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2021 Discriminação porpreconceito implícito GEORGE MARMELSTEIN

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2021

Discriminação por preconceito

implícito

GEORGE MARMELSTEIN

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6A Incorporação do Preconceito Implícito

no Direito da Antidiscriminação

Na primeira parte do presente estudo, foi apresentado o conceito de preconceito implícito e explicado como ele se manifesta em diversas situações da convivência humana. Agora, é preciso investigar quais os possíveis impactos desse fenômeno para o direito da antidiscriminação.

Reconhecer que o preconceito implícito existe e que pode ser a causa de comportamentos discriminatórios é o primeiro passo para compreender a sua relevância jurídica.

Quanto a isso, pode-se dizer que já há um consenso científico suficientemente amplo para justificar o abandono da velha concepção de que todas as decisões humanas são comandadas por uma deliberação racional e autoconsciente.

Há, sem dúvida, informações mentais importantes, que estão fora do radar da consciência, mas são extremamente úteis para compreender o que motiva o comportamento

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humano. E se são úteis para a compreensão das motivações humanas, também são úteis para o pensamento jurídico, já que uma das funções do direito é possibilitar a convivência comunitária, o que pressupõe algum entendimento da psi-cologia comportamental1.

Há duas estratégias possíveis para incorporar os precon-ceitos implícitos no direito da antidiscriminação.

A primeira é mais difícil e, por isso mesmo, não reco-mendável: reformular a base normativa do direito da antidis-criminação para regulamentar formalmente as consequências jurídicas de uma discriminação baseada em preconceito implícito.

A segunda é mais simples: aprimorar os institutos já existentes no direito da antidiscriminação, por meio de pequenos arranjos conceituais, de modo a proporcionar o combate ao preconceito implícito. A tendência dominante tem sido seguir esta segunda trilha, a partir de uma tentativa de incluir o preconceito implícito entre os motivos do ato discriminatório.

Como grande parte da revolução científica provocada pela compreensão da cognição implícita tem ocorrido em universidades norte-americanas, é natural que os debates sobre os impactos jurídicos dessas descobertas também se

1 O direito da antidiscriminação é apenas um dos campos que pode ser afetado pelo avanço da compreensão sobre preconceitos implícitos. As perspectivas de estudo são bem amplas e podem incluir, por exemplo, os efeitos de preconceitos implícitos na interpretação jurídica, na administração da justiça, no comportamento de juízes, jurados, promotores ou advogados, na percepção, memória e credibilidade de testemunhas, na dosimetria da pena, no arbitramento de dano moral e assim por diante. Para uma visão geral, vale consultar KANG & OUTROS, 2012.

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77Cap. 6 • A INCORPORAÇÃO DO PRECONCEITO IMPLÍCITO

desenvolvam primeiramente naquele país. Sendo assim, veremos como esse problema tem sido enfrentado à luz do direito da antidiscriminação norte-americano para, em seguida, verificar o que pode ser aproveitado no modelo brasileiro.

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7O Contexto do Debate Norte-Americano

O estudo pioneiro sobre a “discriminação inconsciente” foi escrito por Charles R. Lawrence III e publicado em 1987 na Stanford Law Review, com o título de The Id, The Ego, and Equal Protection: Reckoning with Unconscious Racism.

Referido artigo é relevante não apenas por ter sido pioneiro no debate sobre a discriminação inconsciente, mas sobretudo pela influência que teve para o desenvolvimento dos estudos jurídicos raciais, dentro do movimento dos Critical Legal Studies, estando incluído entre os dez artigos jurídicos mais citados em toda a história do direito norte-americano (SHAPIRO & PEARSE, 2012).

Quando o texto foi escrito, as pesquisas sobre o pre-conceito implícito ainda estavam em seu início. Por isso, a referência teórica que o autor adotou para desenvolver a ideia de discriminação inconsciente tinha uma base freudiana, cujo conceito de inconsciente tem um significado diferente do que é adotado atualmente pelas ciências cognitivas. Em Freud, o inconsciente tem relação com emoções reprimidas que

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poderiam ser reveladas por análise, introspecção ou terapia. Nas ciências cognitivas contemporâneas, o inconsciente está relacionado com o processamento automático de informações no cérebro, que estão fora do controle do sujeito pensante, não tendo conexão necessária com emoções reprimidas.

