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2014 Curitiba Coleção CONPEDI/UNICURITIBA Organizadores PROF. DR. ORIDES MEZZAROBA PROF. DR. RAYMUNDO JULIANO REGO FEITOSA PROF. DR. VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA PROFª. DRª. VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS-KNOERR Vol. 26 DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS II Coordenadores PROFª. DRª. HELENA ELIAS PINTO PROF. DR. MANOEL MESSIAS PEIXINHO 2014 Curitiba

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2014 Curitiba

Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Organizadores

Prof. Dr. oriDes Mezzaroba

Prof. Dr. rayMunDo Juliano rego feitosa

Prof. Dr. VlaDMir oliVeira Da silVeira

Profª. Drª. ViViane Coêlho De séllos-Knoerr

Vol. 26

DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS II

Coordenadores

Profª. Drª. helena elias Pinto

Prof. Dr. Manoel Messias Peixinho

2014 Curitiba

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Nossos Contatos

São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Conselho Editorial

D597Direitos sociais e políticas públicas II

Coleção Conpedi/Unicuritiba.Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.Coordenadores : Helena Elias Pinto/Manoel Messias Peixinho.Título independente - Curitiba - PR . : vol.26 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014.494p. :

ISBN 978-85-8433-014-0

1. Saúde. 2. Educação. 3. Previdência - trabalho.I. Título. CDD 341.2722

Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica

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MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza

Vice-Presidente Aires José Rover

Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu

Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen

Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim

Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular)

Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores

Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão

Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC

Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

DiagramadorMarcus Souza Rodrigues

XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBACentro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

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Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................

A DIVERSIDADE E O PLANEJAMENTO: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA O PLANEJAMENTO URBANÍSTICO PARTICIPATIVO PLURAL (Frederico Garcia Guimarães) ...................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A DIVERSIDADE .........................................................................................................................................

O PLANEJAMENTO ....................................................................................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A PESSOA EM CONDIÇÃO ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO E A EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL (Maria da Glória Colucci e Marta Marília Tonin) ................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A PESSOA EM DESENVOLVIMENTO .........................................................................................................

O ESTATUTO: DIALOGANDO COM A LEI MAIOR ......................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A TEORIA GERAL DO GARANTISMO E A ESTRITA LEGALIDADE APLICADA A DIREITOS SOCIAIS: O EXEMPLO DA LEI 12.010/2009 (Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto) .............................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A TEORIA GERAL DO GARANTISMO .........................................................................................................

AS MUDANÇAS PROVOCADAS PELA INTRODUÇÃO DO GARANTISMO JURÍDICO EM UM MODELO DE POSITIVISMO CLÁSSICO ......................................................................................................................

A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LEI 12.010/2009 COMO UM EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA ESTRITA LEGALIDADE E A LIMITAÇÃO POSITIVA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL .................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

A TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E OS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE (Marcos de Oliveira Vasconcelos Júnior) ...................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

TERCEIRIZAÇÃO ........................................................................................................................................

TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ...............................................................

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TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE ..............................................................................

TERCEIRIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE POR MEIO DE ORGANIZAÇÕES SOCIAIS ....................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIA ..............................................................................................................................................

CRISE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: CONSIDERAÇÕES SOBRE OS FATORES QUE COMPROMETEM A PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS E BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS (Raul Lopes de Araújo Neto) ...............................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

MUDANÇAS SOCIAIS: CRISE DO BEM ESTAR SOCIAL E O ESTADO REGULADOR ...................................

A INEFICIÊNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ...........................................................................

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL: A ESCASSEZ DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS E A VIOLAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO (Ivan Dias da Motta e Luiz Fellipe Preto) ...............................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL ...................................................................

A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL JUNTO AO TEXTO CONSTITUCIONAL DE 1988 ............................................................................................................................................................

O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ...............................

O DIREITO À EDUCAÇÃO E A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL ...............................

O DIREITO À EDUCAÇÃO E O CÓDIGO PENAL ..........................................................................................

DA CARÊNCIA DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS. CARÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS? ...............................

DA INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO PARA CONSECUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM FACE DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL .....................................................................................................

DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA INERENTE À OBRIGATORIEDADE DE VAGAS EM CRECHES E PRÉ-ESCOLAS PARA EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

DIREITO SOCIAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CASO BRASILEIRO (Aline Maria Hagers Bozo e Bárbara Guasque) .....................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

AS DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................................................................

OS DIREITOS SOCIAIS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ................................................................

OS DIREITOS SOCIAIS ................................................................................................................................

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O DIREITO SOCIAL À SAÚDE .....................................................................................................................

COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERADOS QUANTO À SAÚDE .................................................................

O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL FRENTE À EFETIVIDADE DA PRESTAÇÃO ESTATAL ......................................................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

EDUCAÇÃO AMBIENTAL ENQUANTO INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE (Andreza de Souza Toledo) ......................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

EDUCAÇÃO AMBIENTAL ...........................................................................................................................

OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 ...................................................................................................................................

EXPRESSÃO DA LEI Nº 9.795/1999 ............................................................................................................

EXPRESSÃO DA LEI Nº 12.608/2012 E REFLEXOS NA LDB – LEI Nº 9.394/1996 .......................................

O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO QUANTO À EDUCAÇÃO AMBIENTAL, INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL ...................................................................................................................

POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL ......................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: CONSEQUÊNCIAS (Carlos Luiz Strapazzon e Maria Helena Pinheiro Renck) .............................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

OS EMBARAÇOS ADMISTRATIVOS ARBITRÁRIOS E O DANO MORAL POR OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA .....................................................................................................................................

EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS ....................................................................................

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ...................................................................................................

QUANTUM INDENIZATÓRIO: PRESSUPOSTOS DE UM CÁLCULO JUSTO ...............................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA: REQUISITOS EXIGIDOS AO MUNICÍPIO PARA LEGITIMAR A ADOÇÃO DAS ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS NO TEMPO (Hertha Urquiza Baracho e Sulamita Escorião da Nobrega) ...................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

CONSTITUIÇÃO, PROPRIEDADE, FUNÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO ...........................................

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CONTORNOS CONCEITUAIS DAS FUNÇÕES DOS TRIBUTOS ..................................................................

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO IPTU NO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL ..........................................

DEFINIÇÃO DE PROGRESSIVIDADE ..........................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O DIREITO À MORADIA COMO OBRIGAÇÃO ESTATAL NO CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO (João Emilio de Assis Reis) .....................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DIREITO À MORADIA: NOTAS HISTÓRICAS ..............................................................................................

OS DIREITOS SOCIAIS NO TEXTO CONSTITUCIONAL ..............................................................................

A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS E AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO E A OBRIGAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO CONCERNENTES AO DIREITO DE MORADIA ..................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................

O DIREITO À PARTICIPAÇÃO POPULAR E OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS: A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO PREVISTA PELA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA PARA A COPA DO MUNDO DE FUTEBOL DE 2014 (Alex Feitosa de Oliveira) .....................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A PARTICIPAÇÃO POPULAR .........................................................

OS MEGAEVENTOS E AS OBRAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA ........................................................

A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PREVISTA NA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL .

O CASO DAS OBRAS DO VLT DE FORTALEZA E A INFLUÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR ...................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O DIREITO À SAÚDE: EQUIDADE VERSUS ALTA COMPLEXIDADE (Sandra Maciel-Lima e Miguel Kfouri Neto) ..........................................................................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

DESIGUALDADE VERSUS EQUIDADE .......................................................................................................

SUS: UNIVERSALIZAÇÃO E INTEGRALIDADE EM ANÁLISE .....................................................................

A INTEGRALIDADE E A ALTA COMPLEXIDADE NO SISTEMA DE SAÚDE .................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

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O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE E A RESPONSABILIDADE DO CIDADÃO (Rogério Gesta Leal e Daniela Menengoti Ribeiro) ..............................................................................................................

OS POSSÍVEIS CONSENSOS SOBRE OS DEVERES FUNDAMENTAIS À SAÚDE NO BRASIL ..........................

O DIREITO À SAÚDE NA DIMENSÃO INTERNACIONAL DO DESENVOLVIMENTO HUMANO ...................

A GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DE UM CASO CONCRETO ....

REFLEXÕES ACERCA DO CASO ANALISADO .............................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O DIREITO SOCIAL À MORADIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL (Rogério Luiz Nery da Silva e Thuany Klososki Piccolo) ..............................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E LEGISLATIVA ....................................................................................................

POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL .................................................................................

VISÃO CRÍTICA DO PROBLEMA ................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL É COMPATÍVEL COM A GLOBALIZAÇÃO?! (José Vagner de Farias)

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

LIBERALISMO, SOCIALISMO E AS ORIGENS DO “ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL” ...............................

NEOLIBERALISMO E GLOBALIZAÇÃO ......................................................................................................

A CRISE CAPITALISTA DO “ESTADO DO BEM ESTAR SOCIAL”, GLOBALIZAÇÃO E REFORMAS ..................

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

O SISTEMA JUDICIAL DE PROTEÇÃO À CULTURA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO, POLÍTICAS PÚBLICAS E LEGISLAÇÃO PARA A CULTURA: ASPECTOS GERAIS DE UM SISTEMA JURÍDICO CULTURAL (Gustavo Rosa Fontes) ..............................................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O CARÁTER COLETIVO DO DIREITO À CULTURA E A TUTELA COLETIVA JUDICIAL ................................

POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS CULTURAIS .........................................................................................

A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA, LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO, PROMOÇÃO E INCENTIVO À CULTURA, E A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 71/2012 ..........................................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

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BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................

O TRABALHO PENOSO DOS BANCÁRIOS: ADOECIMENTO, GRAVOSIDADE E DESIQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES LABORAIS (José Ricardo Ceatano Costa e Liane Francisca Hüning Birnfeld) ...............................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

O AMBIENTE DO TRABALHO COMO PARTE DO AMBIENTE COMO UM TODO ......................................

GÊNESE DA APOSENTADORIA ESPECIAL .................................................................................................

LABOR E NOCIVIDADE: APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE TRABALHO PENOSO ..............................

A PENOSIDADE VISTA PELA ÓTICA DO TRABALHADOR BANCÁRIO .......................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E O PROCESSO DE INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO E DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA (Érica Fernandes Teixeira) .....................................................................................................................................

OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E A INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL ......

O PAPEL DAS POLÍTICAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA .......................................................................

AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO .......................................................

CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................

REFERENCIAS ............................................................................................................................................

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NO BRASIL: UMA VERTENTE PARA NOVAS PERSPECTIVAS (Marco Antonio Lorga e Co-autoria Prof. Dr. Paulo Ricardo Opuszka) .....................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A MICRO E PEQUENA EMPRESA NA ORDEM ECONOMICA BRASILEIRA ...............................................

A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL 2008-2009 ............................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

POR UMA NOVA INTERPRETAÇÃO EM BUSCA DA EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS FRENTE À SOCIEDADE DO RISCO (Lucas Antônio Bueno) ....................................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

A SOCIEDADE DE RISCO E A EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ....................................................

A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A NOVA INTERPRETAÇÃO NEOCONSTITUCIONAL: EM BUSCA DOS OBJETIVOS SUSTENTÁVEIS DA REPÚBLICA ..................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

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REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

REFORMA POLÍTICA E DEMOCRACIA: A IMPLEMENTAÇÃO DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS COMO GARANTIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA (Heyde Medeiros Costa Lima e Andréa Micaelle Santos Sousa) ..................................................................

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................

BREVE PANORAMA DAS TENTATIVAS DE REFORMA POLÍTICA NO BRASIL ...........................................

FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS E SUAS IMPLICAÇÕES ...............................

PRINCÍPIO DA ISONOMIA COMO PILASTRA DO FINANCIAMENTO PÚBLICO DOS PLEITOS ELEITORAIS ...............................................................................................................................................

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................

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Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direitos Sociais e Políticas Públicas II, do

XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito

(CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias

29 de maio e 1º de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente

de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos

da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma

reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,

nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela

tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do

processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos

parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN

do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da

Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro

Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,

tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da

produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no

âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a

mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não

apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as

especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a

enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)

aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a

todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-

nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II

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selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido

mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada

em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para

seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e

que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto

para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso

comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de

2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão

sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que

inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os

programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor

fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço

no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,

mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da

segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de

programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará

importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,

além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as

dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do

Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube

conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de

elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será

fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

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Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III

Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o

estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores

do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo

livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras

parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de

Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do

UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.

Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que

agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada

logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira

Presidente do CONPEDI

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Apresentação

O XXII Encontro Nacional do CONPEDI teve como tema “Os 25 Anos da Constituição

Cidadã: os atores sociais e concretização sustentável dos objetivos da República”. O tema

invoca grandes debates e relevantes questões para o universo acadêmico. O Grupo de Trabalho

“Direitos Sociais e políticas públicas II” trouxe sua contribuição, abordando uma gama de

questões interessantes e de grande atualidade, que podem ser apresentados em três eixos

temáticos: (1) Saúde, educação, cultura, trabalho e previdência social; (2) Função social da

propriedade, direito à moradia, planejamento urbano e meio ambiente e (3) Democracia,

participação popular e políticas públicas.

Participaram desses debates, apresentando trabalhos e defendendo seus pontos de vista,

pesquisadores de importantes e renomadas instituições, das mais diversas localidades do

Brasil: PUC/MG, PUC/SP, UFPI, UNICURITIBA, UNIBRASIL, UNIVALI, UFSC,

CESUMAR, UNISC, PUC/PR, UCS, UNOESC, UNIPÊ, FUIT, UNIC, FURG, UEA,

UNIFOR e UFC.

No primeiro eixo temático, abrangendo questões relativas à saúde, educação, cultura,

trabalho e previdência social, foram apresentados diversos estudos que enfocam aspectos

relevantes desses temas. O direito saúde, analisado a partir da perspectiva dos direitos

fundamentais no direito brasileiro, é objeto de estudo de Aline Maria Hagers Bozo e Bárbara

Guasque. Miguel Kfouri Neto e Sandra Maciel-Lima abordam a equidade no contexto da

gestão do SUS, buscando verificar se esse conceito aparece nos serviços de alta complexidade.

“O direito fundamental social à saúde e a responsabilidade do cidadão”, de Rogério

Gesta Leal e Daniela Menengoti Ribeiro questiona sobre a parcela de responsabilidade que “o

cidadão tem em face do direito à saúde, buscando defender, a partir da análise de caso

concreto, que é um dever de todos garanti-lo, não excluindo desse exame o próprio indivíduo, a

família e as instituições privadas”.

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O debate sobre a terceirização na Administração Pública e os serviços públicos de

saúde, com ênfase na delegação por intermédio de organizações sociais, aparece como foco de

atenção do texto apresentado por Marcos de Oliveira Vasconcelos Júnior.

Outro tema que mereceu destaque no contexto desse primeiro eixo temático é a questão

da educação. Maria da Glória Colucci e Marta Marília Tonin abordam a questão da educação

como direito fundamental social da pessoa em condição especial de desenvolvimento. Ivan

Dias da Motta e Luiz Fellipe Preto tratam do direito à educação infantil e sua violação em

decorrência da escassez de creches e pré-escolas.

Gustavo Rosa Fontes lança luzes sobre o fato de ter sido acrescentado, pela Emenda

Constitucional nº 71/2012, o artigo 216-A à Constituição Federal, introduzindo em nível

constitucional o Sistema Nacional de Cultura. Partindo da premissa de que o direito à cultura

exige a elaboração de políticas culturais voltadas à proteção, promoção e universalização do

acesso aos bens e serviços culturais, aborda os diversos mecanismos e programas próprios

desenvolvidos com esse objetivo.

Na vertente trabalho e previdência social, são apresentados estudos sobre inclusão

social e a importância das políticas públicas de valorização do salário mínimo e de

transferência de renda”, de autoria de Érica Fernandes Teixeira, e sobre o trabalho penoso dos

bancários, resultando em adoecimento, gravosidade e desequilíbrio nas relações laborais, por

José Ricardo Ceatano Costa1 e Liane Francisca Hüning Birnfeld.

Raul Lopes de Araújo Neto enfrenta o desafiador tema da crise da previdência social

brasileira e dos fatores que comprometem a prestação dos serviços e benefícios

previdenciários.

O bloco de textos deste primeiro eixo temático se completa com o estudo feito por

Carlos Luiz Strapazzon e Maria Helena Pinheiro Renck, que abordam os embaraços

administrativos arbitrários da previdência social e suas consequências.

No segundo eixo temático, foram debatidos temas relativos à Função social da

propriedade, direito à moradia, planejamento urbano e meio ambiente.

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No trabalho intitulado “O direito à moradia como obrigação estatal no contexto

constitucional brasileiro”, João Emilio de Assis compartilha suas reflexões sobre a evolução

dos direitos fundamentais sociais, tendo como foco especial o direito constitucional à moradia.

A questão é, ainda, abordada por Rogério Luiz Nery da Silva e Thuany Klososki Piccolo, que

destacam a atualidade dessa temática, cada vez mais mencionada nas discussões jurídicas e

sociais no país.

Da moradia o debate se amplia para a cidade, e o foco passa a ser o estudo das questões

que envolvem o planejamento urbanístico participativo plural, no trabalho apresentado por

Frederico Garcia Guimarães. Reportando-se aos mecanismos definidos no Estatuto da Cidade,

defende a importância de o planejamento urbanístico ser elaborado de forma democrática, com

a participação social na sua construção.

Dentre os diversos mecanismos que o Estatuto da Cidade prevê para exigir o

cumprimento da função da propriedade urbana, está a progressividade das alíquotas do IPTU,

cujos requisitos para implementação são objeto de estudo elaborado por Hertha Urquiza

Baracho e Sulamita Escorião da Nobrega.

Andreza de Souza Toledo completa o bloco de textos desse segundo eixo temático,

apresentando um estudo que relaciona o tema da preservação do meio ambiente com a

educação, destacando que a educação ambiental é um instrumento que pode e deve ser

utilizado como instrumento de política pública para se alcançar o máximo de efetividade dos

preceitos legais e constitucionais que disciplinam a tutela do meio ambiente.

No terceiro eixo temático, os trabalhos versaram em torno das questões sobre

Democracia, participação popular e políticas públicas.

Enfrentando debates atuais e de máxima relevância nesses tempos de fortes demandas

por mudanças no cenário das velhas estruturas políticas, o tema da reforma política e sua

relação com a democracia é abordado por Heyde Medeiros Costa Lima e Andréa Micaelle

Santos Sousa, que defendem a implementação do financiamento público das campanhas

eleitorais como garantia do princípio constitucional da isonomia.

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A participação popular é tema escolhido por Alex Feitosa de Oliveira, com foco na

questão da (in)efetividade da participação prevista pela Lei de Responsabilidade Fiscal na

implementação de políticas públicas de infraestrutura para a Copa do Mundo de Futebol de

2014.

Com foco nas políticas públicas para as Micro e Pequenas Empresas, Marco Antonio

Lorga e Paulo Ricardo Opuszka destacam que tais entes “possuem no contexto econômico e

social brasileiro uma posição de destaque justificado pela participação do número de pessoas e

empreendimentos envolvidos”. Apresentam, assim, um estudo que tem por objetivo demonstrar

uma visão ampla desse segmento no Brasil, por intermédio de dados econômicos e da

abordagem das políticas públicas para o setor, com vistas ao pleno desenvolvimento

econômico e social brasileiro.

Partindo da realidade brasileira para um contexto mais amplo, merecem atenta leitura os

estudos feitos por José Vagner de Farias (“O Estado de bem estar social é compatível com a

globalização?!”) e Lucas Antônio Bueno (“Por uma nova interpretação em busca da

efetividade das políticas públicas frente à sociedade de risco”), que enfrentam o debate sobre

esses grandes dilemas da contemporaneidade.

Por fim, o interessante trabalho de Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto, sobre a

teoria geral do garantismo e a estrita legalidade aplicada a direitos sociais, com foco nas

inovações trazidas pela Lei 12.010/2009, fecha o conjunto de textos que compõem o terceiro

eixo.

Os trabalhos apresentados demonstram que o CONPEDI é um espaço importante para o

debate acadêmico que envolve pesquisadores de todas as idades e de todas as formações:

graduação, mestrandos, mestres, doutorando e doutores. A diversificação dos Grupos de

Trabalho permite o compartilhamento do conhecimento por meio da exposição do que os

pesquisadores estão fazendo em suas diversas áreas, mas, também, há a oportunidade de

debates ricos em que correm a disseminação de teses jurídicas, políticas, sociais, econômicas

que produzem convergências e divergências essenciais a um debate científico em que o

pensamento dialético se monstra imprescindível.

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Podemos constar nos trabalhos apresentados e nos debates que se seguiam

preocupações que transcendiam as meras especulações positivistas, simplistas e racionalistas.

Antes, os trabalhos de pesquisa foram apresentados com espírito crítico e com a preocupação

de ofertar proposições transformadoras não somente do direito, mas do Estado e da sociedade.

É verdade que O Grupo de Trabalho “Direitos Sociais e políticas públicas II” favorece, de

plano, a efervescência das ideias porque reúne num mesmo eixo metodológico os direitos

sociais previstos constitucionalmente como cláusulas pétreas de todos os Estados Sociais de

Direito, disso se extraindo o dever de concretização destes direitos sociais por meio de políticas

públicas em que a máquina estatal é a principal protagonista, além, é claro de outros sujeitos

institucionais, a exemplo do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública,

Advocacia, dentre outros, sem deixar de mencionar um dado importante, que é controle social

feito pela mídia e pela própria população.

Acreditamos que os trabalhos que ora são publicados contribuirão para o fomento do

saber científico e para o aprimoramento dos debates na academia.

Coordenadores do Grupo de Trabalho

Professor Doutor Manoel Messias Peixinho – UCAM

Professora Doutora Helena Elias Pinto – UFF

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A DIVERSIDADE E O PLANEJAMENTO:

Uma contribuição para o Planejamento Urbanístico Participativo Plural

THE DIVERSITY E THE PLANNING:

A contribution to the Participatory Urban Planning Plural

Frederico Garcia Guimarães1

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Diversidade: 2.1 A diversidade de

Gilles Deleuze; 2.2 O diverso e a heterogeneidade do Novo

Constitucionalismo Latino Americano; 2.3 A pluralidade e

participação. 3 O planejamento: 3.1 O planejamento como função

do Estado e da Administração Pública; 3.2 O planejamento

urbanístico participativo e plural. 4 Conclusão.

Resumo: A diversidade é pontuada por Gilles Deleuze ao apresentar a ideia de Lucrécio que

sustenta como ponto central do Naturalismo. A partir dessa visão filosófica, debruça-se sobre

a convivência do diferente no Estado Democrático de Direito, que com a nova visão do Novo

Constitucionalismo Latino Americano apresenta-se a ideia da heterogeneidade. A

Constituição pátria assegura essa diversidade a partir do momento que consagra como uma

das bases do Estado o seu caráter plural. Este mesmo Estado ao instituir normas de conduta o

deve fazer a partir de um planejamento, no qual se constrói conceitos e diretrizes que irão

afirmar acerca de uma determinada política pública. No âmbito urbano, garantido está a

participação popular, que se assenta em norma constitucional e no Estatuto da Cidade. Este

instrumento – o planejamento – construído a partir dos próprios atores sociais diversos visa

concretizar direitos fundamentais.

Palavras-chaves: diversidade; planejamento; urbanístico; democracia; participativo;

pluralidade

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Pesquisador extensionista do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas da PUC/Minas.

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Abstract: Diversity is punctuated by Gilles Deleuze to present the idea of Lucretius argues

that as the centerpiece of Naturalism. From this philosophical view, focuses on the

coexistence of different in a democratic state, that with the new vision of the New Latin

American Constitutionalism presents the idea of heterogeneity. The Constitution ensures that

diversity homeland as soon as it enshrines one of the foundations of your State plural

character. This same rule to establish standards of conduct should do it from a planning, in

which to build concepts and guidelines that will assert about a specific public policy. In urban

areas, people's participation is guaranteed, which is based on constitutional law and the City

Statute. This instrument - planning - built from the various social actors themselves intended

to embody fundamental rights.

Keywords: diversity; planning; urban; democracy; participatory; plurality

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1. INTRODUÇÃO

A discussão sobre o diverso ou o diferente, diante do reconhecimento de direitos do

denominados excluídos, toma hoje contorno em diversas discussões doutrinárias e

jurisprudenciais.

A ideia do diferente já estava presente em Lucrécio quando este define o Naturalismo

– um dos vieses da filosofia – o que foi retomada pelo na segunda metade do Século XX em

diversos dos seus trabalhos. Aqui, o texto se debruça sobre um Apenso apresentado por este

filósofo francês em que ele reafirma a ideia do diverso a partir do que Lucrécio já havia

afirmando.

A partir da leitura deste Apenso, reporta-se a afirmação do diferente tendo como

perspectiva a constatação de uma sociedade heterogênea, diferente daquela definida como una

quando surgiu o Estado Moderno Europeu no final do Século XVIII (um único povo, uma

única língua, um único exército, um único direito). O Novo Constitucionalismo Latino

Americano veio então apresentar um novo modelo de Estado Constitucional que se

fundamenta justamente na concepção que não á essa unidade em uma determinada sociedade,

que é constituída de diversas camadas e extratos, ao qual são dirigidas as normas legais.

Assim, existentes as novas subjetividades.

No âmbito constitucional brasileiro um dos fundamentos do Estado Democrático de

Direito que o define é a pluralidade política (art. 1º, inciso V, da Constituição da República de

1988). Esse pluralismo visa justamente garantir que este mesmo Estado deva atender a

diversidade de uma sociedade e que deve este mesmo Estado construir todo o seu sistema

jurídico partindo-se dessa perspectiva na afirmação dos direitos fundamentais que também

estão garantidos no âmbito da Constituição brasileira.

Com isso, na segunda metade o trabalho, traz-se o instituto do Planejamento que é

uma das funções da Administração Pública que o meio dos meios de exercício do próprio

Estado. O planejamento que define políticas, diretrizes e objetivos, é consubstanciado em uma

norma legal que vem então reger determinada política pública direcionada justamente para a

garantia de concretização de direitos fundamentais.

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Na construção da normatização urbana, o planejamento se tornou condição

indispensável (art. 2º, II, da Lei 10.257/01) para a formatação de uma política pública da

cidade que se expressa seja através do próprio Plano Diretor (art. 182, parágrafo único da

Constituição da República de 1988 e art. 40 e seguintes da Lei 10.257/01), seja para outras

formas de programa ou planos de natureza urbanística (art. 2º, inciso II, da Lei 10.257/01,

última parte).

O planejamento urbanístico deve ser elaborado de forma democrática o que se impõe

a participação social na sua construção, que se revela através de mecanismos definidos pelo

Estatuto da Cidade. Sendo, então, esta participação popular uma condição para a que se

garanta um conteúdo democrático do planejamento urbanístico, ela deva o ser de forma plural,

o que se dá pelo respeito às concepções histórico, culturais, econômicas dos atores sociais que

se apresentam de forma diversa, diferente. Garantindo que a cidade, bem público, bem de

todos, res publica, deva atender a sua função o bem estar de seus viventes (art. 182, da

Constituição da República de 1988) e garantindo o concretização de direitos fundamentais.

2 A DIVERSIDADE

2.1. A diversidade de Gilless Deleuze.

Gilles Deleuze, na obra Lógica do Sentido, apresenta a visão do simulacro tanto na

perspectiva de Platão quanto de Lucrécio, em dois apêndices diferentes, sendo que aqui se

tratará do segundo.

O pensamento de Lucrécio é trazido por Deleuze a partir da definição do que seja

simulacro, de como ele se manifesta e quais as suas formas, tudo para identificar o falso

infinito e o verdadeiro infinito. Assim, Lucrécio, depois de Epicuro, “soube determinar o

objeto especulativo e prático da filosofia como ‘naturalismo’” (DELEUZE, 1998, p. 272).

As perspectivas de Lucrécio e Epicuro, mais aquele do que este, acerca do que seja o

Naturalismo, parte de uma análise do movimento dos átomos (clinamem) desenvolvido por

aquele primeiro filósofo. A partir daí, identificam o que seria as formas de simulacros - falsos

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infinitos - presentes na vida do homem, que ao mesmo tempo em que lhe trás prazer pode lhe

trazer dor. (DELEUZE, 1998, p. 280).

Os simulacros apresentados são três, sendo o primeiro e o segundo se revelam pelos

próprios sentidos. Já o terceiro é que merece destaque, denominado fantasma, pois, sendo

independe do próprio objeto, possuem extrema mobilidade, tomando, inclusive, o próprio

lugar do objeto. Este simulacro têm três variáveis: teológica, onírica e erótica (DELEUZE,

1998, p.280/282).

Partindo-se do reconhecimento deste terceiro simulacro, o autor, referindo-se a

Lucrécio apresenta o Naturalismo como sendo aquele que “irá denunciar a ilusão, o falso

infinito, o infinito da religião e todos os mitos teológicos-eróticos-oníricos em que se

exprime” (DELEUZE, 1998, p. 285).

Traz, portanto, a concepção de que o Naturalismo poderá identificar o verdadeiro

infinito, pois:

A Natureza não se opõe ao costume, pois há costumes naturais. A Natureza não se opõe à convenção: que o direito dependa de convenções não exclui a existência de um direito natural, isto é, de uma função natural do direito que mede a ilegitimidade dos desejos à perturbação de alma de que se fazem acompanhar. A Natureza não se opõe à invenção, mas sendo as invenções senão descobertas da própria Natureza. Mas a Natureza se opõe ao mito. Ao descrever a história da humanidade, Lucrécio nos apresenta uma espécie de lei de compensação: a infelicidade do homem nos provém de seus costumes, de suas convenções, de suas invenções, nem de sua indústria, mas da parte de mito que ai se mistura e do falto infinito que introduz em seus sentimentos como em suas obras. Às origens da linguagem, à descoberta do fogo e dos primeiros metais se juntam a realeza, a riqueza e a propriedade, míticas em seu princípio; às convenções do direito e da justiça, a crença dos deuses: ao uso do bronze e do ferro, o desenvolvimento da guerra; às invenções da arte e da indústria, o luxo e o frenesi. Os acontecimentos que fazem a infelicidade da humanidade não são separáveis dos mitos que os tornam possíveis. Distinguir do homem o que provém do mito e o que provém da Natureza, e, na própria Natureza, distinguir o que é verdadeiramente infinito e o que não o é: tal é objeto prático e especulativo do Naturismo. (DELEUZE, 1998, p. 285)

A partir disso, apresenta-se o Naturalismo, por meio da Natureza, que traz a

concepção do que é individual, do que é múltiplo, do que é diferente.

O Naturalismo para Deleuze, em referência a Lucrécio, seria a possibilidade de que

na Natureza os seus signos estariam desprovidos dos simulacros/fantasmas do mito, que

cunham nas coisas/comportamentos um viés que pode levar a desvirtualização do que seria a

própria coisa/comportamento.

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Seria, então, o Naturalismo aquele que libertaria do homem das falsas ilusões, isto a

considerar que esta filosofia Natural possui em seu valor o reconhecimento do indivíduo, da

multiplicidade e principalmente do diferente:

Em nosso mundo a diversidade natural aparece sob três aspectos que se recortam: a diversidade natural das espécies, a diversidade dos indivíduos que são membros de uma mesma espécie, a diversidade das partes que compõe um indivíduo. (DEULEZE, 1998, p. 273)

Cunha-se o reconhecimento do valor do Naturalismo no reconhecimento do

indivíduo e de sua diferença, reconhecendo-se a heterogeneidade.

Deleuze na maioria das suas obras baseou-se na identificação do que seja o

indivíduo, na diferença contida no próprio homem, na diferença deste com o seu entorno,

assim como deste entorno em relação ao próprio homem. Pautou ainda em diversos trabalhos

sobre o que seria a diversidade, a multiplicidade, mas repita-se sob a perspectiva do que da

diferença.2

Considera-se, assim, para este trabalho que o Naturalismo de Lucrécio afirmado por

Deleuze trás em si a concepção da diferença, sob o enfoque do indivíduo em seu contexto

social, afirmando a multiplicidade, a heterogeneidade, a pluralidade.

2.2. O diverso e o heterogêneo no Novo Constitucionalismo Latino Americano.

Ao se construir e afirmar os primeiros Estados Nacionais na Europa na era moderna,

a linearidade de uma sociedade se impunha para afirmação desde próprio Estado e para

afirmação e concretização do próprio capitalismo. Criou-se um Estado em que se reconhecia

um povo homogêneo, uma única língua, em um único território, uma única soberania. Tem-se

o Estado Nação, seguindo um padrão hegemônico e uniformizador. (MAGALHÃES, 2012).

O Estado de Direito foi construído com fundamento em uma Constituição de

concepção uníssona de um povo igual, sem qualquer distinção, firmando-se em um povo

homogêneo.

2 Destaca-se a obra Diferença e Repetição de 1968, como um marco neste reconhecimento da diferença: Rio de Janeiro: Graal, 1988,

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Sampaio (2004, p. 45), citando Cícero3, apresenta:

(...) O povo, por seu turno, era um todo homogêneo em cultura, língua, história e tradições, unido por interesses comuns, que, seguindo às distantes lições de Cícero, compunha um coetum iuris consensu ET utilitatis communione sociatum, não somente omnem coetum multdidudinis.

Contudo, um direito linear e plano sob a perspectiva a de uma homogeneidade do

próprio povo não mais corresponde ao que hoje se apresenta. A complexidade social é fato

inconteste no mundo pós-moderno ou contemporâneo, sendo que este variado composto de

povos, etnias, culturas, condições sociais, concepções de vida, caracterizam um mundo

heterogêneo.

A monocultural teoria política importada garantiu a intensa disparidade entre constituição e realidade, garantindo direitos a uma ínfima parcela da população e anulando a outra. O que se vislumbra no que é denominado de ‘velho constitucionalismo’ era uma retórica ideológica. (NOVAIS, 2012)

Reconhecida esta diversidade ou mesmo heterogeneidade de um povo, necessário o

reconhecimento pela Constituição deste fato, o que importa, portanto, no reconhecimento

também pelo Estado do povo que o constitui.

O novo constitucionalismo impõe-se nos dias atuais. Este movimento constitucional,

de uma forma, geral, é fenômeno reconhecido, baseando-se em um novo reconhecimento.

As transformações sofridas pela teoria política e constitucional nos últimos vinte anos têm levado á reflexão necessária sobre a concepção adequada de Constituição de nosso tempo. O desgaste da ‘soberania’ e a ‘complexidade social’ crescente, aliados, em países periféricos e semiperiféricos, à submissão a uma ordem internacional orienta pela lógica econômica, remetem, em lugar de particularismos ou de retorno às figuras pré-modernas de comunidades, á ideia de uma ‘sociedade multicultural’ que pode aspirar a ser cosmopolita. (SAMPAIO, 2004, p. 50)

Há que ser reconhecer a existência de o diferente no meio social caracteriza a

diversidade.

El primer paso en esa dirección es estar muy atentos a la diversidad del mundo que es inagotable. Y esa diversidad es cultural. Pero, lo que es nuevo en nuestro tiempo, a inicios del siglo XXI, es que lo cultural también es económico y también es político. Por eso nos pode cuestiones como la una refundación del Estado y una refundción de la democracia. (BOAVENTURA, 2007, p. 14)

3 Citação contida na obra: CÍCERO, Marco Túlio. La Republica. In: CICERÓN. La República y lãs leyes. Edición de Juam Ma. Nuñes Gonzáles. Madrid: Akal, 1989, I, p. 39)

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Desta forma, a diversidade, em sendo um dos nortes do Novo Constitucionalismo

Latino Americano, deve ser incluída na pauta dos fundamentos constitucionais e na

construção normativa, já que a este a norma também é direcionada.

Este constitucionalismo se distingue del constitucionalismo moderno en varias características. Primero, en la equivalencia entre lo simultáneo y lo contemporáneo. Una de las grandes características de la modernidad fue separa simultaneidad de contemporaneidad. ¿Por qué? Porque puso una fecha de progreso; los que van delante están en el progreso, son avanzados, mientras todos los otros son atrasados. Es por eso que los países menos desarrollados no pueden ser nunca en nada más desarrollados que los desarrollados, porque la lógica de la flecha del tiempo impide esa posibilidad. Sin embargo, la idea de simultaneidad sin contemporaneidad expresa situaciones cotidianas. Cuando un campesino se encuentra con un ejecutivo del Banco Mundial el encuentro es simultáneo, pero no ocurre entre contemporáneos. El campesino es un residual, es un atrasado; el ejecutivo del Banco o el ingeniero de la agroindustria es el progreso, es el avanzado. Tenemos simultaneidad, pero no contemporaneidad. El constitucionalismo intercultural e plurinacional, está haciendo, de diferentes maneras, una equivalencia entre lo que es simultáneo e lo que es contemporáneo; cada uno a su manera, pero contemporáneos al fin. (BOAVENTURA, 2007, p. 23)

E é justamente neste sentido que Gilles Deleuze se expressa, como acima exposto:

A especificidade, a individualidade e heterogeneidade. Não há no mundo que não se manifeste na variedade de suas partes, de seus lugares, de suas margens e das espécies que os povoa Não há individuo que seja absolutamente idêntico ao outro indivíduo; (...) Infere-se daí a diversidade dos próprios mundos sobe estes três pontos de vista: os mundos são inumeráveis, frequentemente de espécies diferentes, às vezes semelhantes, sempre compostos de elementos heterogêneos. (1998, p. 273)

Portanto, fundado está o Novo Constitucionalismo Latino Americano que se finca na

noção de uma nova concepção de um povo e da sua pluralidade:

O novo constitucionalismo encontra respaldo no reconhecimento da condição humana da ação que compreende a sua imprevisibilidade e pluralidade e que permite compreender os semelhantes como tais. Tal concepção funda-se na admissão dos conflitos e incongruências ínsitos na natureza, sem a intolerância ao distinto, pois nesse sentido que o outro quando não visto pela dimensão desestrutura a compreensão que se tem de si mesmo. Se pensada a existência num único plano de vivência, será excluída a existência do outro, concebendo-o como causador do caos. Ou se vislumbrada a pluralidade da capacidade individual de transmutar-se dentro de uma natureza multíplice, ou perde-se na tentativa de encontrar a universalidade o que não é admissível em uma realidade que se pretenda solidária e emancipatória. Vê-se assim, a convergência entre teorias democráticas e solidárias e o novo constitucionalismo que se estabelece.” (NOVAIS, 2012)

2.3. A pluralidade e participação.

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Dessa perspectiva do Novo Constitucionalismo Latino Americano, de onde se extrai

a ideia de uma sociedade heterogênea, pode-se destacar que garante esse novo pensamento

constitucional de que um Estado Democrático de Direito é plural.

A Constituição da República de 1988 impõe como um de seus fundamentos a

pluralidade:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) V - o pluralismo político. (BRASIL, 2012)

A definição constitucional não deixa dúvida quanto à afirmativa lançada no

parágrafo acima. Havendo o reconhecimento pela Ordem Constitucional de tal aspecto, o

Direito não é pode ser construído a partir de uma democracia baseada numa homogeneidade,

visto que não se estaria atendendo ao pluralismo, a existência de níveis diferentes de cidadãos.

A partir disso: que o diferente é também cidadão, de que a multiplicidade individual

e de grupos; o direito regulamentador, o direito principiológico e garantidor, como posto na

Constituição, deve ser construído a partir da identificação destes indivíduos, destas diferenças,

destas multiplicidades (individuais ou de grupos). Não se pode mais impor um ordenamento

que não lhes reconheça esta diferença. E a pontuação desta diferença somente poderá ser

trazida por eles, por todos.

Portanto, neste ponto, para a afirmação do individuo, do diferente, do múltiplo, do

plural, necessário que todos participem de uma forma dialógica e consensual.

O artigo único do artigo constitucional transcrito acima traz outro aspecto: o poder

emana do povo e pode ser exercido de forma direta. Tem-se, assim, a democracia

participativa.

Decorrente disso, a construção normativa passa não ser unicamente representativa,

mas sim participativa, justamente para o atendimento a esta diversidade e complexidade

social.

A participação social na construção do Estado e na formulação dos instrumentos

legislativos que por sua vez irão regrar suas relações interpessoais. O direito e seu regramento

não são construídos a partir de uma homogeneidade daqueles sobre os quais recai a

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ordenação, como houvesse uma pré-determinação, mas da participação dos próprios cidadãos,

agentes de direito, que são reconhecidamente diversos individualmente e plural na sua

coletividade. Estes agentes de direito, portanto, de forma livre e igualitária, se colocam frente

a frente, e participam do processo normativo.

O projeto de realização do direito, que se refere às condições de funcionamento de nossa sociedade, portanto de uma sociedade que surgiu em determinadas circunstâncias históricas, não pode ser meramente formal. Todavia, divergindo do paradigma liberal e do Estado social, este paradigma do direito não antecipa mais um determinado ideal de sociedade, nem uma determinada visão de vida boa ou de uma determinada opção política. Pois ele é formal no sentido de que apenas formula as condições necessárias segundo as quais os sujeitos de direito podem, enquanto cidadãos, entender-se entre si para descobrir os seus problemas e o modo de solucioná-los. (HABERMAS, 2003, p. 189/190)

Com isso, a norma extraída deste contexto dialógico pode refletir toda a pluralidade

social.

No entanto, esta participação não exclui o papel do Estado como normatizador,

apenas acresce a este tendo em vista os anseios da própria sociedade construtora do Direito.

Este procedimento é bem disposto por José Nilo de Castro quando se refere a tal participação

no processo legiferante em matéria de natureza urbanística, que é o ponto central do trabalho

apresentado: Por conseguinte, a injunção participativa não se opõe, à evidência, à democracia representativa, ela é um complemento desta, um plus, em enriquecimento que se realiza pelos diálogos civis e sociais, pela deliberação reflexiva e coletiva, e, por fim, pela interação e negociação permanentes, sustentados esses diálogos nas cidades, espaço privilegiado para os aconchegos da cidadania e da democracia. (CASTRO, 2010, p. 425)

Logo, a Teoria Discursiva assegura o exercício do Estado Democrático de Direito

Participativo:

Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio de democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normalização. A ideia básica é a seguinte: o principio da democracia resulta a interligação que existe entre o principio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do principio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal- e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equipar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com forma jurídica. Por isso o principio de democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direito. (HABERMAS, 2003, p. 158, vol. I.)

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E neste ponto, a Teoria Discursiva se fundamente no procedimentalismo que se torna

uma forma de garantir que o discurso e o consenso sempre se renovem:

O paradigma procedimental do direito nutre a expectativa de poder influenciar, não somente a autocompreensão das elites que operam o direito na qualidade de especialistas, mas também a de todos os atingidos. E ta expectativa da teoria do discurso, ao contrário do que se afirma muitas vezes, não visa doutrinação, nem é totalitária. Pois, o novo paradigma submete-se às condições da discussão contínua, cuja formulação é o seguinte: na medida em que ele conseguisse cunhar o horizonte da precompreensão de todos os que participam de algum modo e à sua maneira na interpretação de constituição, toda transformação histórica do contexto social poderia ser entendida como um desafio para um reexame da compreensão paradigmática do direito (HABERMAS, 203, P. 190).

E é justamente neste sentido que se fundamenta o Novo Constitucionalismo Latino

Americano:

(...) compreendidos os mecanismos de construção destes consensos democráticos não majoritários, não hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva para os direitos fundamentais.” (MAGALHÃES, 2012).

Portanto, entende-se que reconhecido o diferente, como meio de se afastar os

simulacros, para uma melhor vida, estes integram uma determinada sociedade, que é então

adjetivada de heterogênea. Neste ponto, o Novo Constitucionalismo Latino Americano

apresenta-se como um novo paradigma de novas subjetividades. No contexto constitucional

atual brasileiro, há o reconhecimento do diferente e da heterogeneidade, já que o fundamento

do Estado de Democrático de direito está assegurado no artigo 1º, da Constituição da

República de 1988. Nesta também há mecanismos para o exercício da pluralidade, na medida

em que o poder, o poder do Estado, deve ser exercido pelo povo, afirmando-se a democracia

participativa, que se apresenta de forma dialógica.

3 O PLANEJAMENTO

3.1 O planejamento como função do Estado e da Administração Pública

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A atuação do Estado no contexto social se apresenta de várias maneiras, seja

legislando, seja executando, seja dirimindo conflitos.

No âmbito da função reguladora, cabe a ele dispor sobre normas que em a finalidade

de regrar seja a auto-conduta, seja da sua conduta para com os cidadãos.

Este exercício regulamentador do Estado se dá através de implementação de políticas

públicas que são expressas por meio da atuação do braço executivo do estado: a

Administração Pública. Esta tem por sua vez então que se basear naquela regulamento que se

constrói, hoje, a partir do planejamento.

Portanto, o planejamento é hoje uma função do Estado e por consequência uma

função da própria Administração Pública.

O planejamento, portanto, tomando contorno jurídico, se faz presente nos

instrumentos legais, sendo que ainda começa a se despregar de um caráter puramente formal.

É o planejamento que confere consistência racional à atuação do Estado (previsão de comportamento, formulação de objetivos, disposição de meios), instrumentando o desenvolvimento de políticas públicas, no horizonte do longo prazo, voltadas à conclusão da sociedade a um determinado destino. (GRAU, 2007, p. 347)

Esta forma de estratégia de administração já o era executada no âmbito privado, sendo

incorporada da Ciência da Administração para o âmbito da Administração Pública. Mas ao

agregar tal procedimento, a Administração Pública apenas reconhecia o aspecto que se pode

denominar formal, pois o planejamento dependia apenas do administrador, podendo utilizá-lo

ou não, não sendo juridicamente imposto (SILVA, 2008, p 89).

Mas com o tempo, o planejamento se destacou apenas da noção de um modo de

administração e tornou-se um mecanismo jurídico-constitucional, visto que tem ele finalidade

de se atingir uma realidade social.

O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera vontade dos governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são instrumentos consubstanciadores do respectivo processo. (SILVA, 2008, p. 90)

A título de exemplo pode-se extrair alguns dispositivos constitucionais que fazem

menção explicita ou implícita ao planejamento, se destacando ao final o art. 183, sobre os

quais nos deteremos com maior atenção no presente trabalho: agrícola (Artigo 187);

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previdenciária (Artigo 202); educação (Artigo 208; 212, §3o; 214; 30, VI);cultura (215, §3o;

216, §6o); juventude (Artigo 227) habitação e saneamento básico (23, IX); reforma agrária

(184, §4o); assistência social (204, I e parágrafo único); transporte (Artigo 208, VII);

alimentação (Artigo 208, VII); saúde (Artigo 227, §1o); assistência ao deficiente (Artigo 227,

§1o, II); prevenção do uso de entorpecentes (Artigo 227, §3o, VII); idoso (230, §1o) e fundo

de erradicação a pobreza (Artigo 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias –

ADCT), art. 183 (Plano Diretor).

Robertônio Santos destaca ainda que o planejamento se tornou um instrumento

jurídico justamente porque o Estado, através da Administração Pública, tomou uma dimensão

mais social, o que se traduz como sendo o planejar o instrumento indissociável para que o

Estado atenda as necessidades de seus cidadão através da implementação de políticas

públicas: Uma das características da Administração Pública atual é seu caráter preponderantemente coletivo. Mais do que a prática de atos administrativos isolados (que não deixaram de existir), Administração Pública se caracteriza pela sua dimensão social. Importa cada vez mais os efeitos ou resultados que a atuação administrativa produz relativamente à sociedade em seu conjunto, nos mais diversos setores da vida, de tal forma a garantir satisfatória ‘qualidade de vida’ tanto a sociedade presente como a sociedade futura (futuras gerações). A atividade deve ser necessariamente eficiente (princípio da eficiência), produzindo resultados concretos para o conjunto da sociedade. Exigência desta envergadura demandam, forçosamente, a necessidade do planejamento. Proliferam em todos os níveis da atividade administrativa (federal, estadual e municipal) práticas de programação ou de planejamento (pleno de desenvolvimento, planejamento financeiro, planejamento urbanístico, planejamento educacional, plano isso, plano daquilo etc.) Fala-se cada vez mais em ‘políticas públicas’, associando-se à necessidade de planejamento. (2003, p 40)

Voltando-se o Estado e Administração pública para o atendimento ao que a

sociedade almeja, e utilizando-se do planejamento para tanto, ao construir esse instrumento,

deve ele estar atento à pluralidade.

Enquanto o planejamento praticado nos anos 1970 tinha um caráter eminentemente impositivo, em razão do regime político vigente, o de hoje não pode ignorar a pluralidade da representação política e a intensa mobilização que ocorre na sociedade brasileira com vista à promoção e à defesa de seus particulares interesses. (REZENDE, 2011, 201)

3.2 O planejamento urbanístico participativo e plural.

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A participação popular como detentor do poder conferido ao Estado é imperativo

fundamental do Estado Democrático de Direito, conforme previsto no caput do art. 1º, da

Constituição da República de 1988.

No âmbito das normas urbanísticas a participação popular na construção do

planejamento urbanístico se extrai do próprio art. 182, quando que determina que a política

urbana, que é uma política pública, deve objetivar o pleno desenvolvimento das funções

sócias da cidade e garantia do bem estar de seus habitantes. Já no art. 183, apresenta o

instrumento que irá ser o substrato deste planejamento: plano diretor.

Seguindo estes princípios constitucionais, o Estatuto das Cidades (Lei 10.274/2001)

impõe diretrizes, políticas, instrumentos que asseguram a participação social no planejamento

urbanístico (arts. 2, inciso II; art. 4º, inciso III, alínea a); art. 41; art. 42, alínea III; art. 43; art.

44; art. 45).

Para se planejar, dentro do contexto da Administração pública moderna, e para se executar o que se previu no planejamento urbano, impõe-se hoje se faça uma extraordinária aliança entre a cidade e o cidadão. Por que aliança? A aliança entre o cidadão e a cidade decorrerá do diálogo que deve existir entre o cidadão e o próprio Estado. E como se operará este diálogo? Pela participação da sociedade junto aos projetos estatais e comunitários. Participar é fazer com. Fazer em conjunto com os segmentos da sociedade e com o Estado. É ter afinidade. E ter afinidade é sentir com. O papel do cidadão é o de gestor do espaço urbano. Gestor é agente, e hoje é agente de transformação, que põe em marcha e em execução os seguintes passos: o aprendizado (cívico, político e social), a convicção (acredita-se e tem-se fé e compromisso), a determinação (a vontade), a ação (atitude positiva afirmativa) e o esforço (busca-se empenho e desempenho de qualidade). (CASTRO, 2010, p. 434).

Este planejamento se consubstancia no próprio Plano Diretor que tem como fim dar

transparência e democracia à política urbana (BLANC apud Braga, 2006, p. 108)4.

O planejamento urbanístico tem duas características que lhe são essenciais: dimensão

territorial e dimensão instrumental. Com isso, a participação popular visa, por meio do devido

diagnóstico e da própria construção normativa procedimental e dialógica, construir uma

cidade que atenda aos fins sociais dela e o bem estar dos seus próprios habitantes (art. 182,

caput).

(...) (i) a vinculação da política urbana a instrumentos de planejamento, especialmente ao plano diretor, que adquire o status de instrumento básico de política de desenvolvimento urbano (art. 182, parágrafo 1º); (ii) a descentralização

4 BRAGA, Roberto. In: Plano Diretor Municipal: três questões para discussão. Disponível em: <www.rc.unesp.Br/igce/planejamento/publicações.> Acesso em setembro de 2003.

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do planejamento urbano que passa explicitamente a valorizar a cidade, lócus de manifestação do poder local (art. 182 e art. 30 I e VII); e (iii) a inclusão da redução das desigualdades sociais entre os princípios da ordem econômica brasileira (art. 170, III e art. 182). (ARAÚJO, 2008, p. 170)

A participação popular no planejamento urbanístico se impõe justamente para

confirmar a pluralidade, que se aceita a linguagem de todos os interessados, as vivências

populares, a ciências, tudo de uma forma integrada e respeitando a ecologia dos saberes5. O

cidadão é aquele que mais vivencia e usufrui da cidade, sendo o seu agente mais ativo. A

partir disso, a participação social no planejamento urbanístico é uma imposição constitucional

e legal que é condição de validade do próprio Plano Diretor. Este reconhecimento da

pluralidade que é assegurada pela participação social pode ser destacado em alguns incisos do

art. 2º, do Estatuto da Cidade, dos quais podem ser citadas algumas locuções: (...)

atendimento ao interesse local (inciso III); (...) evitar e corrigir as distorções do crescimento

urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (inciso IV); (...) adequados aos

interesses e necessidades da população e às características locais (inciso V); integração e

complementariedade entre as atividades urbanas e rurais (inciso VII); (...) privilegiar os

investimentos geradores de bem-estar geral e fruição dos bens pelos diferentes segmentos

sociais (inciso X).

A partir, então, dessa participação popular plural de forma dialógica, na construção

de um planejamento, legitima-se o próprio papel do Poder Público “permite que a cidade seja

realmente construída à luz seus moradores e, especialmente, garante os grupos excluídos

possam ter voz ativa (MELO, 2010, p.81).

O planejamento urbanístico deve, por imposição constitucional e legal, ser

participativo e plural. Este planejamento deve ser consubstanciado em lei respectiva, como o

Plano Diretor, devendo, portanto, ser executado pelo administrador na implementação da

política pública urbana.

4. CONCLUSÃO

5 Ler mais sobre o tema em: SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Epistemologias do Sul. SANTOS, Boaventura de Souza. MENESES, Maria Paula (coord.) SP: 2010. Ed. Cortez. 31-67.

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O presente trabalho pretende, como exposto do subtítulo, contribuir para a discussão

acerca do planejamento urbanístico participativo, acrescendo-se a esta locução o adjetivo

plural.

Assim, para justificar a pluralidade, deve-se primeiro reconhecer a existência do

diferente, que se revela, na visão filosófica apresentada a partir do momento em que o

Naturismo, como uma de suas vertentes, é invocado para afastar as falsas impressões –

simulacros – sobre tudo o que nos cerca. Com isso, o diverso ou o diferente é desta forma

reconhecido, dando-se o devido valor a quem se encontra nesta condição, já que ele estaria

despedido de qualquer falseamento – repita-se simulacro – acerca de si mesmo.

A partir dessa visão que é defendida na contemporaneidade, que se invocou do

filósofo Gilles, apresentou-se a perspectiva coletiva do diferente quando se vislumbra que a

sociedade é no seu conteúdo heterogênea. Com isso, a conceito do Estado Constitucional

Moderno não mais reflete o contexto real de um povo, não lhe sendo, o reflexo. Num segundo

momento, expõe-se acerca da nova concepção constitucional que se apresenta com o Novo

Constitucionalismo Latino Americano, sendo formulado, que parte, como um de seus vetores,

justamente a existência das novas subjetividades que se reflete nas diversas culturas, histórias

e economias de um povo.

Considerado tal ponto, no âmbito constitucional brasileiro, esta diversidade e

heterogeneidade se revela no próprio fundamento do Estado Democrático do Direito que tem

como uma de suas bases o pluralismo. Aliado a isso, tem-se a concepção da democracia

participativa, visto que reconhecido também pela Constituição da República de 1988 que o

poder emana do povo, de forma direta. Esta participação, diante do contexto diverso social,

deve ter como procedimento o diálogo de todos aqueles que compõe essa sociedade, na

construção do seu próprio ordenamento.

Portanto, somente com o reconhecimento do diverso, da heterogeneidade social e da

pluralidade é que se pode afirmar que o Estado seja de fato democrático, pois este ente se

sustenta a partir do reconhecimento real da sociedade que o mantém. E a legitimidade desse

mesmo Estado somente se firma quando então essa mesma sociedade é que irá, no exercício

do poder que ela mesmo criou e se outorgou, participar da composição do seu próprio

regramento.

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Num outro ponto, parte-se para a exposição da função de planejar do Estado e da

própria Administração Pública. Esta função tem hoje um novo conceito no mundo jurídico,

visto que, sendo ela devidamente constitucionalizada, é instrumento que visa a implementação

de políticas públicas que se pretende estabelecer.

Especificamente, o planejamento urbanístico, também com status constitucional e de

norma geral, foi firmado como sendo ele participativo, justamente, porque ele deve ter como

finalidade a implementação da função social da cidade e do bem estar de quem vive nela.

Assim, figura o próprio cidadão como o agente de construção do direito, por meio o

planejamento, que irá dispor sobre a sua vida no âmbito do lócus onde mora. A participação,

então, irá garantir a presença do diverso, do diferente, de todos que se encontram em seus

determinados patrões, que foram uma todo social heterogêneo. À participação se alia então a

pluralidade na formação do planejamento urbano.

Tudo isso revela o pluralismo – reconhecimento do diverso - como fundamento real

do Estado Democrático de Direito se manifesta por meio da participação social na construção

de planejamento urbanístico, que expressa uma política pública. A participação, por sua vez,

assegura a expressão do próprio pluralismo, revelado no conteúdo do planejamento

urbanístico, visando a concretização de direitos fundamentais aos atores sociais

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A PESSOA EM CONDIÇÃO ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO E A

EDUCAÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL

THE PEOPLE IN SPECIAL DEVELOPMENT CONDITION AND THE EDUCATION

AS A SOCIAL FUNDAMENTAL RIGHT

Maria da Glória Colucci

Marta Marília Tonin**

Resumo: Educar é formar e transformar para a vida. A deterioração dos valores morais, acrescida de outros fatores desencadeantes do individualismo, materialismo e falta de solidariedade, só podem ser suplantados pela educação, a começar do ambiente familiar. Por outro lado, preparo para o exercício da cidadania pressupõe a superação de vários obstáculos, a partir do combate – mediante iniciativas oficiais e particulares – da evasão escolar, que leva ao abandono dos bancos escolares e ainda no ensino fundamental. Também, a exclusão social dos evadidos, acrescida da violência intrafamiliar e urbana, estimula o ingresso na marginalidade. A educação para o trabalho (profissionalização) é regulada no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e na Constituição Federal (1988), além de outras normas presentes na Consolidação das Leis do Trabalho (1943). Inúmeros danos podem ser creditados à falta de acesso à educação profissionalizante, como se examinou no texto, o mesmo ocorrendo em relação à evasão escolar e ao abandono afetivo e material de crianças e adolescentes. Políticas Públicas voltadas à superação destes desafios têm sido implementadas, mas ainda são insuficientes os investimentos na educação em geral. Palavras-Chave: Educação; Estatuto da Criança e do Adolescente; Exclusão Social; Profissionalização. Políticas Públicas. Mestre em Direito Público pela UFPR. Especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professora titular de Teoria Geral do Direito do UNICURITIBA. Professora Emérita do Centro Universitário Curitiba, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010. Orientadora do Grupo de Pesquisas em Biodireito e Bioética – Jus Vitae, do UNICURITIBA, desde 2001. Professora adjunta IV, aposentada, da UFPR. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética – Brasília. Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. ** Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais (UFPR). Coordenadora Geral do Curso de Direito das Faculdades Integradas do Brasil (UNIBRASIL). Professora do Direito de Família e Direito da Criança e do Adolescente. Advogada. Membro consultor da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR (2013-2015). Conselheira do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná (CONPEN - 2011-2014). Membro do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Membro do IAP – Instituto dos Advogados do Paraná. Coordenadora do Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) de 2002 a 2005. Coordenadora do Curso de Direito das Faculdades Santa Cruz (INOVE) de 2009 a 2012. Conselheira do CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (2004-2007). Presidente, da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB (2005-2006). Presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR (1997-2002; 2010-2012). Vice-presidente (2007-2009) e membro da Comissão Especial Criança, Adolescente e Idoso (CECAI) do Conselho Federal da OAB (2010-2012).

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ABSTRACT

To educate is to form and transform lives. The deterioration of moral values, plus other triggering factors of individualism, materialism and lack of solidarity, can only be overcome by affection, starting with the family environment. The preparation for the exercise of citizenship presupposes the overcoming of many obstacles, from combat - through official and private initiatives - truancy that leads to the abandonment of banks still in school and elementary school; social exclusion of evaded and family violence and urban. Education for work (professionalism) is regulated by the Statute of the Child and Adolescent in the Federal Constitution, beyond the norms present in the Consolidation of Labor Laws. Many injuries can be credited to the lack of access to vocational education, as examined in the text, the same being true for truancy and dropout affective and material for children and adolescents. Public policies aimed at overcoming these challenges have been implemented, but the improvements on education in general are still insufficient. Keywords:. Education; Statute of the Child and Adolescent; Social Exclusion; Education for

work; Public Policies.

1 INTRODUÇÃO

As tentativas de respostas à problemática educacional no País, notadamente, de

crianças, adolescentes e jovens, têm sido esboçadas em diversos modelos teóricos, mas, ainda,

incipientes, ou até mesmo contraditórios.

Na análise a ser construída pretende-se estabelecer nexos entre as diretivas do art.

205 da Constituição da República (1988) e os princípios da “proteção integral” e “prioridade

absoluta” presentes tanto na Lei Maior (art. 227 e seguintes), quanto no Estatuto da Criança e

do Adolescente (1990), nos arts. 1º a 6º, como diretrizes hermenêuticas e processuais.

O pleno desenvolvimento da pessoa e a natural vulnerabilidade infanto-juvenil serão

a chave mestra das reflexões a serem encetadas, considerando-se o processo educacional

como instrumento transformador do ser humano desde a mais tenra idade até à velhice.

O atraso crônico de medidas, por intermédio de políticas públicas, que promovam e

incentivem a educação no País, contribuem para o agravamento do cenário ainda desanimador

da evasão escolar ou mesmo da precariedade de condições do ensino no Brasil, como se

examinará no texto.

Desinformação, exclusão social e econômica, constituem no seu conjunto intrincado

contexto cujos meandros se encontram abertos às novas teorias pedagógicas.

Serão estudados os princípios basilares que fixam diretrizes para a construção

estatutária dos direitos da criança e do adolescente na Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990,

seguidos de breve síntese do texto regulador dos precitados direitos.

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No decorrer da exposição diferentes fontes bibliográficas serão utilizadas, levando-se

em consideração a crescente necessidade de interlocução com outras áreas do saber.

A Carta da República deverá receber relevância acentuada por ser a raiz vital à qual

se ligam todas as questões jurídicas, não só em matéria de educação, mas sempre que se

procure ressaltar a força vinculante do texto da Lei Maior com a realidade social brasileira.

O pacto social representativo da vontade soberana popular se evidencia no teor das

palavras das disposições constitucionais, como ocorre em educação, na proteção da criança e

do adolescente como se verificará.

2 A PESSOA EM DESENVOLVIMENTO

2.1 Diretrizes do art. 205 da Constituição (1988)

Dentre os seres viventes, a pessoa humana ao nascer possui tamanha vulnerabilidade,

que não consegue sobreviver sem cuidados especiais por um longo espaço de tempo.

Sua infância se prolonga por doze anos, durante os quais necessita receber não só

alimentos, mas atenção, educação e afeto que são essenciais à formação de sua futura

personalidade.

No entanto, o reconhecimento da vulnerabilidade infantil e o respeito às suas

peculiaridades, bem como das contradições que acompanham a adolescência, não ocorreu sem

grandes divergências entre pais, educadores, psicólogos e todos os que se dedicam ao mister

de desvendar os meandros destas importantes fases da vida humana.

Psicologia e Pedagogia têm desenvolvido pesquisas, teorias, relatórios e profusas

análises sobre a temática, explorando-a sob diferentes ângulos, visando encontrar possíveis

respostas.

Educar é, desde cedo, moldar o comportamento da criança e do adolescente,

preservando os valores da família, da sociedade e da cultura às quais pertence. Educação é

direito fundamental, reconhecido no texto constitucional no art. 205 da Lei Maior,

objetivando o desenvolvimento das potencialidades da pessoa que ao nascer traz consigo

habilidades inatas, que afloram com o processo educacional. Respeitar as características

pessoais, propiciar o aprendizado de um ofício, profissão ou trabalho; além de incentivar a

dedicação às artes, são objetivos da educação profissionalizante.

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Os obstáculos enfrentados pela criança, cuja personalidade se encontra em formação,

são múltiplos, a começar pela socialização, pelo desenvolvimento da afetividade e da

solidariedade.

No adolescente, as mudanças causadas pela transição que caracteriza a puberdade,

respondem pelos conflitos que são frequentes nesta fase. Se bem trabalhada, a adolescência

pode permitir aos educadores prepararem pessoas, cidadãos éticos, com um sentido de

participação social e política, respeitando as instituições democráticas.

No entanto, a desinformação e a exclusão social, somadas à violência intrafamiliar e

urbana, causam sérios danos à vida da pessoa em desenvolvimento.

Em consonância com a Lei Maior, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu

art. 19 preceitua que a criança e o adolescente têm o direito a ser criado e educado no seio da

família.

A família biológica ou substituta há de assegurar aos seus filhos uma convivência

salutar, em “ambiente livre” da presença de pessoas que sejam viciadas em substâncias

entorpecentes; sendo que a mesma exigência se impõe à comunidade à qual pertence a criança

ou adolescente. 1

O texto constitucional, no Art. 205, deixa evidente a corresponsabilidade do Estado,

da família e da sociedade na educação, “[...] visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu

preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 2

Comparando os princípios presentes no supramencionado artigo da Lei Maior e o

disposto no art. 53 do Estatuto, verifica-se que há coincidência entre os dois preceitos,

estabelecendo-se uma hierarquia entre os três campos que a educação deve atender em ambos

os diplomas legais precitados:

a) o pleno desenvolvimento da pessoa (sobretudo se estiver na infância e

adolescência);

b) o preparo para o exercício da cidadania, visando o conhecimento dos direitos

fundamentais e seu efetivo exercício; e

1 Idem, art. 19: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio e sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença e pessoas dependentes e substancias entorpecentes. 2 BRASIL, Constituição da República Federativa do: promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 205: “A educação direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno conhecimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

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c) a qualificação para o trabalho, diante da crescente exigência de formação

profissional que o mercado impõe aos ingressantes.

Assim, ao considerar a educação como direito fundamental (art. 205), a Lei Maior

traçou três diretrizes, válidas como princípios, que devem nortear ações públicas, privadas ou

particulares em educação, quais sejam: a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo para o

exercício da cidadania e c) qualificação para o trabalho.

2.2 Pleno Desenvolvimento da Pessoa

O desenvolvimento físico do ser humano leva à mudança da aparência, o que se nota

desde os primeiros dias, em que o recém-nascido modifica seu rosto e demais características

corporais, com impressionante rapidez e grande vitalidade.

Simultaneamente, do ponto de vista emocional, a criança vai se construindo,

desenvolvendo uma crescente percepção da realidade que a rodeia, e vai, gradativamente

respondendo aos estímulos com maior facilidade. Ao ampliar seu leque de respostas, sua

sensibilidade e consciência dos fatos e da vida se estruturam.

Neste contexto, a educação tem papel decisivo, representando a base da formação da

individualidade, a começar dos primeiros hábitos de higiene pessoal, de respeito, de gentilezas

etc, até alçar à futura construção de vigorosa intelectualidade, que redundará em sucesso

profissional.

De sorte que educar não só consiste no oferecimento de informações, visando à

profissionalização do adolescente ou ao despertar de vocações na criança, mas reside, antes de

mais nada, desde tenra idade, na formação moral da pessoa em desenvolvimento.

Nas práticas diárias, pais e professores devem ensinar pelo exemplo, pelas próprias

atitudes, quais são os atos corretos (que devem ser elogiados) e os incorretos (que devem ser

corrigidos).

O processo de transformação do pequenino ser, a criança, se inicia logo após os

primeiros momentos de vida, com a educação para a afetividade. Sendo criada com amor, a

criança irá incorporar gestos de afeto (abraços, beijos, acenos, sorrisos etc.) à sua prática

diária, tornando-se mais feliz e comunicativa, porque o amor alegra o coração.

A educação é, por natureza, um processo, envolvendo uma cadeia de atos e fatos que,

juntos, quando bem direcionados, tanto pelos pais, quanto pelos professores, podem levar o

educando ao esperado resultado final – a transformação do caráter, quando este for o caso

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(adolescentes infratores) ou à formação (no caso de adolescentes e crianças em processo

regular de educação).

Educar é formar e transformar para a vida em grupo, tanto na família, quanto na

sociedade.

A transformação pretendida pela educação secular, religiosa, familiar etc, deve ser

embasada nos valores, princípios e tradições próprios de uma determinada sociedade, de

modo que o ambiente em que vive o educando é marcante para a estruturação de sua

personalidade.

Considerando que a família é o primeiro ambiente com o qual a criança tem contato,

caber-lhe-á prover abrigo, proteção, cuidado e um sentimento de aconchego, para que sua

personalidade se desenvolva equilibradamente.

Por isso, é prudente lembrar, conforme acentua João Malheiro, doutor em Educação

pela UFRJ, que:

Quando a criança aprende antes as lições que também são vivenciadas pelos pais e professores, ela aceitará depois com maior facilidade toda a ação educativa, que na prática é quase sempre ensinar a amar os outros, por meio do caminho árduo das virtudes éticas. Aceitará, por exemplo, as correções, as exigências escolares, os castigos, as broncas, enxergando-os como formas corretivas para amar mais os pais, professores, e os próprios colegas de classe. 3

Um fator importante na construção de uma personalidade equilibrada é a dedicação à

missão de ensinar, somada à paciência, uma vez que os pais devem esperar os frutos da

transformação gerada pela educação, gradativamente, surgirem, em razão da criança e do

adolescente estarem, ainda, em processo de lenta assimilação dos valores do meio em que

vivem.

Os valores assimilados no lar são válidos para a vida inteira, modelando a

personalidade do futuro cidadão para que exerça seu papel com responsabilidade.

Ted Ward, em exaustiva análise sob o papel da família na construção da

personalidade acentua:

A criança humana é quase que totalmente dependente. Comparados com outras criaturas, chegamos, a este mundo, totalmente dependentes. Nascemos precisando de ajuda. Nascemos carecendo de amor e o calor do afeto. Em virtude de sermos tão insuficientes, começamos logo a agir como criaturas sociais, precisando nos relacionar com outros seres humanos. 4

3 MALHEIRO, João. Educar no amor: um desafio. Jornal Gazeta do Povo, Paraná, p. 2, 5 dez. 2010. 4 WARD. Ted. Os valores começam no lar. Trad. Darci e Nancy Gonçalves Dusilek. Rio de Janeiro: JUERP, 1981, p. 16.

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Em razão das diversas necessidades que se apresentam à pessoa em

desenvolvimento, além da família, a sociedade tem papel de destaque na formação da

personalidade, contribuindo com os valores, entendidos como bens culturais, lapidados pelo

grupo, com o passar dos séculos, variando de época para época, mas, preservando uma

essência universal.

Os valores é que dão sentido, significado aos bens culturais, possuindo, eles mesmos

uma natureza histórica, resultantes do processo de evolução da sociedade, vinculados às

necessidades humanas:

Como todo conceito-limite, o valor não comporta uma definição lógica ou real. Pode-se dizer, contudo, que a ideia de valor se compreende na noção que temos entre o bem e o mal, entre as coisas que promovem o homem e as que o destroem. O valor não existe no ar, desvinculado do objeto. Vem impregnado na realidade, na existência. 5

A decadência dos valores morais, somada a outros aspectos da sociedade pós-

moderna, que pendem para o individualismo, em menosprezo para a vida em sociedade, têm

contribuído, em muito, para a desagregação da família e a deseducação do ser humano.

O art. 28 § 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente ressalta os laços de

afetividade, afinidade e, preferentemente, o grau de parentesco entre a criança e a família

substituta, visando a preservação dos vínculos familiares originários, tanto quanto possível. 6

Assim, como se pode observar, no dizer de Rafael Becco Rossot:

O afeto deve ser provido por quem exerça o papel de pai e mãe. Deve-se adotar sentido amplo de família na intenção de acolher também os parentes (tios, primos e avós, por exemplo), e inclusive terceiros que não possuam qualquer vínculo sanguíneo (como os que detêm a guarda provisória da criança quando de sua colocação em família substituta). 7

Portanto, à família biológica ou socioafetiva cabe a importante missão de educar com

afeto a criança e o adolescente, incutindo-lhes os valores morais que lhes fornecerão a base

para a formação de sua personalidade.

5 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 66. 6 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). Art. 28: “A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta lei”. § 2°: “Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida”. 7 ROSSOT, Rafael Bucco. O afeto nas relações familiares e a faceta substancial do principio da convivência familiar. Anais da VIII Jornada de Iniciação Científica da Faculdade de Direito da UFPR/ centro acadêmico Hugo Simas e PET/direito – UFPR (organizadores) – n°. 01 (2006). Curitiba: Mulgraphic, p. 21.

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2.3 Preparo (Despreparo) para a Cidadania

A par da educação familiar, carente de bases morais de natureza firme, o País vive

grave crise na educação formal, em razão das ineficientes políticas públicas.

O Ministério da Educação, após pesquisa desenvolvida pelos órgãos destinados à

aferição dos resultados em educação no País, assinalou que dos “[...] 10,3 milhões de jovens

entre 15 e 17 anos, apenas 50,9% estavam no ensino médio”. 8

O abandono do ensino médio, segundo dados do Sistema de Avaliação do

Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), está relacionado ao desempenho

escolar no ensino fundamental, de modo que os alunos que foram aprovados ou estão em

idade escolar apropriada, no ensino fundamental, é que prosseguem o ensino médio. A taxa de

abandono dos bancos escolares é alarmante, em razão do desestímulo ou desinteresse que os

alunos têm em relação à frequência à escola. Múltiplas razões são apresentadas para tentar

explicar a evasão escolar, dentre estas, a baixa escolaridade dos pais e a situação econômica

da família que precisa dos eventuais recursos obtidos com o trabalho de crianças e

adolescentes.

A formação da cidadania está diretamente vinculada à frequência à escola, visto que

o despertar para o exercício dos direitos se dá pelo seu conhecimento. Ao tomar conhecimento

dos seus direitos e deveres, a criança e o jovem vão construindo uma personalidade firme,

adquirindo consciência do seu papel e presença na sociedade.

O preceito constitucional da “dignidade da pessoa humana” somente será plenamente

respeitado quando a sociedade e o Estado, ao lado da família, promovê-la como bem último,

expressão máxima da cidadania no País.

À educação incumbe a complexa tarefa de transformar crianças, adolescentes e

jovens em cidadãos.

João Evangelista, educador e pedagogo, após análise detalhada dos erros e acertos

das escolhas educacionais brasileiras, conclui que:

[...] a qualidade na educação básica depende, exclusivamente, da participação, do comprometimento, do compartilhamento e da persistência indômita da escola e da comunidade para o estreitamento da relação educando-educador. Talvez a evasão

8 DUARTE, Tatiana. Nota baixa afasta aluno do ensino médio. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 9, 5 dez. 2010.

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escolar se constitua na pior chaga da comunidade, incluindo-se como uma de suas causas a responsabilidade dos poderes públicos constituídos. 9

O atraso crônico de medidas que visam garantir a permanência do educando na

escola tem sido um dos grandes vetores do exercício de uma cidadania pela metade. O

contingente de analfabetos amplia o grau de ignorância que tem marcado a formação dos

futuros cidadãos, marginalizados pela pobreza, pelo analfabetismo e pela doença.

Diante desse fato, medidas precisam ser adotadas, motivadoras de continuidade dos

estudantes no ensino médio, única forma de formar cidadãos para o exercício dos seus

direitos. A conscientização da importância da educação para o pleno exercício da cidadania

depende de políticas públicas voltadas para este fim, valendo-se das mídias sociais, tão

atraentes aos adolescentes e jovens na atualidade.

Podem ser apontados, dentre outros, os seguintes reflexos do despreparo para o

exercício da cidadania, causados pelo abandono da escola (evasão) ou mesmo falta de acesso

à educação no País:

a) Desinformação quanto aos Direitos e Deveres

O fato de mal saber ler e escrever impede grande contingente de brasileiros de

conhecer os seus direitos, sendo facilmente, enganados, por exemplo, quando da aquisição de

bens ou a receber a prestação de serviços.

Pode-se constatar tal situação nos inúmeros casos de prejuízos sofridos pelos

consumidores de baixa renda, quando, atraídos pela publicidade, não conseguem se aperceber

das ciladas armadas por comerciantes e pessoas inescrupulosas. Ao se endividarem em

empréstimos consignados, por exemplo, não conseguem calcular a real taxa de juros e o

montante final da dívida, durante os meses (e até anos) em que se comprometem a pagá-la.

Ao assinar contratos cuja linguagem não compreendem, fazem-no louvando-se na

confiança e na boa-fé do prestador de serviços ou da mercadoria, o que nem sempre ocorre.

Este e outros exemplos são evidências rotineiras dos males que a desinformação,

causada pela ignorância, analfabetismo e abandono dos bancos escolares, pode causar ao

cidadão brasileiro.

9 EVANGELISTA, João. Um país que clama por educação. Os acertos e erros das escolas educacionais brasileiras. Revista Resol, ano 2, set/Nov. 2005. p. 14. Maiores informações disponíveis em: <www.resol.org.br>

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No exercício do sagrado direito de votar e ser votado, o cidadão analfabeto ou

semianalfabeto, é levado pela lábia de candidatos populistas, que lhes prometem o que não

podem fazer, angariando grande número de votos, sem que seus eleitores tenham noção dos

verdadeiros danos acarretados à democracia quando escolhem candidatos que trocam, por

exemplo, votos por mantimentos, cadeiras de rodas, próteses etc. Prejudicam-se diretamente e

a sociedade brasileira como um todo é agredida no que possui de mais valioso – os valores

democráticos.

b) Exclusão Social e Econômica

Vivendo-se na “era da informação”, da “sociedade de consumo” e da “liberdade de

valores”, a exclusão social se apresenta sob os mais diferentes matizes, fortemente sentidos

pelos adolescentes e jovens quando em contato com a dura realidade social.

Marginalizados economicamente, os adolescentes e jovens tornam-se frustrados pelo

fato de não poderem ter acesso a bens e serviços de sua faixa etária (a exemplo dos tão

festejados “objetos de marca”). Ao serem excluídos pela sua condição social e financeira da

participação de eventos desportivos, shows musicais etc, tornam-se agressivos, violentos etc,

reagindo a seu modo às limitações de sua condição.

O Estatuto da Criança e do Adolescente atento à importância do acesso à cultura, ao

esporte, ao lazer e, sobretudo, à educação, nos arts. 53 a 59 estabelecem regras quanto à sua

utilização pelas crianças e adolescentes. Encontram-se dispostos nos incisos I a V do art. 53

(direitos dos educandos); art. 54, incisos de I a VII (deveres do Estado) e parágrafos; art. 55 e

56 (deveres dos pais ou responsável, dos dirigentes de estabelecimentos de ensino

fundamental); art. 57, 58 e 59 (deveres do Poder Público, dos professores e entes federados no

tocante à destinação de “recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer

voltadas à infância e juventude”).

Muitos são os efeitos perversos da exclusão social, de sorte que o Poder Público tem

procurado, pelos mais diferentes meios, a inclusão de adolescentes e crianças, resguardando-

os do abandono e da discriminação. Referida proteção se inicia com o nascimento, ou mesmo

antes de sua ocorrência (na gestação), conforme prevêem os arts. 7º e 8 º do Estatuto.

Os danos provocados pela evasão escolar não se limitam apenas à vida intelectual,

mas se refletem sobre todos os aspectos da condição humana, repercutindo sobre as futuras

famílias que serão constituídas pelos que hoje abandonam os bancos escolares.

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Dentre os prejuízos advindos da exclusão social, ao lado de outros componentes do

meio, da família e da personalidade da criança e do adolescente, aparece a violência

intrafamiliar, além da urbana, ambas vivenciadas intensamente pela sociedade globalizada.

c) Violência Intrafamiliar e Urbana

A segurança pública no Brasil está enfrentando grave crise, sem que se procure

identificar as reais causas de sua ocorrência, cujas raízes são, sem dúvida, a violência

doméstica.

Algumas iniciativas legais foram tomadas para combater os conflitos intrafamiliares,

a exemplo, da denominada Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 7/8/2006); todavia, as políticas

públicas voltadas para a reestruturação da família, da educação infantil e da instrução dos pais

para o bom trato com os filhos ainda são incipientes. 10

A violência urbana nada mais é do que uma extensão dos conflitos familiares, uma

vez que os filhos tendo modelos domésticos de agressão, em que a violência e os maus tratos

são banalizados, reproduzem na escola, na rua e nos ambientes externos o que aprendem nos

lares.

O uso da força física na correção dos filhos, nem sempre se enquadra nos castigos

considerados “moderados” (...), como “palmadinhas”, mas chegam ao absurdo de provocarem

fraturas, feridas, queimaduras e outros graves danos físicos, gerando, como é de esperar,

revolta em crianças e adolescentes, sendo que muitos chegam a abandonar a família,

aumentando as estatísticas de “desaparecidos”...

A Constituição Federal, nos arts. 226 a 230, regula a família, estabelecendo-lhe os

fundamentos, a começar pela afirmação de que “a família é a base da sociedade” (art. 226),

ampliando o conceito tradicional de “família civil”, para o que identifica como “união

estável” (entidade familiar), como aparece no parágrafo 3º do precitado artigo. 11

O parágrafo 4º do art. 227, ao reconhecer como entidade familiar a “família

monoparental”, constituída por “qualquer dos pais e seus descendentes”, alarga os horizontes

legais da família no Direito brasileiro.

Além do reconhecimento da família como “base da sociedade”, podem ser invocados

os princípios da “dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável”, atribuindo a Lei

Maior a “liberdade de decisão no planejamento familiar” ao casal (art. 226 § 7º).

10 Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. 11 BRASIL, Constituição da República Federativa do: promulgada em 5 de outubro de 1988.

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Ao invocar o princípio da “absoluta prioridade” no trato da criança e do adolescente,

o art. 227 conferiu à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar-lhes o direito à

vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,

ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Prevê ainda, a Lei Maior que à família, à sociedade e ao Estado cumpre colocar a

salvo crianças e adolescentes de “toda forma de negligência, discriminação, exploração,

violência, crueldade e opressão” (art. 227, in fine).

Igualmente no mesmo dispositivo constitucional, em seu § 4º, expressamente o

abuso, a violência e a exploração sexual de criança ou adolescente são previstos como

passíveis de punição severa, consistindo no Estatuto crimes contra a criança e o adolescente

(arts. 225 e seguintes).

Descrevendo o cenário perturbador que envolve a violência familiar, Ana Maria

Iencarelli, psicóloga e psicanalista da criança e adolescente, afirma que:

A violência é um recurso eficaz, mas ilusório, para dar o alívio imediato de uma “solução”. Enquanto distorção, a violência faz aquele que está sofrendo por uma falta afetiva, assumir uma onerada autoria passível de punição, de rejeição, deixando, por vezes, como saldo a culpa. Além disso, como praticamos, inexoravelmente, a repetição de modelos pelos processos de imitação e identificação, negligenciado hoje, negligente amanhã, agredido hoje, violento amanhã, fica muito reduzida a chave de mudança desta engrenagem. 12

O espancamento dos filhos fere muito mais a sua formação moral e afetiva do que

apenas o seu corpo físico. Os abusos físicos, sexuais e psicológicos sofridos por crianças e

adolescentes nem sempre são computados pelos pesquisadores, embora as estatísticas

existentes já sejam alarmantes. 13

O medo do abandono, da separação da família, dos irmãos, dos pais, leva a criança e

o adolescente a se calarem quando indagados pelas autoridades, vizinhos, parentes etc.

