro chefe deste periódico. No município de

Ananindeua, Grande Belém, este encarte do jornal, com uma linguagem muito

sensacionalista, é vendido à parte. Não se deve, no entanto, supor que esta

violência é consumida apenas pela população

mais pobre da cidade, pois o jornal é lido pelos

mais diferentes segmento da população.

A capa do Caderno de Polícia de 18 de

junho de 2008 (Figura 04) expõe o corpo

ensanguentado da estudante Soraya Barbosa

Marinho. Corpos ensanguentados são

recorrentes nas capas deste encarte e mesmo

que se trate de uma adolescente de 15 anos, dentro de uma sala de aula, não

existe qualquer interdição por parte dos editores do jornal. Muito pelo contrário,

a espetacularização da morte ganha mais audiência em meio a este contexto

escolar.

Esta imagem da estudante, que esteve presente nos dois jornais, retoma

uma memória discursiva que vai além da violência na escola. De forma geral, o

sangue estampada nos cadernos de polícia, retomam imagens de guerra. O

mais grave é que tão recorrentes na mídia, cenas como estas, de extrema

violência, são recebidas já com naturalidade por grande parte da população.

Figura 04 - Capa do caderno de polícia do Diário do Pará

Page 87: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

86

Nas páginas do caderno de polícia não se deve o jornal interessar-se

somente atender a morbidez do leitor por sangue e tragédia, o que impulsiona

o jornal a sua comercialização. O noticiário policial deveria ter compromissos

éticos. Se fosse uma estudante de classe média alta, será que o editor exporia

seu corpo desta forma?

As fontes da reportagem do dia 18 de junho de 2008 do Caderno Diário

Polícia do Jornal Diário do Pará foram especificamente: o colega de turma,

Edilene Gonçalves, Breno Oliveira, a diretora, funcionários da escola, o

professor Augusto e a adolescente Adma Drielly, amiga da vítima. Este jornal

faz a auscultação de testemunhas do acontecimento, com os colegas de classe

e o professor que estavam presentes na sala de aula, conforme trechos do

jornal:

Outro agravante a ser percebido, na reportagem do Jornal Diário do

Pará, são adjetivos depreciativos como “puta” e “uma qualquer”, impressos na

reportagem, demonstrando uma postura mais agressiva e exagerada que o

primeiro jornal. O uso excessivo destes adjetivos funciona como uma

O colega de turma, Breno Oliveira, disse que a vítima era uma pessoa calma e tranqüila,

que a assassina sempre a provocava e já tinha discutido duas vezes com Soraia. “Nós

estávamos terminando o segundo horário de aula, para ir ao intervalo, quando Edilene

falou para Soraia que ia comprar um alisante para o cabelo da vítima, mas a Soraia nem

respondeu, depois saímos para o intervalo, quando voltamos, a Edilene golpeou minha

amiga que morreu na hora”, contou.

No intervalo da aula, Edilene foi até sua casa pegar um livro de Estudos Amazônicos e

acabou pegando uma pequena faca de serra e a enfiou na “jugular” da vítima. “Tava com

muita raiva, ela me ofendeu, estou muito arrependia, não queria fazer isso, ela ficou

gritando na sala que eu era puta e uma qualquer, fiquei com raiva”, defendeu-se.

(Jornal Diário do Pará – 18.06.2008 – Caderno Polícia)

Page 88: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

87

significativa estratégia para construir estereótipos, que reforçam a identidade

violenta destes alunos. Este estereótipos, de certa forma, justifica o tratamento

que a mídia lhes dá, como são violentos, não “merecem” ser poupados das

manchetes sensacionalistas.

Os relatos dos alunos que conheciam as duas alunas, a família de

Soraya, a diretora da escola e o comandante da polícia responsável pela

segurança nas escolas corroboram com este funcionamento dos jornais.

Segundo Gregolin (2007 p.17-18):

Os discursos veiculados pela mídia, baseados em técnicas

como a confissão (reportagens, entrevistas, depoimentos,

cartas, relatórios, descrições pedagógicas, pesquisas de

mercado), operam um jogo no qual se constituem identidades

baseadas na regulamentação de saberes sobre o uso que as

pessoas devem fazer de seu corpo, de sua alma, de sua vida.