A despeito disso, as ideias do autor se aproximam, em diversos pontos, do debate contemporâneo.

Para Lawrence III, a tradicional noção de intenção não reflete o fato de que decisões sobre questões raciais são influenciadas em grande parte por fatores que não podem ser caracterizados nem com intencional – no sentido de que alguns resultados são autoconscientes – nem não intencional, no sentido de que os resultados são aleatórios, fortuitos e não influenciados pelas crenças, desejos e esperanças do decisor.

Para ele, as práticas discriminatórias muitas vezes são produto de um preconceito inconsciente, decorrente de uma repressão pelo ego de um racismo latente que existe no id. É por isso que apesar de o racismo consciente ter declinado em função das normas de combate à discriminação, ainda haveria muitas manifestações de racismo inconsciente que têm preju-dicado o pleno desenvolvimento da população negra.

Diante disso, ele defende que o conceito de discriminação deveria ser reformulado para incluir também as situações em que o tratamento prejudicial ao membro do grupo estigma-tizado decorra dessa falha mental do agente decisor em não conseguir evitar que o inconsciente racista se manifeste, ainda que involuntariamente.

Em termos mais ambiciosos, Lawrence III sugeriu que a demonstração da discriminação não focasse nas intenções ou nos motivos conscientes do agente discriminador, mas no

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significado cultural (cultural meaning) da prática prejudicial aos negros, a fim de verificar se há preconceitos inconscien-tes que podem tê-la motivado. Assim, os juízes deveriam avaliar a possível presença de preconceitos inconscientes nas práticas sociais conforme a sua potencialidade de reforçar estereótipos e estigmas, inferindo, a partir daí, se houve ou não discriminação.

Apesar da influência acadêmica, a tese significado cultural teve pouca acolhida na prática jurisdicional, como foi reconhe-cido pelo próprio autor (LAWRENCE III, 2008). No entanto, o avanço científico a respeito dos impactos do preconceitoimplícito nas decisões humanas reacendeu o interesse peloassunto, especialmente em função das diversas possibilidadesde mobilizar esse conhecimento para embasar casos reais nopromissor setor de litígios do direito da antidiscriminação.

Muitos estudos foram publicados nos últimos quinzes anos para tentar compreender como o avanço do chamado realismo comportamental (behaviorial realism) pode afetar o direito da antidiscriminação. A mensagem dominante é no sentido de que o pensamento jurídico deveria levar mais a sério as mudanças que ocorreram nas ciências cognitivas para reconhecer a presença de fatores inconscientes e não intencionais nos processos de tomada de decisão e construir soluções jurídicas que possam permitir o combate a todas as formas de discriminação, sejam elas baseadas em preconcei-tos explícitos, dissimulados ou implícitos (ver, por exemplo: KRIEGER & FISKE, 20061).

1 As autoras apontam diversos exemplos em a psicologia social já foi utilizada explicitamente para a solução de problemas jurídicos. Por exemplo, no famoso caso Brown v. Board of Education (1954), vários estudos psicológicos e sociológicos foram citados na decisão para demonstrar que um modelo

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7.1 O DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO NORTE-AME-RICANO

Há pelo menos quatro aspectos do direito da discrimi-nação norte-americano que precisam ser compreendidos por um observador externo antes de partir para uma análise mais específica a respeito do debate jurídico sobre os preconceitos implícitos.