Também a habitualidade dos maus tratos torna fragilizados os agredidos, de tal sorte que

perdem a noção da gravidade das ofensas sofridas.

Com o passar dos anos, tornando-se jovens, adultos e idosos conservam as marcas

dos sofrimentos recebidos na infância e na adolescência, sendo que muitos explodem em atos

de violência urbana, como se vê noticiado com bastante frequência.

12 IENCARELLI, Ana Maria. Quem cuida ama – sobra a importância do cuidado e do afeto no desenvolvimento na saúde da criança. In Cuidado e vulnerabilidade/ coordenadores Tânia da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira. São Paulo: Atlas, 2009, p. 168. 13 FREIRE, Albino de Brito. Palmadas racionais. Jornal Gazeta do Povo. Paraná, p. 2, 7 ago. 2010: o autor procura defender o que denomina de palmadas de advertência; como simples sinalização de que o filho está fazendo algo errado.

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Apesar da Constituição da República, no art. 144, considerar a segurança pública

como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a violência urbana tem tomado

alarmantes proporções. A impotência das autoridades no controle dos atos de violência urbana

transparece da Cartilha Comunitária de Segurança, editada pela Polícia Militar do Paraná,

com normas visando a colaboração das comunidades na promoção da segurança:

Além de cuidar da sua segurança e da de sua família, conforme ensinado neste manual, ajude a cuidar da segurança de seus vizinhos. Inicie desenvolvendo e compartilhando uma lista telefônica com o seu nome e de seus vizinhos, das organizações locais que são encarregadas de prover segurança, assistência social, emergência médica, aconselhamento, trabalho, treinamento, orientação e outros tipos de serviços que vocês possam necessitar.14

E ainda prossegue a mesma Cartilha:

Esforce-se para retirar os que já são criminosos de seu edifício ou de seu bairro. Isto inclui solicitar rigorosa fiscalização às autoridades federais, estaduais e municipais quanto às leis de silêncio, códigos de postura municipal, códigos de saúde, normas contra-fogo do corpo de bombeiro, vigilância sanitária e qualquer outra obrigação legal. 15

Inúmeros relatos, comentários, sugestões etc. podem ser adicionados à questão em

análise, mas o objetivo do texto é analisar a educação como instrumento transformador e

formador da cidadania, de modo que as observações já aduzidas são suficientes.

Os danos decorrentes da desinformação, da exclusão social e da violência

intrafamiliar e urbana são exemplos dos perversos efeitos da falta de acesso à educação ou

mesmo da evasão escolar.

2.4 Qualificação para o Trabalho

Dentre os princípios fundamentais presentes no art. 1º, IV da Constituição aparecem

“os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, além do previsto nos arts. 6º a 11 da Lei

Maior que regulam os denominados “direitos sociais”.

14 Paraná, Cartilha Comunitária de Segurança: Projeto povo, 2005. p. 15. 15 Idem, p. 16.

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O trabalho, ofício ou profissão são “livres” no tocante ao seu exercício (art. 5º, XIII),

desde que “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.

As expressões sinônimas que, usualmente, se utilizam, como enumera De Plácido e

Silva, são, por exemplo: “... obra, ocupação, tarefa, função, ofício, serviço, mister, emprego,

missão, cargo, encargo, faina etc.” 16

No sentido econômico toda atividade que possua valoração pecuniária, que produza

riqueza, utilidade, bens e serviços apreciáveis monetariamente, é considerada “trabalho”. Para

o Direito, o trabalho é uma espécie de contrato que se caracteriza pela existência de condições

estabelecidas em lei e que devem ser cumpridas, de parte a parte, para produzir os efeitos

jurídicos esperados.

Dentre as características do contrato de trabalho estão, por exemplo, a fixação de um

horário, de um salário ou remuneração, podendo ser em local predeterminado ou em

domicílio, observando normas preestabelecidas, de acordo com a sua natureza.

Por se tratar de um direito social (art. 6º) suas condições, direitos e deveres estão

expressamente previstos no art. 7º; reconhecendo a Lei Maior a liberdade de associação

profissional ou sindical (art. 8º); o direito de greve (art. 9º); a participação dos trabalhadores e

empregadores nos órgãos públicos em defesa dos seus interesses (art. 10), bem como a eleição

de representantes dos empregados para entendimento direto com os empregadores (art. 11).

Quanto às regras especiais regentes da atividade laboral, a Consolidação das Leis do

Trabalho (Decreto-Lei nº 5452, de 1º/05/1943) as estabelece, além de copiosa legislação

existente sobre as diferentes situações que envolvem a relação empregatícia. 17

Como se pode observar, a atividade que requer qualificação, observância de regras

técnicas, procedimentos próprios que, geralmente, são ensinados em cursos, periodicamente

fixados, com currículos, práticas, etc., corresponde ao que se denomina atividade profissional

ou, simplesmente, profissão.

Ao comentar a educação profissional e tecnológica, Osvaldo Vieira do Nascimento

afirma que a adequação dos currículos, ajustes e correção são essenciais à formação dos

futuros profissionais:

O êxito na Educação Profissional e Tecnológica depende sensivelmente dos seus currículos como essência dos conteúdos de cursos e programas de refletirem e

16 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 70. ed. vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 392. 17 BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho (decreto–lei 5.452, de 1º de maio de 1943).

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responderem às solicitações atuais, relativas às ocupações e práticas de instruções adequadas.18

No caso das crianças e adolescentes, o art. 6º do Estatuto proíbe, expressamente,

“[...] qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz”.

Os princípios que devem reger a formação técnico-profissional do adolescente estão

no art. 63 do Estatuto, visando, acima de tudo, o seu desenvolvimento.

Ao adolescente até quatorze anos de idade é assegurada bolsa de aprendizagem (art.

64); àquele maior de quatorze anos são garantidos os direitos trabalhistas e previdenciários

(art.65); e ao portador de deficiência é reconhecido o direito ao trabalho protegido (art. 66).

Quanto aos programas sociais que tenham por base o trabalho educativo, os

adolescentes deverão ter atendimento prioritário, uma vez que o trabalho educativo é, pelo

que dispõe o art. 68, §1º, “[...] a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas

ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo”.

Os precitados programas sociais podem ser de responsabilidade governamental ou

não, e a remuneração paga pela atividade não a desfigura como possuindo caráter educativo

(art. 68, §2º do Estatuto).

Por fim, garante o Estatuto que o adolescente tem direito à profissionalização e à

proteção no trabalho, desde que sejam levados em consideração os seguintes aspectos (art.

69):

“I – respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;

II – capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho”. 19

Roberto João Elias faz lembrar que houve significativa mudança do trato da

atividade laboral pelo texto do Estatuto, em relação ao disposto na legislação vigente

anteriormente:

Anteriormente o trabalho era permitido a menores de quatorze anos (art. 60 do ECA), porém agora, de acordo com o art. 7º, XXXIII, da CF, aos menores de dezesseis anos é proibido qualquer trabalho, exceto na condição de aprendiz, que é a partir de quatorze anos. Contudo, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre é proibido aos menores de dezoito anos. 20

18 NASCIMENTO, Osvaldo Vieira do. Educação profissional e tecnologia: princípios e filosofia. Curitiba: J.M. Livraria, 2010, p. 59. 19 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990). 20 ELIAS, Roberto João. Direitos fundamentais da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 87.

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Uma vez constatado o reconhecimento legal do direito à educação e à qualificação

para o trabalho, não só pelo Estatuto, mas pelo texto constitucional e estabelecidas diretrizes

para a erradicação do trabalho infantil (PETI: Portaria nº 458, de 4 de outubro de 2001), fica

evidenciada a carência de políticas públicas, sobretudo, para combater os efeitos prejudiciais

aos interesses da criança e do adolescente.

Dentre os danos causados ao futuro das crianças e adolescentes pela falta de acesso à

educação profissionalizante podem ser citados:

a) O subemprego;

b) O consumo de entorpecentes e o seu tráfico;

c) O trabalho infantil, em razão da miséria causada pela desqualificação profissional

dos pais;

d) A violência intrafamiliar e urbana, gerada, em muitos casos, pela pobreza no

ambiente familiar, motivando a prática de crimes contra o patrimônio, dentre

outros;

e) A carência de formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e

tecnologia (art. 218, §3º, CF); 21

f) A crescente dependência de bolsas, programas, auxílios, pensões etc da parte de

um contingente de brasileiros, cada vez maior, nutrida pelo despreparo profissional

destes cidadãos.

Assim, sem tentar exaurir os efeitos prejudiciais ao País, decorrentes da

desqualificação profissional de seus cidadãos, a enumeração feita visa, apenas, despertar

reflexões sobre a matéria.

3 O ESTATUTO: DIALOGANDO COM A LEI MAIOR

3.1 Perfis

O Estatuto da Criança e do Adolescente representou, quando de sua entrada em

vigor, um significativo avanço na proteção e na abordagem das questões referentes ao mundo

infantil e juvenil, cujo conhecimento, mesmo hoje, ainda está em fase inicial. 21 BRASIL, Constituição da Republica Federativa do Brasil (5 de outubro de 1988), art. 218, § 3º: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”; §3º: “O estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas e ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que elas se ocupem meios e condições especiais de trabalho.”

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A Psicologia tem dado grandes passos no sentido de investigar o “universo paralelo”

em que vivem, cada um a seu tempo, a criança, o adolescente e o jovem.

Como bem assinala Ted Ward, professor da Universidade Estadual de Michigan, em

East Lansing, Michigan, o mundo infantil é povoado de ansiedades, de fobias, de sentimentos

contraditórios, mas acima de tudo, de “mistérios”, representados pelos padrões, regras, etc.,

fixados pelos adultos e incompreensíveis à criança. 22

Com o desenvolvimento físico e mental, as limitações sensoriais infantis vão, aos

poucos, desaparecendo, ocorrendo a descoberta e utilização de formas mais adultas de pensar.

Com o passar do tempo, o raciocínio da criança evolui, por isso os pais não podem exigir que

pensem amadurecidamente antes do momento certo.

Jean Piaget (1896–1980), psicólogo suíço, passou toda a sua vida estudando o

comportamento das crianças, tendo publicado algumas das mais célebres obras de Psicologia

Infantil, a exemplo das seguintes: A Formação dos Símbolos (1946); A Biologia e o

Conhecimento (1967) e Memórias (1968).

Utilizou a observação em crianças, em todos os tipos de situações – nos brinquedos,

na escola, no lar etc., procurando ouvir atentamente como falam com os adultos, com outras

crianças e consigo mesmas. 23

Diversos componentes interferem ou contribuem para a formação do raciocínio de

uma criança, influenciando como é de se esperar, o seu modo de ser e agir quando

adolescente, jovem e adulto. Por exemplo, a hereditariedade, ou seja, a criança herda o

material genético dos pais, mas a capacidade de desenvolvimento de ideias abstratas, ou

mesmo de senso artístico, dependerá de outros fatores e experiências que vier a ter, no meio

em que vive.

As experiências obtidas no trato com as pessoas, sobretudo da família, formam em

seu desenvolvimento mental uma categoria especial, porque à medida que a criança se

desenvolve vai se tornando diferente, com identidade própria, construindo sua

personalidade.24

22 WARD, Ted. Os valores começam no lar. Trad. Darci e Nancy Gonçalves Dusilek. Rio de Janeiro: JUERP, 1981, p. 50. 23 PIAGET, Jean. O raciocínio na criança. Trad. Valerie R. Chaves. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 1967, p. 15-67. 24 WARD, Ted. Op. Cit., p. 51-54.

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A socialização é que permite o desenvolvimento mental, afetivo e moral da criança,

porque lhe propicia tornar-se mais independente, não só pela interação com os outros, mas

pelo tratamento que recebe. 25

À medida que a criança se relaciona com outras pessoas, além da própria família, é

modelada pelo processo de socialização. A escola, o clube, a Igreja, a família etc., permitem

este processo de socialização se intensificar.

O desenvolvimento da compreensão, processo mental que permite apreender o

significado dos seres e das coisas, se verifica quando as experiências não se ajustam ao que é

esperado pela criança que aprende, então, a lidar com as decepções, a ganhar, perder, tolerar,

repartir, emprestar etc.

O processo inicial de desenvolvimento mental da pessoa se completa em torno dos

12 (doze) anos, começando a adolescência que vai até os 18 (dezoito) anos completos.

Como bem assinala Munir Cury, o ser humano vive diferentes fases da vida de modo

que cada etapa é, a seu modo, “plena”, porque irrepetível, única, não retornando mais. 26

Brincar é essencial ao desenvolvimento da personalidade infantil; praticar esportes é

para adolescentes e jovens; a profissionalização e a formação da família para o adulto e o

descanso para o idoso.

No entanto, nada impede que possa o indivíduo brincar, divertir-se, praticar esportes,

realizar-se profissionalmente, formar família ou descansar em qualquer época da vida, mas na

fase própria a vivência e os resultados são mais satisfatórios, proveitosos, as alegrias que

trazem, também, dão à pessoa a sensação de plenitude.

O Estatuto, no art. 2º, identifica o adolescente como a pessoa entre doze e dezoito

anos de idade, acrescentando, no parágrafo único, que a Lei poderá, excepcionalmente, ser

aplicada às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. 27

A adolescência é vista como uma importante fase de transição na vida do ser

humano, entre a infância e a adultícia:

Esse conceito deve ser orientador do trabalho: adolescência não como crise, mas sim como uma importante fase de transição entre duas etapas da vida, na qual o indivíduo moldará a sua identidade, fará suas escolhas e se preparará para o ingresso no mundo adulto. É uma etapa em que o ser humano está deixando de ser criança, sem ainda ser adulto. 28

25 Idem, loc. cit. 26 CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 7. Ed. São Paulo: Malheiros Ed, 2005, p. 55. 27 BRASIL, Estatuto da criança e do adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990). 28 IASP, Cadernos do. Compreendendo o adolescente. Paraná: Imprensa Oficial do Paraná, 2006, p. 15.

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As mudanças corporais ocorridas na adolescência correspondem ao período

denominado de puberdade; as principais modificações são as alterações hormonais que se

iniciam entre 9 e 14 anos para os meninos e entre 8 e 13 anos para as meninas. 29

Os aspectos sociais da adolescência são influenciados pelo ambiente em que vive,

uma vez que as relações com a família, com os amigos, com os grupos, com a religião etc., é

que vão determinar a formação de sua identidade pessoal.

Os componentes psicológicos da adolescência são contraditórios, uma vez que se

trata de uma fase em que a instabilidade, a incerteza, as flutuações de humor, a rebeldia, os

conflitos familiares etc., constroem um quadro de grande intensidade emocional nesta etapa

da vida humana. 30

Um dos conflitos mais frequentes na adolescência é representado pela repulsa à

autoridade dos pais, dos professores, dos adultos em geral e por um acentuado ímpeto pela

emancipação, pela independência; tornando-se, em razão disto, o adolescente, uma pessoa

insubordinada.

A insubmissão à autoridade pode ser tolerada desde que represente uma fase

transitória, sendo que detectados sinais de desequilíbrio mental, torna-se necessário identificar

a possível presença do consumo de drogas, doenças etc.

É importante salientar que os revezes que a instituição familiar têm sofrido resultam

de inúmeras causas, desde as de natureza econômica, passando pelas mais comuns, quais

sejam, a ausência dos pais nos lares, o enfraquecimento dos laços afetivos etc.

Paulo Lúcio Nogueira, ao analisar a crescente vulnerabilidade de crianças e

adolescentes em razão da fragilização da família comenta que:

Não há dúvida que o grande problema consiste na reestruturação e auxílio à própria família, que é o fundamento primeiro da formação humana. A situação de desajuste e de pobreza da família gera a condição do menor carente ou abandonado. E a educação mais eficaz é justamente aquela dada no lar. 31

Crianças e adolescentes têm seus direitos elencados no Estatuto (Lei n. 8069, de 13

de Julho de 1990), construídos com base nos preceitos constitucionais (art. 227 e parágrafos),

que repousam em dois princípios basilares, a saber, proteção integral e prioridade absoluta de

atendimento. 32

29 Idem, ibidem, p. 16-17. 30 Idem, ibidem, p. 20-23. 31 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 12-13. 32 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente, (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990).

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3.2 Princípios Basilares

A “proteção integral” e a “prioridade absoluta” são dois princípios presentes no texto

constitucional que estabelecem os pilares processuais e hermenêuticos do Estatuto da Criança

e do Adolescente (Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990).

A criança e o adolescente são reconhecidos pelo art. 3º do Estatuto como sujeitos de

direitos fundamentais, gozando de proteção integral, além de plenitude de respeito à sua

condição de desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.

Como discorrem Murillo José Digiácomo e Ildeana de Amorim Digiácomo:

Tal disposição é também reflexo do contido no art. 5º, da CF/88, que ao deferir a todos a igualdade em direitos e deveres individuais e coletivos, logicamente também os estendeu a crianças e adolescentes. O verdadeiro princípio que o presente dispositivo encerra, tem reflexos não apenas no âmbito do direito material, mas também se aplica na esfera processual, não sendo admissível, por exemplo, que adolescentes acusados da prática de atos infracionais deixem de ter fielmente respeitadas todas as garantias processuais asseguradas aos acusados em geral, seja qual for sua idade [...] 33

Quanto à prioridade absoluta, é regulada pelo art. 4º do Estatuto como “dever da

família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público” a preservação dos direitos

elencados pelo mesmo artigo, além de sua efetivação.

Trata o parágrafo único do art. 4º de distintas situações em que as autoridades

públicas devem, obrigatoriamente, garantir prioridade na atenção da criança e do adolescente.

Não se pode interpretar este parágrafo de forma restritiva, mas, extensiva, uma vez que a

clareza do texto estatutário não deixa margem a dúvidas quanto à prevalência dos interesses,

carências e necessidades infanto-juvenis:

Como se depreende em rápida exegese do precitado dispositivo estatutário, existe

[...] um verdadeiro comando normativo dirigido em especial ao administrador público, que em suas metas e ações não tem alternativa outra além de priorizar – e de forma absoluta – a área infanto-juvenil, como vem sendo reconhecido de forma reiterada por nossos Tribunais [...] 34

33 DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado/Murillo José Digiácomo e Ildeara Amorim Digiácomo. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná – Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do adolescente, 2010, p. 13. 34 Idem, p. 14.

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O disposto no art. 227 da Constituição, seus parágrafos e incisos, encontra ecos

diretos e objetivos não apenas no art. 4º, parágrafo único do Estatuto, mas em todas as suas

prescrições, de modo que é evidente o diálogo que se estabelece com a Lei Maior.

Com a finalidade de correlacionar os preceitos da Carta da República com o Estatuto,

será feita breve síntese assim delineada: 35

Além da proteção integral aos seus direitos fundamentais e à efetivação dos mesmos,

com absoluta prioridade, as normas estatutárias deve ser interpretadas sempre levando-se em

conta a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º), em que se encontram a

criança e o adolescente.

Os seus direitos se apresentam no Estatuto arrolados em cinco grupos, a saber, vida e

saúde (arts. 7º - 14); liberdade, respeito e dignidade (arts. 15- 18); convivência familiar e

comunitária (arts. 19 - 52); educação, cultura, esporte e lazer (arts. 53 - 59); profissionalização

e proteção no trabalho (arts. 60 - 69).

Ocupa-se o Estatuto da prevenção de ocorrência de ameaça ou violação aos direitos

da criança e do adolescente, em todos os aspectos, mas em especial no que respeita à

informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos, produtos e serviços que possam

afetar-lhes a personalidade em desenvolvimento, sob qualquer ângulo (arts. 70 a 84).

Quanto à ação das políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente,

cabe ao Poder Público articulá-las mediante a colaboração com organizações não-

governamentais, além da atuação da União, Estado, Municípios e Distrito Federal (art. 86 -

97).

As medidas de proteção (arts. 98-102) e a prática de ato infracional (arts. 103-126),

somadas às medidas aplicáveis aos pais ou responsável (art. 129-130) compõem a garantia de

respeito e dignidade que o Estatuto visa promover, ao afastar, no art. 5º, “qualquer forma de

negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” praticada contra

criança ou adolescente.

Com a participação da comunidade são escolhidos os membros do Conselho Tutelar

(arts. 131 a 140), cujas atribuições estão previstas no art. 136 do Estatuto, objetivando o

atendimento e a promoção de iniciativas voltadas ao bem-estar da criança e do adolescente.

O acesso à Justiça da criança e do adolescente se dá pela Defensoria Pública,

Ministério Público e Poder Judiciário, respeitados a gratuidade e o sigilo dos atos judiciais

35 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990).

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(arts. 141-144), sempre que os seus interesses assim o exigirem, sendo vedada qualquer forma

de discriminação ou restrição ao pleno exercício de seus direitos em juízo.

Caberá à Justiça da Infância e da Juventude julgar as ações previstas no art. 148,

incisos e alíneas, bem como disciplinar, mediante portaria e alvará, os atos que estão previstos

no art. 149, incisos e alíneas do estatuto. Os procedimentos adotados pela Lei n. 8069/1990 se

aplicam subsidiariamente às normas gerais previstas na legislação processual pertinente (arts.

152 a 224).

Os crimes e infrações administrativas são regulados pelo Estatuto nos arts. 225 a 258,

sem prejuízo do disposto na legislação em vigor.

Diante da analise sumaria realizada e das questões por este diploma legal arroladas, é

evidente a interlocução existente entre os preceitos da Lei maior e do Estatuto, traduzindo sua

relevância social e ética para o País.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao conferir à educação a natureza de direito fundamental, o art. 205 da vigente

Constituição especificou diretrizes que foram examinadas detidamente nas reflexões ora

concluídas.

Por primeiro foi analisado o pleno desenvolvimento da pessoa, cujo leque de

situações envolve desde os aspectos físicos, aos emocionais e intelectuais. Considerou-se a

educação como processo, portanto, com prolongamento no tempo, que na infância e

adolescência deve ser lastreado pela afetividade e embasado nos valores, princípios e

tradições de uma comunidade, grupo ou família. Assim, sendo o ambiente doméstico

acolhedor, a criança e o adolescente se tornarão pessoas amáveis e com responsabilidade

social. Conforme destacado, em palavras de Ted Ward, o ser humano é “totalmente

dependente”, vale dizer, somente se realiza em grupo, construindo sua personalidade como

reflexo dos valores e, na infância, tal insuficiência é marcante, pelas mais distintas razões, a

começar pela carência afetiva, somada à alimentar e sanitária. Cabe, igualmente, ao teor do

art. 205, à sociedade o dever de colaboração, ao lado do Estado e da família, promovendo e

incentivando ações educativas.

Na sequência, abordou-se o preparo para a cidadania como diretriz do processo

educativo, à luz do texto constitucional. Verificou-se a presença de situações persistentes, a

exemplo da evasão escolar, causada por inúmeros fatores, dentre estes a baixa escolaridade

dos pais, além da situação econômica da família. À educação incumbe a missão de

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transformar crianças, adolescentes e jovens em cidadãos compromissados com os valores da

sociedade à qual pertencem, além de conscientes de seu papel político. Foram levantadas no

texto três questões problemáticas, representativas dos reflexos do despreparo para o exercício

da cidadania, causados pelo abandono escolar ou mesmo falta de acesso à educação no País:

desinformação quanto aos direitos e deveres (apatia, alienação, acomodação), sobretudo dos

analfabetos, iletrados ou com letramento precário; exclusão social e econômica, com

crescente marginalização de um elevado contingente de cidadãos e, por fim, a violência

intrafamiliar e urbana, cujos efeitos perversos estão, a todo momento na mídia. Representada

pelo espancamento, abandono, maus tratos físicos, emocionais etc a insegurança social nada

mais é do que o espelho das condições de precariedade afetiva, moral e intelectual das

famílias.

Quanto à qualificação para o trabalho deu-se atenção a questões remanescentes do

próprio sistema ou decorrentes da falta de êxito na formação profissional e tecnológica de

grande número de adolescentes (menores aprendizes) e jovens (mão de obra informal).

O trabalho é um direito social (art. 6º) na Lei Maior, cujas condições, direitos e

deveres estão expressamente previstos no art. 7º, também, da Carta Constitucional. Proibições

aparecem no tocante a qualquer trabalho por menores de 14 (quatorze) anos, no texto da

Constituição, cujos princípios que devem reger a formação técnico-profissional do

adolescente se encontram no art. 63 do Estatuto. Valores do trabalho devem ser incutidos

desde os primeiros momentos de contato do adolescente aprendiz com a atividade

profissionalizante, intensificando-se com a formação do jovem.

Deu-se no texto destaque ao diálogo do Estatuto com os princípios constitucionais

não só do art. 205, mas que permeiam as disposições em geral, pela necessidade de contínua

interlocução com a realidade socioeconômica educativa do País. Os perfis da criança e do

adolescente foram esboçados no texto sob o enfoque psicopedagógico, socorrendo-se a

análise de fontes diversas, legais, científicas e técnicas, não só do Direito, mas de outras áreas,

conforme referenciado nas reflexões elaboradas. Fundamentou-se uma breve síntese do

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990) nos princípios

presentes na Lei maior (“proteção integral” e “prioridade absoluta”), igualmente diretores da

hermenêutica material e formal da mencionada legislação estatutária.

Considerando-se que a pedra de toque do texto foi a análise das diretrizes do art. 205

da vigente Constituição e a percepção da urgente necessidade de promoção, incentivo e

acesso à educação quanto, sobretudo, à infância e adolescência; verificou-se que as políticas

públicas ainda são insuficientes para atender a demanda reprimida.

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As possíveis soluções atravessam diversas áreas dos setores públicos e privados,

mas, o começo de qualquer iniciativa em educação está, sem dúvida, na conscientização dos

educadores e na mobilização da sociedade.

REFERÊNCIAS

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A TEORIA GERAL DO GARANTISMO E A ESTRITA LEGALIDADE APLICADA A

DIREITOS SOCIAIS: O EXEMPLO DA LEI 12.010/2009

A GENERAL THEORY OF GUARANTEEISM AND STRICT LEGALITY APPLIED TO

SOCIAL RIGHTS: THE EXAMPLE OF LAW 12.010/2009

Francisco José Rodrigues de Oliveira Neto1

RESUMO

Uma das transformações mais significativas que ocorreu no sistema jurídico brasileiro, diz respeito ao protagonismo judicial que ocorreu após a edição da Constituição de 1988. Tal questão tem sido objeto de um debate permanente que envolve, além das justificativas para esta atuação, os limites da mesma. Dentre as teorias que podem auxiliar e dar respostas efetivas a essa questão, está a Teoria Geral do Garantismo, a qual tem como espaço privilegiado de aplicação o Estado Constitucional de Direito e trás um conceito que se mostra fundamental no enfrentamento da questão relaciona ao ativismo judicial: a estrita legalidade que, em face da dupla artificialidade do sistema (formal e material), possibilita um controle mais democrático das políticas públicas. E foi justamente o que ocorreu com a edição da Lei 12.010/2009 a qual reformou parte do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90), reduzindo o espaço de discricionariedade judicial de forma adequada e positiva. PALAVRAS-CHAVE: Estado Constitucional de Direito. Ativismo Judicial. Garantismo. Direitos Sociais. ABSTRACT

One of the most significant changes in the Brazilian legal system relates to judicial prominence that occurred after the enactment of the 1988 Constitution. Such a question has been the subject of an ongoing debate that involves the justifications for this action and its limits as well. Among the theories that can help and give effective answers to this question, there is the General Theory of Guaranteeism, which has as a privileged space for the application of State Constitutional Law and brings a fundamental concept in addressing the issue related to the judicial activism: the strict legality that, given the dual artificiality of the system (formal and material), enables a more democratic control of public policies. And it was precisely what occurred with the enactment of Law 12.010/2009 which reformed part of the Children and Adolescents Statute (Law 8069/90), reducing the area of judicial discretion in an appropriate and positive manner. KEYWORDS: State Constitutional Law. Judicial Activism. Guaranteeism. Social Rights.  

1 Doutor em Direito (UFSC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí-SC (UNIVALI) e do curso de graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Juiz de Direito de 2º Grau (Desembargador Substituto) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). Lattes: http://lattes.cnpq.br/9181238721519519. Email: [email protected]

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1 INTRODUÇÃO

Analisadas as transformações ocorridas no cenário jurídico nacional, uma das

características mais marcantes é, sem dúvida alguma, o protagonismo judicial a partir da

edição da Constituição da República em 1988. Defendido por alguns, criticado por outros, o

fato é que em nenhum outro momento de nossa história republicana o Poder Judiciário esteve

tão à frente do atendimento das políticas públicas incorporadas ao texto constitucional como

hoje.

E é justamente daí que surge o debate sobre os limites da atuação jurisdicional, já

que para alguns o poder de escolha do administrador público e do legislador não pode ser

invadido pela atuação do Poder Judiciário. Para eles, tal quadro leva a um rompimento do

princípio da separação de poderes, causando a substituição de um governo ou de um

legislador democraticamente eleito, pela vontade de um agente político não legitimado para

tanto. Já para outros, tal se mostra normal e aceitável em um Estado Democrático de Direito,

cuja característica principal é a total submissão aos comandos colocados na Constituição,

documento esse que tem a pretensão de dirigir todos os setores da vida em sociedade.

Outra questão importante que resulta dessa oposição de ideias a respeito dos limites

da atuação dos Juízes está ligada a segurança jurídica, a qual – se adotada a tese que admite a

inexistência de limites quando se trata da realização de direitos constitucionalmente

assegurados – restaria comprometida ante a ausência de soluções uniformes para problemas

comuns.

Partindo de uma visão negativa dessa atuação, o que se aclarará ao longo do texto, o

objetivo aqui é demonstrar como é possível a utilização da Teoria Geral do Garantismo para

fazer frente a esse protagonismo. Afinal, Luigi Ferrajoli – seu idealizador –sustenta uma

concepção negativa do exercício do poder, combatendo claramente o autoritarismo na política

e o decisionismo no Direito. Diz ele que, no exercício do poder há sempre presente um

potencial abuso e sua neutralização somente ocorrerá de modo eficaz com a sustentação de

uma visão instrumental do Direito e do Estado.

Disso decorre uma complexidade específica dos ordenamentos de constituição rígida:

uma dupla artificialidade que não resulta somente do caráter positivo das normas produzidas –

marca fundamental do positivismo jurídico –, mas também pela sua sujeição ao Direito –

marca fundamental do Estado Constitucional de Direito. A produção jurídica está disciplinada

por normas, tanto formais como substanciais, de direito positivo. Eis o resgate do princípio da

legalidade, através da chamada “dupla artificialidade”, que é um dos caminhos mais seguros

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para enfrentar essa difícil questão, a exemplo do que ocorreu com o direito penal, onde o

princípio da legalidade (formal e material) tem sido utilizado com sucesso para evitar a

permanente tentativa de endurecimento do sistema penal como resposta à criminalidade. Igual

prática deveria e poderia ser adotada como os direitos sociais, onde há ainda um campo fértil

para a busca de tais limites, a fim de que ajudem a justiça brasileira a encontrar parâmetros

mais claros em relação à satisfação dessa modalidade de direitos.

Exemplo disso foi o que ocorreu com o direito da criança e do adolescente, e essa é a

questão se pretende explorar a seguir.

2 A TEORIA GERAL DO GARANTISMO

Como já dito nos capítulos anteriores, duas transformações paralelas e semelhantes

deram-se em campos diversos do conhecimento e influenciaram não só o modo de

compreensão do Direito, mas também as funções reservadas ao Estado contemporâneo. A

primeira ocorreu na Filosofia do Direito, que admitiu a existência de um novo momento, o

“pós-positivismo”, cuja essência reside no reconhecimento de que há um novo paradigma a

merecer atenção, o paradigma constitucional, o qual tem como marca fundamental a

superação do mero legalismo. A segunda ocorreu na Teoria do Estado. Nela, em lugar de um

Estado de Direito e da centralidade do princípio da legalidade como norma de reconhecimento

do Direito vigente, surge um Estado Constitucional de Direito, que se apresenta como

superação do primeiro. A mudança reside na crescente importância das constituições

contemporâneas, nelas destacadas duas características fundamentais: supremacia e rigidez.

Esses documentos tornam-se os elementos centrais da nova formulação, que requer

instrumentos aptos para a realização dos direitos fundamentais, categoria que se apresenta

como elemento central desse novo momento.

A prática de declarar direitos em cartas constitucionais, ação iniciada com as

revoluções liberais – especialmente a francesa no século XVIII, ganha força com esses

movimentos. Nasce a esperança de que, transformadas as aspirações sociais em direitos

fundamentais, e estes, por sua vez, colocados a salvo em Constituições protegidas das

maiorias eventuais, ter-se-ia proteção suficiente para criar uma sociedade livre das barbáries

ocorridas ao longo dos anos.

Constatou-se, porém, sua insuficiência, já que a dificuldade atual está localizada não

mais no reconhecimento de direitos e na sua declaração, mas sim “em como juridicizar o

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Estado Social, como estabelecer ou inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para

garantir os direitos sociais básicos, a fim de fazê-los efetivos” (BONAVIDES, 2005, p. 338).

Tal é, sem dúvida alguma, o ponto fundamental para a superação final das antigas

estruturas do Direito e do Estado – que ainda privilegiam antigas técnicas –, estruturas essas

totalmente inadequadas para fazer frente a este novo desafio. O pensamento que proclama

uma compreensão do sistema apenas e tão somente pela vinculação formal do conjunto

normativo, já não tem mais lugar no pós-positivismo e no Estado Constitucional e

Democrático de Direito.

Daí que cuidadoso exame merecem as ideias de Ferrajoli, expostas inicialmente em

Diritto e Ragione, obra publicada na Itália em 1989 e traduzida para o espanhol em 1995.

Desde então protagonista de grandes discussões, foi depois detalhada em uma série de

trabalhos publicados, com especial atenção aos livros que apresentam os debates com outros

professores, os quais serão analisados mais à frente.

A pretensão de Ferrajoli é construir uma “teoria geral do Garantismo”, razão pela

qual dedica os dois últimos capítulos de sua obra Direito e Razão a tratar do assunto. Na base

de seu pensamento, há a identificação de três aspectos de uma crise profunda e crescente

vivida pelo Direito na atualidade.

A primeira crise é a chamada “crise da legalidade”, ou seja, do valor vinculante

associado as regras pelos titulares dos poderes públicos, que se expressa pela ausência ou

pela ineficácia dos instrumentos de controle. Seu resultado imediato é a ilegalidade do poder.

Um reflexo dessa situação pode ser encontrado em vários Estados – europeus ou não – em

que há uma espécie de Estado paralelo que funciona baseado na corrupção e se estende por

todas as áreas (política, economia, administração pública etc.) (FERRAJOLI, 2001, p. 15).

A segunda está ligada à inadequação das estruturas do Estado de Direito para dar

conta das novas funções a ele atribuídas no chamado Welfare State. Se antes a marca

fundamental do modelo na sua versão liberal era a de protetor de uma esfera de

individualidade, cuja atuação não exigia apenas a imposição de limites e proibições, agora

tudo muda. Exige-se do Estado de Direito Social uma atuação positiva, atuante, pró-ativa, de

que resulta uma inflação legislativa que é provocada pelos mais diversos setores sociais com

leis cada vez mais específicas, parecendo meros atos administrativos. Há dificuldade para a

consolidação de um sistema de garantias tão eficiente como foram aqueles criados para

proteger os postulados do liberalismo, situação agravada pela acentuação do caráter

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incompleto, seletivo e desigual que se manifesta na crise pela qual este modelo de Estado

passou no início dos anos setenta.

A terceira crise está relacionada ao debilitamento do Estado Nacional e se manifesta

no deslocamento dos lugares da soberania, já que as questões relacionadas, por exemplo, às

questões militares, de política monetária e políticas sociais escapam de suas fronteiras,

passando a depender mais de questões externas do que de questões internas. Além disso, há

um enfraquecimento do constitucionalismo, ante a inexistência de suporte teórico em Direito

Internacional que resolva a inserção desses novos espaços decisórios externos no sistema das

fontes de Direito.

No raciocínio de Ferrajoli, o problema central está em que essas três crises podem

colocar em colapso a própria Democracia, já que, por trás de todas elas, está presente uma

crise da legalidade, ou seja, do princípio da legalidade na sua versão mais pura e naquilo que

tem de mais precioso: a vinculação de todos às normas legais. Sua ausência gera a ilegalidade

do poder e formas neoabsolutistas de exercício do poder público “carentes de limites y de

controles y gobernadas por intereses fuertes y ocultos, dentro de nuestros ordenamentos”

(FERRAJOLI, 2001, p.17).

A esse respeito pode ser dito ainda que – como se trata de uma teoria que se

desenvolve no ambiente do Estado Constitucional de Direito e é própria dele – não traz

consigo a simples defesa de um mero legalismo, até porque o Garantismo é incompatível com

a falta de limitação jurídica do poder legislativo, já que a mera sujeição do juiz à lei

possibilitaria a convivência com as políticas mais autoritárias e antigarantistas (ABELLÁN,

2005, p. 21).

Sustenta sim, a partir de uma concepção negativa do exercício do poder, vez que

reconhece que há sempre presente um potencial abuso, que sua neutralização somente

ocorrerá de modo eficaz com a sustentação de uma visão instrumental do Direito e do Estado.

O Garantismo se opõe de modo veemente “al autoritarismo en política y al decisionismo em

derecho, propugnando, frente al primero, la Democracia sustancial y, frente al segundo, El

principio de legalidad; en definitiva, El gobierno sub leges (mera legalidad) y per leges

(estricta legalidad)” (ABELLÁN, 2005, p. 22).

Pensar o contrário colocaria em risco as conquistas do Estado Moderno, em especial,

os direitos fundamentais, já que é inegável a perda de confiança que pode gerar,

especialmente após a constatação das crises existentes que afetam diretamente o sistema

normativo e, como já destacado, o princípio da legalidade. É bem verdade, afirma Ferrajoli,

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que, na época da implantação do sistema juspositivista, o quadro não era diferente, ou era até

pior, mais complexo e irracional. Contudo, não se pode negar que a razão jurídica atual tem a

seu favor um aliado importante: os progressos do constitucionalismo, que permitem

configurar e construir o Direito atual – muito mais do que se permitiu no velho Estado Liberal

– com um sistema artificial de garantias constitucionalmente preordenadas para a tutela dos

direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2001, p. 18).

Tal decorre de uma complexidade específica dos ordenamentos de constituição

rígida: uma dupla artificialidade que não resulta somente do caráter positivo das normas

produzidas – marca fundamental do positivismo jurídico –, mas também pela sua sujeição ao

Direito – marca fundamental do Estado Constitucional de Direito. A produção jurídica está

disciplinada por normas, tanto formais como substanciais, de direito positivo (FERRAJOLI,

2001, p. 19).

Nesse passo, Garantismo e Estado Constitucional de Direito são expressões que se

identificam, podendo até mesmo afirmar-se que o segundo expressa a fórmula política do

primeiro, de modo que, apenas por meio desse, aquele consegue realizar seu programa, até

porque “solo este modelo político incorpora um riguroso ‘principio de estrita legalidad’, que

supone el sometimiento del poder no únicamente a limites formales, sino también a los limites

sustanciales impuestos por los principios y derechos fundamentales” (SANCHÍS, 2005 p.

41).

Pois bem, voltando à mencionada “dupla artificialidade”, é preciso dizer que ela se

constitui na mais importante conquista do Direito contemporâneo, já que o modelo garantista

se opõe frontalmente ao modelo paleopositivista, na medida em que se apresenta como uma

garantia diante do Direito ilegítimo. Nessa construção, as Constituições são fundamentais, já

que é na sua primazia como sistema de limites e vínculos para a maioria que deve ser

reconhecida uma das suas dimensões essenciais, não menos importante que sua dimensão

política. É o que Ferrajoli chama de dimensão substancial da Democracia, em contraposição à

dimensão meramente formal, constituída precisamente pelo princípio da maioria.

Há, contudo, um aspecto importante que leva necessariamente ao reconhecimento da

segunda dimensão, a substancial: no cerne da primeira, está localizada a confusão entre

Democracia e princípio da maioria, de forma a se entender esta última apenas como o poder

da maioria legitimado pelo voto popular. Tal compreensão [...] ignora la que es la máxima adquisición y al mismo tiempo el fundamento del Estado constitucional de derecho: la extensión del principio de legalidad también al poder de la mayoría y, por consiguiente, la rígida sujeción a la ley de todos los

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poderes públicos, incluindo el legislativo, y su funcionalización a la tutela de los derechos fundamentales constitucionalmente garantizados (FERRAJOLI, 1995, p. 11).

Eis o reconhecimento de uma dimensão substancial da Democracia, com o

importante detalhe de que estes vínculos materiais não são outra coisa senão as garantias dos

direitos fundamentais, desde os direitos de liberdade até os direitos sociais: [...] cuya estipulación ha introdocido, en la estructura misma del principio de legalidad propio del actual estado constitucional del derecho, una racionalidad sustancial que se ha añadido a la racionalidad formal propia del viejo positivismo jurídico y del paradigma roussoniano de la Democracia Política, basados ambos en la omnipotencia del legislador de mayoria (FERRAJOLI, 1995, p. 12).

Partindo de uma base de Direito Penal, em que se visualiza com perfeição a

divergência entre a normatividade do modelo constitucional e a ausência de efetividade nos

níveis normativos inferiores, Ferrajoli sustenta a já referida "Teoria Geral do Garantismo".

Como ele mesmo afirma: La orientación que desde hace algún tiempo se conoce por el nombre de 'Garantismo' nació en el campo penal como una réplica al creciente desarrollo de la citada divergencia, asi como a las culturas jurídicas y políticas que la han avalado, ocultado e alimentado, casi siempre en nombre de la defensa del estado de derecho y del ordenamiento democrático (FERRAJOLI, 1995 p. 851).

A partir daí, Ferrajoli propõe o significado da palavra "Garantismo" em três

concepções diversas, suscetíveis de ser trasladadas para todos os campos do conhecimento

jurídico.

A primeira delas decorre do entendimento de Garantismo como um modelo

normativo de Direito, já que é justamente a partir do Direito Penal que a palavra representa a

ideia de estrita legalidade, própria do Estado de Direito; a segunda representa a acepção do

termo Garantismo como uma teoria jurídica da validez e da efetividade, consideradas

categorias distintas entre si, e também da vigência ou existência das normas. Nesse caso, a

palavra Garantismo expressa uma aproximação teórica que mantém separados o ser do dever

ser do Direito, além de propor como questão central a divergência existente – nos

ordenamentos complexos – entre: modelos normativos (tendencialmente garantistas) y práticas operativas (tendencialmente antigarantistas), interpretándola mediante la antinomia – dentro de ciertos limites fisiológica y fuera de ellos patológica – que subsiste entre validez (e inefitividad) de los primeros y efectividad (e invalidez) de las segundas (FERRAJOLI, 1995, p. 85).

Por fim, na terceira forma de compreender Garantismo, a palavra designa uma

filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado uma “carga de la justificación externa

conforme a los bienes y a los intereses cuya tutela y garantia constituye precisamente la

finalidad de ambos” (FERRAJOLI, 1995, p. 853).

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Ferrajoli explica ainda que esses três sentidos, que até aquele momento haviam sido

usados com uma conotação unicamente relacionada ao Direito Penal, contêm um alcance

teórico mais amplo e desenham uma teoria geral fundada nos seguintes aspectos: 1) caráter de

vinculação do poder público no Estado de Direito; 2) divergência entre validade e vigência

produzida pela existência de normas em níveis diversos dentro do sistema jurídico e certo

grau (irredutível) de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de níveis inferiores; 3)

distinção entre ponto de vista externo (ou ético-político) e ponto de vista interno (ou jurídico)

e daí a divergência entre justiça e validade; e, por fim, 4) autonomia e precedência da justiça e

um certo grau de ilegitimidade política das instituições vigentes com relação a ela

(FERRAJOLI, 1995, p. 854).

Por todos esses motivos, fica evidente que a ampliação do campo de incidência do

Garantismo jurídico é perfeitamente possível, já que a similitude de questões a ser superadas

do antigo Estado de Direito e a construção de estruturas para a plena vigência do Estado

Constitucional de Direito, assim apontam. Some-se a isso a identidade estrutural entre os

diversos sistemas presentes no ordenamento jurídico, elemento que torna possível a ampliação

dessas estruturas para os mais diversos campos do Direito que, na atualidade, passam pelos

mesmos problemas.

3 AS MUDANÇAS PROVOCADAS PELA INTRODUÇÃO DO GARANTISMO

JURÍDICO EM UM MODELO DE POSITIVISMO CLÁSSICO

A apresentação das mudanças trazidas pelo novo modelo de Garantismo leva

necessariamente a um confronto direto com a concepção de Direito sustentada pelo

positivismo clássico, diferença essa que pode ser percebida nos seguintes planos: 1) no plano

da Teoria do Direito, em que se faz necessária uma revisão da concepção de validade das

normas jurídicas, que decorre da diferenciação que é feita entre validade e vigência; 2) no

plano da teoria política, já que agora se postula o reconhecimento da dimensão substancial da

Democracia, não sendo mais suficiente apenas sua compreensão no plano formal; 3) no plano

da teoria da interpretação e da aplicação da lei, vez que agora se impõe ao juiz uma nova

postura, com a redefinição do seu papel, e, ainda, das condições para que se dê sua

vinculação; e, 4) no plano da ciência jurídica, que se afasta de uma postura meramente

descritiva do sistema, para assumir uma postura crítica em relação ao seu objeto.

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3.1 O Garantismo e a Teoria do Direito

No que se refere à primeira alteração, evidencia-se uma clara superação das teses

apresentadas por três dos mais importantes teóricos do Direito no século passado: Kelsen,

Bobbio e Hart. Isto porque, conforme Ferrajoli, a validade da norma não é mais identificada

unicamente por sua conformidade com as normas que regulam sua produção e que também

pertencem a esse ordenamento (FERRAJOLI, 2001, p. 20).

Para o autor, essa concepção é uma simplificação indevida do sistema normativo e

resulta da falta de compreensão da complexidade do princípio da legalidade no Estado

Constitucional de Direito, já que não se pode desconhecer que neste, o sistema de normas

sobre a produção de normas não se compõe unicamente de regras formais que tratam de

competência ou procedimentos, mas sim – e também – traz “normas sustanciales, como el

principio de igualdad y los derechos fundamentales, que de modo diverso limitan y vinculan

al poder legislativo excluyendo o imponiéndole determinados contenidos” (FERRAJOLI,

2001, p. 21).

Isso significa que uma norma deixa de ser reconhecida somente pelo atendimento aos

requisitos previstos para sua criação. Passa a exigir também respeito à matéria que é objeto

dessa lei, que não poderá jamais contrariar o conteúdo da “norma de reconhecimento”. Para

os aspectos formais, há o conceito de vigência, que serve justamente para a verificação do

respeito, ou não, aos procedimentos para a elaboração da norma, da competência para sua

edição e do atendimento aos requisitos necessários para produzir seus efeitos. Para as

questões relacionadas à sua substância, ao seu conteúdo, ao seu aspecto material, busca-se o

conceito de validade, que é resultado direto da dupla artificialidade do sistema jurídico que

hoje se reconhece.

Há uma imposição de limitação ao poder do legislador – já que na compreensão de

Ferrajoli a possibilidade do abuso do poder está sempre presente – a qual é feita

fundamentalmente através da separação dos conceitos de vigência e validade da norma, que

deixam de ser compreendidos como um só, o que ocorria no estado paleopositivista de

Direito. Agora uma norma será justa, se merecer a aprovação moral, juízo que é externo ao

sistema; será válida, se não contiver vícios materiais, ou seja, não contrariar normas

hierarquicamente superiores; será vigente, se preencher os requisitos formais previstos no

sistema; e, por fim, será eficaz se observada pelos destinatários (ABELLÁN, 2005, p. 26).

Contudo, apesar das vantagens identificadas na teoria apresentada por Ferrajoli –

considerada como uma completa Filosofia do Direito que inclui teses metodológicas,

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conceituais e axiológicas – ainda assim algumas dificuldades podem ser encontradas,

especialmente no que se refere à separação entre vigência e validade. Nesse sentido, Abellán

afirma que, ao se considerar a vigência como uma categoria submetida a um juízo

interpretativo e não um mero juízo de fato, e a validade também como um juízo de

interpretação e não de valor indecidível, em ambos os casos não há como se afastar de uma

discricionariedade interpretativa, no segundo caso mais presente do que no primeiro

(ABELLÁN, 2005, p. 33).

A consequência disso é que a validade se torna então um juízo externo, afirmação

reforçada pela interpretação de Ferrajoli apresentada por Abellán, para quem: interpretar la constituición no consiste solo en atribuir significado al texto normativo según el canon interpretativo de la intención de su autor, sino según la filosofia política que subyace a la misma y que esta solo imperfectamente recoge; es decir, según el modelo axiológico del Garantismo (ABELLÁN, 2005, p. 35).

Apesar de apontar que esse efeito pode levar ao enfraquecimento do Garantismo, vez

que o coloca em posição próxima àqueles a quem critica, é preciso dizer que esse detalhe

pode ser compreendido de outra forma.

É que – além de se tratar de um juízo interno e não externo – detém um forte

componente de racionalidade sistêmica, ausente no exame da justiça da norma, uma vez que,

como lembra Serrano: el juicio de validez depende de los mecanismos internos de control del sistema jurídico, en mucha mayor medida que el juicio de justicia pueda depender de mecanismos de control de los sistemas Morales. Los sistemas jurídicos están más diferenciados y son, en este sentido, mucho más cerrados que los sistemas Morales (SERRANO, 1999, p. 53).

Ainda em relação ao entendimento de validade sustentado por Ferrajoli, tal

sustentação leva ao reconhecimento de que – a partir daí – se constroem três novas esferas de

decisão política, inexistentes na compreensão do sistema jurídico no modelo paleopositivista

do Estado de Direito, em que validade e vigência se confundem. São elas: 1) a do indecidível

formada pelo conjunto de direitos de liberdade e de autonomia que impedem decisões –

expectativas negativas – que podem lesioná-los ou reduzi-los; 2) a do indecidível formada

pelos direitos sociais que impõem decisões – expectativas positivas – dirigidas a satisfazê-los;

e, por fim, 3) a do decidível, instância em que se legitima o direito de autonomia, tanto

política (através da representação) como privada (através das regras do mercado). E é

justamente nesse ponto, de acordo com Sanchís: [que a] Democracia formal aparece generada por los derechos de autonomia que determinan quién y cómo se manda; la Democracia sustancial viene delimitada por los derechos de liberdad que dan lugar a obligaciones de abstención o respeto de âmbitos de inmunidad (lo indecidible) y por lo derechos sociales que reclaman

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acciones positivas de dar o de hacer (lo indecidible que no) (SANCHÍS, 2005 p. 43).

Dá-se então o ponto de encontro das duas formas de compreender o sistema,

promovendo a ligação entre o aspecto formal e o substancial, com especial ênfase aos direitos

fundamentais.

3.2 O Garantismo e as Dimensões da Democracia (Formal e Substancial)

Na relação entre Garantismo e Democracia, o que sobressai é a compreensão de um

aspecto até então encoberto ou desconhecido da Democracia, que é a sua dimensão

substancial, já que de um olhar para a Democracia que servia apenas para ditar procedimentos

de coleta da vontade popular, passa-se a perceber a existência de outro aspecto em relação a

ela, agora voltado para a garantia de direitos não só da maioria, mas também da minoria, vez

que seu reconhecimento impede que a primeira anule ou aniquile os direitos da segunda, sem

qualquer possibilidade de existência de uma onipotência da primeira, o que resulta de uma

compreensão de Democracia plebiscitária ou majoritária.

E é justamente em oposição a essa compreensão limitada de Democracia que

Ferrajoli aponta a existência de uma Democracia constitucional, a qual se contrapõe a uma

Democracia legitimada unicamente pela vontade da maioria que desqualifica os limites

impostos ao poder executivo, tido como um poder absoluto no modelo paleopositivista de

Estado de Direito (FERRAJOLI, 2008, p. 25).

A esse pensamento se opõe a moderna concepção de Constituição, já que reduz (ou

elimina) sua principal função por meio da imposição de limites ao poder. Para Ferrajoli, a

essência do constitucionalismo e do Garantismo – e da Democracia constitucional reside precisamente en el conjunto de limites impuestos por las constituciones a todo poder, que postula en consecuencia una concepción de la Democracia como sistema frágil y complejo de separación y equilíbrio entre poderes, de limites de forma y de sustância a su ejercicio, de garantias de los derechos fundamentales, de técnicas de control y de reparación contra sus violaciones (FERRAJOLI, 2008, p. 27).

Nesse novo modelo, o Estado constitucional está submetido ao Direito, tanto quando

os demais poderes do Estado, o que se dá em função da supremacia constitucional, elemento

que se apresenta como uma das grandes novidades nos sistemas políticos do pós-guerra. Dá-

se o surgimento de um novo paradigma que passa a informar todo o Direito, redefinindo sua

função dentro do sistema social, o qual pode ser mais bem compreendido se observado que é a

partir do fim da Segunda Guerra mundial – quando o homem percebe que sua capacidade de

destruição é superior a sua capacidade de construção – que se dá o seu surgimento. É

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justamente ali que se veem os malefícios que podem ser causados pela maioria diante da

ausência de limites a ela e, ainda, que o consenso das massas não pode ser a única fonte de

legitimação do poder (FERRAJOLI, 2008, p.28). Há uma redescoberta das constituições com

uma leitura mais ampla do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de

1789, em que estava dito que só tinha Constituição a sociedade que garantisse direitos e

separasse poderes.

A tudo isso se agrega um novo elemento: a rigidez constitucional, elemento que se

apresenta com a concepção hierarquizada do sistema jurídico – de onde decorre a supremacia

do texto constitucional – e que resulta, conforme Ferrajoli: en la sujeición al derecho de todos los poderes, incluso el poder legislativo, em el plano del derecho interno y también el del derecho internacional: su sujeición, precisamente, al imperativo de la paz y a los princípios de justicia positiva, y ante todo a los derechos fundamentales, establecidos tanto em las constituciones estatales como en ese embrión de constituición mundial constituido por la Carta de las Naciones Unidas y la Declaración universal de los derechos humanos (FERRAJOLI, 2008, p. 29).

Esse novo elemento faz com que o momento de elaboração de uma Constituição seja

um momento especial, único. Com isso, retira-se da maioria o poder de supressão de direitos e

garantias, e asseguram-se os direitos à minoria, o que autoriza a afirmação de que o Estado

Constitucional é mais do que Estado de Direito, já que o elemento democrático nele

introduzido não foi apenas ali colocado para travar o poder, foi também inserido pela

necessidade de legitimação desse mesmo poder (CANOTILHO, 2003, p.100).

Há uma constitucionalização da ordem jurídica, que pode ser identificada com as

chamadas “sete condições de constitucionalização” já mencionadas, que é preciso repetir: 1)

rigidez constitucional, de modo que qualquer reforma do texto maior somente poderá se dar

através de um processo mais agravado do que aquele utilizado para a aprovação, modificação

ou revogação das leis ordinárias; 2) controle de constitucionalidade, decorrente da rigidez e da

supremacia da Constituição, que funciona como mecanismo de proteção da autoridade do

texto fundamental, ao prever modos de retirar do sistema o que lhe for contrário; 3) força

vinculante da Constituição, já que não se pode admitir que um texto com essa importância

deixe de gerar obrigação aos cidadãos e ao poder público, até porque “al asegurar el carácter

normativo de las constituciones se garantiza la vinculación a las cláusulas constitucionales de

los poderes públicos y los ciudadanos en los momentos de política ordinária” (PEÑA

FREIRE, 2004, p. 34); 4) A adoção de uma interpretação extensiva da Constituição, ou seja,

uma compreensão da Constituição de modo a extrair também as normas implícitas nela

inseridas; 5) Aplicação direta das normas constitucionais, o que impõe a compreensão de que

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se trata de um documento que – em lugar de estar no topo do ordenamento jurídico – também

pode ser visto no centro de uma estrutura de onde irradia toda sua força normativa; 6)

Interpretação das leis ordinárias conforme a Constituição, o que significa levar a extremos o

controle de constitucionalidade, incorporando as modernas técnicas de fiscalização da

constitucionalidade das leis, alçando, inclusive, as variações de interpretação das normas fora

do texto maior; e, por fim, 7) Influência da Constituição nas relações políticas, o que decorre

diretamente da aceitação do documento perante a comunidade em geral (GUASTINI, 2005, p.

50-58).

De todas as mencionadas, não há dúvida de que as duas primeiras são essenciais e

fundamentais nesse processo, já que são justamente elas que determinam a colocação da

Constituição em um novo espaço que a diferencia daquele que lhe era reservado no antigo

Estado Paleopositivista de Direito. Com isso, tem-se uma Constituição resultante da

compreensão de que com ela esse espaço servirá como um elemento de superação da

debilidade estrutural presente no antigo Estado de Direito.

Afirma-se o caráter jurídico e vinculante dos textos constitucionais, a rigidez e a

qualificação de determinados referentes jurídicos, tais como os direitos fundamentais, signos

desse processo (CADEMARTORI, 2006, p. 20).

Nesse passo, torna-se explícita a compreensão de que os direitos fundamentais

constituem a base da igualdade moderna, igualdade em direitos que evidencia duas

características estruturais que diferenciam essa categoria de direitos de todas as demais. A

primeira pode ser percebida no direito de propriedade, este, um tipo de direito que pode ser

chamado de universal, já que corresponde a todos na mesma medida, diferentemente do que

ocorre com os direitos patrimoniais, que são direitos excludentes, posto que um sujeito pode

ou não ser detentor, com um importante detalhe que deve ser levado em consideração: ao ser

uma pessoa titular de um direito desse tipo, dá-se a exclusão dessa possibilidade para todas as

demais. A segunda está relacionada à indisponibilidade e à inalienabilidade, tanto ativa como

passiva, características que “los sustrae al mercado y a la decisión política, limitando la esfera

de lo decidible de uno y otra, y vinculándola a sua tutela y satisfacción” (FERRAJOLI, 2001,

p. 23).

Aqui também, evidentemente, estão presentes os elementos que sustentam um Estado

Constitucional de Direito em superação ao velho Estado de Direito de matrix paleopositivista,

já que essenciais se mostram duas de suas características já ressaltadas, a saber, a supremacia

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e a higidez do texto constitucional. Ocorre dessa forma pelo simples fato de que esses dois

elementos colocam a salvo de toda e qualquer maioria eventual os direitos da minoria.

Adianta Ferrajoli que a dupla artificialidade – que determina a existência de normas

que tratarão da vigência e de normas que tratarão da validade das normas – serve também

para o reconhecimento de que a dimensão formal da Democracia estará atenta a quem decide

e a como se dá a decisão política, ao passo que a dimensão substancial (ou material) está

focada sobre o que pode ou não ser objeto da decisão política (FERRAJOLI, 2001, p. 23).

3.3 O Garantismo e o Papel do Juiz

Se na Teoria do Direito e na extensão de mais um significado ao entendimento do

que é Democracia, os reflexos do Garantismo se fazem presentes, idêntica situação ocorre em

relação à atividade jurisdicional e às possibilidades interpretativas que se abrem para o

operador do Direito. Em verdade, e especialmente no que se refere ao primeiro ponto, há uma

redefinição do papel que o juiz pode ocupar dentro do sistema, já que será a jurisdição uma

função que dará a garantia ao cidadão de que a norma inválida e que não diga respeito aos

parâmetros substanciais, deixará de ser aplicada por falta de vinculação. Com isso, a

ilegitimidade do poder que a colocou no sistema ficará evidenciada, já que, no novo sistema, a

vinculação do juiz não será mais à lei, como no velho Estado Paleopositivista de Direito.

Agora, no Estado Constitucional de Direito, a vinculação se dá à Constituição, pois nela estão

depositados os valores fundamentais da sociedade expostos sob o título de direitos

fundamentais. Como explica Ferrajoli: En esta sujeición del juez a la Constituición, y, en consecuencia, en su papel de garante de los derechos fundamentales constitucionalmente establecidos, está el principal fundamento actual de la legitimación de la jurisdición y de la independencia del poder judicial de los demás poderes, legislativo y ejecutivo, aunque sean – o precisamente porque son – poderes de mayoría. (FERRAJOLI, 2001, p. 26).

Disso decorre uma importante consequência que diz respeito ao fundamento do

exercício da atividade jurisdicional, a partir do reconhecimento de que sua atribuição é a

garantia de direitos fundamentais com o respeito à dupla artificialidade do sistema. Cai por

terra o dogma de que sua legitimação está relacionada apenas e unicamente à separação de

poderes. Há, como se vê, um deslocamento, de modo que: Esta legitimación no tiene nada que ver com la de la Democracia Política, ligada a la representación. No se deriva de la voluntad de la mayoría, de la que asimismo la ley es expresión. Su fundamento es únicamente la intangibilidad de los derechos fundamentales (FERRAJOLI, 2001, p. 27).

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O que se pode extrair disso é uma mudança fundamental que se dá com a alteração

na concepção do Estado de Direito – e sua passagem para um Estado Constitucional de

Direito – e a compreensão do Garantismo não mais como apenas uma mera proteção dos

direitos de liberdade em relação ao Estado, ou diante dele, entendimento histórico da

expressão. Se antes era assim entendido, o que gerava uma função jurisdicional típica do

liberalismo calcada na ideia de separação dos poderes, agora a concepção de Garantismo

representa uma forma de identificar a Democracia constitucional própria do Estado

Constitucional de Direito (IBANHES, 2005, p. 61).

Isso explica sua raiz penal e a ampliação para a garantia de todos os demais direitos

fundamentais, legitimando e justificando a atuação judicial para essa proteção – já que o

sistema constitucional atual impõe de maneira vinculante uma Teoria Crítica do Direito, não

mais limitada e na ocultação das divergências entre o ser e o dever ser, mas que problematiza

o Direito, perdendo o juiz seu papel tradicional imposto pela visão kelseniana do

ordenamento.

3.4 O Garantismo e a Ciência Jurídica

No que se refere à quarta e última das alterações produzidas no velho Estado de

Direito em sua versão juspositivista, está ela relacionada à afirmação de que situações como a

incoerência, a falta de plenitude, as antinomias e as lacunas são vícios insuperáveis do sistema

jurídico. Na visão de Ferrajoli, tal situação – em lugar de alimentar um pessimismo em

relação às possibilidades do Direito – no Estado Constitucional e Democrático de Direito,

constituem-se em seu maior mérito. O que à primeira vista se mostra paradoxal, deixa de sê-lo

ao se observar que justamente as características do Estado Democrático de Direito é que

excluem as formas de legitimação absoluta e permitem sempre “más que la legitimación, la

deslegitimación del ejercicio de los poderes públicos por violaciones o incumplimientos de las

promesas altas e difíciles formuladas en sus normas constitucionales” (FERRAJOLI, 2001, p.

28).

Diante disso, evidencia-se um papel destinado à ciência jurídica inexistente no antigo

modelo, que é justamente o de exercer um papel crítico em relação ao seu objeto de estudo, e

não apenas e tão somente descritivo. Com a já falada dupla artificialidade existente no sistema

de normas jurídicas, surgem possibilidades dentro do sistema – e não mais de fora dele – de se

promoverem as correções necessárias para impedir o abuso de poder manifestado pela

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inserção de normas que violem esse mesmo conjunto normativo, agora não unicamente pela

forma de inserção, mas também pelo conteúdo.

Importante observar que esse papel crítico, que se dá no campo da legitimidade da

norma, está ligado – também – ao seu conteúdo, a partir do exame da sua validade que, como

já exposto, difere da vigência. A esse respeito, ainda é preciso destacar a questão relacionada

à justiça da norma, que difere tanto da vigência quanto da validade.

Em relação ao primeiro, tal se evidencia pelo fato de que a vigência é apenas e tão

somente relacionada à existência jurídica da norma, ou seja, é um juízo de fato que abre a

possibilidade de observação dos aspectos meramente formais exigidos para que a norma possa

fazer parte do ordenamento jurídico. Quanto ao segundo, as diferenças se mantêm, já que se

trata de um juízo de adequação entre o conteúdo da norma e o conteúdo das normas

superiores a ela. Contudo, há um ponto que merece destaque: aqui há uma identidade entre o

juízo de justiça da norma e a sua validade, relacionada à estrutura do exame que é feito. Tais

coincidências ocorrem em dois pontos: 1) juízos valorativos e 2) juízos complexos, difusos ou

de grau, em oposição ao de vigência, que é simples ou binário (sim ou não), já que “establecer

que uma norma jurídica deriva de otra o, cuando menos, que no es incompatible com Ella no

es uma operación geométrica o posibilística, sino una determinación probabilística de grados”

(SERRANO, 1999, p. 52).

Em síntese, pode-se lembrar com Cademartori quando afirma que essa forma de

compreender e abordar o Direito “coloca em questão dois dogmas do positivismo jurídico

dogmático: a fidelidade do juiz à lei e a função meramente descritiva e avalorativa do jurista

em relação ao direito positivo vigente” (CADEMARTORI, 2006, p.104).

4 A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LEI 12.010/2009 COMO UM

EXEMPLO DE APLICAÇÃO DA ESTRITA LEGALIDADE E A LIMITAÇÃO

POSITIVA DA ATIVIDADE JURISDICIONAL

Quando o assunto é direitos sociais, um dos pontos mais sensíveis da Constituição da

República é o que trata do direito das crianças e dos adolescentes e se evidencia na ênfase

dada ao assunto, tratado em um capítulo inteiro da Constituição de 1988. Dos artigos que

tratam da matéria, o principal é o de número 227, em que está dito: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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Pela simples leitura desse artigo, percebe-se uma ênfase especial à chamada “política

da proteção integral”, expressão que resume a visão doutrinária adotada pelo sistema

constitucional brasileiro, deixando para trás as formas antes privilegiadas que, ao longo dos

anos, mostraram-se insuficientes para dar conta do problema, ainda mais violadoras do que

garantidoras de direitos e, por isso mesmo, inadequadas como mecanismos de proteção às

crianças e adolescentes.

Para compreender o alcance dessa mudança de paradigma, é preciso voltar ao início

do século passado, quando o Brasil editou o Decreto n. 17.943-A, de 12 de outubro de 1927,

ato legislativo que modificou a situação de total descaso até então existente em relação aos

menores. Esse documento, na época considerado um avanço, olhado com a distância do

tempo, mostra-se insuficiente, já que trata a criança e o adolescente de forma única,

desconsiderando as diferenças entre as duas fases do crescimento, o que se percebe ao

observar que todos eram tratados de forma geral como “menores abandonados” e, a partir daí,

colocados na condição de “filhos do Governo”.

Alguns dispositivos são interessantes e bem demonstram a visão equivocada, como é

o caso do art. 15 que preconizava: “A admissão dos expostos á assistencia se fará por

consignação directa, excluido o systema das rodas”. Essa norma possibilitava a entrega da

criança para o Estado sem a identificação da genitora, de forma anônima. Admitir essa

condição significa tratar a criança como um objeto à disposição do adulto, sem levar em

consideração a existência de seu direito à convivência familiar.

Outro exemplo está no art. 26 do já mencionado Decreto que considerava como

abandonados e colocava sob a tutela do Estado, não só aqueles que tinham menos de 18 anos

sem habitação certa ou meios de subsistência por serem os pais falecidos ou desaparecidos,

como também os “que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou

libertinagem” mesmo que seus pais fossem conhecidos (inciso V, do art. 26, do Decreto n.

17.943-A, de 12.10.1927).

Como se vê, para situações completamente diversas, era o mesmo o tratamento

previsto. Caso houvesse o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de

direito, seria outra a intervenção proposta.

Essa compreensão equivocada manteve-se nas legislações posteriores, dentre as

quais merece destaque o Código de Menores de 1979, que adota a chamada “Doutrina da

Situação Irregular” e afirma em seu artigo 1º que aquele código tratava da “assistência,

proteção e vigilância a menores”. O mencionado código descreve no art. 2o o que entende por

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menor em “situação irregular”: aquele que estivesse em falta, omissão ou impossibilidade dos

pais; fosse vítima de maus tratos; corresse perigo moral; estivesse em desvio de conduta ou

fosse autor de infração penal. Mais uma vez, em lugar da individualização, o trato genérico

exclusivamente focado no adulto.

Com o já mencionado art. 227 da Constituição de 1988 e a adoção da política de

proteção integral, muda-se por completo essa concepção que traz como marca: 1) a

compreensão de que a violação de qualquer direito da criança ou do adolescente é de

responsabilidade da família, da sociedade ou do Estado; 2) desaparecem as caracterizações

ambíguas como “risco”, “perigo moral”, “situação irregular” que nelas permitiam o

enquadramento de qualquer situação fora do padrão ditado pelos adultos; 3) as crianças e os

adolescentes são sujeitos de direitos, e não mais meros problemas ou objetos à disposição dos

adultos; e, por fim, 4) há uma forte atenção à garantia dos direitos, não se preocupando o

legislador apenas com sua declaração.

Dentro dessa linha foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.

8069/90), ato normativo que tem por pretensão detalhar toda a “política da proteção integral”

– como anuncia já nos seus primeiros artigos – e o faz a partir de uma estrutura dividida em

três sistemas de garantias: em primeiro, as políticas públicas de atendimento (arts. 4a a 87);

em segundo, as medidas de proteção destinadas às crianças e aos adolescentes em situação de

violação de seus direitos (arts. 98 a 101); e, por fim, um sistema que trata de medidas sócio-

educativas aplicáveis a adolescentes em conflito com a lei. Os demais dispositivos tratam das

estruturas que darão suporte a este sistema de garantias, como os Conselhos, a Justiça da

Infância e da Juventude, as infrações administrativas e os crimes específicos, bem como suas

penalidades.

De início, uma das características que pode ser percebida no trato do direito da

infância e da juventude no Direito brasileiro é que, de uma concepção que nominalmente era

protetiva, mas na prática era seletiva, já que deixava aos aplicadores da norma um largo

espaço para, inclusive, escolher quem deveria se enquadrar nos seus conceitos, caminhou-se

para a adoção de uma legislação que identificava melhor os casos que a ela deveriam se

submeter, abandonando as denominações ambíguas e o espaço de escolha do aplicador da

norma.

Agora, embora evidente a escolha desse caminho, há ainda um largo espaço de

discricionariedade deixado ao aplicador da norma (seja na esfera administrativa, seja na esfera

jurisdicional) quando se trata da implementação de qualquer dos direitos ali previstos. O que

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se vê é que, na aplicação concreta desses dispositivos, ainda persistem inúmeras

possibilidades de interpretação, a exemplo, registre-se, do que ocorreu com a distribuição de

remédios nos casos de portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de

AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida).

É bem verdade que, com a edição da Lei n. 9313/96 (que determina a distribuição

gratuita de medicamentos), houve uma redução das decisões judiciais contraditórias,

caminhando-se para uma uniformização. Mas é preciso recordar o que ocorria antes dela: de

um lado, decisões determinando a concessão do remédio de forma gratuita a toda e qualquer

pessoa que dele necessitasse; ao mesmo tempo, de outro, decisões negando essa possibilidade

pelos mais diversos argumentos, os quais iam desde a falta de estrutura do Estado para

atender a todos, até julgamentos morais relacionados aos portadores da referida síndrome.

É inegável que parte do problema foi resolvida, mas também é inegável que em

muitas outras situações ele persiste, o que se dá pela existência de um ponto comum entre

eles: a existência de “vazios” legislativos que possibilitam arbítrios jurisdicionais e tratamento

desigual a situações semelhantes. Tanto isso é verdade que, na tentativa de resolver esse

problema, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação n. 31, de 30 de março de

2010, documento que apresenta várias medidas que devem merecer a atenção do juiz quando

se depara com pedidos dessa natureza, tudo com o objetivo de evitar decisões conflitantes que

importem em gastos inadequados ao Estado, seja com medicamentos ainda em fase

experimental, seja com medicamentos de eficácia duvidosa ou destinados a pessoas em

condições de arcar com seus custos.

É justamente aqui que se aplicaria a noção da estrita legalidade, agora

redimensionada em face da dupla artificialidade proclamada por Ferrajoli, ou seja, em face do

vínculo formal e do vínculo substancial, sempre tendo por parâmetro a Constituição Federal e

a possibilidade de uso dos seus instrumentos de defesa, em especial, o controle de

constitucionalidade.

A exemplo do que já ocorre com o Direito Penal, abre-se a possibilidade de

construção de um sistema garantista de ordem social mais claro e aplicável com maior

facilidade, evitando a contaminação de concepções pessoais, que estariam impedidas de

invadir a esfera de atuação judicial como forma de limitar o exercício dos direitos

fundamentais. Além disso, obrigaria de modo mais claro o administrador a implementar tais

direitos.

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Retomando o caso do direito da criança e do adolescente, foi justamente isso que

ocorreu com a edição da Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009, com o objetivo de aperfeiçoar a

sistemática prevista para garantia do direito à convivência familiar a todas as crianças e

adolescentes. Pela leitura dos seus diversos artigos, que promovem alterações substanciais no

Estatuto da Criança e do Adolescente, o que se percebe não é uma mudança de concepção no

trato da matéria como antes colocada, mas sim uma especificação dos institutos previstos,

detalhando-os de modo mais claro, não só em relação aos procedimentos que devem ser

adotados, mas também em relação às condições para a ocorrência de uma série de situações

jurídicas.

Exemplo disso é o que diz agora o art. 19, § 2º: “A permanência da criança e do

adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois)

anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente

fundamentada pela autoridade judiciária”. Antes dele, não havia qualquer prazo fixado para a

busca de uma solução, abrindo-se um grande espaço de liberdade ao juiz para a escolha do

destino a ser dado à criança naquela situação, sem qualquer justificativa. Isso agora não será

mais possível diante da obrigatoriedade de justificar quando o prazo previsto for superado.

Outro ponto que igualmente demonstra a opção pelo detalhamento em lei com o

objetivo de evitar manifestações contraditórias é o que trata da habilitação para adotar. Desde

a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/1990), foi implantado na

maioria dos juizados da infância e juventude espalhados pelo Brasil um sistema que dispunha

que toda adoção deveria ser antecedida por uma habilitação prévia. Esta era feita por meio de

um pedido assinado pelos próprios requerentes, em que, além de apresentar as características

da criança ou adolescente por eles desejado, anexavam alguns documentos. Depois, os

pretendentes eram submetidos a um estudo social e, com manifestação do Ministério Público,

era prolatada uma decisão judicial declarando-os habilitados, ou não, ato que poderia merecer

recurso à instância superior.

A lei determina os cuidados referentes à adoção em artigo específico em que se lê: Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção.

§ 1º O deferimento da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do Juizado, ouvido o Ministério Público.

§ 2º Não será deferida a inscrição se o interessado não satisfizer os requisitos legais, ou verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 29.

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Percebeu-se, no entanto, que, em inúmeras comarcas espalhadas pelo Brasil, tal

procedimento era limitado à simples colocação do nome do interessado em um livro após

contato com as assistentes sociais, o que era feito sem qualquer formalidade maior que

permitisse conhecer mais o pretendente e, após isso, elaborar um juízo seguro sobre sua

preparação para a responsabilidade de assumir uma criança ou adolescente.

A falta de uniformidade no proceder levou à necessária regulamentação de modo

mais detalhado daquilo que antes já era a intenção do legislador, ou seja, uma avaliação

preliminar do pretendente a fim de dar maior segurança às novas adoções. Para tanto, o

legislador detalhou de modo mais claro o procedimento a ser seguido, reduzindo a

possibilidade de dispensa do procedimento.

É o que se vê nos parágrafos e incisos incluídos no art. 50, da Lei 8069/90 a partir da

Lei n. 12010/2009, merecendo destaque a obrigatoriedade de “preparação psicossocial e

jurídica”, agora prevista no novo parágrafo 3º, do art. 50, o que torna explícita a intenção da

habilitação: preparar as pessoas para a adoção. É ali que está colocado: A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.

Além disso, o novo parágrafo 4º também trata e regulamenta algo que na prática já

ocorre, mas que precisa ser organizado, o contato dos pretendentes com as crianças e

adolescentes disponíveis para adoção: Sempre que possível e recomendável, a preparação referida no § 3º deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes em acolhimento familiar ou institucional em condições de serem adotados, a ser realizado sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento e pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.

Com isso, evitam-se situações indesejáveis como, por exemplo, o contato com todas

as crianças, inclusive aquelas não disponíveis para adoção, o que pode gerar sofrimento

desnecessário aos pretendentes e às crianças, já que – caso haja interesse na adoção – essa seja

obstada pela existência de vínculos com os genitores. Com a visita e o contato orientados, os

encontros se darão somente com as crianças e adolescentes em condições de adoção.

Idêntica é a situação quando se trata do deferimento do pedido de adoção. Na

redação anterior do Estatuto da Criança e do Adolescente, não havia qualquer menção

expressa de que a adoção deveria ser deferida apenas a pessoas previamente habilitadas no

cadastro de adoção. Havia a previsão desse cadastro em apenas dois artigos e nada mais. Tal

situação gerou uma grande divisão na doutrina e na jurisprudência, havendo quem afirmasse a

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obrigatoriedade da inscrição prévia, ao lado de outros que afirmavam ser ela desnecessária e

mera formalidade. Com isso, admitiam-se adoções que, na maioria dos casos, acobertavam

transações comerciais.

Com a nova lei, a situação aclarou-se. O parágrafo 13 do art. 50 afirma: Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:

I - se tratar de pedido de adoção unilateral;

II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;

III - quando oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.

Com esse dispositivo, mais uma vez, limita-se a liberdade do julgador, de modo a

obrigá-lo a seguir um critério mais claro, e menos pessoal, no deferimento das adoções,

tornando explícita a necessidade de que o cadastro seja a principal opção para a aproximação

de crianças e adolescentes e pretendentes, colocando a adoção direta (ou pronta) – aquela em

que as pessoas já comparecem ao juizado com a criança ou adolescente que pretendem adotar

– como uma exceção limitada à hipótese prevista no inciso III. Isso evita o comércio, a

intermediação indevida e a exploração que poderá daí decorrer. Garante o direito à

convivência familiar, já que é possível um trabalho com a família biológica para a

recolocação da criança ou adolescente entre seus membros, além de aumentar as

possibilidades de sucesso da adoção por força da preparação anterior já tratada, fundamental

para evitar as devoluções.

Estes exemplos demonstram como é possível tornar a atividade jurisdicional mais

democrática e menos pessoal, privilegiando a compreensão de que o fato de ser instrumento

para a garantia de direitos fundamentais ou de agente político não autoriza qualquer agente do

Estado a se arvorar em detentor de uma legitimidade inexistente em um sistema político em

que a busca do equilíbrio no exercício do poder é uma das marcas fundamentais.

Evidentemente que haverá casos em que a estrita legalidade não será suficiente.

Contudo, não se pode esquecer que hoje temos um sistema de controle de constitucionalidade

bem desenhado, com imposição de respeito aos limites formais e materiais ditados pela

Constituição, o que, por certo, contribuirá para impedir abusos legislativos ou, ainda, abusos

nas decisões judiciais.

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A TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

E OS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE

THE OUTSOURCING IN PUBLIC ADMINISTRATION

AND PUBLIC HEALTH SERVICES

Marcos de Oliveira Vasconcelos Júnior1

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Terceirização 3. Terceirização no âmbito da Administração Pública 4. Terceirização de serviços públicos de saúde 5. Terceirização na área de saúde por meio de organizações sociais 6. Conclusão

RESUMO: O presente artigo trata da terceirização de serviços públicos de saúde pela Administração Pública, buscando traçar as principais características desse método de gestão tipicamente empresarial. O objetivo do presente estudo é, basicamente, delimitar as normas e princípios aplicáveis quando da utilização da terceirização pelo Poder Público. O ponto de partida é a compreensão das normas da Constituição brasileira relacionadas ao tema. Entre as várias formas de terceirização de serviços públicos de saúde, é analisada aqui, a título exemplificativo, a delegação por meio de organizações sociais, que tem encontrado grande resistência nos meios acadêmicos devido à sua má utilização pelo Poder Público. PALAVRAS-CHAVE: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA; SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE; TERCEIRIZAÇÃO; LIMITES; ORGANIZAÇÕES SOCIAIS. ABSTRACT: This article is about the outsourcing of public health services by Public Administration, in order to describe the main characteristics of this typical business management’s method. The objective of this study is basically to define the rules and principles that are applied to the use of outsourcing by the Government. The starting point is the understanding of Brazilian Constitution’s rules related to the subject. Among the various forms of outsourcing of public health, it is analyzed here, as an example, the delegation through social organizations, which has found great strength in academic circles due to its misuse by the Government. KEYWORD: PUBLIC ADMINISTRATION; PUBLIC HEALTH SERVICES; OUTSOURCING; LIMITS; SOCIAL ORGANIZATIONS.

1 INTRODUÇÃO

1 Mestrando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Público (2012) e Direito Processual (2009) pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Advogado.

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Busca-se no presente estudo analisar o instituto da terceirização de serviços públicos,

com foco no compartilhamento de responsabilidades entre a iniciativa privada e o Estado,

especialmente no que diz respeito ao serviço público de saúde, a fim de investigar alguns

limites para a utilização desse processo de gestão da atividade do Poder Público.

Em um primeiro momento, pretende-se avaliar o conceito de terceirização, tanto no

meio empresarial, no qual surgiu, quanto no âmbito estatal, em que vem sendo intensamente

utilizada atualmente. A partir daí, vai-se indagar a respeito das possibilidades constitucionais

e legais para a terceirização de serviços públicos de saúde, adentrando, especificamente, na

transferência desses serviços às organizações sociais.

2 TERCEIRIZAÇÃO

O termo terceirização é uma criação linguística derivada do latim tertius, que quer

dizer terceiro. Não se trata, porém, sob o aspecto puramente técnico, da figura normativa do

“terceiro”, típica das relações civilistas ou processuais. Nessas, enquanto o terceiro é

exatamente o estranho em uma relação jurídica entre duas ou mais partes, na terceirização

este sujeito integra, efetivamente, a relação jurídica e, embora seu vínculo seja como

interveniente ou intermediário, ele não é um estranho.

Segundo Maurício Godinho, esse “neologismo [terceirização] foi construído pela

área de administração de empresas, fora da cultura do Direito, visando enfatizar a

descentralização empresarial de atividades para outrem, um terceiro à empresa”

(DELGADO, 2006, p. 428).

Acerca do conceito de terceirização, Maria Sylvia Zanella Di Pietro esclarece que

“existe certo consenso entre os doutrinadores do direito do trabalho em definir a

terceirização como a contratação, por determinada empresa, de serviços de terceiro para o

desempenho de atividades-meio”. (DI PIETRO, 2012, p. 212).