Apesar dos dois jornais estabelecerem uma relação de proximidade

entre as histórias contadas aos seus leitores, tais artifícios colaboram com a

estigmatização dos alunos da escola pública, caracterizados como violentos,

agressivos, com um vocabulário “pobre”.

O Diário do Pará de 18 de

junho de 2008 estampou também na

página 06 as imagens da revolta

popular que sucedeu durante a

aparição da agressora Edilene

escoltada pela Polícia com o rosto

coberto por uma túnica branca

durante a saída da escola para a Delegacia (Figura 05). Alunos e funcionários

Figura 05 - A saída de Edilene da escola/ Diário do Pará

Page 89: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

88

aproveitaram a repercussão e a revolta por conta do crime para realizar outras

denúncias. Assim como em “O Liberal” alunos e funcionários reclamaram

principalmente sobre as condições físicas da escola, o policiamento escolar e o

policiamento da área, onde é comum acontecerem assaltos.

Esta imagem (Figura 05) retoma uma cena bastante recorrente, quando

bandidos, em sua maioria pessoas pobres, são capturados pela polícia. A

estudante se preocupa em esconder o rosto.

4.3. Ligando memórias

Esta ordem, que expõe a violência dos alunos da escola pública faz

parte de uma teia de sentidos. A mídia impressa denuncia ou reforça os estes

discursos? A maioria dos jornais noticia a violência nas escolas, apenas

quando acontecem as tragédias, sem a preocupação em fazer matérias de

alerta, de prevenção, de orientação para que essa violência não aconteça.

No período em que fui bolsista no Observatório da Violência da Escola,

na Unama, os pesquisadores só eram chamados pela imprensa, quando

acontecia alguma situação trágica. O cotidiano das atividades do Observatório

não estava presente na mídia com a intenção de prevenção e as próprias

escolas, especialmente as particulares, resitiam muito às pesquisa que

investigam a violência no ambiente escolar.

Os casos de violência nas escolas são retratados de forma isolada, sem

levar em conta o histórico político e social dos alunos e professores, assim

como as condições em que a escola os abriga.

Page 90: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

89

No primeiro capítulo, quando retomei a fala de alunos entrevistados pelo

projeto Observatório, um acontecimento chamou bastante atenção. Numa

situação de desentendimento, depois de um jogo, as alunas ficaram na

eminência de um conflito, que poderia ter culminado também em tragédia. Da

mesma forma como o jornal enuncia a morte com duas facadas, as meninas

daquela escola falavam na possibilidade de serem “furadas” pelas adversárias,

que também eram alunas de escolas públicas.

Em momentos diferentes, com desfechos absolutamente diversos, tanto

nos enunciados dos jornais, como nas falas das alunas podemos observar o

funcionamento de práticas discursivas que se movimentam a partir da

aceitação de que os alunos das escolas públicas são violentos e que seus

corpos estão expostos aos atos de violência. A ameaça das alunas e a morte

de Soraya são acontecimentos que acionam uma memória discursiva, isto é,

eles se repetem e se dispersam em suas irrupções. Guardam suas

regularidades, mas são “nós em uma rede” discursiva.

A densidade histórica em que estes acontecimentos estão envolvidos

remete à condição da escola pública no Brasil de hoje. A aceitação desta

impossibilidade de administração destas escolas em relação à violência se

materializa nas folhas impressas e nas falas dos envolvidos nestes

acontecimentos. Não há interdição em falar sobre este corpo sujeito à

violência, nem de mostrá-lo ensanguentado.

A cultura da mídia também fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de sexualidade, de “nós” e “eles”. Ajuda a modelar a visão prevalecente de mundo e os valores mais profundos. Define o que é considerado bom ou mal, positivo ou

Page 91: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

90

negativo, moral ou imoral. As narrativas pela mídia fornecem os mitos, os símbolos, os recursos que ajudam a construir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje. A cultura veiculada pela mídia fornece o material que cria as identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas produzindo uma nova cultura global. (KELLNER, 2001, p. 09)

Em relação às razões que levaram a estudante Edilene a cometer o

crime, nos dois jornais falam que Soraya a provoca constantemente, durante as

aulas. O que, novamente nos levar a atribuir ao bullyng a responsabilidade pelo

acontecido. No capítulo dois, procurei mostrar como esta “violência simbólica”

atravessa uma série de tragédias em ambientes escolares. Com este

acontecimento na escola pública Renato Conduru não é diferente. Mais uma

vez, podemos observar que as causas se restringem a aspectos internos dos

próprios estudantes e a sociedade não é convidada a se interrogar sobre suas

estruturas, nem a rever a importância da escola pública, que abriga 85% dos

estudantes brasileiros.