O primeiro aspecto é a complexidade do sistema de antidiscriminação, em razão da multiplicidade de fontes jurídicas disponíveis (leis, regulamentos, precedentes etc.) e da multiplicidade de órgãos envolvidos no combate às práticas discriminatórias. O sistema normativo é híbrido e multinível, tendo em vista que uma parte da matéria tem matriz constitucional (fundada especialmente na cláusula da equal protection under the law), outra parte tem matriz legis-lativa (fundada no Título VII do Civil Rigths de 1964, além

de segregação racial nas escolas diminuía a autoestima das crianças negras e prejudicava o seu desempenho educacional. Um estudo de Kenneth e Mammi Clark demonstrou uma diferença no comportamento de crianças negras que estudavam em escolas segregadas em relação a crianças negras que estudavam em escolas não segregadas. As crianças negras que estudavam em escolas segregadas tendiam a preferir brincar com bonecas que possuíam o tom de pele claro, enquanto as crianças negras que estudavam em escolas não segregadas tendiam a preferir brincar com bonecas que possuíam o tom de pele escuro (CLARK & CLARK, 1950). Com base nisso, a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao declarar a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas, assinalou que “separar as crianças negras de outras crianças com a mesma idade e qualificações apenas por causa de suas raças gera um sentimento de inferioridade quanto ao status na comunidade que pode afetar seus corações e mentes de uma maneira que dificilmente pode ser revertida” (no original: “to separate them from others of similar age and qualifications solely because of their race generates a feeling of inferiority as to their status in the community that may affect their hearts and minds in a way unlikely to ever be undone”).

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de outras leis específicas, tanto federais quanto estaduais), outra parte é formada pelo direito judicial (composta por inúmeros precedentes da Suprema Corte e demais tribunais federais e estaduais), outra parte está na esfera das agências reguladoras (fundada sobretudo nos regulamentos expedidos pela Equal Employment Opportunity Commission – EEOC) e outra parte está na zona de livre disposição das pessoas (con-tratos, regulamentos das empresas, programas de compliance antidiscriminatórios etc.).

Para além dessa multiplicidade de fontes e órgãos, o sistema da antidiscriminação norte-americano adquiriu, por várias razões históricas, uma dimensão social, jurídica e econô-mica impressionante.

Anualmente, mais de noventa mil casos de discriminação no ambiente de trabalho costumam ser apresentados à Equal Employment Opportunity Commission – EEOC (ADELE, 2015, p. 1). As ações judiciais envolvendo discriminação no trabalho representam quase 10% de todas as ações civis em tramitação na primeira instância da justiça federal dos Estados Unidos e mais de 20% dos casos julgados em segunda instância (ZI-NOBER, 2005, p. 1).

O impacto econômico direto das ações judiciais que en-volvem acusações de práticas discriminatórias se aproxima de US$ 64 bilhões anuais (BURNS, 2012, p. 1). Além disso, há um impacto indireto decorrente das medidas de prevenção que são adotadas pelas empresas para evitar demandas judiciais e para cumprir padrões de governança corporativa e de respon-sabilidade social que certamente ultrapassa esse montante.

Isso significa que há um campo para pesquisas jurídicas e não jurídicas muito promissor para quem deseja se dedicar

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ao estudo do fenômeno da discriminação e do preconceito nos Estados Unidos. A quantidade de informações acadêmicas sobre o tema é inesgotável em diversos campos do saber, indo do direto à economia, da psicologia à sociologia, da estatística à neurociência, da antropologia à biologia, da computação à administração de empresas. De igual modo, a quantidade de precedentes judiciais envolvendo casos de discriminação é enor-me, exigindo um esforço hercúleo de compreensão, sobretudo para quem não tem familiaridade com as peculiaridades do direito norte-americano.

Outro aspecto que dificulta a compreensão do assunto é a frequente mutabilidade do direito da antidiscriminação, decorrente de uma constante disputa ideológica entre grupos antagônicos que lutam entre si para ampliar ou restringir o âmbito de proteção da igualdade. As soluções jurídicas de cada época costumam variar conforme a força de cada grupo, ha-vendo avanços e retrocessos em questões centrais para o debate, inclusive sobre a prova da intenção de discriminar.