No âmbito do Direito do Trabalho, Maurício Godinho traz a seguinte definição

acerca do tema:

Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este laços justrabalhista, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata o

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obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido. O modelo trilateral de relação socioeconômica e jurídica que surge com o processo terceirizante é francamente distinto do clássico modelo empregatício, que se funda em relação de caráter essencialmente bilateral. Essa dissociação entre relação econômica de trabalho (firmada com a empresa tomadora) e relação jurídica empregatícia (firmada com a empresa terceirizante) traz graves desajustes em contraponto aos clássicos objetivos tutelares e redistributivos que sempre caracterizaram o Direito do Trabalho ao longo de sua história. (DELGADO, 2006, p. 428)

Diversamente ao entendimento citado, Sérgio Pinto Martins defende que a

terceirização deve ser entendida de forma mais ampla, como o simples fato de a empresa

contratar serviços de terceiros para a execução de suas atividades-meio. De acordo com o

Autor:

Consiste a terceirização na possibilidade de contratar terceiro para a realização de atividades que não constituem o objeto principal da empresa. Essa contratação pode envolver tanto a produção de bens, como de serviços, como ocorre na necessidade de contratação de serviços de limpeza, de vigilância ou até de serviços temporários. Envolve a terceirização uma forma de contratação que vai agregar a atividade-fim de uma empresa, normalmente a que presta os serviços, à atividade-meio de outra. É também uma forma de parceria, de objetivo comum, implicando confiança mútua e complementariedade. O objetivo comum diz respeito à qualidade dos serviços para colocá-los no mercado. A complementariedade significa a ajuda do terceiro para aperfeiçoar determinada situação que o terceirizador não tem ou não quer fazer. O objetivo principal da terceirização não é apenas a redução de custos, mas também trazer maior agilidade, flexibilidade e competitividade à empresa. (MARTINS, 1997, p. 22)

Desses conceitos até então trazidos à tona, pode-se destacar dois aspectos

fundamentais na conceituação de terceirização. O primeiro diz respeito ao fato de se tratar de

execução indireta de atividades-meio, de serviços de apoio, em oposição às atividades-fim,

que são o próprio produto final da empresa. O segundo aspecto está ligado à inexistência de

vínculos, quer dizer, laços trabalhistas, entre o ente tomador de serviços e o empregado

terceirizado, já que o ônus social dessa relação fica a cargo da entidade interveniente.

Essa noção privatista de terceirização pode ser transposta para a Administração

Pública, seara em que esse processo de gestão empresarial de transferência de serviços a

terceiros contribui, em tese e se bem aplicado, para a otimização da atuação administrativa na

consecução do interesse público.

3 TERCEIRIZAÇÃO NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

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Em que pese o fato de o conceito de terceirização aplicável ao Poder Público ser

basicamente o mesmo já delineado para o setor privado, a diferença fundamental está no fato

de que o regramento atinente à Administração Pública exige a observância de um complexo

principiológico específico, que se funda na supremacia e na indisponibilidade do interesse

público, e não na autonomia da vontade, como ocorre na iniciativa privada. Essa noção deve

sempre ser a base de fundo para aplicação e interpretação da terceirização no âmbito da

Administração Pública.

Em uma concepção ampla, haverá terceirização junto ao Poder Público sempre que o

Estado se socorrer da ajuda de terceiros para a execução de atividades que lhe são afetas.

Já em 1967 o Decreto-lei n.º 200 consignava em seu texto a possibilidade (na

verdade, necessidade) de a Administração desobrigar-se, mediante contrato com particulares,

da realização material de tarefas executivas (atividades-meio) e, através da Lei n.º 5.645/70,

exemplificaram-se quais seriam essas atividades que deveriam ser objeto de execução

indireta.

Além da citada norma, o Decreto Federal n.º 2.271/1997 prevê o seguinte:

Art. 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade. § 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta. § 2º Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal. Art . 3º O objeto da contratação será definido de forma expressa no edital de licitação e no contrato exclusivamente como prestação de serviços.

Atualmente, dois são os principais diplomas legais que tratam da possibilidade de a

Administração terceirizar suas atividades e serviços, muito embora não utilizem a expressão

em questão, a saber: a Lei n.º 8.666/93 e Lei n.º 8.987/95.

Nos termos da legislação atual, a terceirização em relação à Administração Pública

pode assumir as mais variadas formas, mas, sinteticamente, podem-se categorizar dois

grandes tipos de terceirização: a dos próprios serviços públicos e de atividades ligadas aos

serviços públicos.

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O que é possível ocorrer junto à Administração Pública é a terceirização como

contrato de prestação de serviços (terceirização de atividades ligadas aos serviços públicos),

regulada pela Lei n.º 8.666/93, e a terceirização como contrato de concessão ou permissão

(terceirização de serviços públicos), cuja base legal é a Lei n.º 8.987/95 e a Lei n.º

11.079/2044 (parceria público-privada). A primeira encontra fundamento constitucional no

art. 37, inc. XXI2 e a segunda, no caput do art. 1753.

Fato é que a terceirização de atividades-fim no âmbito da Administração Pública, que

não seja sob a forma concessão ou permissão, não tem respaldo constitucional ou legal, nem

mesmo com base na Lei 6.019/74. É o que corriqueiramente se vê como contrato de

fornecimento de mão de obra

O fundamento para tal proibição é a regra geral do concurso público, prevista no art.

37, inciso II, da Constituição da República de 1988, que só admite duas exceções: a

contratação temporária, que depende de lei específica de cada ente federativo, e a nomeação

para cargos em comissão.

Embora manifestamente ilegais, esses contratos de fornecimento de mão de obra têm

sido celebrados sob a forma de prestação de serviços técnicos especializados, o que mascara a

relação de emprego que seria própria da Administração Pública, favorece o nepotismo e o

apadrinhamento político, burla a regra do concurso público e o regime dos servidores

públicos, além de afrontar os princípios administrativos constitucionais da impessoalidade,

moralidade e eficiência.

Esses terceirizados irregularmente são, na verdade, funcionários de fato, que só

podem praticar atos materiais, sem nenhum conteúdo decisório. De qualquer modo, sua

atuação pode ensejar a responsabilidade objetiva da Administração Pública, com fundamento

no art. 37, § 6º, da Constituição da República de 1988.

O que se admite é a contratação de atividades-meio sob a forma de prestação de

serviços (art. 37, XXI), por meio da Lei n.º 8.666/93, como já previam o Decreto-lei 200/67 e

o 2.300/86, que determinam a prioridade da execução indireta de tarefas executivas e

acessórias da Administração Pública.

2 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” 3 “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

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Destaque-se, ainda, que a Lei de Responsabilidade Fiscal prescreve que os gastos

com a terceirização de serviços (“fornecimento de mão de obra”) devem ser contabilizados

como despesas de pessoal (art. 18, § 1º), obviamente para que tais despesas sejam incluídas

nos limites de gastos fixados. Isso não abrange gastos com a regular contratação de

empreitadas e prestação de serviços, pois o objeto do ajuste é o resultado.

4 TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE

Como já ressaltado, só se admite a prestação de serviços públicos diretamente pelo

Estado (por meio da Administração Direta ou Indireta) ou sob o regime de permissão ou

concessão (art. 175, CR/88), inclusive com base na concessão da Lei nº 11.079 (parceria

público-privada).

O serviço público, em sua totalidade, não pode ser terceirizado por meio de locação

de serviço ou de contrato de fornecimento de mão de obra.

O que justifica essa impossibilidade são as distinções jurídicas entre locação de

serviços e concessão de serviços públicos, que acabam por delimitar o âmbito de legalidade

da terceirização:

a) Distinção quanto ao objeto: por meio da concessão o Estado transfere o serviço

público ao particular, com todo o seu complexo de atividade; não há transferência

de uma determinada atividade ligada ao serviço público na concessão, muito

embora a concessionária possa terceirizar determinadas atividades. Na locação de

serviços, o objeto do contrato é a execução de determinada atividade acessória ao

serviço público, complementar à atividade-fim do Estado (que continua sendo

executada pela entidade pública).

b) Distinção quanto à forma de remuneração: na concessão, na forma como previsto

na Lei n.º 8.987/95, a regra é que a remuneração se faça pelos usuários, admitidas

formas acessórias e alternativas. Na locação de serviços, a remuneração é paga

pelo Poder Público. Nesse ponto, a concessão administrativa (parceria público-

privada) até se assemelha à locação de serviços (pois o Poder Público pode

remunerar a concessionária total ou parcialmente), mas com ela não se confunde

em razão do regime jurídico e das prerrogativas públicas.

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c) Distinção quanto às prerrogativas públicas: as concessionárias assumem a posição

do Poder Público na prestação do serviço e, portanto, detém determinadas

prerrogativas (como promover desapropriações, exercer o poder de polícia sobre

os bens vinculados ao serviço, promover a subconcessão, etc.). Na locação de

serviço, não há transferência de prerrogativas, pois o contratado é mero executor

material de uma atividade-meio.

d) Distinção quanto ao poder de intervenção: o poder concedente pode intervir na

concessionária (art. 32 a 34 da Lei nº 8.987/95), mas não pode fazê-lo com relação

ao contratado na locação de serviços.

Especificamente com relação à saúde, não há dúvida de que trata de um serviço

público, que deve ser prestado de forma gratuita pelo Estado, mas não é exclusivo do Poder

Público. Em diversos artigos a Constituição da República de 1988 trabalha a noção de

execução dos serviços de saúde em parceria com a iniciativa privada. São alguns exemplos:

Art. 197, CR/88: São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198, CR/88: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; Art. 199, CR/88: Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

Há, portanto, espaço para que a iniciativa privada preste serviços de saúde em

parceria com o Poder Público.

Segundo Ives Gandra da Silva Martins e Fátima Fernandes Rodrigues de Souza:

De todas essas disposições decorre que a ideia de parceria permeia a prestação da assistência à saúde. Sob regime de direito privado, mediante a participação mais próxima do Estado, no tocante à sua regulação e fiscalização; sob regime de direito público, mediante a efetiva participação do particular no regime único, em caráter complementar. (MARTINS; SOUZA; 2007, p. 106)

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Analisando a questão da descentralização das ações e serviços de saúde (art. 198, I,

CR/88), DI PIETRO esclarece que a forma adequada para tanto seria a descentralização por

serviços4.

Segundo a Autora, a melhor forma de descentralização administrativa dos serviços

de saúde é por meio da criação de autarquias, fundações e empresas públicas (esta última deve

ser sob a forma de sociedade civil, sem fins lucrativos, pois o serviço de saúde é

necessariamente gratuito).

A princípio, a concessão e a permissão (formas de descentralização por colaboração)

não são adequadas para a terceirização de serviços de saúde, pois os delegatários não podem

ser remunerados pelos usuários do serviço, que é gratuito.

Admite-se, entretanto, a utilização da parceria público-privada (concessão

administrativa da Lei n.º 11.079), na qual o Estado remunera integralmente o parceiro privado

(é o que já ocorre no Hospital do Subúrbio de Salvador, e vai ser implantado no Hospital

Metropolitano de Belo Horizonte).

Nos termos do que prevê o citado art. 199, § 1º, da Constituição da República de

1988, a participação de instituições privadas na execução de serviços públicos de saúde deve

ocorrer de forma complementar, por meio de “contrato de direito público” ou “convênio”.

Admite-se como contrato de direito público, nesse caso, aqueles voltados para

atividades complementares aos serviços do Sistema Único de Saúde, fundamentado na Lei de

Licitações, ou aqueles de concessão da Lei n.º11.079 (PPP), que é espécie de descentralização

por colaboração, por meio da transferência da própria atividade-fim para particulares.

Como a Constituição somente permite às instituições privadas participarem dos

serviços de saúde “de forma complementar”, DI PIETRO entende que não há validade na

formalização de um contrato cujo objeto seja a transferência para os particulares da totalidade

de um serviço público. Não se admite, por exemplo, a transferência de toda a administração e

execução das atividades de saúde de um hospital público para um particular.

4 Descentralização territorial ou geográfica: criação de uma entidade local, com personalidade de direito público, capacidade de autoadministração, delimitação geográfica, capacidade genérica para a prestação de serviços públicos e sujeição a controle pelo poder central (territórios federais). Comum em Estados Unitários (França e Itália). Descentralização por serviços, técnica ou funcional: criação, por meio de lei, de pessoa jurídica de direito público ou privado, que assume a titularidade e a execução de determinado serviço público. Autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas. - Características: personalidade jurídica, capacidade de autoadministração, patrimônio próprio, capacidade específica (especialização), sujeição a controle ou tutela (nos limites da lei) Descentralização por colaboração: transferência a pessoas jurídicas de direito privado (estranha ao aparelho estatal), por meio de acordo de vontades ou por ato administrativo unilateral, da execução de serviços públicos, mantendo a titularidade do mesmo com o Poder Público.

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Para a Autora, somente pode haver a terceirização de atividades de execução

material, como atividades-meio (tais como limpeza, vigilância, contabilidade, etc.) e serviços

técnico-especializados (como é o caso de hemocentros, realização de exames médicos, etc.).

O Estado, de acordo com o que esse argumento, não pode abrir mão da prestação de

um serviço que lhe incumbe, transferindo-o integralmente a terceiros. Pode contar com a

iniciativa privada de forma complementar, mediante contrato ou convênio. Em suas palavras,

“apenas se admite a terceirização de determinadas atividades materiais ligadas ao serviço de

saúde; nada mais encontra fundamento no direito positivo brasileiro.” (DI PIETRO, 2008, p.

227)

O que justifica tal argumento é o fato de que a prestação de um serviço público deve

estar subordinada a um regime de direito público, ainda que parcialmente, nos termos do que

determina o art. 175 da Constituição da República de 19885.

Voltando-se ao art. 199 da Constituição, há a possibilidade ainda de transferência de

serviços públicos de saúde por meio de convênios, os quais são admitidos com pessoas

jurídicas de Direito Público, com entidades da Administração Indireta e com instituições

privadas. Quando a atividade é entregue por convênio à iniciativa privada, a orientação legal é

no sentido de dar preferência (e não exclusividade) às entidades filantrópicas e sem fins

lucrativos.

É o que dispõem os artigos 24 e 25 da Lei n.º 8.080/90:

Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público. Art. 25. Na hipótese do artigo anterior, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos terão preferência para participar do Sistema Único de Saúde (SUS).

Vigora a lógica da subsidiariedade da sociedade civil na prestação de serviços de

saúde. O Estado é o titular do serviço público e tem o dever constitucional inarredável de

prestá-los, observando os princípios administrativos gerais, como o da eficiência (art. 37,

caput, CR/88), e os princípios específicos do serviço de saúde, como o da universalidade e

igualdade de acesso (art. 196, CR/88). Esse dever, entretanto, não torna o serviço de saúde

5 “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

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exclusivo do Estado, na medida em que a iniciativa privada pode atuar em parceria com o

Poder Público, mas sempre de forma subsidiária.

Não se admite, portanto, que o Estado se abstenha de prestar os serviços de saúde,

entregando-o totalmente à iniciativa privada. Tampouco se admite que a atuação do Estado

seja menor que a dos particulares na área de saúde pública, pois essa relação de dependência

foi expressamente vedada pelo texto constitucional.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, os serviços públicos de saúde estão entre

aqueles que o Estado tem obrigação de prestar, mas sem exclusividade. Os particulares podem

desempenhar essas atividades (inclusive independente de concessão), mas “o Estado não

pode permitir que sejam prestados exclusivamente por terceiros” (BANDEIRA DE MELLO,

2012, p. 705)

É esse também o entendimento da Profa. Cristiana Fortini, para quem a terceirização

não traduz alternativa para o Estado se desvencilhar de suas obrigações constitucionais,

especialmente na área de saúde. Em suas palavras:

Certamente não há como desconsiderar a redação do art. 197 da Constituição da República, segundo o qual ‘são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado’. Entretanto, não há como enxergar na norma autorização para que todos os serviços ligados à saúde sejam privatizados, mediante terceirização. A participação de terceiros faz-se possível em caráter de complementariedade da atuação estatal, jamais em caráter substitutivo. (FORTINI, 2007, p. 5)

Em decisão recente, de 28/08/2012, o Ministro Cezar Peluso do Supremo Tribunal

Federal, analisando o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.º 445.167, do

Município do Rio de Janeiro, ratificou seu entendimento de que

O serviço público de saúde não pode e não deve, ser terceirizado, admitindo o art. 197 da Constituição da República, em caráter complementar, permitir a execução dos serviços de saúde através de terceiros. O caráter complementar não pode significar a transferência do serviço à pessoa jurídica de direito privado.

Em que pese o eminente Ministro negar a possibilidade de terceirização, admite ele

que a Constituição considera como lícita a execução dos serviços de saúde através de

terceiros, o que, contraditoriamente, é exatamente a terceirização. Tal contrassenso, porém,

não altera sua conclusão, no sentido de que a transferência do serviço de saúde à pessoa

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jurídica de direito privado não pode ocorrer como um todo, sob pena de violação ao caráter

complementar da participação privada nesse importante setor público.

Entre as inúmeras formas de terceirização, pretende-se fazer uma breve incursão na

transferência de serviços de saúde às organizações sociais.

5 TERCEIRIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE POR MEIO DE ORGANIZAÇÕES

SOCIAIS

As organizações sociais foram instituídas pela Lei Federal nº 9.637/98, dentro das

iniciativas de reformas neoliberais do Estado do Governo Fernando Henrique Cardoso e do

chamado “Plano Nacional de Publicização”.

O objetivo desse movimento reformista foi a descentralização de atividades não

exclusivas do Estado e a transferência, para organizações sociais, de atividades

desempenhadas por órgãos públicos, inclusive na seara da saúde pública.

De certo modo, a pretensão do Governo era de que o serviço público passasse a ser

considerado como atividade privada de interesse público, para que, uma vez prestado por

particulares, sob fomento do Estado (que se dá por meio da celebração de contrato de gestão),

pudesse se extinguir o órgão público ou a pessoa jurídica de direito público inicialmente

incumbida de sua execução.

A partir de uma análise da Lei Federal n.º 9.637/98, algumas características das

organizações sociais podem ser traçadas:

a) A titulação de organização social é, na verdade, uma qualificação, uma habilitação

jurídica outorgada a pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos (art.

1º);

b) As entidades qualificadas como organizações sociais são declaradas como

entidades de interesse social e utilidade pública, para todos os efeitos legais (art.

11);

c) Áreas possíveis de atuação das organizações sociais: ensino, à pesquisa científica,

ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à

cultura e à saúde (art. 1º);

d) Conselho de Administração das organizações sociais (órgão de deliberação) tem

composição mista, com representantes do Poder Público e da sociedade civil (art.

3º);

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e) A parceria (fomento) é estabelecida por meio da formalização de contrato de

gestão;

f) A Fiscalização e o controle do contrato de gestão têm como foco as metas

estabelecidas e os resultados alcançados (art. 8º);

g) Formas de fomento pelo Poder Público: recursos orçamentários, permissão de uso

de bens públicos (dispensada a licitação – art. 12), cessão de servidor público;

h) Contratos de prestação de serviços realizados com organizações sociais, para

atividades contempladas no contrato de gestão, podem dispensar licitação (art. 24,

XXIV, da Lei 8.666/93)

i) O descumprimento do contrato de gestão pode acarretar a desqualificação da

organização social, mediante processo administrativo (art. 16).

No contexto da legislação em comento, as organizações sociais podem exercer

atividade privada de interesse público, com incentivo do Poder Público, ou podem

desempenhar o próprio serviço público, como atividade delegada.

Nesse caso de transferência do próprio serviço público, não pode o Estado se abster

totalmente dos serviços sociais, pois esses são deveres constitucionais do Poder Público.

Uma crítica que comumente se faz à transferência de serviços públicos de saúde às

organizações sociais é no sentido de que essa absorção visaria, em verdade, fugir do regime

de direito público, que, em certa medida, impõe inúmeras restrições à Administração Pública

(como teto salarial, proibição de acumulação de cargos, entre outras).

Em São Paulo, Estado em que a terceirização de serviços de saúde para a iniciativa

privada ocorreu (e vem ocorrendo) em grande medida por meio de parcerias com

organizações sociais, a legislação é um pouco mais rígida quanto à atuação dos particulares na

prestação de serviços públicos.

As organizações sociais paulistas, de acordo com a Lei Complementar Estadual nº

846/98, administram o serviço público de saúde por delegação do Estado, investindo-se de

determinadas prerrogativas públicas, assim como ocorre nas concessões e permissões da Lei

n.º 8.987/95.

Algumas características específicas da legislação estadual diferenciam as

organizações sociais de São Paulo daquelas qualificadas em âmbito federal:

a) Atuação restrita às áreas de saúde e cultura (art. 1º);

b) Não podem absorver atividades exercidas por entes públicos;

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c) Não podem utilizar bens do patrimônio público que estejam sendo utilizados por

entidades públicas (art. 14, § 4º);

d) Não contam com representantes do Poder Público em seus órgãos de

administração (art. 3º);

e) Existe um procedimento de convocação pública para escolha da entidade (art. 6º,

3º).

Atualmente, segundo dados disponibilizados pela Secretaria de Estado de Saúde de

São Paulo, 37 hospitais, 38 ambulatórios, 1 centro de referência, duas farmácias e três

laboratórios de análises clínicas são administrados por organizações sociais. Os novos

hospitais colocaram a serviço do SUS cerca de 4.300 leitos no Estado de São Paulo6.

Experiência semelhante tem sido vivenciada, também, no Estado de Goiás, onde

vários hospitais tiveram sua administração transferida para organizações sociais, como o

Hospital Materno Infantil (HMI), o Hospital de Doenças Tropicais (HDT), o Hospital de

Urgências de Aparecida de Goiânia (Huapa).

Nesses dois exemplos, um aspecto que deve ser levado em consideração é o fato de

que a absorção de serviços públicos por organizações sociais não desobriga o Estado da

prestação desses serviços.

Novamente segundo Celso Antônio Bandeira de Mello:

Anote-se que, como os serviços em questão não são privativos do Estado, não entra em pauta o tema da concessão de serviços públicos, que só tem lugar nas hipóteses em que a atividade não é livre aos particulares, mas exclusiva do Estado. Aliás, se entrasse, seria obrigatória a aplicação do art. 175 da Constituição Federal, que estabelece que tanto a concessão como a permissão serão ‘sempre’ precedidas de licitação. Assim, os serviços trespassáveis a organizações sociais são serviços públicos insuscetíveis de serem dados em concessão ou permissão. Logo, como sua prestação se constitui em ‘dever do Estado’, conforme os artigos citados (art. 205, 206 e 208), este tem que prestá-los diretamente. Não pode eximir-se de desempenhá-los, motivo pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos deveres constitucionais aludidos pela via transversa de ‘adjudicá-los’ a organizações sociais. Segue-se que estas só poderiam existir complementarmente, ou seja, sem que o Estado se demita de encargos que a Constituição lhe irrogou. (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 245)

As organizações sociais devem, enfim, atuar ao lado do Estado, por meio de uma

política de fomento. Não pode haver a transferência integral de serviços públicos sociais para

organizações sociais ou quaisquer entidades do terceiro setor (como OSCIPs, por exemplo),

6 http://www.saude.sp.gov.br/ses/acoes/organizacoes-sociais-de-saude-oss.

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pois esses serviços são da titularidade do Estado, como atribuição constitucional típica

(VIOLIN, 2012, p. 122/123).

6 CONCLUSÃO

Com a transição do Estado Liberal para o Estado Social e, finalmente, para o Estado

Democrático de Direito, a Administração Pública sofreu intensas modificações estruturais,

influenciadas pelo nível de intervenção do Poder Público nas atividades privadas. Atualmente,

dentro do contexto constitucional brasileiro, depreende-se uma lógica da subsidiariedade,

segundo a qual o Estado deve se abster de determinadas atividades que podem ser exercidas

satisfatoriamente pela iniciativa privada. A terceirização de serviços públicos é uma das

formas de parceria entre o público e o privado para a execução indireta de atividades estatais,

que decorre da aplicação do citado princípio da subsidiariedade.

Na seara do direito privado, a terceirização é tida como um processo de gestão

empresarial de transferência de serviços, essencialmente ligados à atividade-meio da empresa,

para terceiros, sem o estabelecimento de vínculos diretos trabalhistas com a tomadora do

serviço. Essa concepção foi albergada pela Administração Pública, mas com as ressalvas que

o sistema principiológico de Direito Público impõe ao citado instituto.

De modo geral, sempre que o Estado se socorrer da ajuda de terceiros para a

execução de atividades que lhe são afetas, estar-se-á diante da terceirização, que poderá ser

dos próprios serviços públicos (por exemplo, por meio de concessão ou permissão) ou de

atividades ligadas aos serviços públicos (por exemplo, por meio de contratos de prestação de

serviços, cujo objeto só pode estar vinculado a atividade-meio do Poder Público).

No que diz respeito aos serviços públicos, a Constituição determina que eles só

podem ser prestados diretamente pelo Estado ou sob o regime de permissão ou concessão

(incluindo PPP). Logo, é manifestamente ilegal a terceirização de serviços públicos por meio

de locação de serviço ou de contrato de fornecimento de mão de obra.

A saúde, embora seja serviço público típico, não tem sua execução afeta

exclusivamente ao Poder Público. A execução dos serviços públicos de saúde em parceira

com a iniciativa privada é uma orientação constitucional expressa (art. 197, 198 e 199,

CR/88), mas somente pode ocorrer sob o prisma da complementariedade.

Essa participação complementar da iniciativa privada nos serviços de saúde se opera

por meio de contratos de direito público (contratos de prestação de serviços, para atividade-

meio, e contrato de concessão – PPP, para atividade-fim) ou por meio de convênios, os quais

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devem ser celebrados preferencialmente com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos.

Em qualquer dos casos, não está o Poder Público autorizado a se abster da prestação do

serviço público ou prestá-lo de forma dependente da iniciativa privada, sob pena de violação

da regra da complementariedade, prevista no art. 199, § 1º, da Constituição da República de

1988.

Entre as inúmeras formas de terceirização dos serviços de saúde, a Administração

Pública tem se valido muito do estabelecimento de parcerias com organizações sociais, o que

em âmbito federal ocorre com base na Lei nº 9.637/98.

Nesse caso, pode haver tanto a assunção de um determinado complexo de serviços de

saúde, quanto de atividades acessórias aos serviços públicos, mas em ambas as hipóteses, a

absorção de serviços de saúde por organizações sociais deve ocorrer de forma complementar,

sem desobrigar o Estado da sua prestação, a qual sempre se submeterá aos princípios

administrativos gerais, como o da eficiência (art. 37, caput, CR/88), e aos princípios

específicos do serviço de saúde, como o da universalidade e igualdade de acesso (art. 196,

CR/88).

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CRISE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: Considerações sobre os fatores que

comprometem a prestação dos serviços e benefícios previdenciários.

BRAZILIAN SOCIAL SECURITY CRISIS: Considerations about the factors that affect

the provision of services and social security benefits.

Raul Lopes de Araújo Neto

RESUMO

O crescimento dos investimentos nos planos de previdência complementar trouxe uma

oportunidade para reflexão sobre o papel da previdência social pública brasileira. Esse

trabalho propõe apresentar os principais argumentos responsáveis pela crise da previdência

pública. A análise histórica sobre a formação da previdência e a evolução das políticas

publicas nas ultimas cinco décadas demonstram o comprometimento da gestão pública com

atual crise previdenciária. Temas como a longevidade, desemprego, avanço tecnológico e

administração serão os principais pontos para a condução do trabalho. O estudo será

conduzido do ponto de vista critico utilizado como referencia dados socioeconômicos e

estatísticos do atual sistema securitário.

Palavras Chave: Seguridade Social; Previdência Pública; Crise Econômica.

ABSTRACT

The growth of investment in pension plans has brought an opportunity for reflection on the

role of public social welfare in Brazil. This paper proposes to present the main arguments in

charge of public pension crisis. The historical analysis on the formation and evolution of the

welfare of public policy in the last five decades has demonstrated the commitment of public

management with the current pension crisis. Topics such as longevity, unemployment,

technological advancement and administration are the main points for the conduct of work.

The study will be conducted from the standpoint of critical socioeconomic data used as

reference and the current statistical system of security.

Keywords: Social Security; Public Security; Economic Crisis

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1. INTRODUÇÃO

Desde o início da década de 90 houve um significativo crescimento dos planos de

previdência complementar, tanto na quantidade de optantes, como pelo aumento do capital

formador de poupança interna. Um dos motivos desse crescimento é o atual

comprometimento dos serviços e benefícios prestados pelo Regime Geral de Previdência

Social.

O sistema previdenciário tem sofrido modificações quase ininterruptas desde o fim da

década de 1980, em função da influência do pensamento conservador que varreu a América

Latina, promovendo reformas privatizantes e da clara dominância de políticas econômicas

ortodoxas nos últimos quinze anos. Essas políticas estão baseadas no diagnóstico de que o

déficit público das últimas décadas resultou em inflação elevada ou em aumento na relação

dívida/PIB. O ingrediente principal do déficit estaria no descontrole das contas da

previdência.

A crise da previdência não vem desacompanhada da crise do Estado. Inicialmente será

feita uma analise da evolução da nova ordem econômica a partir do Welfare State, passando

pelo plano Beveridge e as ideias liberais do pós guerra de Keynes até a mudança na

concepção do Estado provedor para o Estado regulador e posteriormente serão apresentados e

discutidos os principais fatores causadores da crise no sistema protetivo.

Não é objetivo desse estudo detalhar o funcionamento e a gestão da previdência

pública, mas sim, apontar os fatores que contribuem para a crise previdenciária e desmistificar

diversas causas que não passam de criações políticas de “fabricação do consenso”1 .

2. MUDANÇAS SOCIAIS: CRISE DO BEM ESTAR SOCIAL E O ESTADO

REGULADOR

1 A expressão "fabricação do consenso" foi inicialmente cunhada por Edward S Herman e Noam Chomsky. O "fabrico do consenso" implica a manipulação e a modelação da opinião pública. Institui a conformidade e a aceitação à autoridade e à hierarquia social. Procura a obediência a uma ordem social instituída. A "fabricação do consenso" descreve a submissão da opinião pública à narrativa dos meios de comunicação predominantes, às suas mentiras e maquinações.

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As grandes crises econômicas de 1929 e situação calamitosa dos países envolvidos na

segunda grande guerra, fez com que o Estado se preocupasse com chamados os riscos sociais,

que segundo Durand (1991, p. 55), são classificados em:

Os infortúnios, que sugerem um revés da sorte, um infortúnio, uma desgraça, como a morte ou a invalidez e os venturosos, que manifestam-se por fatos ditosos, afortunados, felizes, como a sobrevivência da pessoa (a aposentadoria por idade é uma contrapartida ao fato da sobrevivência do segurado).

Horvath Júnior (2004, p. 27) faz usa das palavras de Santoro-Passarelli, para definir o

risco social:

Risco social é o perigo que ameaça o indivíduo e se transfere para a sociedade atingindo toda a coletividade, fazendo surgir a necessidade social. Cabe à previdência social a função de aliviar a necessidade social surgida em virtude da ocorrência dos eventos previamente selecionados, garantindo uma tutela de base (mínimo vital).

Diante da nova ordem social, os riscos sociais merecem resposta do Estado, que

depende dos impostos para existir e como contrapartida deve estruturar a rede de proteção dos

trabalhadores aos riscos sociais que só alguém que vive em sociedade tem.

Dentro desse processo encontra-se o Social Security Act. Remetendo a crise

econômica de 1929, o Estado passou a ter importância na vida social das pessoas, a

importância do risco social para os indivíduos passou a ser também preocupação do Estado.

O plano de recuperação americano, idealizado por Franklin Delano Roosevelt

fundamentou a ideia do Bem Estar Social (Welfare State) caracterizada com um tipo de

organização política e econômica que coloca o Estado (nação) como agente da promoção

(protetor e defensor) social e organizador da economia.

Segundo Schumpeter (1908) nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de

toda vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e empresas

privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bem-

estar social garantir serviços públicos e proteção à população.

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Weintraub (2005, p. 32) resume a ideia americana que possuía o objetivo de “distribuir

riqueza entre os velhos (sofriam mais que a maioria com a grande depressão) era também

permitir que a distribuição de renda gerasse fluxo de mercado, reativando a economia”.

Evoluindo na preocupação do Estado em prover os riscos sociais da população, surgiu

na Inglaterra o plano Beveridge em 1941. Esse plano serviu para que o governo inglês criasse,

em 1946, um sistema tão abrangente de proteção social que possuía como slogan

característico: from the cradle to de grave (do berço ao tumulo).

Lord Beveridge recomendou que o Governo inglês devería encontrar formas de

combater os cinco grandes males da sociedade: a escassez, a doença, a ignorância, e miséria e

a ociosidade. Para tanto, era necessário garantir um padrão mínimo de sobrevivência,

tratando-se de uma universalidade plena com proteção mínima para manutenção de um

padrão de vida digno.

Esse padrão mínimo seria garantido por uma contribuição semanal ao Estado por parte

de todas aquelas pessoas com idade e capacidade laborativa. Esse dinheiro seria

posteriormente usado como subsídio para doentes, desempregados, reformados e viúvas.

Essas ideia inspiraram a formação de nossa ordem social.

Nos países da América Latina, os sistemas previdenciários passaram também por

reformas, em alguns deles num processo de imitação do modelo de estratégia liberal, baseadas

na privatização da previdência social, ênfase na desregulamentação do mercado de trabalho e

nos benefícios seletivos ao invés de universais, enquanto em outros as mudanças foram mais

limitadas. Países como Chile (1981), Peru (1993), Argentina e Colômbia (1994), Uruguai

(1996), Bolívia e México (1997), El Salvador (1998) e Costa Rica (2001) optaram por

substituir, parcial ou integralmente, os sistemas públicos de repartição por sistema privados

obrigatórios de capitalização individual (GENTIL, 2007).

A ordem social brasileira da Constitução Federal (1988), apresenta a Prvidencia Social

como direito social. Inserido nesse contexo, o artigo 201 da Carta Magna, disciplina:

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:

I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;

II - proteção à maternidade, especialmente à gestante;

III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;

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IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;

V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.

Assim com o plano Beveridge a proteção brasileira é ampla, mas necessita de prévia

contribuição para o recebimento de benefícios, caracteristica compulsoria e contributiva que

não existe nos outros dois ramos da seguridade: Assistência Social e da Saúde.

Sobre a Previdência Social brasileira, Carvalho e Murgel (2007, p. 26) explicam:

Por meio da previdência social vem o Estado garantir a dignidade humana, impedindo a degradação do homem e propiciando ao individuo uma existência material mínima em período de infortúnio ou de dificuldade no exercício do seu oficio. Desse modo, promove a igualdade de direitos entre todos os homens; garante a independência e autonomia do ser humano; observa e protege os direitos inalienáveis do homem; não admite a negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou a imposição de condições subumanas de vida.

Gentil (2007) complementa que no Brasil, as alterações no sistema de seguridade

social ao longo dos anos 1990 não foram tão extensas a ponto de mudar suas características

mais fundamentais. O sistema ainda é o mesmo previsto pela Constituição de 1988, ou seja,

permanece público, em regime de repartição e continua a caracterizar-se pela universalidade

da cobertura, muito embora sua implementação tenha resultado em grande afastamento dos

princípios constitucionais.

O sistema previdenciário tem sofrido modificações quase ininterruptas desde o fim da

década de 1980, em função da influência do pensamento conservador que varreu a América

Latina, promovendo reformas privatizantes e da clara dominância de políticas econômicas

ortodoxas nos últimos quinze anos. Essas políticas estão baseadas no diagnóstico de que o

déficit público das últimas décadas resultou em inflação elevada ou em aumento na relação

dívida/PIB. O ingrediente principal do déficit estaria no descontrole das contas da

previdência.

Já adentrando aos motivos ensejadores da crise previdenciária, o sistema protetivo

brasileiro enfrenta graves problemas estruturais dos quais Derzi (2003) elenca quatro grupos:

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a) Atuariais, uma vez que precocemente o Brasil introduziu a aposentadoria por tempo de serviço, desvinculada da idade do trabalhador, alongando-se em demasia a sua duração.

b) Administrativos, pois a burocracia, a corrupção, o empreguismo e o nepotismo agigantaram os órgãos previdenciários, elevando-se o seu custo.

c) Caixa, pois desvios de recursos da previdência social para outras finalidades do

Estado advieram de lacunas existentes na Constituição de 1967-69; o caixa da previdência social confundiu-se com o caixa do Tesouro Nacional e seus recursos foram canalizados até para construção de hidroelétricas.

d) Econômicos-conjunturais ou estruturais, desencadeados pelas crises de recessão, desemprego e queda dos salários no produto interno bruto, o que provoca o acentuado decréscimo no produto da arrecadação das contribuições previdenciárias, incidente sobre a massa dos salários.

Diante desses fatores, torna-se importante a opinião de Carvalho e Murgel (2007)

sobre o modelo do Estado do Bem Estar Social e a crise previdenciária brasileira:

Sabe-se que o Estado do Bem Estar Social, o Estado Providência, eminentemente protecionista, é modelo desestruturado e esgotado. Por outro lado, a prestação positiva dos direitos sociais não pode permanecer no alvedrio da vontade do legislador ou dos governantes, embora esteja na dependência do orçamento do Estado. Ora, trata-se de dever e obrigação do Estado zelar pela proteção dos direitos sociais, de forma positiva.

A falência do Estado do Bem Estar Social deu início ao uma nova ordem social. O

apogeu do Estado mínimo e a ineficiência do Estado em prover o mínimo necessário para

garantir os direitos sociais ocasionaram uma paralisação do primeiro setor, que é o próprio

Estado.

Ao Estado era confiado o papel de provedor e agora, diante das mudanças econômicas

globais, o Estado passou a ser o regulador dos serviços sociais. Fatores como os acima

apontados, foram os causadores do comprometimento do tripé formador da Seguridade

Social: Saúde, Assistência Social e Previdência Social.

Para exemplificar a crise no sistema securitário, o setor da saúde passa por uma crise

crônica que se arrasta ao longo de décadas, problemas que vão do atendimento até a

capacitação dos servidores. Sobre o tema Sabroza (2007) explica:

A primeira limitação seria fundamentalmente econômica, centrada na inviabilidade do estado provedor, e em última instância da sociedade, de suportar o aumento dos custos da atenção médica. Sumetidos às pressões de demandas inesgotáveis por

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cuidados que exigem recursos de alto nível tecnológico, promovidas pelos interesses de setores industriais e de grupos médicos organizados a partir da lógica do lucro, associados à ideologia da saúde como panacéia, estes sistemas teriam ficado inviáveis, quando o setor público perdeu a capacidade de regulação. A segunda, com implicações ainda mais sérias, decorreria da incapacidade deste tipo de atendimento de necessidades individuais e coletivas resultar em um nível maior de bem-estar e aumento da produtividade social.

No setor da Assistência Social a instabilidade das medidas assistenciais compromete a

implementação de programas visem proteger os gastos sociais e que seja de ao mesmo tempo

fiscalmente sustentável e economicamente compensadora.

A previdência social amarga uma crises que já dura cinco décadas e além das

dificuldades de funcionamento da Previdência Social, outras, mais comuns, são apresentadas:

aposentados enfrentam enormes filas no INSS e nem sempre conseguem receber seu

benefício; os serviços são bastante precários, faltam remédios, os hospitais e asilos de idosos

estão em condição de miséria. O capital é mal empregado pelo governo.

A falência do providencialismo causou o surgimento dos órfãos do Estado que

contribuiu para o crescimento da pobreza e a exclusão social. Clarck, Nascimento e Correia

(2006) define o papel do Estado nessa na evolução da ordem econômica:

No mesmo sentido, o New Deal (baseado no reformismo keynesiano) e o Estado Social jamais representaram um socialismo puro. Tanto no início (Revolução Russa de 1917) como no fim (Consenso de Washington) do século XX surgiram posições teóricas extremistas quanto à função do Estado no mercado, mas a implementação delas nos meios jurídico e econômico é realizada com diversas adaptações, e por causa destas é que podemos chamar neoliberais todos os arranjos que se fizeram na estrutura dos Estados. Essas adaptações aproveitaram sempre princípios liberais originais, preservando-se o mercado, porém, ora o Estado intervém com mais vigor na economia, ora com menos.

No neoliberalismo sugerido na por Clarck, Nascimento e Correia (2006) tem como

fase inicial a exigência de um Estado Social, cuja atuação no domínio econômico se dava

diretamente (via empresa pública, sociedade de economia mista e fundações) e indiretamente

(mediante rígidas normatizações), tudo em nome do desenvolvimento ou do crescimento. Em

seguida se realiza no Estado Democrático de Direito, e as intervenções diretas passam a ser

minimizadas e priorizam-se a intervenção indireta (normas) e a intermediária (eis que

aparecem no cenário jurídico as Agências Reguladoras).

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O neoliberalismo não requer necessariamente o Estado mínimo, mas pode apresentar-

se no Estado Social ou no Estado Democrático de Direito. Na mudança dos modelos de

Estado encontramos o liberalismo, passamos pelo neoliberalismo de regulamentação e

chegamos ao neoliberalismo de regulação2. O surgimento do Estado Regulador decorreu de

uma mudança na concepção do conteúdo do conceito de atividade administrativa em função

do princípio da subsidiariedade e da crise do Estado de Bem-Estar, incapaz de produzir o bem

de todos com qualidade e a custos que possam ser cobertos sem sacrifício de toda a sociedade.

Daí a descentralização de funções públicas para particulares (SOUTO, 2005).

Esse novo modelo de Estado caracteriza-se principalmente pela utilização de

competência normativa e outras providências para regular a atuação dos particulares.

Sobre a reforma do Estado no Brasil, Barroso (2003, p. 291), defende que é

fundamental compreensão de que as reformas econômicas não chegaram a produzir um

modelo que possa ser identificado com o de Estado mínimo. “Pelo contrário, apenas

deslocou-se a atuação estatal do campo empresarial para o domínio da disciplina jurídica, com

a ampliação de seu papel na regulação e fiscalização dos serviços públicos e atividades

econômicas”.

3. A INEFICIÊNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL

Partindo da premissa do artigo 194 da Constituição Federal de 1988 que a Seguridade

Social é um conjunto de medidas de iniciativa do poder público e da sociedade que tem com

objetivo assegurar a saúde, a assistência e a previdência social, verifica-se o tripé formador do

sistema protetivo social do Brasil

O principio da tríplice forma de custeio introduzido em nosso ordenamento em 1934,

define que a seguridade será financiada por três atores: o governo com aportes de capital nos

déficits da previdência, os trabalhadores com o pagamento de contribuições sobre seus

rendimentos e a empresa que sobre a folha de salário, lucro, faturamento e receita.

2 É neoliberal, não porque se trata de uma tendência de retorno ao liberalismo econômico clássico, mas porque preserva princípios originários deste e os faz conviver com técnicas diferentes de ação econômica do Estado. As reformas do New Deal, portanto, instituíram as técnicas do neoliberalismo de regulamentação, e as reformas constitucionais e políticas pós-Consenso de Washington, as do neoliberalismo de regulação (CLARK, NASCIMENTO e CORRÊIA, 2006).

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Nota-se que para dar mais sustentabilidade e segurança à seguridade social, as

contribuições sociais devem respeitar o principio da diversidade da base de financiamento,

que protege o sistema evitando a sobrecarga em uma só fonte de financiamento.

Mesmo com toda proteção constitucional, a prestação de serviços relacionados à

saúde, assistência e previdência social é deficiente. Mais especificamente no campo

previdenciário, as aposentadorias não representam dignamente uma contrapartida por todas as

contribuições vertidas por 35 anos no caso da aposentadoria por tempo de contribuição

A forma de contribuição que a maioria dos segurados brasileiros estão vinculados é o

de repartição simples, daí aparecer como legítima a preocupação do governo em manter seu

orçamento equilibrado, ainda que se deva reconhecer, de imediato, que a corrosão das receitas

previdenciárias pelo crescimento do desemprego, da informalidade do trabalho e da

sonegação é desdobramento natural da sua própria política econômica. Cresce, paralelamente,

um sistema privado complementar de capitalização para aquela minoria que volta do mercado

com mais do que o tal troco da cesta básica no bolso.

O sistema previdenciário brasileiro foi instituído, a partir da década de 30, com o

advento da Lei Eloy Chaves, como um sistema de capitalização, que só se transformou, por

razões que precisam ser mais elucidadas, num sistema de repartição simples pelo menos duas

décadas depois.

Ora, isso significa que, por bons e longos anos, os fundos previdenciários arrecadaram

muito mais do que despenderam, e a questão que se coloca é a seguinte: o que foi feito do

dinheiro acumulado?

A resposta dos especialistas não poderia ser conclusiva, pois um levantamento

histórico dos dados ainda está por ser feito. Entretanto há uma presunção bem-amparada de

que os governos brasileiros das décadas de 1930 a 1960 se valeram desses recursos para

financiar muitas das obras de infra-estrutura do período.

No período pós 1964 Oliveira et al (1999. p. 8) resume:

O financiamento do INPS continuava a basear-se em um sistema de contribuição tripartite, no entanto a União passou a se responsabilizar unicamente pelos custos de administração (cerca de 11% das despesas totais do INPS) e pessoal do instituto. A maioria das cotizações de empregados e empregadores era da ordem de 8% sobre o salário. Porém, a União permanece como uma grande devedora, na medida em que honra seus compromissos somente de forma parcial (em 1968 dos R$ 1.505.938.136,46 despendidos com pessoal e administração somente R$ 846.777.579,32 foram efetivamente repassados à previdência pelo governo federal).

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Para ilustrar a evolução da divida no referido observa-se os seguintes gráficos:

Gráfico 1

Gráfico 2

Fonte:INSS/Coordenadoria Geral de Contabilidade

Essa prática de saques dos recursos previdenciários para outras finalidades está se

repetindo nos últimos 20 anos. O artigo 90, da Lei 8.212/91 autorizou o Conselho Nacional de

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Seguridade Social a apurar o montante do grande devedor da previdência social. Porém, no

governo anterior, foi extinto o Conselho Nacional de Seguridade Social. Deste modo, o débito

da União3 nunca foi apurado e está crescendo cada vez mais, comprometendo a papel do

Estado em cumprir com o preceito constitucional do artigo 201.

O comprometimento dos benefícios prestados pelo Regime Geral de Previdência

Social sede principalmente a essa má gestão pública. Não se pode apontar que o crescimento

das entidades de previdência complementar são responsáveis por um impacto financeiro

negativo aos cofres públicos, sob a alegação de que o segurado destinaria suas contribuições

para outro regime que não seja o público.

Os segurados do Regime Geral não optam por qual regime deverão ser vertidas suas

contribuições, eles são obrigados4 a contribuir como regime público durante o período e

forma predeterminada pelo Estado, portanto, o financiamento do Regime Geral está garantido

por todos aqueles maiores de 16 anos que exercem atividade remunerada licita.

O insucesso do Regime Geral está na ineficiência do Estado, como bem assevera

Fabrício et al. (2003, p. 37):

A culpa toda seria do Estado-pai, que distribuiu benesses excessivas e compatíveis com as forças do sistema; a solução seria entregar ao miraculoso poder de auto-regulamentação do mercado mais esse lucrativo campo de atuação, afastando o poder publico do inepto e perdulário.

Ao apontar a má gestão e a inadequada aplicação das contribuições previdenciárias

não se defende a desnecessidade do Estado cumprir com o que determina o artigo 201 da

3 Segundo Wagner Balera no artigo intitulado “poço sem fundo” publicado no site consultor jurídico a crise a divida da previdência tem como principal responsável a União e cita que no ano de 2004, foram aprovadas 17 leis que desviaram quase R$ 10 bilhões da seguridade social para outras finalidades que não guardam relação com saúde, previdência social e assistência social. Afirma ainda que, nesse contexto, a existência da dívida do governo federal para com o sistema de seguridade social prejudica a todos os setores que dela dependem: a saúde, a previdência social e a assistência social. O setor de saúde funciona mal. Até as camadas mais pobres da população se obrigam a contratar um seguro médico particular. O setor da previdência social funciona mal, distorcendo os valores dos benefícios com correções que sempre perdem da inflação e obrigando as pessoas a buscarem amparo no Poder Judiciário. São milhões e milhões de processos nos quais todos querem a mesma coisa: o valor justo para os benefícios que lhes custaram muitos anos de contribuições. O setor de assistência social é o mais vulnerável de todos. Não há previsão legal ou constitucional de quanto se deve gastar com as medidas assistenciais, nem que medidas devem ser tomadas. Por essa razão, a cada governo que assume o poder mudam completamente os programas sociais.

4 No Regime Geral de Previdência Social também exista a possibilidade do segurado filiar-se como facultativo, sendo considerado todo aquele maior de 16 anos que não exerça atividade remunerada.

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Constituição Federal, mas alertar e chamar atenção para a importância da previdência

complementar na vida dos segurados, quando visa proporcionar mais dignidade quando do

recebimento de sua aposentadoria.

A ineficiência administrativa não justifica a possibilidade de privatização da

previdência, nem sugerir discussão sobre qual deve ser o regime ideal, se exclusivamente

público ou privado, apesar do primeiro, teoricamente, ser mais suscetível de controle efetivo.

Importante frisar a relação da crise previdenciária pública com o desenvolvimento da

economia e a sociedade. Com o aumento da longevidade cumulado com o baixo índice de

natalidade reserva aos cofres públicos a diminuição da arrecadação decorrente da subtração

do número de segurados (financiadores) e o aumento do número e do tempo de concessão dos

benefícios.

A questão do envelhecimento da população brasileira não pode ser pontuada a única

causa para o atual déficit previdenciário. O momento demográfico para a questão

previdenciária é positivo, existem teoricamente mais pessoas em atividade para financiar

aquelas que estão aposentadas. A tabela abaixo demonstra claramente a projeção da relação

entre a população de jovens e idosos no Brasil:

Gráfico 3

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Matijascic, pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da

Unicamp, concorda que a questão do envelhecimento da população brasileira não pode ser

pontuado entre as causas para o atual déficit previdenciário e que o momento demográfico

para a questão previdenciária é positivo, pois existem teoricamente mais pessoas em atividade

para financiar aquelas que estão aposentadas. Por outro lado, segundo o pesquisador, a

questão do envelhecimento é um fator secundário e assim, mesmo que sejam executadas

medidas com relação a esse fator, o problema previdenciário pode persistir e se aprofundar se

não forem atacadas suas reais causas que, para ele, não pertencem ao sistema.

Na base arrecadatória para manutenção do Regime Geral estão às contribuições dos

segurados pagas sobre seus rendimentos, a principal delas vem da categoria dos empregados,

surge daí um novo fator que justifica a atual crise previdenciária, o desemprego. Sobre o tema

Esteves (2008, p. 114) explica:

Contudo, partir dos anos 80, a crise econômica fortaleceu-se e o cenário empregatício mudou, declinando os seus índices. Nos anos seguintes, o crescimento do setor produtivo deu-se pela inserção das novas tecnologias e não pela mão de obra. Assim, diminui-se a produção de emprego e o acesso ao mercado de trabalho, e os que aparecem vêm de forma cada vez mais precárias.

O desemprego não só atinge o Brasil, em tempos de globalização essa crise atinge

escala global como exemplifica Martin e Shumann (1998, p.11):

Alemanha, 1996. Mais de seis milhões de pessoas não conseguem arranjar emprego permanente – um número que nunca havia sido atingido desde a fundação da Alemanha Federal. A penas na indústria, serão suprimidos pelo menos um milhão e meio de postos de trabalho ao longo da próxima década.

Nos Estados Unidos, Rifkin (1995, p.5) explica:

Só nos Estados Unidos, isto significa que, nós próximos anos, mais de 90 milhões de empregos, de uma força de trabalho de 124 milhões de pessoas, estão seriamente ameaçadas de serem substituídos pelas máquinas.

Dentre os mais variados motivos de comprometimento dos serviços prestados pela

Previdência Social pública, a má gestão administrativa continua sendo a causa mais relevante

do agravamento da ineficiência previdenciária. O gráfico abaixo demonstra o déficit da

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previdência social nos últimos quatorze anos, que apesar do aumento da arrecadação em 5,1%

no ano passado, a divida não para de crescer.

Gráfico 4

Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/miriam/posts/2009/08/19/arrecadacao-da-previdencia-sobe-mas-nao-se-sustenta-215510.asp

Pela leitura dos índices acima resta demonstrado a progressão do crescimento da

divida pública da União com a Previdência Social brasileira. Por mais delicada que possa ser,

mas não seria absurda a afirmação de que a dívida da previdência é falsa, pois se forem

excluídos os desvios públicos da conta da previdência seria possível o Estado buscar efetivar

os direitos sociais de cada beneficiário.

4. CONCLUSÕES

A falência do Estado do Bem Estar Social deu início ao uma nova ordem social. O

apogeu do Estado mínimo e a ineficiência do Estado em prover o mínimo necessário para

garantir os direitos sociais ocasionaram uma paralisação do primeiro setor, que é o próprio

Estado.

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Ao Estado era confiado o papel de provedor e agora, diante das mudanças econômicas

globais, o Estado passou a ser o regulador dos serviços sociais. Fatores como os acima

apontados, foram os causadores do comprometimento do tripé formador da Seguridade

Social: Saúde, Assistência Social e Previdência Social.

Dentre os vários fatores do comprometimento dos serviços e benefícios da previdência

pública brasileira a má administração é o principal deles. Os recursos destinados ao

financiamento da Seguridade Social são frequentemente desviados pela própria União para

serem aplicados em áreas que não guardam finalidade com a previdência social.

A diminuição da folha de salários causada pelo desemprego e o avanço tecnológico, a

crise internacional, a longevidade ou ate mesmo a baixa natalidade são fatores que

isoladamente não geram o déficit previdenciário, mas exigem da administração pública

medidas que preservem o sistema protetivo nacional.

Medidas ou reformas orçamentárias que não violem os direitos sociais nunca foram

objeto do poder legislativo o que se criou atualmente foi a inversão dos pilares de sustentação

da previdência, pois diante do quadro apresentado, ao invés do Estado realizar aportes de

capital para os déficits da previdência, como garante o Princípio da Tríplice Forma de Custeio

como é a previdência que vem sustentado o Estado em momentos de crise.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras. Constituição, Transformações do

Estado e Legitimidade Democrática. In: Revista Latino-Americana de Estudos

Constitucionais. Nº1, 2003.

CARVALHO, Fábio Junqueira; MURGEL, Maria Inês. Tributação de Fundos de Pensão.

Belo Horizonte: Decálogo, 2007.

CLARK, Giovani; NASCIMENTO, Samuel Pontes do; CORRÊA, Leonardo Alves. Estado

Regulador: Uma (Re)Definição Do Modelo Brasileiro De Políticas Públicas Econômicas.

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Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/giovani_clark-

1.pdf. Acessado em: 12 de novembro de 2010.

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DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL: A escassez de creches e pré-escolas e a violação do

direito à educação.

RIGHT TO EDUCATION CHILDREN: A shortage of kindergartens and preschools and

violation of the right to education.

Ivan Dias da Motta1

http://lattes.cnpq.br/1508111127815799

Luiz Fellipe Preto2

http://lattes.cnpq.br/7534667569687014

RESUMO: As crianças de 0 a 5 anos de idade há tempos vêm tendo cerceado o seu direito à educação. Aludido direito social, na realidade, é igualmente direito da personalidade e compõe, indubitavelmente, o princípio magno da dignidade da pessoa humana. Neste ínterim, é dever do Estado promover a garantia do acesso à educação infantil, até mesmo em decorrência do insculpido em nossa Carta Magna junto ao Artigo 205, bem como junto ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Lei de Diretrizes Escolares e Declarações Universais. Há, no entanto, notória precariedade na prestação e efetivação desta garantia constitucional. Desta forma, o tema está delimitado pela demonstração do papel das políticas públicas como forma de garantir a todos o direito social, fundamental e da personalidade à educação, como forma de formação humana, transformação da sociedade e manutenção da democracia, analisando-o sob o enfoque não recair a favor do ente público a possibilidade de escolha na consecução e efetivação de direitos fundamentais. PALAVRAS-CHAVE: Educação infantil; Dignidade da pessoa humana; Crianças.

ABSTRACT: Children 0-5 years of age have long having curtailed their right to education. Alluded to the social right, it is actually also the right personality and composed undoubtedly the magnum principle of the dignity of the human person. Meanwhile, it is the duty of the State to promote secure access to early childhood education, even as a result of insculpido in our Constitution with the Article 205, as well as with the actual Statute of Children and Adolescents, and the Law School and Guidelines Universal Declarations. There are, however, notoriously unreliable delivery and effectiveness of this constitutional guarantee. Thus, the theme is bounded by the demonstration of the role of public policies in order to guarantee everyone the right social and personality fundamental to education as a form of human, societal transformation and maintenance of democracy, analyzing it under focus does not lie in favor of the public entity a choice in achieving and enforcing fundamental rights.

1 Pós-doutor em Direito Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor permanente

do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogado e consultor em Direito Educacional. Endereço eletrônico: <[email protected]>

2 Formado em Direito pela Universidade Norte do Paraná, especialista em Direito Tributário, Direito Civil, Direito Processual Civil e Direito Público, Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR, advogado com escritório profissional situado em Londrina/PR e professor universitário da Universidade Norte do Paraná.

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KEYWORDS: Early childhood education; dignity of the human person; Children.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 insere o direito à educação como direito

fundamental, incluindo-o no rol dos direitos sociais3. O direito à educação também encontra

previsão legal no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (art.4º) e na Lei de Diretrizes e

Bases da Educação nacional, Lei nº 9.393/1996 (art. 2º).

O direito ao saber possui também uma dimensão universal estando consolidado na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), Declaração Universal dos Direitos

Humanos das Nações Unidas (1948), Declaração Americana dos Direitos e Deveres do

Homem (1848), Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais da ONU

(1966), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Declaração Mundial sobre

Educação Para Todos (1990), entre outros.

Ainda, nos termos dos artigos 205 e 227 da Constituição Federal de 1988, a educação

é dever do Estado, como gestor e fomentador da educação, que deve realizar as políticas

públicas necessárias para que efetivamente haja educação para todos. É também um dever da

família, que é instrumento mestre, sem a qual o processo educativo é relegado a um segundo

plano, não havendo perspectivas de uma verdadeira transformação no homem e, igualmente,

deve ter a colaboração da sociedade que sofrerá todas as consequências da ausência de um

sistema educacional perfeito e acabado.

Nesta toada, o Estado tem o dever de garantir o acesso à educação a todos. Isto em

razão do direito social à educação constituir um avanço para minimizar distorções da

sociedade, visando à melhoria de condições de vida e a minoração das desigualdades sociais.

Desta forma, o Estado tem o dever de implementar políticas públicas para a garantia

do acesso de todos à educação. Para tanto, há previsão de dotação orçamentária (art. 212 e

213 da Constituição Federal de 1988) afastando qualquer argumento de que o acesso à

educação é norma de cunho programático, dependente da vontade do gestor.

Como direito público subjetivo o particular tem a faculdade de exigir o cumprimento

da obrigação pelos poderes públicos e as autoridades públicas devem ser responsabilizadas.

Pois bem, ultrapassadas estas premissas iniciais, cumpre salientar que as crianças de

0 a 5 anos de idade há tempos vêm tendo cerceado o seu direito à educação, mesmo a

3 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

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educação infantil sendo obrigação estatal. Aludido direito social, na realidade, é igualmente

direito da personalidade e compõe, indubitavelmente, o princípio magno da dignidade da

pessoa humana. Tem-se, portanto, diante do defeituoso fornecimento da educação infantil a

violação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Neste ínterim, é dever do Estado promover a garantia do acesso à educação infantil,

até mesmo em decorrência do insculpido em nossa Carta Magna junto ao Artigo 205, bem

como junto ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, além da Lei de Diretrizes

Escolares e Declarações Universais.

Há, no entanto, notória precariedade na prestação e efetivação desta garantia

constitucional. Desta forma, o tema está delimitado pela demonstração do papel das políticas

públicas como forma de garantir a todos o direito social, fundamental e da personalidade à

educação, como forma de formação humana, transformação da sociedade e manutenção da

democracia, analisando-o sob o enfoque não recair a favor do ente público a possibilidade de

escolha na consecução e efetivação de direitos fundamentais.

2 ESBOÇO HISTÓRICO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL

É inegável que o direito à educação faz parte das condições para a existência digna

da pessoa humana, muito embora o conceito de dignidade seja extremamente amplo e, ainda,

nos dias de hoje, de difícil conceituação e delimitação, se é que se pode limitar a dignidade

humana.

É justamente em razão da importância do direito à educação que nosso ordenamento

jurídico prevê, junto a inúmeras legislações, o dever do Estado e a necessidade de garantia do

acesso à educação a toda coletividade, fazendo-o junto à Constituição Federal, Código Civil,

Estatuto da Criança e do Adolescente, Código de Defesa do Consumidor e também junto à

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além da previsão, igualmente, em diversas

declarações universais.

Neste ínterim, pode-se afirmar que a disposição do direito à educação junto ao texto

constitucional e que, tal disposição, em conjunto com as demais, é reveladora da tendência

das constituições em favor de um Estado Social, que tem como valor final a justiça social em

uma democracia pluralista exigida pela sociedade de massas.

Desde a Constituição do Império, datada de 1824, já havia disposição no sentido de

garantir o direito à educação, em seu artigo 179, XXXII, ao dispor que: “A instrução primária

é gratuita a todos os cidadãos”. Muito embora fosse singela aludida disposição constitucional,

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depreende-se a preocupação com a educação e a verificação de sua importância desde os

primórdios.

Já a Constituição de 1934 deu passos significativos ao elencar um capítulo próprio

para os temas relativos à educação, estabelecendo ser direito de todos, evidenciando, ainda,

que deveria ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, consoante o artigo 149 de

referido diploma legal. Este mesmo regramento constitucional estabeleceu que a educação

deveria possibilitar “eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação” e que deveria ser

desenvolvida “num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”.

Junto a Constituição de 1946 houve a inauguração de um curto período de Estado de

Direito, a qual, junto ao artigo 168 estabelece a obrigatoriedade do ensino primário oficial e

gratuito para todos e o ulterior também terá assegurada a gratuidade para aqueles que

comprovadamente não tiverem recursos suficientes.

Nem mesmo com o golpe militar houve a alteração substantiva no que concerne à

previsão constitucional relacionada à educação, pois, também junto ao artigo 168 do texto

constitucional de 1967, de forma expressa, residiu a menção de ser a educação um direito de

todos podendo ocorrer no lar e na escola e devendo ser inspirada, paradoxalmente, nos ideais

de liberdade e de solidariedade humana, porquanto o Estado era de exceção, com cerceamento

da liberdade. Além da garantia constitucional da educação universal, o ensino torna-se

obrigatório dos sete aos quatorze anos e ministrado nos diferentes graus pelo Poder Público.

De simples análise deste breve percurso histórico pelas constituições brasileiras pode

se perceber que o direito a educação jamais foi suprimido. Mesmo nos momentos ditatoriais

este direito manteve-se presente nos textos constitucionais, demonstrando que é essencial,

necessário e fundamental.

3 A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL JUNTO AO

TEXTO CONSTITUCIONAL DE 1988.

A expressão educação possui sua origem no latim, educatio, educationis, e sua

tradução lato senso significa o ato de criar. O ser humano nasce com uma série de habilidades

e de possibilidades, oportunidade em que é a educação o instrumento capaz de garantir e,

principalmente, transformar aludidas potencialidades em realidade. Nesse sentido a educação

se reveste de notória e evidente necessidade e, por isso, é considerada essencial para integral

desenvolvimento da personalidade humana e, consequentemente, fundamental para o

desenvolvimento da cidadania.

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A educação é pressuposto integrante para a edificação do Estado Democrático de

Direito, o qual exige cidadãos capazes, críticos e prontos para desempenharem seus papéis

sociais e exercerem na plenitude a cidadania. É sabido que um dos principais objetivos da

educação é justamente o preparo para a cidadania e que a proteção dos direitos humanos

demanda um processo educacional sério, eficaz e capaz de despertar nas gerações presentes e

futuras a consciência de participação na sociedade, o que, infelizmente, não ocorre nos dias de

hoje diante da precariedade dos sistemas de ensino atuais e, também, da promoção de

políticas públicas por parte do ente estatal.

A educação detém a finalidade, como direito fundamental que é, de destinar-se em

um primeiro momento, ao substrato da sociedade, ou seja, às crianças, embora, até

recentemente estas e os adolescentes não tenham sido tratados como cidadãos e nem mesmo

como sujeitos de direitos.

Todavia, embora seja prioridade, a garantia do acesso à educação para as crianças,

como prioridade, não pode compactuar com a exclusão da universalização do ensino para as

demais faixas etárias, inclusive para os adultos, como ocorre nos dias de hoje, em que o

próprio sistema educacional é desigual. A formação intelectual, social e cidadã, função

primordial da educação, deve voltar-se, sem nenhuma forma de exclusão. Somente assim

poderemos iniciar a busca por um efetivo Estado Democrático de Direito.

Como já dito, o ordenamento jurídico brasileiro apresenta vários diplomas legais que

buscam garantir a dignidade da pessoa humana, incluindo, por decorrência e obviedade, a

criança. A função primordial de tais disposições legais é a de garantir uma vida digna a todos

que estão sob seu manto.

Neste ponto inclui-se a educação das crianças, a qual passa a fazer parte do mínimo

existencial4. No entendimento de Simone de Sá Portella:

“O mínimo existencial refere-se ao ensino fundamental. Assim se em um determinado Município não houver vagas nas escolas de ensino oficial, pode o munícipe ingressar com uma ação, obrigando o Poder Público Federal, estadual ou municipal, pois a competência é concorrente das três entidades, a efetuar a matrícula em uma escola particular. [...] No que tange ao ensino médio, não constitui mínimo existencial”.5

4 PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio Grande. 2007. P. 41. 5 PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio Grande. 2007. P. 42.

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Também, o direito à educação infantil é um direito inalienável, pois a matrícula é

obrigatória e a disponibilidade de vagas é obrigação do Estado, o qual resta compelido a

garantir a todos quanto delas necessitarem. Para que possa existir referida garantia,

imprescindível é, portanto, a promoção de políticas públicas com vistas à necessidade de a

União Federal e os demais entes federados aplicarem, anualmente, receitas provenientes de

impostos na manutenção e no desenvolvimento do ensino, conforme preleciona o Artigo 212

do texto constitucional.

Desta feita, é de suma importância registrar que não somente ao Estado incumbe o

dever de garantia do direito à educação, mas, também, por ser um direito fundamental, o

ordenamento jurídico pátrio confere à família e à sociedade a responsabilidade de,

igualmente, de garantir e proteger o direito das crianças à educação.

É exatamente neste sentido, também, a Declaração dos Direitos da Criança, adotada

pela Assembléia das Nações Unidas, a qual dispôs, em seus princípios, que a criança terá

direito a receber educação, gratuita e compulsória, pelo menos no grau primário.

O direito à educação infantil é direito fundamental, inalienável, indisponível e

impostergável, sendo exatamente neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de

Justiça, o qual dispõe ser a educação infantil prerrogativa constitucional indisponível.

A sociedade brasileira, entendendo a importância do direito à educação e a

necessidade de garantia de seu acesso, deu mostras nas últimas décadas do empenho pela

universalização do acesso à educação nas escolas, especialmente no que tange à educação

infantil. Esta reivindicação garantiu que nossos legisladores pátrios trouxessem junto ao texto

constitucional a educação como um direito de todos, definindo a quem cabe a

responsabilidade por sua promoção e incentivo e estabelecesse seus fins junto ao Artigo 205.

A idéia da educação como direito subjetivo e dever do Estado e da família deve ser

analisada sob o enfoque da escola republicana, ou seja, “para todos”. No entanto, não basta a

simples oferta de vagas na rede pública de ensino, uma vez que ente público deverá garantir

também todos os meios necessários para a permanência do educando nas salas de aula. Resta

inegável, portanto, embora não haja menção expressa nos textos legais, que além do acesso e

da permanência é indispensável a efetividade. Sem este último quesito, o dispositivo

constitucional citado perde sua razão de existir, tornando-se inócuo.

Compete ao ente estatal, através das instituições de ensino, em colaboração com a

família e a sociedade de modo geral, buscar os meios para que a escola desempenhe seu papel

e garanta a aplicabilidade do artigo 205 da Constituição Federal. Desta feita, o Estado tem o

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dever de garantir o acesso e a permanência das crianças na escola, pois o ensino fundamental,

até a oitava série ou o nono ano, será obrigatório e gratuito.

4 O DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE

Atualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente é considerado um marco na

garantia e afirmação consolidada dos direitos das crianças e dos adolescentes brasileiros. Em

razão de aludido dispositivo legal criou-se um conjunto de atenção à infância e à

adolescência, em especial, inerente à inserção escolar.

Nesta toada, o Artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente eleva a educação a

direito positivado e enumera seus princípios basilares ao dispor a necessidade de igualdade de

condições para o acesso e permanência na escola, direito de respeito pelos educadores, direito

de contestar critérios avaliativos, direito de organização e participação em entidades

estudantis, e o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.

Depreende-se, portanto, que o foco central do processo educativo é a criança,

oportunidade em que o ensino deve garantir a sua plena realização, como pessoa, como

sujeito de direito. Portanto, depreende-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente

encontra-se em perfeita sintonia com o texto constitucional ao determinar, igualmente, o

acesso em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade. Em razão disto

garante-se, em um primeiro momento, a educação de crianças a partir dos primeiros meses de

vida junto às creches e, em segundo lugar, confere condições aos pais para que possam

permanecer no mercado de trabalho, com a tranquilidade de ter onde deixar o filho.

As creches, nos últimos anos, vêm ganhando conotação de entidade capacitada a

garantia da educação infantil. Infelizmente, a obrigatoriedade de acesso às creches e pré-

escolas não foi acompanhada pelo pleno atendimento da demanda, fato este que prejudica, em

muito o desenvolvimento das crianças.

Ainda, o legislador pátrio editou dispositivos legais determinando a quem remanesce

a responsabilidade pelos cuidados e zelo com as crianças e adolescentes. Aos dirigentes de

instituições de ensino o Estatuto da Criança e do Adolescente outorgou uma única tarefa, que

é a de comunicar ao Conselho Tutelar acerca das infrações praticadas junto à escola por parte

dos educadores e alunos ou decorrentes do processo de aprendizagem.

Por fim, constata-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, também, que

o Poder Público deverá instigar a pesquisa e novas propostas relacionadas à educação em

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geral, de forma que novas possibilidades alcancem o objetivo primordial que é o de manter as

crianças na escola e formá-las como efetivos cidadãos. O Estatuto da Criança e do

Adolescente corrobora a tese defendida até o presente momento, qual seja, a de que a

educação é um direito fundamental e existem, assim, normas cogentes pertinentes.

5 O DIREITO À EDUCAÇÃO E A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO

NACIONAL

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional surge em um contexto não muito

favorável, qual seja, a crise econômica de 1990. Apostou-se, com isso, no receituário

neoliberal e, ao apostar-se neste ponto específico para resolver os graves problemas

econômicos, afetou-se, por consequência, as políticas sociais, repercutindo nas políticas

públicas de educação. Nesta toada, a educação acabou tendo que adequar-se às necessidades

de ajustes da economia propostos pela equipe econômica.

Assim, a legislação em comento estabelece em seu primeiro artigo que “a educação

abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência

humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e

organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.

Também, o diploma legal em análise, ao traçar os princípios e fins da educação

nacional, evoca a Constituição Federal, especialmente seu artigo 205, ao estabelecer em seu

Título II, artigo 2º e seguintes, que “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos

princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno

desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação

para o trabalho”.

Nesta toada, a criança por meio da educação tem que estar preparada para exercitar

sua condição de cidadão que é, ou seja, de titular de direitos e deveres, tanto por uma

condição universal, uma vez que se encontra assegurada na Carta de Direitos da Organização

das Nações Unidas, quanto por uma condição particular, amparada no princípio constitucional

de que todos são iguais perante a lei.

6 O DIREITO À EDUCAÇÃO E O CÓDIGO PENAL

O Código Penal igualmente é um importante meio de proteção e garantia do direito à

educação. Junto a seu artigo 246, estabelece que os pais ou responsáveis que deixarem de

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prover a “instrução primária” dos filhos em idade escolar terão a pena de detenção pelo prazo

de 15 dias a um mês, ou multa. O tipo penal é o abandono intelectual.

Abandono nada mais é do que a falta de amparo. Pratica abandono intelectual os pais

que deixam, sem justa causa, de prover a educação dos filhos menores. O dispositivo do

Código Penal em análise busca proteger um bem jurídico determinado que o direito ao ensino

fundamental dos filhos menores e desta forma almeja-se assegurar-lhes a educação necessária

capaz de facilitar-lhes o convívio social.

A criança tem o direito fundamental à educação e seus responsáveis não podem

deixar de dar a devida atenção a ele. Aos que se esquivarem dessa garantia de forma dolosa

aplicar-se-á a pena prevista no artigo 246 do Código Penal.

7 DA CARÊNCIA DE CRECHES E PRÉ-ESCOLAS. CARÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS?

É notório em nosso País a carência de creches e pré-escolas, questão esta que,

indubitavelmente contribui para a idêntica notoriedade da precariedade da educação infantil.

É urgente a necessidade de concretização e consecução de políticas públicas no setor, pois,

atualmente, o Brasil está com 84,5% de crianças fora das creches6. Em razão da deficiência

apresentada pelo setor público, tem-se que é somente com um macro esforço, pela

mobilização junto aos municípios, à iniciativa privada e sociedade civil é que conseguirá

cumprir as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação elaborado em 2001. Neste

sentido, de acordo com pesquisa realizada por Oman Carneiro:

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) 2006, o quadro da carência de creches é comum em todas as regiões: Norte com 94,2%; Centro-Oeste, 90%; Nordeste, 88,3%; Sudeste , 84,2% e Sul, com 83,9% de crianças não assistidas, índices estes que comprovam o levantamento que considera apenas 30% dos municípios brasileiros com algum investimento em infraestrutura para a criação de espaços educacionais para a infância.7

6 Disponível em: <http://www.omancarneiro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=670:educacao-infantil-e-a-carencia-de-creches&catid=47:noticias&Itemid=96>, acessado em 24.jan.13. 7 Disponível em: <http://www.omancarneiro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=670:educacao-infantil-e-a-carencia-de-creches&catid=47:noticias&Itemid=96>, acessado em 24.jan.13.

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A justificativa apresentada pela grande maioria dos municípios é a falta de recursos

para investimento na construção de creches e pré-escolas para atender a educação infantil.

Para conter o déficit, e atendendo à justificativa da insuficiência de recursos, alegada por

maior parte dos municípios, o Governo Federal em nota publicou que estará investindo R$

800 milhões na construção e equipagem das creches.

Mas, para atender a estimativa de 11 milhões de crianças com idade de 0 a 3 anos

que estão desprovidas deste direito constitucional, o País precisa construir, pelo menos, de 9 a

12 mil creches por ano.

Com vistas à estas informações, dúvidas não remanescem. Existe evidente

problemática inerente à promoção de políticas públicas pelo poder estatal e, não só isso, mas,

também, vícios na consecução das políticas públicas já existentes, como, por exemplo, o

Plano Nacional de Educação.

As idéias e tentativas são válidas de consecução de políticas públicas. Todavia, não

são eficazes e, na grande maioria das vezes acabam por esbarrar na burocracia e também na

própria corrupção.

Dúvidas, portanto, não existem com relação à deficiência enfrentada nos dias de hoje

inerente à educação infantil a qual não prospera em razão da ineficácia, tanto de elaboração

como de procedimento, das políticas públicas.

8 DA INEXISTÊNCIA DE IMPEDIMENTO PARA CONSECUÇÃO DE POLÍTICAS

PÚBLICAS EM FACE DO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

Antes de adentrar ao foco principal do presente tópico, importante deixar registrada,

novamente, a fundamentalidade do direito à educação, como sendo o principal fundamento de

gerar ao país a ultrapassagem de uma situação de terceiro mundo para, finalmente, passar a

ser o país do presente e não mais o eterno país do futuro, como tem em mente nossos

legisladores pátrios.

Com vistas ao afirmado, pode-se, ainda, firmar o entendimento de que a própria

justificativa adotada, inerente à não consecução de políticas públicas no setor educacional

infantil, é de terceiro mundo. É periférica e superficial por não ser capaz de, sequer, buscar

compreender e conferir eficácia a nossos princípios magnos constitucionais.

Em nosso País, meninos de rua e jovens à deriva são o resultado da pobreza em que

vivem suas mães, da ausência dos pais, da violência dentro e fora de casa e do total abandono

do Estado a quem dele precisa. É, sim, urgente e necessário reforçar os espaços e tempos de

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acolhimento de crianças e jovens pelos adultos, pais e, principalmente, pelo Estado para que

não tenha, quando adultos, que puni-los e privá-los da liberdade. Esta é a idéia.

Nesta toada, imprescindível colacionar o entendimento de Luiz Edson Fachin ao

dispor que: “em todo campo do saber (daí a pertinência quiçá especial com a instância

jurídica), há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão-só reproduz não

liberta”.8 É, neste sentido, igualmente pertinente invocar as palavras de Paulo Freire, para

quem: “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate.

A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.9

Pertinente, também, os dizeres de Marilena Chauí, para quem:

As leis, porque exprimem os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder Judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). 10

A democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada e não há, nem nunca haverá

democracia, isonomia e justiça social sem o acesso pleno à educação como único caminho a

ser trilhado no sentido de ver concretizados os anseios do legislador constituinte. A carência

de políticas públicas ou sua ineficiência, contribuem para má formação dos cidadãos e a

consequente manutenção de nossa sociedade em um estado de alienação quase que completo.

Na situação atual, não há que se falar em civismo, em democracia, em justiça social ou sequer

em dignidade, pois, aludidos institutos podem ser considerados, hoje, irreais e um objetivo a

ser atingido.

Veja, portanto, a importância da educação. Neste ínterim, é inconcebível que se

admita, como justificativa para negativa de implementação e garantia deste direito

fundamental, a carência de recursos públicos.

A pergunta que se deve fazer neste momento é: o administrador público possui,

em todos os casos, carta branca para escolher as prioridades, ou seja, para decidir quais

8 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, p.3. 9 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 42. 10 CHAUI, Marilena. Contive à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004, 13ª ed. 2ª tiragem.

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valores serão contemplados e, consequentemente, quais serão postergados em face da

escassez dos recursos públicos? Tal pergunta deve ser respondida com cautela.

A regra é que, por atribuição constitucional, cabe ao Poder Executivo definir os

programas de governo que serão tratados com prioridade; boa parte deles, referendados pela

vontade manifestada nas urnas. Todavia, há um núcleo de direitos que não pode, em hipótese

alguma, ser preterido, pois constitui o objetivo e fundamento primeiro do Estado Democrático

de Direito.

O termo "em hipótese alguma" frisa que nem mesmo a vontade da maioria pode

tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da

maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas

este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos

direitos fundamentais.

Explica-se. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão,

pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito

às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja

a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da "democracia" para extinguir a

Democracia.

Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do

governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que

depende unicamente da vontade política.

A não priorização de direitos essenciais implica o destrato da vida humana como um

fim em si mesmo, ofende, às claras, o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana, dentre os

quais os relacionados às liberdades civis e aos direitos prestacionais essenciais como a

educação e a saúde, não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das

escolhas do administrador.

A argumentação até aqui apresentada expõe a existência de duas questões que

precisam ser conciliadas. De um lado, tem-se o real problema da ausência de recursos

orçamentário; do outro, a necessidade de realização dos Direitos Fundamentais.

A tese não deixa de ser uma decorrência do reconhecimento da reserva do possível.

Por não haver recursos para tudo, é que se deve garantir, ao menos, o suficiente para que se

possa viver com dignidade. Esse mínimo existencial não pode ser postergado e deve ser a

prioridade do Poder Público.

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Somente depois de atendido é que se abre a possibilidade para a efetivação de outros

gastos, não entendidos, num juízo de razoabilidade, como essenciais. Por esse motivo, pelo

menos a priori, a teoria da reserva do possível não pode ser oposta ao mínimo existencial.

Antes, mais uma consideração. O mínimo existencial não se resume ao mínimo vital,

ou seja, o mínimo para se viver. Não deixar alguém morrer de fome é, certamente, o primeiro

passo, mas não é, nem de longe, o suficiente para fazê-lo viver com dignidade.

O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as condições

socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência, asseguram ao indivíduo um

mínimo de inserção na "vida" social.

Definido o conteúdo do mínimo existencial, não fica difícil perceber que dentre os

direitos considerados prioritários encontra-se o direito à educação.

O que distingue o homem dos demais seres vivos não é a sua condição de animal

social. Animal social a abelha é, a formiga é, inúmeros outros são. O traço diferencial do

homem é a sua condição de ser um animal político; a sua capacidade de relacionar-se com os

demais e, através da ação e do discurso, programar a vida em sociedade.

A distinção é importante, pois denota a existência de uma dupla dimensão da vida

humana. Há a vida natural, biológica, que faz do homem um animal como qualquer outro. Há,

também, uma espécie de segunda vida, a que é exercida na esfera pública, nas relações

intersubjetivas e políticas que o indivíduo realiza com os demais integrantes da sociedade.

A consciência de que é da essência do ser humano, inclusive sendo o seu traço

característico, o relacionamento com os demais em um espaço público - onde todos são, in

abstrato, iguais, e cuja diferenciação se dá mais em razão da capacidade para a ação e o

discurso do que em virtude de atributos biológicos - é que torna a educação um valor ímpar.

Em outras palavras, no espaço público - onde se travam as relações comerciais,

profissionais, trabalhistas, bem como onde se exerce a cidadania - a ausência de educação, de

conhecimento, em regra, relega o indivíduo a posições subalternas, o torna dependente das

forças físicas para continuar a sobreviver e, ainda assim, em condições precárias. Daí surge a

necessidade do insculpido junto aos Artigos 205 e 227 da Constituição Federal.

Observa-se, nesse ponto, que a priorização dos investimentos na educação infantil,

devido a sua essencialidade, não é resultado de opções políticas dos ocupantes momentâneos

do cargo chefe do Poder Executivo, mas sim uma imposição da própria Carta Federal.

Com efeito, o princípio da reserva do possível não pode ser oposto - quando a

escassez é resultado de um processo de escolha das atividades que serão atendidas - ao

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mínimo existencial, aos direitos que a própria Constituição Federal elege como prioritários,

como é o caso do direito à educação infantil.

9 DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA INERENTE À

OBRIGATORIEDADE DE VAGAS EM CRECHES E PRÉ-ESCOLAS PARA

EDUCAÇÃO INFANTIL.

Conforme já exaustivamente disposto, a acesso dos cidadãos ao saber contribui para

a expansão dos conhecimentos e cria subsídios individuais e coletivos para o

engrandecimento da consciência sobre a realidade social em que vivem e sobre as relações

existentes nos contextos dos quais são sujeitos históricos, econômicos e políticos. Ao firmar

esta conscientização, o sujeito se transforma e passa a viver de maneira mais efetiva e

presencial. Na esteira desse entendimento, são esclarecedoras as palavras de Octávio Ianni:

Poucos são os que dispõem de condições para se informarem e posicionarem diante dos acontecimentos mundiais, tendo em conta suas implicações locais, regionais, nacionais e continentais. Quando se criam condições mais plenas para a elaboração da autoconsciência, no sentido de consciência para si, então a cidadania se realiza propriamente como soberania.11

Nesta toada, educação e escola, principalmente infantil, são essenciais para o

indivíduo e para a sociedade vez que promove e garante o avanço da humanidade. Todavia,

para que isto ocorra, indispensável é a promoção de políticas públicas voltadas para a

educação.