Ainda no início do primeiro capítulo desta dissertação, um acontecimento

envolvendo práticas de homofobia, numa escola do Rio Grande do Sul, teve

como desfecho principal, a transferência do aluno agredido para a rede

particular de ensino. Diante da morte de Soraya, a fala da mãe de uma aluna

da escola Renato Conduru retoma este discurso:

Page 92: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

91

A presença da imprensa abre um espaço para que a comunidade faça

denúncias sobre as condições da escola. Mas, assim como aconteceu no Rio

Grande do Sul, ainda que os atos de violência tenham chegado até a mídia, há

um total descrédito em relação à escola pública e até mesmo com a denúncia.

Em suas análises sobre a administração das identidades pela mídia,

afirma Gregolin (2007, p.17-18):

Esses modelos de identidades são socialmente úteis, pois

estabelecem paradigmas, estereótipos, maneiras de agir e

pensar que simbolicamente inserem o sujeito na “comunidade

imaginada”. A sofisticação técnica produz uma verdadeira

saturação identitária pela circulação incessante de imagens

que têm o objetivo de generalizar os modelos. A profusão

dessas imagens age como um dispositivo de etiquetagem e de

disciplinamento do corpo social.

A repercussão na comunidade

Alunos e funcionários da escola aproveitaram o assassinato de Soraya para fazer muitas

denúncias. Uma estudante afirmou que a escola tem muitos alunos envolvidos em

confusão. ‘Aqui no colégio tem briga quase todos os dias, como gangues que não podem se

encontrar. E a diretoria nunca faz nada’, disse a estudante, que preferiu não se identificar.

Segundo ela, a escola está em péssimas condições. ‘A água é muito suja, já vimos até

cobra no banheiro’, denunciou.

Mães de alunos foram para frente da escola e reclamaram também da violência da área.

‘Praticamente todos os dias alunos são assaltados nesta área escolar, que tem três

colégios. É um absurdo. Quando nossos filhos saem para a aula, nós ficamos rezando em

casa, pedindo que nada de mal aconteça’, disse Maria de Nazaré Freitas, mãe de dois

alunos do colégio Renato Pinheiro Conduru.

Chorando, a mãe de outra aluna disse que irá trocar a filha de escola. ‘Já sofremos com

esta violência da rua, e agora ainda acontece um crime dentro da sala de aula. Não

sei mais onde podemos estar seguros, pois no local onde é dada a educação, alguém

é assassinado. Vou mudar de bairro e tirar minha filha dessa escola’, disse uma mãe.

(Jornal O Liberal, Caderno Polícia, 18.06.2012)

Page 93: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

92

O Estado não se pronuncia, nem com promessas de que a situação,

pelo menos naquela escola em que aconteceu a violência, vai mudar. As

autoridades se comprometem apenas em apurar os fatos e punir Edilena, a

aluna agressora. Os pais, por sua vez, não cobram uma atitude do poder

público, assumem a responsabilidade pela situação e resolvem mudar seus

filhos de escola. São situações diferentes, com direcionamentos muito

semelhantes.

4. 4. Docilização, ou o controle às avessas?

Em Vigiar e Punir (2009), Michel Foucault faz uma dura crítica às

escolas francesas autoritárias, analisando aquilo que ele chama de “docilização

dos corpos”. Regras muito austeras e, por vezes, extremamente autoritárias,

fizeram parte do cotidiano escolar por muitos séculos, tanto na Europa, como

no Brasil. Os mecanismos de controle eram bastante opressores e os de

punição extremamente violentos, que iam desde violência verbal, até os

castigos físicos.

Foucault chamava as escolas — assim como os hospitais, as prisões, os

asilos e as fábricas — de “instituições de seqüestro” (Foucault, 2009, p.114).