Por fim, outro fator complicador são as especificidades do modelo processual norte-americano, especialmente quando comparado com o brasileiro. Conforme se verá, há diversos debates no direito da antidiscriminação norte-americano que dizem respeito a questões processuais, que, a rigor, não se aplicariam integralmente ao modelo brasileiro.

Para os fins deste estudo, não é preciso entender todas as nuances do direito da antidiscriminação norte-americano, muito menos adentrar nos pormenores do sistema processual. Basta conhecer seus fundamentos básicos a partir dos seus dois modelos paradigmáticos de litígio: o disparate treatment e o disparate impact.

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7.1.1 Disparate Treatment (Tratamento Discriminatório)

O disparate treatment é a forma mais conhecida de discri-minação2. Em termos simplificados, ocorre o disparate treatment quando uma pessoa é prejudicada por motivo preconceituoso. Assim, a demonstração do disparate treatment pressupõe: (a) um tratamento adverso (b) de um membro de um grupo protegido (c) motivado por um fator preconceituoso.

Se o autor da ação conseguir provar de forma direta que a ação do agente discriminador foi explicitamente motivada pela intenção de discriminar ou que o ato foi praticado em conformidade com uma política facialmente discriminatória, o caso é julgado em favor do autor sem maiores complicações.

Porém, como é extremamente difícil produzir uma prova direta da discriminação, já que poucos agentes discriminadores confessam seus motivos e poucas empresas adotam políticas manifestamente preconceituosas, o método mais utilizado para provar o disparate treatment é o da prova indireta, que utiliza elementos circunstanciais e presunções legais da prática da discriminação. Esse modelo de comprovação do disparate treatment foi elaborado a partir da solução de casos judiciais e segue uma estrutura dividida em três etapas sucessivas.

2 O disparate treatment costuma ser traduzido no Brasil como discriminação direta, por influência do direito europeu que adota a dicotomia direct discrimination /indirect discrimination para se referir, respectivamente, ao disparate treatment/disparate impact. Optou-se por evitar o uso da expressão discriminação direta como sinônimo de disparate treatment, dadas as especificidades do conceito no direito norte-americano. Assim, a expressão disparate treatment, quando não usada na sua versão original, será traduzida como tratamento discriminatório. Por sua vez, a expressão disparate impact será traduzida como impacto adverso ou impacto prejudicial ou ainda impacto desproporcional.

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A primeira etapa consiste na demonstração de um prima facie case de discriminação. A existência dessa etapa está inse-rida em um contexto processual muito particular do modelo norte-americano, pois ela funciona como uma espécie de justa causa para o prosseguimento da ação. Assim, para que um caso de discriminação possa prosseguir e passar para a fase seguinte, a vítima da discriminação precisar demonstrar previamente que pertence a uma classe ou grupo protegido e que foi prejudicada por um ato arbitrário do agente discriminador3.

A título ilustrativo, caso um empregado negro seja de-mitido e, em seu lugar, tenha sido contratado um empregado branco, isso por si só já é suficiente para demonstrar o prima facie case de discriminação, embora seja apenas o primeiro passo do debate judicial.

Caso sejam reunidas as condições necessárias para configuração de um caso prima facie de disparate treatment, passa-se à segunda etapa do processo, em que o ônus da prova e da argumentação é transferido ao agente discrimi-nador, que deve demonstrar que o tratamento prejudicial ao membro do grupo protegido não foi motivado por um fator preconceituoso. Assim, por exemplo, no mencionado caso da demissão, o empregador poderá alegar que demitiu o funcionário negro não por ele ser negro, mas por ter co-metido faltas funcionais.

3 A fórmula-padrão adotada para casos de discriminação em seleção de emprego, mas que pode ser adaptada para outros contextos, (promoção, demissão etc.), segue uma estrutura em que o autor deve demonstrar: 1) que pertence a uma classe ou grupo protegido;2) que candidatou-se àquela vaga e estava qualificado(a) para ocupá-la;3) que não foi contratado(a) pelo empregador;4) que o cargo permaneceu desocupado e o empregador continuou a procurar candidato com qualificações semelhantes às do(a) demandante para preenchê-lo.