Infelizmente, a realidade brasileira é precária em propostas e ações concretas que

enaltecam compromisso com as efetivas necessidades dos indivíduos, oportunidade em que

aludido fato é refletido junto aos entendimentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de

Justiça conforme se demonstrará.

Nosso País herdou do período Imperial um contexto educacional extremamente

complicado, com vistas ao fato de que a alfabetização das crianças não era preocupação do

Poder Público. Neste sentido, tem-se o entendimento de Florestan Fernandes:

11 IANNI, Octávio. A sociedade global. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. P. 115.

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É certo que a República falhou em suas tarefas educacionais. Mas falhou por incapacidade criadora: por não ter produzido os modelos de educação sistemática exigidos pela sociedade de classes e pela civilização correspondente, fundada na economia capitalista, na tecnologia científica e no regime democrático. Em outras palavras, suas falhas provêm das limitações profundas, pois se omitiu diante da necessidade de converter-se em Estado educador, em vez de manter-se como Estado fundador de escolas e administrador ou supervisor do sistema nacional de educação. Sempre tentou, não obstante, enfrentar e resolver os problemas educacionais tidos como “graves”, fazendo-o naturalmente segundo forma de intervenção ditada pela escassez crônica de recursos materiais e humanos. Isso explica por que acabou dando preeminência às soluções educacionais vindas do passado, tão inconsistentes diante do novo estilo de vida e das opções republicanas, e por que simplificou demais a sua contribuição construtiva, orientando-se no sentido de multiplicar escolas invariavelmente obsoletas, em sua estrutura e organização, e marcadamente rígidas, em sua capacidade de atender às solicitações educacionais das comunidades humanas brasileiras.12

Mais do que um problema localizado no setor educacional, o Manifesto dos

Pioneiros situa o problema educacional como eminentemente social, conforme analisou

Otaíza de Oliveira Romanelli, indicando a educação como possibilidade para alavancar o

desenvolvimento econômico brasileiro e conseqüentemente possibilitar também o

desenvolvimento da sociedade.

Desprendendo-se dos interesses de classes, a que ela tem servido, a educação perde o “sentido aristológico”, para usar a expressão de Ernesto Nelson, deixa de constituir um privilégio determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um “caráter biológico”, com que ela organiza a coletividade em geral, reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social. A educação nova, alargada a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a verdadeira função social, preparando-se para formar “a hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios de ação durável com o fim de “dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento”, de acordo com certa concepção de mundo.13

12 FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966. P. 4. 13 AZEVEDO, Fernando de. et. al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010. P. 40.

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Uma vez reconhecida a educação como direito de todos, o Manifesto dos Pioneiros

confere um progresso qualitativo junto à compreensão da educação como fundamental para o

desenvolvimento da cidadania. O papel desempenhado no contexto do Manifesto, que trouxe

em seu bojo as importantes reivindicações de uma educação pública, obrigatória, gratuita,

leiga e igual para ambos os sexos. Neste sentido, tem-se os dizeres de Fernando de Azevedo:

Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo, por um plano geral de educação, de estrutura orgânica, que torne a escola acessível, em todos os seus graus, aos cidadãos a quem a estrutura social do país mantém em condições de inferioridade econômica para obter o máximo de desenvolvimento de acordo com suas aptidões vitais. Chega-se, por esta forma, ao princípio da escola para todos, “escola comum ou única”, que tomando a rigor, só não ficará na contingência de sofrer quaisquer restrições, em países em que as reformas pedagógicas estão intimamente ligadas com a reconstrução fundamental das relações sociais.14

Neste sentido, a educação é, assim, “um direito social fundante da cidadania e o

primeiro na ordem das citações”15 Sem educação, não há cidadania.

Sob este enfoque, a educação é considerada como direito de todos e dever do Estado

e da família, sendo indispensável para a evolução do ser humano.

Realizados aludidos esclarecimentos, importa salientar que há notória tendência do

Superior Tribunal de Justiça em assegurar as crianças o acesso à educação infantil,

oportunidade em que, a totalidade dos Mandados de Segurança que foram ajuizados e

chegaram a análise desta Corte Superior tiveram seu deferimento como medida imposta, no

tocante a garantir e a assegurar vagas junto à instituições de ensino mantenedoras da educação

infantil.

Neste sentido, tem-se o entendimento unânime do Superior Tribunal de Justiça –

STJ, junto ao Recurso Especial 1345330/RS:

Hipótese em que o Tribunal a quo concluiu que "o direito à educação infantil constitui direito fundamental social, que deve ser assegurado pelo ente público municipal, garantindo-se o atendimento em creche ou pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade, com absoluta

14 FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966. P. 44. 15 CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislação educacional brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A ,2002.

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prioridade, nos termos do artigo 208, IV, da CF, e artigo 54, IV, do ECA.

Ainda, a Corte Superior junto ao Recurso Especial 782196/SP, consignou que:

“Hipótese em que o Tribunal a quo concluiu que "o direito à educação infantil constitui

direito fundamental social, que deve ser assegurado pelo ente público municipal, garantindo-

se o atendimento em creche ou pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idade, com

absoluta prioridade, nos termos do artigo 208, IV, da CF, e artigo 54, IV, do ECA."

Desta forma, o Superior Tribunal de Justiça – STJ é uníssono em entender o direito à

educação infantil como fundamental, indispensável e obrigatório, razão pela qual concede,

aos que buscam sua tutela jurisdicional, o acesso e garantia de vagas em instituição que atuam

neste setor educacional.

10 CONCLUSÃO

A educação como direito social e como um dos componentes da consolidação da

cidadania de um povo pressupõe a criação e efetivação de estratégias pelo poder público para

que o mesmo seja garantido no âmbito da concretude.

Para que a educação possa contribuir para a efetivação da cidadania do povo

brasileiro é preciso entendê-la enquanto direito, ou seja, a garantia da educação deve ocorrer

integralmente e não apenas como possibilidade de acesso à escola, pois para que esta

contribua com o exercício da cidadania de forma geral, precisa ser organizada de forma a

possibilitar que seus alunos usufruam de todas as possibilidades de acesso, aquisição e

desenvolvimento de novos conhecimentos para o exercício de seus direitos e deveres. Para

isso ocorrer é preciso efetivar ações que garantam a previsão legal.

11 REFERÊNCIAS:

PORTELLA, Simone de Sá. Considerações sobre o conceito de mínimo existencial. Âmbito Jurídico, Rio Grande. 2007. IANNI, Octávio. A sociedade global. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. FERNANDES, Florestan. Educação e Sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966 CHAUI, Marilena. Contive à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2004, 13ª ed. 2ª tiragem

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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999 AZEVEDO, Fernando de. et. al. Manifesto dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010. FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. RJ-SP: Renovar, 2000, CURY, Carlos Roberto Jamil. Legislação educacional brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A ,2002

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DIREITO SOCIAL À SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CASO BRASILEIRO

SOCIAL RIGHT TO HEALTH: ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF

FUNDAMENTAL RIGHTS IN THE CASE OF BRAZIL

Aline Maria Hagers Bozo1 Bárbara Guasque2

RESUMO O presente artigo versa sobre discussão teórica acerca dos direitos fundamentais, enfatizando que são eles absolutos, como tal, só podem ser relativizados mediante lei e em caráter excepcional. Os Direitos Fundamentais de primeira a terceira dimensão pautaram-se no ideário da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, no entanto, só serão objeto de estudo os direitos de primeira e segunda dimensão, com ênfase no direito social à saúde. O direito social à saúde é previsto na Constituição Federal de 1988 em vários dispositivos, como no artigo 6º, 196, 197, 198, 199 e 200. O Brasil possui um sistema de saúde público, de caráter universal, igualitário e gratuito, financiado pelo Estado. Contudo, o Sistema Único de Saúde se apresenta deficitário, restando a pergunta se o direito fundamental à saúde é garantido no Brasil. Entende-se que o SUS não atende satisfatoriamente as garantias fundamentais previstas na Constituição Federal de 1988, precisando que a União invista mais recursos no sistema hoje proposto. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais; Direito Social, Dignidade da Pessoa Humana, Sistema Único de Saúde-SUS. ABSTRACT This article deals with a theoretical discussion about fundamental rights, emphasizing that they are absolute and as such they can only be put into perspective by law and in exceptional character. The Fundamental Rights of first to third dimensions were based on the ideology of the French Revolution, liberty, equality and fraternity. However, the rights of first and second dimensions will be the object of study, with emphasis on the social right to health. The social right to health is provided in the 1988 Federal Constitution through various instruments, such as the 6th article, 196, 197, 198, 199, and 200. Brazil has a public health system of universal character, egalitarian and free, financed by the State. However, this Unified Health System is deficient, leading to question whether the fundamental right to health is guaranteed in Brazil. It is understood that the Unified Health System does not meet the fundamental guarantees provided in the 1988 Federal Constitution satisfactorily and this fact represents a need for the State to invest more resources in the system proposed. KEYWORDS: fundamental rights, social rights, human dignity, Unified Health System. 1 Especialista em Direito Criminal pela UNICURITIBA e Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC/PR. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011/2013), com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Advogada graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (2003). Pós-Graduada em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Positivo - UNICENP (2009).

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Sumário: I.Introdução; II.As Dimensões dos Direitos Fundamentais; III. Os Direitos Sociais e a Dignidade da Pessoa Humana. IV. Os Direitos Sociais. V. O Direito Social à Saúde. VI. Competência dos Entes Federados quanto à Saúde. VII. O Mínimo Existencial e a Reserva do Possível frente à Efetividade da Prestação Estatal. VIII. Considerações Finais. IX. Referências.

I. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 fora chamada de Constituição Cidadã por ter inserido

vários direitos fundamentais em seu texto. Dentre eles podemos destacar os direitos

fundamentais de primeira geração que são os garantidores de direitos básicos como a

liberdade de ir e vir. Por sua vez, os direitos fundamentais de segunda geração exigem do

Estado uma prestação para sua efetivação, como o direito à saúde.

Precisar um marco histórico para o surgimento dos direitos fundamentais é árdua

tarefa, da mesma forma que conceituar ou caracterizá-los. Muitos são os conceitos para os

direitos fundamentais, o que afasta a simplicidade de tal tarefa, visto que inúmeras são as

possibilidades de um resultado não satisfatório, uma vez que faltariam exatidão e

especificidade que abarcasse todo o conteúdo.

De acordo com Hesse3 os direitos fundamentais visam “criar e manter os pressupostos

elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana.” Enquanto Schmitt4 entende

que os direitos fundamentais podem ser caracterizados como direitos do homem livre e

isolado, direitos que possui em face ao Estado. Este autor menciona que os direitos

fundamentais são absolutos e não se relativizam, exceto se obedecerem a critérios da lei ou se

estiverem dentro de limites legais. E continua dizendo que “as limitações aos chamados

direitos fundamentais genuínos aparecem como exceções, estabelecendo-se unicamente com

base em lei, mas lei em sentido geral; a limitação se dá sempre debaixo do controle da lei,

sendo mensurável na extensão e no conteúdo”. 5

O presente trabalho questiona o direito fundamental, pautado no princípio da

dignidade da pessoa humana, à saúde, previsto na Constituição Federal de 1988, se o mesmo

está sendo oferecido pelo Estado conforme preconizado pelo texto constitucional.

3 HESSE, Konradi, Grundechte, in Staatslexikon, v.2.In: Paulo Bonavides - Curso de direito Constitucional. 26 ed. p.560. 4 SCHMITT, Carl, Verfassungslehre, p.164 Apud. Paulo Bonavides - Curso de direito Constitucional. 26 ed. p.561. 5 Id. Ibid. p. 562.

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II. As Dimensões dos Direitos Fundamentais

Os direitos fundamentais habitualmente são classificados em gerações de direito. Há

algumas manifestações quanto à terminologia geração ou dimensão de direito, de forma que

Lenza6 explica que a doutrina mais atual prefere a expressão “dimensões” dos direitos

fundamentais, considerando que uma nova “dimensão” não abandonaria as conquistas da

“dimensão” anterior e, assim, a expressão se mostraria mais adequada.

Sarlet, Marinoni e Mitidiero, julgam as críticas dirigidas ao termo “gerações” de

direito bem fundadas, uma vez que o reconhecimento de novos direitos fundamentais exercem

processo cumulativo, posto que os novos complementam os já existentes e não há exclusão ou

alternância, como a expressão “gerações” poderia sugerir uma substituição gradativa, de uma

geração para outra. Assim como fez Lenza, os autores citados também preferiram utilizar-se

do termo “dimensão”, também de acordo com as mais modernas doutrinas. 7

Abandonando a questão de terminologia, no que tange a classificação dos direitos

fundamentais, eles podem ser ordenados em várias dimensões, sendo que as três primeiras

partem do lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ideário da Revolução Francesa8, mas

apenas os de primeira e segunda geração serão objetos do presente estudo. 9

Os direitos fundamentais de primeira dimensão correspondem aos direitos de

liberdade, da não intervenção do Estado – os chamados direitos negativos - e vão se atrelando

também ao princípio da igualdade, em que todos são iguais no usufruto da liberdade. Nas

palavras de Paulo Bonavides10 “são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do

instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande

parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do

6 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado.16ª edição atualizada e ampliada. Editora Saraiva, 2012, p. 958. 7 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2012, p. 258. 8 LENZA. Op. Cit. p. 958. 9 Na terceira dimensão dos direitos fundamentais encontram-se os ditos direitos de solidariedade e fraternidade, cuja consagração decorre dos impactos ocasionados pela evolução tecnológica e científica. A principal diferença entre os direitos de terceira dimensão com os anteriores, encontra-se na questão da titularidade. Isso porque, ao contrário das dimensões anteriores, aqui a titularidade pertence a todo gênero humano, como os direitos difusos e os direitos coletivos. São dessa dimensão os direitos relativos ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, à paz, ao meio ambiente e à qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio comum da humanidade – histórico e cultural, e à comunição. Alguns autores mencionam a existência de direitos fundamentais de quarta dimensão. Para Bonavides a quarta dimensão de direitos fundamentais decorre do fenômeno da globalização dos direitos fundamentais e compreende direitos como à informação, à democracia e ao pluralismo. 10 BONAVIDES. Op. Cit. p. 563.

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Ocidente”. O autor afirma que os direitos de primeira dimensão alcançaram projeção de

universalidade formal, de modo que qualquer Constituição os reconheça em toda a sua

extensão. Esses direitos tangem ao homem das liberdades abstratas e têm por titular o

indivíduo subjetivo; eles opõem-se ao Estado.

Os direitos de primeira dimensão refletem o pensamento do liberalismo-burguês do

século XVIII, preocupados com as questões individuais, ficando caracterizados como direitos

de defesa do indivíduo frente ao poder estatal. Tais direitos almejam uma abstenção por parte

dos poderes públicos, sendo assim, direitos de resistência ou de oposição ao Estado.

Conforme Sarlet:

Neste contexto, assumem particular relevo os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, posteriormente complementados por um leque de liberdades, incluindo assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdade de expressão, imprensa, manifestação, reunião, associação etc.) e pelos direitos de participação política, tais como direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a Democracia. 11

Os direitos humanos de primeira dimensão referem-se ao indivíduo e suas liberdades –

liberdade de ir e vir, ao culto religioso, de expressão, de reunião, de fazer escolhas na esfera

afetiva, e também a liberdade de propriedade e privacidade, sem nenhuma intervenção

estatal.12

Os direitos de segunda dimensão estão relacionados às liberdades concretas e na

perspectiva cronológica, dominaram o século XX. A Revolução Industrial, no século anterior,

representou o marco do fim da soberania burguesa. Nesse contexto, se evidenciaram o

acúmulo de capital nas mãos dos mais ricos, a aceleração de desempregos e as precárias

condições de trabalhos. Esses, dentre outros vários fatores acabaram por eclodir as

manifestações e organizações da classe proletária, clamando por direitos como, por exemplo,

do voto, o qual lhes concedia a escolha de seus representantes13. Os direitos de segunda

dimensão estão relacionados às questões sociais, ao Estado Social, Estado este que se

preocupava com a redistribuição dos lucros, com a garantia de uma sociedade mais justa e

igualitária que contasse com a intervenção Estatal, a fim de que cada indivíduo pudesse ter

uma existência digna. Esses direitos, diferentemente dos de primeira dimensão, exigem ações

11 SARLET et al. Op. Cit. p. 260. 12 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Direitos Fundamentais Sociais: considerações acerca da legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed, 2006, p 59. 13 Id. Ibid. p. 56.

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positivas por parte do Estado para garantir o bem estar social - chamados também de direitos

positivos. São os direitos sociais, culturais e econômicos que surgiram arraigados ao princípio

da igualdade.

Porto descreve os direitos de segunda dimensão como sendo aqueles que concernem,

por sua vez, às conquistas no âmbito social, não apenas na esfera individual, contudo visando

à coletividade dos trabalhadores, estudantes, aposentados, crianças, adolescentes, idosos,

enfim, situando-os na condição de sujeitos de direitos. Este autor finaliza observando que

“ademais, nesta segunda dimensão, passa-se a exigir uma ação positiva do Estado para

concretização dessas novas categorias deônticas, daí serem chamados de direitos

prestacionais”. 14

III. Os Direitos Sociais e a Dignidade da Pessoa Humana

Dentre os direitos prestacionais sociais de segunda dimensão, o direito à saúde pede

especial atenção e não há como falar em saúde, sem falar em dignidade da pessoa humana15.

Como salienta Sarlet:

A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inseparável de todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal. Concepção de que em razão, tão somente, de sua condição humana e independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus semelhantes. É, pois, um predicado tido como inerente a todos os seres humanos e configura-se como um valor próprio que o identifica. 16

A dignidade da pessoa humana é valor axiológico, é a base, o núcleo de todos os

direitos e garantias fundamentais e na Constituição Federal encontram-se importantes artigos

nesse sentido, como o artigo 1º, inciso III, que coloca a dignidade da pessoa humana como

fundamento da República; artigo 3º, inciso III que põe como objetivos fundamentais, entre

outros, a erradicação da pobreza e da marginalização a fim de reduzir a desigualdade social e

regional; artigo 5º, caput, que coloca todos iguais perante a lei, e seu inciso III, que proíbe a

tortura, o tratamento desumano ou degradante; artigo 6º que determina a assistência aos 14 PORTO. Op. Cit. p. 60 e 61. 15 “(...) no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade”. Conforme: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004. 16 SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição da República de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 22.

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desamparados; artigo 193 que menciona como base da ordem social o bem estar e a justiça

social e, por último, artigo 231 que reconhece aos índios sua organização social como um

todo, protegendo-os.

Nas palavras de Torres “o direito à alimentação, à saúde e à educação, embora

não sejam originariamente fundamentais, adquirem o status daqueles no que concerne à

parcela mínima, sem a qual a pessoa não sobrevive” 17. Para Barroso, dignidade da pessoa

humana é uma locução tão vaga, tão metafísica, que, embora carregue em si forte carga

espiritual, não tem qualquer valia jurídica. Passar fome, dormir ao relento, não conseguir

emprego são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana. De fato, a dignidade da

pessoa humana ganha destaque, não obstante esta se merecer como um conceito de contornos

vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambiguidade e porosidade, assim como por sua

natureza necessariamente polissêmica. Tal relevância pode ser facilmente compreendida à luz

dos avanços tecnológicos e científicos da humanidade. 18

Sarlet propôs uma conceituação jurídica para a dignidade da pessoa humana:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos. 19

Há uma indissolúvel e intrínseca relação entre a dignidade da pessoa humana e os

direitos fundamentais, mesmos naquelas constituições em que a dignidade humana não seja

explicitada em seus textos. Desta maneira, pode-se considerar que a dignidade da pessoa

humana é um axioma irrefutável de valor jurídico-filosófico. 20

Moraes21 define os direitos humanos fundamentais como sendo “o conjunto

institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o

respeito a sua dignidade, por meio da sua proteção contra o arbítrio do poder estatal”. E

afirma que a complementaridade, a efetividade, a irrenunciabilidade, a inviolabilidade, a

17 TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 133. 18 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 296. 19 SARLET. Op. Cit. 2001, p. 60. 20 Id. Idem. p. 26. 21 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3º ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 39.

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interdependência, a imprescritibilidade e a universalidade são as características destes

direitos.

Moraes22 ainda preceitua que a dignidade humana trata-se de valor moral e espiritual,

intrínsecos e indissolúveis a toda pessoa, e que conscientemente se expressa por meio da

determinação responsável pela própria vida, com o dever de exigir do outro a reciprocidade

do respeito.

Ao comentar o Art. 1º da Declaração dos Direitos Humanos, o festejado dispositivo

que decreta a igualdade de todos os seres humanos em dignidade e direitos, Rocha faz as

seguintes considerações:

Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferença. Gente não muda. Muda o invólucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria, sente-se igual. 23

Silva sobre o conceito de dignidade da pessoa humana, para que se possa entender o

significado além de qualquer conceituação jurídica, uma vez que a dignidade é posta como

condição inerente ao todo e qualquer ser humano, atributo que o caracteriza como tal, afirma

que “a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses

conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria

pessoa humana”. 24

E por fim, não menos importante, Flávia Piovesan discorre sobre o processo de

universalização dos direitos humanos e elucida que a formação de um sistema internacional,

composto por tratados, tem sua fundação na acolhida da dignidade da pessoa humana como

valor que norteia o universo de direitos. Conveniente se faz destacar a concepção da autora:

Todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurídico, incorporam o valor da dignidade humana. 25

22 MORAES. Op. Cit. p.40. 23 ROCHA, Carmem Lúcia. Antunes. Direito de Todos e para Todos. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 13. 24 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo. v. 212 - abr./jun. 1998. 25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. In: LEITE, George Salomão (Org.). Dos Princípios Constitucionais: Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003.

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Assim, a Constituição brasileira de 1998 traz em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade

da pessoa humana como direito fundamental. Porém, importante perceber que a dignidade da

pessoa humana não foi inclusa no artigo 5º da Carta Magna, o qual estabelece os direitos e

garantias fundamentais, todavia, concede-o o enfoque como princípio constitucional basilar

do Estado Democrático de Direito.

O Estado tem não apenas o dever de se abster de praticar atos que atentem contra a

dignidade humana, como também o de promover esta dignidade através de condutas ativas,

garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. O homem tem a sua

dignidade aviltada não apenas quando se vê privado de alguma das suas liberdades

fundamentais, como também quando não tem acesso à alimentação, educação básica, saúde,

moradia etc. 26

IV. Os Direitos Sociais

Os direitos sociais são considerados direitos de segunda dimensão, aqueles que exigem

prestações pelo Poder Público e requerem uma atuação positiva do Estado, de modo a

diminuir ou ao menos amenizar a desigualdade social dos hipossuficientes. De acordo com

André Ramos Tavares “são, por esse exato motivo, conhecidos também como direitos a

prestação, ou direitos prestacionais”. 27

Os direitos sociais estão intrinsecamente relacionados aos direitos humanos.

Independentemente de acordos pessoais ou determinações legais, tais direitos são atribuídos

ao ser humano enquanto tal e eles correspondem aos princípios morais que visam ao

fornecimento de garantias e satisfação do mínimo de condição para que o indivíduo tenha

uma vida digna. De acordo com Martins, “Os direitos sociais possuem um status garantidor

da autonomia do indivíduo, possibilitando-o exercer e usufruir de sua liberdade, mediante a

garantia de acesso a uma formação educacional, ao trabalho, à moradia e à assistência à

saúde”. 28

De acordo com Habermas:

26 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 71. 27 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 10 edição revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 837. 28 MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 21.

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Os direitos sociais são uma condição para que os direitos básicos, tais como o direito à igual liberdade de ação, direito à livre associação entre os indivíduos, direito à proteção dos direitos dos direitos individuais, direito à igual participação no processo de formação de opiniões e vontades e direito à garantia de condições de vida, sociais, técnicas e econômicas, possam vir a ser exercidos. 29

Para o autor, os direitos básicos são aqueles conceituados como princípios que

possibilitam o processo de legitimação de direitos. 30

Os destinatários dos direitos sociais são todos os indivíduos, no entanto objetivam dar

maiores condições aos mais necessitados de amparo por parte do Estado.

Os direitos sociais são institucionalizados na Constituição de 1934, sofrendo

influência das Constituições Mexicana, de 1917, alemã Weimar, de 1919 e da espanhola, de

1931. De acordo com José Afonso da Silva “os direitos sociais, nessas constituições, saíram

do capítulo da ordem social, que sempre estivera misturada com a ordem econômica” 31, mas

o texto constitucional de 1988 dedica um capítulo próprio aos direitos sociais – capítulo II do

título II e ainda, um título referente à ordem social – título VIII. Primeiramente, os direitos

sociais foram classificados apenas como normatividade programática, no entanto, como

proferiu José Afonso da Silva “a tendência é de conferir a esta normatividade maior eficácia.

E, nessa configuração crescente da eficácia e da aplicabilidade das normas constitucionais

reconhecedoras de direitos sociais, é que se manifesta sua principal garantia”. 32

Logo depois, a Constituição de 1937, desconsiderando o princípio da dignidade da

pessoa humana, retirou direitos civis e políticos, concebendo uma ordem econômica em

completa inobservância do princípio da justiça e das necessidades da população. 33

Já a Carta de 1946 devolveu o instituto dos direitos sociais e até inseriu em seu bojo

ideias presentes na Constituição de Weimar, aliadas à ordem econômica, social e à liberdade

de iniciativa com a valorização do trabalho humano. 34

A Carta Magna de 1967 representou na seara dos direitos políticos um grande

retrocesso, no entanto no que diz respeito aos direitos sociais, não apresentou modificações

relevantes.

O atual sistema Constitucional brasileiro tem como alicerce os direitos sociais e

quanto ao seu status, Silva assim os define:

29 HABERMAS, Faktizität und Geltung apud MARTINS, Wal. Direito à saúde: compêndio. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 22. 30 Ibid. p. 22. 31 SILVA. Op. Cit., 2009, p. 285. 32 Id, Ibid, p. 465. 33 MARTINS. Op. Cit. p. 23. 34 Id. Ibid. p. 23.

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Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas estatais, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos dos gozos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. 35

Há direitos sociais enumerados nos artigos 6º e 7º da Constituição Federal que têm

cunho de universalidade, que propicia a erradicação da pobreza e da marginalização e a

redução das desigualdades sociais e regionais. Lê-se no Artigo 6º que são direitos sociais a

educação, a saúde, o trabalho, a moradia o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção

à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados. Chimenti et al leciona que na

forma como disposto na Constituição Federal, os direitos sociais são muito mais que normas

programáticas; são direitos subjetivos do indivíduo, oponíveis ao Estado, que devem fornecer

as prestações diretas e indiretas garantidas pela Constituição. 36

Novaes afirma que “ao lado dos direitos e liberdades clássicos – moldados e

comprimidos, particularmente no que se refere ao direito de propriedade, à medida das novas

exigências de socialidade – avultam, agora, os chamados direitos sociais indissociáveis das

correspondentes prestações do Estado”. 37

A Constituição de 1988, retirando os direitos sociais da Ordem Econômica, inseriu-os

no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, e deu-lhes o regime jurídico da Ordem

Social. Fez um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, no qual inseriu os direitos

sociais, em razão da preocupação do constituinte em impedir que se repetissem as violações

de direitos que o recém extinto regime militar havia propiciado” 38. E ainda, os direitos sociais

se estendem a todos os residentes no País, em obediência à universalidade e à igualdade que

os caracterizam.

A justiça social só pode ser alcançada se a riqueza for equitativamente distribuída, o

que é possível mesmo num regime essencialmente capitalista. 39

Para Alexy:

35 SILVA. Op. Cit. p. 289. 36 CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio Fernando Elias;SANTOS,Maria Ferreira dos. Curso de Direito Constitucional – 5ª ed. Revisada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 128 e 129. 37 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de direito: Do estado de direito liberal ao Estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra, 1987, p. 130. 38 CHIMENTI et al. Op. cit. p. 509. 39 SILVA. Op. Cit., 2000, p. 764-765.

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Considerando os argumentos contrários e favoráveis aos direitos fundamentais sociais, fica claro que ambos os lados dispõem de argumentos de peso. A solução consiste em um modelo que leve em consideração tanto os argumentos a favor quantos os argumentos contrários. Esse modelo é a expressão da idéia-guia formal apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituição alemã são posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...) De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o indivíduo definitivamente tem é uma questão de sopesamento entre princípios. De um lado está, sobretudo, o princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais da competência decisória do legislador democraticamente legitimado e o princípio da separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à liberdade jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais e a interesses coletivos. 40

V. O Direito Social à Saúde

A saúde é declarada na Constituição Federal de 1988 em vários dispositivos, como no

artigo 6º, 196, 197, 198, 199 e 200. No artigo 6º, o constituinte declara a saúde como sendo

um direito social, juntamente com a educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.

Conforme prescrito no artigo 196, Mendes define que o direito à saúde é estabelecido

pelo artigo 196 da Constituição Federal como (1) “direito de todos” e (2) “dever do Estado”,

(3) garantido mediante “políticas sociais e econômicas (4) que visem à redução do risco de

doenças e de outros agravos”, (5) regido pelo princípio do “acesso universal e igualitário” (6)

“às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. 41

O ministro no que concerne ao item primeiro - direito de todos - leciona que é possível

que se identifique, na redação do artigo constitucional supracitado, tanto direito individual

quanto um direito coletivo à saúde. Dizer que a norma do artigo 196, por tratar de um direito

social, consubstancia-se tão somente em norma programática, não sendo capaz de produzir

efeitos, tão somente norteando o que deverá ser observado pelo poder público, significaria

negar a força normativa da Constituição.

Desta forma, o Ministro Celso de Mello, destacou a dimensão individual do direito à

saúde, ao reconhecê-la como um direito público subjetivo assegurado à generalidade das

40 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 511-512. 41 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em 12 de novembro de 2012.

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pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional42. Ressaltou o

Ministro que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa

constitucional inconsequente”, cabendo aos entes federados um dever prestacional positivo. E

finalizou dizendo que “a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador

constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde

(CF, art. 197)”, de forma a legitimar a atuação do Poder Judiciário caso haja omissão por

parte da Administração Pública no que tange ao mandamento constitucional em questão. 43

Gilmar Mendes profere que inexiste um direito absoluto que proteja, promova ou

recupere a saúde. No entanto, por meio de políticas sociais e econômicas, por meio de direito

público subjetivo a políticas públicas esse direito passa a ser assegurado.

Nesse sentido, em decisão proferida na ADPF n.º 45/DF, o Min. Celso de Mello

assinalou:

Desnecessário acentuar-se, considerando o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausentes qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. 44

Desta forma, a garantia judicial da prestação individual da saúde pode ser

comprometida se não houver perfeito funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que

deve ser sempre demonstrado claramente e de forma concreta, em cada caso.

Quanto ao segundo aspecto do artigo 196 - dever do Estado – comentou-se que, a

Constituição preconiza que, para além do direito fundamental à saúde, há o dever fundamental

de prestação de saúde por parte do Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e

também deve desenvolver políticas públicas que objetivam à redução de doenças, à

promoção, à proteção e à recuperação da saúde, bem como está expresso no referido artigo.45

No artigo 23, inciso II, está prevista a competência comum dos entes da Federação no

que diz respeito ao cuidado com a saúde e prevê assim, a solidariedade da União, Estados,

Distrito Federal e Municípios na responsabilidade com a saúde, tanto individual quanto

coletivamente, dessa forma, “são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a 42 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 43 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. AgR-RE N. 271.286- 8/RS, Rel. Celso de Mello, DJ 12.09.2000. 44 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012.ADPF-MC N.º 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004. 45 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012.

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negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de

saúde.” A obrigação solidária entre os entes da Federação e o objetivo de aumentar a

qualidade de acesso aos serviços de saúde podem ser verificados na descentralização dos

serviços do SUS e a conjugação dos recursos financeiros dos entes federados. Desta maneira,

estabeleceram-se quatro diretrizes básicas para as ações de saúde: para cada nível de governo

uma única direção administrativa; descentralização político-administrativa; atendimento

integral valorizando prioritariamente as atividades preventivas; e a participação comunitária.46

O SUS baseia-se no financiamento público e na cobertura universal das ações de

saúde. De forma que, para que se garanta a manutenção do Sistema Único de Saúde por parte

do Estado é necessário que os gastos com a saúde sejam estáveis e que haja também a

captação de recursos. Dentre outras fontes, de acordo com o artigo 195, o Sistema Único de

Saúde opera com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do

Distrito Federal e dos Municípios. Com o intento de proporcionar mais estabilidade aos

recursos à saúde, a Emenda Constitucional n.º 29/2000 estabeleceu um mecanismo de

cofinanciamento das políticas de saúde pelos entes da Federação. Com esta Emenda foram

acrescentados dois novos parágrafos ao artigo 198 da Constituição, os quais com o intuito de

aumentar e estabilizar os recursos à saúde asseguraram percentuais mínimos a serem

destinados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. 47

Todavia, o § 3º do art. 198 dispõe que caberá à Lei Complementar consolidar quais

serão os percentuais mínimos de que trata o § 2º do artigo em questão, quais serão os critérios

de divisão entre os entes federados, quais serão as normas de fiscalização, avaliação e

controle dos gastos com saúde, quais serão as normas de cálculo do montante a ser aplicado

pela União, além da especificação das ações e serviços públicos de saúde. 48

O terceiro item do artigo 196- garantido mediante políticas sociais e econômicas –

traduz exatamente a necessidade de formulação de políticas públicas que deem concretude ao

direito à saúde por meio de escolhas alocativas. Dispensar os escassos recursos utilizando

critérios distributivos é incontestável necessário, uma vez que a evolução da medicina impera

um viés programático ao direito à saúde, uma vez que muitas serão as novas descobertas,

46 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acessado em Nov/2012. 47 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 48 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012.

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novos exames, prognósticos ou procedimentos cirúrgicos, ou ainda uma nova doença ou então

a volta de uma doença que se supôs eliminada. 49

Ainda analisando o artigo 196, o ministro comenta o quarto tópico- políticas que

visem à redução do risco de doença e de outros agravos – e neste item evidencia-se o caráter

preventivo no que tange à saúde e as ações preventivas que nesta área tiveram indicação de

prioridade no artigo 198, inciso II, da Constituição Federal. 50

Quanto ao quinto item - políticas que visem ao acesso universal e igualitário-

consolidou-se na Constituição um sistema universal de acesso aos serviços públicos de saúde

e nesse sentido, a Ministra Ellen Gracie, na Suspensão de Tutela Antecipada 91, salientou

que, em sua compreensão, o art. 196 do Texto Constitucional diz respeito à efetivação de

políticas públicas que alcancem a população como um todo. 51 E de acordo com o artigo 7º,

IV da lei 8.080/90 o princípio do acesso igualitário e universal só tende a reforçar a

responsabilidade solidária dos entes federados, de modo a garantir a “igualdade da assistência

à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”.52

E finalmente no sexto item - ações e serviços para promoção, proteção e recuperação

da saúde – menciona que a partir do estudo do direito à saúde no Brasil se pode chegar à

conclusão de que os problemas no que diz respeito à eficácia social desse direito fundamental

deve-se bem mais a questões relacionadas à implementação e à manutenção das políticas

públicas de saúde que já existem - o que implica também a composição dos orçamentos dos

entes federados - do que propriamente à falta de específica legislação. Noutras palavras,

verifica-se que o problema não é a falta de legislação, mas é problema de cunho

administrativo na execução das políticas públicas por parte dos entes da Federação. A Carta

Magna brasileira preconiza de forma enfática a existência de direitos fundamentais sociais em

seu artigo 6º, tornando específico conteúdo e forma de prestação nos artigos 196, 201, 203,

205, 215, 217, entre outros. Distingue também os direitos e deveres individuais e coletivos no

capítulo I do Título II e os direitos sociais no capítulo II do Título II, ao consolidar que os

49 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 50 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 51 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. STA 91-1/AL, Ministra Ellen Gracie, DJ 26.02.2007. 52 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012.

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direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata consoante o artigo 5º, §1º, da mesma

Constituição. 53

Desta maneira, é notório que a Constituição Federal de 1988 acolheu os direitos

fundamentais sociais como autênticos direitos fundamentais. Torna-se inquestionável que as

demandas que visam à efetiva prestação ao direito à saúde devem ser resolvidas tomando

como ponto de partida a análise do atual contexto constitucional. 54

VI. Competência dos Entes Federados quanto à Saúde

A saúde é dever do Estado, sendo que não existe um dispositivo constitucional

taxativamente enumerado que disponha a quem caberá tal responsabilidade. Portanto, como

Estado compreende-se todos os Estados-Membros da Federação, ou seja, a saúde é dever da

União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tratando-se de competência

comum, sendo tarefa de todos os entes federados.55

O artigo 23, inciso II, da Constituição Federal de 1988 regula acerca da competência

no que tange à saúde pública. Dalmo de Abreu Dallari assinala:

A conclusão inevitável do exame da atribuição de competência em matéria sanitária é que a Constituição Federal vigente não isentou qualquer esfera de poder política da obrigação de proteger, defender e cuidar da saúde. Assim, a saúde – ‘dever do Estado’ (art.196) – é responsabilidade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. 56

A Constituição Federal de 1988 atribuiu competência a respeito da proteção e

desenvolvimento da saúde para legislar a todos os entes federativos, de forma concorrente, de

maneira que a União legisla sobre normas gerais, os Estados e Distrito Federal de maneira

complementar e os Municípios, conforme suas peculiaridades.

Entende-se que assim o sistema objetivava delinear constitucionalmente, no caso da

saúde pública, o que competia a cada ente, para que cada região pudesse ter tratamento

adequado e o atendimento à saúde não deixasse de ser prestado pelo mero fato de não existir

legislação que o abarcasse. Desta forma assim estabeleceu: à União responde pelas 53 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 54 BRASIL, STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em Nov/2012. 55 SCHWARTZ, Gernano. O tratamento Jurídico do Risco no Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 103. 56 DALLARI. Op. Cit. p.42.

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competências previstas nos artigos 22, 23 e 24; aos Estados os artigos 23, 24 e 25; ao Distrito

Federal corresponde o art. 32, § 1º; e aos Municípios as competências enumeradas nos artigos

23 e 30; todos da Constituição Federal de 1988.

Para José Afonso da Silva57 competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma

entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões e divide-se, em

regra, a competência pela predominância do interesse.

A ideia de que divide-se a competência conforme a predominância de interesse não é

uma premissa pacífica em que pese a extensão do território brasileiro impossibilitar que leis

gerais consigam abarcar todo o território, acabando por enfatizar apenas algumas regiões. No

entanto, assim o previu o legislador constitucional ao orientar ser de competência nacional

matérias, a priori, interessantes a todo o território brasileiro, e os Estados e Municípios

matérias específicas aos mesmos.

Assim, o legislador constitucional nominou as competências para legislar pertinente à

matéria saúde como sendo competências exclusivas e/ou privativas. Diferencia-se uma da

outra pelo fato de a primeira se referir à competência indelegável a outro órgão legislativo,

enquanto que a segunda pode ser delegável. No entanto, tanto no caso das competências

exclusivas como nas privativas não existem grau de hierarquia entre elas, ou seja, o Município

ao legislar privativamente sobre matéria de saúde, específica para sua região, não está

subordinado ao que diz seu Estado sobre a mesma temática e nem ao que diz a União, por ser

o assunto de interesse local.

Conforme Souza58, essa forma de repartição das competências decorre do modelo de

federalismo adotado pelo Brasil na Carta de 1988. No chamado federalismo clássico ou dual,

conjugam-se competências enumeradas e remanescentes, sendo discriminadas,

expressamente, as competências do poder central, remanescendo tudo quanto não for expresso

para as esferas de poder regional ou local. A repartição de competências, neste caso é

horizontal. É exemplo desse modelo a Constituição Americana de 1787, em sua origem. As

constituições de Weimar, de 1919, e austríaca, de 1920, são tidas como as que inauguraram o

federalismo cooperativo. Nesse modelo, se defere ao poder central a competência para a

edição de normas gerais a serem observadas nacionalmente, e aos poderes regionais,

competência para suplementá-las de acordo com o interesse local, a distribuição aqui é

vertical. A Constituição da Índia, de 1950, misturou os dois modelos; coexistindo

57 SILVA. Op. Cit. 1990, p. 402 e 403. 58 SOUZA, Mauro Luís Silva. A responsabilidade do Prefeito na concretização do direito Fundamental à saúde. Disponível em: <http://www.mp.rs.gov.br/dirhum/doutrina/id536.htm>. Acesso em: 18/11/2011.

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competências exclusivas do poder central, competências exclusivas do poder regional e

competências concorrentes.

Conforme Custódio Filho Ubirajara (1988, p.54-56) apud SOUZA59, a Constituição

Brasileira de 1988 optou por um modelo semelhante ao indiano, pois conjuga matérias de

competência privativa ou exclusiva de determinado ente (distribuição horizontal) e matérias

onde deve haver cooperação ou coordenação entre os três níveis da federação (distribuição

vertical). A distinção é pertinente, pois, em caso de conflito de competências, é o tipo de

distribuição (vertical/horizontal) que informará a solução. Se a matéria versar sobre

competências distribuídas no regime de cooperação a distribuição é vertical, há hierarquia,

prevalecendo a norma nacional sobre a regional, e esta sobre a local. Se a matéria versar sobre

competências distribuídas em regime de exclusividade ou privativo não há hierarquia e

prevalece a vontade do ente para o qual foi arrolada a competência sobre a dos demais, seja

Município sobre o Estado ou este sobre a União .

BERCOVICI, Gilberto (2003, p.156) apud Souza60 menciona que o federalismo

cooperativo é o adequado ao Estado Social. Sendo este um Estado intervencionista, voltado

para a implementação de políticas públicas, os níveis local e regional não têm como decidir

sobre inúmeras tarefas da atuação estatal que necessitam de tratamento nacionalmente

uniforme, notadamente no campo econômico e social, que necessitam unidade de

planejamento e direção. Portanto, ao invés de o Estado Social estar em contradição com o

Estado federal, ele influi de maneira decisiva no desenvolvimento do federalismo atual.

Segundo CONOF/CD,61 em regra, o sistema federativo mostra-se adequado em países

marcados pela diversidade e heterogeneidade, por respeitar valores democráticos em situações

de acentuada diferenciação política, econômica ou social. Todavia, esse tipo de sistema torna

mais complexa a implementação de políticas sociais de abrangência nacional, particularmente

nos casos em que a diversidade se refere à existência de desigualdades e de exclusão social.

59 CUSTÓDIO FILHO, Ubirajara. As competências do Município na Constituição Federal de 1988. In: SOUZA, Mauro Luís Silva. Op. Cit. 60 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. In: SOUZA, Mauro Luís Silva. Op. Cit. 61 Núcleo de Saúde da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados (CONOF/CD). Saúde no Brasil: História do Sistema Único de Saúde, arcabouço legal, organização, funcionamento, financiamento do SUS e as principais propostas de regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, de 2000. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/orcamentouniao/estudos/2011/nt10.pdf>. Acesso em: 20/11/2011. p.6.

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VII. O Mínimo Existencial e a Reserva do Possível frente à Efetividade da Prestação

Estatal

Política pública pode ser definida como uma expressão polissêmica que compreende,

em sentido amplo, todos os instrumentos de ação do governo. Refere-se às “providências para

que os direitos se realizem, para que as satisfações sejam atendidas, para que as

determinações constitucionais e legais saiam do papel e se transformem em utilidades aos

governados”62

Maria Paula Dallari Bucci compreende as políticas públicas como programas de ação

do governo com o intuito de coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades

privadas, com a finalidade de realizar os objetivos socialmente relevantes e politicamente

determinados.63

Há nos dias atuais, uma íntima relação entre políticas públicas e orçamento público,

pois “a decisão de gastar, é fundamentalmente, uma decisão política. O administrador elabora

um plano de ação, descreve-o no orçamento, aponta os meios disponíveis para seu

atendimento e efetua o gasto. A decisão política já vem inserta no documento solene de

previsão de despesas.”64

Ricardo Lobo Torres afirma que “o relacionamento entre políticas públicas e o

orçamento é dialético: o orçamento prevê e autoriza as despesas para a implementação das

políticas públicas; mas estas ficam limitadas pelas possibilidades financeiras e por valores e

princípios como o do equilíbrio orçamentário (...).65

Em um Estado Social e Democrático de Direito, o orçamento tem a função de

instrumentalizar as políticas públicas para concretizar os direitos fundamentais garantidos na

Constituição Federal.

Percebe-se ao longo da história que o estudo do direito tem caminhado,

constantemente, em direção a uma maior limitação do poder estatal e a uma proteção mais

eficaz aos direitos fundamentais do homem, fato este que decorre da luta em defesa de novas

liberdades em detrimento do que outrora fora estabelecido no que tange ao poder.66

Destarte, como já anteriormente abordado neste trabalho, os direitos fundamentais de

primeira dimensão, também conhecidos como direitos negativos ou de defesa, são aqueles que

62 OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de direito financeiro. São Paulo: RT, 206, p. 251. 63 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 241. 64 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 243. 65 TORRES. Op. Cit. p. 110. 66 Acerca do tema ver : BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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se destinam a limitar o poder do Estado em face do cidadão, como o direito à vida, à

liberdade, à propriedade, à igualdade, à participação política, entre outros.

Os direitos de segunda dimensão, por sua vez, são chamados positivos ou

prestacionais. São direitos sociais, econômicos e culturais e diferentemente dos direitos de

primeira dimensão, que eram reconhecidos por se traduzirem na abstenção estatal, os direitos

de segunda dimensão impõem ao Estado o dever de atuação efetiva para a sua garantia,

devendo o Estado atuar positivamente, dispondo de efetiva atuação material, a qual depende

de investimento e previsão orçamentária.

Conforme Sarlet “os direitos de defesa – precipuamente dirigidos a uma conduta

omissiva – podem, em princípio ser considerados destituídos desta dimensão econômica, na

medida em que o objeto de sua proteção (vida, intimidade, liberdades, etc) pode ser

assegurado juridicamente, independentemente das circunstâncias econômicas”.67

Mas seriam apenas os direitos prestacionais que envolvem custos ou seriam todos os

direitos fundamentais?

De acordo com um trabalho realizado pelos professores Stephen Holmes e Cass

Sunstein68- na obra The cost of rights : Why liberty depends on Taxes - os custos não se

limitam aos direitos prestacionais, de segunda dimensão.

Nesse sentido, leciona o professor José Casalta Nabais:

Do ponto de vista do seu suporte financeiro, bem podemos dizer que os clássicos direitos e liberdades, os ditos direitos negativos, são, afinal de contas, tão positivos como os outros, como os ditos direitos positivos. Pois, a menos que tais direitos e liberdades não passem de promessas piedosas, a sua realização e a sua proteção pelas autoridades públicas exigem recursos financeiros.69

As premissas doutrinárias referentes ao efetivo âmbito de proteção da regra

constitucional do direito à saúde decorrem, principalmente, da essência prestacional desse

direito e da necessidade de se compatibilizar o que doutrinariamente se convencionou chamar

de “mínimo existencial” e “reserva do possível”.70

O mínimo existencial, como direito fundamental, deriva da própria Constituição, sem

que precise de lei para regulamentá-lo e está intimamente relacionado à pobreza absoluta,

67 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 263. 68 Stephen Holmes e Cass Sunstein na obra The cost of rights: Why liberty depends on Taxes. 69 NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos, p. 12. Disponível em: <http://www.agu.gov.br/Publicações/Artigos/0504202JoseCasaltaAfaceocultadireitos01pdf>. Acesso em: 13 de novembro de 2010. 70 MENDES, Gilmar. Suspensão de Tutela Antecipada 278-6 Alagoas. Disponível em: <www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA278.pdf>. Acesso em: 13 de novembro de 2010, p.5.

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assim compreendida como aquela que deve ser combatida pelo Estado, contrariamente à

pobreza relativa, que depende da situação econômica do país, sendo sanada em consonância

com o orçamento.71

Por sua vez o conceito de reserva do possível pode ser entendido como um conceito

basilarmente econômico, decorrente da constatação de que são os recursos escassos, tanto

públicos como privados, em face das necessidades humanas: sociais, coletivas ou individuais.

Além de que os indivíduos, no momento em que fazem suas escolhas e elegem prioridades,

sopesam os limites financeiros de suas disponibilidades econômicas. Valendo-se da mesma

premissa as escolhas públicas, que devem ser feitas internamente ao Estado pelos órgãos

competentes para fazê-las.72

Trazendo a conceituação e os entendimentos anteriormente levantados para o Direito à

saúde pode-se afirmar que o mesmo está inserido no artigo 6º da Constituição Federal

Brasileira, sendo um direito social e como tal, as normas que o regulamentam possuem caráter

programático, as quais dependem de lei prévia e por isso são sujeitas ao conceito de reserva

do possível.

Os recursos públicos são escassos, devendo primeiramente ser garantidos os direitos

fundamentais, levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, mas sempre

sopesando a forma de atingir a coletividade e não o sacrifício de todos em nome de um.

Nessa linha de análise Gilmar Mendes argumenta que o Poder Judiciário, o qual

realiza a justiça no caso concreto, micro-justiça, por algumas vezes, não possuiria condições

de saber as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte

com invariável prejuízo para o todo.73

Sucede Rogério Gesta Leal citando que:

[...] quando se fala em saúde pública e em mecanismos e instrumentos de atendê-la, mister é que se visualize a demanda social e universal existente, não somente a contingencial submetida à aferição administrativa ou jurisdicional, isto porque, atendendo-se somente aqueles que acorrem de pronto ao Poder Público (Executivo ou Judicial), pode-se correr o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, por absoluta falta de informações ou recursos para fazê-lo.74

71

PORTELA, Simone de Sá. Considerações sobre o Conceito de Mínimo existencial. Publicado em: 14/10/2007. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/2400/1/Consideraccedilotildees-Sobre-O-Conceito-De-Miacutenimo-Existencial/pagina1.html#ixzz15yWFkyVY>. Acesso em: 09/11/2010 72 NUNES, Antonio José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os Tribunais e o Direito à Saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 97. 73 MENDES. Op.cit. p. 7 74 LEAL, Rogério Gesta. A Efetivação do Direito à Saúde – por uma jurisdição Serafim: limites e possibilidades. In Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. v.6. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006. p.71.

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O professor Juliano Heinen certifica que os recursos na área da saúde são

infinitamente menores que o necessário para atender a sistematização proposta pelo SUS

dizendo que “[...] se a escassez é notória, (não há recursos públicos para atender a todos), a

decisão judicial nada mais faz do que escolher quem será ou não atendido e quem será ou não

excluído, criando um privilégio jamais encontrado na Constituição Federal”.75

Nunes e Scaff, na mesma linha de raciocínio, se manifestam:

Adotar o procedimento de pleitear direitos individuais de saúde, sob o pálio do art. 196, seria transferir ao Poder Judiciário a fila de atendimento do SUS (ou ainda pior do que ela em face da morosidade deste Poder), sendo que de forma injusta, pois este não tem um critério de distribuição universal e simultâneo, distribuindo justiça apenas a quem lhe pede.76

Sobre a temática interessante mencionar a decisão judicial anexa, devido sua

complexidade e sua impossibilidade de cumprimento, pois o município necessitaria utilizar

todo o seu orçamento fugindo dos princípios constitucionais e legais para cumprir tal decisão

judicial.77

75 HEINEN, Juliano: O custo do direito à saúde e a necessidade de uma decisão realista: uma opção trágica. Disponível em: <www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoaudienciapublicasaude/anexo/>. Acessado em 10 de novembro de 2012. 76 NUNES; SCAFF. Op. Cit. p. 133. 77 “Invocando expressamente a autoridade da jurisprudência do STF, um Juiz de Maceió (Ação Civil Pública, Processo nº 090.08.500162-7, 27.10.2009) decidiu favoravelmente um pedido do Ministério Público, condenando o Município a cumprir integralmente o extenso e complexo programa definido na sentença com o objetivo de retirar de condições de miséria material e moral crianças das zonas lagunares de Maceió. E como a liminar antes concedida não tinha sido integralmente cumprida, o Juiz determinou o bloqueio de um milhão e quinhentos mil reais da rubrica de contingência do Município, mandou depositar essa importância em conta corrente no Banco do Brasil ou na Caixa Econômica Federal e confiou a movimentação dessa conta ao Ministério Público Estadual e do Trabalho. Em caso de incumprimento, o Juiz condenou ainda ao pagamento de multa diária o Município (R$ 10.000,00), o prefeito (RS 300,00) e o Secretário Municipal de Ação Social (R$ 200,00). Caberá nas competências do Ministério Público a gestão de dinheiros públicos retirados do orçamento de um Município? Vale apena ler o programa definido pelo Juiz, que, ao elaborá-lo, se substituiu a meu ver, não só aos órgãos do Executivo, mas até a profissionais de outras áreas (técnicos de saúde, de serviço social, de segurança, etc.): ‘1- Formar uma comissão multidisciplinar de profissionais do Município, a serem acompanhados pelos autores [o Ministério Público] ou profissionais por eles indicados ou ainda pelo respectivo Conselho Tutelar da região, não componentes da estrutura deste juízo, para realizar um perfil sócio-econômico das crianças e adolescentes da comunidade da Orla Lagunar, no prazo de 90 (noventa) dias, identificando cada criança e adolescente pelo nome, idade, endereço, nome dos pais se possuem registro de nascimento ou qualquer outro documento de identificação, como sobrevivem, se passam fome, se já sofreram violência doméstica, se são vítimas de violência sexual, se estão na escola, se saíram da escola e por quê, se trabalham, se passam o dia na rua, se usam drogas, se seus pais são dependentes químicos, entre outras necessárias à identificação exata da situação de risco em que se encontram; 2- Oferecer condições adequadas, no prazo de 60 (sessenta) dias, para o funcionamento do Conselho Tutelar das Regiões I e II, dentre as quais: segurança, combustível em quantidade suficiente, computadores em perfeito estado, verba de custeio, pessoal de apoio e número telefônico gratuito (0800) para recebimento de denúncias de abuso, exploração e violência contra crianças e adolescentes, em caráter ininterrupto (24 horas), para que o referido Conselho possa exercer adequadamente suas atividades de proteção das crianças e adolescentes das regiões em que atuam, inclusive na comunidade da Orla Lagunar; 3- Apresentar um

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Por outra vertente, os que defendem a atuação do judiciário na concretização dos

direitos sociais, especialmente quanto à saúde, alegam que tais direitos são indispensáveis

para a materialização da dignidade da pessoa humana, manifestando que o “mínimo

existencial” de cada um dos direitos, não pode deixar de ser apreciado pelo judiciário.78

Alexy manifesta-se sendo favorável a uma análise que considere os argumentos

favoráveis e os contrários aos direitos sociais, raciocinando que ambos os lados dispõem de

argumentos de peso. A solução consiste em um modelo que leve em consideração tanto as

ideias favoráveis quanto às opostas. Tal modelo é a expressão da ideia-guia formal

apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituição alemã são

posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão

sobre garanti-las ou não, não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...)

De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o

indivíduo definitivamente tem torna-se dissidência de sopesamento entre princípios. De um

lado está, sobretudo, o princípio da liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais

da competência decisória do legislador democraticamente legitimado e o princípio da

separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem respeito sobretudo à liberdade

cronograma, em 30 (trinta) dias, para que seja ampliada a rede municipal de proteção à criança e ao adolescente, com a abertura de ABRIGOS para crianças e adolescentes, de ambos os sexos, em situação de risco, com até 18 ANOS INCOMPLETOS, com capacidade de atendimento das situações emergenciais identificadas no diagnóstico requerido no item 1 e deferido, a funcionar no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias a partir do diagnóstico; 4 – Ofertar creche em horário integral e educação infantil, em quantidade suficiente a atender à população de 0 a 6 anos da referida comunidade, apresentando o Município cronograma de abertura das unidades necessárias e critérios para preenchimento das vagas à medida da abertura, em até 30 (trinta) dias a com prazo estipulado para funcionamento em no máximo 180 (cento e oitenta) dias; 5 – Assegurar as matrículas de todas as crianças e adolescentes em idade escolar de ensino fundamental, que não estejam matriculadas, imediatamente, a partir do levantamento inicial; 6- Apresentar propostas de políticas públicas a serem implementadas pelo Município com abrangência suficiente e ofertando soluções de curto, médio e longo prazo para a referida população, no prazo de 90 (noventa) dias após o resultado do perfil apresentado; 7 – Incluir no projeto de Lei Orçamentária de 2008 as verbas necessárias para implementação das políticas públicas a serem executadas no ano, bem como nos anos seguintes, observando-se as reais necessidades da população infanto-juvenil; 8 – Utilizar a reserva de contingência do Município, caso este não apresente rubrica orçamentária diversa para fazer face às despesas com o cumprimento das medidas liminares ora concedidas; 9 – Implementar ações visando à expedição de registros de nascimento das crianças, adolescentes e pais residentes na região para incluí-los em Programas Sociais e transformá-los em Cidadãos; 10 – Promover campanha permanente de conscientização, por intermédio dos mais diversos meios de comunição , acerca da proibição do trabalho infantil, inclusive o doméstico, da prostituição infantil e males à saúde causados por drogas e, ainda, a importância do papel da sociedade na denúncia destes temas ao Conselho Tutelar da Região, explicitando que o Conselho Tutelar para cumprir o seu papel deve encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e do adolescente, dentre outros, assim considerado o trabalho infantil, nos moldes do art. 136, inciso IV do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90)’”. Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. 78 MENDES. Op. Cit. p. 7

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jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais sociais e a interesses

coletivos.79

Considerando os apontamentos acima elencados quanto à judicialização da saúde e o

voto dissidente do Ministro Teori Zavascki80, se questiona se o orçamento proposto para a

saúde no Brasil, sem considerar questões judiciais, se apresenta de maneira suficiente? Não.

Soma-se a isso as premissas judiciais de conceder direitos que “desorganizam” toda a

sistemática orçamentária proposta, qual solução resta. Talvez um aporte maior por parte do

Estado, representado pelo ente federativo União, que possibilite que as políticas públicas na

seara saúde possam ser executadas de maneira mais abrangente, além de um repensar no que

compete exatamente ao sistema único de saúde financiar.

Alguns juristas descrentes que a saúde e a educação recebam um orçamento

condizente com o mínimo essencial se manifestam de maneira enfática, como Nunes e Scaff:

Ocorre-me, contudo, dar uma sugestão ao final deste trabalho para garantir a efetividade de alguns dos direitos sociais, em especial os gastos em saúde e educação públicas. Não depende do Judiciário, mas do Congresso Nacional. Penso que resolveríamos grande parte dos problemas se fosse adotada a obrigação, certamente no âmbito constitucional, de que, quem fosse eleito devesse necessariamente usar os hospitais e as escolas públicas para si, seus filhos, netos e demais parentes. Seria uma injeção de estímulo na veia do SUS, que passaria a contar com mais recursos e melhor cuidado em sua aplicação-aí sim, para todos.81

Constitucionalmente existe previsão de direitos sociais mínimos, e são vastos. Há

presciência também de regras orçamentárias básicas, que serão vistas no capítulo sequente.

Dentre o regramento constitucional orçamentário e a lei de responsabilidade fiscal é manifesto

que a União, Estados, Municípios e Distrito Federal não podem realizar gastos sem previsão

79 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 511-512. 80 “Destacou o Ministro que “não existe, na Constituição, direito subjetivo individual de acesso universal, incondicional, gratuito e a qualquer custo a todo e qualquer meio de proteção à saúde, médico ou farmacêutico.” O conteúdo do art. 196 da CF é o mesmo do previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992 (art. 12, §§ 1º e 2º). Disse ainda que cabe aos Poderes Legislativo e Executivo estabelecer e promover a execução das políticas públicas assim estabelecidas, bem como suprir sua inexistência ou insuficiência, se for o caso, com a garantia de prestação decorrente do direito a um mínimo existencial, o qual deve ser considerado como “o direito a uma prestação estatal que (a) pode ser desde logo identificada, à luz das normas constitucionais, como necessariamente presente qualquer que seja o conteúdo da política pública a ser estabelecida; e (b) é suscetível de ser desde logo atendida pelo Estado como ação ou serviço de acesso universal e igualitário”. Portanto, encerra o Ministro, à luz dos princípios democrático, da isonomia e da reserva do possível, não há dever do Estado de atender a uma prestação individual se não for viável o seu atendimento em condições de igualdade para todos os demais indivíduos na mesma situação”. Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. p. 112. 81 Antônio José Avelãs Nunes é professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra, sendo que foi diretor da Faculdade de Coimbra e Vice-Reitor, dentre vários outros títulos como Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Paraná e de Alagoas. Fernando Facury Scaff é Doutor em Direito pela USP e Pós-Doutor pela Universidade de Pisa-Itália. Conforme: Nunes; Scaff. Op. Cit. p. 43-44. p. 135.

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orçamentária que os suporte, ato este reprovável e passível de punição conforme legislação

vigente. Considerando tal premissa, como pode o judiciário “ordenar” ao administrativo,

mediante invasão a esfera administrativa, que realize gasto sem previsão orçamentária, mas se

não o fizer, como serão efetivados direitos constitucionais em que o administrativo não prevê

orçamento. A questão é capciosa devendo existir bom senso, tanto pelo administrativo como

pelo judiciário para não fazer com que um ato de injustiça caracterizado pelo não garantir por

parte do administrativo estatal direito constitucional assegurado a um indivíduo, que pede

auxílio ao judiciário, gere um desequilíbrio orçamentário que impossibilite o agir estatal a

coletividade.

VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidenciou-se que os direitos sociais estão intrinsecamente ligados aos direitos

humanos, devendo o Estado prover as mínimas garantias de condições de vida digna aos seus

cidadãos.

Conforme prescrito no artigo 196 da Constituição Federal, o direito à saúde é

garantido a todos, independentemente de raça, religião, sexo ou condição financeira, sendo

dever do Estado a ser garantido mediante políticas públicas adequadas, que devem estar

previstas no plano plurianual, lei de Diretrizes orçamentárias e leis orçamentárias, objetivando

reduzir o risco de doenças e outros agravos, visando não tão somente à medicina curativa

como também preventiva e recuperativa, de maneira igualitária e de acesso universal.

A promoção à saúde em todo território nacional cabe a todos os entes federados,

União, Estados, Distrito Federal e Municípios, não podendo nenhum deles eximir-se de suas

responsabilidades alegando competência alheia. Desta feita, necessitam trabalhar

conjuntamente para que o SUS funcione adequadamente, havendo financiamento por parte de

todos os entes federados.

Devido ao atendimento deficitário realizado pelo governo na área da saúde, muitas

pessoas procuram o judiciário para garantirem seus direitos sociais fundamentais, surgindo

assim o fenômeno da judicialização da saúde. Entende-se que muitos casos devem ser

acolhidos, no entanto não cabe ao judiciário à postura de garantir os direitos que

obrigacionalmente são de responsabilidade do executivo. As pessoas deveriam se socorrer do

judiciário excepcionalmente e não corriqueiramente, como vem acontecendo. Isso demonstra

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que o SUS ainda não atingiu o objetivo Constitucional, a saber, garantir a saúde pública de

maneira efetiva, igualitária, gratuita e universal.

IX. REFERÊNCIAS

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EDUCAÇÃO AMBIENTAL ENQUANTO INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE

ENVIRONMENTAL EDUCATION AS A TOOL FORDEFENSE AND PRESERVATION OF THE ENVIRONMENT

Andreza de Souza Toledo*

RESUMOO Estado brasileiro, tendo a incumbência constitucional de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino, deve assim proceder de forma mais efetiva, incentivando que, através dela, seja possível vislumbrar-se e propagar-se uma nova visão de mundo, mais crítica, emancipatória e conscientizadora. A educação ambiental é um instrumento que pode e deve ser utilizado mediante a instituição de uma efetiva política pública de educação ambiental, que coloque em prática os preceitos legais e constitucionais vigentes e que, além disso, propicie um tratamento diferenciado aos saberes ambientais e que os mobilize de maneira a gerar espaço nas grades curriculares de todos os níveis de ensino para um maior aprofundamento quanto a esse conhecimento. Tal conhecimento deve ser, o quanto antes possível, contínuo, permanente, universal, sistematizado, crítico, transdisciplinar, voltado à modificação de consciência e de atitudes humanas, e à consolidação prática dos saberes ambientais, contribuindo, dessa forma, para a defesa e preservação ambiental. No presente estudo, procura-se avaliar a atual política pública nacional de educação ambiental e sua estrutura legal, buscando identificar possíveis alterações que contribuam para a efetiva realização dos seus propósitos, no que tange ao despertar da consciência ecológica e a modificação prática das condutas humanas, em prol do meio ambiente. Para tanto, os métodos utilizados no presente estudo são o dedutivo e hipotético-dedutivo, em um estudo monográfico, através da revisão bibliográfica tradicional e da pesquisa legislativa. Objetiva-se avaliar e identificar, na conjuntura atual da política pública nacional de educação ambiental, as implicações advindas do seu arcabouço legal, as quais devam sofrer as respectivas adaptações, compatibilizando-as com a efetiva concretização do despertar da consciência ecológica e a promoção de mudanças práticas nas condutas humanas, em benefício do meio ambiente. Com isso, espera-se apresentar sugestões de alterações legais e para as rotinas educacionais relativas à educação ambiental que, coadunadas com a atuação do poder público nesse sentido, promovam o efetivo despertar da consciência ecológica e a respectiva adequação das condutas humanas em prol do meio ambiente.PALAVRAS-CHAVE: Educação ambiental; Defesa e preservação ambiental; Estado; Política Pública

ABSTRACTThe Brazilian state, with the constitutional mandate to promote environmental education in all levels of education, should do so more effectively by encouraging that, through the environmental education, be possible to glimpse up and spreading a new worldview, more critical, emancipatory and able to create awareness. Environmental education is an instrument that can and should be used by developing an effective public policy on environmental

* Mestranda no curso de Especialização Stricto Sensu em Direito Ambiental e Sociedade, pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), na linha de pesquisa Direito Ambiental, Políticas Públicas e Desenvolvimento Socioeconômico, Bolsista PROSUP/CAPES, a partir de 2013. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade da Serra Gaúcha (FSG), Pós-graduanda Lato Sensu em Gestão Pública, pelo Instituto Federal do Paraná (IFPR), Bacharela em Direito pela UCS, com aprovação no Exame da Ordem nº 3/2007. Servidora Pública do Poder Executivo no RS. E-mail: [email protected].

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education, which put into practice the present legal and constitutional precepts and, moreover, provides a different approach to environmental knowledge, mobilizing them in order to make room in the curriculum for all levels of education for further development on that knowledge. Such knowledge should be, as soon as possible, continuous, permanent, universal, systematic, critical, interdisciplinary, focused on modification of conscience and human attitudes, practice and consolidation of environmental knowledge, thus contributing to the protection and preservation of the environment. The present study seeks to assess the current national public policy for environmental education and its legal structure in order to identify possible changes that contribute to the realization of its purpose, regarding the awakening of environmental awareness and practical modification of human behavior, in favor of the environment. The objective is to evaluate and identify the current situation of the national public policy on environmental education, the implications arising from its legal framework, which should suffer their adaptations, making them compatible with the effective implementation of the awakening of environmental awareness and promoting change practices in human behavior to benefit the environment. Thus, it is expected to make suggestions for modifications to the legal and educational routines concerning environmental education which should suffer their adaptations, making them compatible with the effective implementation of the awakening of environmental awareness and promoting change practices in human behavior to benefit the environment. Thus, it is expected to make suggestions for modifications to the legal and educational routines concerning environmental education that matched with the performance of the government in this regard, promote effective awakening of environmental awareness and adequacy of human behavior towards the environment.KEYWORDS: Environmental education; Environmental protection and preservation; State; Public Policy

INTRODUÇÃO

O presente artigo versa sobre a educação ambiental, como uma imprescindível

ferramenta a ser utilizada, tanto em favor do Estado e por este, quanto pelo bem da

coletividade e por esta, no sentido de impulsionar o real conhecimento acerca do meio

ambiente, todas as relações a ele atinentes e que nele influenciam, mediante construções

permanentes, contínuas e sistematizadas, em todos os níveis de ensino, a fim de consolidar a

conscientização popular geral da necessidade premente de serem buscados, logo e na prática,

meios para melhorar a qualidade de vida humana no Planeta, através da melhoria da qualidade

do ambiente em que se vive.

A efetiva educação ambiental pode e deve ser implementada pelo Estado, como uma

política pública, a ser concretizada em comunhão de esforços com a coletividade, mas de

forma diferenciada do que se tem hoje legalmente previsto, e que na prática, nem sequer nessa

modalidade vem acontecendo e, quando eventualmente assim ocorre, evidencia um caráter

fragmentário, pontual, eventual, descomprometido e descompromissado, corretivo, não-

sistematizado e desorganizado.

Nesse sentido, parece que, tratar sobre a preservação e defesa do meio ambiente e da

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vida, seria prática fútil, desnecessária e desimportante, distante do homem, tanto em termos

temporais, denotando a desnecessidade da urgência, quanto em termos locais, como se não

dissesse respeito ao habitat em que se vive, como se o homem estivesse desagregado,

dessituado de si mesmo, dos semelhantes, do tempo, do locus, da vida e do que é essencial

para mantê-la.

Evidencia-se, outrossim, o papel do Estado nesse contexto, dada a

corresponsabilidade, determinada pela Carta Magna, entre o Estado e a coletividade, para

atuarem no sentido de mutuamente contribuírem para a existência de um meio ambiente

ecologicamente equilibrado, tanto para as presentes quanto, como legado, para as futuras

gerações, além da incumbência constitucional do Poder Público, para assegurar esse direito,

de promover a educação ambiental.

Alude-se aos principais eventos legais que instituíram a educação ambiental, tanto no

universo mundial quanto brasileiro, buscando-se a análise dos mais consideráveis

instrumentos legais do País que tratam desse tema, a fim de detectar a conexão entre as atuais

e possíveis intervenções da educação ambiental, seus efeitos e abrangências na realidade atual

do meio ambiente e conscientização humana em relação a este, além de tentar propor um

diferencial na universalização dos saberes ambientais, na forma de política pública estatal,

mais efetiva, conscientizadora, crítica, emancipatória e focada em uma nova visão de mundo.

1 EDUCAÇÃO AMBIENTAL

A educação ambiental é indispensável para a realização de uma sólida política

ambiental, podendo também ser considerada como ponto principal de partida para a

conscientização popular quanto às práticas defensivas e protetivas do meio ambiente.

Tanto isso é verdade que o legislador pátrio, ao referir-se à educação e ao meio

ambiente, enfatiza que ambos são apresentados como “direito de todos” e que, em razão de

suas insignes expressões, não estão adstritos somente à atribuição do Estado, “mas também à

sociedade o dever de promovê-los e incentivá-los.” (LANFREDI, 2002. p. 123).

Sob a ótica do Estado Democrático de Direito, a educação configura-se também um

direito subjetivo do cidadão.

Geralmente, pessoas desprovidas de maiores informações denotam caráter

rudimentar em seus tratos com os semelhantes e com o meio. Logo, em sendo eventualmente

indisponibilizada a educação ambiental, muito provável que as arbitrariedades ao ambiente

resultarão em nefastas consequências à vida humana e a todas as espécies de vida planetárias.

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Dentre os principais eventos e aspectos mundiais, concernentes à educação

ambiental, passe-se à menção de alguns.

Tendo surgido a partir da preocupação humana com a crise ambiental, o uso da

expressão “educação ambiental” iniciou-se em 1970, nos Estados Unidos, primeiro país a

elaborar uma lei versando sobre ela, conceituando-a de maneira a ressaltar a compreensão e

apreciação das “inter-relações entre o homem, sua cultura e seu entorno biofísico.” (DILL,

2008, p. 78).

Ainda em 1972, na Conferência de Estocolmo, restou criado o Pnuma1, destacando-

se, outrossim, a recomendação para a criação do Programa Internacional de Educação

Ambiental (PIEA), que ficou conhecida como “Recomendação 96”, que enfatiza a

importância da “educação ambiental como uma base de estratégias para atacar a crise do meio

ambiente”(ONU, 1972).

Além dessa recomendação, nesse evento houve a elaboração da Declaração de

Estocolmo sobre Meio Ambiente, proclamando sete diretrizes e vinte e seis princípios

importantes para a aplicabilidade dessa política ambiental. Dessas diretrizes, extraem-se

trechos das de número 06 e 07, respectiva e especialmente por estarem diretamente

relacionadas à necessidade de política pública de educação ambiental, nesses termos:

6 - […] Pela ignorância ou indiferença podemos causar danos maciços e irreversíveis ao ambiente terrestre de que dependem nossa vida e nosso bem-estar. Com mais conhecimento e ponderação nas ações, poderemos conseguir para nós e para a posteridade uma vida melhor em ambiente mais adequado às necessidades e esperanças do homem. São amplas as perspectivas para a melhoria da qualidade ambiental e das condições de vida. O que precisamos é de entusiasmo, acompanhado de calma mental, e de trabalho intenso, mas ordenado. Para chegar à liberdade no mundo da Natureza, o homem deve usar seu conhecimento para, com ela colaborando, criar um mundo melhor. […]

7 - A consecução deste objetivo ambiental requererá a aceitação de responsabilidade por parte de cidadãos e comunidades, de empresas e instituições, em equitativa partilha de esforços comuns. Indivíduos e organizações, somando seus valores e seus atos, darão forma ao ambiente do mundo futuro. Aos governos locais e nacionais caberá o ônus maior pelas políticas e ações ambientais da mais ampla envergadura dentro de suas respectivas jurisdições. Também a cooperação internacional se torna necessária para obter os recursos que ajudarão os países em desenvolvimento no desempenho de suas atribuições. (ARAÚJO, 2010, p. 14).

A educação ambiental foi, outrossim, mencionada através do 19.º enunciado da

Declaração de Estocolmo (ONU – 1972). Reza esse enunciado:

É indispensável um esforço para a educação em questões ambientais, dirigida tanto à gerações jovens como aos adultos e que preste a devida atenção ao setor da

1 Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.

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população menos privilegiado, para fundamentar as bases de uma opinião pública bem informada, e de uma conduta dos indivíduos, das empresas e das coletividades inspirada no sentido de sua responsabilidade sobre a proteção e melhoramento do meio ambiente em toda sua dimensão humana. É igualmente essencial que os meios de comunicação de massas evitem contribuir para a deterioração do meio ambiente humano e, ao contrário, difundam informação de caráter educativo sobre a necessidade de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que o homem possa desenvolver-se em todos os aspectos. (FIGUEIREDO, 2012, p. 181).

Dill (2008, p. 78) refere que, posteriormente, em 1977, em Tbilisi (Geórgia – antiga

União Soviética), ocorreu a I Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental, a

qual foi organizada pela Unesco em colaboração com o Pnuma, que denotou um marco

significativo para que a educação ambiental se constituísse uma proposta pedagógica de fato,

tendo por fim a transformação do homem em todas as formas de trato com a natureza, a fim

de que ele seja o seu principal defensor. Foi após isso que se passou a ter a orientação da

articulação das diversas disciplinas e conhecimentos educativos para um enfoque integrado do

meio ambiente, o que veio a reiterar os termos da Conferência de Estocolmo.

Mas foi nas décadas de 80 e 90 (século XX) que se verificou um maior crescimento

da consciência ecológica, sendo isso corroborado a partir da conceituação de educação

ambiental pela Unesco, no Congresso Internacional sobre Educação e Formação Ambiental

(ocorrido em Moscou, em 1987), conceito esse bem próximo do que se vê exarado na Lei

Federal Brasileira nº 9.795/1999, de Política Nacional de Educação Ambiental, com o

diferencial de, esta, referir ser a educação ambiental processo essencial e permanente (art. 2º

da Lei nº 9.795/99).

Após, em 1992, decorrente da Rio-92 e do Tratado de Educação Ambiental para

Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, foi acrescido ao conceito de educação

ambiental o cunho interdisciplinar, permanente e holístico da aprendizagem.

Logo depois, em 1997, a Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e

Sociedade: Educação e Conscientização Pública para a Sustentabilidade, ocorrida na Grécia,

trouxe novas nuances para o referido conceito, propondo através da educação ambiental

mudanças em comportamentos e estilos de vida humana, na disseminação de conhecimentos e

conscientização da coletividade, rumo à sustentabilidade.

Isso evidencia que o conceito de educação ambiental foi sendo modificado no

decorrer dos tempos, acompanhando a evolução do conceito de meio ambiente e ficando

atrelado ao modo como este é percebido.

Em termos de Estado brasileiro, a educação ambiental já havia sido prevista no

Antigo Código Florestal Nacional (Lei nº 4.771/1965 – artigo 42), in verbis:

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Art. 42. Dois anos depois da promulgação desta Lei, nenhuma autoridade poderá permitir a adoção de livros escolares de leitura que não contenham textos de educação florestal, previamente aprovados pelo Conselho Federal de Educação, ouvido o órgão florestal competente.

§ 1° As estações de rádio e televisão incluirão, obrigatoriamente, em suas programações, textos e dispositivos de interesse florestal, aprovados pelo órgão competente no limite mínimo de cinco (5) minutos semanais, distribuídos ou não em diferentes dias.

§ 2° Nos mapas e cartas oficiais serão obrigatoriamente assinalados os Parques e Florestas Públicas.

§ 3º A União e os Estados promoverão a criação e o desenvolvimento de escolas para o ensino florestal, em seus diferentes níveis.

Aludida na Lei nº 6.938/1981, com a instituição da Política Nacional do Meio

Ambiente (art. 2º)2, a qual foi após recepcionada pela Constituição Federal de 1988, desta

partindo a Lei nº 9.795/1999 (Política Nacional de Educação Ambiental – arts. 1º e 2º)3,

regulamentada pelo Decreto Federal nº 4.281/2002, a educação ambiental foi abarcada em leis

brasileiras, inclusive o fato de ela constar também na Carta Magna da República já faz desta

uma Constituição de vanguarda. Nesse entremeio, cabe lembrar que a primeira norma

brasileira a recomendar a inclusão da educação ambiental nos currículos escolares do Ensino

Fundamental e Médio foi o Parecer nº 226/1987, do Conselho Federal de Educação.

Tal como ensina Morin (2011, p. 36) “Em consequência, a educação deve promover

a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e

dentro da concepção global” (grifo do autor).

Conforme Khalil Gibran (2012, p. 73) menciona:

E então, disse um professor: Fala-nos do Ensinar. E ele disse: Ninguém pode vos revelar nada, a não ser o que jaz meio adormecido no âmago do vosso conhecimento. […] Se ele for realmente sábio, não vos convida a entrar na casa de sua sabedoria, mas vos guia até o limiar da vossa própria mente.

Acerca do saber ambiental, Leff (2001, p. 239) cita as fracassadas pretensões

2 "Art. 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:[...]X - educação ambiental a todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente."

3 "Art. 1º Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.Art. 2º A educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal."

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interdisciplinares, atribuindo a isso resistências teóricas e pedagógicas, as quais teriam

ocasionado significativa dificuldade quanto à transformação dos paradigmas atuais do

conhecimento e os métodos educacionais, essenciais, no entender do autor, para a

disseminação desses saberes. Além disso, expõe o referido autor:

É que a interdisciplinaridade ambiental não é o somatório nem a articulação de disciplinas; mas também não ocorre à margem delas, como seria colocar em jogo o pensamento complexo fora dos paradigmas estabelecidos pelas ciências. A educação ambiental requer que se avance na construção de novos objetos interdisciplinares de estudo através do questionamento dos paradigmas dominantes, da formação dos professores e da incorporação do saber ambiental emergente em novos programas curriculares. (LEFF, 2001, p. 240).

Segundo Capra (1996, p. 230), “Precisamos revitalizar nossas comunidades –

inclusive nossas comunidades educativas, comerciais e políticas – de modo que os princípios

da ecologia se manifestem nelas como princípios de educação, de administração e de

política."

O homem, principalmente após a Revolução Industrial, ancorado na concepção

antropocentrista, passou a explorar a natureza de forma bastante acelerada e ilimitada, ao

passo que a natureza dispõe de bens que são limitados (e, embora muitos sejam renováveis, tal

renovação ocorre ao tempo natural de seus respectivos processos, cuja velocidade não

consegue acompanhar a do desenfreado uso de tais bens), o que evidencia que o período

moderno também esteve marcado por uma educação alienante, o que não se diferencia muito

dos tempos contemporâneos.

Firma-se isso na medida em que se analisa o pensamento de grande parte dos

doutrinadores brasileiros, da área da educação ambiental, que acreditam ser um exagero a

existência de uma disciplina específica para a educação ambiental, sob o fundamento de dever

esta ser tratada de forma articulada e integrada aos conteúdos obrigatórios, com base na

interdisciplinaridade.

No entanto, nada impede a existência de uma disciplina específica que trate da

matéria, que seja (e não há como não ser) articulada e integrada com os outros conteúdos,

utilizando-se, da mesma maneira, a interdisciplinaridade, que é essencial.

Assim entendida, essa ideia denota que a preocupação com a preservação da vida

também deve ser assimilada como um exagero. Mas infelizmente, foi nessa linha de

raciocínio que pendeu o legislador pátrio.

Um outro aspecto que deve ser sublinhado quanto à educação ambiental é a

inobservância de um currículo programático fundado no processo permanente ao qual aquela

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deve estar vinculada, segundo a conceituação dada em 1987, em Moscou.

Parece que uma mera articulação de conteúdos, sem fixação e programação de um

início, de uma continuidade e de quando e como isso será feito, força uma ponderação calcada

em um aspecto vago, impreciso, não-planejado, desprovido de seriedade, desvinculado e

descompromissado com as significativas proporções e implicações que o tema enseja.

A crise que assola a relação do homem com a natureza é incontestável e, no entanto,

os benefícios advindos dos avanços científicos e tecnológicos “não foram e não estão sendo

utilizados em prol da vida, mas sim do capital” (DILL, 2008, p. 30).

Isso porque, os valores humanos estão norteados pela ideologia moderna do sistema

de produção capitalista que, de certa forma, aliena4 o homem, na busca incessante e

desenfreada pelo acúmulo de riquezas, desrespeitando os seus próprios limites e os da

natureza.

E é nesse contexto que a educação ambiental crítica faz-se imprescindível, inclusive

para que a modificação desses valores prospere socialmente e ocasione, outrossim, a mudança

da conduta humana para com o ambiente.

Corrobora Capra (2005, p. 167), ao dizer que:

Além de sua instabilidade econômica, a forma atual do capitalismo global é insustentável dos pontos de vista ecológico e social, e por isso não é viável a longo prazo. O ressentimento contra a globalização econômica está crescendo rapidamente em todas as partes do mundo.

2 OBJETIVOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DA

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

A Constituição Federal de 1988, no artigo 225, evidenciou a preocupação do Estado

Brasileiro Democrático e Socioambiental de Direito com a defesa, conservação e preservação

do meio ambiente, tendo em vista as constantes e alarmantes degradações ambientais

produzidas ao longo da existência humana no Planeta.