Para ele, as escolas tinham como finalidade não excluir, mas, ao contrário, fixar

os indivíduos em um grupo, e tinham como prioridade implicar o controle e a

responsabilidade sobre a totalidade ou a quase totalidade do tempo dos

indivíduos. As indústrias os ligavam, por exemplo, a um aparelho de produção

e a escola a um aparelho de transmissão do saber. Essas instituições tinham

basicamente três funções: a primeira era fixar os indivíduos em um aparelho de

Page 94: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

93

normalização dos homens; a segunda, controlar os corpos desses indivíduos,

transformando-os em força de trabalho; e a terceira função consistia na

produção de um poder que mantivesse a ordem social.

Com relação à questão do controle disciplinar desempenhado nas

escolas, Foucault (2009, p. 121-127) apresenta a arte das distribuições para o

controle disciplinar, demonstrando como diferentes técnicas eram, em épocas

passadas, utilizadas também na escola para vigiar e punir os alunos:

A primeira técnica é a da cerca, na qual a idéia do

enclausuramento de si próprio, dentro de uma organização

física, demonstrava a disciplina da instituição; uma outra arte

de controle era a da localização imediata, com cada indivíduo

em seu lugar e, em cada lugar, um indivíduo; para finalizar a

questão do controle, cito a organização seqüencial das

carteiras nas salas de aula. Essa organização fez com que o

espaço escolar funcionasse como uma máquina de ensinar e

também de vigiar, de hierarquizar e de recompensar.

Baseados nestas críticas de Foucault (2009), uma série de trabalhos na

educação seguiram criticando sistemas educacionais repressores, que não

permitiam a criatividade de professores e alunos. O que se observa hoje, no

entanto, é que em algumas situações, parece que a escola migrou para o lado

oposto deste cenário. Há, hoje, uma outra ordem do discurso.

A situação exposta pelo jornal O Liberal deixa ver que, se por um lado a

escola não impôs regras de condutas rígidas que impedissem o ato de

violência entre as alunas, por outro, não tem suas próprias estratégias para

estabelecer uma estrutura mínima de convivência em seu espaço. Não há um

cerceamento austero da conduta dos alunos, nem tampouco normas flexíveis.

Page 95: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

94

Considerações Finais

Nas duas últimas décadas, os índices de violência em ambientes

escolares aumentaram significativamente. Nos jornais de maior circulação no

estado do Pará, não é difícil encontrar notícias sobre alunos que praticaram

atos de violência e, nestas matérias, há uma recorrência de conflitos em

escolas públicas, o que levaria equivocadamente a acreditar que a violência é

uma característica das escolas voltadas à população mais pobre.

O fenômeno da violência, no entanto, como as pesquisas já

exaustivamente demonstraram, não é restrito a nenhuma classe social e atinge

a sociedade como um todo. Conhecer os manejos desses conflitos é um

desafio pedagógico que vai além da dimensão ensino-aprendizagem. Lidar

com conflitos no espaço escolar deveria compor as competências e habilidades

na formação de gestores e professores.

É urgente o redimensionamento de uma política de formação de

docentes e gestores, e na qualificação de ações sócio-pedagógicas do espaço

escolar. Todos estes atores, que compõem o universo escolar, deveriam ter

uma estrutura propícia para poderem desenvolver estas competências e

habilidades.

As matérias sensacionalistas, que, sem nenhum pudor, exploram a

violência impressa nos corpos de alunos das escolas públicas, reforçam o

discurso de que a escola pública e seus alunos são violentos. Segundo a

linguista Simone Hashiguti (2008, p. 71):

O corpo, em sua visibilidade, posiciona discursivamente o

sujeito, sobrederminando seu dizer, direcionando os sentidos e

determinando as formas de relação inter-pessoal.

Page 96: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

95

Compreendido como espessura material significante, “o corpo

é a forma, o espaço e o texto nos quais o sujeito se simboliza,

se representa e é representado, é a linguagem em toda sua

força constitutiva no sujeito”, em seus aspectos de opacidade,

de contradição, de equivocidade.

A exposição do corpo está cada vez mais em cena no espetáculo

midiático da sociedade atual. Não há como adivinhar limites para o corpo que

encena com destaque e provoca perplexidade no pensamento atual. A

associação entre a produção de imagens corporais pela mídia e a percepção

dos corpos/construção de autoimagem, por parte dos sujeitos, é imediata.

Nenhuma outra sociedade na história produziu e disseminou tal volume de

imagens do corpo humano através da mídia como a nossa. Analisar o sentido

que o discurso sobre o corpo adquire na sociedade contemporânea requer,

cada vez mais, um olhar atento sobre as interpelações a respeito do

sensacionalismo ao consumo midiático.