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Por fim, caso o réu apresente justificativas não precon-ceituosas para o seu ato, passa-se à terceira etapa, em que o autor da ação poderá demonstrar que as razões declaradas pelo réu são meros pretextos para dissimular o preconceito, fornecendo elementos que atestem que o motivo apresentado é falso ou implausível. No exemplo citado, o funcionário negro poderá alegar que o motivo apresentado foi falso, pois as faltas apontadas pelo empregador não teriam sido cometi-das, ou que não é plausível, pois, por exemplo, as faltas teriam sido muito leves e vários outros empregados que também a cometeram não foram demitidos.

Nessa etapa do processo, há uma polêmica sobre quais seriam as consequências da inexistência de razões plausíveis capazes de justificar o ato do réu (lack of good cause). Para os mais liberais, a falta de razões legítimas criaria automaticamente uma presunção de que o ato foi discriminatório e, portanto, o réu poderia ser responsabilizado por sua conduta. Para os mais conservadores, a mera ausência de razões legítimas não justificaria a conclusão de que foi praticada uma discriminação, pois (a) o empregador não é obrigado a confessar ou a revelar todas as suas razões e (b) nem todas as suas razões precisam ser boas razões, dada a sua prerrogativa de decidir sobre o seu negócio. Assim, a prevalecer o entendimento conservador, a ausência de motivos plausíveis e legítimos capazes de justificar o ato não seria suficiente para comprovar a discriminação, ca-bendo ao autor da ação demonstrar a presença de um motivo discriminatório, ainda que por meio de provas circunstanciais4.

4 Esse debate foi explicado por Richard Thompson Ford, que assinalou que a jurisprudência da Suprema Corte costumava aceitar que a mera falta de boas razões (lack of good cause) já seria motivo suficiente para inferir a prática da discriminação, mas houve uma virada para se entender que seria preciso que

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Outra polêmica interessante, que terá bastante impacto no debate sobre preconceito implícito, refere-se às situa-ções em que há diversos motivos, legítimos e ilegítimos, capazes de justificar o ato (mixed-motive discrimination). Muitas vezes, o ato prejudicial a um membro de um grupo protegido é justificado com razões legítimas e ilegítimas ao mesmo tempo.

Por exemplo, no caso da demissão antes citada, o empre-gador pode ter demitido o empregado porque ele cometeu as faltas funcionais e, ao mesmo tempo, porque é negro. O enten-dimento dominante é no sentido de que, se as razões ilegítimas (motivadas por algum critério preconceituoso proibido) tiveram um papel substancial naquela decisão prejudicial, então o ato deverá ser considerado como discriminatório, ainda que existam outras razões legítimas que possam justificar o ato. Ou seja, o empregado deve provar não apenas que alguma razão ilegítima pode ter motivado o ato, mas também que o empregador não teria tomado aquela decisão se aquele motivo ilegítimo não existisse (CERULLO, 2013, p. 137).

a vítima demonstrasse algum sinal probatório de que o motivo do tratamento diferencial foi preconceituoso. Dentro desse debate, Ford defende que é preciso encontrar um equilíbrio entre a liberdade do empregador de tomar as decisões que bem entender (inclusive decisões ruins) e a proteção de grupos estigmatizados contra tratamentos prejudiciais motivados por preconceito. Para Ford, o direito da antidiscriminação não proíbe que o empregador tome decisões ruins, nem que sempre tenha motivos fortes para justificar seus atos, mas sim que os motivos sejam preconceituosos. Então, mais importante do que verificar se os motivos para o ato são bons ou ruins, é analisar se está havendo uma distribuição igualitária das decisões prejudiciais, a fim de evitar que uma pessoa seja ainda mais prejudicada apenas por fazer parte de um grupo estigmatizado. Para isso, é preciso verificar se estão sendo adotados mecanismos de salvaguarda, dentro de um custo razoável, para evitar a ocorrência do preconceito (FORD, 2014).