Quando se fala em defesa, parte-se da ideia de que ela ocorra através de práticas

diárias nesse sentido; em conservação, pensa-se no que diz respeito à utilização racional dos

recursos naturais; e em preservação, atém-se à ideia da manutenção da integridade daqueles

recursos essencialmente protegidos.

O artigo 6º do mesmo diploma legal, por sua vez, elenca a educação como um dos

4 Para Bello e Keller (IN LUNELLI e MARIN, 2012, p. 108) - embasados na concepção marxiana -, a alienação, que contribui para a permanência da produção social da pobreza, é também o fruto do afastamento dos produtores com relação ao resultado dos seus trabalhos. (N.A.).

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direitos sociais, sendo também considerada um direito fundamental da pessoa humana, em um

primeiro momento, por estar inserida no direito à vida no seu aspecto integral e, num

segundo, por ser o homem um ser social.

Nesse sentido, leciona Sarlet (1998, p. 41) que “o fundamento dos direitos sociais

encontra-se na constatação de que o homem não poderá viver uma vida plena, digna,

enriquecedora, se não lhe forem satisfeitas as necessidades básicas”.

Doyal e Gough, mencionados por Potyara A. P. Pereira (2011, p. 75-76), identificam

como um dos satisfadores universais e específicos para a efetivação das necessidades

humanas básicas (saúde física e autonomia dos seres humanos) a educação apropriada.

O direito à educação formal integra o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 e,

tal como vem caracterizada neste dispositivo legal, ela “transcende a uma mera instrução,

devendo desenvolver as potencialidades morais e intelectuais do homem, preparando-o para

ser um cidadão e qualificando-o para o trabalho.” (DILL, 2008, p. 75).

Apresentada pelo legislador pátrio como um dos elementos basilares para se

conseguir a conscientização dos povos e o seu despertar para a necessidade de, mais que

nunca, passarem a ter maiores cuidados com o ambiente em que vivem, sob pena de

comprometerem as suas próprias existências, resta elencada a educação ambiental, a ser

proporcionada em todos os níveis de ensino.

Mais que isso, a educação ambiental é um dos instrumentos para a garantia da

efetividade “do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. (LANFREDI, 2002, p.

123).

Sendo dever do Estado e da coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente

ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações, entende-se que se pode

chegar a esse patamar também através da educação ambiental prestada de forma extensiva e

crítica, em todos os níveis de ensino, tanto para o público quanto para o privado, com a

mesma qualidade de prestação.

Considerando a qualidade do ensino disponibilizado atualmente no País, há que se

evidenciar a necessidade de uma melhor preparação dos docentes de todos as escalas

curriculares, para poderem trabalhar, de forma efetiva e a contento, com a matéria ambiental,

como agentes ativos e conscientizadores, promovendo a mobilização popular a partir da

interação do conhecimento com as práticas diárias.

Porém, a educação ambiental precisa ultrapassar muitas barreiras e entraves, para

efetivamente se disseminar pelas estruturas curriculares e emergir para o verdadeiro fim que a

norteia, que é a conscientização e as consequências como reflexos incorporados no dia a dia

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de cada cidadão.

3 EXPRESSÃO DA LEI Nº 9.795/1999

A Lei nº 9.795, que institui a Política Nacional de Educação Ambiental, denota as

diretrizes nacionais que deverão servir de base para as Políticas Estaduais dos Estados

Federados.

Em que pese ser o meio ambiente equilibrado essencial para a sadia qualidade de

vida, parece que, aos elementos que podem contribuir com isso ocorra, não são dados a

devida atenção e investimento.

Sendo a educação ambiental um desses elementos, considerada como um

"componente essencial e permanente da educação nacional"(Art. 2º da Lei nº 9.795/99), não

parece estar compatível à sua importância a prestação do saber ambiental de forma meramente

articulada, em todos os âmbitos e modalidades do ensino.

Ainda mais quando expressamente consta que a educação ambiental não deve ser

ministrada "como disciplina específica no currículo de ensino." (Art. 10 da Lei nº 9.795/99).

Essa menção parece anular toda a primordialidade e importância postas em torno

desse elemento, pois em não havendo uma disciplina específica sob esse enfoque, as

discussões esparsas e descomprometidas com o efetivo saber e conscientização sobre o tema,

vão perdendo-se no tempo.

Disposições nessa linha de raciocínio dão mostras de que o legislador pátrio parece

entender que a maioria da população já possui todos os conhecimentos e a conscientização

necessários para ter ações todas em conformidade com as prioridades defensivas e protetivas

da vida.

Mas não é essa a realidade: todos estão carentes dessa informação e conhecimento,

sendo essencial a conscientização da população em geral, também tão absorta do automatismo

eloquente imposto pela sociedade de consumo e das ilusões efêmeras de aquisição da

felicidade.

Comete, pois, um grande engano o homem da modernidade, ao compreender a

felicidade e qualidade de vida estritamente através da acumulação de riquezas e do grande

poder de consumo, pois, ao final, percebe-se sem atingir a felicidade almejada, seguindo uma

trajetória de vida em um ambiente, ambos desprovidos de qualidade.

Ademais, é consabido que, em geral, não são repassadas aos discentes todas as

matérias previstas nas estruturas curriculares, normalmente por não haver disponibilidade de

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tempo para isso, quanto mais para destinar algum tempo extra para a inclusão do saber

ambiental e, ainda que assim ocorresse, com certeza esse conhecimento seria mitigado e

muito rapidamente trabalhado, quando a sua importância remonta à essencialidade da vida.

Por outro lado, a carência de tempo a ser destinado impede o estudo mais

aprofundado dos conteúdos programáticos curriculares já previstos, que dirá poder então

englobar mais a matéria ambiental que, ou não será nem mesmo mencionada ou se isso vier a

ocorrer, será muito superficialmente tratada.

Sob o viés da finitude da grande maioria dos bens ambientais e da atual escassez de

bens essenciais à manutenção da vida, como é o caso da água, por exemplo, e da crescente

rapidez dos efeitos degradantes, quanto ao meio ambiente urgem preocupações e ações mais

específicas, contundes, eficazes e de maior repercussão nacional, de forma a destinar o

verdadeiro tratamento necessário e imprescindível ao ambiente.

Quando da elaboração da Lei nº 9.795, em 1999, não estavam sendo ainda tão

veementemente sofridos os efeitos nocivos das modificações ambientais e da escassez, não

tanto quanto na atualidade, sendo que, no momento, já estão disponíveis inclusive as

projeções do crescimento acelerado no que tange aos prováveis danos ambientais.

Sendo assim, em virtude da significativa relevância do tema e da premente

necessidade de mudança de consciência e atitudes humanas, entende-se não mais comportar

tratamentos e medidas extremamente sutis e desagregadas na noção acelerada e rápida dos

acontecimentos presentes e, dessa forma, a incompatibilidade de uma educação que não leve

em conta a profundidade do tema e que não abra espaço largo para o seu aprendizado e

debate.

Outrossim, a referida lei faculta a criação de disciplina específica de educação

ambiental nos cursos de pós-graduação, extensão e nas áreas voltadas ao aspecto

metodológico.

Mediante essa faculdade, descarta-se a possibilidade do ensino continuado dos

saberes ambientais que, pelo que se depreende da sua distinta missão, parecem estar relegados

a meras informações descontínuas, que acabam por desarticular e não sistematizar

continuamente o entendimento e o âmbito integralizado e universal que aqueles deveriam

manter.

Resta apenas mencionado nessa lei que deve ser incorporado conteúdo concernente à

ética ambiental das atividades profissionais quando se tratar de cursos de formação e

especialização técnico-profissional, em todos os níveis. Entende-se que, nessa senda, a

simples incorporação de conteúdo acerca da ética ambiental não abarca toda a complexidade

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das matérias inerentes a esse instituto.

O artigo 11 dessa lei retrata a obrigatoriedade de constar, em todos os níveis e em

todas as disciplinas, a dimensão ambiental dos currículos de formação de docentes, sendo que

os que se encontram em atividade deverão receber uma formação complementar, em suas

áreas de atuação, para atingirem os propósitos da política nacional de educação ambiental.

Porém, há que se levar em conta que muitos professores que se encontram hoje ainda

ministrando aulas nunca tiveram sequer noções básicas acerca do meio ambiente, sem contar

que efetivamente essas formações complementares, na maioria das vezes, não saem do papel,

o que já traz inúmeros efeitos nocivos à propagação desses saberes.

Em termos da promoção da educação ambiental não-formal, tanto o Estado, a

sociedade, os meios de comunicação de massa, quanto as escolas, as universidades e as

organizações não-governamentais estão deixando muito a desejar quanto ao desenvolvimento

de "ações e práticas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais"5,

o que é visivelmente percebido pela quase que ausência dessas medidas.

No que tange à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a única menção que

contém sobre educação ambiental está prevista no § 7º do artigo 26 – incluído pela Lei

12.608, de 10 de abril de 2012, referindo que "Os currículos do ensino fundamental e médio

devem incluir os princípios da proteção e defesa civil e a educação ambiental de forma

integrada aos conteúdos obrigatórios."

Sendo a LDB uma lei federal, incumbe a ela as disposições gerais em relação à

educação, e até mesmo quanto à educação ambiental. Já a Lei nº 9.795/1999, referente à

Política Nacional de Educação Ambiental, esta, em relação à LDB, trata-se de uma lei

especial, que discorre especificamente sobre a educação ambiental.

Na prática, entretanto, a educação ambiental, em geral, vem estando ausente nas

abordagens curriculares e no quotidiano das salas de aula e, se existente, é efetuada de

maneira insuficiente ou precária, não sendo prestada de forma permanente e continuada, mas

sim de forma eventual, esparsa, desarticulada e desagregada do ensino de um conjunto de

valores socioambientais condizentes com os fundamentos da educação ambiental.

4 EXPRESSÃO DA LEI Nº 12.608/2012 E REFLEXOS NA LDB – LEI Nº 9.394/1996

Uma alteração à Lei de Diretrizes e Bases da Educação passou a vigorar

recentemente, em 2012, imiscuída entre os demais ditames da Lei nº 12.608/2012, que institui

5 Artigo 13 da Lei nº 9.795/99.

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a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC.

Inexistia anterior previsão na LDB acerca de educação ambiental, desde 1996,

quando foi criada; somente em 2012 é que a LDB recebeu a inclusão dessa matéria, muito

embora a Lei nº 9.795, de 1999, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental, já

estivesse em vigor desde o ano de 1999. São alarmantes as expressões da morosidade e

desinteresse nacional em torno dessas temáticas: educação e educação ambiental.

Com essa alteração da LDB, passa a ser obrigatória a inclusão, nos currículos do

ensino fundamental e médio, da educação ambiental de "forma integrada" aos conteúdos

obrigatórios, semelhante ao que já previa nacionalmente a Lei nº 9.795, desde 1999,

mencionando a educação ambiental de "forma articulada".

Consultando dicionários para diferenciar exatamente essas duas expressões, obtém-se

os seguintes conceitos:

ar.ti.cu.lar [...] 1 unir(-se) pelas articulações 2 tornar(-se) ligado; unir(-se); juntar(-se) [...] 3 dizer, pronunciar [...]

in.te.grar [...] 1 incluir(-se) em (conjunto, grupo), formando um todo coerente; incorporar(-se) [...] 2 [...] sentir-se parte de (grupo, coletividade); adaptar(-se) [...] 3 unir-se, formando um todo harmonioso; completar-se. (grifos do autor) (HOUAISS e VILLAR, 2004, p. 66 e 422).

ar.ti.cu.lar [...] 3. Juntar, unir, ligar uma coisa a outra. 4. Pronunciar (palavras). P. 5. Juntar-se; organizar-se.

Integrar – [...] 1 Tornar inteiro ou integral; completar; integralizar; P. 2. Fazer parte de um todo; associar-se; incorporar-se. (grifos do autor) (LUFT, [198-], p. 48 e 319).

Segundo a determinação estatal, a matéria ambiental deve estar presente de forma

integrada, ou seja, associada e incorporada aos conteúdos obrigatórios.

Entretanto, de acordo com esse enredo, ela, por si só, parece não representar um

conteúdo obrigatório, como disciplina autônoma para, nessa condição, interligar-se às demais,

incutindo um toque de secundariedade, dispensabilidade desse saber, incompatível com a

primordialidade do aspecto condizente à preservação do ambiente e da vida.

Já de forma articulada, entende-se que a educação ambiental deve ser trabalhada

vinculada aos demais conteúdos, em todos os níveis e modalidades de ensino.

Em síntese, ambos os vocábulos, embora muito pouco se diferenciem em seus

conceitos e sinônimos, na verdade deixam a mesma mensagem essencial: que os saberes

ambientais venham a ser repassados de modo associado e incorporado aos conteúdos

obrigatórios.

E esse tipo de tratamento ao tema parece deixar muito a desejar, ainda mais quando

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há vedação legal para a existência de uma disciplina autônoma e específica. Logo, o ideal

seria a supressão dessa vedação legal, para ser consolidada a verdadeira importância desse

tema.

Entretanto, essas articulações e integrações dos saberes ambientais com os demais

conteúdos obrigatórios poderiam ocorrer igualmente, e de maneira ainda mais aprofundada se,

através desse modelo educacional proposto, houvesse o espaço para uma disciplina específica,

em todos os níveis e modalidades de ensino, jamais prejudicando a inter, a multi e a

transdisciplinaridade.

Quanto a essas últimas (inter, multi e transdisciplinaridade), depreende-se que, até

então, elas não restaram bem compreendidas pelos atuais educadores, que têm a tendência de

relacionar a educação ambiental “a práticas específicas (como coleta seletiva do lixo ou a

organização de hortas), ou considerar que qualquer observação do cotidiano ou regra de

civilidade” (VASCONCELLOS, 2011, p. 269) consiste no desenvolvimento da educação

ambiental sob o prisma da inter, multi e transdisciplinaridade.

É lógico que é inviável falar em educação ambiental sem pensar em vinculá-la aos

outros saberes, mas da forma como está sendo proposta, dá mostras de pouco esmero em

aprofundar os conhecimentos a ela atinentes e trabalhá-la com as crianças, jovens e adultos,

desde os primórdios da constituição/formação dos seus saberes, hábitos e personalidades.

Conforme já observado anteriormente, tampouco os conteúdos obrigatórios, às vezes,

são vistos em sala de aula, por carência de tempo, ou se vistos, são marcados por uma

superficialidade, face a impossibilidade do aprofundamento pelos motivos já expostos. Agora,

imagine-se o que acontece com a educação ambiental nas rotinas das salas de aula do País

todo.

Ademais, insta salientar que, tanto sendo observada a forma integrada, quanto a

forma articulada, em ambos os casos não resta preestabelecido se todos os professores

trabalharão a temática ambiental, se apenas os das áreas das Ciências Naturais, ou Humanas,

ou Sociais.

Diante de todas essas inquietações, questiona-se:

Em não havendo essa definição, e na maioria das vezes isso pode ocorrer, não por

má-fé dos docentes, mas por outros motivos por hora irrelevantes, como/quando fica a

prestação da educação ambiental e o atingimento dos seus objetivos?

A quem reclamar isso, se não há responsável ou responsáveis específicos, destinados

ao cumprimento desse dever, em um universo de vários docentes de cada nível de ensino, o

que acaba remetendo a uma situação de indeterminação e indefinição originárias?

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E após a consolidação, nos dias atuais, dos respectivos estudos dos alunos, tanto nos

níveis fundamental quanto no ensino médio, sem terem sido alvo dos saberes ambientais,

especificamente aqueles que não terão a oportunidade de chegarem ao ensino superior, como

ficarão as suas situações? O que fazer diante disso?

Como esperar de uma educação ambiental prestada de forma integrada ou articulada,

que ela possa promover “processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem

valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a

conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de

vida e sua sustentabilidade”, se a ela tampouco foi aberto um espaço sagrado e reservado para

o conhecimento e o aprofundamento destes acerca das temáticas ambientais?

De outra banda, o incentivo à pesquisa parece estar mais afeto e enfatizado ao campo

da educação superior, porém constitui um dever do Estado para com a educação escolar

pública a garantia de “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação

artística, segundo a capacidade de cada um” (Art. 4º, V, da LDB).

No entanto, se a pesquisa sobre a matéria ambiental não for fomentada e incentivada

desde a educação básica, a partir de sólidos conhecimentos proporcionados aos estudantes,

dificilmente só na educação superior eles desenvolverão essas habilidades e pô-las em prática

em tempo e a contento.

Então, paira-se sob um ponto deveras crucial: o Estado tem o dever legal de

promover a educação ambiental e a conscientização da coletividade para a preservação do

ambiente, mas ele demonstra o efetivo interesse em promovê-las, na prática? Isso está ou tem

acontecido na atualidade, em todas as realidades do País?

5 O PAPEL DO ESTADO BRASILEIRO QUANTO À EDUCAÇÃO AMBIENTAL,

INSTRUMENTO DE DEFESA E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL

Tanto o Estado como a coletividade restaram designados constitucionalmente (artigo

225, caput, da CF/88) para o desempenho do dever de defesa e preservação do meio

ambiente, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

Esse mesmo dispositivo constitucional, em seu § 1º, inciso VI, infere ao Poder

Público, a fim de assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, o dever de promover a educação ambiental e a conscientização pública para a

preservação do meio ambiente.

Embora o tema acerca do ambiente não figure no artigo 5º da CF/88, o direito ao

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meio ambiente é reconhecido doutrinariamente6 como um direito fundamental da pessoa

humana (artigo 225, caput, da CF/88), atrelado ao respeito à dignidade da pessoa humana.

Sérgio Luís Mendonça Alves (apud TEIXEIRA, 2006, p. 111), manifesta-se, dizendo que “A

Constituição do Brasil, […] instituiu como instrumento para proteger o meio ambiente

ecologicamente equilibrado a educação ambiental como princípio fundamental que decorre

dos direitos e deveres fundamentais.”

Além disso, o Estado Socioambiental de Direito definiu a educação ambiental

também como um direito fundamental social (artigos 6º e 205 da CF/88).

Entendendo-se que a efetividade social do Direito Ambiental consolida-se com a

conscientização comunitária para a realização de uma cidadania participativa e solidária com

as presentes e futuras gerações, sendo essa participação comunitária atuante “em conjunto

com o Poder Público na proteção dos bens ambientais” (LEITE, 2002, p. 28-29), a educação

ambiental não pode ser deixada a segundo ou terceiro plano, quanto à preocupação e

efetivação de medidas para que ela realmente ocorra, por esse mesmo Estado.

Antes mesmo da Constituição da República Federativa do Brasil prever a educação

ambiental como dever do Estado, a Lei nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente),

recepcionada pela Carta Magna brasileira, já previa esse dever estatal, em consonância com o

Código Florestal Brasileiro vigente naquela época, consoante já exposto.

A partir da Carta Constitucional de 1988, o Estado brasileiro instituiu a Política

Nacional de Educação Ambiental, através da Lei nº 9.795/1999, em vigência até o presente

momento, e regulamentada pelo Decreto nº 4.281/2002.

Todos esses diplomas legais, em suma, preconizam o dever do Estado na promoção

da educação ambiental. Isso pode ocorrer, de forma efetiva, através da implementação de

políticas públicas estatais sérias e comprometidas com a obrigação inerente à proteção e

manutenção da vida humana na Terra.

Por um lado, é bem verdade que o extensivo rol de corresponsáveis pelo dever de

educar ambientalmente, previsto no artigo 3º da Lei nº 9.795/1999, apresenta opções várias de

coadjuvantes para essa empreitada, porém, por outro, dos vários corresponsáveis, muitas

vezes pode acontecer que nenhum deles esteja efetivamente empenhado e desempenhando a

referida prestação esperada.

Foi precisamente nessa lei que restou delineado o conceito de educação ambiental,

que além de despertar a consciência, objetiva a modificação de atitudes humanas, em prol da

melhoria da qualidade de vida planetária.

6 Pode-se citar, dentre outros MILARÉ, Édis. 2011, p. 1065; TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. 2006, p. 82. (N.A.).

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Sendo o Direito Ambiental um ramo do Direito Público, Figueiredo (2012, p. 129)

sustenta que, logo, há “a obrigatoriedade da intervenção estatal na defesa do meio ambiente”.

Para o autor supra, também é natural a aplicação e a exigência dos princípios

constitucionais que elucidam acerca da Administração Pública em todo e qualquer tipo de

políticas públicas.

Devendo o Estado primar pela realização dos princípios constitucionais referentes à

Administração Pública, é válido salientar o cumprimento do princípio da eficiência, o qual

refere-se “não só à Administração Pública (setorial)”, como também, no entender de Gabardo

(2002, p. 89-90), embasado no pensamento de Canotilho:

[...]ao princípio da eficiência do Estado como vetor geral (de caráter ético) do sistema constitucional. Dessa forma, tão importante quanto à relação com os demais princípios da Administração Pública, que não é só externa, mas intrínseca, é a submissão do princípio da eficiência aos princípios estruturantes (ou fundamentais) do sistema constitucional, entre os quais se destaca o Princípio do Estado Social e Democrático de Direito.

Incumbe, então, ao Estado, principalmente deixar de omitir-se declaradamente no

que tange ao seu verdadeiro papel constitucional de atuação ativa quanto à implementação de

efetiva educação ambiental prestada em todos os níveis de ensino, atingindo, dessa forma e

por consequência, os deveres de defesa e proteção ambientais.

Por tratar-se do tema ambiental, cuja preservação do meio denota a consequente

preservação da vida humana, o assunto já tem importância suficiente para que o Estado se

empenhe muito mais fervorosamente e o mais rápido possível para conscientizar e ensinar a

coletividade a incluir em suas rotinas as práticas defensivas do meio ambiente.

Considerando que educação ambiental é o princípio, o caminho principal que pode

levar a coletividade a esse estágio, mas também não se olvidando que essa mudança de

consciência e atitudes ambientais não acontecem imediatamente, com todos os indivíduos,

levando em conta os diferentes níveis de assimilação e o despertar da consciência de cada um,

primordial seria que a efetiva educação ambiental já estivesse ocorrendo não só em termos de

Brasil, mas sim mundialmente, como preocupação estatal primeira.

6 POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL

A área de estudos envolvendo políticas públicas configura uma múltipla interface

entre as Ciências Sociais, Política e Economia.

Sandro Trescastro Bergue (2011, p. 508), citando Heidemann, assim dimensiona

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política pública “Entende-se por política pública (public policy) o conjunto coerente de

decisões, de opções e de ações que a administração pública leva a efeito, orientada para uma

coletividade e balizada pelo interesse público."

Refere, outrossim, que ela "distingue-se de políticas de Estado por serem estas

especificadas na Constituição da República, não restando aos atores políticos a possibilidade

de disputa de espaços ou opção nesse campo, senão seu cumprimento".

Faz ainda outra diferenciação entre a primeira ("produto da, e orientada para, a

comunidade política mais ampla") e políticas governamentais, afirmando serem estas

"empreendidas por atores governamentais, emanadas por órgãos e entes dos Poderes de

Estado, constituindo "o subgrupo mais importante das políticas públicas".

Em consonância com o pensamento de Freitas (2011, p. 288-290), insta salientar a

necessidade de o Estado "aplicar a Constituição em tempo útil e de ofício", uma vez que ele

"existe para prevenir e não para chegar tarde", evitando, assim, "(com prevenção e precaução)

os danos oriundos de toda e qualquer atuação desproporcional por excesso ou inoperância, no

atendimento, constitucionalmente imperativo, dos direitos fundamentais de todas as

dimensões."

E o que se espera da educação ambiental é justamente aproveitar e aprimorar os seus

espectros de prevenção e precaução de maiores danos ao ambiente, sendo isso promovido

essencialmente por iniciativa estatal, que deve atuar no modo antecipativo e não corretivo e

pontual.

Souza (2007, p. 5) caracteriza política pública como:

[...] o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar o 'governo em ação' e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A formulação de políticas públicas constitui-se no estágio em que governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações, que produzirão resultados ou mudanças no mundo real.

Assim entendida, a educação ambiental, promovida na forma de uma política pública

ativa e efetiva, estará direcionada à realização dos princípios do Direito Ambiental da

prevenção e da precaução.

Pautado na prevenção e precaução, através da educação ambiental, o Estado

brasileiro pode em muito contribuir para a preservação e conservação do meio ambiente.

Lógico que, inicialmente e sozinho, o Brasil não conseguirá uma transformação total

e universal, porém, estará dando um bom exemplo a ser seguido pelas demais nações.

Estará, outrossim, evidenciando o seu pioneirismo em práticas tais, contribuindo para

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a lenta mas permanente modificação da consciência e de atitudes populares em termos

ambientais e, num segundo momento, quiçá estará conseguindo a mobilização e efetiva

sensibilização de todas as nações, para que realmente sejam colocadas em prática os

magníficos escritos e legislações que tratam do tema ambiental, sua proteção e preservação.

A partir do contexto explanado por Souza, os governos, através da utilização desse

instrumento, que é a política pública, podem produzir resultados e promover mudanças no

mundo real.

Dessa forma, entende-se que os governos podem e devem direcionar os seus olhares

para a efetiva modificação no modelo institucional/legal existente atualmente no que tange à

educação e, mais especificamente, à educação ambiental, de modo a promoverem mudanças

positivas no mundo real.

E uma das maneiras de isso vir a ocorrer é mediante o investimento em educação, em

educação ambiental, processo lento, gradativo, e que deve ser constante e permanente, mas

que, pelo qual, é possível implementar a modificação da consciência humana rumo a uma

convivência mais harmônica com a natureza e a veemente preocupação em cuidá-la e

preservá-la.

Consoante Bobbio (2004, p. 66-67):

É supérfluo acrescentar que o reconhecimento dos direitos sociais suscita, além do problema da proliferação dos direitos do homem, problemas bem mais difíceis de resolver no que concerne àquela "prática" de que falei no início: é que a proteção destes últimos requer uma intervenção ativa do Estado, que não é requerida pela proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado, o Estado social.

Quanto ao fato de existir uma política pública nacional de educação ambiental

prevista legalmente, deve-se destacar, primeiro: isso não significa que ela está sendo colocada

em prática em todo o País; segundo: que não significa que ela está sendo colocada em prática

em todos os níveis de ensino; terceiro: isso não significa que ela é efetiva e cumpra com as

suas finalidades constitucionais; e quarto: não significa que o Estado esteja atribuindo a

devida importância ao tema, que esteja atuando satisfatoriamente e que esteja envolvido com

a máxima dedicação sobre esse enfoque.

Uma nova proposta de política pública de efetiva educação ambiental deve versar ou

trabalhar a educação sob o prisma do abandono dos vícios antropocêntricos e “paradigma

separatista da insaciabilidade patológica”. (FREITAS, 2011, p. 190).7

7 Nos termos empregados pelo autor, a insaciabilidade patológica refere-se ao consumismo exacerbado e a infinitude de necessidades consumistas criadas no/pelo homem através das crescentes e inovadoras ofertas do mercado. (N.A.).

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Sob o prisma do “posicionamento político-cultural emancipatório”, mencionado por

Lima (apud SPAREMBERGER e WERMUTH, 2006, p. 31), faz-se essencial que uma séria

política pública de educação ambiental seja implantada em que não só haja a preocupação em

repassar conhecimentos atinentes ao uso racional dos recursos e manutenção dos ecossistemas

(superficialismos).

É imprescindível, entretanto, promover principalmente uma expressiva alteração de

valores, sob uma nova visão de mundo, de acordo com a qual, “cada parte tenha valor em si

própria e como parte do conjunto” (VASCONCELLOS, 2001, p. 269), parâmetro, do qual, a

situação atual da política pública de educação ambiental brasileira ainda não consegue sequer

se aproximar.

Ao mesmo tempo em que a Política Pública Nacional de Educação Ambiental proíbe

a existência de uma disciplina autônoma de educação ambiental, alegando que, dessa forma,

estaria evitando “qualquer resquício compartimentalista cartesiano na sua implementação”

(SPAREMBERGER e WERMUTH, 2006, p. 29), na prática, porém, não propicia o espaço

adequado para que ela possa ser trabalhada de forma aprofundada e sob todos os aspectos

(social, econômico, cultural, político, etc.).

Mediante a proibição infracitada, a justifica também sob a alegação de estar

expungindo o caráter reducionista até então presente, porém, simultaneamente, acaba

impedindo, assim, que esse conhecimento sequer se propague, o que tampouco permitirá que

a educação ambiental e a propagação dos saberes ambientais ocorram de maneira transversal,

conforme seria o objetivo enfatizado.

Poder-se-ia, de qualquer forma, trabalhar a educação ambiental em uma disciplina

específica, abordando-a de maneira interdisciplinar, reservando para a sua interação com o

todo (todo o universo de conteúdos a ela relacionados) a versão transdisciplinar, a ser buscada

e executada pelo conjunto do corpo docente.

No entanto, ainda que se considerasse inviável ao Poder Público assumir sozinho o

encargo de promover políticas públicas de educação ambiental, logicamente o Estado pode e

deve contar com a participação social em alguns momentos, no desenvolvimento dessas

práticas, pois as aulas de educação ambiental poderão ser enriquecidas com palestrantes

(profissionais liberais, funcionários públicos de outras instituições) e também materiais

oriundos da colaboração comunitária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, partindo da noção de educação ambiental como sendo um meio

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de proporcionar uma modificação de valores e de atitudes nos seres humanos, concernentes à

sua concepção e atuação em relação ao meio ambiente, evidencia-se a sua versão tímida,

inexpressiva, imatura e ineficaz, denotando a precariedade com que vem sendo conduzida.

É lógico que não se pretende direcionar o dever legal de implementá-la e promovê-la

unicamente ao Estado, que pode ser auxiliado e subsidiado pela sociedade civil e coletividade.

No entanto, é inegável a essencialidade de o Estado definir e estruturar as suas

diretrizes, essencialmente no âmbito educacional e, em especial, no da educação ambiental, a

fim de que possa se distanciar o bastante da letra das leis ao ponto de chegar à prática,

concretizando a vontade política que, sem dúvida, deve ser compatível com os ditames

constitucionais, como os de preservar e conservar o meio ambiente, tornando-o sadio e

ecologicamente equilibrado, às presentes e futuras gerações.

O instrumento que representa a educação ambiental não deve ser jamais

desperdiçado, principalmente pelo Estado, que deve ser o propulsor da conscientização

coletiva para a proteção e conservação ambiental, podendo ser ele utilizado como um meio

eficaz para a prevenção e embasamento fundamental para a precaução em termos de danos e

desequilíbrios ambientais, bastando ser bem direcionado e atuante de forma efetiva, constante

e permanente nos ambientes escolares, em todos os níveis de ensino.

Não obstante à previsão constitucional e à existência de leis federais dimensionando

os objetivos e a realização da educação ambiental, ainda que essa realização eventualmente

ocorra, é notável o seu caráter pontual, corretivo, esparso, eventual, fragmentário, não-

sistematizado e descomprometido com a sua finalidade precípua.

Quanto a esta finalidade, que é a conscientização e a mobilização popular no sentido

de despertar uma nova visão de mundo que, contando com uma disciplina específica para

melhor poder abordar e aprofundar os temas inerentes, sem com isso descartar outras

disciplinas e, nesse âmbito, podendo valer-se da interdisciplinaridade, para inter-relacioná-las,

é cabível depreender-se a possibilidade da utilização concomitante da transdisciplinaridade,

enquanto analisados os temas ambientais sob todos os enfoques possíveis, para além das

fronteiras de toda a ciência, desejo, ideologia e ética.

Prima-se, pois, por uma atuação estatal que promova uma educação ambiental,

através de uma efetiva política pública, que concretize os objetivos de análise crítica e

emancipatória do meio e da realidade existentes, que permeie os horizontes até então não

desvendados por uma visão mundana atrelada ao capital, ao individualismo, ao ter, ao

consumo desenfreado, criação de necessidades desnecessárias, desperdício e carente de

conscientização e atuação conjunta para o bem coletivo, inclusive para o do planeta Terra.

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EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: CONSEQUÊNCIAS1

ARBITRARY ADMINISTRATIVE EMBARRASSMENTS IN

SOCIAL SECURITY PROCEDURES: IMPLICATIONS

Carlos Luiz Strapazzon2

Maria Helena Pinheiro Renck3

RESUMO – A dignidade da pessoa humana é o elemento moral nuclear do sistema de

valores sociais do Brasil. É também um bem jurídico, nuclear, que fundamenta a validade de todo o sistema brasileiro de direitos humanos e fundamentais. O direito previdenciário, enquanto subsistema de direitos fundamentais, existe para proteger e promover, por meio de prestações pecuniárias a dignidade da pessoa humana. Este trabalho explica que embaraços jurídicos injustificados que impedem o acesso, ou a manutenção, de benefício previdenciário afetam não só a esfera patrimonial do titular segurado, mas também a extrapatrimonial. O trabalho reconhece que o atual esquema de restabelecimento de benefício previdenciário injustificadamente suspenso, ou a concessão do benefício devido (ainda que a destempo), é providência juridicamente adequada e necessária para efeitos de reparação. O texto sustenta, por outro lado, que esse modelo de proteção da eficácia dos direitos fundamentais previdenciários se enquadra no conceito de proteção insuficiente. O método de abordagem do problema foi o analítico-conceitual, posto que embasado em pesquisa teórico-conceitual. A teoria de base e a metodologia de abordagem são derivadas da dogmática dos direitos fundamentais, tal como concebida por Robert Alexy. Como conclusão principal, formula-se a tese jurídica de que a indenização por danos morais deve ser reconhecida como consequência jurídica válida e necessária no âmbito dos direitos previdenciários, haja vista que é meio adequado e necessário para aprimorar a eficácia protetiva dos direitos a benefícios sociais previdenciários.

PALAVRAS-CHAVE - Dano moral. Direito Previdenciário. Direitos Fundamentais Sociais.

ABSTRACT - The dignity of the human person is the moral and central element in the Brazilian social values system. It is also a legal and main good, which ensure the reliability of all the components that surround the Brazilian system of human rights. The social security law, as an important part of the fundamental rights, works to protect and promote, through monetary benefits the human dignity. This paper explains that unjustified legal obstacles prevent the access or the maintenance of the benefits in the social security, not only by affecting the equity in the social security holder, but also affecting all the facts that surround it. The research

1 Este texto foi desenvolvido como parte das atividades do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais Sociais do PPGD, mestrado em direitos fundamentais da Unoesc. Os autores agradecem aos pesquisadores integrantes do grupo pelas críticas e sugestões oferecidas, em especial à pesquisadora Silvana Barros da Costa. 2Pós-doutorando em Direito (PUC-RS). Doutor em Direito (UFSC). Professor do PPGD-Unoesc, Mestrado em Direitos Fundamentais. Coordenador do projeto de pesquisa em Direitos Fundamentais de Seguridade Social no PPGD-Unoesc. Editor-Chefe da Espaço Juridico Journal of Law [EJJL] - Qualis B1. Professor da Universidade Positivo (UP); Professor das Faculdades Dom Bosco. email: [email protected] 3Mestranda em Direitos Fundamentais (Unoesc). Especialista em Direito Previdenciário; Pós-graduanda em Direito Constitucional e Novos Direitos. Integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais sociais do PPGD|Unoesc. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Sócia do Escritório Pinheiro & Renck Advogados Associados. Maravilha – SC. Esta pesquisa tem o apoio financeiro do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior - FUMDES, coordenado pela Secretaria de Estado da Educação - SED, de Santa Catarina. [email protected].

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recognizes that the current restoring law of social security benefits is not trustful, or in the granting of the due benefit (for being out of time), is legally appropriate and necessary. The investigation argues, however, that the protection efficiency model in the fundamental rights of social security is characterized for being an insufficient protection. The approach method to the problem used in the document was an analytical-conceptual method, since was made following a theoretical and conceptual research. The basic theory and methodology was taken from the fundamental rights dogmatic approach, as it was conceived by Robert Alexy. As main conclusion, the thesis formulates that legal indemnification for moral damages must be recognized as legal and necessary consequence under the social security rights, taking on count that it is appropriate and necessary in order to enhance the protective effectiveness of the social rights.

Key Words. Moral Damage. Social Security. Fundamental social rights

1 INTRODUÇÃO

O direito a benefício previdenciário é um direito fundamental social. O propósito

de sua existência é proteger o titular contra os riscos básicos da sobrevivência, tais

como a carência de bens relacionados com a própria subsistência e à saúde (alimentos,

medicamentos). Benefícios previdenciários, por isso, resguardam o mínimo vital de seus

titulares. Mas não é só. Benefícios previdenciários são reconhecidos pelo sistema

internacional de direitos fundamentais como bens jurídicos indispensáveis para garantir,

também, a existência (vida no trabalho, convivência em sociedade). Disso se segue,

adicionalmente, que embaraços injustificados à concessão ou à manutenção dos

benefícios previdenciários expõem o segurado a situações extremamente graves. Não só

a autonomia (aptidão para o trabalho e para a vida em sociedade), mas também a saúde

física de pessoas expostas a riscos especiais da sobrevivência digna ficam sobreexpostos

à ocorrência de danos irreparáveis. A rigor, embaraços injustificados a direitos

prestacionais fundamentais de seguridade social afetam severamente a dignidade de

seus titulares na medida em que afetam a dignidade da sobrevivência e da existência (as

condições mínimas) de seus titulares. No estudo dos embaraços injustificados ao

exercício dos direitos fundamentais previdenciários é indispensável considerar-se, em

primeiro plano, que a principal finalidade desses direitos prestacionais sociais é a

proteção da dignidade da pessoa humana nessa dupla dimensão: vital e existencial. Em

segundo plano, que os danos causados pela obstrução de acesso a esses bens jurídicos

fundamentais não podem ser reparados do mesmo modo como são os danos causados a

outros bens jurídicos não diretamente relacionados com a dignidade. Assim, não é

correto o entendimento corrente de que a mera restituição, reajustada, das parcelas não

pagas no momento devido é o meio adequado para assegurar uma justa compensação.

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Neste texto sustenta-se que a violação do direito à dignidade por embaraços

injustificados ao exercício dos direitos a prestações de benefício previdenciário é

conduta que gera, para seus titulares (1) o direito de restituição reajustada das parcelas

não prestadas, (2) indenização por danos morais. Este trabalho sustenta, ainda, que a

imposição da reparação do dano moral nas circunstâncias de comprovado embaraço

injustificado na concessão ou manutenção do benefício previdenciário é meio

juridicamente adequado, inclusive, para prevenir violações à dignidade da pessoa

humana.

2 OS EMBARAÇOS ADMISTRATIVOS ARBITRÁRIOS E O DANO MORAL

POR OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Direitos previdenciários fazem parte da categoria geral dos direitos

fundamentais. Todos os direitos fundamentais resguardam e promovem a dignidade da

pessoa humana, fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Nessa configuração,

os direitos previdenciários representam a garantia de vida digna daquele segurado do

Regime Geral de Previdência Social que, acometido por uma contingência prevista em

lei, não apresenta condições de se manter, nem à sua família, através de sua força de

trabalho. Essa possibilidade socorrerá também o seu dependente.

Em tal cenário, o sistema brasileiro de Seguridade Social, por via da Previdência

Social, apresenta-se como uma seguradora pública, com o papel de garantir a

sobrevivência (elemento vital) e a qualidade mínima de vida (elemento existencial) da

dignidade do segurado, ou de seu dependente, por meio de prestações pecuniárias

mínimas denominadas de benefícios previdenciários. Enquanto meio de proteção da

dignidade em situação de risco, o direito previdenciário é um instrumento de guarda dos

direitos fundamentais da pessoa humana (SAVARIS, 2011a, p.60). Tal função essencial

exige especial cautela para que a concessão e a manutenção dos benefícios não sejam

embaraçados por motivos desarrazoáveis ou injustificados (CAMPOS, 2011, p. 79).

Muito embora a correta interpretação dos direitos fundamentais sociais aponte para essa

direção, a experiência revela que as relações entre titulares de direitos previdenciários e

Estado tem sido pautadas por graves situações de violação de expectativas legítimas

(STRAPAZZON, 2012, pp. 134-5) dos segurados. Uma hipótese freqüente é a seguinte:

o titular, segurado da previdência social, preenche todos os requisitos necessários ao

recebimento do benefício do auxílio-acidente, ou do auxílio-doença ou da aposentadoria

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por invalidez. Sua circunstância fática, embasada em laudos de médicos especializados,

é de incapacidade laboral, que poderá ser total ou parcial, temporária ou permanente.

Este titular hipotético, cumprido os demais requisitos legais indispensáveis, tem direito

adquirido ao recebimento do benefício correspondente. Muito embora esse

entendimento jurídico seja lógico e, sobretudo correto, mesmo assim, por embaraços

administrativos injustificados, muitos titulares não recebem, in concreto, a prestação

pecuniária correspondente. Isso pode advir do erro médico pericial, de má exegese de

leis, de inobservância de súmulas, de extravio do processo administrativo, de

descumprimento de decisão dos órgãos recursais (MARTINEZ, 2009, p. 151), ou ainda

de descumprimento ou procrastinação do cumprimento de decisões judiciais, de

suspensão indevida ou de cancelamento indevido do benefício4, não apreciação do

pedido5, ou de outras possibilidades. Casos assim frequentemente expõem a pessoa uma

situação dramática: tem de sobreviver com retorno ao trabalho, apesar de estar sem

condições adequadas de saúde; ou terá de apelar para a caridade alheia ou, o que é ainda

mais grave, da mendicância.

Se laudos médicos sérios são apresentados pelo titular do benefício

previdenciário para embasar, por exemplo, a condição de incapacidade para o trabalho,

e se todos os demais requisitos legais para obtenção da prestação previdenciária devida

estão cumpridos, então embaraços administrativos são injustificados sempre que o INSS

recusa a prestação devida.

A prestação previdenciária se refere ao ―direito de não depender da misericórdia

ou auxílio de outrem‖ (SAVARIS, 2011a, p. 60) e aquele que, tendo direito ao benefício

previdenciário, não o recebe ou o tem cessado de forma indevida, vindo a depender da

misericórdia dos outros para sobreviver, sofre uma ofensa irreparável à dignidade de sua

condição de pessoa humana.

Na condição de núcleo essencial dos direitos fundamentais, a dignidade da

pessoa humana deve ser sobreprotegida pelo sistema jurídico. Se os direitos

fundamentais visam resguardá-la, qualquer embaraço injustificável a exercício de um

direito fundamental é também uma ofensa desarrazoada à eficácia dos bens jurídicos

mais importantes da ordem jurídica e, portanto, inadmissível em direito (SAVARIS,

2011a, pp. 264-266). A dignidade da pessoa humana, em sua dupla dimensão,

4 Ver, TRF2, AC 422880 2007.51.51003972-1 DJ 18/02/2009; TRF4 AC 2000.70.06.000998-8, D.E. 23/06/2008. 5 Ver, TRF4, APELREEX 5008427-06.2011.404.7003.

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ontológica e relacional (SARLET 2009, p. 25), é elemento inerente do conteúdo do

direito fundamental previdenciário, sem o qual esse direito se desnatura. É o que

permite ao titular do direito a satisfação daquele interesse que o referido direito tem o

condão de satisfazer (SAVARIS, 2011a, pp. 264-266). Uma vez esvaziado esse

conteúdo essencial do direito previdenciário, não será possível qualquer forma de

restauração do status quo ante. Com base nisso, sustenta-se que qualquer restrição à

eficácia de um direito fundamental previdenciário jamais poderá ultrapassar essa linha,

isto é, a do limite imposto pela dignidade da pessoa humana, pois sem a devida proteção

da dignidade, o dano torna-se irreparável e a ordem jurídica compromete a sua

legitimidade (SARLET, 2011 a, p. 108-109).

Esta perspectiva permite a compreender que o direito previdenciário – como

qualquer outro direito fundamental - deve ser protegido das arbitrariedades que afetam

seu exercício regular. Só assim esse direito pode cumprir seu papel de instrumento da

concretização, efetivação, da dignidade da pessoa humana. Mantido o núcleo,

promovido seu conteúdo mínimo (vital e existencial), estará preservada a vida e

existência da pessoa, quando afetada por um infortúnio que lhe impeça de garantir a

sobrevivência própria, e dos seus, por sua força de trabalho. Nesse contexto é que as

prestações previdenciárias se mostram como pressupostos do direito de existir

condignamente, livre de adversidades desumanas.

A liberdade real só pode ser exercida pela pessoa com recursos mínimos para sobreviver, planejar sua vida e dela fazer algo valioso. Se a liberdade física, traduzida no direito de ir e vir, é vista como uma inegociável expressão da dignidade humana, da mesma forma a liberdade real, em oposição à liberdade formal, deve ser pensada como um direito inalienável do ser humano, o direito de ir e vir, e viver. De que liberdade se fala afinal quando o indivíduo é cercado pela destituição, subnutrição e apenas com esforço extraordinário consegue ―vender sua força de trabalho‖ para prover seu sustento imediato? (SAVARIS, 2011 a, p. 88).

E nesta seara Wania Campos (CAMPOS, 2011, p. 70) destaca que os embaraços

injustificados que impedirem o segurado, ou o dependente deste, de receber o benefício

a que faz jus, configuram lesão à necessidade de alimentos e agressão à órbita

psicológica e psíquica, pois afetam justamente as necessidades vitais básicas da pessoa.

Assim, os embaraços administrativos injustificados relativos ao recebimento das

parcelas dos benefícios previdenciários constituem-se num tormento a mais (CAMPOS,

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2011, p. 79), o que atenta contra a razoabilidade e, portanto, contra a própria ideia de

exercício regular de um direito.

Essa questão dos efeitos da privação injusta das prestações previdenciárias sobre

a vida do segurado e de sua família é amplamente referida pela doutrina previdenciária:

são sobretudo, efeitos de natureza psicológica, ligados à segurança econômica e à estabilidade pessoal proporcionadas pela segurança social, susceptíveis de evitar a angústia de um futuro incerto, quando os efeitos danosos dos riscos sociais atingem as pessoas, por vezes com particular violência (SAVARIS, 2011a, p. 293).

Contudo não é somente neste sentido, de um sentimento de pesar, de injustiça

ou inferiorização pelo desprezo da sociedade, não é apenas neste campo das emoções

que o dano moral previdenciário deve ser concebido. Estes sentimentos são

consequências da lesão, e podem se manifestar, como frequentemente ocorre, ou não, o

que não é raro. É que, o titular de direitos previdenciários tem algumas singularidades:

ele nem sempre, por sua condição social pessoal, que teve seu pedido recusado por

embaraços injustificados, tem entendimento da natureza da lesão que sofreu, porque

sequer sabe quais são e qual é a extensão de seus direitos.

O dano moral é justamente aquele que não pode ser medido porque atinge o

núcleo do direito fundamental, o elemento básico e inerente à pessoa, a substância da

dignidade. Nesse contexto, impedimentos arbitrários ao recebimento das prestações

previdenciárias devidas que afetarem a possibilidade de manutenção da vida digna,

afetam a capacidade de autodeterminação da pessoa e a sua existência condigna com os

demais, causando, pelo menos, dois tipos claros de danos: por um lado o dano

patrimonial, visto que em casos assim sempre haverá privação de bens materiais vitais;

e por outro o dano moral, visto que regularmente haverá ofensa à dignidade da pessoa,

resultante da afetação de vários bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a saúde,

a integridade física, a liberdade, o acesso ao mínimo existencial. Esses bens jurídicos

fundamentais são afetados direta ou indiretamente, pelos embaraços administrativos

injustificados.

Nesse contexto há diversas possibilidades de ofensa à dignidade da pessoa por

vícios na concessão e manutenção do benefício previdenciário. Ao se tratar da análise

do direito concernente às prestações previdenciárias, há que se ter em mente que, não se

está tratando de ciência exata, e nesse caso é indispensável considerar que ―a verdade a

ser alcançada deverá ter o homem e sua contingência de destituição e de ameaça à

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sobrevivência como referência primeira.‖(SAVARIS, 2011a, 47) Então, tendo em

primeiro plano tais aspectos é que se verifica a peculiaridade de cada caso a fim de

verificar se o núcleo do direito fundamental em questão, foi atingido, e a possibilidade

de se considerar o dano moral como caminho que garanta o não desprezo por essa lesão.

O ponto de partida da análise pode ser a fórmula proposta por Ingo Sarlet

(SARLET 2009, p. 34), para quem a dignidade da pessoa humana pode ser considerada

atingida sempre que a pessoa é tratada como coisa, objeto, mero instrumento,

descaracterizada como pessoa enquanto sujeito de direitos. Sendo então a qualidade de

sujeito de direitos menosprezada, também restará configurada lesão à dignidade da

pessoa humana. Ingo Sarlet observa que apesar de essa fórmula não representar solução

para todos os casos, representa um modo inicial de identificar, no caso concreto, se

houve ou não agressão à dignidade da pessoa humana (SARLET, 2011a, p.103)

A ciência dogmática dos direitos fundamentais já assentou que a verificação de

uma lesão à dignidade humana pode ocorrer pela análise do objetivo da conduta, que

tem dois rumos possíveis: (1)a intenção de coisificar a pessoa, tal como acima descrito

(SARLET, 2011b, p. 63), ou — e isso é o que mais importa no contexto dos direitos

sociais prestacionais — (2) o desprezo por sua condição de titular de direitos subjetivos.

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio de injustiças. A concepção do homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2009, p. 35).

O que é transparente é que a dogmática jurídica da atualidade, sobretudo a

especializada no tema da proteção da dignidade da pessoa humana, não concebe a

manutenção da pessoa num quadro de exclusão social, sobretudo num quadro de

arbitrário de exclusão (STRAPAZZON 2011, 52). Neste sentido a posição de Sarlet:

A pobreza configura violação da dignidade da pessoa humana sempre que ela implica em exclusão e déficit efetivo da autodeterminação. Isso se verifica ―sempre que as pessoas são forçadas a viverem na pobreza e na exclusão, em função de decisões tomadas por outras pessoas no âmbito dos processos políticos, sociais e econômicos‖ (SARLET, 2011b, p. 113)

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Esse é, precisamente, o cenário que decorre do arbitrário indeferimento do

benefício previdenciário, ou da sua arbitrária cessação/cancelamento.

Negar arbitrariamente ao titular de um direito fundamental subjetivo os recursos

necessários para que viva condignamente, tal como o benefício que lhe socorra quando

não tem mais condições de prover o sustento, corresponde, in concreto, a expô-lo a

grave risco de morte por inanição (SARLET, 2011a, p. 348), de viver em condições de

miséria ou de depender, de modo humilhante, da caridade alheia. A lesão ao direito

fundamental, à realização da expectativa imperativa de ter uma vida digna (em sua

dimensão vital e existencial mínimas), à característica da pessoa de ser sujeito de

direitos, é facilmente verificada em tais situações.

Normalmente os vícios que ferem o direito ao benefício previdenciário também

atingem outros direitos fundamentais, tais como o fundamental direito à manutenção da

vida, a liberdade, a saúde, integridade física, intensificando a lesão à dignidade da

pessoa humana. Todos os direitos fundamentais visam cada um e todos, em interação, a

Dignidade da Pessoa Humana. Não se isolam, mas se completam. A substância da

dignidade da pessoa humana, além de compor o núcleo, compõe os capilares que unem

os direitos fundamentais. Assim, se houver lesão à dignidade humana por lesão ao

direito fundamental previdenciário, pode haver também a lesão a outros direitos

fundamentais, afetando a dignidade – núcleo destes.

É por isso que, no caso da injusta cessação, cancelamento ou indeferimento de

benefício previdenciário por incapacidade, verifica-se também lesão à saúde e à

integridade física, à liberdade, e à igualdade. E, como observa Sarlet, a dignidade da

pessoa humana abrange a proteção da integridade física e corporal do indivíduo

(SARLET, 2011a, p. 103), tal qual ocorre com a liberdade e com a igualdade. Essas são

razões jurídicas bastante bem estabelecidas na dogmática dos direitos fundamentais e na

jurisprudência dos direitos sociais, em âmbito nacional e internacional (LANGFORD,

2009; LANGFORD, 2009a). Então, quando sem condições de sustentar-se devido à

incapacidade decorrente de doença, e sem receber a prestação do seguro que lhe deveria

acudir em tal situação, o segurado regularmente é posto em situações econômicas muito

desfavoráveis. E, se a causa desses eventos danosos forem decisões arbitrárias do

Estado, está configurada a responsabilidade civil do Estado.

É inegável que o sofrimento atinge a pessoa que passa pelo processo de dessocialização progressivo e enfrenta o medo quanto à subsistência. Afinal, como observa Christophe Dejours, psiquiatra e

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psicanalista francês, especialista em psicologia do trabalho, ―é sabido que esse processo leva à doença mental ou física, pois ataca os alicerces da identidade‖ (SAVARIS, 2011b, p.303).

O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução 1488/1998, expressou

seu entendimento oficial, segundo o qual considera atentatório à dignidade da pessoa

forçar alguém a trabalhar se estiver doente. O médico do trabalho, em casos de

necessidade, deve recomendar o repouso, o acesso a terapias ou o afastamento de

determinados agentes agressivos. Tudo isso faz parte das preocupações do CFM para

assegurar uma relação harmônica e respeitosa entre atividade laboral e integridade física

e moral dos trabalhadores. Retornar ao trabalho ou continuar as atividades,quando

impera a necessidade de afastamento, por absoluta falta de opção pode agravar o quadro

clinico do segurado; além do mais, em muitos casos de trabalhadores comissionados,

repercute também na renda, pois é inegável que os resultados possíveis de serem

alcançados por uma pessoa saudável e por uma pessoa incapaz são muito díspares. A

economia da família é afetada. A segurança da continuidade do emprego também é

atingida. Como se verifica, a negativa do direito ao benefício pode trazer consequências

morais e materiais muito graves.

Este panorama permite que se possa inferir de imediato que somente as

prestações do benefício devido, se vierem a ser restabelecidas, ou concedidas,

tardiamente, não podem recompor a dignidade da pessoa afetada por embaraços

arbitrários. O dano à dignidade não pode mais ser desfeito em tais situações.

A afetação da dignidade, enquanto bem jurídico nuclear dos direitos

fundamentais e, de um modo especial, do direito ao benefício previdenciário, tem de ser

apreciada nas demandas judiciais previdenciárias. Como se sustenta aqui, esses são

casos em que é cabível a indenização por dano à moral e à personalidade do segurado.

A partir disso, é necessário que o Poder Judiciário considere, na análise das

impugnações que questionam a validade a atos administrativos que indeferem pedido de

benefício previdenciário, ou que indevidamente o cancelam ou suspendem, tanto a

natureza arbitrária do ato, quanto suas repercussões na esfera da dignidade da pessoa

(em sua extensão mínima, ou seja, de mínimo vital e existencial).

Esse é o meio correto de a jurisprudência aprimorar a proteção da dignidade da

pessoa e da eficácia dos direitos sociais prestacionais. A compreensão refinada da

extensão do dano permitirá avaliar a intensidade da agressão.

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Ademais, e inevitavelmente, outros direitos fundamentais estão diretamente

ligados ao direito ao benefício previdenciário, tal qual o direito à vida, a saúde, a

liberdade, a intimidade, por exemplo. A consideração da agressão através de um direito

fundamental não exclui a causada pela lesão a outro direito fundamental. Isso significa

que danos à dignidade da pessoa no âmbito previdenciário não dependam da existência

de lesão a outros direitos fundamentais. Caso isso ocorra, é o grau da agressão que se

agrava, não a natureza da agressão. Portanto, sempre que isso ocorrer, deve o Poder

Judiciário levar em conta a extensão do dano e dosar, proporcionalmente, o quantum

indenizatório. O dano, por isso, sempre deve ser avaliado caso a caso (ALEXY, 2008,

p.295-296; SARLET, 2011b, p. 145), pois a precedência da dignidade da pessoa

humana sempre é aferida na situação fática, da pessoa diretamente atingida.

3. EMBARAÇOS ADMINISTRATIVOS ARBITRÁRIOS

Um exemplo de ato capaz de trazer dano à dignidade, resultando em dano moral,

é a perícia equivocada. Aqui, é útil recorrer ao depoimento de um dos mais experientes

previdenciaristas do Brasil:

a prática diuturna mostra que, além da rapidez, da sumariedade e da singeleza dessas perícias, em alguns casos, são negados benefícios por julgar o perito estar o trabalhador apto e, noutras hipóteses, eles são concedidos para quem tem condições de trabalhar. (...).(MARTINEZ, 2009, p. 151).

Outra possibilidade é a negativa de entregar o direito à pensão ou ao auxílio

reclusão por não reconhecer a união estável ou a filiação. Esta situação além de cercear

o acesso à verba alimentar, pode se apresentar como vexatória, comprometendo as

relações sociais (CAMPOS, 2011, p. 150).

Martinez (MARTINEZ, 2009, p. 130), menciona como fato possível de lesar a

moral do segurado, a concessão tardia do benefício, a qual supera os 45 dias da entrega

da documentação necessária ao INSS, pois tal conduta submete o segurado aos

sofrimento e às necessidades. Frisa o autor que isso pode assumir maior dimensão a

depender da situação concreta e do tempo que levar a implantação.

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A dignidade do segurado poderá ser atingida também pela falta de orientação da

autarquia previdenciária em relação à melhor cobertura securitária cabível6. A entrega

da prestação menos vantajosa resulta em prejuízo material ao segurado, que

frequentemente o expõe a dificuldades pelas quais não precisaria passar. (MARTINEZ,

2009, p. 155)

A recusa do protocolo de pedido além de ferir o direito à informação e à petição,

pode submeter o segurado à agonia, à angústia, à decepção e ao não acesso ao órgão

público (MARTINEZ, 2009, p. 140), privando-lhe da prestação a que faz jus.

Estas situações e muitas outras que representem embaraços injustificados

poderão causar não somente lesões matérias, como também ferir a dignidade do

segurado.

A análise sistêmica do caso concreto, máxime segundo interpretação que vise à

preservação e promoção da dignidade da pessoa humana, é que possibilita a verificação

ou não do dano moral.

Apesar de já aparecer em julgados de vários Tribunais pátrios, esse tipo de dano

moral ainda é tratado de forma tímida, não obstante a expressa proteção legal aos

direitos fundamentais, à dignidade humana e a concepção dada a este valor maior. No

Tribunal Regional da Segunda Região os danos morais se tornaram evidentes no

julgamento da Apelação 200351010148011, devido ao cancelamento equivocado do

benefício por suspeita de óbito do segurado. Também há condenações por dano moral

no âmbito do direito previdenciário no Tribunal Regional da Quarta Região, como foi o

caso da APELREEX 5003997-17.2011.404.7001. Neste julgado o INSS foi condenado

a pagar danos morais ao segurado por ter cessado indevidamente seu benefício de

aposentadoria. Este Tribunal, no APELREEX 5008427-06.2011.404.7003, também

considerou devida indenização por dano moral porque a autarquia não apreciou o

pedido de um dependente num processo de obtenção de pensão por morte: PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. DEPENDENTE FILHO MENOR DE 21 ANOS. BENEFÍCIO DEFERIDO À COMPANHEIRA QUE FORMULOU CONJUTAMENTE COM O AUTOR REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. CONCESSÃO A CONTAR DA DATA DO ÓBITO. DANOS MORAIS EM FUNÇÃO DO EQUÍVOCO ADMINISTRATIVO CONSISTENTE EM DESCONSIDERAR O PEDIDO DO AUTOR. 1. A concessão do benefício de pensão por morte depende da ocorrência do evento morte, da demonstração da qualidade de

6 Ver Enunciado CRPS nº 5 e o Prejulgado 1 da Portaria MTPS nº 3.286/73.

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segurado do de cujus e da condição de dependente de quem objetiva a pensão. 2. É presumida a condição de dependência do autor, filho do ex-segurado e menor de 21 anos. 3. Preenchidos todos os requisitos, o demandante faz jus à cota parte da pensão inicialmente deferida apenas à companheira do instituidor, a qual formulou pedido administrativo na mesma ocasião em que o autor, com termo inicial fixado na DIB (data do óbito). 4. O dano moral restou caracterizado pela omissão da autarquia consistente em não apreciar o pedido administrativo do autor, presente o nexo de causalidade entre a indevida inércia do serviço público e o abalo psíquico vivenciado, e mantendo-se o valor da indenização de forma adequada fixado pelo juízo a quo. (TRF4, APELREEX 5008427-06.2011.404.7003, Quinta Turma, Relatora p/ Acórdão Maria Isabel Pezzi Klein, D.E. 06/02/2013)

A despeito da evolução desses valores na ordem nacional e internacional, tudo

leva a crer que as medidas adotadas até aqui não têm alcançado efetividade.

Infelizmente, como bem descreve Ingo Sarlet, mesmo no âmbito dos direitos de

primeira dimensão a efetivação está longe de ser considerada satisfatória, ―a vida, a

dignidade da pessoa humana, liberdades mais fundamentais continuam sendo

espezinhadas, mesmo que disponhamos, ao menos no direito pátrio, de todo um

arcabouço de instrumentos jurídico-processuais e garantias constitucionais.‖(SARLET,

2011a, p.55).

Deste modo a ação de danos morais na esfera do direito a benefício

previdenciário pode ser admitida como decorrente de uma nova forma de proteção da

dignidade da pessoa humana, necessária a resguardá-la e restaurá-la dos embaraços

administrativos ligados à concessão ou à manutenção de benefícios, os quais expõem o

segurado injustamente à situação ainda mais gravosa dada a contingência que enfrenta.

4. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

As lesões no âmbito do direito previdenciário tem a particularidade de serem

causadas pelo Estado. Isso revela uma inaceitável contradição com a visão

contemporânea de Estado Constitucional e democracia. É preciso estar atento para o

―direito por princípios‖ do estado constitucional contemporâneo; e essa mudança

estrutural do direito tem que comportar, necessariamente, conseqüências muito sérias

também para a jurisdição (ZAGREBELSKY, 2007, p. 112). Kloepfer (KLOEPFER,

2009, p. 163) considera, por isso, especialmente cruel a lesão ocorrida quando o Estado

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fere seus deveres de proteção decorrentes dos direitos fundamentais, como no caso da

instituição pública que deixa de seguir as prescrições procedimentais que o Estado

elegeu para colocar em prática seu dever de proteção à vida e à intangibilidade física.

No âmbito previdenciário, a especial crueldade de que fala Kloepfer é bem

saliente. Não se pode esquecer que as relações jurídicas previdenciárias são marcadas

por contrastante disparidade de forças entre as partes envolvidas numa relação de

direitos e deveres (MARTINEZ, 2009, p. 29). Num dos pólos, estão os ―frágeis,

desinformados e desamparados cidadãos buscando meios de subsistência‖

(MARTINEZ, 2009, p. 23), e no outro o INSS, gestor da previdência social, entidade

pública, Estado em sentido amplo, e que assim, dispõe de todas as informações hábeis a

conduzir à concessão da prestação pretendida (SAVARIS, 2011a, p. 65).

no mais comum dos casos os beneficiários da seguridade social são pessoas humildes, hipossuficientes culturalmente, sem noção de cidadania e dos seus direitos, que aceitam de cabeça baixa imposições descabidas, recusas indevidas, humilhações desnecessárias (MARTINEZ, 2009, p. 69).

Como se vê, até mesmo a doutrina reconhece que os destinatários da proteção

previdenciária não tem sequer consciência do tipo de lesão que estão sofrendo. Logo por

isso é que o litígio com o INSS se torna um grande pesadelo; nem o direito de reparação

advinda da afronta patrimonial, nem da compensação pela agressão moral são

devidamente compreendidos como direitos subjetivos desses titulares. Os danos, de um

modo geral, são suportados pelos segurados, até mesmo porque o órgão que detém o

dever de zelar pelo seguro social goza de uma presunção de competência técnica que o

segurado hesita em questionar.

Nesse contexto destaca-se a máxima da proibição de proteção insuficiente como

um dever do Estado para com a eficácia dos direitos sociais prestacionais. Assume

particular ênfase no plano da dimensão positiva dos direitos fundamentais (SARLET,

2011a, p. 358).

A administração não pode esquivar-se de seu papel central de sustentação do sistema. (...) Também é sua responsabilidade gerar uma rede público-privada que confira respostas às necessidades da sociedade como um todo. (...) Uma vez engendradas as políticas públicas voltadas à promoção dos direitos fundamentais – sobretudo daqueles de caráter social -, é por intermédio do exercício da função administrativa que o Estado irá efetivar tal direito. (OLIVEIRA, 2007. p. 324-325)

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Como os objetivos gerais da República estabelecidos no Art. 3o. do texto

constitucional do Brasil indicam que Estado e sociedade devem estar orientados por: I –

construir uma sociedade livre, justa e solidária; III – erradicar a pobreza e a

marginalização e reduziras desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de

todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de

discriminação as funções estatais legitimam-se como instrumento de realização e tutela

da dignidade da pessoa humana. Isso vai pautar a função administrativa, a qual deve ser

desempenhada de forma que as decisões tomadas efetivem aquele ideal constitucional

(OLIVEIRA, 2007,pp. 324-325).

Desta forma a pessoa lesada pelas arbitrárias ações ou omissões que lhe

oneraram física, moral ou pecuniariamente, ficam, ipso facto, investidos de poderes para

defesa dos interesses violados. Eis que compete ao Direito preservar a integridade moral

e patrimonial das pessoas em sua busca incessante por uma vida feliz (BITTAR, 1998,

p.15), o que só é possível ante a concretização da dignidade.

Como bem salienta Goldschmidt, a vida e a dignidade humana são direitos da

personalidade e assim, ante a lesão ou ameaça de lesão pode-se promover medidas para

que cesse a lesão ou a ameaça, sem prejuízo ainda a outras sanções (GOLDSCHMIDT,

2010, p. 213).

A responsabilidade do Estado por danos causados por embaraços arbitrários ao

exercício de direitos subjetivos previdenciários, é hipótese formalmente estabelecida no

direito brasileiro. Seu fundamento constitucional é a previsão do artigo 37§ 6º da

Constituição da República de 1988, segundo o qual o Estado responde objetivamente

pelos atos de seus agentes que, nessa qualidade, causem danos, materiais ou morais, a

terceiros, seja por ação ou omissão. A disposição constitucional é repetida no estatuto

básico das relações privadas (Art. 43 do Código Civil) e a reparação civil vem no artigo

186 e 927 do mesmo Código. O Estado deverá reparar ou indenizar o prejuízo, e poderá

acionar o seu agente de forma regressiva.

Responsabilizar a União por ofensa à dignidade da pessoa humana no âmbito do

direito a benefício previdenciário, inclusive, é medida que tem respaldo no reconhecido

―objetivo de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência‖,

reconhecido pela Emenda Constitucional 67/2010, que instituiu o Art. 79 do ADCT e

criou o Fundo de Combate e erradicação da pobreza; mas além disso a indenização por

danos morais se respalda na Carta Constitucional em outros dispositivos, em especial

nos seguintes: Art. 1o, III: que reconhece que a dignidade da pessoa humana é o

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fundamento de validade da ordem republicana do Brasil; Art. 3o. I: que fixa o objetivo

de construção de uma sociedade justa; e no inciso IV, que veda qualquer forma de

preconceito neste país, dado que existe para proteger o bem de todos; Art. 4o. II, na

prevalência dos direitos humanos; e o pouco discutido Art. 85, III, que define a conduta

presidencial atentatória contra direitos sociais como crime de responsabilidade.

A responsabilidade objetiva do Estado vincula-se ao risco administrativo. Para

que haja responsabilidade é necessário que se demonstre a conduta do ente público,

negativa ou positiva, seja de omissão ou ação; o dano e o nexo causal entre tais

elementos. Além disso, é preciso que não haja excludente, representada por fato/culpa

da vítima ou de terceiro, caso fortuito ou força maior. Mas o resultado do efeito

preventivo e educativo, no caso do reconhecimento do dano moral tende a ser até

superior ao resultado reparador/compensador porque o reconhecimento dos danos

morais tem um papel social de desestimular futuras ofensas (MARTINEZ, 2009, p. 63).

Nessa senda a doutrina destaca a elevada importância da ação regressiva como meio de

efetivação desse caráter preventivo da responsabilização objetiva do Estado por danos

morais, sem o que as condutas individuais ilícitas e arbitrárias se repetirão. a compensação em favor dos titulares do direito subjetivo violado, sistematicamente empreendida em relação ao culpado da ação, com alguma certeza produzirá o desaparecimento ou a minoração dessas causas determinantes (MARTINEZ, 2009, p. 63).

Frisa-se que não se pode confundir a ação de reparação de danos morais atinente

ao vício na concessão ou manutenção de benefício previdenciário com a ação relativa à

obtenção ou restabelecimento do mesmo. As prestações visam acudir a pessoa quando

submetida a uma contingência. Os danos morais derivam da lesão à dignidade, advinda

do vício na concessão ou na manutenção do benefício. São de naturezas distintas

(CAMPOS, 2011, p. 131).

O dano em si é prejuízo, isto é afetação do ser humano. O dano moral agride a pessoa ou os seus bens, ainda no âmbito da individualidade, no que ela tem de mais relevante, a sua personalidade (MARTINEZ, 2009, p. 27).

A indenização pelo dano moral no âmbito do direito ao benefício previdenciário

buscará confortar as lesões à dignidade, concebidas como as lesões à capacidade de

autodeterminação. Obviamente que não significa, como se tem insistido neste trabalho,

a eliminação do prejuízo ou suas consequências, mesmo porque isso não é possível

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(CAHALI, 2000, p.42). Também, cumprirá com o papel preventivo ao servir de

desestímulo à repetição da ação ou omissão lesiva, desempenhando uma função de

importância social, inibindo a repetição da conduta lesiva, incentivando a eficiência

devida ao órgão previdenciário público existente num país cuja totalidade dos objetivos

se guia pelo fundamento da dignidade da pessoa humana, tendo portanto a mesma, o

dever e a finalidade de promovê-la

5. QUANTUM INDENIZATÓRIO: PRESSUPOSTOS DE UM CÁLCULO JUSTO

Como ocorre em todos os temas implicados com a responsabilidade civil do

Estado, também aqui nas relações jurídicas previdenciárias é grande a dificuldade para

quantificar proporcionalmente a dor causada por embaraços administrativos arbitrários

violadores do direito fundamental à prestação securitária. Todavia, na concessão de

benefício previdenciário há contingências muito particulares, tais como a idade

avançada, a doença, as atividades profissionais que prejudicam a saúde, o longo tempo

de contribuição exigido, somados a fatores de especial agravamento de sofrimento, tais

como o dever de cuidar dos filhos, a gestação, a adoção, acidentes morte, reclusão.

Todas essas particularidades do sistema de direitos previdenciários ainda se deparam

com os limites administrativos e financeiros da administração pública (reserva do

possível). Logo se vê a complexidade do cenário que se antepõe à dosimetria do

quantum indenizatório. Todavia, diferente das relações civis entre iguais, os danos

causados pelo Estado, por atos arbitrários de indeferimento, decorrem de uma relação

evidentemente desigual, pois se trata de uma relação entre a pessoa política soberana vs.

o hipossuficiente. Ou seja, o poder soberano vs. o não poder.

O quantum indenizatório, em casos como esse, não pode ser dimensionado

segundo os critérios convencionais da responsabilidade civil a ponto de não se dar o

devido peso à fundamentalidade dos bens jurídicos implicados e a assimetria colossal

existente entre os titulares da relação jurídica (segurado vs. Estado); nem pode aviltar a

situação sofrida e o valer o risco da conduta, mas também não poderá inviabilizar o

ofensor. Porém, estas dificuldades não podem impedir a fixação do valor indenizatório

(CAMPOS, 2011, p. 119).

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É preciso considerar que o ato ilícito que causou o dano à dignidade não é

bastante em si mesmo. Normalmente representa

o agravamento de uma situação em que o segurado e dependente já se encontra debilitado física ou psicologicamente, por vezes das duas formas. Logo, constituindo uma causa de aumento de um problema já existente, deve impor uma reparação de certa monta que supere os prejuízos materiais e morais do ofendido e evite a repetição do ato lesivo por parte do ofensor (CAMPOS, 2011, p. 119).

O segurado do Regime Geral de Previdência Social que sofrer lesão à moral, no

âmbito do seu direito de obter benefício previdenciário tem direito a buscar a reparação

dos danos junto ao Judiciário. Esse direito a ser reparado encontra base na dignidade da

pessoa humana (MARTINEZ, 2009, p. 127). O critério hermenêutico da proteção

preferencial da dignidade da pessoa humana impõe ao Judiciário mais do que a

interpretação conforme a Constituição e os direitos fundamentais, mas que esteja

presente o imperativo segundo o qual a única interpretação conforme a Constituição é a

que sobreprotege (ALEXY 2008, pp. 300-301) a dignidade das pessoas e, portanto, os

seus direitos fundamentais(PIEROTH; SCHILINK 2012, p. 71). Então, a interpretação

dos danos decorrentes de lesões ao direito previdenciário não pode restringir-se à mera

subsunção à lei.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito previdenciário é um direito fundamental social. As prestações de

caráter alimentar existem para garantir a vida digna dos seus titulares, quando afetado

por uma das hipóteses fáticas estabelecidas no texto constitucional. Neste papel, tal qual

os demais direitos fundamentais, o direito previdenciário resguarda e promove a

dignidade da pessoa humana.

Contudo, frequentemente o titular dos direitos fundamentais a prestações

previdenciárias é frustrado em suas expectativas imperativas devido a embaraços

administrativos injustificáveis, que impedem o acesso ou a manutenção das prestações.

Pela peculiaridade do direito previdenciário, tais embaraços podem afetar a

possibilidade de manutenção da vida digna, causando, pelo menos, dois tipos claros de

danos: por um lado o dano patrimonial, visto que em casos assim sempre haverá

privação de bens materiais vitais; e por outro o dano moral, pela ofensa à dignidade da

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pessoa, resultante da afetação de vários bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, a

saúde, a integridade física, a liberdade, o acesso ao mínimo existencial.

Este trabalho evidenciou que embaraços administrativos injustificáveis relativos

à entrega ou manutenção das prestações previdenciárias violam o direito de acesso ao

mínimo vital e ao mínimo existencial. Atos assim, porque lesivos à dignidade da pessoa

humana, são atos inconstitucionais.

Há que se considerar que a dignidade humana é elemento moral nuclear do

sistema dos supremos valores constitucionais do Brasil e bem jurídico que fundamenta a

validade de todo o sistema brasileiro de direitos humanos e fundamentais. Assim,

considerando um valor de tal importância, tem-se que as prestações pagas a destempo,

mesmo que corrigidas monetariamente, se mostram como uma forma de proteção

insuficiente à dignidade da pessoa humana. A indenização por danos morais, nesse

contexto, se mostra como um instrumento válido e indispensável no caminho que

percorre a eficácia protetiva dos direitos sociais previdenciários, com vistas à adequada

proteção.

Por isso a afetação da dignidade, enquanto bem jurídico nuclear dos direitos

fundamentais e, de um modo especial, do direito previdenciário, tem de ser apreciada

nas demandas judiciais previdenciárias. Esse é o meio correto de a jurisprudência

aprimorar a proteção da dignidade da pessoa e da eficácia dos direitos sociais

prestacionais, uma vez que o critério hermenêutico da proteção preferencial da

dignidade da pessoa humana impõe ao Judiciário que a única interpretação conforme a

Constituição é a que sobreprotege (ALEXY 2008, pp. 300-301) a dignidade das pessoas

e, portanto, os seus direitos fundamentais (PIEROTH; SCHILINK 2012, p. 71).

Nesse contexto a responsabilização do Estado por danos morais decorrentes de

violação à dignidade da pessoa humana no âmbito do direito a prestações

previdenciárias, nas circunstâncias de comprovado embaraço administrativo

injustificado, é meio juridicamente adequado à reparação parcial e à prevenção de danos

à dignidade da pessoa humana.

7 REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio A. Silva, São Paulo: Malheiros, 2008.

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*Doutora em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade de São Paulo-PUC. Professora Associada III da Universidade Federal da Paraíba e Professora Titular do Centro Universitário de João Pessoa-UNIPÊ. Coordenadora do grupo de pesquisa: Constituição, propriedade, desenvolvimento e cidadania ambiental perante o núcleo de Pesquisa do UNIPÊ. **Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino(UMSA) Buenos Aires. Professora Assistente do Centro Universitário de João Pessoa/PB. Advogada. Membro do grupo de pesquisa: Constituição, propriedade, desenvolvimento e cidadania ambiental perante o Núcleo de Pesquisa do UNIPÊ.

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA: REQUISITOS

EXIGIDOS AO MUNICÍPIO PARA LEGITIMAR A ADOÇÃO DAS ALÍQUOTAS

PROGRESSIVAS NO TEMPO

SOCIAL ROLE OF PRIVATE PROPERTY: DETAILS REQUIRED TO

MUNICIPALITY TO LEGITIMIZE THE PROGRESSIVE RATES ADOPTION OF

THE TIME

Hertha Urquiza Baracho *

Sulamita Escorião da Nobrega**

RESUMO: O texto versa sobre o papel do Estado Democrático de Direito na busca pelo desenvolvimento e reflete sobre a concretização do princípio da função social da propriedade através da progressividade do IPTU. Analisa a atividade interventora do Estado na economia através da tributação e a influência do sistema tributário na promoção do desenvolvimento. Permite visualizar a função extrafiscal da tributação e verificar o entendimento da doutrina acerca do tema, sobretudo quando a função interventora do Estado se efetua no sentido de desestimular determinado comportamento aumentando a alíquota do tributo incidente sobre ele. A tributação, quando utilizada para fins extrafiscais, se revela como uma via indireta de atuação do Estado hábil à efetivação dos princípios constitucionais e garantidora do cumprimento da função social da propriedade. Palavras-chave: função social; desenvolvimento; tributos.

ABSTRACT: This paper analyzes the role of the democratic rule of law in the pursuit of development and reflects on the implementation of the principle of the social function of property through the progressivity of taxes. Analyzes activity intervening in the economy through taxation and the influence of the tax system in promoting development. Lets you view the role of taxation “extrafiscal” and check for understanding of the doctrine on the subject, especially when the function interventionist state takes place in order to discourage certain behavior by increasing the rate of tax on it. The taxation when used for purposes “extrafiscal”, is revealed as an indirect way of skillful performance of the State to effect the constitutional principles and guaranteeing the fulfillment of the social function of property. Keywords: social function; development; taxes.

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1. Introdução

O artigo aborda o papel do Estado Democrático de Direito na busca pelo

desenvolvimento e reflete sobre a concretização do princípio da função social da propriedade

através da progressividade do IPTU. Analisa a atividade interventora do Estado na economia

através da tributação e a influência do sistema tributário na promoção do desenvolvimento. O

tributo além de ser uma forma de arrecadar receita para o Estado é também um meio de

estimular ou desestimular condutas econômicas praticadas por agentes sociais, através da

tributação extrafiscal do Estado.

Esta pesquisa pretende responder às seguintes indagações: A progressividade do

IPTU viabiliza o cumprimento da função social da propriedade? E quais os requisitos

necessários para legitimar a adoção da progressividade do IPTU no tempo?

O texto é relevante porque permite visualizar a função extrafiscal da tributação e

verificar o entendimento da doutrina acerca do tema, sobretudo quando a função interventora

do Estado se efetua no sentido de desestimular determinado comportamento aumentando a

alíquota do tributo incidente sobre ele.

Salienta-se que o método de abordagem escolhido para elaboração dessa

investigação foi o método dedutivo, iniciando-se pelo estudo da Constituição,

desenvolvimento, propriedade e função social, até a investigação da progressividade do IPTU

e dos requisitos exigidos do Município para legitimar a adoção das alíquotas progressivas no

tempo.

Quanto à técnica de pesquisa para a coleta de dados, utilizou-se basicamente a

pesquisa bibliográfica.

2. Constituição, propriedade, função social e desenvolvimento.

Com o fim do constitucionalismo liberal, que afasta o Estado da atividade econômica

e entende a propriedade como um direito individual e um bem absoluto, surge o

constitucionalismo social.

As Constituições Sociais ou Econômicas elaboradas no Final da Primeira Guerra

Mundial marcam essa nova fase de constitucionalismo. As Constituições sociais assim como

as liberais possuem a declaração dos direitos individuais, mas as constituições sociais vão

mais além, dispõem sobre os direitos sociais, econômicos e culturais.

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A primeira Constituição Social ou Econômica foi a do México, de 1917, seguida da

Constituição de Weimar de 1919. A primeira dispõe, no art. 27, que “ A Nação terá, a todo

tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo interesse

público”. Enquanto esta última, no art.153 afirma que „„A propriedade obriga e o seu uso e

exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social”. No Brasil, a

primeira Constituição Social ou Econômica foi a de 1934. É a partir desse momento que o

direito de propriedade abandona a concepção romanística clássica e passa a ter finalidades

sociais, coletivas. A noção de função social já estava presente implicitamente.

A função social da propriedade só apareceu como um dos princípios da ordem

econômica e social de forma explícita na Constituição Federal de 1967, art. 157.

“Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos

seguintes princípios: (...) III- função social”.

A Constituição Federal de 1988 manteve a propriedade e sua função social como um

dos princípios conformadores da ordem econômica.

A propriedade é tratada na Constituição atual no art. 5º (incisos XXII, XXIII) como

direito fundamental e no art. 170, II e III, como princípio da ordem econômica, isso quer dizer

que o constituinte relativizou o conceito de propriedade ao condicioná-la à função social e ao

submetê-la à existência digna e à justiça social.

Oportuno realçar que a Constituição Federal refere-se a várias espécies de

propriedade, tanto que os autores falam em “propriedades”, e diversos são os seus regimes em

relação à sua função social. Da mesma forma, pode-se afirmar que não há uma única função

social, mas diversas funções sociais que variam de acordo com a natureza da propriedade. No

dizer de Silva, “onde ser cabível não falar em propriedade, mas em propriedades”.

Na Constituição Federal de 1988 várias são as espécies de propriedade: propriedade

autoral; propriedade de inventos; propriedade dos bens de família; propriedade dos bens de

produção; propriedade dos recursos minerais; propriedade urbana; propriedade rural.

Para Silva (2010, p.123) a função social é integrante do conceito de propriedade e a

mesma só existe se e enquanto realiza a sua função social. Comunga com o pensamento de

Pedro Escribano Collado: no entendimento de que a função social “introduziu, na esfera

interna do direito de propriedade, um interesse que pode não coincidir com o do proprietário e

que, em todo caso, é estranho ao mesmo”.

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Grau (2007, p.346) entende que a ideia de função social dá à propriedade um

conteúdo específico, de sorte a moldar-lhe um novo conceito. Para ele a propriedade dotada

de função social justifica-se pelos seus fins, seus serviços e sua função, sendo esta última a

sua base de legitimação.

A Constituição Federal brasileira de 1988 é uma Constituição Dirigente e

Desenvolvimentista. É dirigente porque é repleta de normas „‟programáticas, sociais ou

econômicas” (Bercovici, 2005). E é desenvolvimentista porque é extremamente minuciosa em

relação a implantação de um desenvolvimento sustentável. Proporciona a diferença entre

desenvolvimento e crescimento econômico diferentemente das Constituições da década de 60,

época em que não se fazia essa distinção e como consequência tinha-se o desenvolvimento

excludente.