Diante das matérias divulgadas pelos dois jornais sobre a morte de

Soraia, procurei estabelecer os enunciados que compunham um sistema para

separar agrupamentos e elementos que serão tratados como uma unidade

para a construção de significações a partir dos corpos impressos em folhas de

jornais impressos.

Não me propus a realizar um estudo da história da produção editorial

dos dois jornais, não objetivei compará-la com outros jornais do mesmo ou

diferentes gêneros, nem procurei fazer uma investigação mais detalhada no

Portal ORM, a que está associado o jornal O Liberal, nem ao Diário online. Não

intencionava fazer um levantamento exaustivo da história dos dois jornais. Meu

Page 97: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

96

objetivo era observar como eles ajudavam a reafirmar uma identidade de

sujeitos violentos para os alunos das escolas públicas da cidade de Belém.

Eu me voltei para uma prática de uma leitura que constitui a história de

lutas atuais que rondam em torno de uma questão fundamental a este tipo de

pesquisa: Quem é este sujeito que pratica atos violentos dentro do ambiente

escolar. Portanto, meu objetivo foi investigar as estratégias discursivas que

constitui esse “sujeito violento” que nos aparece, sem nenhum pudor, com seu

corpo exposto, de forma tão evidente nos discursos da mídia.

É notório em Belém que, em termos gerais, há uma variação de

intensidade do sensacionalismo nos jornais analisados acerca da matéria em

questão. Dessa forma, esses jornais demonstram, por um lado, postura mais

agressiva e exagerada, e, por outro, repetem fórmulas consagradas por outros

jornais referências em sensacionalismo na medida em que se dispõem a

estampar imagens carregadas de sangue.

O palco da tragédia entre Soraia e Edilene aconteceu dentro da sala de

aula, um lugar onde se busca conhecimento, esperança. Uma ação rápida. Um

professor em sala de aula que somente depois de alguns minutos entendeu o

que estava acontecendo, conseguiu separar as alunas.

Os dois jornais analisados constroem uma imagem muito negativa da

estudante Edilene. Não se falou somente em furadas, falou-se em rixas,

desavenças. Será que o crime foi premeditado? Ela foi a sua casa, com a

desculpa de pegar um livro e retornou com uma faca, aparentemente indefesa,

que só serviria para cortar um pão, como foi mencionado pelos jornais.

Entre o caminho da casa e o retono da escola o ela teria pensado? Em

matar, humilhar e mostrar para todos os seus colegas de classe do que era

Page 98: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

97

capaz, em se vingar de Soraya por conta de uma rixa antiga, da vida que

levava, da situação em que se encontrava? Mas qual era esta situação?

Alguém se interessou em saber as condições psicológicas dela, ou as

condições econômicas em que vivia? São muitas perguntas. As respostas

dadas pela mídia impressa local, através dos dois jornais analisados, ficam

restritas a aspectos internos da situação.

O crime aconteceu. Soraya foi morta de forma cruel e sem direito à

defesa e dezenas de testemunhas presenciaram sua morte, seu desespero. O

jornal O liberal do dia 18 de junho informa que segundo a tia de Soraia,

Rosilene, a mãe já havia participado a escola do problema entre as duas. Será

que se Soraya tivesse mudado de turno estaria viva? Quem responderá por

essa omissão?

E Edilene? Sua vida também terminou? Acredito ser pouco provável

uma recuperação em uma penitenciária, de onde todos os dias os jornais

estampam em suas manchetes detentos querendo fugir, reivindicando

melhores condições e tratamento digno de seres humanos.

Edilene, como sabemos, não terá um tratamento adequado, educação,

saúde. Talvez não tivesse isso de forma eficiente nem fora do presídio. Na

penitenciária, viverá outra realidade, onde as presas fazem suas próprias

regras. Irá conviver com assassinas que têm vários crimes, com extensas

fichas, com mulheres que estão presas por roubo, por tráfico, por aliciamento,

que não são primárias.

É importante observar que os veículos de comunicação colocaram em

circulação informações não comprovadas, mas que levavam a acreditar que a

Page 99: Discursos da mídia impressa sobre a violência na escolas públicas

98

menina que cometeu o crime e a escola eram “perigosas”. Segundo o Jornal O

Liberal de 18 de junho de 2008:

Segundo informações apuradas pela reportagem e ainda não

confirmadas, Edilene (a aluna agressora) já teve passagens

pela polícia quando era menor de idade. Também surgiu a

informação que há traficantes na família da acusada, mas isto

ainda não foi confirmado.