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Assim, no caso da demissão do funcionário negro, se as faltas funcionais, por si só, não fossem suficientes para justificar a demissão, pode-se presumir que o fator racial teve um papel preponderante na decisão, caracterizando a natureza discriminatória da decisão do empregador.

Em síntese, os casos de disparate treatment seguem um roteiro judicial que começa com a demonstração, pelo autor da ação, de um prima facie case de discriminação (etapa 1), passa pela apresentação dos motivos da prática do ato prejudicial cometido pelo réu (etapa 2), e termina com a tentativa de demonstração, pelo autor, de que os motivos apresentados pelo réu são inverossímeis ou implausíveis (etapa 3).

7.1.2 Disparate Impact (Impactos Desproporcionais)

Os casos de disparate impact são estaticamente bem mais raros em comparação com os casos de disparate treatment, representando menos de 2% dos processos de discriminação em tramitação nas cortes norte-americanas (LEE, 2005, p. 494). Em compensação, sua repercussão social costuma ser bem maior, já que o seu ponto focal não é um tratamento discriminatório contra um indivíduo, mas uma prática facial-mente neutra que causa um impacto adverso a todo um grupo protegido (JOLLS, 2007, p. 27)5.

5 Vale ressaltar que tanto o disparate impact quanto o disparate treatment podem ser objeto de discussão em ações individuais ou coletivas. Muitas ações envolvendo o disparate impact são coletivas (class action), pois, na medida em que uma prática facialmente neutra pode atingir vários membros do mesmo grupo, pode ser estrategicamente vantajoso promover uma ação coletiva. Mas nada impede que uma pessoa prejudicada pelo disparate impact promova uma ação individual para defender seus direitos.

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Sua origem está associada à aprovação das primeiras leis antidiscriminação nos Estados Unidos, durante os anos 1960, que proibiram a prática da discriminação racial no ambiente de trabalho. Algumas empresas que adotavam práticas racistas tiveram que rever suas políticas de exclusão e segregação, sendo obrigadas a admitir a contratação de pessoas negras para todos os setores laborais.

O expediente usado por algumas empresas para evitar a contratação de pessoas negras foi adotar um critério de sele-ção supostamente neutro, que, na prática, inviabilizava suas chances de acesso ao emprego. Um artifício comum era exigir do candidato a comprovação de alguns requisitos educacionais (como a conclusão do ensino médio – high-school) ou a apro-vação em testes de inteligência. Embora esses pré-requisitos não fossem facialmente racistas, causavam um impacto adverso desproporcional sobre a população negra, já que os negros, até então, haviam sido obrigados a frequentar escolas de padrão inferior por conta da segregação oficial que existia no sistema de ensino. Por isso, tais exigências “podiam ser lidas como uma placa de ‘apenas brancos’” colocadas nas portas das empresas (JONES, 1974, p. 5).

Diante disso, a Suprema Corte dos Estados Unidos teve que analisar se esse tipo de prática, que não é racista em sua face, mas gera um impacto adverso a um grupo protegido, estaria ou não abrangida pelo direito da antidiscriminação. Já em 1971, no caso Griggs v. Duke Power Co., a Suprema Corte afirmou que esse modelo de contratação, fundado em critério que gerava impacto desproporcional contra os negros e não era necessário às finalidades negociais, seria discrimi-natório, assinalando que “as práticas, os procedimentos ou testes, facialmente neutros em sua aparência e até mesmo

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neutros em termos de intenção, não podem ser mantidos se funcionam para ‘congelar’ o status quo de práticas empregatícias discriminatórias”6.

Desde o caso Griggs, o modelo processual do disparate impact tem passado por constantes reformulações, judiciais e legislativas, tornando-se cada vez mais complexo. Desse modo, será apresentado aqui um quadro bastante geral da dinâmica processual, que também é dividida em etapas em que cada litigante assume alguns ônus probatórios pré-estabelecidos.