Necessário realçar que a Constituição econômica brasileira não é parte isolada dentro

da Constituição total, e que deve ser interpretada em seu todo e nunca em tiras, como leciona

Grau. (2007, p.166)

E que a Constituição econômica atual não se restringe apenas aos Princípios Gerais

da Ordem Econômica, art.170, mas está presente em toda a Constituição. Já no Preâmbulo da

Constituição Federal de 1988 constata-se que o desenvolvimento é um dos fins do Estado

Democrático brasileiro. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,

está no art. 3°, II, a busca pelo desenvolvimento nacional. Os incisos I, III e IV do mesmo

artigo também preconizam o desenvolvimento quando dispõem sobre a erradicação da

pobreza, das desigualdades e da promoção do bem de todos.

Para Celso Furtado (2008, p. 83), o desenvolvimento é um processo cultural e

histórico, cuja dinâmica se apoia na inovação técnica posta a serviço de um sistema de

dominação social.

Celso Furtado (2004, p.484) distingue crescimento e desenvolvimento:

O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na preservação do privilégio das elites que satisfazem o seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida da população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento.

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O Estado Democrático de Direito estabelecido em 1988 pela Constituição Federal

busca o desenvolvimento, entre outros meios, através da tributação, que serve de instrumento

de intervenção na sociedade, sobretudo no campo econômico e social, com o objetivo de

concretizar as diretrizes constitucionais.

O Estado, além de arrecadar tributos e aplicar os recursos arrecadados, estimula ou

desestimula comportamentos, fenômeno denominado de extrafiscalidade.

Enquanto a fiscalidade se refere à forma como o Estado arrecada tributos com o

objetivo de obter recursos (receita) para realizar os seus fins, a extrafiscalidade arrecada

tributos mas sua finalidade principal é alcançar resultados econômicos e sociais através da

exigência fiscal.

A tributação é um poderoso instrumento de concretização dos direitos fundamentais

e de promoção do desenvolvimento.

O Estado utiliza a tributação como instrumento de intervenção na sociedade,

sobretudo no campo econômico e social, com o objetivo de concretizar as diretrizes previstas

na Constituição.

Nesse artigo interessa a propriedade urbana e o Imposto Territorial Urbano.

3. Contornos conceituais das funções dos tributos

O Estado pode ser entendido como uma sociedade juridicamente instituída fincado

nos elementos povo, território, soberania e finalidade. Pode-se afirmar que o último

componente materializa-se no exato momento em que o Estado promove o bem comum, ou

seja, possibilita a esse “povo” condições necessárias à vida em coletividade.

Sabe-se que a satisfação das necessidades coletivas se viabiliza por meio do

desenvolvimento de políticas públicas que, por sua vez, possuem um custo operacional

considerável para implantação e manutenção.

O meio do qual o Estado se vale para estruturar-se financeiramente denomina-se

atividade financeira que pode ser compreendida como a busca de condições para que o

Estado possa funcionar dentro de um planejamento estruturado. No entender de Guerra (2007,

p.30), “o Estado deve criar meios de gerar recursos suficientes para cobrir os gastos com os

serviços públicos e a sustentação da máquina administrativa”, haja vista que na ótica do

mencionado autor, “o Estado não tem objetivo de enriquecer, mas tão somente, de arrecadar

dinheiro na medida suficiente e necessária para realizar sua finalidade precípua” (2007, p.30).

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A constituição dos recursos que possibilitem o custeio das necessidades ocorre, em

regra, através da obtenção dos ingressos públicos que adentram aos cofres via receitas

patrimoniais, tributárias, creditícias etc. Hodiernamente, a tributação se revela como uma das

principais vias, se não, a principal, de que o Estado moderno dispõe para formação de suas

receitas públicas1.

Doutrinariamente se classificam os tributos quanto a sua função – ou finalidade –

como fiscais e extrafiscais.

Um tributo possui finalidade ou função fiscal quando objetiva tão-somente dotar os

cofres públicos de dinheiro para custeio das necessidades. O objetivo é meramente

arrecadatório. Carvalho, ao discorrer acerca da finalidade fiscal da tributação, assim pondera: Fala-se, assim, em fiscalidade sempre que a organização jurídica do tributo denuncie que os objetivos que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos da sua estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres públicos, sem que outros interesses – sociais, políticos ou econômicos – interfiram no direcionamento da atividade impositiva (CARVALHO 2009, p.254).

Diferentemente da função fiscal ou arrecadatória, a tributação atinge a função

extrafiscal quando é utilizada como instrumento de intervenção. No entender de Carvalho, a

extrafiscalidade constitui-se “no emprego de fórmulas jurídico-tributárias para a obtenção de

metas que prevalecem sobre os fins simplesmente arrecadatórios de recursos monetários”

(2009, p.256).

Assim, a face da extrafiscalidade tributária aparece na medida em que a exigência

assume um papel indutor de condutas e se revela, conforme afirma Basso, como um

“instrumento de desestímulo de comportamentos difusamente indesejáveis” (2010, p.224).

Logo, o tributo é extrafiscal quando transcende o objetivo de ser mero veículo arrecadador.

Quando destaca os principais critérios de classificação dos tributos, Ferreira Filho

afirma que: tributo extrafiscal é aquele cuja finalidade não é a arrecadatória. Sua finalidade pode ser econômica – Ex.: alteração alíquota do IE (imposto sobre exportação) visando o controle da balança comercial – ou social – desestímulo à manutenção de propriedade improdutiva. Ex.: ITR (imposto territorial rural) (FERREIRA FILHO e SILVA JÚNIOR, 2008, p.65).

Ainda na perspectiva da extrafiscalidade, Buffon (2009, p. 227), esclarece que “[a]

exação extrafiscal está direcionada a servir como meio de obtenção do bem comum, o qual

deve ser entendido como a concretização dos objetivos constitucionalmente postos, via

materialização dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais”. 1 Receita Pública é a entrada que, integrando-se ao patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência

no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo. (BALEEIRO, 2010, pág. 148).

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Torna-se oportuno o registro de que as finalidades da fiscalidade e da

extrafiscalidade não são reciprocamente excludentes. Carvalho (2009, p.256) assegura que

“os dois objetivos convivem, harmônicos, na mesma figura impositiva, sendo apenas lícito

verificar que, por vezes, um predomina sobre o outro”.

O mesmo pensamento é refletido no dizer de Basso e Reis (2012, p.40) ao afirmarem

que “as finalidades fiscal e extrafiscal não se excluem reciprocamente, isto é, pode haver a

presença das duas no mesmo instante, o que ocorre é a predominância de uma delas”. O

IPTU é um exemplo de que essa premissa é verdadeira. Pode-se afirmar que, via de regra,

esse imposto atende a função fiscal, ou seja, objetiva prover o Estado de receita pública.

Entretanto, quando ele é utilizado como instrumento para desestimular o mau uso da

propriedade urbana, nos termos no artigo 182 § 4º, II CF, vislumbra-se nitidamente sua face

extrafiscal, que será detalhada em seguida.

4. Considerações acerca do IPTU no Sistema Tributário Nacional

As regras gerais do tributo em discussão estão enumeradas nos artigos 32 a 34 do

Código Tributário Nacional. São elas que balizam as leis locais criadoras do imposto, haja

vista que para o exercício da competência tributária torna-se necessário que cada Município o

institua através de uma Lei Municipal, desde que respeitado o princípio da legalidade

tributária, podendo, entretanto, a instituição do imposto ser por meio de lei ordinária.

O tributo em análise é da espécie imposto, por isso caracteriza-se como tributo não

vinculado quanto a sua hipótese e de receita não afetada quanto ao destino de arrecadação. No

que se refere à possibilidade de repercussão do encargo econômico-financeiro é imposto

direto, uma vez que quem sofre o impacto do pagamento da exação é o próprio contribuinte;

real porque incide sobre a coisa e não leva em consideração características pessoais de quem

está pagando e em regra é predominantemente fiscal uma vez que se revela como uma

importante fonte de receita para os diversos municípios brasileiros.

Convém lembrar que possui função extrafiscal, na medida em que é utilizado como

forma de desestimular a má utilização dos imóveis urbanos, e promove, deste modo, o

princípio da função social da propriedade.

O Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU, sob o aspecto

material, possui como hipótese de incidência a propriedade, o domínio útil ou a posse predial

e territorial urbana. Ressaltando que a posse a que se refere o artigo 32 do CTN, é a posse que

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pode conduzir ao domínio, ou seja, aquela que é exercida com o animus de definitividade2 e

não a mera posse direta, decorrente do contrato de locação, por exemplo.

Como se retira do texto Constitucional (art. 156, I, CF) o IPTU é de competência

privativa dos Municípios. Todavia, com base na competência tributária cumulativa (art. 147

CF) pode também instituir o IPTU o Distrito Federal e a União no caso de ser criado um

Território Federal e não estando este dividido em municípios.

Assim, da análise do aspecto pessoal da regra matriz instituidora do imposto em

questão retira-se que o sujeito ativo será o Município, o DF e na excepcional situação de

criação de Território Federal, a União. Quanto à sujeição passiva, obriga-se ao pagamento do

imposto toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que seja proprietária, titular do domínio útil

ou detenha a posse imobiliária no espaço físico de uma área urbana, urbanizável ou de

expansão urbana, nos exatos termos do artigo 32 parágrafos 1º e 2º do CTN, traduzindo-se

desse modo a referida área como o aspecto espacial3 do tributo.

Registre-se ainda que o elemento temporal que indica o momento de apuração do

dever de pagar o imposto predial e territorial urbano é uma ficção jurídica definida na lei

municipal instituidora do imposto e que, via de regra, as leis municipais que criam o IPTU

indicam o primeiro dia de cada ano como a verificação da ocorrência do fato gerador.

Em outro aspecto, o que importa para definição do contribuinte do IPTU é a pessoa

que figurar na condição de proprietário naquele momento definido na lei (exemplo: dia

primeiro de janeiro do ano X), independentemente da quantidade de transferências de

titularidade que tenham ocorrido sobre imóvel no decorrer do ano.

Sob a análise do último aspecto da regra matriz de incidência, o quantitativo, tem-se

que esta possibilita saber a exata dimensão do quantum debeatur da obrigação tributária. O

valor é encontrado através da seguinte equação: base de cálculo x alíquota. A base de cálculo

para apuração do IPTU será o valor venal do imóvel, ou seja, o valor de mercado descoberto

que se encontraria caso proceda à venda do bem, não importando para apuração dessa

grandeza, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 33 do CTN, o valor dos bens mantidos

em caráter permanente ou temporário, no imóvel, para efeito de sua utilização, exploração,

aformoseamento ou comodidade.

2 Para melhores esclarecimentos vide: REsp 1.205.250 – RJ.Rel Min. Luiz Fux e REsp 325.489 - Ministra Relatora Eliana

Calmon. Apesar de corriqueiramente transferir ex contractu, no caso de locação de imóvel o ônus do pagamento do IPTU, não transforma o locatário em contribuinte do imposto. 3 Ainda sob o aspecto espacial do imposto em estudo vale o registro que por disposição do art. 15, Decreto-Lei 57/66, quando tratar-se de imóveis, mesmo que localizados em zona urbana, mas que se dedique a exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, o imposto devido será o ITR e não o IPTU.

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No que se refere às alíquotas, impende registrar que no ordenamento jurídico pátrio

não há definição do um patamar mínimo e máximo a serem observados. A lei municipal

instituidora do imposto predial e territorial urbano é quem irá definir, respeitando obviamente

os parâmetros constitucionais estabelecidos. No entender de Ferreira Filho e Silva Júnior

(2008, p.564) “as alíquotas não podem atingir valores tais que representem a destruição do

patrimônio do contribuinte”.

5. Definição de progressividade:

O IPTU é imposto em que se observa a possibilidade da utilização de alíquotas

progressivas, tanto de caráter fiscal como de caráter extrafiscal. Antes de se discutir o alcance

da progressividade aplicada a esse imposto, se faz necessário, para fins de adequação didática

do que se discute, que se entenda o que vem a ser progressividade4.

Definição bastante esclarecedora é a trazida por Barreto (2009, p.250) quando

assegura que “a progressividade opera-se pelo estabelecimento de alíquotas tanto maiores

quanto forem os níveis de intensidade ou de grandeza de um específico fator ou aspecto

tributário”. Ainda sob a ótica do autor “a progressão, implica em desigualação na medida em

que extrapassa a mera graduação (proporcionalidade)” (2009, p.250). Para Torres (2007, p.

94), “o subprincípio da progressividade significa que o imposto deve ser cobrado por

alíquotas maiores na medida em que se alargar a base de cálculo”. O autor aponta a

progressividade como um subprincípio da capacidade contributiva.

Cassone (2008, p.57) assegura que “a desproporcionalidade da tributação, em função

do valor tributável, é o elemento que diferencia a progressividade da proporcionalidade”.

Orientando-se pelas definições e exemplo exposto, pode-se entender a

progressividade como uma técnica ou fenômeno que conduz à elevação de alíquotas na

medida em que cresce o montante de riqueza demonstrada. Ou seja, para um imposto que

atenda a progressividade, quanto maior a riqueza ou a capacidade econômica, maior será a

alíquota (percentual) paga, objetivando-se com a progressividade a realização de uma justiça

fiscal, estando, portanto, intimamente ligada ao princípio da capacidade contributiva.

4 A progressividade não deve ser confundida com a proporcionalidade. Assim como na progressividade, Torres (2007, p.94)

entende a proporcionalidade como um subprincípio da capacidade contributiva, e a vislumbra quando “um imposto incide sempre pelas mesmas alíquotas, independentemente do valor da base de cálculo, o que produzirá maior receita na medida em que o bem valer mais”.

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Diante do que até agora foi exposto e guiados pelo critério da finalidade dos tributos

tem-se que quando a progressividade é utilizada para fins meramente arrecadatórios existe a

denominada progressividade fiscal; entretanto, quando sua utilização revela-se como

regulatória, observe-se que se está diante da progressividade extrafiscal.

5.1. A progressividade do IPTU na Constituição Federal de 1988

Como já apontado no corpo deste trabalho, a progressividade enquanto técnica

tributária pode ser utilizada tanto para fins fiscais como extrafiscais.

Alexandrino (2009, p. 269) refere-se ao primeiro caso (fins fiscais) ponderando que

“a técnica é utilizada segundo a capacidade econômica”. No segundo (fins extrafiscais), “é

artifício utilizado para, por meio de exacerbação da carga tributária, obterem resultados

diversos, não arrecadatórios, como desestímulo à manutenção de propriedades rurais

improdutivas ou à subutilização de solo urbano”.

Coelho ao analisar a progressividade no IPTU assim pondera:

Pode-se dizer, sem medo, que o IPTU admite a progressividade estribado em duas matrizes:

a) a matriz da política urbana, cujo fundamento constitucional tem sede na disposição que acabamos de transcrever (o autor transcreve em sua obra o artigo 182 CF), em prol da ordenação urbanística das municipalidades (progressividade extrafiscal no tempo) e;

b) a matriz da capacidade do contribuinte que exsurge do artigo 145, § 1º, da CF. (COELHO 2009, p.347)

Da análise do texto constitucional e de textos de abalizada doutrina, observe-se que a

utilização da progressividade especificamente relativa ao IPTU ocorre tanto sob a ótica fiscal,

expressamente trazida após a EC 29/2000 (nos termos do artigo 156 § 1º, I) quanto no caráter

extrafiscal (art. 182 § 4º, II).

Esta última, alvo de nossas ponderações, é denominada de progressividade no tempo,

ou também chamada por alguns doutrinadores, a exemplo de Silva Junior (2008, p. 567) de

“progressividade sanção” e se revela como um dos importantes instrumentos materializadores

de viabilização para o cumprimento da função social da propriedade urbana, conforme

veremos no tópico seguinte.

5.2. A progressividade do IPTU no tempo como instrumento de garantia do

cumprimento da função social da propriedade

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O planejamento racional das cidades é política que deve estar presente em todo

município brasileiro. O Brasil (país com dimensões continentais) é formado hoje, segundo

dados do IBGE5 por 5.564 municípios e possui uma população essencialmente urbana, haja

vista que os dados oficiais6 remetem a um percentual de 84% dos habitantes vivendo na zona

urbana contra 16% vivendo no meio rural. Desse modo, planejar racionalmente o meio urbano

como forma de diminuir o crescimento desordenado, desestimulando a especulação

imobiliária e coibindo os vazios urbanos, que se revelam muitas vezes como depósitos de lixo

prejudicando a qualidade ambiental das cidades brasileiras torna-se uma questão salutar e

imprescindível para toda a sociedade.

Não é de hoje a preocupação com a racionalidade na ocupação do solo urbano,

perquirindo-se a consagração da função social da propriedade urbana.

O ordenamento jurídico Constitucional brasileiro, no título VII, ao estabelecer as

diretrizes da Ordem Econômica e Financeira, mormente no Capítulo II, prescreve que a

política de desenvolvimento urbano deve ter como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento

das funções sociais da cidade de forma a garantir o bem-estar dos que nela vivem.

Nesse contexto autoriza expressamente a utilização da tributação para consecução de

tal desiderato que se encontra fixada no artigo 182, § 4º, II, mediante a previsão do emprego

da progressividade no tempo para o IPTU. Assim, a progressividade no tempo se mostra

como relevante e necessário instrumento que contribui, viabiliza e garante o cumprimento da

função social da propriedade na medida em que os municípios foram legitimados a adotarem

a utilização gradual de alíquota, ano após ano, segundo algumas condições e critérios que no

tópico subsequente serão analisados mais detalhadamente.

Cabe realçar com o devido respeito aos doutrinadores que utilizam da denominação

“progressividade sanção” ao se referir à prevista para o IPTU, nos termos do artigo 182 § 4º,

II CF, a inadequação da designação, haja vista que como bem demonstra Alexandrino “esta

não deve ser entendida como penalidade, pois a subutilização não é ato ilícito e,

principalmente, o IPTU é tributo, não podendo, portanto, em nenhuma hipótese, constituir

sanção em sentido próprio” (2009, p. 271).

5 Disponível em: Informação retirada do site: http://www12.senado.gov.br/noticias/entenda-o-assunto/municipios-brasileiros.

(último acesso: 01.03.2013). 6 Disponível em: Informações retiradas do site: http://noticias.uol.com.br/censo-2010/populacao-urbana-e-rural/ (último acesso: 01.03.2013).

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5.3. Requisitos que legitimam a adoção da progressividade extrafiscal.

As condições que autorizam os municípios brasileiros a adotarem alíquotas

progressivas no tempo para os imóveis que se revelem em disritmia com a função social da

propriedade estão apostas no dispositivo constitucional do § 4º do art. 182 da CF.

Da leitura do artigo mencionado observa-se que se trata de uma norma de eficácia

contida, necessitando dessa feita de uma lei para sua regulamentação. A lei federal que

regulamentou o dispositivo constitucional foi o Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de

10.07.2001). Especificamente no artigo 7º desta lei está a previsão para os Municípios da

legitimação de adoção de alíquotas progressivas no tempo para o IPTU mediante a majoração

da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos, no caso de ocorrer o descumprimento das

condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o da Lei em comento. O artigo

quinto, por sua vez, refere-se à possibilidade de o Plano Diretor determinar as regras para o

parcelamento, edificação ou utilização compulsória dos imóveis localizados na zona urbana.

Interpretando os dispositivos regulamentadores, deve-se entender que é dever do

Município zelar pela adequada utilização do solo urbano de forma a cumprir a função social

da propriedade, caso verifique o seu não cumprimento devido à não edificação, subutilização

ou não utilização, pode o Município primeiramente promover o parcelamento ou a edificação

compulsória (inciso I do Art. 182, § 4º CF) e depois utilizar a tributação extrafiscal aplicando-

se as alíquotas progressivas para o IPTU (inciso II do Art. 182§ 4º CF) como forma indutora

de comportamento ao titular da propriedade imobiliária urbana a imprimir uma adequada

destinação ou utilização do imóvel que lhe pertence, sob pena de ver-se exigido a assumir

uma carga tributária considerável.

Nota-se pela leitura do artigo 7º do Estatuto da Cidade, precisamente no parágrafo 1º,

que a alíquota máxima a ser alcançada atinge o patamar de 15%, devendo-se observar

ademais que a alíquota subsequente não poderá exceder duas vezes o valor da alíquota

anterior. No parágrafo 2º do artigo mencionado autoriza o Município a manter a alíquota

máxima atingida pelo tempo necessário ao cumprimento da obrigação estipulada, no

parágrafo anterior já comentado, podendo ainda após cinco anos o município proceder com a

desapropriação do imóvel.

Abre-se neste momento um mote de discussão a respeito das disposições do artigo 7º

do Estatuto da Cidade, se não ofenderia o princípio de vedação de confisco, ante a permissão

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de fixação máxima em 15% da alíquota para o IPTU quando se persegue a adequada

utilização do imóvel urbano.

Se existe unicidade por parte da doutrina em reconhecer a tributação como

instrumento que viabiliza pela via finalística da extrafiscalidade a concretização do princípio

da função social da propriedade, não existe, entretanto, consenso quando a discussão reside

nos limites da faixa progressiva de alíquota para consecução desse desiderato. Nesse sentido a

doutrina se revela fragmentada.

Barreto é incisivo ao afirmar e defender que houve ofensa à Constituição quanto à

regulamentação dos dispositivos 182 e 183 da CF por parte da Lei nº 10.257 de 2001

(Estatuto da Cidade), conforme destaque:

Deveras, tal como estruturada, a progressividade no tempo do IPTU, prevista no Estatuto da Cidade, é manifestamente inconstitucional. Além de implicar absorção do valor da propriedade, configurando nítida exigência do tributo com efeito confiscatório [...] ainda que pareça que a intenção do legislador foi a melhor possível ao impor outras limitações à majoração da alíquota do IPTU no tempo, o fato é que a sistemática adotada esbarra no princípio constitucional que veda a utilização de tributo com efeito de confisco (BARRETO, 2010, p. 957).

Contrapondo-se ao pensamento defendido por Barreto, Coelho assim assegura:

A progressividade no tempo tem como único fundamento contrariedade ao plano diretor. Pode ser exercitada até a exaustão se o proprietário de solo urbano não-edificado, subutilizado e não-utilizado se mantiver teimoso e recalcitrante em promover o seu adequado aproveitamento. (COELHO 2009, p.348).

Posteriormente, o autor arremata seu pensamento, referindo-se à progressividade no

tempo, afirmando:

[...] dizer que a progressividade, aqui, tem que ser suave, não podendo atingir o exercício da propriedade, é desdizer a eficácia do remédio. Primeiro porque o princípio do não-confisco licencia a extrafiscalidade. Segundo porque, se a tributação não chegar às raias do insuportável, não há razão para a utilização da progressividade (como técnica extrafiscal), reduzida a mera figura de retórica. (COELHO 2009, p. 348)

Respeitando-se os que defendem o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei

regulamentadora dos dispositivos constitucionais 182 e 183, não há como deixar de comungar

com o pensar de Coelho (2009), não esquecendo, evidentemente que para a sua exigência há

que se ter observado os requisitos para utilização desse instrumento de coerção e,

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consequentemente, atingimento ou pelo menos busca, de uma política urbana eficaz e

eficiente.

Desse modo, para legitimar a adoção das alíquotas progressivas no tempo,

primeiramente faz-se necessário que os municípios aprovem seus planos diretores, haja vista

que é neste instrumento legislativo que se tem por definindo o que compreenderá solo urbano

não edificado, subutilizado ou não utilizado.

Observa-se, nos termos da Constituição, art. 182 § 1º, a obrigatoriedade de tal

instrumento para todos os municípios com população com mais de 20.000 habitantes. Assim,

o Plano Diretor torna-se a referência obrigatória para a consolidação e atualização do

conjunto de Leis de uma Cidade. Ocorre que em se tratando de estabelecer progressividade de

alíquotas à lei instituidora do plano diretor municipal é condição essencial para legitimar a

implementação das alíquotas progressivas no tempo, como pondera Enenberg, vejamos:

[...] se determinado município pretender utilizar-se dos instrumentos de coerção previstos no § 4º do artigo 182 da Constituição Federal (o parcelamento ou a edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação-sanção), então deverá ter elaborado um plano diretor, no qual estejam estabelecidas as exigências fundamentais de ordenação da cidade, que descumpridas pelo proprietário urbano, podem ensejar a utilização pela municipalidade de tais instrumentos urbanísticos especiais, desde que previstos em lei específica baseada no plano diretor. (ERENBERG 2008, p.145)

A título de informação, o Município de João Pessoa aprovou seu plano diretor

através da lei complementar nº. 03/1992 tendo recebido atualizações através da

Lei-Complementar n.º 04/1993 e adequações posteriores através da LC 54/2008. No Capítulo

I deste instrumento, seção III, intitulado “Da Função da Social da Propriedade Urbana”, prevê

o artigo 48, a possibilidade de Lei Municipal instituir a progressividade no tempo para o

Imposto Predial e Territorial Urbano. Por sua vez, no mesmo ano foi aprovada mediante Lei

Complementar Municipal de nº. 53/20087 – Código Tributário do Município de João Pessoa

– no qual dispõem no artigo 195 das alíquotas progressivas no tempo para os imóveis que se

encontrem como não edificados, subutilizados ou não utilizados, ou seja, estejam andando na

contramão da função social da propriedade. Registre-se por fim que nos termos do Plano

7 Disponível em http://www.cmjp.pb.gov.br/. Código Tributário Municipal – João Pessoa-PB – LC 53/2008. Art. 195. O imóvel que não atender à sua função social, seja não edificado, subutilizado ou não utilizado, nos termos do Plano Diretor do Município ou legislação dele decorrente, ficará sujeito, durante 5 (cinco) exercícios consecutivos, à aplicação das seguintes alíquotas progressivas: I - 2,0% (dois por cento) para o primeiro exercício; II - 4,0% (quatro por cento) para o segundo exercício; III - 6,0% (seis por cento) para o terceiro exercício; IV - 8,0% (oito por cento) para o quarto exercício; V - 10,0% (dez por cento) para o quinto exercício. Parágrafo único. Caso as exigências definidas no Plano Diretor ou em legislação dele decorrente não sejam atendidas nos cinco exercícios, manter-se-á a aplicação da alíquota limite, até que se atendam as referidas exigências. (último acesso em 01.03.2013).

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Diretor do Município de João Pessoa-PB, tal dispositivo fixou como alíquota mínima 2%

(dois por cento) e máxima o percentual de 10% (dez por cento).

Para finalizar, verifique-se que a implementação em um município brasileiro do

IPTU com fins extrafiscais deve-se primeiramente aprovar o Plano Diretor do Município e

posteriormente observar a edição de uma lei local na qual se definam as alíquotas

progressivas no tempo, tudo evidentemente observando e respeitando os princípios

constitucionais tributários além dos requisitos insculpidos no artigo 182 do texto

constitucional e das disposições contidas na Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade).

5. Considerações finais

Pretendeu-se com o presente trabalho demonstrar a importância da tributação não

apenas para fins arrecadatórios, mas também como instrumento indutor e viabilizador de

políticas públicas. Para tanto, demonstra-se em que consiste a função social da propriedade,

enaltecida na Constituição Federal de 1988. Desse modo, na tentativa de imprimir uma

abordagem didática, busca-se estabelecer as funções ou finalidades da tributação,

individualiza-se o imposto predial e territorial urbano, evidenciando suas principais

características e métodos de classificação, demonstra-se a compreensão do termo

progressividade, demonstrando que, hodiernamente, na Carta Magna, existe previsão para

aplicabilidade fiscal e extrafiscal quanto ao IPTU, afunila-se a análise para a progressividade

extrafiscal evidenciando os requisitos que os Municípios precisam observar para legitimar a

fixação e a exigência de alíquotas progressivas nas suas legislações. Por derradeiro,

reconhece-se que a tributação, quando utilizada para fins extrafiscais, se revela como uma via

indireta de atuação do Estado hábil à efetivação dos princípios constitucionais e garantidora

do cumprimento da função social da propriedade.

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O DIREITO À MORADIA COMO OBRIGAÇÃO ESTATAL NO

CONTEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO.

João Emilio de Assis Reis*

Resumo: Este trabalho é um ensaio teórico que busca refletir sobre a evolução dos direitos fundamentais sociais tendo como foco especial o direito constitucional à moradia. Partindo de uma reconstrução histórica do direito fundamental à moradia como direito humano no plano internacional, analisa a sua natureza com direito fundamental constitucional de cunho social, e seu contexto na constituição brasileira. Apresenta por fim reflexão a respeito da efetividade desse direito fundamental em razão das limitações enquanto norma constitucional programática e em razão das limitações de natureza orçamentária, que se apresenta como um óbice fático a efetivação de direitos fundamentais nos Estados contemporâneos.

Palavras-chave: Direitos Sociais. Moradia. Efetividade de direitos.

THE RIGHT TO HOUSING AS OBLIGATION IN BRAZILIAN

CONSTITUTIONAL LAW.

Abstract: This paper is a paper that seeks to reflect on the evolution of fundamental social rights focusing on particular constitutional right to housing. From a historical reconstruction of the fundamental right to housing as a human right in international level, analyzes its nature with fundamental constitutional right of a social nature, and its context in the Brazilian constitution. Displays finally reflection about the effectiveness of this fundamental right because of limitations while programmatic constitutional norm and because of the limitations of economic and budgetary nature, which presents itself as an obstacle to the accomplishment factual fundamental rights in contemporary states.

Key-words: Social Rights. Housing. Effectiveness of Rights.

1. Introdução.

O presente estudo busca analisar o direito à moradia como um Direito Fundamental

Constitucional, sua eficácia ou possibilidades de concretização no ordenamento jurídico

brasileiro. A moradia passa a ser entendida como direito humano a partir do reconhecimento

do suprimento de necessidades mínimas ao ser humano e a partir da transformação do modelo

de Estado Liberal, vigente a partir da revolução francesa, em um modelo de Estado Social,

que positiva essas necessidades mínimas como direito de seus cidadãos, para além das

* João Emilio de Assis Reis. Doutorando em Direito pela PUC-SP e Mestre em Direito Privado pela UNIFLU (RJ). Professor do Centro Universitário Adventista de São Paulo.

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chamadas liberdades públicas ou deveres negativos. Guardadas algumas peculiaridades, esse

é o caminho percorrido pelo Estado brasileiro.

O reconhecimento do direito à prestações de cunho sócio-econômico perante o Estado

implica em discutir a efetividade desses direitos, especialmente em situações como a do Brasil

em que a desigualdade social acompanha a formação histórica, e que o Direito Constitucional

tem a dignidade humana como princípio e tutela Direitos Sociais. Por outro lado, tem-se a

dificuldade dos Estados hoje em implementar programas sociais, inclusive com relação ao

Direito de Moradia, em razão de problemas de natureza orçamentária. Assim, a importância

de se verificar e discutir a efetividade de direitos sociais nasce justamente da necessidade

social dessa efetivação, principalmente partindo-se do pressuposto de uma Constituição como

a nossa que mais do que garantias, trás em seu bojo um modelo de sociedade a ser construído

e alcançado.

Sob esse pano de fundo, desenvolve-se o presente ensaio teórico, baseado em pesquisa

bibliográfica. Numa primeira parte, analisa-se a evolução histórica e o reconhecimento da

moradia como um direito humano e como direito fundamental e seus fundamentos. Num

segundo momento analisa-se a moradia contextualizada como um direito fundamental de

cunho social no ordenamento jurídico brasileiro para, finalmente, proceder-se reflexão sobre

sua efetivação e as possibilidades de exigência, perante o Estado Brasileiro.

2. Direito à moradia: notas históricas.

Situar um instituto ou categoria jurídica no tempo, percebendo seu nascimento e

evolução é premissa para sua compreensão. A norma jurídica não pode ser completamente

compreendida, se não compreendido o contexto histórico no qual foi produzida e que esse

processo criativo da norma fez-se em razão de um contexto futuro, ainda que hipotético. Se o

homem é um ser histórico, que transforma a natureza e cria um mundo cultural para

sobreviver, o direito necessariamente também o é, como fruto da genialidade humana.

A determinação do sentido das normas, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos constitui a tarefa da dogmática hermenêutica. Trata-se de uma finalidade prática, no que se distingue de objetivo semelhantes das demais ciências humanas. Na verdade, o propósito básico do jurista não é simplesmente compreender o texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo o texto normativo em presença dos dados atuais do problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer,

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mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo de comportamento (FERRAZ JÚNIOR, 2008, 221)

De forma que para esse processo de busca de sentido para a norma jurídica, tem entre

os seus métodos, o histórico, em que se busca seu sentido na sua gênese ou evolução, que

fornecerão ao interprete da norma jurídica importante subsídio para situar o jurista e, em

conjunto com outras técnicas hermenêuticas lhe permitirá encontrar as respostas corretas na

aplicação da norma jurídica. Assim, não é possível falar-se em norma jurídica, desprendida de

um contexto qualquer.

Além disso, compreendida a moradia no âmbito dos direitos humanos, deve ser

compreendida necessariamente na característica histórica desses direitos. “Por mais

fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,

caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de

modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. (BOBBIO, 2004, 25).

A questão da moradia é objeto de estudo nas mais variadas ciências, dada a

compreensão da sua essencialidade na vida do homem. Essa essencialidade se dá por diversos

motivos, desde os motivos mais simples que se pode imaginar como a necessidade do homem

primitivo de um refúgio para se proteger dos animais ferozes e das condições do tempo, como

a questão da idéia do homem como um ser cultural, que transforma e recria o mundo à sua

volta para sobreviver. A questão da moradia como a necessidade de ter um espaço próprio,

um “lugar pra ficar”, é própria da essência humana, seja pela necessidade de um ponto de

referência que permite a localização e individualização de certa ou certas pessoas, por

questões de saúde, ou mesmo pela condição de realizadora de outros direitos, como o Direito

ao Sossego, à proteção da intimidade, à segurança e mesmo à liberdade, visto que a liberdade

pressupõe um mínimo de espaço para a individualidade. Daí a sua compreensão unânime

como Direito Humano, não só por representar em si uma condição essencial para uma vida

humana digna, como em razão da sua conexão com tantos outros direitos também

considerados como essenciais para o ser humano, como o seu reconhecimento e incorporação

pelos diversos ordenamentos jurídicos, passando o amplo acesso à moradia como objetivo de

sociedades politicamente organizadas e como direito dos cidadãos exercitáveis contra os

Estados.

Embora se possa encontrar como exceções a Constituição do México (1917) e a

Constituição da República de Weimar (1919), nas origens do constitucionalismo social, o

direito à moradia passa por um movimento de reconhecimento histórico paulatino, no plano

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internacional primeiramente. Ao ser reconhecido como um direito humano básico e exigível

dos Estados é continuamente conformado e reafirmado por diversos documentos que lhe dão

densidade e contornos, para só então ser reconhecido pelos ordenamentos jurídicos internos

dos Estados.

“Os organismos internacionais elaboraram o conceito para o que se pode identificar

como direito à moradia, com base na defesa de um adequado padrão de vida humano que toda

pessoa tem direito para si e para seus familiares”. (MELO, 2010, 37)

Isso se dá em razão da própria gênese do constitucionalismo moderno se dar sob o

paradigma do Estado Liberal, fruto da luta das classes burguesas desprovidas de poder

político contra o Estado absolutista, e que por isso preocupou-se apenas com os direitos

políticos e com os direitos de liberdade.

A constituição, que não podia evitar o Estado, ladeava, contudo, a Sociedade, para conservá-la por esfera imune ou universo inviolável de iniciativas privatistas: era uma Sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida de toda uma consciência anticoletivista. À constituição cabia tão-somente estabelecer a estrutura básica do Estado, a espinha dorsal de seus poderes e respectivas competências, proclamando na relação indivíduo-Estado a essência dos direitos fundamentais relativos à capacidade civil e política dos governados, os chamados direitos de liberdade. (BONAVIDES, 2004, 229)

O primeiro documento de grande repercussão internacional a referir-se a moradia,

foram as cartas de Atenas, elaboradas no contexto do Congresso Internacional de Arquitetura

e Urbanismo em 1933. Muito embora não seja um documento de repercussão jurídica, refere-

se às funções sociais que uma cidade deve proporcionar, entre elas “habitar”. Se esse

documento não tem repercussão jurídica por si só, acaba por criar a noção de cidade como

função social, passando-se a compreensão do espaço urbano mais que simplesmente um

aglomerado de pessoas e edificações. O espaço urbano passa a ter funções a realizar.

Conforme a Famosa Carta de Atenas “o urbanismo é a ordenação dos lugares e dos locais

diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e espiritual em

todas as suas manifestações, individuais e coletivas” (SILVA, 2006, 31). Essa noção de

função social da cidade – incorporada posteriormente pela Constituição Federal de 1988 entre

as diretrizes da política urbana - guarda o mérito inicial de compreender a essencialidade da

moradia, como premissa para o desenvolvimento do ser humano em suas potencialidades.

Estabelece-se como uma espécie de marco teórico inicial para a discussão da importância da

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moradia participando do processo que terminará por reconhecê-la como objeto de proteção

dos direitos humanos.

A primeira previsão jurídica específica sobre moradia que para nós tem importância

remonta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece em seu art. XXV

“Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e

bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e serviços sociais

indispensáveis.

Ao lado do referido dispositivo, o inciso XII da referida Declaração Universal prevê a

tutela do lar do indivíduo dispondo que “Ninguém será sujeito a interferências em sua vida

privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra ou

reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.

Muito embora o dispositivo citado refira-se ao “lar” do indivíduo de forma indireta,

reconhece-o direito a ele de certa forma, como pressuposto para o direito à vida privada sem

interferência indesejadas ou abusivas.

Em 1966, foi aprovado, também no âmbito das Nações Unidas, o Pacto Internacional

dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que só entra em vigência em 1976, em cujo art.

11 fica estabelecido que “Os Estados Partes no presente pacto reconhecem o direito a toda

pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive alimentação,

vestimenta e moradia adequada, assim como uma melhoria contínua de suas condições de

vida”.

Em 1976, tem-se a realização de importante conferência internacional para debate do

tema em Vancouver, no Canadá, denominada Conferência das Nações Unidas sobre

Assentamentos Humanos – HABITAT I. Nesta conferência discutiu-se a necessidade de

adequada habitação para todos e o desenvolvimento de assentamentos humanos sustentáveis

em um mundo em urbanização estabeleceram-se metas a serem atingidas pelos signatários. A

seção III, Capítulo II, estabelece que

Adequada habitação e serviços são um direito humano básico, pelo qual coloca como obrigação dos Governos assegurar a realização destes para todas as pessoas, começando com assistência direta para os menos avantajados através de programas de ajuda mútua de ações comunitárias, os Governos devem se empenhar para remover todos os obstáculos que impeçam a realização dessas metas.

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Também no plano do Direito Internacional Particular Americano, destaque-se a

Convenção Americana de Direitos Humanos, que culmina com a elaboração do Pacto de San

José da Costa Rica. Esse documento, muito embora não enuncie de forma específica qualquer

direito social, cultural ou econômico, determina em seu art. 26 que os Estados signatários

alcancem, de forma progressiva, a plena realização desses direitos por meio de medidas

legislativas ou outras que se mostrem apropriadas.

A declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, embora não se refira a

direitos sociais específicos, tem como ponto de partida o reconhecimento de que o

desenvolvimento é um processo econômico, social, cultural e político abrangente, que visa ao

constante incremento do bem estar de toda a população e de todos os indivíduos, com base em

sua participação ativa, livre e significativa no desenvolvimento e distribuição justa dos

benefícios daí resultantes, afirmando o direito ao desenvolvimento como um direito humano

inalienável.

Esse destaque ao Direito Internacional com respeito ao Direito à moradia é aqui

cabível, justamente pelo reconhecimento do Direito à moradia como um direito Humano no

plano do Direito Internacional, dado o reconhecimento da Organização das Nações Unidas, e

por estabelecer a vinculação jurídica dos Estados membros, a quem cabe o dever de assegurá-

lo. Muito embora seja possível perceber em diversos momentos o estabelecimento ou a

tentativa de estabelecer-se políticas de acesso à moradia, isso se dá de forma muito incipiente,

limitada e pontual, sem jamais se ter uma política de acesso à moradia visto como algo

exigível, de acesso amplo e democrático, muito mais ligada a idéia de voluntarismo político

do que como um direito exigível.

Assim, esses tratados do qual a República Federativa do Brasil é signatário†, tem como

mérito inicial vincular o Estado brasileiro à moradia como um direito oponível e exigível por

parte de seus cidadãos. Algo que no plano da legislação interna só irá ocorrer com a Emenda

Constitucional No. 26 de 14 de fevereiro de 2000, que insere o Direito à Moradia como um

direito fundamental social, passando a constar do art. 6º do texto constitucional. Não se pode

contudo negar importância a esses tratados, principalmente por ser reconhecido

† O Brasil é signatário da Carta das Nações Unidas desde a sua promulgação em 1948, da Declaração sobre o

Direito ao desenvolvimento desde 1986, e do Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional de

Direitos Sociais, Econômicos e Culturais desde 1992.

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expressamente status a direitos e garantias que o Brasil incorporar por tratado internacional

(Constituição Federal, art. 5º. § 2º).

A primeira carta política a tratar a moradia como um direito constitucional é a

Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos de 1917, que no Título I, Capítulo I, que

trata dos Direitos Humanos e suas garantias, menciona o Direito à moradia no art. 4º ao dispor

que toda família tem direito a desfrutar de uma moradia digna e adequada e que a lei

estabelecerá os instrumentos e apoios necessários a fim de alcançar tal objetivo‡. Assim, a

Moradia tem cunho constitucional, tratando-se por disposição expressa de norma

programática, já que sua eficácia dependia de norma constitucional regulamentadora que

viesse efetivar o Direito. Cabe observar contudo, que a mesma constituição estabelece como

“base” da Seguridade Social, a disponibilização aos trabalhadores habitações baratas para

aquisição ou locação e determina a criação de um fundo nacional de habitação que

proporcione acesso a crédito barato e suficiente para aquisição de moradias adequadas.§

Da mesma forma a Constituição da República de Weimar (1919) também reconhece a

importância da moradia em seu artigo 155 dispõe que o fracionamento e o uso do solo serão

controlados pelo Estado de forma a impedir abusos e a permitir a todo alemão uma morada

saudável e a todas as famílias alemãs, em especial as mais numerosas uma morada e um

patrimônio que atenda suas necessidades.

As nossas seis constituições anteriores nada mencionam sobre o direito à moradia. A

Constituição Imperial de 1824 representa o modelo de constituição da época, em feições

liberais, preocupada com as liberdades públicas. A Constituição de 1891, mantém a mesma

feição liberal, inspirada principalmente no constitucionalismo americano, preocupando-se

quanto a direitos fundamentais também com as liberdades públicas. É a partir da Constituição

de 1934, seguida pela Constituição de 1946 e 1967 é que se pode passar a perceber a mudança

de feições no constitucionalismo brasileiro que passa a ter gradativamente feições sociais.

Pode-se perceber essa mudança através do instituto da propriedade que, a partir dessas

Constituições passa a ser condicionada a interesses sociais e coletivos (REIS, 2006, 82-83) ou

‡ Texto literal: “Toda familia tiene derecho a disfrutar de vivienda digna y decorosa. La Ley establecerá los

instrumentos y apoyos necesarios a fin de alcanzar tal objetivo” § Se proporcionarán a los trabajadores habitaciones baratas, en arrendamiento o venta, conforme a los

programas previamente aprobados. Además, el Estado mediante las aportaciones que haga, establecerá un

fondo nacional de la vivienda a fin de constituir depósitos en favor de dichos trabajadores y establecer un

sistema de financiamiento que permita otorgar a éstos crédito barato y suficiente para que adquieran en

propiedad habitaciones cómodas e higiénicas, o bien para construirlas, repararlas, mejorarlas o pagar pasivos

adquiridos por estos conceptos.

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no estabelecimento de direitos constitucionais sociais de caráter trabalhista. No entanto, a

garantia de acesso à Moradia não recebe qualquer menção do direito brasileiro até o texto

constitucional atualmente em vigência.

3. Os Direitos Sociais no texto Constitucional.

O direito à moradia foi inserido no texto Constitucional por força da Emenda

Constitucional No. 26 de 2000 no Titulo II, que trata dos direitos fundamentais. Este título

subdivide-se em cinco capítulos: dos direitos individuais e coletivos, dos direitos sociais, dos

direitos à nacionalidade e dos direitos políticos e partidos políticos, de forma que a Moradia

passou a constar do Capítulo II, que trata dos Direitos Sociais.

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência aos desamparados, na

forma desta Constituição. (art. 6, Constituição Federal).

Direitos Sociais, prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo de direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício de sua atividade. (SILVA, 2005, 286).

Os direitos Sociais surgem no contexto do constitucionalismo social. Aquele Estado

surgido das revoluções liberais do século XVIII preocupava-se basicamente com as liberdades

públicas, com o arbítrio do soberano e por isso, tinha como função básica garantir a liberdade

individual, mantendo a atuação do poder público eqüidistante da esfera privada e garantir a

igualdade formal, no sentido de que o poder público trata-se todos como iguais. No entanto,

essas conquistas pouco fizeram pela grande massa de despossuídos, de forma que pouco mais

de um século depois de surgido, o modelo de Estado Liberal entrava em crise.

Os Estados europeus se encontravam em profundas desigualdades sociais nos séculos

XVIII e XIX, desigualdades que só se acirraram na Revolução Industrial, ao criar mais

miséria de um lado, com pessoas que trabalhavam em condições sub-humanas e de outro mais

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concentração de riqueza. A instabilidade social que se seguiu termina por permitir o

reconhecimento de direitos sociais. Esses, nascem de concessões, diante do temor provocado

pelas revoluções comunista e mexicana, pelo sindicalismo nascente que criavam riscos

derrubada dos regimes liberais então vigentes.

Desta forma, surgem os Direitos Sociais diante da compreensão de que o Estado deve

atuar minimamente para garantir condições mínimas para os seus cidadãos, e que a mera

garantia das liberdades públicas está aquém da função estatal. O Estado, que no liberalismo se

colocava numa posição relativamente eqüidistante pelas declarações de Direitos das

Constituições Liberais passa a ser imprescindível para a realização dos Direitos Sociais e

Econômicos. Os direitos sociais são, sob essa perspectiva, fins da ação do Estado, e não

limites desta ação, como o caso das liberdade públicas.

obedecem, primordialmente, ao princípio da solidariedade (ou fraternidade, no tríptico da Revolução Francesa), a qual se impõe, segundo os ditames da justiça distributiva ou proporcional, a repartição das vantagens ou encargos sociais em função das carências de cada grupo ou estrato da sociedade (COMPARATO, 2004, 335).

Muito embora todo esse processo histórico-conjuntural de consolidação dos direitos

sociais, é preciso cuidado para que se vincule esses direitos a demandas sociais e econômicas

de determinado contexto, atribuindo-lhes eventual função reparadora de desigualdades

históricas ou função assistencial. Os direitos sociais devem ser compreendidos na sua essência

de direitos fundamentais, como um conjunto de direitos essenciais e inafastáveis

constitutivos da personalidade e da dignidade humana, tanto quanto os direitos civis e

políticos, e tão inarredáveis quanto estes.

Desnecessário enfrentar aqui suposta distinção entre Direitos Fundamentais e Direitos

Sociais. Essa distinção, que é um movimento típico de resistência do liberalismo, renitente em

reconhecer o mesmo status das velhas liberdades públicas aos Direitos Sociais, torna-se

claramente obsoleta e mesmo equivocada, quando percebe-se o lugar reservado a esses

direitos na Constituição como Direitos Fundamentais. Da fundamentalidade desses direitos

decorre especial status de proteção, tanto em sentido material como em sentido formal. Da

fundamentalidade formal resulta da compreensão dos Direitos fundamentais como ápices de

nosso ordenamento jurídico e nesse sentido cuidam-se de direitos de natureza supralegal.

Além disso, encontram-se submetidos aos limites materiais e formais de reforma da

constituição e, por derradeiro, cabe salientar que são de aplicação imediata (Constituição

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Federal art. 5º. § 1º.). Da fundamentalidade material, decorre serem os direitos fundamentais

elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a

estrutura básica do Estado e da Sociedade. (SARLET, 2011, 75).

Essas decisões, ou opções políticas do Estado, no caso da proteção que a Constituição

brasileira concede aos direitos sociais são inequívocas, principalmente se observado o

contexto constitucional, do qual consta verdadeira sensibilidade social, posto que o objetivo é

uma sociedade mais justa e menos desigual, ao invés da idéia tradicional e ineficaz de

simplesmente se garantir as liberdades. Essa leitura do texto constitucional é consistente,

posto que conforma valores como os que emanam do princípio da dignidade da pessoa

humana, fundamento da República, e ainda com outros valores e objetivos a se alcançar,

estabelecidos na Constituição, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3,

I); “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art.

3, III); “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, sem preconceitos de origem,

raça, sexo, cor, idade, e quaisquer formas de discriminação” (art. 3, IV).

Daí percebe-se a importância da construção teórica que precede a positivação de

Direitos Sociais e do caso específico do Direito à Moradia. Toda a Construção teórica e a

evolução paulatina do reconhecimento dos Direitos Sociais e do Direito à moradia no plano

internacional, permitem a própria conformação do direito, a explicitação de sua

essencialidade, e proporciona a sua fundamentação quando da sua efetivação, o que, aliás é

pressuposto da efetivação de qualquer direito na tradição ocidental.

A positivação dos direitos sociais, por outro lado, é o que garante a sua eficácia

social. O reconhecimento de Direito como essencial depende do seu reconhecimento jurídico,

como tal. Num estado com princípios democráticos, a proteção jurídica de algo que se

entenda por direito resulta de um processo de legitimação indispensável. Esse processo de

legitimação em nível constitucional, é que torna o direito exigível explicitando sua origem

como escolha da vontade coletiva, nos temos da Constituição, cabendo ao Estado

Democrático, concretizador dessa vontade, instrumentalizá-lo.

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4. A efetividade dos Direitos Sociais e as obrigações do Estado brasileiro e a

obrigação do Estado Brasileiro concernentes ao Direito de Moradia.

Os direitos sociais, assim como os demais direitos fundamentais exigem distintos

níveis de obrigações obrigação de respeitar, de proteger e de satisfazer direitos. O texto

constitucional, dispõe, conforme já afirmado retro, que as normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais tem aplicação imediata. No entanto, parte da doutrina, tem uma visão

restritiva do disposto no art. 5, § 1º da Constituição Federal, de forma que a aplicabilidade

imediata caberia apenas aos direitos e garantias dispostos no art. 5º da Constituição. Não

obstante a localização topográfica do dispositivo, a literalidade do parágrafo aponta para todos

os direitos e garantias fundamentais, e não apenas para os direitos individuais e coletivos do

art. 5º. No entanto, os direitos que exigem prestações positivas do Estado, através da

execução de políticas públicas, são concebidos tradicionalmente como normas de eficácia

limitada, cuja aplicabilidade é mediata e de eficácia reduzida. No entanto a emergência cada

vez maior um significativo número de normas de caráter programático, e o próprio risco de

esvaziamento de sentido dos direitos sociais como direitos constitucionais, vem provocando

uma ruptura com a teoria clássica, no sentido de conferir, pelo menos em certa medida,

aplicabilidade direta e imediata. Não tem sentido, pelo próprio significado histórico do Direito

Constitucional, não atribuir um mínimo de eficácia imediata a um direito positivado na

Constituição, se a Constituição surge justamente como um remédio ao arbítrio, submeter um

direito positivado na Constituição ao voluntarismo político significa privá-lo do seu caráter de

direito constitucional fundamental.

Em razão disso, leciona Canotilho

“devido a essa ruptura à doutrina clássica, pode e deve-se dizer que hoje não há normas constitucionais programáticas. É claro que continuam a existir normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que “ impõem uma actividade” e “dirigem” materialmente a concretização constitucional. Mas o sentido destar normas não é o que lhes assinalava tradicionalmente a doutrina: “simples programas, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, “aforismos políticos”, “promessas”, “apelos ao legislador”, “programas futuros”, juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às “normas programáticas” é reconhecido hoje valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição. Mais do que isso: eventual mediação da instância legiferante na concretização das normas programáticas não significa a dependência deste tipo de normas de interposição do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade de intervenção dos órgãos legiferantes (CANOTILHO apud SAULE JÚNIOR, 1999, 93).

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Daí decorre a posição hoje mais aceita pela doutrina, de que o disposto contido no art.

5, § 1º se trata de uma norma de cunho inequivocamente principiológico, um princípio

impositivo contendo um comando de maximização dos direitos fundamentais, estabelecendo o

dever dos órgãos estatais de conceberem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais.

Isso significa, em última análise, que, no concernente aos direitos fundamentais, a aplicabilidade imediata e eficácia plena assumem a condição de regra geral, ressalvadas exceções que, para serem legítimas, dependem de convincente justificação à luz do caso concreto, no âmbito de uma exegese calcada em cada norma de direito fundamental e sempre afinada com os postulados de uma interpretação tópico-sistemática. (SARLET, 2011, 271)

Assim, o Estado brasileiro tem obrigação de garantir minimamente o direito a

moradia, de forma que ninguém possa ser privado de direito ou garantia sob o argumento de

estar ele previsto em norma programática. Aceitar simplesmente esse argumento significa

negar a própria função do direito fundamental e o processo histórico por meio do qual ele se

desenvolveu desde sua gênese. É claro que a formulação e implementação de políticas

públicas é, primariamente, uma atribuição do Legislativo e do Executivo, cujos membros são

escolhidos democraticamente nos termos da própria constituição, mas negar-se eficácia aos

direitos fundamentais simplesmente por dependerem de norma infraconstitucional integradora

é submeter os direitos fundamentais ao voluntarismo político e dessa forma privá-los de sua

própria essência.

O maior entrave que é colocado a efetivação de todos os direitos de cunho

prestacional por parte do Estado, é a questão do custo desses direitos. Sob os argumentos de

que os direitos sociais dependem de uma economia forte e de que o custo dos direitos sociais

superam os recursos orçamentários, cria-se a chamada “reserva do possível”, que busca

legitimar por meio de ilusória racionalidade a efetivação dos direitos sociais prestacionais aos

recursos orçamentários. Nesse sentido, a moradia se colocaria como um dos direitos de maior

custo, principalmente em razão da forma historicamente excludente com que o acesso à terra

se dá no Brasil. Observe-se ainda que, acesso à terra, não significa necessariamente moradia,

mas apenas a superação de um provável obstáculo. O acesso a moradia pressupõe o espaço,

mas demanda ainda uma série de outras intervenções estatais no sentido de garantir moradia

em condições adequadas, e por isso, muito mais caro.

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Mas não se pode estabelecer uma relação de dependência entre a escassez de recursos

orçamentários e a efetivação de direitos. Afinal, todo o aparato estatal tem um custo, inclusive

quando é colocado em funcionamento para garantir os chamados direitos de defesa. Assim,

“estabelecer uma relação de continuidade entre a escassez de recursos públicos e a afirmação

de direitos acaba resultando em ameaça a existência de todos os direitos” (BARRETO, 2003,

121).

Aqui se coloca então a questão que parece fundamental. É possível a uma pessoa

compelir o poder público a alguma prestação material que venha a lhe assegurar o direito a

uma moradia digna?

A moradia é um direito social, e como tal se encontra enumerada expressamente entre

os direitos fundamentais, por outro lado, é compreendida no contexto de uma norma

constitucional programática, exigindo integração por normal infraconstitucional para que

possa ser concretizada, o que não nega, e nem pode, a fundamentalidade dos direitos ali

estabelecidos. De outro lado, tem-se a questão da limitação orçamentária, que se não é capaz

de gerar verdadeiro argumento jurídico, apresenta-se como obstáculo fatal fático para a

eficácia dos direitos sociais.

Ora, sobre este último ponto, deve-se colocar a questão financeira do Estatal não deve

se sobrepor aos direitos fundamentais. A sua condição de fundamentais o coloca no centro do

ordenamento jurídico, a submeter toda a organização sócio-política da república por sua

condição de essenciais à vida humana, de forma que se os recursos não são suficientes para

atender os direitos fundamentais, devem ser tirados de outras áreas onde não a essa relação

essencialidade para a vida humana.

se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde. Um relativismo nessa área pode levar a “ponderações” perigosas e anti-humanistas do tipo “porque gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais? (KRELL, 2002, 53)

A dignidade humana, como princípio fundamental da república, deve funcionar como

vetor no sentido de se garantir um mínimo de efetivação dos direitos sociais, inclusive o

direito à moradia, como um meio de garantir um mínimo necessário à própria existência

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humana, a sobrevivência do indivíduo com um mínimo de dignidade. Se a limitação

orçamentária do poder público se afigura como uma realidade com a qual o direito tem que

lidar, isso não quer dizer por outro lado que os direitos sociais devem ser colocados como

reféns do orçamento ou efetiváveis quando houver sobras de caixa. A maximização dos

direitos fundamentais exige no mínimo posturas de todo o aparato estatal no sentido de

garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais e, garantir sua efetivação como

prioridade dada a sua fundamentalidade.

No que tange a questão da eficácia imediata dos direitos fundamentais, o fato das

normas constitucionais programáticas não regularem imediatamente um objeto, mas

preestabelecerem a si mesmo um programa de ação com respeito ao próprio objeto e se

obrigando a não se afastar dele sem um motivo, infere que o direito à moradia impõe a poder

público o dever de atuar positivamente em sua promoção e proteção enquanto meta

constitucionalmente estabelecida, no sentido de proporcionar moradia digna a toda a

população. O fato da norma ser estabelecida como programática, não implica em perda de

fundamentalidade pelo direitos sociais. Se por um lado tem eficácia eventualmente limitada,

por outro possibilitam inúmeros caminhos de proteção, ou mesmo, a criatividade do poder

público em fomentar o direito ali assegurado.

Assim, a se considerar exigível não o direito a moradia propriamente, mas condutas

estatais inequívocas, no sentido de promover o direito a moradia.

No caso brasileiro, pode-se considerar nesse contexto, as flexibilização das regras, e

dessa forma facilitação, da aquisição de propriedade pela usucapião a partir da Constituição

Federal de 1988, permitindo a aquisição por posse ininterrupta e justa, num prazo de 5 anos

de aquisição de imóvel para moradia própria e da família.

No Estatuto da Cidade, pode-se destacar a edição do Estatuto da Cidade, Lei No.

10.257/2001, onde em mais um passo importante o legislador admitiu a figura da Usucapião

Coletiva Urbana, instrumento de grande importância para regularização de assentamentos

habitacionais urbanos informais.

Mais recentemente, houve a implementação do programa governamental “Minha

Casa, Minha vida”, instituído pela Lei 11.977 de 2009, através do qual o governo federal

criou alguns mecanismos facilitadores da aquisição da casa própria.

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São importantes avanços em termos de concretização de direitos fundamentais,

podendo ser considerados inclusive sem parâmetros em nossa história constitucional, por

outro lado, na medida em que se atribui a característica universalidade aos direitos

fundamentais, é necessário que o aparato estatal tome medidas mais amplas, no sentido de

permitir a todos o direito de desfrutar de moradia condizente com a dignidade havida em todo

ser humano, especialmente quando trata-se da questão no âmbito do Brasil, um pais marcado

por desigualdades sociais históricas.

5. Considerações finais.

Os direitos fundamentais sociais, assim como os demais direitos fundamentais e

direitos do homem, surgem de um contexto histórico próprio, a partir do momento em que se

passou a compreender ao homem como essencial não apenas as liberdades e direitos políticos,

mas também outros direitos, de natureza social e econômica para que pudesse desenvolver

suas potencialidades enquanto ser humano com dignidade. Nesse contexto de direitos sociais,

encontra-se a moradia, compreendida como essencial ao ser humano, não só no âmbito da

construção histórica dos direitos humanos como dos direitos fundamentais constitucionais.

Assegurada na constituição de 1988, o direito a moradia enfrenta o dilema dos

direitos fundamentais sociais, normalmente de origem prestacional: a efetivação. Essa

efetivação encontra óbice na própria doutrina constitucionalista, com dificuldades em

identificar a mesma função e status nos direitos de cunho social, econômico e cultural

daqueles direitos fundamentais primariamente reconhecidos, as chamadas liberdades.

De fato, em um contexto constitucionalista que empresta ampla tutela à dignidade

humana, imprescindível se falar também em direitos fundamentais, dentre eles a moradia.

Embora se compreenda as limitações dos direitos fundamentais de cunho prestacional, sejam

aquelas colocadas pelo próprio ordenamento jurídico, sejam aquelas de ordem fática,

relacionadas ao custo financeiro da efetivação de direitos, é necessário que se preserve um

núcleo fundamental nos direitos sociais, de forma que eles mantenham sua condição de

fundamentos básicos da constituição e não se tornem reféns do voluntarismo político o que

desnaturaria a sua própria condição de direitos fundamentais.

Observa-se que, a compreensão atual do direito à moradia como norma programática,

se não nos permite dizer que ele vem sendo efetivada claramente, vez que direitos

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fundamentais tem entre suas características a universalidade, e muito se faz necessário para

que todos os brasileiros tenham moradia digna, por outro lado, não é possível dizer que o

Estado brasileiro vem descumprindo com suas obrigações para a efetivação do direito.

Bibliografia:

BARRETO, Vicente Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais. Direitos fundamentais

sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Ingo Wolfgang Sarlet

(Organizador). Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. Ed., São Paulo: Campus, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 14. Ed., São Paulo: Malheiros, 2004.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. Ed., São

Paulo: Saraiva, 2004.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. Ed., São Paulo:

Atlas, 2008.

KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os

(des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Fabris, 2002.

MELO, Lígia. Direito à moradia no Brasil. Política urbana e acesso por meio da

regularização fundiária. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Constitución política de los estados unidos

mexicanos. Publicada no Diário Oficial da Federação em 5 de fevereiro de 1917. Camara de

Diputados del H. Congreso de la Unión. Ciudad de Mexico, 2012.

REIS, João Emilio de Assis. Propriedade privada e preservação ambiental. Dissertação.

Mestrado em Direito. Centro Universitário Fluminense, Campos dos Goytacazes, 2006.

SARLET. Ingo Wolfgang Sarlet. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos

direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. Ed., Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2011.

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SAULE JÚNIOR. O direito à moradia como responsabilidade do estado brasileiro. Direito à

cidade. Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. Ed., São Paulo:

Malheiros, 2005.

_______. Direito urbanístico brasileiro. 4. Ed., São Paulo: Malheiros, 2006.

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O DIREITO À PARTICIPAÇÃO POPULAR E OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS:

A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO PREVISTA PELA LEI DE

RESPONSABILIDADE FISCAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS

PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA PARA A COPA DO MUNDO DE FUTEBOL DE

2014

THE RIGHT TO POPULAR PARTICIPATION AND THE MEGA SPORTS EVENTS: THE

(IN)EFETICTIVENESS OF PARTICIPATION PROVIDED BY THE LAW OF FISCAL

RESPONSIBILITY IN THE IMPLEMENTATION OF PUBLIC POLICY

INFRASTRUCTURE FOR THE WORLD CUP OF FOOTBALL IN 2014

Alex Feitosa de Oliveira1

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a efetividade da participação popular prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como em outras normas de nosso ordenamento, no caso de orçamentos para a construção de obras que visam a estruturação das cidades brasileiras para os megaeventos esportivos vindouros, em especial a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Procuraremos estudar qual a efetiva participação da população diretamente afetada na definição orçamentária e no projeto de tais obras, não deixando também de verificar se tal participação, ao menos é garantida quando da concretização das obras. Dentro deste contexto, demonstrar-se-á a inexistência de participação inclusive nos processos de desapropriação de propriedades privadas para construção de obras de infraestrutura para os megaeventos, uma etapa necessária para a realização das obras, bem posterior à etapa orçamentária aqui discutida. Demonstrar-se-á, diante da análise de uma obra específica (VLT2 na cidade de Fortaleza) a inexistência da participação, desde a elaboração orçamentária até a execução das políticas públicas. Palavras-chave: Lei de responsabilidade fiscal, participação popular, orçamento, megaeventos.

ABSTRACT

This work has as main objective analyse the efectiveness of the popular participation provided by the Law of Responsability Fiscal, as well others norms of our ordering, in the public budgets for construction of works aimed at structuring of Brazilian cities for the upcoming mega sports events, especially the World Cup Football in 2014. This Study which will seek the active participation of the population directly affected in setting budget and design of such

1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Defensor Público Federal titular do 5º ofício cível na Defensoria Pública da União em Fortaleza/CE. 2 A sigla VLT irá ser utilizada neste trabalho para designar as obras do Veículos Leves sobre Trilhos na cidade de Fortaleza. Para maiores informações, consultar http://www.transparencia.gov.br/copa2014/fortaleza/mobilidade-urbana/vlt-parangaba-ucuripe/.

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works, not leaving verify if such participation is guaranteed at least when the completion of works. Within this context, it will demonstrate the lack of participation even in cases of expropriation of private property for construction of infrastructure for mega events, a necessary step for the realization of works, well after the stage budget discussed here. It will demonstrate, before analyzing a particular work (VLT in Fortaleza), the lack of participation, from budgeting to execution of public policies. keywords: Law of responsability fiscal, popular participation, budget, mega events.

1 INTRODUÇÃO

A lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada no ano de 20003, surgiu como um

instrumento para propiciar uma gestão publica responsável, entre outros objetivos4.

Objetivava tal lei mudar o pensamento dos gestores públicos, impondo-lhe um

comportamento baseado na transparência, eficácia e eficiência, tendo como um dos pontos

primordiais a ética dos gestores no exercício da função pública.

A lei em questão está dividida em 10 capítulos, abordando assuntos diversos que

envolvem o tema responsabilidade fiscal, despesa e receitas públicas, gestão patrimonial,

dívida e endividamento, transparência, entre outros5.

No presente trabalho pretendemos analisar um dispositivo específico da lei de

responsabilidade fiscal contido no capítulo destinado à transparência, controle e fiscalização.

Trata-se do art. 48, I da lei de responsabilidade fiscal, que dispõe sobre a participação popular

na elaboração e discussão acerca das leis orçamentárias6.

3 Lei complementar 101, de 04 de Maio de 2000. 4 Diversos são os objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Desde a transparência na gestão pública até a penalização dos maus gestores. Ficamos aqui com os objetivos inseridos no art. 1º da lei: “Art. 1o Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição. § 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.” 5 De forma mais precisa, a lei se divide nos seguintes capítulos: i) Disposições preliminares; ii) Do planejamento; iii) Da receita pública; iv) Da despesa pública; v) Das transferências voluntárias; vi) Da destinação de recursos públicos para o setor privado ; vii) Da dívida e do endividamento; viii) Da gestão patrimonial; ix) Da transparência, controle e fiscalização; x) Disposições finais e transitórias. 6 Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: (Redação dada pela Lei Complementar nº 131, de 2009). I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).

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Tal análise terá como contraponto as obras destinadas aos megaeventos a serem

realizados no Brasil nos próximos anos (Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016).

Procuraremos então verificar se houve/está havendo ou não a efetiva participação das

comunidades nos processos de elaboração dos orçamentos destinados às grandes obras a

serem realizadas, desde a elaboração dos orçamentos públicos até sua implementação, visando

a legitimação do procedimento7. Tentaremos responder a algumas perguntas, tais como: A

população diretamente interessada tem possibilidade de opinar sobre os orçamentos para as

obras de grande vulto, conforme dispõe a lei de responsabilidade fiscal? Há algum incentivo à

tal participação popular? Há efetivamente participação popular? Os interesses principais

realmente são os da comunidade que sofrerá os principais reflexos das obras? Se sim, porque

não há participação da comunidade na elaboração dos orçamentos, ao menos para tomar

conhecimento das quantias que serão despendidas?

Por fim, traremos como estudo de caso a situação das obras dos Veículos Leves

sobre Trilhos na cidade de Fortaleza, obra que, conforme dispõe o Governo do Estado do

Ceará8, irá trazer inúmeros benefícios à população da cidade de Fortaleza. Questionaremos

então se em tal obra houve ou está havendo obediência ao dispositivo da lei de

responsabilidade fiscal que dispõe sobre a participação popular, bem como procuraremos

responder às perguntas anteriormente formuladas, em especial verificando qual o grau de

participação popular nas etapas de tal obra.

Ressalte-se que, não é objetivo deste trabalho esgotar a questão relativa à

participação popular, visto que o foco principal aqui discutido é a participação na elaboração

dos orçamentos para tais obras e não na concretização ou execução de tais obras.

2 LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A PARTICIPAÇÃO POPULAR 7 A participação popular tem sido bastante utilizada como forma de legitimação dos atos através do procedimento, como, por exemplo, as audiências públicas propostas pelo STF antes de decisões envolvendo casos relevantes. Sobre o tema, Willis Guerra Santiago Filho afirma que “se mostra como a resposta adequada ao desafio principal do Estado Democrático de Direito, de atender a exigências sociais garantindo a participação coletiva e liberdade dos indivíduos, pois não se impõem medidas sem antes estabelecer um espaço público para sua discussão, pela qual os interessados deverão ser convencidos da conveniência de se perseguir certo objetivo e da adequação dos meios a serem empregados para atingir essa finalidade’ (GUERRA FILHO, Willis. Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza, 1989, pp. 90/91).” 8 O site oficial do Governo do estado do Ceará, ao tratar da obra do VLT dispõe que: “A criação desta linha de VLT em Fortaleza favorecerá a dinâmica no transporte sob vários aspectos. Ele ligará a região hoteleira à Parangaba, atendendo às diretrizes do Governo Federal, ao passar por portos, aeroportos, rodoviária e estádio. Além disso, o VLT fará integração com o sistema de transporte público, o que o deixa em consonância com o Plano Diretor de Fortaleza. Para se ter ideia da importância do VLT, basta analisar os números que caracterizam a área por onde ele passará. No total, 62,14% das empresas instaladas em Fortaleza, 62,58% dos empregos gerados e 81% dos hotéis da capital serão contemplados pelo Veículo Leve sobre Trilhos.”. Disponível em http://transparencia.ce.gov.br/content/prioridades-de-governo/copa-2014/vlt-paranga-mucuripe. Acesso em 15.07.2012.

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Conforme já aqui exposto, há dispositivo expresso na lei de responsabilidade fiscal

que prevê a necessidade de participação popular na elaboração dos orçamentos públicos.

Vejamos o que dispõe o citado artigo:

Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos. Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante: (Redação dada pela Lei Complementar nº 131, de 2009). I – incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos; (Incluído pela Lei Complementar nº 131, de 2009).

Tal disposição legislativa corroborou o anseio da população brasileira em relação à

participação da mesma na gestão Pública. Isto porque, antes mesmo da publicação da lei de

responsabilidade fiscal, algumas iniciativas louváveis em termos de participação popular já

haviam sido desenvolvidas, o que aumentou em muito a pressão popular para a existência de

uma garantia de participação em nosso ordenamento, através de lei em sentido estrito9.

O caso mais emblemático é o da cidade de Porto Alegre, que se tornou modelo de

participação popular exaltado em todo o mundo. Boaventura de Sousa Santos ressalta tal

importância afirmando que: Assim sucedeu na cidade brasileira de Porto Alegre onde, desde 1989, está implantada uma forma de democracia participativa, designada por orçamento participativo, cujo êxito hoje é amplamente reconhecido, tendo sido considerado pela ONU como uma das quarenta melhores práticas de gestão urbana do mundo. É conhecido que o êxito do orçamento participativo não foi estranho à escolha de Porto Alegre como sede do Fórum Social Mundial. (SANTOS, 2002, p. 7-8)

Tal modelo baseou-se no denominado orçamento participativo, que permitia aos

cidadãos da cidade participar ativamente do processo orçamentário da cidade. Neste modelo

há três princípios básicos10, todos com ênfase na participação popular. A implementação se dá

9 Não se está aqui querendo afirmar que não seria possível defender a participação popular sem a existência de uma lei, até mesmo porque alguns dispositivos constitucionais expressos (por exemplo a afirmação de que todo poder emana do povo) poderiam justificar tal participação. Apenas discorre-se que o povo, com a existência de lei expressa que regule a situação, se sentiria mais protegido de eventuais violações. 10 “Os três princípios são os seguintes: a) Todos os cidadãos têm o direito de participar, sendo que as organizações comunitárias não detêm, a este respeito, formalmente, pelo menos, um estatuto ou prerrogativas especiais; b) a participação é dirigida por uma combinação de regras de democracia directa e de democracia representativa, e realiza-se através de instituições de funcionamento regular cujo regimento interno é determinado pelos participantes; c) os recursos de investimento são distribuídos de acordo com um método objetivo baseado numa combinação de critérios gerais – critérios substantivos estabelecidos pelas instituições

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através de várias instituições, desde governamentais até organizações comunitárias. O fato é

que a experiência de orçamento participativo de Porto Alegre foi amplamente reconhecida,

não só na cidade e no Brasil, mas também internacionalmente. A respeito da implantação do

orçamento participativo na Europa, Yves Sintomer, Carsten Hezberg e Anja Rocke afirmam

que:

Orçamentos participativos emergiram, simultaneamente, em sete países europeus, a maioria da Europa Ocidental. Atualmente, outros processos estão em andamento ou em fase preliminar em mais quatro países. No total, em 2008, existiam mais de cem cidades europeias com orçamento participativo. (SINTOMER; HERZBERG; ROCKE, 2010, v2, p. 41)

Muitas outras cidades brasileiras também o implementaram. O certo é que, a despeito

de críticas e possíveis adaptações, o caso do orçamento participativo de Porto Alegre trouxe

benefícios para a população residente naquele município, demonstrando que, mesmo não

efetivado de forma totalmente plena, a participação popular tende a trazer vantagens para os

cidadãos.

O orçamento participativo e outras formas de participação popular são instrumentos

de implementação da democracia participativa, democracia esta que ganha bastante força após

a fase autoritária vivida no Brasil11. Instaurada a democracia no País, em especial com o

advento da Constituição de 198812, a população, principalmente através dos movimentos

sociais, cada vez mais reivindica o direito de fazer parte do processo de gestão da coisa

pública. Assim, o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal aqui citado pode ser visto

como um reflexo de tais reivindicações.

A nova Constituição Federal consagra a República Federativa do Brasil como um

Estado Democrático de Direito13. Desta forma, inegável que o Constituinte elegeu como

direito fundamental a democracia, que tem como essência, a participação popular em seu

governo14. Isto porque um país democrático não é só aquele que elege democraticamente seus

participativas com vistas a definir prioridades – e de critérios técnicos- critérios de viabilidade técnica ou econômica, definidos pelo Executivo, e normas jurídicas federais, estaduais ou da própria cidade, cuja implementação cabe ao executivo.” Ibidem,2002, p.25-26. 11 Em especial com o regime militar ditatorial vivido por nosso País desde o golpe militar de 1964 até a redemocratização ocorrida a partir do ano de 1985 e com marco final com a Constituição de 1988. 12 O artigo 1º da Constituição Federal bem reflete o anseio democrático ao afirmar: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos”. 13 Art. 1º, caput da Constituição Federal de 1988. 14 Como exemplo de disposições constitucionais que indicam para o deito à participação popular podemos citas: No art. 14, assegura a idéia da soberania popular e o voto direto e secreto de igual valor para todos, prevendo ainda o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, instrumentos importantes da democracia participativa. No âmbito municipal, o art. 29, XII, garante participação no planejamento e o art. 31, § 3º, garante a ampla

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administradores públicos, mas que também propicia aos cidadãos outras formas de

participação no governo.

Trazendo à baila a lição de Hugo de Brito Machado Segundo, quando discorre sobre

a democracia em sua obra, temos que:

a forma de governo na qual todos aqueles que se acham sob sua disciplina têm iguais oportunidades de, livremente, interferir na sua formação e na sua condução, podendo dele participar ou escolher,fiscalizar e criticar os que dele participam (MACHADO SEGUNDO, 2010. p. 153.)

Assim, a democracia garante aos cidadãos não somente a escolha de seus

representantes, mas a participação na tomada de decisões relevantes para a Sociedade.

Entretanto, o que se tem verificado no início das obras para a Copa de 2014 é a total falta de

participação das comunidades, em especial aquelas afetadas diretamente pelos atos.

Em relação à participação política, o autor acima citado discorre: “Outra providência

que pode ser adotada, para aperfeiçoamento da legitimidade da ordem jurídica, é o incremento

na participação política dos cidadãos. Afinal, a democracia pressupõe a participação”.

(MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 225.) Assim, deve-se procurar incrementar a participação

popular nos processos orçamentários que visem às obras para os megaeventos.

Corroborando o caminho seguido pela Constituição Federal, o Estatuto da Cidade15,

contrariando, por exemplo, o procedimento que vem sendo adotado pelo Governo do Estado

fiscalização das contas. Ao disciplinar os princípios que regem a administração pública o Art. 37, § 3º, possibilita ainda a criação de outras formas de participação do usuário na administração pública. Há também a possibilidade da participação popular no processo legislativo, através de audiências públicas e reclamações contra atos das autoridades, nas comissões das casas legislativas, previstas no Art. 58, II e IV, bem como a participação diretamente na produção de leis, através da iniciativa popular prevista no Art. 61, § 2º. Prevê ainda a participação de cidadãos no Conselho da República, conforme disposto no Art. 89, VII, e a participação de entidades de representação de classe na escolha do quinto constitucional para integrantes dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Estaduais e do Distrito Federal, conforme disciplinado no Art. 94. Disciplina também a participação popular na gestão da atividade de administrar, tais como: dos produtores e trabalhadores rurais no planejamento da política agrícola (Art. 187); dos trabalhadores, empregadores e aposentados nas iniciativas relacionadas à seguridade social (Art. 194, VII); da comunidade em relação às ações e serviços de saúde (198, III); da população através de organizações representativas nas questões relacionadas à Assistência Social (Art. 204, II); a gestão democrática do ensino público (206, VI); da colaboração da comunidade na proteção do patrimônio cultural (Art. 216, § 1º); da coletividade na defesa e preservação do meio ambiente (Art. 225); de entidades não governamentais na proteção à assistencial integral à saúde da criança e adolescente (Art. 227, § 1º) e das comunidades indígenas, inclusive nos lucros, das atividades que aproveitem os recursos hídricos e minerais das suas terras (231, § 3º) 15 Lei nº 10.257/2001.

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do Ceará, nas desapropriações para obras da Copa do Mundo de 201416, prevê expressamente

a participação popular nas decisões17 que envolvam projetos urbanos para o Município.

Em contraposição, ainda visualiza-se resistência dos gestores públicos em permitir

tal participação, talvez como forma de não permitir um controle popular dos atos praticados,

dando margem a práticas políticas que visam não o interesse da coletividade, mas sim

interesses dos próprios gestores ou de particulares, em especial aqueles detentores do poder

econômico. Assim, a despeito de existir norma legal que dispõe sobre a participação popular,

na prática, tal dispositivo torna-se apenas mais uma norma que não possui implementação

efetiva por parte do Poder Público.

É sabido que a democracia participativa é umas das formas de legitimação do Poder.

Permitindo a participação dos cidadãos nos processo orçamentários, os gestores públicos

acabam por legitimar seus atos, que serão praticados com a participação dos cidadãos

diretamente envolvidos. Partindo desta premissa, a participação popular somente traria

benefícios aos gestores públicos, que veriam seus atos aprovados pelos cidadãos diretamente

interessados, fazendo sua gestão possuir uma maior legitimação. Então, porque não se

implementa de forma efetiva tal participação? Como já disposto aqui, outros interesses

envolvidos acabam por frear o processo de participação popular. Citemos por exemplo o

interesse dos grandes grupos econômicos envolvidos, em especial das construtoras. Para tais

grupos, a manutenção de comunidades pobres em áreas consideradas de alta especulação

imobiliária acaba por inviabilizar ou mesmo dificultar a venda de eventuais imóveis

localizados naquela região, em virtude da presença de nichos de pessoas pobres. Assim, a

pressão que tais grupos fazem nos gestores públicos é enorme no sentido de que as obras

públicas atravessem os locais de moradia de tais pessoas de baixa renda, retirando-os daquele

local. Assim, permitir a participação de tais pessoas na definição do orçamento público, o que

conduz a uma inevitável participação nos projetos das obras a serem realizadas, acabaria por

dificultar a implementação dos interesses dos grandes empreendedores.

Tanto é verdade que as principais obras projetadas para a realização de infraestrutura

em cidades que vão sediar o evento Copa do Mundo de 2014, não estão contando com a

16 Várias violações, principalmente ao direito à moradia, estão sendo denunciadas nas desapropriações para as obras da Copa do Mundo de 2014, nas mais variadas cidades-sedes, tendo a população cearense também sido vítima de tais violações.. 17 Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

(...) II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários

segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

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participação popular na elaboração dos orçamentos e dos projetos, nem mesmo daquelas

pessoas que serão diretamente afetadas por tais obras. Talvez tal atitude seja motivada pelo

incômodo que pode gerar ao povo tal participação que, muitas vezes não terá benefícios reais

das obras a serem realizadas com orçamento público, visto que, em muito casos, as pessoas de

baixa renda são na realidade desalojadas do local onde vive. Matéria publicada no jornal

eletrônico A COMUNA bem expõe tal descaso:

Moradores de favelas, população de rua, prostitutas, e outros trabalhadores informais já começam a sentir os efeitos negativos das operações urbanas e do avanço da especulação imobiliária nas regiões centrais e próximas aos estádios. Milhares de famílias estão sendo forçadamente removidas das áreas onde vivem para a construção de infra-estrutura para os eventos, moradores de rua estão sendo assassinados pela polícia, e muitos trabalhadores informais perderam a possibilidade de trabalhar quer diante da intensificação da fiscalização dos municípios, quer pelo avanço do grande mercado capitalista nas zonas onde trabalhavam. Para essas pessoas a Copa do Mundo provavelmente não será a grande festa do futebol, mas o pesadelo de serem removidas dos espaços urbanos em que durante anos moraram e trabalhara. (COPA...,, 2012)

Assim, apesar de avanços significativos, muito ainda deve ser realizado para que

consigamos implementar uma democracia participativa ideal. Isto porque, a despeito das

experiências aqui citadas, muitas das obras públicas não permitem ao cidadão interessado

opinar sobre a forma de realização bem como de qual maneira se efetivarão os gastos

públicos. O caso dos megaeventos é um deles.

3 OS MEGAEVENTOS E AS OBRAS PÚBLICAS DE INFRAESTRUTURA

Após ser escolhida como sede para a Copa do Mundo de futebol de 2014 bem como

das Olimpíadas de 2016, várias cidades brasileiras iniciaram o planejamento com vistas à

criação de infraestrutura para realização de tal evento. Sem aqui adentrar na questão que

contorna a necessidade e os reais interesses de tais eventos18, os mesmos podem ser sim ser

utilizados como meio de melhorar a infraestrutura da cidade, bem como também propiciar

melhoras sociais para os cidadãos residentes da localidade onde tal evento irá ocorrer.

Entretanto, conforme expomos neste trabalho, contrariando disposições

constitucionais e legais expressas, verifica-se que apenas uma pequena parcela da população,

em geral a parcela dos grandes investidores, se beneficia de forma direta de tais obras. A

18 Várias são as críticas que afirmam ser econômico o grande interesse para realização de tais eventos. A FIFA, juntamente com várias empresas multinacionais, não nega a questão econômica envolvida nos jogos, como se nota através da imposição de exclusividade para alguns de seus patrocinadores para os eventos.