Na penitenciária, Edilene viverá outra realidade. Uma realidade onde

presas fazem suas próprias regras. Irá conviver com assassinas que têm vários

crimes, com extensas fichas, com mulheres que estão presas por roubo, por

tráfico, por aliciamento. A aluna era uma ré primária, apesar do jornal O Liberal

também ter veiculado “segundo informações apuradas pela reportagem e ainda

não confirmadas” que Edilene teria passagem pela polícia.

A conclusão desta situação é que a escola embora até soubesse da

situação entre as duas alunas, não agiu, não estabeleceu medidas disciplinares

que coibissem este tipo de atitude. Esta ineficiência da escola, que pode ser

explicada por muitas razões, que vão do salário do professor, passando pelo

número insuficiente de orientadores escolares, pela precária infraestrutura, e

principalmente, pela aceitação social desta condição de espaço violento.

No ambiente escolar, local onde, supostamente, os alunos deveriam

desenvolver a sua autonomia, senso critico e liberdade de expressão, isto não

acontece. Muitas vezes, a escola torna-se um espaço limitado, padronizado por

um certo processo de desenvolvimento, que acaba transformando-a em uma

instituição apenas reprodutora das desigualdades sociais do país.

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Como será que Edilene está sobrevivendo dentro da penitenciária? Será

que terá uma nova chance um dia ou durante esses anos que já se passaram

está alimentada somente pela violência estampado nas matérias dos jornais

em referência no dia 18 de junho de 2011? E a família de Edilene e Soraia?

Como sobreviveram à perda das filhas? Edilene saiu do “quase nada” para

entrar em lugar que não terá nada. Soraia se foi, ficou apenas a imagem de

uma querida aluna, de uma filha, de uma mulher que perdeu sua vida, de forma

covarde, cruel e sem direito à defesa.

Socialmente, os alunos de escola pública passam a carregar sentidos

bastante negativos e já começam a ser aceitos como “violentos”. É, sem

dúvida, um grande desafio para a escola pública conseguir administrar esta

situação, que por vezes, ela mesma acaba reforçando, quando não consegue

evitar as situações de violência, nem tampouco proteger seus alunos da

exposição impiedosa da mídia.

Segundo a socióloga Maria Cecília de Souza Minayo (1999), dados da

pesquisa Juventude, Violência e Cidadania no município do Rio de Janeiro

mostram que, na opinião dos jovens de 14 a 20 anos, a mídia distorce as

informações sobre violência, ora exagerando, ora omitindo determinados

aspectos essenciais para a compreensão do evento em si. A maioria desses

jovens considera que a mídia mostra somente o que acontece nas favelas e

periferias da cidade, reforçando a discriminação e exclusão vivenciadas pelos

moradores dessas comunidades

A mídia expõe diversos casos de violência nas escolas. Em geral, a

cobertura da mídia, sobre violência na escola, tem foco principalmente nas

escolas públicas e cria uma fantasia em relação às escolas privadas. Este

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silenciamento fabrica uma ficção, pois leva a supor que a violência não existe

nas escolas particulares que abrigam alunos de classes sociais mais

privilegiadas. Entretanto, imaginar a violência como decorrente apenas das

classes sociais mais baixas significa uma grande incoerência, já que,

infelizmente, hoje a violência está presente em todos os segmentos e camadas

da sociedade, seja em escolas públicas ou particulares, seja entre pobres ou

ricos.

Existe um discurso já construído e constituído, e a mídia tem um papel

fundamental nisso, de que a violência é coisa de pobre, de negro, de favelado,

de escolas de periferia e públicas. Não é. A violência é um fenômeno que

atravessa todas as classes sociais de modo indistinto. Se uma escola está

inserida em uma região de risco social, não necessariamente ela é violenta

A responsabilidade da mídia não se restringe somente à veiculação de

fatos que incidem numa mudança de percepção da realidade. A mídia relata os

fatos, mas não contribui com soluções, porque está distanciada da realidade,

comprometida com uma "pauta velha" que se dedica a competir com outros

veículos.

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101

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