Na primeira etapa, o autor da ação deve demonstrar a presença das condições necessárias para a configuração do prima facie case. Para isso, é preciso: (a) identificar a prática específica objeto de litígio, causadora do efeito discrimina-tório, exceto na hipótese da impossibilidade de se decompor as atividades pertinentes, circunstância que permite a con-sideração dessas de um modo global; (b) demonstrar que o impacto diferenciado atinge um grupo específico, protegido pelo princípio da igualdade, por meio de dados estatísticos; (c) demonstrar que a prática identificada efetivamente produz o impacto diferenciado sobre o grupo, também por meio de dados estatísticos (RIOS, 2008, p. 124).

A prova do impacto adverso é indireta, geralmente envol-vendo uma demonstração estatística indicando que a prática adotada pela empresa prejudica, concretamente, o grupo protegido de forma desproporcional.

Essa análise estatística é bastante complexa e tem se tornado cada vez mais sofisticada, incorporando inúmeras variáveis capazes de explicar as correlações entre o modelo

6 Griggs v. Duke Power Co., 401 U.S. 424 (1971) - tradução livre.

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praticado e os efeitos adversos ao grupo protegido. A análise pode incluir, por exemplo, uma comparação de membros de cada grupo dentro da área geográfica em que o trabalho será exercido ou levando em conta a mão de obra qualificada para aquela atividade, bem como quaisquer outros fatores que possam influenciar o resultado de cada variável. O réu, por sua vez, poderá questionar a exatidão ou a interpretação dos dados ou ainda apresentar outros elementos estatísticos que demonstrem que não há o impacto adverso ou a correlação entre a prática e o impacto adverso.

Depois de estabelecido um caso prima facie de disparate impact, passa-se à segunda etapa, em que será dada a oportu-nidade para o empregador justificar a prática acusada de gerar um impacto adverso. Para isso, o réu deve demonstrar que o critério adotado não se baseia, nem mesmo indiretamente, em preconceito, mas na necessidade do negócio (business necessity). A título de exemplo, se uma empresa estabelecer como pré-requisito para a promoção a cargos de direção a exigência de que o funcionário fale fluentemente a língua francesa, é possível, a partir daí, construir um prima facie case de discriminação, se ficar demonstrado, estatisticamen-te, que a referida exigência causa um impacto adverso nos trabalhadores negros. Em situações assim, a empresa poderá justificar o uso desse critério à luz da necessidade do negócio, alegando, por exemplo, que os diretores da empresa precisam constantemente se comunicar com fornecedores estrangei-ros, e que a língua falada nesta comunicação é o francês, o que justificaria a adoção daquele critério de seleção. Assim, embora a prática adotada gere um impacto adverso a um grupo protegido, não seria propriamente discriminatória, pois haveria um objetivo legítimo que lhe dá sustentação.

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Ultrapassada a fase em que o réu deve justificar sua prá-tica, o ônus argumentativo e probatório retorna para o autor da ação, que poderá demonstrar que os motivos apresentados são meros pretextos para discriminar, ou então que existe uma solução alternativa menos discriminatória (less discriminatory alternative) que poderia ser adotada sem custos irrazoáveis para o empregador e que satisfaz ao propósito desejado pela necessidade do negócio7. O empregador, por sua vez, pode demonstrar que a proposta não é viável, ou tem um custo desproporcional, ou não atende com a mesma eficiência a necessidade do negócio.

Após todo esse debate, se ficar comprovado que a prática adotada gera um efeito adverso a um grupo protegido, não é essencial para a atividade ou pode ser evitada ou substituída por uma alternativa menos prejudicial, restaria caracterizada a responsabilidade do réu, mesmo que não houvesse uma prova cabal da intenção de discriminar.