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população de baixa renda, muitas vezes já com altos graus de pobreza e de violações de sua

dignidade, com a realização das obras, têm seus direitos ainda mais violados.

Assim, é certo que, após tal escolha do Brasil como sede de tais eventos, vários

projetos de obras iniciaram seu ciclo. Grande parte delas, para não dizer a totalidade, estão

projetadas para concretização com uso do orçamento público, seja ele federal, estadual ou

municipal. O seguinte trecho realça a quantidade de dinheiro público que será inicialmente

gasto com tal evento: Além desse aterrador cenário que parece suspender disposições constitucionais básicas, é preciso ressaltar que os ônus advindos da realização dos jogos no Brasil incidirão quase que inteiramente sobre o dinheiro do povo. Já foi anunciada pelo Governo Federal uma estimativa de 23 bilhões em gastos para a Copa, dos quais 98% devem vir dos cofres públicos. Estados e municípios que não tem nada a ver com o Mundial, ficaram fora da bolada, assim como investimentos nas áreas prioritárias como a saúde, a educação e a proteção social do governo já estão a ser cortados. Acresce-se a isso o risco do país não conseguir recuperar o dinheiro investido e acabar ficando com dívidas, assim como aquelas levantadas pela África do Sul, no Mundial de 2010, a Grécia, nas Olimpíadas de 2004 e o Rio de Janeiro, com os jogos Pan Americanos. Outras medidas como a privatização de aeroportos e estádios de futebol, também parecem indicar que a população tem muito a perder com o Mundial. (COPA..., 2012)

Dentro destes gastos públicos, pode-se ainda, por exemplo, citar a inclusão das

cidades escolhidas dentro do chamado Programa de Aceleração do Crescimento. O

denominado PAC contempla uma série de ações voltadas à dotação de equipamentos de

infraestrutura rural e urbana, atuando através de um conjunto de obras e ações nos segmentos

de energia, habitação, saneamento, mobilidade urbana e pavimentação, desenvolvimento

comunitário, universalização de acesso aos serviços de água e luz e ampliação da rede

logística de transportes19.

Em decorrência do PAC bem como de outros projetos, várias são as obras em

andamento no País. Todas com grande pressão da FIFA20 para que as mesmas sejam

concluídas a tempo de aproveitamento para a Copa do Mundo de 201421. Em relação às

olimpíadas que ocorrerão no Rio de Janeiro no ano de 2016, a situação não é diferente. A

pressão das entidades organizadoras é constante para que tudo esteja pronto è época do

20 Para maiores informações acerca do Programa de Aceleração do Crescimento, pode-se visitar a página do programa, disponível em http://www.brasil.gov.br/pac. 20 A FIFA é uma entidade privada que controla e organiza o futebol mundial. 21 Veja por exemplo cobrança da FIFA, uma de muitas, realizada em plena época dos Jogos Olímpicos de Londres. Disponível em http://www.brasilturis.com.br/noticias.php?id=3322&noticia=fifa-aproveita-encontro-nao-agendado-em-londres-e-. Acesso em 27.07.2012. Em contrapartida, não se viu, em qualquer fase escolha do Brasil como sede dos megaeventos, qualquer manifestação de tal entidade em prol da participação da população nas decisões governamentais.

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evento, não importando a forma que se utiliza para que se concluam as obras, mesmo havendo

graves violações aos direitos dos cidadãos.

Assim, em muitos casos, para que as obras venham a ser concluídas a tempo do

evento, direitos das pessoas que sofrem o reflexo de tais obras são violados. Um desses

direitos violados é do da falta de participação no orçamento que visam tais obras. Participação

esta prevista na lei de Responsabilidade Fiscal, bem como implicitamente extraída do

princípio democrático. O fato é que sequer tais pessoas têm qualquer participação no processo

de elaboração do orçamento que visa a construção de tais obras, verificando, por exemplo, a

real necessidade das mesmas.

Questiona-se então se o interesse na realização e conclusão de tais obras não é

puramente financeiro e que visa beneficiar não a população que realmente sofre com os

reflexos de tais obras, em especial aquela população que terá suas moradias removidas22, mas

sim os grandes investidores e patrocinadores do evento. Acreditamos que sim. Tais entidades

pouco se preocupam com o desenvolvimento do país-sede bem como com os reflexos que os

eventos podem trazer para o avanço social de tais países.

Ao contrário, as obras, buscando a história recente de outros megaeventos, têm sido

marcadas por violações aos direitos dos cidadãos habitantes das cidades-sedes. A título de

ilustração, pode-se citar relatório elaborado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, infra:

“Em Seul, por exemplo, 15% da população sofreram despejos forçados e 48.000 edifícios foram demolidos antes dos Jogos Olímpicos de 1988. Em Pequim, nove projetos para a construção de um local representaram a expulsão em massa de seus residentes, por vezes realizadas por homens nãoidentificados, no meio da noite e sem aviso prévio. Em Nova Delhi, 35 mil famílias foram expulsas das terras públicas para preparar os Jogos da Commonwealth 2010. Na África do Sul, o projeto de habitação N2 Gateway, que incluiu a construção de habitação para arrendamento para a Copa do Mundo de 2010, resultou na retirada de mais de 20 mil moradores de Joe Slovo, um assentamento informal, que se mudaram para áreas pobres nos limites da cidade”. (PLANEJAMENTO..., 2011).

Não se está aqui negando que os megaeventos podem trazer melhorias sociais, como

também já aconteceu na história dos mesmos23. Entretanto, pretende-se demonstrar que as

22 É certo que muitas das obras implicam em desapropriação de moradias, em virtude da necessidade de construção e ampliação de vias, dos próprios estádios, e de infraestrutura em geral. 23 A respeito de resultados positivos experimentados em outros megaeventos, v. o acima citado relatório, que aponta o seguinte: a) em Moscou, os Jogos Olímpicos de 1980 marcaram a culminação de uma política de construção de moradias sociais com a transformação da Vila Olímpica em 18 edifícios de apartamentos com 16 andares; b) em Atenas, a Vila Olímpica erigida para os Jogos Olímpicos de 2004 deixou 3 mil novas unidades habitacionais subsidiadas em benefício de 10 mil residentes6; c) em Londres, a metade das 2,8 mil unidades da Vila Olímpica se convertirá em moradias acessíveis após os Jogos, e os planos atuais para a área do Parque Olímpico contemplam ao redor de 10 mil novas moradias, 35% das quais poderão ser adquiridas.

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violações aos direitos dos cidadãos são constantes quando se fala em grandes obras que

servem de base aos referidos eventos.

Como obras de grande interesse da população, as mesmas, em consonância com a lei

de responsabilidade fiscal, deveriam, quando da aprovação dos orçamentos a elas vinculados,

bem como antes mesmo de tal aprovação, quando de sua discussão, propiciar a participação

da população diretamente interessada, para que a mesma pudesse discutir a melhor forma de

realização de tais obras, buscando obras que realmente satisfaçam o interesse da população e

minimizando os impactos negativos de tais obras sobre a população, em especial a de baixa

renda. Entretanto, a realidade brasileira é outra. Muitas das obras realizadas visam beneficiar

não a população como um todo, mas sim empresários e instituições privadas. E um dos meios

para concretização de tais interesses é a negação da participação popular, conforme

discorreremos em seguida.

4 A (IN)EFETIVIDADE DA PARTICIPAÇÃO POPULAR PREVISTA NA LEI DE

RESPONSABILIDADE FISCAL

Como vimos, existe previsão legal na lei de responsabilidade fiscal que determina o

incentivo à participação popular quando da discussão, elaboração e aprovação dos

instrumentos orçamentários.

Em que pese as iniciativas aqui já citadas, em muito casos, a aprovação dos

orçamentos se dá sem qualquer possibilidade da população diretamente interessada opinar

sobre os gastos a serem realizados pelo Poder Público, em desrespeito à Lei de

Responsabilidade Fiscal. O exemplo focado neste trabalho é o das obras para os megaeventos

esportivos. Assim, questiona-se a efetiva participação da população nos processos

orçamentários quando estão em jogo outros interesses, em especial os interesses privados.

Não data de hoje as críticas em relação a obras para megaeventos. Em relação aos

Jogos Pan-americanos de 2007, realizado no Rio de Janeiro, várias violações foram

denunciadas. No que tange aos orçamentos, objetos deste estudo, a situação foi a mesma. Os

gastos com o pan-americano do Rio de Janeiro foram os maiores da história. Muitas vezes,

para não alertar para a grande quantidade de gastos públicos, divulga-se um valor inicial a ser

gasto que, quase sempre, não é o valor final gasto. Vejamos o que dispõe o dossiê do Comitê

Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, ao analisar os gastos com o evento de 2007: A divulgação de aumento de gastos frequentemente ocorre muito tempo após terem sido efetuadas e, mesmo assim, nem todos os valores são publicados. Neste sentido,

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a experiência do PAN 2007 é emblemática. O orçamento estimado em 2001, no momento de pré-candidatura do município à sede era de R$ 390,15 milhões. Porém, apenas seis meses após o encerramento dos jogos, foram contabilizados os gastos que chegaram a R$ 3,58 bilhões, segundo dados do Tribunal de Contas da União (TCU), indicando o acréscimo de quase 1.000 % em relação ao valor projetado inicialmente. A ausência de transparência agravou a situação, pois há indícios de que os dispêndios possam ter sido ainda maiores em função do TCU ter constatado que os gastos não foram inteiramente contabilizados e divulgados. Em decorrência disso o órgão O instaurou três processos investigativos. Ou seja, o direito à informação pública novamente não foi respeitado. No caso da preparação para os Jogos Olímpicos, há apenas uma estimativa inicial de orçamento constando no dossiê de candidatura, mas que, segundo depoimento do presidente da Autoridade Pública Olímpica, pode ser reajustada em quase o dobro já neste ano de 2012. (MEGAEVENTOS..., 2012).

E muitos destes gastos foram realizados não para beneficiar a população que

realmente necessitava. Colacionamos outro trecho do relatório citado:

Por fim, concluímos que a atuação do Estado, através de seus gastos em um festival esportivo, privilegiou as despesas que favoreceram o atual padrão de acumulação capitalista no meio urbano, através de uma transferência de R$ 2,8 bilhões de recursos públicos para poucos. De fato, os Jogos Pan-americanos de 2007 serviram de elemento aglutinador de dirigentes esportivos, empresários e governantes na construção do consenso político em torno do modelo de cidade global e visaram à elevação dos rendimentos econômicos das classes mais favorecidas. Em decorrência, ocorreu um aprofundamento da desigualdade social e concentração de renda a despeito do legado de bem-estar social prometido. (MEGAEVENTOS..., 2012).

O mesmo dossiê traduz o sentimento em relação aos resultados obtidos com o

megaevento Pan-americano:

Enfim, a experiência do Pan/2007 é esclarecedora, pois serviu de etapa e ensaio para megaeventos esportivos maiores Copa do Mundo de futebol de 2014 e Olimpíadas de 2016. E é com este olhar que encontramos o seu maior e pior legado, pois ficou provado que é possível transferir recursos públicos para a esfera privada, privilegiar as maiores empreiteiras do país, alargar as fronteiras de atuação do capital, diminuir os direitos sociais, agravar os conflitos urbanos, reduzir o grau de informação sobre as atividades públicas e aumentar a desigualdade social. Tudo camuflado sob o manto de interesses da coletividade que cultua as competições esportivas. Mas igualmente serviu de alerta à sociedade do ovo da serpente gerado. Oxalá reverteremos essa herança maldita em estopim da necessária transformação social. (MEGAEVENTOS..., 2012).

Como se vê, não houve os benefícios desejados com o citado evento esportivo. Muito

desta desvirtuação dos gastos públicos se deve à falta de participação popular nas obras a

serem realizadas. Com a efetiva participação popular, um maior controle dos gastos públicos

poderia ter sido realizado. E a falta de participação popular ocorre não por falta de legislação

que o incentive. A Lei de Responsabilidade Fiscal, já amplamente exposta neste trabalho é um

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exemplo. Ainda, a Resolução n. 13/2010 emitida pelo Conselho de Direitos Humanos da

Organização das Nações Unidas recomenda às autoridades do país-sede “dar chance de

participação no processo de planejamento, desde a fase de licitação, a todas as pessoas que se

verão afetadas pela preparação do evento, e levar verdadeiramente em consideração suas

opiniões”. Além disso, também sugere ao COI24 e a FIFA que os países candidatos a

megaeventos esportivos “realizem processos abertos e transparentes de planejamento e

licitação, com a participação da sociedade civil, em particular as organizações que

representam o setor de moradia e as pessoas afetadas”.

Entretanto a participação popular não é efetivada. Não sai das legislações para a

prática. Muito disto se dá em virtude dos reais interesses por detrás dos megaeventos

esportivos. A maioria dos benefícios são direcionados para a classe dominante. Citemos mais

uma vez a experiência do Pan-americano de 2007:

Enfim, a experiência do Pan/2007 é esclarecedora, pois serviu de etapa e ensaio para megaeventos esportivos maiores Copa do Mundo de futebol de 2014 e Olimpíadas de 2016. E é com este olhar que encontramos o seu maior e pior legado, pois ficou provado que é possível transferir recursos públicos para a esfera privada, privilegiar as maiores empreiteiras do país, alargar as fronteiras de atuação do capital, diminuir os direitos sociais, agravar os conflitos urbanos, reduzir o grau de informação sobre as atividades públicas e aumentar a desigualdade social. Tudo camuflado sob o manto de interesses da coletividade que cultua as competições esportivas. Mas igualmente serviu de alerta à sociedade do ovo da serpente gerado. Oxalá reverteremos essa herança maldita em estopim da necessária transformação social.

Como se vê, a experiência ocorrida no Rio de Janeiro demonstrou que as obras de

infraestrutura, no geral, visam beneficiar a camada mais favorecida da sociedade. Com este

objetivo, não há como os gestores públicos permitirem a participação popular, pois, com tal

participação, o objetivo principal, favorecer os detentores do capital, restaria obstacularizado,

pois a participação pressupõe discussão sobre a real necessidade dos gastos públicos, o que,

obviamente, traria para os grandes investidores problemas com a população local, que, com

certeza, não aceitaria as obras da forma com que são projetadas e concluídas.

Não podemos deixar de realçar que, algumas vezes, a participação popular é

formalmente permitida, no intuito de legitimar as obras que estão sendo realizadas, sem

contudo poder refletir de forma efetiva no desenrolar das obras públicas. Convoca-se, por

exemplo, uma audiência pública, exigida pela legislação, apenas para cumprimento da

mesma, já estando os projetos e os requisitos dos mesmos já traçados antes mesmo de se ouvir

a população diretamente interessada. Foi por exemplo o ocorrido com a audiência publica que

24

Comitê Olímpico Internacional.

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visava discutir as obras do VLT. Apesar de realizada tal audiência, não foi dada oportunidade

de manifestação das comunidades diretamente interessadas (VLT..., 2012).

Como se vê, há clara violação da Lei de Responsabilidade Fiscal que, em muitos

casos, apenas é cumprida formalmente, sendo materialmente violada. Aliás, esta é uma

realidade de vários dispositivos legais brasileiros que, apesar de formalmente aprovados, são

desrespeitados sem qualquer escrúpulo, principalmente quando tais violações partem dos

gestores públicos. E isto se dá em benefício de atores externos, como, por exemplo,

especuladores imobiliários.

5 O CASO DAS OBRAS DO VLT DE FORTALEZA E A INFLUÊNCIA DA

PARTICIPAÇÃO POPULAR

Iremos neste tópico analisar, como forma de trazer para a seara prática o que já foi

aqui afirmado em relação à falta de participação popular nos orçamentos que envolvem obras

para os megaeventos. O caso aqui posto é o de construção dos Veículos Leves sobre Trilhos,

que pretendem ser uma alternativa de transporte urbano, pretendendo modernizar o

deslocamento dos turistas presentes na cidade de Fortaleza para os megaeventos.

É importante inicialmente ressaltar que toda obra pública, de alguma forma, tende a

beneficiar uma camada da população. Acontece que, conforme veremos, o benefício sempre é

direcionado para as camadas mais abastadas da sociedade, não havendo uma preocupação

com a população mais necessitada que, em muitos casos, sofre prejuízos com tais obras.

Exigir a participação popular na elaboração dos orçamentos e projetos de

infraestrutura para os megaeventos, a despeito da legislação citada é, na prática, uma utopia.

Nenhuma forma de participação é permitida. A população diretamente atingida somente toma

conhecimento do projeto da obra, ou mesmo da obra, quando, por exemplo, o imóvel em que

reside entra na lista de imóveis a serem removidos, através de desapropriação.

No caso dos megaeventos, já foi noticiada na imprensa a falta de participação da

população, por exemplo, nos processos de desapropriação que visavam as obras de

infraestrutura relativas aos megaeventos, motivo pelo qual levou até mesmo a Relatoria

Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre o Direito à Moradia Adequada a

enviar carta ao governo brasileiro com as denúncias recebidas25.

25O dossiê traz relatos interessantes de violações que estão ocorerndo em todo o país. Para maiores detalhes visualizar o dossiê em: http://faltacopa2014.wordpress.com/2011/05/13/dossie-denuncia-remocoes-da-copa/.

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Entre as denúncias, no que toca à obra aqui relatada, está a existência de outros locais

possíveis para a desapropriação, tendo a Administração Pública escolhido para a passagem do

VLT, utilizando-se de sua discricionariedade, comunidades onde residiam pessoas sem poder

de reação ao procedimento, principalmente em virtude do baixo nível de escolaridade da

comunidade (minorias pobres).

Ainda, noticia-se que já se iniciou o processo de desapropriação sem qualquer

comunicação às comunidades, bem como que foi oferecido aos moradores opção de nova

moradia a ser construída em bairro bastante distante daquele em que residem, influenciando

substancialmente na vida cotidiana das pessoas26(COMITÊS..., 2011).

Ora, se os atos expropriatórios foram realizados sem qualquer participação popular, o

que dizer dos projetos orçamentários que visavam a obra em questão.

A população diretamente envolvida foi consultada e incentivada a opinar sobre a

obra do VLT? É óbvio que não. Apesar disto, talvez em virtude das graves violações que

estão sofrendo as comunidades envolvidas com as obras do VLT, em especial decorrentes de

suas remoções compulsórios, começa a haver uma forte resistência de tais comunidades,

exigindo-se sua participação no processo. Tal resistência demonstra a necessidade urgente de

mudanças que propiciem a participação popular. Em grandes obras, que acabarão por refletir

por vários anos sobre as comunidades, é essencial que haja a participação da população nos

projetos. E esta participação acaba por trazer uma maior justiça social, visto que, ao contrário

de privilegiar apenas as parcelas mais favorecidas da sociedade, tais obras, com a participação

do povo, também ajudará as camadas menos favorecidas.

Voltemos então para o exemplo da obra do VLT. Sem qualquer participação popular

no projeto, houve a definição de como a obra iria ser desenvolvida. Tal obra pretendia

inicialmente remover uma quantidade significante de pessoas de suas moradias, sob o

argumento de que era necessária tal remoção para a construção dos terminais do VLT.

Contudo, devido à grande resistência das comunidades, a quantidade de famílias a serem

removidas diminuiu significativamente (OBRAS..., 2012). Isto demonstra os transtornos

causados à população envolvida com as grandes obras em virtude da falta de participação

popular na definição dos orçamentos e de como as obras irão ser realizadas.

Os tempos são outros. A sociedade resiste com mais ênfase. Apesar de muitas vezes

não se preocupar muito com a questão da participação popular, quando há resultados que os

contrariem, a sociedade civil organizada reivindica seus direitos. E os gestores públicos, para

26 Nesta notícia, também podem ser encontrados relatos de violações aos direitos dos cidadãos afetados pelas obras.

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evitar tais reivindicações podem muito bem utilizar a participação popular como meio de

legitimação de suas decisões. Mas uma participação efetiva e não apenas formal.

6 CONCLUSÃO

O presente trabalho pretendeu fazer um estudo e demonstrar que, apesar de

previsão legal, a participação popular na definição das diretrizes orçamentárias que visam a

gestão pública não acontece efetivamente na prática. No caso das obras que visam os

megaeventos, a situação não é diferente. Isto porque, em virtude de outros interesses

presentes, que muitas vezes influenciam a conduta dos gestores, a participação popular é vista

como um obstáculo à manutenção de tais interesses.

Entretanto, tem se verificado que, sem tal participação popular, os gastos públicos

com tais obras acabam por chegar a cifras bem acima dos valores que deveriam ser gastos,

apesar de críticas pontuais realizadas por alguns setores, em especial da imprensa jornalística

esportiva.

Ademais, os projetos das obras, em quase todas suas especificações, não têm uma

preocupação social, mas apenas mascaram interesses de grupos econômicos dominantes na

Sociedade. E uma forma de dar continuidade a tais interesses é deixa de fora do processo a

população diretamente interessada, que seria um obstáculo à concretização dos interesses

privados presentes.

O que fazer então? Os órgãos de controle têm papel essencial em tal efetivação.

Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Contas devem realizar seu papel

cobrando a participação da população em tais obras, desde a aprovação do orçamento até a

concretização das mesmas. Ainda, o Judiciário deve estar atento para tomar medidas eficazes,

quando provocado, para combater os desmandos do Poder, fazendo com que os gestores

públicos sejam obrigados a respeitar o dispositivo legal da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Outro meio talvez seja a conscientização da população através da educação e da

informação, a serem repassadas não somente por órgãos institucionais, mas também por

entidades privadas de defesa da população de baixa renda, como as ONGS, que estão cada vez

mais assumindo papel importante nesta luta.

Também há uma evolução neste sentido. As comunidades estão mais ativas em não

aceitar passivamente os atos públicos. Entretanto, entendemos que o gestor público ainda está

vencendo tais batalhas. Apesar de tais evoluções, os desmandos ainda estão sendo realizados.

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Cremos que, com uma maior mobilização popular, contando com o apoio das entidades aqui

citadas, o dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal tende a ser mais efetivamente

cumprido.

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O DIREITO À SAÚDE: EQÜIDADE VERSUS ALTA COMPLEXIDADE

THE LAW TO HEALTH: EQUITY VERSUS HIGH COMPLEXITY

Sandra Maciel-Lima

Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba

Miguel Kfouri Neto

Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Unicuritiba

RESUMO

O direito à saúde no Brasil iniciou suas conquistas com o Movimento da Reforma Sanitária em 1988 e com a definição na Constituição Federal relativa ao setor saúde. O artigo 196 da Constituição Federal conceitua que a saúde é direito de todos e dever do Estado, propondo a universalidade da cobertura do Sistema Único de Saúde (SUS), constituindo uma grande mudança da situação vigente na época. A universalidade, por sua vez, é condição fundamental para a equidade, entendida como igualdade de oportunidade na utilização de serviços de saúde para necessidades iguais. Discutir a equidade significa considerar a diferença, a diversidade, a pluralidade da condição humana. No bojo dessa discussão, o presente artigo visa discutir a equidade no contexto da gestão do SUS, buscando verificar se esse conceito aparece nos serviços de alta complexidade. Utilizando-se a pesquisa bibliográfica conclui-se que a prioridade nas transferências de recursos para os procedimentos de alta complexidade no SUS, indica uma proximidade com o conceito de equidade na saúde, na medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente a classe média, mas toda a população que necessite. Palavras-chave: Direito à Saúde; SUS; Equidade; Financiamento.

ABSTRACT

The Law to health in Brazil began its achievements with the Health Reform Movement in 1988 and with the definition in the Constitution relating to the health sector. Article 196 of the Constitution defines that health is everyone's law and duty of the state, proposing the universality of coverage of the Unified Health System (SUS), constituting a major change in the situation prevailing at the time. Universality, in turn, is a prerequisite for equity, understood as equality of opportunity in the use of health services for equal needs. Discuss equity means considering the difference, diversity, plurality of the human condition. In the midst of this discussion, this article aims to discuss fairness in the context of NHS management, seeking to verify if this concept appears in the services of high complexity. Using the literature concludes that the priority in transfers of resources to high-complexity procedures in SUS, indicates a closeness with the concept of health equity to the extent that these resources will be attending, not only the middle class but all people in need. Keywords: Law to Health; SUS; Equity; Financing.

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INTRODUÇÃO

O tema da equidade em vem sendo abordado por vários autores no âmbito das

políticas públicas de saúde, visando, por meio da descentralização do Sistema Único de Saúde

(SUS), encontrar saídas para melhorar as condições de saúde da população brasileira. Um

debate complexo primeiro, pela dificuldade na escolha do conceito de eqüidade mais

apropriado para o campo da saúde e, segundo, pelo próprio contexto histórico da situação

socioeconômica e cultural brasileira.

O presente artigo não visa discutir a operacionalização das diretrizes constitucionais

de descentralização e de participação social para a organização e gestão do SUS, mas discutir

a eqüidade no contexto da gestão do Sistema Único de Saúde, buscando verificar se esse

conceito aparece nos serviços de alta complexidade. Assim, entender o significado de

eqüidade na saúde é fundamental para a presente discussão. Como afirma Lucchese (2003, p.

441), “encontrar a interpretação do conceito de eqüidade mais adequada ao campo de atuação

em saúde para então operacionalizá-la em tarefas de gestão do sistema orientadas à redução

de desigualdades é um grande desafio”.

Autores como Lucchese (2003), Viana, Fausto e Lima (2003) e Escorel (2001),

fazem referência à discussão presente na literatura internacional, que vem adotando como

ponto de partida para novas definições do termo eqüidade, o conceito desenvolvido por

Whitehead (1990) em seu trabalho intitulado “The concepts and principles of equity in

health”. Para Whitehead (1990, p.7) “eqüidade implica que idealmente todos deveriam ter a

justa oportunidade de obter seu pleno potencial de saúde e ninguém deveria ficar em

desvantagem de alcançar o seu potencial, se isso puder ser evitado1”. Ou ainda, que

iniqüidades em saúde "referem-se às diferenças desnecessárias e inevitáveis e que são ao

mesmo tempo consideradas injustas e indesejáveis2” (WHITEHEAD, 1990, p. 5).

Na opinião de Chetre (2000, s/p), “eqüidade sugere que pessoas diferentes deveriam

ter acesso a recursos de saúde suficientes para suas necessidades de saúde e que o nível de

saúde observado entre pessoas diferentes não deve ser influenciado por fatores além do seu

controle3”. Nesse sentido, a iniqüidade ocorre quando diferentes grupos têm acesso

diferenciado a serviços de saúde ou diferenças nas condições de saúde.

1 "Equity in health implies that ideally everyone should have a fair opportunity to attain their full health potential and no one should be disadvantaged from achieving this potential if it can be avoided". 2" It refers to differences which are unnecessary and avoidable but, in addition, are also considered unfair and unjust". 3 "Equity suggests that different people should have access to sufficient health resources for their health needs and that the level of health that is observed among different people is not influenced by factors beyond their control".

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Assim, a eqüidade é “a introdução da diferença no espaço da igualdade e é parte do

processo histórico de lutas sociais que conformam em diversos contextos (tempo e espaço)

padrões de cidadania diferenciados”. Uma cidadania ampliada “na medida em que, ao

contrário dos direitos individuais civis e políticos, exigem a intervenção do Estado e

incorporam novos princípios ao desenvolvimento de padrões de cidadania” (ESCOREL,

2001, p.2-3).

Os princípios da igualdade e da universalidade na saúde tendem à homogeneização e

acabam por diluir as diferenças, prejudicando os cidadãos menos favorecidos. No entanto,

quando se introduz na discussão a eqüidade, no sentido de considerar a diferença,

possibilitamos a incorporação da diversidade, da pluralidade da condição humana, no

contexto das políticas sociais. É possível, entretanto, aproximar os conceitos de igualdade e

eqüidade, pois ambos “partem do princípio que a humanidade é diversa, plural, que os seres

humanos diferem entre si em suas personalidades, identidades e necessidades” (ESCOREL,

2001, p.5).

Incorporar a eqüidade no contexto da igualdade é para Escorel (2001), um avanço no

contexto das lutas sociais e das discussões sobre cidadania, no entanto, é preciso ficar atento

para a exacerbação do termo “cidadanias diferenciadas”, pois corre-se o risco de ressaltar a

inferiorização, a desqualificação dos mais pobres.

Sendo assim, a primeira parte do presente trabalho apresenta discussão sobre os

dilemas presentes entre os conceitos de justiça, eficiência e eqüidade. Para tanto, busca-se

referencial teórico em Bustelo (1994), Figueiredo (1997), Travassos (1997), Coelho (1998),

Vita (1999) e, principalmente, na discussão sobre “justiça como eqüidade” desenvolvida por

John Rawls (2002). Na segunda parte, discute-se a universalidade e a integralidade no SUS,

evidenciando-se os desafios da universalidade e do financiamento público em saúde. Na

seqüência, busca-se verificar a presença do conceito de eqüidade no serviço de alta

complexidade do SUS por meio de dados divulgados pelo Ministério da Saúde (MS), pelos

estudos do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (CONASS), pelo Sistema de

Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS), pelo DATASUS, pela

Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), pelos resultados do PNAD (2003)

apresentados por Travassos (2005) e pela pesquisa coordenada por Vianna (2005). Por fim,

conclui-se, por meio dos dados apresentados, que nos procedimentos de alta complexidade o

SUS aproxima-se mais dos princípios de universalidade no atendimento e integralidade no

acesso, pois está atingindo praticamente a totalidade da população. A prioridade nas

transferências de recursos para os procedimentos de alta complexidade no SUS indica uma

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proximidade com o conceito de eqüidade na saúde, na medida em que esses recursos estarão

atendendo, não somente a classe média, mas toda a população que necessite.

1 DESIGUALDADE VERSUS EQÜIDADE

Bustelo (1994), em seu texto “Hood Robin: Ajuste e eqüidade na América Latina”

apresenta algumas reflexões sobre os ajustes e as reformas econômicas, o aumento da pobreza

e da desigualdade social, no período da década de 1980. Utilizando-se de dados de diferentes

pesquisas (Banco Mundial, Cepal e outros), conclui que, nesse período, se acentuaram as

disparidades de renda, a pobreza aumentou, sobretudo nas áreas urbanas; a população mais

pobre sofreu perda maior de sua renda, em contrapartida os mais ricos melhoraram a renda em

números absolutos. Quanto aos gastos sociais, constatou-se que houve uma diminuição em

percentuais significativos, reduzindo a despesa real per capita em saúde, educação e

seguridade social4.

A eqüidade é segundo Bustelo (1994), o ponto político, social e econômico mais

delicado na agenda latino-americana. Equacionar a eqüidade com a eficiência implica evitar o

aumento das distâncias sociais, pois os equilíbrios macrossociais são tão importantes quanto

os equilíbrios macroeconômicos. Para o autor é importante abrir e ampliar os espaços de

integração social nos quais se reconciliem as complementaridades entre a eqüidade e a

eficácia. Então, para melhorar a eqüidade, além de requerer o crescimento, requer políticas

sociais que atuem sobre a distribuição da renda e da riqueza e não apenas políticas de

combate, as que configuram as metas “brandas” – metas relacionadas à tecnologia simples e

de baixo custo, porém de alto impacto, como é o caso da morbi-mortalidade infantil. Portanto,

falar em eqüidade implica falar de uma política social e econômica mais eficiente,

proporcionando uma maior cobertura, integração e qualidade dos serviços e políticas públicas.

No entanto, uma das grandes dificuldades em se definir uma distribuição social

adequada de recursos na área de saúde é conciliar justiça e eficiência (COELHO, 1998).

Dilemas entre justiça e eficiência repetem-se quando se procura estabelecer prioridades nas

políticas de saúde. Por um lado, “afirmar o princípio da eficiência significa negar socorro ao

mais necessitado ou discriminar certas categorias de indivíduos, o que é injusto e bárbaro”,

por outro lado, “afirmar princípios de justiça pode (...) significar que recursos que

4 Rocha (2005) aponta que o gasto social no Brasil – que inclui a totalidade dos gastos da previdência, da saúde, da educação – equivale à cerca de 20% do PIB.

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provavelmente salvariam determinados pacientes serão consumidos por outros sem que

resultem para estes últimos em benefícios significativos ou duradouros” (COELHO, 1998, p.

115).

No entendimento de Figueiredo (1997), a distribuição com base no critério da

necessidade gera um resultado mais igualitário. No entanto, distribuir de acordo com

necessidade requer uma alocação diferenciada de recursos, pois as necessidades são

diferentes. Os sistemas de seguridade social são, em geral, mistos com ênfase maior no mérito

ou na necessidade. Ao mesmo tempo em que garantem acesso a todos, distribuem de forma a

contemplar as necessidades, por meio de regras de seletividade e, o mérito, por meio da

manutenção do vínculo entre benefício e contribuição. Eis, novamente, o dilema.

Para Rawls (2002, p. 7), não é possível avaliar uma concepção da justiça unicamente

por seu papel distributivo, é preciso levar em conta suas conexões mais amplas, “pois embora

a justiça tenha uma certa prioridade (...), ainda é verdade que, em condições iguais, uma

concepção de justiça é preferível a outra quando suas conseqüências mais amplas são mais

desejáveis”. Os princípios da justiça social, na teoria de Rawls, fornecem um modo de atribuir

direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada

dos benefícios e encargos da cooperação social.

Rawls (2002, p. 64) trabalha com dois princípios de justiça:

Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos (grifos meus).

Para o autor, todos os valores sociais devem ser distribuídos igualitariamente a não

ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos.

Nessa visão, a injustiça se constitui de desigualdades que não beneficiam a todos.

Rawls apresenta três princípios distintos de acordo com os quais a distribuição de

benefícios sociais e econômicos poderia ocorrer: a liberdade natural, a igualdade liberal de

oportunidades e a igualdade democrática.

O sistema de liberdade natural defende que um complexo institucional justo será

aquele que combinar uma economia competitiva de mercado com uma igualdade formal (ou

legal) de oportunidades.

O princípio de igualdade liberal de oportunidades visa assegurar um ponto de partida

igual para aqueles que têm talentos e capacidades semelhantes e estão similarmente

motivados a empregá-los. O que se exige são instituições e políticas que tenham por objetivo

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neutralizar, tanto quanto possível, as contingências sociais e culturais que condicionam as

perspectivas que cada pessoa tem de cultivar seus próprios talentos. Na opinião de Vita

(1999), para os que têm sentimentos igualitários a desigualdade social fundada em diferenças

de talento e qualificação é ainda mais odiosa do que as desigualdades de renda e de riqueza

consideradas em si mesmas.

A igualdade democrática requer que os ricos abram mão de tirar proveito das

circunstâncias sociais e naturais que os beneficiam, a não ser que o benefício se estenda

também aos pobres.

Na discussão de uma justiça eqüitativa, Rawls adota a interpretação da igualdade

democrática como a mais indicada e utiliza o princípio da diferença como solução para

enfrentar as arbitrariedades das políticas sociais. O princípio da diferença afirma que “não

importa o quanto a situação de cada pessoa seja melhorada; do ponto de vista do princípio da

diferença, não há ganho algum a não ser que o outro também ganhe5” (RAWLS, 2002, p. 80).

Na interpretação de Vita (1999), só são moralmente legítimas as desigualdades sociais e

econômicas estabelecidas para melhorar a sorte daqueles que se encontram na posição inferior

da escala de quinhões distributivos.

Percebe-se que o autor aposta na eqüidade para aparar os feitos negativos da

desigualdade.

No entanto, a forma como se dá a distribuição de recursos sociais ainda é um dilema.

Um dilema que se repete quando se procura estabelecer prioridades nas políticas de saúde

(COELHO, 1998).

Há um consenso de que a eficiência dos sistemas públicos de saúde depende de uma

alocação equilibrada dos recursos entre seus diversos setores. No entendimento do CONASS

(2006, p. 85), “problemas complexos como os da Saúde exigem soluções complexas e

sistêmicas”. Portanto, é preciso equilibrar as ações e os investimentos do sistema de saúde nos

níveis de baixa, média e alta complexidade. Veremos mais adiante que isso não ocorre. A

5 Na perspectiva de Rawls, o princípio da diferença considera a desigualdade justificável apenas se a diferença de expectativas for vantajosa para os mais pobres. Ao aplicar esse princípio deve-se distinguir entre dois casos. O primeiro caso é aquele em que as expectativas dos mais pobres estão de fato maximizadas. Nenhuma mudança nas expectativas dos mais ricos pode neste caso, melhorar a situação dos mais pobres. O segundo caso é aquele em que as expectativas de todos os mais ricos de qualquer forma contribuem para o bem-estar dos mais pobres. Ou seja, se as suas expectativas fossem diminuídas as expectativas dos pobres cairiam da mesma forma. No entanto, um esquema desses é injusto quando uma ou mais das maiores expectativas são excessivas. Se essas expectativas fossem diminuídas, a situação dos mais pobres seria melhorada. A medida da injustiça de um ordenamento depende de quão excessivas são as expectativas mais altas e da extensão em que sua realização depende da violação dos outros princípios de justiça, por exemplo, a igualdade eqüitativa de oportunidades (RAWS, 2002).

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tendência dos investimentos do Ministério da Saúde (MS) não é de equilíbrio entre os três

níveis, e sim de prioridade dos investimentos em alta complexidade.

2 SUS: UNIVERSALIZAÇÃO E INTEGRALIDADE EM ANÁLISE

A seção de saúde da Constituição Federal de 1988 e as Leis n. 8.080 e 8.142 de 1990

constituem as bases jurídicas do SUS. A criação do Sistema Único incorpora grandes

demandas do movimento sanitário, tais como:

a saúde entendida amplamente como resultado de políticas econômicas e sociais; a saúde como direito de todos e dever do Estado; a relevância pública das ações e serviços de saúde; e a criação de um sistema único de saúde, organizado pelos princípios da descentralização, do atendimento integral e da participação da comunidade (CONASS, 2006, p. 25).

O SUS, segundo dados do CONASS (2006), organiza-se por meio de uma rede

diversificada de serviços, que envolve cerca de 6 mil hospitais, com mais de 440 mil leitos

contratados e 63 mil unidades ambulatoriais. São 26 mil equipes de saúde da família, 215 mil

agentes comunitários e 13 mil equipes de saúde bucal prestando serviços de atenção primária

em mais de 5 mil municípios brasileiros. Anualmente o SUS contabiliza 12 milhões de

internações hospitalares, mais de 1 bilhão de procedimentos em atenção primária à saúde, 150

milhões de consultas médicas, 2 milhões de partos, 300 milhões de exames laboratoriais, 1

milhão de tomografias computadorizadas, 9 milhões de exames de ultra-sonografia, 140

milhões de doses de vacina, mais de 15 mil transplantes de órgãos, entre outros.

Apesar desses números, o SUS ainda tem grandes desafios a superar, dentre eles, o

desafio da universalidade e o desafio do financiamento.

2.1 OS DESAFIOS DA UNIVERSALIDADE

A universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência é

um dos princípios do SUS, previsto na Lei 8.080 de 1990 (BRASIL, 2007), assim como a

integralidade na assistência; a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou

privilégios de qualquer espécie; conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e

humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de

serviços de assistência à saúde da população, entre outros.

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A universalidade no acesso aos serviços de saúde é, portanto, condição fundamental

para a eqüidade (TRAVASSOS, 1997). Na Constituição Brasileira (BRASIL, 1988), eqüidade

foi tomada como igualdade no acesso aos serviços de saúde, igualdade de oportunidade na

utilização de serviços de saúde para necessidades iguais6. Definição que, de forma humilde,

admite a complexidade no campo da saúde.

Para Mendes (1995) a universalização da saúde consagrada na Constituição de 1988

tinha como pretensão a inclusão de todos nos benefícios do sistema público de saúde, no

entanto, a expansão da universalização do sistema de saúde veio acompanhada de

mecanismos de racionamento, especialmente a queda na qualidade dos serviços públicos que

acaba por expulsar do subsistema público segmentos sociais de camadas médias, absorvidos

pelo subsistema privado. Nesse sentido, o mandamento constitucional é reinterpretado na

prática social não como um universalismo inclusivo, mas como um universalismo excludente

que garante a incorporação ao sistema público de segmentos mais pobres. Cria-se para

clientelas distintas, diversas modalidades assistenciais, tornando o sistema público mais uma

modalidade assistencial para pobres. Entretanto, os segmentos sociais expulsos não são

totalmente excluídos do sistema público porque continuam a depender dos serviços de alta

complexidade, com alto custos, que normalmente não são cobertos pelo sistema médico

privado.

Falar em igualdade no acesso aos serviços de saúde, ou ainda, na igualdade de

oportunidade para necessidades iguais, sem avaliar as desigualdades nas condições

socioeconômicas dos indivíduos é permanecer na obscuridade. Nesse sentido, Travassos

(1997) alerta para a importância em considerar que os custos incorridos no consumo de

serviços de saúde incluem, também, custos de transporte, de espera para o atendimento, de

aquisição de medicamentos etc. Esses tendem a ser, proporcionalmente à renda, maiores para

os grupos de menor renda, que geralmente vivem em áreas onde a disponibilidade de serviços

é menor dificultando o acesso. Não há igualdade no acesso à saúde, há sim desigualdade,

diferença; uma realidade que reflete as desigualdades sociais.

Nas palavras de Travassos (1997, s/p.):

As desigualdades em saúde refletem, dominantemente, as desigualdades sociais, e, em função da relativa efetividade das ações de saúde, a igualdade no uso de serviços de saúde é condição importante, porém não suficiente, para diminuir as desigualdades existentes entre os grupos sociais no adoecer e morrer.

6 O termo equidade não consta no texto da Constituição Brasileira de 1988, aparece na 8ª Conferência – Princípio da Reforma Sanitária.

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Na prática, a maioria dos países apresenta sistemas mistos de eqüidade. No Brasil, o

SUS vem se consolidando como parte de um sistema segmentado que incorpora dois outros

subsistemas relevantes, o Sistema de Saúde Suplementar (sistema privado de assistência à

saúde) e o Sistema de Desembolso Direto (serviços de saúde adquiridos em prestadoras

privadas mediante gastos diretos dos bolsos das pessoas). Isso se dá, por várias razões,

“especialmente pelas dificuldades de se criarem as bases materiais para a garantia do direito

constitucional da universalização” e pelo fato do SUS se estruturar para responder demandas

dos setores mais pobres da população e demandas setorizadas, especialmente dos serviços de

maiores custos, da população integrada economicamente (CONASS, 2006, p. 50).

Na definição do CONASS (2006), sistemas públicos universais caracterizam-se por

ofertar a todos os cidadãos uma carteira bastante ampla, independentemente de gênero, idade,

renda ou risco, com financiamento público. Os sistemas segmentados, por sua vez,

caracterizam-se por segregar diferentes clientelas em nichos institucionais singulares. Nesse

caso, os sistemas público e privado são complementares, visto que atendem, mais ou menos

amplamente, a clientelas distintas.

A Tabela 1 apresenta a composição relativa dos usuários do SUS, reforçando a

característica de um sistema de saúde segmentado. Esses dados foram obtidos pelo CONASS

(2003) em pesquisa realizada para saber a opinião dos brasileiros sobre o SUS. Foram

entrevistadas 3200 pessoas distribuídas proporcionalmente em cinco grandes regiões.

Observa-se que 28,6% dos brasileiros pesquisados são usuários exclusivos do SUS, 61,5%

são usuários não exclusivos e 8,7% são não-usuários.

Pode-se afirmar, então, que 61,5% dos brasileiros utilizam-se também do sistema

privado e que 8,7% são usuários exclusivos dos sistemas privados.

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TABELA 1 – PERCENTUAIS DE USUÁRIOS EXCLUSIVOS, NÃO EXCLUSIVOS E NÃO-

USUÁRIOS DO SUS CATEGORIAS USUÁRIO SUS

EXCLUSIVO USUÁRIO SUS NÃO

EXCLUSIVO NÃO-USUÁRIO SUS

GERAL 28,6 61,5 8,7 REGIÃO GEOGRÁFICA CENTRO-OESTE 20,6 69,2 8,5 NORDESTE 25,6 67,1 5,0 NORTE 31,9 64,2 3,4 SUDESTE 29,6 57,7 11,8 SUL 33,0 57,6 8,7 PARTE DO MUNICÍPIO CAPITAL 30,1 55,7 13,0 INTERIOR 27,6 65,2 5,9 ZONA RESIDENCIAL URBANA 28,3 61,0 9,8 RURAL 29,9 63,6 3,9 FONTE: CONASS (2003). Adaptação dos autores.

A mesma pesquisa identificou os diferentes graus de complexidade dos serviços

utilizados. Os resultados são apresentados na Tabela 2. Dos 86,8% do total de usuários

considerados exclusivos e compartilhados SUS, somente 5,8% dos pesquisados utilizaram

serviços de alta complexidade do SUS, enquanto 98% utilizaram os serviços de atenção

básica.

TABELA 2 – TIPOS DE SERVIÇO DO SUS UTILIZADOS NOS ANOS DE 2001 A 2003 – Em %

TIPOS DE USUÁRIOS GERAL

86,8

CENTRO-OESTE

86,0

NORDESTE

89,1

NORTE

92,7

SUDESTE

85,0

SUL

85,5 Usuário de atenção básica 98,0 97,7 97,9 97,8 98,1 98,1 Usuário de atenção média complexidade

81,9 82,8 79,1 77.3 84,8 80,9

Usuário de pronto atendimento 43,7 48,5 41,6 35,1 47,1 39,9 Usuário de atenção hospitalar 40,6 42,7 44,6 40,5 38,7 38,0 Usuário de atenção de alta complexidade

5,8 6,4 4,0 3,0 6,9 7,2

FONTE: Adaptado de CONASS, 2003.

Percebe-se que há uma concentração maior na demanda por serviços de atenção

básica e de média complexidade. Enquanto que, um percentual pequeno, 5,8% no geral, busca

serviços de alta complexidade.

2.2 OS DESAFIOS DO FINANCIAMENTO

O desafio do financiamento da Saúde no Brasil, segundo o CONASS (2006), pode

ser analisado sob vários aspectos. O mais comum é o da insuficiência dos recursos financeiros

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para se construir um sistema público universal. Nesse aspecto, o desafio está em, não só,

aumentar os investimentos, mas, também, melhorar a qualidade desse investimento.

De acordo com Carvalho (2007, s/p.), no Brasil,

mais de 30% da população vive em estado de pobreza (renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo), e os gastos das famílias com habitação, alimentação e transportes têm, em média, uma participação superior a 82% no total das suas despesas, não incluídos aí os gastos com saúde, equivalentes a 5,35% do total.

No entendimento de Travassos (1997), uma situação mais igualitária no sistema de

saúde brasileiro depende de maior disponibilidade de recursos financeiros para o setor, além

de um melhor uso dos já existentes com a implementação de uma política redistributiva na

alocação de recursos entre as esferas de governo e organização da rede local de serviços de

saúde para garantir uma melhor distribuição espacial desses serviços, adequando a oferta às

necessidades dos diversos grupos populacionais.

Na Constituição de 1988 ficou estabelecido que a responsabilidade do financiamento

seria compartilhada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. O SUS contava

também com o Orçamento da Seguridade Social – OSS, destinado ao financiamento das áreas

de Previdência Social, Saúde e Assistência Social e que estava apoiado na arrecadação das

Contribuições Sociais. A Constituição previa, no entanto, somente a participação da União,

que deveria destinar 30%, no mínimo, do orçamento da seguridade social, excluído o

desemprego, para o setor de saúde (BRASIL, 2005).

Apesar da previsão legal, até o ano de 1993, esse volume de recursos não chegou a

ser efetivado. Nesse ano instaurou-se uma crise no financiamento com a interrupção dos

repasses de recursos arrecadados pelo OSS. O MS assumiu o financiamento contraindo

empréstimos junto ao Fundo de Amparo do Trabalhador – FAT, pagos nos anos de 1997 e

1998. Na busca por soluções, criou-se a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou

Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira7 (CPMF), uma

contribuição vinculada à saúde e baseadas na movimentação financeira. Dois anos depois, ela

perdeu a sua exclusividade para a saúde, embora tenha sido prorrogada “após intensos debates

legislativos” (CARVALHO, 2007). Somente em 2000, e após um processo de negociação no

Congresso, a Emenda Constitucional 29 – EC 29 estabeleceu a vinculação de recursos para

ações e serviços públicos de saúde para União, Estados e Municípios. Para a União, o limite

mínimo de gasto foi estabelecido como o valor empenhado em 1999, acrescido de 5% e nos

7 A Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) foi extinta em 31 de dezembro de 2007.

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anos subseqüentes, acrescido da variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB. Para

Estados, o montante mínimo de recursos a ser aplicado em saúde é de 12% da receita de

impostos e transferências constitucionais e legais e, para os Municípios, esse percentual chega

em 15% (BRASIL, 2005; CONASS, 2006).

Observando a Tabela 3, em termos de percentual do Produto Interno Bruto, os

recursos destinados às ações e serviços de saúde dos três níveis de governo cresceram entre

2000 e 2002, passou de 3,09% em 2000 para 3,48% em 2002, com ligeira queda em 2003,

atingindo 3,45% do PIB. A redução em 2003 deveu-se ao investimento federal, que

apresentou uma redução em termos de percentual do PIB destinado à saúde (BRASIL, 2005).

TABELA 3 – RECURSOS DESTINADOS ÀS AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE POR

NÍVEL DE GOVERNO EM PERCENTUAL DO PIB, 2000 A 2003 2000 2001 2002 2003 2000 2001 2002 2003 Em % do PIB Índice 2000 = 100 União 1,85 1,87 1,84 1,75 100,0 101,1 99,5 94,6 Estados 0,57 0,69 0,77 0,79 100,0 121,1 134,4 138,6 Municípios 0,67 0,77 0,87 0,91 100,0 114,9 129,9 135,8 Total 3,09 3,34 3,48 3,45 100,0 108,1 112,5 111,7 FONTE: SIOPS/SCTIE/MES. Notas técnicas 10/2004 e 09/2005 e IBGE. In: BRASIL, 2005, p. 4

De acordo com os dados do SIOPS, pode-se afirmar que essa redução, de 2002 para

2003, é uma tendência observada ao longo dos anos (Tabela 4) e a a queda de participação

federal após a implantação da EC 29 decorre, principalmente, do crescimento dos recursos

transferidos pelos demais níveis de governo.

TABELA 4 – PARTICIPAÇÃO NOS RECURSOS DESTINADOS À SAÚDE

SEGUNDO O NÍVEL DE GOVERNO 1980-2003 ANO UNIÃO ESTADOS MUNICÍPIOS 1980 75,0 17,8 7,2 1985 71,7 18,9 9,5 1990 72,7 15,4 11,8 1995 63,8 18,8 17,4 2000 59,7 18,5 21,7 2001 56,2 20,7 23,2 2002 52,9 22,0 25,1 2003 50,7 22,8 26,5

FONTE: Equipe SIOPS/DES/SCTIE/MS. In: BRASIL, 2005, p.5 Obs.: Dados 1980 – 1990 – Despesa total com saúde; 1995- Gasto público com saúde 2000 a 2003 – ações e serviços públicos de saúde, segundo a EC-29.

A Tabela 5 mostra a evolução dos investimentos do MS, nos últimos dez anos, com

algumas categorias, merecendo destaque o incremento de 479% para medicamentos de

dispensação em caráter excepcional (drogas de alto custo e de uso permanente e, por vezes,

com indicação terapêutica para doenças raras), em valores corrigidos pelo IPCA de dezembro

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de 2004, tendo aumentado sua participação no gasto total com medicamentos (excepcionais,

estratégicos e farmácia básica) de 14% em 1995 para 34% em 2004.

TABELA 5 - EVOLUÇÃO DOS INVESTIMENTOS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1995 A 2004 – R$ MILHÕES DE DEZEMBRO DE 2004 - IPCA

TIPO DE GASTO 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 1) Média e Alta Complexidade 11.819 11.797 13.685 12.501 13.568 14.447 15.017 14.358 14.817 15.807 Serviços Produzidos (AIH/SIA) 10.583 9.159 9.509 6.901 8.271 6.304 5.631 6.104 5.870 1.290 Fundo a Fundo 1.236 2.638 4.178 5.598 5.296 8.142 9.386 8.254 8.947 14.517 Gestão Plena (ou Semiplena) 1.093 2.515 3.892 5.329 5.011 7.632 8.792 7.714 8.392 13.691 Medicamentos Excepcionais (1) 143 123 286 271 285 512 596 539 555 826 2) Atenção Básica 2.557 2.277 3.035 3.662 3.943 4.382 4.894 4.972 5.122 5.997 PAB Fixo 2.152 2.017 2.358 2.833 2.683 2.460 2.369 2.192 2.036 2.094 PAB Variável 405 260 677 829 1.259 1.922 2.525 2.780 3.086 3.903 Epidemiologia e Controle de Doenças - - 202 204 281 482 708 649 662 641 Farmácia Básica - - - 74 187 234 222 195 190 186 Ações Básicas Vigilância Sanitária 6 9 35 82 91 56 87 88 93 83 PACS / PSF 152 195 269 372 489 935 1.282 1.550 1.747 2.163 Bolsa Família, Alimentação e Combate, Carências Nutricionais 249 56 171 97 211 217 225 299 394 830 3) Medic. Estratégicos (2) 875 407 953 864 1.262 1.178 1.136 1.349 1.275 1.418 4) Saneamento Básico 125 60 152 235 304 227 1.587 670 109 471 5) Emendas Parlamentares 0 123 341 408 535 546 823 516 548 753 6) Demais Ações OCK 3.530 3.011 3.602 3.710 4.327 4.473 2.808 3.728 3.790 4.447 7) Pessoal Ativo 4.726 4.160 4.092 3.702 3.777 3.749 3.478 3.498 3.590 3.810 AÇÕES E SERVIÇOS DE SAÚDE - TOTAL 23.632 21.835 25.861 25.082 27.715 29.001 29.743 29.091 29.249 32.703 FONTE: Departamento de Economia da Saúde / SCTIE / MS, cálculo de deflação pelo - IPCA realizado pelo IPEA. In: CARVALHO, 2007, s/p. (1) Inclui os relacionados a procedimentos de alta complexidade / custo, como transplantes e câncer, p.ex.; (2) inclui os relacionados à hanseníase, TB e AIDS, entre outros.

A atenção básica foi o segmento assistencial que teve maior aumento (134,5%),

tendo sido de 33,7% o da atenção de média e alta complexidade, responsável pelo

financiamento da maior parte da assistência hospitalar.

Apesar dos esforços ao longo dos anos, os recursos financeiros para o SUS têm sido

insuficientes para dar suporte a um sistema público universal de qualidade. Isso se deve,

também, pela característica dos investimentos em saúde. Os investimentos crescem

constantemente em razão da existência de forças expansivas e problemas estruturais,

afastando o SUS de um ideal de universalização. Devido à transição demográfica as

populações envelhecem e aumentam sua longevidade, aumentando os investimentos com os

mais velhos. A transição epidemiológica reforça o investimento com doenças crônicas e

doenças infecciosas emergentes e reemergentes. A incorporação tecnológica constante

aumenta as expectativas da população e dos profissionais de saúde em relação às novas

soluções sanitárias, assim como, são demandadas pelos prestadores de serviços, pela indústria

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biomédica e pela indústria farmacêutica. Sem falar da existência de incentivos intrínsecos aos

sistemas de saúde que expandem as estruturas e as práticas médicas, estimulando a construção

de novas unidades de saúde, a formação de recursos humanos e a incorporação de formas de

pagamentos indutoras de uma sobreutilização (CONASS, 2006).

Em comparação com outros países (Tabela 6), o Brasil investe pouco em saúde. Em

2003, o Brasil situava-se abaixo da Argentina e dos países membros da Organização para a

Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), que, em média, direcionam 8,5% do

PIB com saúde. Mas o que chama atenção é o investimento per capita do Brasil em 2003, 212

dólares anuais, valor inferior aos da Argentina (426 dólares), Chile (282 dólares), Costa Rica

(305 dólares) e México (372 dólares). O investimento público per capita do Brasil é de 96

dólares anuais, o mais baixo de todos os países analisados.

TABELA 6 – INVESTIMENTO EM SAÚDE EM PAÍSES SELECIONADOS, 2003

PAÍS % DO PIB PER CAPITA (US$) PER CAPITA PÚBLICO (US$) ARGENTINA 8,9 426 300 BRASIL 7,6 212 96 CANADÁ 9,9 2669 1866 CHILE 6,2 282 137 COSTA RICA 7,3 305 240 ESTADOS UNIDOS 15,2 5711 2548 ITÁLIA 8,4 2139 1607 MÉXICO 6,2 372 172 PORTUGAL 9,6 1348 940 REINO UNIDO 8,0 2428 2081 FONTE: World Health Organization (2006). In: Conass (2006).

Os investimentos estimados em saúde apresentados, na Tabela 7, revelam que em

2005 o gasto público em saúde foi de 68,8 bilhões. Os investimentos privados somaram 83

bilhões, dos quais 36,2 bilhões no Sistema de Saúde Suplementar e 46,8 bilhões no Sistema

de Desembolso Direto.

De acordo com o CONASS (2006, p. 72) o aumento no investimento público em

saúde encontra limites na carga fiscal e nas dificuldades que o país tem tido em crescer de

forma sustentada. Portanto, esse aumento remete a uma disputa distributiva nos orçamentos

públicos com outras categorias de investimentos e essas decisões se realizam na esfera

política. “O que define, ao fim e ao cabo, os direcionamentos dos recursos escassos são as

opções preferenciais da população que se transformam em demandas sociais e chegam aos

agentes de decisão política”.

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TABELA 7 – INVESTIMENTOS ESTIMADOS EM SAÚDE, POR SEGMENTOS. BRASIL, 2005

SEGMENTO DO SISTEMA DE SAÚDE INVESTIMENTO ANUAL R$ BILHÕES

%

SUS 68,8 45,3 SISTEMA DE SAÚDE SUPLEMENTAR 36,2 23,8 SISTEMA DE DESEMBOLSO DIRETO 46,8 30,9

TOTAL 151,8 100,0

FONTES: Ministério da Fazenda, STN. In: Afonso (2006). Agência Nacional de Saúde Suplementar (2006). World Health Organization (2006). In: CONASS (2006)

Outro argumento apresentado é que os segmentos da classe média retiram-se do

SUS8 e abrigam-se no Sistema de Saúde Suplementar e por isso não tem interesse em

defender mais recursos para o sistema público de saúde. Por outro lado, “a experiência

internacional demonstra que a adesão dos estratos médios da sociedade foi um determinante

importante na implantação dos sistemas públicos universais” (CONASS, 2006, p. 73).

Entretanto, essa retirada é parcial, pois usam o SUS em dois pólos de serviços: o

mais simples, nas imunizações e o mais denso tecnologicamente, representado por serviços de

alta complexidade que não são ofertados pelo sistema privado nem custeados diretamente

pelas famílias, pelo alto custo (VIANNA, 2005). É o caso de alguns programas de excelência

do SUS, como o Programa Nacional de Imunizações, o Sistema Nacional de Transplantes e o

Programa e Controle de HIV/AIDS.

Nesse ponto o SUS parece aproximar-se efetivamente dos princípios da

universalização do acesso e da integralidade na atenção, um dos principais desafios da política

nacional de saúde. Na medida em que, em sua grande maioria, esses serviços de alto custo são

ofertados exclusivamente pelo SUS, como é o caso dos medicamentos de dispensação em

caráter excepcional, e dos transplantes, com poucas exceções (córnea, por exemplo). O

detalhamento será feito na próxima seção.

Outros aspectos interessantes para serem analisados em relação ao desafio do

financiamento da saúde é o da redução das despesas no sistema público de saúde e o da

eficiência na utilização dos recursos. Entretanto, esses dois aspectos serão apresentados neste

trabalho somente como indicadores de uma mobilização já existente, por parte das entidades

representativas do setor de saúde, em encontrar alternativas para alcançar a integralidade na

saúde (discutida na próxima seção).

A Tabela de Procedimentos, utilizada como referência para a remuneração de

serviços hospitalares prestados ao SUS, foi implantada no início da década de 1980, como

8 A chamada “universalização excludente” discutida no item anterior – Dilema da Universalização.

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parte integrante do então denominado Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da

Previdência Social – SAMHPS, que se caracterizava como um sistema de remuneração fixa

por procedimento, baseado no conceito de valores médios globais. Com a implantação do

Sistema Único de Saúde, o SAMHPS foi renomeado SIH – Sistema de Informações

Hospitalares (em 1991) e continua até os dias de hoje sendo utilizado como base para o

pagamento de hospitais, embora os valores atualmente constantes da tabela guardem pouca ou

nenhuma relação com os custos (CARVALHO, 2007).

O SIH passou a ser utilizado como um dos mecanismos de transferência de recursos

financeiros, sendo fortemente afetado pelas políticas implantadas. Carvalho (2007, s/p) cita

como exemplo destas políticas:

as limitações estipuladas em relação ao número de internações passíveis de apresentação pelos estados e municípios, para pagamento com recursos federais, pelo SIH (equivalente a 9% da população residente ao ano) e em relação ao valor a ser com elas despendido, definido pelo teto financeiro atribuído por portarias do Ministério da Saúde. Outro exemplo é a indução à redução da proporção de partos cesáreos ocorridos no país, operada por meio da Portaria GM /MS nº 2.816 de 1998, que limitou o número de partos cesáreos a serem remunerados, a partir de sua proporção no total de cada hospital, registrado pelo sistema.

Também, no sentido da redução de custos, outras iniciativas podem ser citadas. No

decorrer de 2004 e 2005, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) promoveu

encontros regionais com representantes do MS, das três esferas do governo, do Ministério

Público e demais entidades representativas do setor para construção de uma agenda comum

de modo a aperfeiçoar o sistema de saúde nacional. Entre outros acordos, houve consenso

sobre a necessidade urgente da construção de uma política de incorporação tecnológica e da

regulação da oferta e da demanda por serviços de saúde. Essas medidas passam por uma

política nacional de gestão de tecnologias (já em elaboração coordenada pelo MS) e pelo

planejamento e implantação de centrais de internação, consultas e exames, com utilização de

protocolos pré-determinados, de forma a evitar procedimentos desnecessários ou duplicados

(diretrizes de regulação de acesso já pactuadas pelas três esferas de governo9) (CARVALHO,

2007).

Em 2004, em resposta à crise crônica dos hospitais de ensino, pertencentes às três

categorias (pública, filantrópica e privada lucrativa), os Ministérios da Saúde e da Educação

criaram o Programa de Reestruturação dos Hospitais de Ensino (Portarias Interministeriais nº

1000, 1005, 1006 e 1007 de 2004) que alterou a forma de certificação e de financiamento

desses estabelecimentos, prevendo a celebração de contratos em que são incluídas cláusulas

9 Diretrizes incluídas no “Pacto pela Saúde”, Portaria GM/MS nº 399 de 2006 (CARVALHO, 2007, s/p.).

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relacionadas a metas e indicadores de qualidade e de produção de serviços, configurando a

modalidade de orçamentação global (CARVALHO, 2007). Esse Programa define como base

de cálculo para o repasse fixo mensal a série histórica de serviços produzidos, acrescida dos

valores do Fator de Incentivo ao Desenvolvimento de Ensino e Pesquisa em Saúde (FIDEPS),

de novos incentivos e do impacto dos reajustes futuros dos valores da remuneração de

procedimentos ambulatoriais e hospitalares, entre outros, constantes da Portaria

Interministerial 1006 de maio de 2004, art. 4º.

Além disso, o MS vem buscando formas alternativas de provocar as mudanças no

setor, em vez de Normas Operacionais foi concebido um novo acordo entre as instâncias, o

“Pacto pela Saúde”, publicado em 22 de fevereiro de 2006 pela Portaria GM/MS nº 399,

constitui-se como a somatória de três outros, quais sejam, o “Pacto pela Vida”, o “Pacto pelo

SUS” e o “Pacto de Gestão" 10.

Todas essas mudanças são resultado de um consenso entre os gestores das três

esferas de governo, que acreditam que a responsabilização pelo planejamento, regulação,

controle e avaliação de ações e serviços é requisito necessário para melhorar a eficiência na

utilização dos recursos na saúde e para tornar as ações de saúde quantitativa e

qualitativamente mais adequadas a cada realidade.

Falar de eficiência na utilização dos recursos é falar da integralidade regulada, por

ações de superação de ineficiências econômicas e alocativas e pela diminuição das

iniqüidades na alocação dos recursos financeiros do SUS.

3 A INTEGRALIDADE E A ALTA COMPLEXIDADE NO SISTEMA DE SAÚDE

A integralidade é um dos princípios do SUS, assim como a universalização. Todavia

difere em sua aplicação. A integralidade na saúde possibilita instituir, mediante consensos

fundamentados na evidência científica e em princípios éticos, validados socialmente, regras

claras e transparentes que imprimam racionalidade à oferta dos serviços de saúde (CONASS,

2006, p 75). Entendida dessa forma, a integralidade na saúde possibilita a racionalização na

oferta de serviços, transformando-se em um instrumento fundamental de melhoria e eficiência

dos gastos em saúde (VIANNA, 2005; CONASS, 2006).

Mas nem sempre a integralidade foi entendida dessa forma. Na Constituição Federal

(BRASIL, 1988), integralidade é definida como “atendimento integral, com prioridade para as

10 Mais informações sobre o Pacto pela Saúde ver CARVALHO, 2007.

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atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”. Historicamente, foi assim

que se desenvolveu a assistência à saúde no Brasil. As ações de saúde foram divididas em

ações médico-assistenciais e preventivas. Atualmente busca-se oferecer assistência integral

por meio de uma maior articulação das práticas e tecnologias relativas ao conhecimento

clínico e epidemiológico (CAMPOS, 2003).

Segundo Vianna (2005, p. 146), o princípio constitucional da integralidade na saúde

é o que mais se aproxima da questão da atenção de alta complexidade, pois é na alta

complexidade que o SUS alcança total consistência aos princípios que lhes dão sustentação,

como a universalidade do acesso e a integralidade da atenção. Isso se deve a três fatores:

a) ausência de inúmeros procedimentos de alto custo do menu dos planos de saúde, inclusive dos contratados depois da regulamentação dessa modalidade;

b) o custo de alguns serviços (transplantes, hemodiálise, medicamentos de dispensação em caráter excepcional) são inacessíveis, fora do SUS, a quase totalidade da população;

c) a percepção do usuário quanto a melhor qualidade dos serviços SUS de mais densidade tecnológica em comparação aos demais, conforme pesquisa do CONASS.

Resta saber identificar quais são os serviços considerados de alta complexidade. Para

o IBGE (2006, p. 20), os serviços de alta complexidade são “os serviços selecionados que

exigem ambiente de internação com uso de tecnologia avançada e pessoal especializado para

sua realização, como transplantes, cirurgias cardíacas, em queimados” etc. Uma conceituação

vaga e imprecisa, pois muitos procedimentos considerados de alta complexidade pelo MS,

não exigem internação.

Segundo Vianna (2005), o tratamento dado pelo próprio MS ao conceito de alta

complexidade, também dá margem a dúvidas. São considerados procedimentos hospitalares

de alta complexidade aqueles que demandam tecnologias mais sofisticadas e profissionais

especializados, definidos pela Portaria SAS/MS n.º 968, de 11 de dezembro de 2002.

Entretanto, alto custo e alta complexidade nem sempre são sinônimos, assim como não

significa que um procedimento considerado de alta complexidade tenha, necessariamente, que

ter alta densidade tecnológica.

Um procedimento de alta complexidade teria três atributos que o distingue dos

demais: a) alta densidade tecnológica e/ou exigência de especialistas e habilidades especiais

acima dos padrões médios; b) baixa freqüência relativa; de um modo geral procedimentos de

alta complexidade tem uma freqüência menor aos demais; c) alto custo unitário e/ou do

tratamento; nesse caso estão os transplantes múltiplos e o implante coclerar, entre outros

(VIANNA, 2005). O autor alerta ainda para o caráter dinâmico do conceito no tempo, como é

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o caso dos equipamentos de raios X que já representaram uma tecnologia de ponta no passado

e, hoje, esse status é da ressonância magnética e da tomografia computadorizada.

Procedimentos estratégicos, no caso específico desta Portaria, significam prioritários;

procedimentos que recebem financiamento do MS por meio do Fundo de Ações Estratégicas e

Compensação (FAEC). Fundo criado pelo MS em abril de 1999 pela Portaria GM/MS n.º 531,

com o objetivo de garantir financiamento pelo gestor federal de procedimentos de alta

complexidade.

Após várias mudanças, a destinação dos recursos do FAEC pelo MS ficou dividida

em quatro blocos: a) ações assistenciais estratégicas: campanhas de cirurgia eletivas;

transplantes, medicamentos excepcionais etc. b) incentivos para estimular a parceria com o

sistema público ou a realização de ações assistenciais; Integrasus: adicional pago aos hospitais

filantrópicos; c) novas ações programáticas: humanização do parto; triagem neonatal etc. d)

Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC): financiamento de

procedimentos de alta complexidade para usuários do SUS provenientes de outros estados que

não dispõem desses recursos (VIANNA, 2005; OPAS, 2002).

No Quadro 1, observa-se a forma de financiamento dos procedimentos ambulatoriais

e hospitalares de alta complexidade pelo SUS em 2004. Todos os transplantes, assim como os

procedimentos associados, entre os quais está a captação de órgãos, são pagos pelo MS por

meio do FAEC, não afetando, portanto, o teto financeiro de estados e municípios.

Segundo Vianna (2005), a tendência ao aumento da demanda por serviços de alta

densidade tecnológica, leva a custos crescentes atribuíveis a fatores como:

a) aumento da população e da longevidade: entre as pessoas mais velhas, o gasto com

assistência médica tende a crescer, devido a taxas de internação mais elevadas, maior

complexidade e a freqüência dos procedimentos médicos utilizados;

b) crescente complexidade tecnológica: a incorporação de novas tecnologias é, em

geral, cumulativa e não substitutiva. A inclusão de um novo recurso terapêutico ou de

diagnóstico não substitui outros mais antigos;

c) modificações nos padrões de morbidade pela população: o surgimento de novas

doenças cresce ao mesmo tempo em que cresce a incidência de moléstias crônicas e

degenerativas e do trauma, problemas que, geralmente, demandam terapias complexas.

d) papel reduzido do mercado: alguns serviços e/ou procedimentos altamente

especializados já estão sendo providos quase que exclusivamente pelo setor público. Seja pelo

poder aquisitivo reduzido da população, seja pelo alto custo do tratamento. É o caso dos

transplantes, como os de fígado e de coração, e dos chamados medicamentos excepcionais;

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QUADRO 1 - SUS: PROCEDIMENTOS AMBULATORIAIS E HOSPITALARES DE ALTA COMPLEXIDADE CONFORME A FORMA DE FINANCIAMENTO - 2004

PROCEDIMENTOS FAEC* TETO ESTADUAL** AMBULATORIAIS Hemodinâmica Ressonância Magnética Tomografia Computadorizada Medicina Nuclear Imunologia Terapia Renal Substitutiva Radioterapia Quimioterapia Hemoterapia Radiologia intervencionista Medicamentos “excepcionais” HOSPITALARES UTI Transplantes Polissonografia Cirurgia Oncológica Tratamento da Aids Cardiologia Hemoterapia Ortopedia Neurocirurgia Tratamento Cirúrgico de Epilepsia Gastroenterologia (Gastroplastia) Deformidades Crânio-Faciais/Lábio-palatais Implante Coclear Órteses e próteses na AIH

FONTE: VIANNA, 2005, p. 20 * Fundo de Ações Estratégicas e de Alta Complexidade ** Limite Financeiro Estadual

e) aumento do grau de consciência de cidadania: a população está cada vez mais

exigente em relação ao atendimento de seus direitos entre os quais os de acesso a atenção

integral à saúde.

Esses fatores estariam exercendo pressão sobre o redirecionamento dos

investimentos em saúde, como mostra a Tabela 8. Em relação ao investimento total do MS

com ações e serviços públicos de saúde, o valor destinado à alta complexidade passou de

13,1%, em 1995, para 19,2% em 2003, um crescimento de 46,6% nesse período.

TABELA 8 – SUS: INVESTIMENTO DO MS COM AÇÕES E SERVIÇOS DE SAÚDE E COM ATENÇÃO DE ALTA COMPLEXIDADE 1995/2003

ANO AÇOES E SERVIÇOS ALTA COMPLEXIDADE

% (H/)*100

1995 12.211,6 1.600,9 13,1 2003 27.179,5 5.214,3 19,2

INCREMENTO % 122 226 46,6 FONTE: VIANNA, 2005, p. 25

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Esse incremento na participação da alta complexidade nos gastos do MS indica o

grau de prioridade da atenção de alta tecnologia na política nacional de saúde (CONASS,

2006). Em relação à média complexidade, os investimentos federais do MS caíram de 78,49%

em 1999 para 59,12% em 2005, uma queda muito acentuada num período muito curto. A

Tabela 9 mostra que, em termos absolutos, os valores nominais no período cresceram 2,6

vezes na média complexidade e 6,7 vezes na alta complexidade.

TABELA 9 – INVESTIMENTO DO SUS EM BILHÕES DE REAIS E EM TERMOS PERCENTUAIS, NAS ALTA E MÉDIA COMPLEXIDADE, 1999-2005

ANO MÉDIA COMPLEXIDADE ALTA COMPLEXIDADE TOTAL VALOR % VALOR % VALOR `%

1999 3,28 78,49 0,89 21,51 4,17 100,0 2000 5,35 66,41 2,70 33,59 8,05 100,0 2001 5,59 63,83 3,16 36,17 8,75 100,0 2002 6,52 63,93 3,68 36,07 10,20 100,0 2003 7,71 63,45 4,44 36,55 12,15 100,0 2004 8,26 61,19 5,24 38,81 13,50 100,0 2005 8,68 59,12 6,00 40,88 14,68 100,0

FONTE: MS: SAI/SIH/SUS. In: CONASS, 2006, p.88

Nesse ponto, talvez seja possível identificar um indício da presença da eqüidade na

saúde, na medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente à classe média, mas

toda a população. Recursos destinados a custear demandas geradas tanto pelas características

de uma população em crescimento, que vive mais tempo e que tem vivenciado a redução de

seu poder aquisitivo, como pela complexidade tecnológica à disposição no atendimento a

novas doenças ou como nova alternativa para velhas e conhecidas doenças.

A distribuição interna do investimento em alta complexidade subdivide-se quanto ao

tipo de procedimento (diagnóstico, terapêutico e outros) e em relação à partição ambulatorial

ou hospitalar (Tabela 10).

TABELA 10 – SUS: DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO INVESTIMENTO DO MS COM PROCEDIMENTOS DE ALTA COMPLEXIDADE – 1995-2003

PROCEDIMENTOS 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 I –AMBULATORIAIS 60,86 60,94 63,32 60,36 57,24 61,03 59,75 57,43 56,84 (a) Serviços/Procedimentos Diagnósticos 5,16 5,26 4,69 4,86 6,22 5,92 4,85 4,75 4,60 (b) Serviços/Procedimentos Terapêuticos 51,06 51,70 50,09 47,82 44,43 44,55 43,21 41,96 40,91 (c) Outros ambulatoriais 4,63 3,97 8,54 7,68 6,59 10,56 11,70 10,72 11,33 II – HOSPITALARES 39,14 39,06 36,68 39,64 42,76 38,97 40,25 42,57 43,16 (a) Serviços/Procedimentos 31,84 31,06 29,00 31,61 36,38 31,95 32,67 34,10 33,32 (b) Outros Hospitalares 7,31 8,00 7,68 8,03 6,38 7,02 7,58 8,48 9,84 TOTAL GERAL 100 100 100 100 100 100 100 100 100

FONTE: Assistência à Saúde no SUS: Média e Alta Complexidade (2003) e DATASUS (2003); In: VIANNA, 2005, p. 29

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Observa-se uma redução relativa na participação do investimento ambulatorial de

60,86%, em 1995 para 56,84%, em 2003. Enquanto que a participação do investimento

hospitalar apresenta um crescimento relativo, passando de 39,14% em 1995 para 43,16% em

2003. Um comportamento inverso que se deve, “não só a adoção de tecnologias que exigem

menos internações, mas também ao crescimento de programas como os de atenção básica (...)

e os de assistência farmacêutica neste caso em função da pressão dos medicamentos de alto

custo” (VIANNA, 2005, p. 28).

Para 2001, o MS indicava uma oferta de serviços hospitalares de alta complexidade,

no SUS, composta por 2.256 centros credenciados, unidades com internação que atendiam os

requisitos técnicos específicos fixados pelo MS. Observa-se na Tabela 11, que os serviços de

alta complexidade mais numerosos são os de terapia intensiva (25,9%), seguidos pelos

serviços de transplante (12,9%). Serviços menos numerosos como o item “Outros” (na tabela)

correspondem a 4,4% do total. Desses serviços, 32% são de queimados e 26% são de

tecnologias de incorporação recente (1999) como a gastroplastia.

TABELA 11 – SUS: FREQÜÊNCIA E PERCENTUAL DE SERVIÇOS HOSPITALARES DE ALTA COMPLEXIDADE POR ESPECIALIDADE - 2001

ESPECIALIDADES FREQÜÊNCIA % Terapia Intensiva (UTI) 585 25,9 Transplantes 292 12,9 Neurocirurgia 272 12,1 Oncologia 257 11,4 Gestação de Alto Risco 246 10,9 Cardiologia 207 9,2 Ortopedia 176 7,8 Urgência/ Emergência 121 5,4 Outros 100 4,4

TOTAL 2256 100 FONTE: Assistência à Saúde no SUS – Média e Alta Complexidade. In: VIANNA, 2005, p. 23.

De acordo com a pesquisa do CONASS (2006), a posição privilegiada dos

procedimentos de alta complexidade, nos repasses de recursos financeiros pelo SUS, pode ter

relação, dentre outros fatores, com:

a) a eficácia da articulação de interesses profissionais de saúde de mais prestígio

social, da indústria biomédica, da indústria farmacêutica, dos prestadores de serviços de maior

densidade e de grupos de usuários mais organizados; e,

b) com a oferta limitada de serviços de alta complexidade nos Sistemas de Saúde

Complementar, por apresentarem custos muito altos, impossíveis de serem cobertos por

desembolso direto.

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O primeiro fator pode ser elucidado por uma frase de Biancarelli (2003, s/p.): “viver

ou morrer depende não só da doença que se pega, mas também do ‘lobby’ que se organiza em

torno dela”. E mais, “o nível de gravidade e de letalidade das patologias costuma depender

igualmente do grau de organização dos seus pacientes e familiares”. O autor relata diversos

casos de grupos de familiares articulados em torno de doenças graves, que conseguem

medicamentos específicos para garantir a sobrevida de seus filhos, mediante pressão sobre o

MS e ações na justiça. Essas diversas organizações populares, tais como, associações de

pacientes com fibrose cística, anemia falciforme, doença de Parkinson, diabetes, Aids etc.,

muitas vezes “chegam a ter mais força do que o Estado”.

Da mesma forma, dados do CONASS (2006) mostram que o incremento com

medicamentos de dispensação em caráter excepcional, vem repercutindo nos orçamentos

federal e estadual da Saúde. Medicamentos de alto custo, geralmente exclusivos de

determinados laboratórios ou indústrias farmacêuticas.

Entretanto, em sentido contrário, Coelho (1998, p. 126) alerta para possíveis fatores

institucionais na determinação destes resultados. A autora indica que “há um limite nas teorias

que interpretam o conteúdo e o resultado de certas políticas públicas como reflexo direto da

força e dos interesses dos atores em disputa”, nesse sentido, aponta a importância de se levar

em consideração políticas prévias e o próprio desenho institucional do SUS na determinação

desses resultados.

Com relação ao segundo fator, é fato que o custo de alguns serviços os tornam

inacessíveis mediante pagamento direto a quase totalidade da população, os transplantes são

um exemplo. Da mesma forma, esses procedimentos não estão previstos na cobertura de

diversos planos de saúde, favorecendo a demanda no SUS.

Essa exclusividade na oferta de serviços de alta complexidade aproxima o SUS da

eqüidade na saúde (RAWLS, 2002, p.80), pois essa situação pode ser benéfica a partir do

momento em que gerar ganhos para todos os demais usuários SUS. Repetindo, “não importa o

quanto a situação de cada pessoa seja melhorada; do ponto de vista do princípio da diferença,

não há ganho algum a não ser que o outro também ganhe”.

Apesar dos esforços ao longo dos anos, os recursos financeiros para o SUS têm sido

insuficientes para dar suporte a um sistema público universal de qualidade. Isso se deve,

também, pela característica dos investimentos em saúde. Os investimentos crescem

constantemente em razão da existência de forças expansivas e problemas estruturais,

afastando o SUS de um ideal de universalização. Pois, além dos interesses, também as

políticas prévias e as instituições – que com suas regras, procedimentos normativos e

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capacidades administrativas acabam fortalecendo certos atores, enquanto fragilizam outros –

contribuíram para esse resultado (COELHO, 1998).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelos dados apresentados, o que tudo indica é que nos procedimentos de alta

complexidade o SUS aproxima-se mais dos princípios de universalidade no atendimento e

integralidade no acesso, pois está atingindo praticamente a totalidade da população. No

entanto, princípios como igualdade e universalidade na saúde tendem à homogeneização e

acabam por diluir as diferenças. Diferenças que aparecem no efetivo consumo de serviços de

saúde. Custos de transporte, de espera para o atendimento, de alimentação, de aquisição de

medicamentos etc., tendem a ser maiores para os grupos de menor renda, que, geralmente,

vivem em áreas onde a disponibilidade de serviços é menor dificultando o acesso. Há oferta

de serviços a toda população, mas nem todos podem usufruir por dificuldades nem sempre

previstas no processo.

Sendo assim, a prioridade nas transferências de recursos para os procedimentos de

alta complexidade no SUS, indica uma proximidade com o conceito de eqüidade na saúde, na

medida em que esses recursos estarão atendendo, não somente a classe média, mas toda a

população que necessite. Pode-se questionar, então, se essa política é justa. Na visão de Rawls

(2002, p. 26), “justas são aquelas instituições e ações que das alternativas possíveis retiram o

bem maior, ou pelo menos tanto bem quanto quaisquer outras instituições e ações acessíveis

como possibilidades reais”, nesse sentido, nem sempre o justo maximiza o bem. A justiça

como eqüidade é uma teoria deontológica no sentido de que não interpreta o justo como

maximizador do bem. Presume-se que as pessoas na posição original escolheriam um

princípio de liberdade igual e restringiriam as desigualdades econômicas e sociais àquelas do

interesse de todos, portanto, não há razão para pensar que instituições justas maximizarão o

bem.

Na justiça como eqüidade o conceito de justo precede o de bem, então, a prioridade

no financiamento dos procedimentos de alta complexidade juntamente com sua proximidade

aos princípios de universalização no atendimento e integralidade no acesso, pode ser

considerada uma política justa, no sentido de Rawls, embora não maximize o bem para todos.