Conforme se nota, apesar de suas diferenças intrínse-cas, os dois modelos de litígio descritos acima adotam uma estrutura probatória dinâmica e relativamente complexa, que funciona como um jogo de narrativas (FORD, 2014), baseado em regras de suspeições, presunções e distribuição dos ônus probatórios relativamente bem definidas em cada etapa. Ao final, vence aquele que conseguir montar a narrativa

7 Em alguns casos, admite-se outra possibilidade ao empregador diante da apresentação de uma alternativa menos prejudicial ao grupo protegido: se a empresa aceitar aquela solução menos prejudicial e se comprometer a adotá-la dali em diante, a responsabilidade pretérita estaria afastada. Há outras decisões, contudo, no sentido de que a apresentação de uma solução alternativa menos prejudicial não afastaria a responsabilidade civil pelos impactos discriminatórios já causados.

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mais convincente a partir do maior número de elementos circunstanciais disponíveis, dentro do que lhe é exigido em cada fase do processo.

7.2 O PRECONCEITO IMPLÍCITO NO DEBATE JURÍDICO NORTE-AMERICANO

O debate sobre a incorporação do preconceito implícito no direito da antidiscriminação norte-americano costuma girar em torno de quatro tópicos: (a) saber se a intenção e a consciência do agente discriminador é essencial para a caracterização da prática discriminatória; (b) verificar se o preconceito implícito pode ser incluído como um dos fatores motivadores da discriminação; (c) analisar qual a melhor forma de provar a discriminação por preconceito implícito, incluindo a conveniência de serem usados testes de medição das associações automáticas e as possibilidades de participação de experts no debate judicial; (d) explorar as medidas que podem ser adotadas para evitar a influência de preconceitos implícitos nos processos decisórios e como isso pode afetar a responsabilidade decorrente do dever de não-discriminar.

Antes de analisar cada um desses tópicos, é preciso des-fazer um erro muito comum que está presente até mesmo nos manuais norte-americanos.

Costuma-se caracterizar o disparate treatment como uma discriminação consciente e intencional, e o disparate impact como uma discriminação inconsciente e não-intencional, o que pode levar a uma falsa associação entre preconceito implícito e disparate impact. Na verdade, nada impede que o disparate impact constitua uma prática discriminatória consciente e intencional e que o disparate treatment seja

Page 21: Discriminação por preconceito implícito...formas de discriminação, sejam elas baseadas em preconcei-tos explícitos, dissimulados ou implícitos (ver, por exemplo: KRIEGER & FISKE,

95Cap. 7 • O CONTEXTO DO DEBATE NORTE-AMERICANO

motivado por fatores inconscientes e não-intencionais. A consciência ou a intenção do agente discriminador pouco tem a ver com os conceitos de disparate treatment ou de disparate impact.

Sobre isso, Audrey J. Lee menciona que essa tendência de vincular o implicit bias com o disparate impact pode ser um problema de estratégia nas ações de antidiscriminação, tendo em vista as dificuldades de vencer uma causa de disparate impact. No aspecto probatório, é difícil identificar a prática neutra que está causando o impacto adverso, bem como demonstrar, estatisticamente, a correlação entre a prática e o impacto, dada a sofisticação exigida para validar esse tipo de prova. Por isso, ela acredita que é possível que o mecanismo mais adequado para enfrentar o implicit bias seja em ações de disparate treatment, de caráter individual, onde se poderia am-pliar o conceito de motivo para incluir os motivos derivados de preconceitos implícitos ou mudar o conceito de pretexto, para possibilitar a refutação das razões apresentadas pelo empregado com a demonstração de influência de motivos preconceituosos inconscientes como fator causal do tratamento prejudicial (LEE, 2005, p. 490/492).

Para verificar como o conceito de disparate treatment ou de disparate impact não é afetado pela intenção ou não do agente discriminador, vale conferir alguns exemplos.

Se uma empresa, com o objetivo de discriminar imigran-tes, adota como pré-requisito para a contratação de novos funcionários a comprovação de um tempo mínimo de moradia no país, tem-se um prima facie case de disparate impact, em função dos impactos adversos que causará em relação aos imi-grantes, e intencional, pois o critério “neutro” foi estabelecido conscientemente como um mero pretexto para discriminar.