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REFERÊNCIAS

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O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE E A RESPONSABILIDADE DO CIDADÃO1

EL DERECHO FUNDAMENTAL SOCIAL DE LA SALUD

Y LA RESPONSABILIDAD DE LOS CIUDADANOS

Rogério Gesta Leal* Daniela Menengoti Ribeiro∗∗

RESUMO O presente ensaio aborda o infindável tema do Direito Fundamental Social à saúde, diante da sua dimensão protetiva que ultrapassa interesses meramente individuais, e do consenso do dever do poder público em organizar-se para fornecer a saúde a todos, visando o respeito a dignidade humana e a fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e às garantias fundamentais. Nesta perspectiva, questionará sobre a parcela de responsabilidade que o cidadão (em suas demandas individuais) tem em face do direito à saúde, buscando defender, a partir da análise de caso concreto, que é um dever de todos garanti-lo, não excluindo desse exame o próprio indivíduo, a família e as instituições privadas. PALAVRAS-CHAVES: Direito fundamental à saúde; Responsabilidades; Poder público RESUMEN Este ensayo aborda el tema de los derechos sociales fundamentales a la salud, antes su dimensión protectora que pasa los intereses meramente individuales, y el consenso de la obligación del gobierno de organizarse para proporcionar servicios de salud a todos, a fin de respetar la dignidad humana y el fortalecimiento del respeto a los derechos humanos y garantías fundamentales. Desde esta perspectiva, se pregunta sobre la responsabilidad que un ciudadano (en sus demandas individuales) tienen frente al derecho a la salud, tratando de defender que es un deber de todos garantizar este derecho a la salud, sin excluir el propio individuo, la familia y las instituciones privadas.

1 Este trabalho é resultado dos estudos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais Sociais do Programa de Mestrado em Direito da UNOESC. * Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito. Professor Titular da Universidade de Santa Cruz do Sul e da UNOESC. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede de Direitos Fundamentais-REDIR, do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, Brasília. Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasileira. ∗∗ Doutora em Direito-Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne. Mestre em Direito-Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e pesquisadora do Programa de Pesquisa, Extensão e Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC).

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PALABRAS CLAVE:

Derecho fundamental a la salud; Responsabilidades; Poder Público

1) OS POSSÍVEIS CONSENSOS SOBRE OS DEVERES FUNDAMENTAIS À SAÚDE

NO BRASIL

A saúde é direito fundamental social assegurado no art. 6º, caput, da Constituição

Federal, e é tratada de forma específica no capitulo II do titulo VIII intitulada “Da ordem

social”. E, no momento em que a Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art.196, que a

saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas

que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário

às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, não há como negar que tal

dever é relacional e condicionado a garantia de acesso universal e igualitário (a todos) das

ações consectárias nesta direção.

No mesmo sentido estabelece o artigo 2º da Lei 8.080/90, que dispõe sobre as

condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o

funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, ao afirmar que “a

saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições

indispensáveis ao seu pleno exercício”.

Por tais razões, pode-se afirmar que o tema da saúde pública envolve uma das

dimensões do mínimo existencial à dignidade da vida humana: a saúde. Enquanto princípio

fundante de todo o sistema jurídico – a iniciar pelo constitucional -, tem-se que a vida humana

digna espelha e se vincula ao ideário político, social e jurídico predominante no país, ao

mesmo tempo em que, na condição de princípio fundamental, em face de sua característica de

aderência, ele opera sobre os comportamentos estatais ou particulares de forma cogente e

necessária. Assim: (a) todas as normas do sistema jurídico devem ser interpretadas no sentido

mais concordante com este princípio; (b) as normas de direito ordinárias desconformes à

constituição e seus princípios fundacionais (dentre os quais destaco o sob comento), não são

válidas2.

Justifica-se tal postura em face de que a saúde como condição de possibilidade da

dignidade da pessoa humana, em verdade, passa a constituir o indicador constitucional

2 LEAL, 2006, p.1525. Ver também o texto de Rogério Gesta Leal sobre Condições e possibilidades eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais, 2011 e a obra de Konrad Hesse. A força normativa da constituição, 1991.

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parametrizante do mínimo existencial3, porque se afigura como uma das condições

indispensáveis à construção de uma sociedade livre, justa e solidária; à garantia do

desenvolvimento nacional; à erradicação da pobreza e da marginalização, bem como à

redução das desigualdades sociais e regionais; à promoção do bem de todos, sem preconceitos

de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Na verdade, estes postulados estão dispersos ao longo de todo o Texto Político,

consubstanciando-se nos direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos, nos

direitos sociais, nos direitos à educação, à saúde, à previdência etc. Por sua vez, os Poderes

Estatais e a própria Sociedade Civil (através da cidadania ou mesmo de representações

institucionais dela) estão vinculados a estes indicadores norteadores da República, eis que eles

vinculam todos os atos praticados pelos agentes públicos e pela comunidade, no sentido de

vê-los comprometidos efetivamente com a implementação daquelas garantias.

De outro lado, as ações públicas voltadas à densificação material deste direito de

todos – à saúde – integram, de acordo com o disposto no artigo 198, CF/88, um sistema único

em todo o país, financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de outras fontes.

No âmbito do dever público para alcançar os meios necessários à preservação da

saúde, o que se deve ter em conta são os critérios utilizados para determinar quem

efetivamente necessita e quem não precisa do auxílio do Estado para prover suas demandas a

este título, o que de plano se sabe não existir ao menos em numerus clausulus, porque

impossível sua matematização em face da natureza complexa e mutável.

Assim, os casos envolvendo prestação de saúde pública submetido ao Estado são

merecedores de uma apreciação e ponderação em face de, no mínimo, duas variáveis

necessárias: (a) a variável normativa-constitucional e infraconstitucional, enquanto direito

fundamental assegurado à sociedade brasileira; (b) a variável da responsabilidade institucional

e familiar dispostas na estrutura normativa constitucional e infraconstitucional brasileira.

Daí porque aferir, primeiro, a natureza axiológico-constitucional do mandamento

normativo sob comento, tendo ciência que ele se dirige a toda a comunidade, e não uma

parcela dela (os mais doentes, ou somente aqueles que possuem enfermidades letais, ou

3 Esse argumento é desenvolvido no livro Estado, Sociedade e Administração Pública: novos paradigmas, 2005, de autoria de Rogério Gesta Leal.

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somente os que necessitam de farmacológicos curativos, etc.). E, em segundo, de que forma o

sistema jurídico atribui responsabilidades envolvendo esta matéria.

Significa dizer que, quando se fala em saúde pública e em mecanismos e

instrumentos de atendê-la, é importante que se visualize a demanda social e universal

existente, e não somente a contingencial submetida à aferição administrativa ou jurisdicional,

isto porque, atendendo-se somente aqueles que acorrem de pronto ao Poder Público

(Executivo ou Judicial), corre-se o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos

aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, muitas vezes pela

falta de recursos para fazê-lo.4

Para tal raciocínio, utiliza-se o que Konrad Hesse chama de princípio da

concordância prática ou da harmonização, o qual impõe ao intérprete do sistema jurídico que

os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou concorrência, devem ser

tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do outro, o que só se

alcança na aplicação ou na prática do texto.5 Tal princípio parte da noção de que não há

diferença hierárquica ou de valor entre os bens constitucionais; destarte, o resultado do ato

interpretativo não pode ser o sacrifício total de uns em detrimento dos outros. Deve-se, na

interpretação, procurar uma harmonização ou concordância prática entre os bens

constitucionalmente tutelados.

A partir de tais elementos, mister é que se perquira se efetivamente é o Estado o

único garantidor/concretizante do direito à saúde para todos os cidadãos, independente de

precisarem ou não da prestação estatal para tanto.

Nas palavras de Canotilho, sobre tais direitos é preciso se dar conta de que:

Acresce que o facto de se reconhecer um direito à vida como direito positivo a prestações existenciais mínimas, tendo como destinatário os poderes públicos, não significa impor como o Estado deve, prima facie, densificar este direito. Diferente do que acontece no direito à vida na sua dimensão negativa – não matar -, e na sua dimensão positiva – impedir de matar -, aqui, na segunda dimensão, positiva, existe um relativo espaço de discricionariedade do legislador (dos poderes públicos) quanto à escolha do

4 Além disto, é preciso lembrar que “the Courts are not well positioned to oversee the tricky process of efficient resource allocation conducted, with more or less skill, by executive agencies, nor are they readily able to rectify past misallocations. Judges do not have the proper training to perform such functions and they necessarily operate with inadequate and biased sources of information.” In: ALEINIKOFF, 1987, p. 982. 5 HESSE, 2001, p.119. O autor defende que na interpretação constitucional, deve-se dar primazia às soluções ou pontos de vista que, levando em conta os limites e pressupostos do texto constitucional, possibilitem a atualização de suas normas, garantindo-lhes eficácia e permanência constante.

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meio (ou meios) para tornar efectivo o direito à vida na sua dimensão existencial mínima.6

O autor português adverte com acerto que aquele espaço de discricionariedade não

é, todavia, total, haja vista que existem determinantes constitucionais heterônomas que

vinculam os poderes instituídos, como a dignidade da vida humana, por exemplo.

De qualquer sorte, o direito à saúde, enquanto direito fundamental

constitucionalizado, dever do Estado, em primeiro plano, que é a todos garantido, configura-

se como verdadeiro direito subjetivo, outorgando fundamento para justificar o direito a

prestações, mas que não tem obrigatoriedade como resultado de uma decisão individual. Diz-

se direito subjetivo prima facie pelo fato de que, conforme Canotilho, não é possível resolvê-

lo em termos de tudo ou nada7, e também pelo fato de constituírem, numa certa medida e na

lição de Dworkin, direitos abstratos, isto porque representam:

Finalidade políticas gerais, cujo enunciado não de que maneira se tem comparado o peso dessa finalidade geral, com a de outras finalidades políticas, em determinadas circunstancias, ou que compromisos há de se establecer entre elas. Os grandes direitos da retórica polítca são abstratos neste sentido. Os políticos falam de direito da liberdade de expressão, à dignidade e à igualdade, sem que isso implique qua tais direitos sejam absolutos, e sem fazer referência a sua incidencia sobre determinadas situações sociais complexas.8 (Tradução libre)

E por que não se pode resolver tal matéria em termos de tudo ou nada? Pelo fato

de que ela envolve outro universo de variáveis múltiplas e complexas, a saber: disponibilidade 6 CANOTILHO, 2004, p. 58. 7 Aduz Canotilho que: “A questão da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), da ponderação necessária a efectuar pelos poderes públicos (Abwägung) relativamente ao modo como garantir, com efectividade, esse direito (optimização das capacidades existentes, alargamento da capacidade, subvenções a estabelecimentos alternativos) conduz-nos a um tipo de direito prima facie a que corresponde, por parte dos poderes públicos, um dever prima facie” In: CANOTILHO, 2004, p. 66. Ver neste sentido a reflexão de SARLET, Ingo. Eficácia dos Direitos Fundamentais, 2007, notadamente na p. 304, em que o autor sustenta estar esta reserva do possível parametrizada por três variáveis, a saber: (a) dizendo com a efetiva disponibilidade fática dos recursos à efetivação dos direitos fundamentais; (b) dizendo com a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão à distribuição das receitas e competências federativas (tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas); (c) dizendo com a proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e razoabilidade. 8 “Finalidades políticas generales cuyo enunciado no indica de qué manera se ha de comparar el peso de esa finalidad general con el de otras finalidades políticas, en determinadas circunstancias, o qué compromisos se han de establecer entre ellas. Los grandes derechos de la retórica política son abstractos en este sentido. Los políticos hablan de derecho a la libertad de expresión, a la dignidad o a la igualdad, sin dar a entender que tales derechos sean absolutos, y sin aludir tampoco a su incidencia sobre determinadas situaciones sociales complejas.” DWORKIN, 1989, p.162. Denomina o autor de direitos concretos son finalidades políticas definidas con mayor precisión de manera que expresan más claramente el peso que tienen contra otras finalidades en determinadas ocasiones. Num texto mais recente, Justice in Robes, de 2006, Ronald Dworkin ratifica esta sua tese.

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de recursos financeiros alocados preventivamente, políticas públicas integradas em planos

plurianuais e em diretrizes orçamentárias, medidas legislativas ordenadoras das receitas e

despesas públicas, etc. Todos estes condicionantes, por sua vez, encontram-se dispersos em

diferentes atores institucionais, com competências e autonomias reguladas também pela

Constituição.

Por tais razões é que o Superior Tribunal de Justiça no Brasil já teve oportunidade

de dizer que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se

pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um

inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal

modo que, “comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa

estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a

imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política”9.

Vale aqui a advertência de Mario Jori, no sentido de que:

[...] o problema aqui não é só a falta de uma suficiente especificação legislativa ou a falta de norma que institua o tribunal competente, analisado corretamente a partir da teoria de Ferrajoli como a presença de uma lacuna jurídica, mas a falta de estruturas materiais e organizacionais e materiais que possam implementar o direito.10 (tradução livre)

Concorda-se com Canotilho na sua tese de que há em países de significa

desigualdade social e profundas demandas pela implementação de direitos sociais certa

introversão estatal da socialidade, ou seja:

1. os direitos sociais implicam o dever de o Estado fornecer as prestações correlativas ao objeto destes direitos; 2. os direitos sociais postulam

9 É bem verdade que, nesta mesma decisão, manifestou-se o STJ no sentido de reconhecer que não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da 'reserva do possível' - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. REsp 811608/RS; Recurso Especial nº2006/0012352-8. 1ª Turma, Relator Min. Luis Fux, julgado em 15/05/2007, publicado no DJ 04.06.2007 p. 314. 10 “[...] qui il problema non è solamente la mancanza di uma sufficiente specificazione legislativa o la mancanza della norma che istituisca il tribunale competente, visto correttamente dalla teoria di Ferrajoli come la presenza di una lacuna giuridica, ma la mancanza di strutture materiali e organizzative che possano implementare il diritto.” In: JORI, 2008, p.80. Adverte o autor em seguida que a perspectiva ferrajoliana trabalha com uma noção de “garanzie sostanziali: ciò che manca in questi casi nell’ordinamento giuridico sono norme atte a risolvere efficacemente questo tipo di problemi materiali.”

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esquemas de unilateralidade, sendo que o Estado garante e paga determinadas prestações a alguns cidadãos; 3. os direitos sociais eliminam a reciprocidade, ou seja, o esquema de troca entre os cidadãos que pagam e os cidadãos que recebem, pois a mediação estatal dissolve na burocracia prestacional a visibilidade dos actores e a eventual reciprocidade da troca.11

Todavia, este modelo não se sustenta mais, sendo tempo de se descobrir os

contornos da reciprocidade concreta e do balanceamento dos direitos sociais, até porque tais

direitos envolvem patrimônio de todos quando de sua operacionalidade e concreção, e já que a

todos são dirigidas tais prerrogativas, deve-se perquirir sobre a quota parte de cada um neste

mister, sob pena de constituir-se o que o jurista lusitano denomina de uma aproximação

absolutista ao significado jurídico dos direitos sociais, ou seja, confiar na simples

interpretação de normas consagradoras de direitos sociais para, através de procedimentos

hermenêuticos, deduzir a afetividade dos mesmos direitos, produzindo resultados pouco

razoáveis e racionais.

Com base neste raciocínio que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a

repercussão geral da questão constitucional suscitada em Recurso Extraordinário12, relativo ao

fornecimento de medicamento de alto custo a paciente do Estado do Rio Grande do Norte, às

expensas daquele Estado, questionando se a situação individual pode, sob o ângulo do custo,

colocar em risco a assistência global a tantos quantos dependem de determinado

medicamento, de uso costumeiro, para prover a saúde ou minimizar sofrimento decorrente de

certa doença, razão pela qual destacava a necessidade do pronunciamento do Supremo em

relação aos artigos 2º, 5 º, 6º, 196 e 198 da Constituição Federal, revelando o alcance do texto

constitucional.

Evidente que o simples argumento da escassez de recursos dos cofres públicos não

pode autorizar o esvaziamento de direitos fundamentais, muito menos os relacionados à

saúde, eis que diretamente impactantes em face da vida humana e sua dignidade mínima, e

por isto sujeitos ao controle jurisdicional para fins de se aferir a razoabilidade dos

comportamentos institucionais neste sentido, devendo inclusive ser aprimorados os

parâmetros, variáveis, fundamentos e a própria dosimetria de sua concretização.13

11 CANOTILHO, 2004, p.102. 12 Recurso Extraordinário n. 566.471-6, originário do Estado do Rio Grande do Norte. 13 Na mesma linha de raciocínio John Rawls define a proteção do mínimo social com o objetivo de garantir uma igualdade de oportunidades, dependendo do governo para “assegurar oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas semelhantemente dotadas emotivadas, seja subsidindo escolas particulares seja estabelecendo um sistema de ensino público”. In: RAWLS, 1997, p. 213.

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Não se afigura simples, pois, trazer-se à colação argumentos do tipo princípio da

não reversibilidade das prestações sociais, ou o princípio da proibição da evolução

reacionária, como fórmulas retóricas e mágicas para poder garantir, a qualquer preço – que

nem se sabe o qual -, tudo o que for postulado por segmentos da comunidade (indivíduos) em

termos de saúde, pelo simples fato de que o Estado está obrigado a tanto, isto porque o desafio

da bancarrota da previdência social, o desemprego duradouro, parecem apontar para a

insustentabilidade do princípio da não reversibilidade social.14

Cristina Queiroz sustenta que a garantia de uma proteção efetiva do direito

jusfundamental não resulta criada a partir da legislação ou política pública aprovada, mas vem

posta através da atuação da legislação, daqui advindo a noção de dever de proteção jurídico-

constitucional – pressuposto quer do Legislador, quer do Administrador Público, quer do

Judiciário -, caracterizando-se como verdadeiro dever positivo do Estado em face do titular do

direito como um direito de defesa em sentido material. “Por sua vez, o dever de protecção do

Estado, uma vez dimanada a lei de protecção, converte-se, face ao titular do direito, num

direito de defesa em sentido formal.”15

Daí que se propõe uma leitura mais integrada deste dever estatal para com o

universo que ele alcança, ou seja, direito social da população como um todo que envolve,

inclusive, co-responsabilidades societais importantes (constitucionais e infraconstitucionais).

Neste sentido, pode-se citar, por exemplo: (a) do dever da família (da sociedade e do Estado)

em assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, a dignidade, ao respeito, à

liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma

de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão16; (b) os pais têm o

dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e

amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade17; (c) a família (a sociedade e o Estado)

14 CANOTILHO, 2004, p. 112. Ver no Brasil, uma boa abordagem do tema em DERBLI, Felipe. Proibição de Retrocesso Social: uma proposta de sistematização à luz da Constituição de 1988, 2007, p.433 e seguintes. 15 QUEIROZ, 2006, p.70. Todavia, a própria autora reconhece no mesmo texto, quando trata do princípio do não retrocesso social em termos de Direitos Fundamentais Sociais, que: “Mas haverá aí fundamentalmente de distinguir entre uma reversibilidade fáctica, relativa a recessões e crises económicas, da proibição do retrocesso social propriamente dito, isto é, a reversibilidade dos direitos adquiridos como ocorre, v.g., quanto se reduzem os créditos da segurança social, o subsídio de desemprego ou as prestações de saúde.” p. 74. Na mesma direção, SERNA; TOLLER, 2000. 16 Art. 227, da Constituição Federal de 1988. 17 Art. 229, da Constituição Federal de 1988.

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tem o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,

defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida18.

Com tal perspectiva já se pôde asseverar que a prestação alimentar não deva

subsistir até os 21 anos, mas estender-se, com base no princípio da solidariedade familiar,

além da maioridade19. Como o Novo Código Civil Brasileiro reduziu para dezoito anos o

começo da maioridade, com maior razão este entendimento se justifica.20

Mesmo no plano da infraconstitucionalidade, temos como deveres familiares –

notadamente entre os cônjuges –, dentre outros, a mútua assistência e o sustento dos filhos,

sendo que eles são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do

trabalho, para o sustento da família, qualquer que seja o regime patrimonial21. Ao lado disto,

ainda é de se ressaltar que podem os parentes, os cônjuges ou companheiros, pedir uns aos

outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição

social, nos termos do art.1.694, do novo Código Civil Brasileiro. Veja-se que, quando faltam

neste dever, os familiares podem ser enquadrados inclusive nas disposições do art.244, do

Código Penal, que disciplina:

Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.22

Mesmo nas situações em que as famílias se desconstituem, fenômeno acelerado

em nossa época, a legislação infra-constitucional confirma o disposto no Texto Político de

1988, ao assegurar que o cônjuge responsável pela separação judicial prestará ao outro, se

18 Art. 230, da Constituição Federal de 1988. 19 In RT, 698/156; 727/262. 20 Neste sentido, ver o texto de SANTOS, 2003, p. 12. Neste texto, o autor lembra que a extensão e a característica da reciprocidade da obrigação alimentar encontram-se previstas nos arts. 1.696 e 1.697, que repetem, ipsis litteris, o que já dispunham os arts. 397 e 398, do Código de 1916. Assim, a obrigação alimentar, pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aos ascendentes, depois aos descendentes e, por fim, aos irmãos, assim germanos como unilaterais (art. 1.697). Observe-se que na linha reta, seja ascendente ou descendente, não há limitação de grau, ao passo que na colateral resta limitada ao grau mais próximo (irmão). Em cada linha, sempre os mais próximos em grau devem ser chamados em primeiro lugar, sendo a obrigação alimentar dos parentes mais remotos subsidiária e complementar. Isto é, vem depois da dos mais próximos e limita-se a completar o valor que por estes possa ser prestado. 21 Consoante as disposições dos arts.1566 e 1568, ambos do novo Código Civil Brasileiro. Ver o texto de José Lamartine Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz. Direito de família (direito matrimonial), 1990. 22 Redação dada pela Lei nº 10.741, de 01.10.2003, DOU de 03.10.2003, com efeitos a partir de 90 dias da publicação. A pena prevista aqui é detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País, consoante a redação dada pela Lei nº 5.478, de 25.07.1968.

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dela necessitar, a pensão que o juiz fixar, sendo que para manutenção dos filhos, os cônjuges,

separados judicialmente, contribuirão na proporção de seus recursos. Para assegurar o

pagamento da pensão alimentícia, o juiz poderá ainda determinar a constituição de garantia

real ou fidejussória, ou mesmo que a pensão consista no usufruto de determinados bens do

cônjuge devedor. Ainda, a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do

devedor.23

De certa forma a doutrina e jurisprudência brasileiras têm operado muito bem na

direção de demarcar um conceito de alimentos conforme à Constituição, ou seja, atenta para o

fato de que “o direito a alimentos deve corresponder não somente ao indispensável para a

subsistência, mas também ao que for necessário para o alimentando viver de modo compatível

com sua condição social”24.

Veja-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul há muito

tempo já teve oportunidade de dizer que:

o deve a obrigação alimentar ser fixada de modo a incluir, também, valores gastos pela alimentada com saúde, não se mostrando possível a escolha do plano de saúde que será pago pelo alimentante, bem como devendo ser retirada a condenação do alimentante ao pagamento de multa pela sua não inclusão em referido plano.25

A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989, no seu artigo 241, que

dispõe sobre a saúde em seu território, a partir, por certo, da dicção da Constituição Federal de

1988, determina que:

Art. 241 - A saúde é direito de todos e dever do Estado e do Município, através de sua promoção, proteção e recuperação.

Parágrafo único - O dever do Estado, garantido por adequada política social e econômica, não exclui o do indivíduo, da família e de instituições e empresas que produzam riscos ou danos à saúde do indivíduo ou da coletividade. (grifou-se)

Ou seja, o Estado do Rio Grande do Sul introduziu em sua Constituição a

participação do indivíduo e de sua família no custeio da saúde pública, sendo que, com base

23 Consoante disposições dos arts.19, 20, 21 e 23, da Lei nº 6.515/77. 24 TJPE – AgRg 93939-5/01 – Rel. Des. Leopoldo de Arruda Raposo – DJPE 29.10.2003. Na mesma direção os trabalhos clássicos de Luiz da Cunha Gonçalves na obra Princípios de direito civil luso-brasileiro, 1951, p. 1.287; Guilhermo Borda A. em Manual de derecho de família, 2002, p. 403. De igual forma as decisões jurisprudenciais antigas e recentes no país: RE 102877, STF, 2ª T., Rel. Min. DJACI FALCÃO, J. 14.09.1984; REsp 184807/SP, STJ, 4ª T., Rel. Min. BARROS MONTEIRO, J. 24.09.2001. 25 Apelação Cível Nº 70007665268, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 20/05/2004.

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nestes pressupostos, foi editada a Lei-RS nº 9.908/93, determinando que o Poder Público

estadual deve fornecer medicamentos especiais ou excepcionais aos seus cidadãos, desde que

comprovem o seu estado de carência e também de sua família:

Art. 2º - O beneficiário deverá comprovar a necessidade do uso de medicamentos excepcionais mediante atestado médico.

Parágrafo único - Além do disposto no "caput" deste artigo, o beneficiário deverá comprovar por escrito e de forma documentada, os seus rendimentos, bem como os encargos próprios e de sua família, de forma que atestem sua condição de pobre.

Mas como se fará a aferição de quem efetivamente necessita e quem pode

contribuir para o atendimento da demanda de saúde no caso concreto? Por via simétrica –

respeitada sempre a urgência e especificidades da matéria – à forma e prova judiciária que

instrumentalizam os feitos que envolvem a efetivação de obrigações alimentares,

oportunizando e reivindicando a demonstração da necessidade do enfermo e a possibilidade

de contribuição para o atendimento da demanda dos seus familiares, tomando aqui como

referência os vínculos parentais estatuídos pelo próprio sistema jurídico, a saber:

A extensão e a característica da reciprocidade da obrigação alimentar encontram-se previstas nos arts. 1.696 e 1.697, que repetem, ipsis litteris, o que já dispunham os arts. 397 e 398, do Código de 1916. Assim, a obrigação alimentar, pela ordem, fica limitada, em primeiro lugar, aos ascendentes, depois aos descendentes e, por fim, aos irmãos, assim germanos como unilaterais (art. 1.697). Observe-se que na linha reta, seja ascendente ou descendente, não há limitação de grau, ao passo que na colateral resta limitada ao grau mais próximo (irmão). Em cada linha, sempre os mais próximos em grau devem ser chamados em primeiro lugar, sendo a obrigação alimentar dos parentes mais remotos subsidiária e complementar. Isto é, vem depois da dos mais próximos e limita-se a completar o valor que por estes possa ser prestado.26

Postos estes contornos, passa-se a analisar a decisão do Tribunal de Justiça do Rio

Grande do Sul, por seu Segundo Grupo Cível, dos Embargos Infringentes de nº70049198310,

versando sobre o tema proposto.

26 SANTOS, 2003, p. 12.

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2) O DIREITO À SAÚDE NA DIMENSÃO INTERNACIONAL DO

DESENVOLVIMENTO HUMANO

Atualmente é quase que universalmente aceito que o sucesso de um país ou o

bem-estar de um indivíduo não podem ser avaliados somente pelo poder econômico. O

rendimento é, obviamente, elemento crucial para se alcançar o progresso, contudo, é preciso

também avaliar se as pessoas conseguem ter vidas longas e saudáveis, se têm oportunidades

para receber educação e se são livres de utilizarem os seus conhecimentos e talentos para

moldarem os seus próprios destinos.

Sobre esta abordagem, cumpre destacar o Índice de Desenvolvimento Humano

(IDH), lançado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no início da década de 1990 que

propõe verificar o grau de desenvolvimento de um país utilizando alguns indicadores de

desempenho.

Visando enfatizar a necessidade de constantes aplicações de medidas

socioeconômicas mais abrangentes, que incluam também outras dimensões fundamentais da

vida e da condição humana, o IDH combina três componentes básicos do desenvolvimento

humano:

a) a longevidade, que também reflete, entre outras coisas, as condições de saúde

da população; medida pela esperança de vida ao nascer;

b) a educação, medida por uma combinação da taxa de alfabetização de adultos e

a taxa combinada de matrícula nos níveis de ensino fundamental, médio e superior;

c) a renda, medida pelo poder de compra da população, baseado no PIB per capita

ajustado ao custo de vida local para torná-lo comparável entre países e regiões, através da

metodologia conhecida como paridade do poder de compra (PPC) 27.

Segundo o IDH, a nuclearidade deste terceiro elemento (rendimento) é

reconhecida pela sua inclusão como uma das três dimensões básicas do IDH, juntamente com

a saúde e a educação.

A abordagem do desenvolvimento humano reconhece o contributo do rendimento para um maior domínio dos recursos e o efeito que isso tem no

27 Em economia a paridade do poder de compra (PPC) ou paridade do poder aquisitivo (PPA) é o método alternativo à taxa de câmbio para se calcular o poder de compra de países. A PPC mede quanto uma determinada moeda pode comprar em termos internacionais (dólar), já que bens e serviços têm diferentes preços de um país para outro, ou seja, relaciona o poder aquisitivo de tal pessoa com o custo de vida do local, utilizando como parâmetro seu salário.

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alargamento das capacidades das pessoas através da nutrição, do abrigo e de oportunidades mais amplas.

Ou seja, é necessário que os economistas e os cientistas sociais compreendam

melhor as interligações entre essas três dimensões, criando uma sensibilização mais ampla

daquilo que conduz ao desenvolvimento humano, dando destaque para a elementos que

ultrapassam a esfera do crescimento econômico e atingem a saúde e a educação das

populações nacionais.

De acordo com o Relatório do IDH,

Muitos países obtiveram grandes ganhos na saúde e na educação apesar de um modesto crescimento no rendimento, enquanto que outros países com um forte crescimento económico ao longo de décadas não conseguiram progressos igualmente impressionantes na esperança de vida, na educação e nos padrões de vida em geral.28

A título de exemplo,

Em Timor-Leste, mais de 70% dos alunos no final do primeiro ano não conseguiam ler uma única palavra quando confrontados com um excerto de texto simples. Estas dificuldades na melhoria da qualidade da educação ilustram a oscilação da eficácia do envolvimento do Estado.29

O que conduz a reflexão de que os países conseguem melhores desempenhos no

IDH quando realizam mais progressos na saúde e na educação:

Embora na saúde a influência principal fosse a transmissão de inovações tecnológicas, como as vacinações e as práticas de saúde pública, na educação foram os ideais acerca do que as sociedades – e os governos – devem fazer e quais as metas a que os pais aspiram para os seus filhos.30

O RDH de 1990 recorria a uma definição clara do desenvolvimento humano como

um processo de “alargamento das opções das pessoas”, realçando a liberdade para ser

saudável, receber instrução e desfrutar de um padrão de vida digno31, mas também sublinhava

que o desenvolvimento e o bem-estar humanos vão muito para além dessas dimensões,

abrangendo um leque muito mais vasto de capacidades, incluindo as liberdades políticas e os

direitos humanos.

28 PNUD, 2010, p. v. 29 PNUD, 2010, p. 43. 30 PNUD, 2010, p. 57. 31 “La verdadera riqueza de una nación está en su gente. El objetivo básico del desarrollo es crear un ambiente propicio para que los seres humanos disfruten de una vida prolongada, saludable y creativa. Esta puede parecer una verdad obvia, aunque con frecuencia se olvida debido a la preocupación inmediata de acumular bienes de consumo y riqueza financiera.” In: PNUD, 1990, p. 29. (tradução livre)

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O desenvolvimento humano tem a ver com a sustentação regular de resultados positivos ao longo do tempo e o combate contra os processos que empobrecem as pessoas ou estão subjacentes à opressão e à injustiça estrutural. Princípios plurais como a equidade, a sustentabilidade e o respeito pelos direitos humanos são, por conseguinte, fulcrais. [...] O desenvolvimento humano tem também a ver com a abordagem das disparidades estruturais – deve ser equitativo. E tem a ver com a habilitação das pessoas para que exerçam escolhas individuais e participem, definam e beneficiem dos processos aos níveis familiar, comunitário e nacional – para que fiquem capacitadas.32

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),

o desenvolvimento humano é aquele que integra aspectos de desenvolvimento social,

desenvolvimento econômico (incluindo desenvolvimento local e rural) e desenvolvimento

sustentável. O conceito situa as pessoas no centro do desenvolvimento, tratando da promoção

do potencial das pessoas, do aumento de suas possibilidades e o desfrute da liberdade de viver

a vida que eles valorizam.

A realidade brasileira no Relatório do IDH que, vale lembrar, considera as

condições de saúde, educação e renda de cada local, é ainda preocupante. Mesmo que o

relatório tenha apontado que a maioria das pessoas no mundo tem vidas mais longas, mais

educação e maior acesso a bens e serviços do que nunca, e que o IDH médio mundial

aumentou 18% entre 1990 e 2010 e 41% desde 1970, o Brasil ainda ocupa a 84ª posição entre

os 187 países avaliados no estudo.

Esta realidade, se comparada com a posição do país no ranking do PIB mundial,

no qual possui a sexta posição33, conduz a conclusão de que os níveis de educação e saúde do

Brasil ainda são muito baixos, e, portanto, merecedores de atenção e esforços por parte do

Estado.

3) A GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE: ANÁLISE A PARTIR

DE UM CASO CONCRETO

O recurso de apelação sob o nº 70041057480, da Terceira Câmara Cível do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, oriundo da comarca de Caxias do Sul-RS

32 PNUD, RDH, 2010, p. 2-3. 33 Dados extraídos do Fundo Monetário Internacional, World Economic Outlook Database, abril de 2012: Nominal GDP list of countries. Dados para o ano de 2011.

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(julgado em dezembro de 2011), em face da sentença de primeiro grau que julgou

improcedente o pedido de fornecimento de medicamentos formulado na ação originária.

A situação envolve a pretensão em receber do Estado medicamentos de advogado

com 70 anos de idade34 e que está aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social,

percebendo proventos no valor de R$1.708,21 mensais. Refere que sua esposa é professora

estadual aposentada, auferindo mensalmente R$ 791,82, sendo estas as duas únicas fontes de

rendimentos da família, tendo juntado os comprovantes de rendimentos.

Dentre outras razões adotadas pelo juízo de improcedência, restou registrado na

decisão e provado nos autos que o postulante detinha patrimônio que montava em R$

212.639,97, entendendo ele que não se afiguraria razoável exigir-se que se desfizesse de seus

bens para arcar com despesas de saúde. No entanto, está consignado que, em 2004, a

movimentação financeira do demandante foi de quase R$ 60.000,00, o que seria incompatível

com uma renda anual de cerca de R$ 10.000,00.35

Consta dos autos que os familiares do postulante, bem empregados e situados

socialmente, prestam-lhe assistência financeira na medida do possível, todavia.

De forma acurada, a magistrada de primeiro grau que julgou o pedido, a par da

realidade dos membros da comarca em que vive, referiu expressamente que:

A família do autor possui condições de arcar com o seu tratamento, sendo constituída de filha que detém o cargo de procuradora do Município de Porto Alegre e genro que detém o cargo de Juiz do Trabalho. Ainda, na impugnação ao pedido de AJG, houve a quebra de sigilo bancário que demonstrou movimentação financeira anual de R$ 59.764,73, bem como um patrimônio que atinge o montante de R$ 212.639,97. Em acórdão proferido à apelação interposta à procedência da referida impugnação, bem narrado que é incompatível uma renda anual de R$ 10.000,00, afirmada pelo autor e a declaração de imposto de renda apresentada; incompatibilidade esta demonstrada com a comprovação da existência de movimentação financeira superior a cinquenta e nove mil reais.36 (grifou-se)

34 O postulante é portador de diabetes mellitus tipo 1 e necessita fazer uso dos medicamentos insulina glargina (lantus®), rosiglitisona (avandia®), insulina lispro (humolog®) e cloridrato de tamsulosina (ominic®), cujo custo mensal alcançava aproximadamente R$ 400,00 em julho de 2005, quando ajuizada a demanda. Posteriormente o demandante informou a interrupção do tratamento com o fármaco cloridrato de tamsulosina e, em apelação, referiu que o valor atualizado da medicação, considerando-se a substituição do medicamento avandia por actos, em novembro de 2010, seria de R$ 759,61. 35 Esta discussão toda se deu em sede de incidente de impugnação do valor da causa, quando negado o pedido de gratuidade judiciária, constatando-se que a movimentação anual do postulante referente ao ano de 2004, diversamente da constante da declaração de imposto de renda, em R$ 11.529,64 (fls.152-4), na realidade importou no numerário de R$ 59.764,73, conforme apurado em procedimento de quebra de sigilo bancário, utilizando-se dados fornecidos pela Receita Federal – fls.194/196. 36 P. 267 do Apelo.

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De outro lado, para esmorecer a prova colhida no tocante à sua suficiência

econômica, o apelante se limitou a sustentar que:

[...] cumpre destacar que a aferição da capacidade financeira [...], procedida no ato da prolação da sentença no ano de 2010, não pode se sustentar exclusivamente na movimentação bancária verificada nos idos de 2004. Tal não pode ocorrer quer porque o referido documento está absolutamente desatualizado, quer porque, fundamentalmente, a renda a ser considerada para fins de análise de capacidade financeira é àquela que o indivíduo acrescenta ao seu patrimônio por força do seu trabalho e/ou da aplicação do seu capital. Na conta-corrente de um indivíduo podem passar valores significativos sem que com isso tenha havido qualquer apropriação ou acréscimo patrimonial.37 (grifou-se)

No caso em análise, o cotejamento daquele patrimônio do postulante, aliado ao

fato de não ter vindo aos autos cópias das suas declarações atuais de imposto de renda para

que se pudesse confrontá-las com a renda mensal recebida de aposentadoria, bem como a

existência de filha e genro com posições de destaque na carreira jurídica, ratificaram a ideia

de que “o fornecimento gratuito de medicamentos deve se limitar àquelas pessoas que,

efetivamente, não possuem condições financeiras de adquirir os medicamentos”38

A possibilidade de restrição do acesso aos tratamentos, em face da existência de

condições financeiras, corresponde a outras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do

Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70025999046, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: VASCO DELLA GIUSTINA, JULGADO EM 24/09/2008 AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. PROCESSUAL CIVIL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. INDEFERIMENTO DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO COMPROVADA PELA PARTE AGRAVANTE. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) APELAÇÃO CÍVEL Nº 70025959289, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE, JULGADO EM 22/10/2008 APELAÇÃO CÍVEL. ECA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. DEVER DA FAMÍLIA DE CUSTEIO DO TRATAMENTO MÉDICO. SUFICIÊNCIA FINANCEIRA DOS GENITORES DA MENOR. Comprovado, fartamente, que a família da menor possui condições econômicas para suportar, sem prejuízo de seu sustento, o custeio do tratamento de que necessita, pois portadora de retardo mental leve (CID

37 P. 277 dos autos do Apelo. 38 Apelação Cível e Reexame Necessário nº70028464881, Sétima Câmara Civel, TJRS, relator des. Ricardo Raupp Ruschel, julgado em 10/06/2009.

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F70) e transtorno invasivo do desenvolvimento (CID F84.9), é sua prioridade o fornecimento da terapêutica. Inteligência do art. 4º do ECA. A garantia do direito à saúde compete ao Estado, apenas quando demonstrada a insuficiência financeira dos responsáveis pela menor. Recurso desprovido. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70023322217, SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: DENISE OLIVEIRA CEZAR, JULGADO EM 13/08/2008 AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. ACESSO À SAÚDE. IMPOSSIBILIDADE FINANCEIRA DE ARCAR COM O CUSTO DO MEDICAMENTO. NÃO-DEMONSTRAÇÃO. As normas de organização, funcionamento e gestão do Sistema Único de Saúde são internas, de natureza administrativa, não alterando a legitimidade para responder ao direito exercido, sendo solidariamente responsáveis no dever de fornecer medicamentos os entes federativos acionados. Necessidade de demonstração de carência para que possa ser caracterizada a obrigação estatal de fornecimento gratuito de medicamentos. Carência não comprovada nos autos. Ausência de verossimilhança quanto à hipossuficiência financeira que não autoriza a concessão da antecipação de tutela. AGRAVO DESPROVIDO. DECISÃO MANTIDA.

Por tais razões é que entende-se que inexistam elementos que autorizassem a

condenação do Município ao fornecimento dos fármacos, sob pena de subversão a toda a

disciplina que deve nortear o acesso à saúde, restando vencido na Terceira Câmara Cível do

Tribunal de Justiça, o que ensejou a interposição dos Embargos Infringes de nº70049198310

(julgado em 13/07/2012), ao Segundo Grupo Cível da mesma Corte.

O Relator dos Embargos Infringentes, em seu voto condutor, dentre outros

argumentos para julgá-los improcedentes, manteve a decisão da maioria na Câmara de

origem, sustentou que:

(1) Do ponto de vista abstrato, é possível afirmar que a jurisprudência vem entendendo imperiosa a comprovação de carência financeira para que o pretendente faça jus ao custeio de medicamentos e tratamentos por parte do Estado; (2) Tal entendimento é corroborado pelo artigo 1º da Lei nº 9.908, de 16 de junho de 1993, segundo o qual “o Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais para pessoas que não puderem prover as despesas com os referidos medicamentos, sem privarem-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento e de sua família” [...].

Após isto, o Relator emitiu juízo de valor sobre as provas carreadas aos autos

envolvendo a condição financeira do postulante, nos seguintes termos:

O patrimônio do autor, por sua vez, não serve necessariamente para comprovar que disponha de condições financeiras para arcar com o custo dos

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medicamentos necessários porque não significa liquidez que possa custear o tratamento. Aliás, esse patrimônio não representa ou constitui verdadeira fortuna, estimado em R$212.639,97, abarcando um apartamento, 20 hectares de terra em Nova Petrópolis, 101 hectares de terra no município de Mampituba, um automóvel Corsa, ano 1996, um telefone residencial e uma conta poupança com depósito de R$839,97. Ademais, o fato de ter o autor uma movimentação financeira de aproximadamente R$60.000,00 no ano de 2004, não lhe desnatura a renda mensal, inclusive porque não há comprovação de que se tenham repetido movimentações desse jaez nos anos seguintes. Portanto, a existência de movimentações financeiras em sua conta há cerca de oito anos, assim como a existência de patrimônio abrangendo apartamento de valor razoável e carro popular com mais de dez anos, não é suficiente para afastar o dever do Estado em fornecer os medicamentos.

De igual sorte, no que tange à responsabilidade parental em face das demandas do

postulante, ponderou o Relator que: “Por outro lado, entendo inaceitável a tese de que a filha

e o genro do autor, por exercerem cargos jurídicos relevantes, deveriam prestar assistência

familiar relativa a sua saúde”.

4) REFLEXÕES ACERCA DO CASO ANALISADO

A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul de 1989, no seu art.241, que

dispõe sobre a saúde em seu território, a partir, por certo, da dicção da Constituição Federal de

1988.

Diante da implementação, pela Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, da

necessidade da participação do indivíduo e de sua família no custeio da saúde pública, sendo

que, com base nestes pressupostos, foi editada a Lei-RS nº 9.908/93, determina que o Poder

Público estadual deve fornecer medicamentos especiais ou excepcionais aos seus cidadãos,

desde que comprovem o seu estado de carência e também de sua família, questiona-se: a) se a

prestação de medicamentos excepcionais, pode servir para regulamentar o fornecimento de

medicamentos normais, e b) o que distingue um fármaco normal em face de um excepcional.

A Constituição Estadual do Rio Grande do Sul deve ser interpretada conforme a

Constituição Federal, no sentido de ratificar este sentido solidarístico que chama à

responsabilidade a família para contribuir na mantença do sistema republicano e federativo de

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saúde, dando sua quota-parte, seja ela qual for, na medida de sua possibilidade e diante da

necessidade do parente enfermo.

No entanto, como se fará isto em nível de demandas judiciais que envolvem a

prestação de medicamentos, internações hospitalares, etc.? Por via simétrica – respeitada

sempre a urgência e especificidades da matéria – à forma e prova judiciária que

instrumentalizam os feitos que envolvem a efetivação de obrigações alimentares,

oportunizando e reivindicando a demonstração da necessidade do enfermo e a possibilidade

de contribuição para o atendimento da demanda dos seus familiares, tomando aqui como

referência os vínculos parentais estatuídos pelo próprio sistema jurídico brasileiro.

O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de tratar deste assunto no âmbito

da Adin nº 2.435/200239, quando asseverou, a latere, que cabe à família, à sociedade e ao

Estado o dever de amparar as pessoas idosas, defendendo sua dignidade e bem-estar e

garantindo-lhes o direito à vida. O argumento central da proponente da ADIN contra a Lei

estadual do Rio de Janeiro que determinava que farmácias e drogarias praticassem descontos

de medicamentos para idosos era no sentido de que:

Entende que essa norma, ao obrigar as farmácias e drogarias a conceder descontos no preço dos remédios, viola os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa (art. 170, caput e inciso IV da CF), consistindo em indevida intervenção do Estado na ordem econômica. Aduz que a intervenção do Estado só se pode dar de 02 (duas) formas: direta e indireta. Diretamente, quando o Estado explora, ele mesmo, determinada atividade econômica, nas hipóteses expressas na Constituição, ou seja, quanto tal intervenção é necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173, caput). Indiretamente, atuando como agente normativo e regulador, exercendo, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (art. 174, caput).

O autor da ação, de forma equivocada, argumentava que a legislação feria o

princípio da isonomia garantido constitucionalmente, eis que dava tratamento diferenciado ao

idoso, em detrimento de outras camadas da população.

A dimensão e o eixo contemporâneo de referência do princípio da igualdade

substituiu a ideia de não-discriminação formal pelo ideal da não-discriminação material, em

que o postulado da isonomia não mais se refere tão somente à proibição de tratamento

39 Neste feito, pretendia-se obter liminar para suspender os efeitos desta Lei do Estado do Rio de Janeir. Entendeu por bem a Corte não deferir a liminar exatamente em face dos danos que isto poderia causar – como retrocesso social – aqueles que já vinham contando com tal subsídio, bem como aos demais idosos que poderia disto se beneficiar. Relatora Ministra Ellen Gracie. Pendente de julgamento o mérito.

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discriminatório, mas inclui considerações metas-jurídicas atinentes ao tratamento desigual

historicamente prevalecente entre determinados grupos sociais. Em tal circunstância é que

políticas públicas de inclusão social despontam como mecanismos de justiça distributiva,

destinadas a compensar inferioridades sociais, econômicas e culturais.40

Nesta direção vai Flávia Piovesan, ao sustentar que se afigura insuficiente, desde

uma perspectiva dos Direitos Fundamentais, tratar hoje o indivíduo – sujeito de direito – de

forma genérica, geral e abstrata, impondo-se considerá-lo em face de suas particularidades e

peculiaridades, o que vai gerar, por conseqüência, tratamento específico e diferenciado diante

das violações de direitos atinentes a estes sujeitos. Em tal cenário, mulheres, crianças,

população afro-descendente, imigrantes e migrantes, pessoas portadoras de deficiências,

dentre outras categorias potencial e efetivamente vulneráveis, devem ser vistas nas

especificidades e particularidades de suas condições sociais.41

O Tribunal Regional Federal da 4º Região já teve oportunidade de deliberar sobre

matéria similar, sustentando, em sede de Agravo de Instrumento, que o Princípio

Constitucional da Igualdade tem, em verdade, uma dupla faceta:

[...] supõe, ao lado de uma “proibição de diferenciação”, em que “tratamento como igual significa direito a um tratamento igual”, também uma “obrigação de diferenciação”, em que tratamento como igual “significa direito a um tratamento especial”, possibilitando “disciplinas jurídicas distintas” ajustadas às desigualdades fáticas existentes.42

Um Estado que se queira Democrático e de Direito tem de lançar mão de

iniciativas pró-ativas da igualização material de categorias sociais que se encontram em

estado de discriminação, aqui entendido como condição de separado, distinguido, segregado

contextualmente de seu tempo e espaço.43 Tal comportamento estatal evidencia aquilo que

Antonio E. Pérez Luño chama de dupla dimensão constitutiva do princípio da dignidade da

pessoa humana: (a) a negativa, que busca impedir a submissão da pessoa humana a

40 CASTRO, 2005, p. 364. 41 PIOVESAN, 2003, p.252. Decorre destes argumentos a afirmação acertada de Piovesan no sentido de que ao lado do direito à igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito à diferença e à diversidade, eis que, considerando o processo que a autora chama de feminilização e etnização da pobreza, percebe-se que as maiores vítimas de violação dos direitos econômicos, sociais e culturais, são as mulheres e os afro-descendentes, decorrendo daí a necessidade de adoção, além de políticas universalistas, algumas específicas, capazes de dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno exercício dos seus direitos. 42 Agravo de Instrumento nº 2008.04.00.005863-3/RS, em que figurou como Agravante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, discutindo o tema da reserva de cotas. Relatora Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, despacho dado em 25/02/2008. 43 DA MATTA, 1997. No mesmo sentido o trabalho de Lynn Huntley e Antonio Sergio Alfredo Guimarães, Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil, 2000.

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degradações; e (b) a positiva, que impõe a garantia de condições para o pleno

desenvolvimento da personalidade deste homem (enquanto gênero).44

É a chamada justiça redistributiva que ganha espaço de pertinência, no sentido da

promoção de oportunidades por meio de políticas públicas para aqueles que não conseguem se

fazer representar de maneira igualitária, operando o Estado – no âmbito legislativo, ações

executivas e mesmo jurisdicionais – como redistribuidor de benefícios aos cidadãos, de

maneira a tentar compensar as desigualdades que o preconceito e a discriminação efetuaram

no passado e continuam a efetivar no presente.45

É bem verdade que, nesta mesma ADIN, o Ministro Marco Aurélio, destacou fato

interessante que releva os impactos econômicos potencialmente unilaterais na espécie, a

saber:

Há um outro aspecto – por isso aludi à proporcionalidade: é que, na hipótese concreto, não se distingue quanto á possibilidade de aquisição dos remédios, considerado o preço, por aqueles que, estando aquém das faixas etárias referidas, não têm condição de comprar, só o fazendo com o sacrifício da própria alimentação. Na lei não se cogita, sequer – aí, eu diria que o legislador acabou cumprimentando com chapéu alheio –, de uma compensação, tendo em vista a postura do próprio Estado, na condição de credor do Imposto sobre circulação de Mercadorias e Serviços. Simplesmente, na lei impõem-se os descontos, sem se atentar para a situação financeira do adquirente do remédio, bastando o fator objetivo “idade”, e, ainda, prevê-se, em caso de desobediência, multa pesada no importe de 5.000 UFIR’s.

Poderia efetivamente a legislação ter levado em conta os impactos econômicos

que iria provocar no mercado de medicamentos no Rio de Janeiro, como ônus social imposto

às atividades sob comento, para estabelecer melhores critérios seletivos fundados na

necessidade material do idoso em obter tais benefícios, uma vez que o pressuposto fático

fundador da medida é a de que todos os idosos do Estado do Rio de Janeiro necessitam de

fomentos desta natureza para exercerem um direito fundamental que é a vida digna, no âmbito

da saúde, o que pode não ser verdade, uma vez que tais custos são suportados pelos demais

consumidores.

Daí a razão da aplicação, quando possível, da ponderações materiais exaustivas na

tomada de decisões que envolvem tantos e tão diversificados interesses sociais e

institucionais, sob pena de se violar demasiadamente direitos de uns em benefício de poucos.

44 LUÑO, 2000, p.321. 45 FISCUS, 2002, p.11.

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Assim com Canotilho, é possível concluir que efetivamente é chegada a hora dos

constitucionalistas se darem conta dos limites da jurisdição e reconhecer, com humildade, que

a Constituição já não é o lugar do superdiscurso social, levando em conta que a eventual

colisão de discursos reais de aplicação da Constituição terão de ser supervisionados a partir de

colisões de valores ideais (a vida, a segurança, a integridade física, a liberdade, a saúde de

todos e não de alguns) que integram o justo de uma comunidade bem- ou mal – ordenada.46

Partindo do pressuposto de Boaventura de Souza Santos47, que tanto a sociedade

democrática como o Estado democrático só se justificam a partir do reconhecimento de suas

naturezas multiformes e abertas, constituindo-se ambos num campo de experimentação

política emancipadora, permitindo que diferentes soluções institucionais e não-institucionais

coexistam e compitam durante algum tempo, com caráter de experiências-piloto, sujeitas à

monitorização permanente de organizações sociais, com vista a proceder a avaliação

comparada dos seus desempenhos48, tenho que, levando em conta aquelas políticas

constitucionais, o envolvimento de toda a comunidade se faz necessário à concreção dos

direitos em geral, e do direito prestacional à saúde em especial.

Esta nova forma de um possível Estado e Sociedade democráticos deve se

assentar em dois princípios de experimentação laboratorial:

O primeiro é de que o Estado só é genuinamente experimental na medida em que às diferentes soluções institucionais são dadas iguais condições para se desenvolverem segundo a sua lógica própria. Ou seja, o Estado experimental é democrático na medida em que confere igualdade de oportunidades às diferentes propostas de institucionalidade democrática. Só assim a luta democrática se converte verdadeiramente em luta por alternativas democráticas. Só assim é possível lutar democraticamente contra o dogmatismo democrático. Esta experimentação institucional que ocorre no interior do campo democrático não pode deixar de causar alguma instabilidade e incoerência na ação estatal e pela fragmentação estatal que dela eventualmente resulte podem sub-repticiamente gerar-se novas exclusões.49

O segundo princípio adotado pelo pensador português, com o qual concordo e

aqui quero aplicar, deixa muito clara a importância que o Estado tem ainda na constituição de

46 FISCUS, 2002, p.129. Ver igualmente o texto de Robert Burt, A. The constitution in conflict, 2002, p.81 e seguintes. 47 SANTOS, 1999, p.126. 48 Criando, por exemplo, mecanismos de acompanhamento e avaliação permanente das instituições (Executivo, Judiciário, Legislativo), tanto no âmbito do controle interno (a ser maximizado com estratégias e instrumentos de visibilidade plena de suas ações), como do externo (com conselhos corporativos e populares, mais os tradicionais já existentes). 49 SANTOS, 1999, p.127.

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uma gestão pública compartida do direito à saúde (e dos direitos fundamentais em geral), pois

que deve servir de garante não só da igualdade de oportunidades aos diferentes projetos de

institucionalidade democrática, mas também garantir padrões mínimos de inclusão, que

tornem possível a cidadania ativa participar, monitorar, acompanhar e avaliar o desempenho

dos projetos alternativos. Esses padrões mínimos de inclusão são indispensáveis para

transformar a instabilidade institucional em campo de deliberação democrática.

Neste ponto está certo Tribe50, ao afirmar que:

[...] a Constituição não é um espelho em que cada um vê o que quer, nem um documento confiado as mudanças políticas de seus intérpretes. Seu trabalho é criar uma nação através das palavras e, portanto, deve desfrutar o mais amplo apoio entre os cidadãos. (tradução livre)51

Em face de tudo isto, é preciso encontrar uma forma de contemporizar tão

diferentes desafios no âmbito do direito à saúde, partindo do pressuposto de que tal tarefa

cabe a todos e não somente a alguns.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os direitos fundamentais não são estáticos, mas acompanham o processo

histórico, que conhece avanços e retrocessos, e são radicados em uma série de direitos

naturais do homem, reconhecidos pela sua própria condição humana. E, o direito fundamental

à saúde está inserido nesse processo, que, ao longo dos últimos 40 anos têm sido assimétrico,

em especial em termos de qualidade diante da escassez de recursos público.

Sabe-se que a insuficiência de recursos dos cofres públicos não deve ser

argumento para se permitir o esvaziamento de tal direitos fundamentais, já que reconhecidos

como elementos responsáveis pelo desenvolvimento humano e pelo aumento da capacidade

das pessoas para provocarem a mudança nas famílias, comunidades e países.

No entanto, a proteção da saúde deve atualmente interpretada não somente como

um direito em sua dimensão coletiva e até mesmo difusa, e decorrente de grandes esforços das

50 TRIBE; DORF, 2005. 51 “la Costituzione non è uno specchio in cui ognuno vede quello che vuole, né un documento affidato alle sempre mutevoli suelte politiche dei suoi interpreti. È suo compito creare una nazione attraverso le parole e, pertanto, debe godere del più ampio consenso fra i cittadini consociati.”

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políticas públicas, mas também exercido e protegido individualmente, seja no âmbito da

responsabilidade institucional ou familiar, levando em conta a própria estrutura normativa

constitucional e infraconstitucional brasileira.

Nesta perspectiva, Assim, o direito à saúde não pode se concretizar, ou pelo

menos não se concretiza somente através de uma política constitucional, eis que esta é, prima

facie, uma projeção imperativa sobre órgãos constitucionais do Estado das contingências de

várias esferas da sociedade, e sob pena de se violar demasiadamente direitos de uns em

benefício de poucos.

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JULGADOS

Agravo de Instrumento nº2008.04.00.005863-3/RS, em que figurou como Agravante a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, discutindo o tema da reserva de cotas. Relatora Desembargadora Federal Maria Lúcia Luz Leiria, despacho dado em 25/02/2008.

Apelação Cível e Reexame Necessário nº70028464881, Sétima Câmara Civel, TJRS, relator des. Ricardo Raupp Ruschel, julgado em 10/06/2009.

Apelação Cível Nº 70007665268, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 20/05/2004.

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RE 102877, STF, 2ª T., Rel. Min. DJACI FALCÃO, J. 14.09.1984;

Recurso Extraordinário n. 566.471-6, originário do Estado do Rio Grande do Norte.

REsp 184807/SP, STJ, 4ª T., Rel. Min. BARROS MONTEIRO, J. 24.09.2001.

REsp 811608/RS; Recurso Especial nº2006/0012352-8. 1ª Turma, Relator Min. Luis Fux, julgado em 15/05/2007, publicado no DJ 04.06.2007 p. 314.

TJPE – AgRg 93939-5/01 – Rel. Des. Leopoldo de Arruda Raposo – DJPE 29.10.2003.

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O DIREITO SOCIAL À MORADIA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL

Rogério Luiz Nery da Silva1

Thuany Klososki Piccolo2

RESUMO

Tema dos mais visitados no meio jurídico-político-administrativo, as políticas

públicas ganharam a cena nos anos setenta do século passado e vem aos poucos

se fazendo reverberar por diversos ramos do conhecimento acadêmico e da prática

política governamental e administrativa. Pode-se estudar o tema das políticas de

forma teórica generalizada ou pelo viés prático. Pode-se ainda fazê-lo com foco em

determinado serviço público ou necessidade prestacional específica dos cidadãos. O

presente estudo visa a abordar o direito à moradia vem sendo cada vez mais

mencionado nas discussões jurídicas e sociais, em função dos altos índices de

déficit habitacional nas cidades e da dificuldade de acesso a uma moradia digna

para as parcelas mais pobres da sociedade. O direito à moradia foi incorporado pelo

direito brasileiro em função, principalmente, dos tratados internacionais de direitos

humanos, dos quais o Brasil é signatário. Expressamente, o direito à moradia

passou a fazer parte da Constituição Federal de 1988 por meio da Emenda

Constitucional nº 26, de 2000, a qual o incluiu no artigo 6º, que trata dos direitos

fundamentais sociais. Por se tratar de um direito fundamental, o direito à moradia

deve ter aplicação imediata e eficácia plena. No entanto, tendo em vista a questão

orçamentária do Estado, a realização desse direito de forma plena para todos os

cidadãos é, praticamente, impossível. O histórico das políticas públicas habitacionais

no Brasil mostra como os principais programas não conseguiram obter êxito entre as

camadas sociais mais baixas, facilitando, de certa forma, os financiamentos para as

classes média e alta, contribuindo diretamente para o alto deficit habitacional

brasileiro.                                                                                                                          1 Rogério Luiz Nery da Silva é professor pós-doutor em Direito Constitucional pela New York Fordham University (EUA); Doutor em Direito Público e Mestre em Direito e Economia. Professor-doutor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito e pesquisador líder de grupo em Direitos Fundamentais Sociais, na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), orientador da segunda autora. 2 Thuany Klososki Piccolo é universitária da graduação em Direito, bolsista de Iniciação à Pesquisa na Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), orientanda do primeiro autor.

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PALAVRAS CHAVE: direito à moradia, dignidade da pessoa humana, direito

fundamental social, políticas públicas habitacionais.

ABSTRACT Public policies is now a matter considered one of the most discussed themes in the

administrative, judicial and political circles. The increasing of its attention has started

in the nineteen seventies of the last century and it has been gradually reverberating

over many branches of the academic knowledge, governmental practices and

administrative policy. It is possible to study the policies’ issue under a view of general

theory or under a sight of its practical doing. Another alternative option is to focus the

politics under an individual public service sight or under a collective citizen’s

provisional need. This essay aims to establish a connection to the theme of the right

to housing, from its conception grounded in human dignity, passing by the evolution

of its historical recognition and remarkable obstacles materialized by the lack of

housing, noted for lower-income population, e.g., the difficulty for condign housing

access for the poorest part of the society. The right to housing was incorporated into

Brazilian law largely due to international human rights treaties signed “by the

country”, but it was on account of the Constitutional Amendment No. 26 from 2000

that the right to housing was inserted expressly in the body of the Constitution, in the

social rights’ specific chapter. Considered as a fundamental human right, the social

right to housing should have immediate applicability and full effectiveness,

supposedly, on account of the constitutional structure. However, such assumptions

are so far away from becoming real, though appearing implicitly as formal objectives

of the Federative Republic of Brazil, established by Article 3 of the Brazilian

Constitution – “to eradicate poverty and social marginalization”, whose provision

collides with several personal financial difficulties and state budgetary barriers; the

analyses of the Brazilian housing public policies indicates very moderate results,

mainly among the poorer people, aggravating the severe national housing deficit.

KEY WORDS: social rights; right to housing; human dignity; housing public policies.

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I – INTRODUÇÃO

A moradia é uma necessidade básica de qualquer pessoa, enquanto

elemento basal de sua existência, seja tomada como locus da sobrevivência, seja

como ponto de repouso físico, área de proteção contra a ação agentes externos ou

centro das atividades familiares ou, ainda, mero santuário de meditação, criação

intelectual ou mesmo procriação. Daí compreender-se como fundamental zelar pelo

reconhecimento, garantia e efetivação desse especial direito fundamental.

O conceito de moradia transpassa a singular e, por vezes utópica figura do

“sonho da casa própria”, para alastra-se por extensa área léxica compreendendo

para além da idéia de propriedade, também a noção de posse, ou de mera detenção

ou até ocupação. Ultrapassado resta também o conceito material de casa enquanto

imóvel pura e simplesmente – tal como delimitado por um dado endereço e

qualificado por sua extensão métrica ou número de cômodos –, para alcançar outros

critérios, vinculados ao acesso a serviços públicos essenciais conexos com a ideia

de “habitar”, tais como a prestação de serviços básicos de abastecimento de água e

energia, além de boa rede sanitária e outros serviços que possam ensejar noção

complementar, assim compreendidas os desdobramentos em redes de transporte,

segurança e suporte de facilidades públicas, sempre abertas à admissão de novos

conceitos jurídicos (GUERRA, 2008, p. 8).

Singular a contribuição de Gomes (2005, p. 75-78), segundo a qual,

habitação, casa, domicílio, residência, assentamento, moradia, lar e abrigo são

termos que têm em comum o fato de representarem o local em que alguém vive.

Todos abrangem um plexo de interesses e necessidades básicas vocacionadas à

proteção, segurança e bem-estar do morador. Moradia, portanto, compreende o

espaço onde há a possibilidade de exercer o direito de viver com segurança, paz e

dignidade, sendo um elemento essencial ao ser humano.

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A habitação, tomada como moradia constitui-se em direito fundamental do ser

humano, a garantir-lhe a concretização de sua dignidade como pessoa, razão pela

qual se classifica como direito social – de índole coletiva prestacional, mas pode ser

exercido tanto na esfera individual ou como na familiar.

Os problemas envolvendo a efetivação do direito à moradia são os mais

diversos e, sob alguns aspectos dotados de notada complexidade. Sob a ótica das

políticas públicas, pode-se relacionar – como ponto central da agenda – o elevado

déficit de oferta de unidades habitacionais, em especial para pessoas de média e

baixa renda.

Embora haja considerável volume de recursos em fundos especiais

destinados ao financiamento de imóveis residenciais, muitos são os requisitos

exigidos e nem sempre os potenciais candidatos reúnem qualidades aptas a lograr

preenchê-los, especialmente, aqueles provenientes das camadas mais pobres.

Ademais, a desordenada urbanização contribui para uma ocupação pouco

racional do espaço físico, com insuficiente aproveitamento, somando-se ao mesmo

quadro. O número de pessoas que vivem em condições inadequadas de moradia é

alarmante; segundo Marra (2010, p. 6353) estima-se que, somente nos centros

urbanos, existam mais de um bilhão de pessoas sem moradia.

II – EVOLUÇÃO HISTÓRICA E LEGISLATIVA

Sarlet (2011, p. 687-688) destaca que, sob a ótica da evolução histórica, o

direito à moradia – como instituto autônomo – não logrou ser reconhecido até a

Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1958) declará-lo

expressamente na cláusula XXV (1):

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

Desde cedo estabeleceu-se frequente discussão em torno da efetividade dos

direitos assentados na Declaração Universal, que enfrentaram resistências diversas,

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no sentido de negar-lhes a executoriedade, fosse ao atribuir-lhes natureza

meramente “declaratória” – em razão do título “Declaração” adotado –, fosse em

função da ideia de força meramente principiológica, como simples valor inspirativo,

mas sem condão de coagir os Estados-Membros (Altas-partes Contratantes) a sua

observância, atendimento ou cumprimento.

Por essa razão, a ONU identificou a necessidade e conveniência de editar um

novo diploma que pudesse lhes ratificar a força originalmente desejada com a

“Declaração”, mas sob outro enfoque; desta feita o esforço se daria como

compromisso voluntário adotado pelos Estados por meio de um “Pacto”, que, depois

de assinado, se tornaria dever obrigacional: o Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, no artigo 11, § 1º (1966), de elaboração

determinada ao Conselho de Direitos Econômicos o qual foi ratificado pelo Brasil

apenas em 1992,:

Os Estados-partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.

Outros textos internacionais dos quais o Brasil é signatário dão garantias ao

direito à moradia direta ou indiretamente (MILAGRES, 2011, p. 92-95), fazendo-se

digno de nota, no magistério de Sarlet (2011, p. 690) que, hoje, sessenta e cinco

anos após a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cerca de

cinquenta constituições reconhecem o direito à moradia em seu texto legal.

Milagres (2011, p. 105-106) assevera que, no contexto da América Latina,

grande parte dos países prevêem o direito à moradia em seus textos constitucionais,

tal como se verifica nas Cartas do Uruguai, México, Paraguai, Colômbia, Honduras e

Nicarágua, em cujos textos figura a previsão de que – de uma forma ou de outra –

“todos têm direito a uma moradia digna”. A constituição do Equador se refere ao

“direito a uma moradia adequada e digna”; a da Bolívia, refere-se ao “direito a uma

moradia adequada”; as da Guatemala e da Costa Rica tratam da proteção e do

incentivo à construção de moradias populares, respectivamente.

Tem-se, portanto, a assunção em sede constitucional de compromisso

expresso e explícito com a promoção de políticas públicas e ações de governo e

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sociais, públicas e privadas voltadas a garantir o direito social à moradia; é de se

destacar que no caso específico de Argentina, Costa Rica, Paraguai e México a

tutela se projeta mais além, ao ponto de atribuir à moradia a natureza jurídica de

bem de família (MILAGRES, 2011, p. 106).

No Brasil, a Constituição permite correlacionar o direito social à moradia direta

ou indiretamente com muitos dos princípios fundamentais da República, com lócus

topológico nos quatro primeiros artigos de seu texto. O princípio da dignidade da

pessoa humana (art. 1º, III), assim como com os objetivos fundamentais da

República (art. 3º) de “construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (Inc. I),

“erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e

regionais” (Inc. III) e, de certa forma, na opção pela prevalência dos direitos

humanos fundamentais (art. 4º, inciso II), que, muito embora direcionada às relações

internacionais, traduz uma opção incondicional pela dignidade dos seres humanos.

O direito à moradia foi incorporado ao artigo 6º da Constituição Federal, que

faz parte do capítulo II do título I, intitulado “Dos princípios fundamentais”, por meio

da Emenda Constitucional nº 26, de 2000. É importante ressaltar que tal direito já

era mencionado em outros dispositivos constitucionais, tais como no artigo 7º, IV, o

qual define que o salário mínimo é aquele capaz de atender às necessidades vitais

básicas do trabalhador e de sua família, dentre outros elementos, como moradia; e

no artigo 24, IX, quando dispõe sobre a competência comum da União, dos Estados,

do Distrito Federal e dos Municípios para promover programas de construção de

moradia e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico

(SARLET, 2011, p. 690.

Na visão de Campos (2010, p. p.49), ar ser considerado um direito

fundamental, o conteúdo material da norma que o disciplina seria de aplicação

imediata e eficácia plena, À inteligência do parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição

Federal. Rangel et Silva (2009, p. 67-68) apóiam-se sobre o princípio da

aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais, para

sustentarem dispensável regulamentação legislativa ulterior para lograr eficácia

social.

Ao nosso sentir, em que pese a superior relevância do direito à moradia e sua

indeclinável natureza de direito fundamental social, faz-se necessário distinguir que

os conteúdos dos princípios de aplicabilidade imediata e de eficácia plena compõem

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conceitos jurídicos eminentemente distintos, que não se igualam, nem se

sobrepõem, tampouco se confundem: a aplicabilidade imediata, decorre de previsão

constitucional, que ratifica e recepciona a opção pelo efeito imediato – de

retroatividade mínima adotado desde a histórica Lei de Introdução ao Código Civil,

hoje, Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, a conceber a vigência imediata, “no que

couber” a qualquer dispositivo veiculador de direitos fundamentais.

Como é de todos sabido, a limitação do que é “cabível” em termos de

aplicação imediata, se dará a partir da própria arquitetura adotada em cada

dispositivo do texto constitucional, consagrada por diversos modelos de classificação

de normas constitucionais, em torno das ideias de eficácia plena, eficácia contida e

eficácia limitada, com suas nuances, caso a caso, conforme os doutrinadores.

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) refere-se explicitamente ao direito

à moradia a partir da adoção de princípios e diretrizes, fundados no que denomina

princípio instrumental do planejamento (RANGEL et SILVA, 2009, p. 72), voltado a

conferir contornos de sustentabilidade ao direito à moradia no espaço urbano, com o

intuito de regulamentar a política urbana nacional.

III – POLÍTICAS PÚBLICAS HABITACIONAIS NO BRASIL

O processo de habitação no Brasil se mostrou deficitário desde o início da

colonização, quando o sistema de Capitanias Hereditárias dividiu o território nacional

de forma desigual, contribuindo para o surgimento de latifúndios e a centralização de

terras nas mãos de poucos (NOGUEIRA, 2010, p. 7).

De acordo com Motta (2011), no primeiro quartel do século XX, fruto da

abolição da escravatura e do grande número de imigrantes, o problema da habitação

foi agravado em muitas cidades brasileiras, pois o poder público não se via

preparado estrategicamente para a nova realidade do país. Botega (2008, p. 4)

apresenta dados dos censos demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) demonstradores da influência do período de industrialização no

Brasil para o aumento significativo da população urbana.

Depreende-se que em 1920 a carga urbana representava cerca de 11,3% e,

já em 1950, superava a população rural em 55,9%. Assim, a falta de alternativas

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habitacionais, o intenso processo de industrialização e a baixa renda das famílias

contribuíram para que uma grande parcela da população brasileira buscasse

alternativas precárias e informais para morar, caracterizadas pela falta de acesso a

serviços, assistência de infra=estrutura, informalidade na posse da terra, entre

outros (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2009, p. 36)3.

Segundo Nogueira (2010, p. 7), por muito tempo, as moradias foram resultado

de ações da iniciativa privada e do autofinanciamento, até a criação da Fundação da

Casa Popular (FCP) em 1946, órgão federal responsável pelo financiamento da

construção de habitações e que, ao mesmo tempo, apoiava a indústria de materiais

de construção e a implementação de projetos de saneamento4. A FCP tinha o

compromisso de prover residências para a população de baixa renda, mas, seus

resultados foram modestos, tendo criado apenas 17 mil moradias, no espaço

temporal de vinte anos de atuação (MOTTA, 2011).

Em 1964, a Fundação da Casa Popular foi extinta e substituída pelo Sistema

Financeiro de Habitação (SFH) – marco significativo da intervenção do Estado

(governo) no setor habitacional (NOGUEIRA, 2010, p. 7)5. Segundo Motta (2011), o

Plano Nacional de Habitação ou Sistema Financeiro de Habitação foi o primeiro

plano do governo militar e suas ações visavam outros objetivos além da questão da

habitação, como a dinamização da economia, o desenvolvimento do país e o

controle das massas. De acordo com Nogueira (2010, p. 8) e Medeiros (2010, p. 4),

suas fontes de recurso se baseavam na arrecadação do Sistema Brasileiro de

Poupança e Empréstimos (SBPE), por meio da captação das letras imobiliárias e

cadernetas de poupança, e a partir de 1967 passou a contar também com o Fundo

de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), resultado das contribuições

compulsórias com base em 8% (oito pontos percentuais) dos salários dos

trabalhadores empregados formalmente no mercado de trabalho6.

                                                                                                                         3 Dados do período de 1940 a 2000. 4A Fundação da Casa Popular foi a primeira ação do governo destinada à questão da habitação, promulgada pelo Presidente Eurico Gaspar Dutra, por meio do Decreto-Lei nº 9.777, de 6 de setembro de 1946. 5 O Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o Banco Nacional de Habitação (BNH) foram criados pela Lei nº 4.380/64 e modificada dois anos depois pela Lei nº 5.049/66, ambas promulgadas pelo presidente Humberto de Alencar Castello Branco. 6 A arrecadação do FGTS, no início, era destinada apenas para a construção de casas de interesse social, como conjuntos populares, porém, posteriormente foi canalizada também para os setores de saneamento e desenvolvimento urbano.

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Segundo Arrectche (1990); Andrade e Azevedo (1982) citados por Medeiros

(2010, p. 4), o montante arrecadado pelo FGTS deveria ser destinado para financiar

obras para a população de baixa renda, enquanto que a arrecadação do SBPE

financiaria obras direcionadas às classe média e alta.

Entre 1964 e 1965 foram criadas as Companhias de Habitação Popular

(COHABs), que eram empresas públicas ou de capital misto, cujo principal objetivo

era atuar na criação e execução de políticas para reduzir o déficit habitacional por

meio do financiamento de moradias para o mercado popular (MOTTA, 2011).

Segundo Nogueira (2010, p. 9), o BNH não possibilitava o acesso da

população de baixa renda aos empréstimos, facilitando o crescimento do número de

habitações informais, o que teria motivado a criação dos programas habitacionais:

PROFILRUB, PRO-MORAR e João de Barro, destinados à população de renda

inferior a três salários mínimos.

O Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (PROFILURB), criado

em 1975, teve por objetivo atender aos extratos de renda mais baixa, numa especial

tentativa de erradicar favelas e de incentivar o financiamento de lotes urbanizados,

ou seja, com infra-estrutura básica dotada de ponto de água, luz e ligação de coleta

de esgoto, com ou sem a unidade sanitária (BUENO, 2000, p. 30 - 31). Segundo a

mesma autora, o programa financiava lotes entre 80 e 370 m2, num prazo máximo

de 25 anos, com juros entre 2% e 5% (dois e cinco pontos percentuais) ao ano e,

assim, visava facilitar o acesso à terra e atribuir aos mutuários a construção da

moradia.

Ainda de acordo com Bueno (2000, p. 31), o Promorar (Programa de

erradicação da sub-habitação), implementado em 1979, tinha a finalidade de conter

o crescimento de favelas nas grandes cidades, por meio do financiamento de

unidades habitacionais de até 24 m2, num prazo máximo de 30 (trinta) anos e com

juros de 2% (dois pontos percentuais) ao ano. Medeiros (2010, p. 5) ressalta que foi

a primeira ação em que não se buscou remover os moradores, mas fixá-los no

núcleo originalmente invadido de terra. Realizado por construtoras, esse programa

financiou cerca de 206 (duzentos e seis) mil moradias em todo o país até 1984,

contabilizando o triplo de unidades a mais que o Profilurb (BUENO, 2000, p. 31).

O Programa João de Barro, criado em 1982, no contexto do “processo de

abertura política” e diante de severa crise econômica, propugnou pelo acesso à

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moradia, financiando o terreno e o material de construção, contando com a

participação da coletividade, focando com prioridade as cidades do interior e

destinando-se às famílias com renda de até 3 salários mínimos.

De acordo Bueno (2000, p. 31), o programa disponibilizou financiamentos em

prazo máximo de 30 (trinta) anos, com juros de 2% (dois pontos percentuais) ao

ano, mas obteve pouca eficiência, com apenas 7 (sete) mil unidades produzidas até

1984, principalmente em cidades do interior do Nordeste.

No contexto do Sistema Financeiro de Habitação, o Banco Nacional da

Habitação foi o principal órgão da política habitacional, cabendo-lhe orientar,

disciplinar e controlar a atuação do SFH na construção e aquisição da casa própria

para população de baixa renda (MOTTA, 2011).

Medeiros (2010, p. 3) afirma que, além de ter um objetivo social, o BNH

também buscou incentivar a economia por meio da aumento da mão de obra na

construção civil. Já Nogueira (2010, p. 8) atribui aos índices de inflação

extremamente elevados na década de 1980 a derrocada do Sistema Brasileiro de

Poupança e Empréstimo e principalmente do Banco Nacional de Habitação (BNH)

pela intensa e insustentável inadimplência.

O fenômeno se caracterizou por um reajuste superior nas prestações dos

financiamentos imobiliários das classes média e alta em comparação com seus

índices de reajuste salarial. Nesse contexto, em 1986, deu-se a extinção do BNH,

pelo Decr. nº 2.291. Suas atribuições e funções foram transferidas para a Caixa

Econômica Federal (BOTEGA, 2008, p. 10). A Política Nacional de Habitação, a

crise do SFH e a extinção do BNH criaram um hiato na política habitacional no país,

com significativa redução dos recursos destinados a investimentos na área de

construção civil e consequente fragmentação institucional por perda da capacidade

decisória.

Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC) criou o Programa Nacional

de Mutirões Habitacionais (1987), destinado a financiar habitações para famílias com

renda inferior a 3 (três) salários mínimos e coordenar programas de obras de infra-

estrutura, regularização fundiária em favelas, construção de habitações em regime

de mutirão e instalação de equipamentos comunitários em favelas (BUENO, 2000, p.

32).

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Nogueira (2010, p. 10) menciona que nos anos de 1990 e 1991, a gestão de

políticas públicas habitacionais foi reestruturada, ampliando-se significativamente o

controle social e a transparência da gestão de programas por exigir a participação

comunitária. O que se deu por meio de conselhos e dos governos municipais (de

poder local), além de uma contrapartida financeira.

Botega (2008, p. 12) demonstra que, pelos dados do IBGE, de 1991, o

número de moradores de rua chegava há 60 (sessenta) milhões de pessoas e que

cerca de 55,2% (cinquenta e cinco pontos percentuais e dois décimos) das famílias

se encontravam em déficit habitacional.

Bueno (2000, p. 33) explica que a década de 1990 se caracterizou como

período de grande conturbação política e de muitas mudanças na estrutura

institucional da gestão da problemática de estrutura urbana, habitacional e social.

O período de 1990 a 1992 representou a implementação de diveros

programas habitacionais, mas o que teve alguma expressão foi o Plano de Ação

Imediata para a Habitação (PAIH), que previu o financiamento de 245 (duzentos e

quarenta e cinco) mil casas em 180 (cento e oitenta) dias, por meio da contratação

de construtoras (BUENO, 2000, p. 33). Botega (2008, p. 12), entretanto, adverte que

o prazo inicial se estendeu por mais de dezoito meses, aumentando o custo médio

inicialmente previsto e diminuindo o número de moradias construídas para 210

(duzentos e dez) mil.

No período de 1992 a 1994, foram criados dois programas voltados à questão

da habitação, o “Habitar Brasil” e o “Morar Município”, que buscavam financiar obras

e ações nos municípios e capitais de estados ou integrantes de regiões

metropolitanas e aglomerados urbanos voltados para a população de baixa renda

com renda familiar de até 3 (três) salários mínimos (MOTTA, 2011); nesse contexto,

entretanto, o excesso de exigências legais restringiu em muito a captação de

recursos postos à disposição dos municípios. Bueno (2000, p. 33) registra que,

apesar dos resultados pouco expressivos (aproximadamente 18 mil unidades

construídas até 1994), os referidos programas tiveram sua importância no sentido de

reformular o pensamento nacional quanto à política habitacional.

Entre 1994 e 2002, várias reformas do setor habitacional se mostraram

efetivas, promovendo uma reorganização do aparato institucional referente à Caixa

Econômica Federal,com sua atuação limitada a agente operador dos recursos do

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FGTS e agente financeiro do SFH. À Secretaria de Política Urbana (SEPURB) restou

o papel de formular e coordenar ações relativas ao saneamento e infra-estrutura

(SOUZA, 2005, p. 75 - 76). Criaram-se novas linhas de financiamento, baseadas em

projetos dos governos estaduais e municipais.

Criou-se o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que atuou na

construção de novas unidades para arrendamento, utilizando recursos

principalmente formados pelo FGTS e de origem fiscal (MINISTÉRIO DAS

CIDADES, 2009, p. 42). Deu-se, ainda, o surgimento do programa Construcard

(Caixa Econômica Federal), voltado à compra de materiais de construção, por meio

de financiamento direto, a juros menores que os praticado no mercado bancário

(BUENO, 2000, p. 34).

Souza (2005, p. 81) relata a criação do Ministério das Cidades, em 2003,

voltado à política urbana e às políticas setoriais de habitação, saneamento e

transporte. O óbice anterior caracterizou-se pela descontinuidade e ausência de

estratégias para buscar garantir o direito a moradia. O Ministério das Cidades

passou a ser o órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de

Desenvolvimento Urbano e, dentro dela, da Política Nacional de Habitação.

Segundo Azevedo (2012, p. 3), a lei federal nº 11.124/2005, que trata do

Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), criou o Fundo Nacional

de Habitação de Interesse Social (FNHIS), a fim de garantir o acesso à habitação

digna para população de menor renda, pela implementação de políticas e programas

de investimento e subsídios. A lei nº 11.888/2008, que assegurou às famílias de

menor poder aquisitivo assistência pública para a construção de moradias de

interesse social (AZEVEDO, 2012, p. 10).

De acordo com Motta (2011), o programa “Minha Casa, Minha Vida” em

20097, cuja meta era de construir um milhão de casas, num total de R$ 34 bilhões de

subsídios para atender famílias com renda entre 0 a 10 salários mínimos, pretendeu

estimular também a criação de empregos e de investimentos no setor da construção

civil.

Nogueira (2010, p. 2) o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi,

juntamente com o anterior, considerado um dos motivos para a queda do déficit

                                                                                                                         7 Programa decorrente da Medida Provisória (MP) nº 459/2009, convertida na Lei nº 11.977/2009, a qual foi alterada pela MP nº 514/2010, convertida na Lei nº 12.424/2011(IPEA, 2012, p. 3).

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habitacional urbano. O PAC teve como prioridade atender as regiões metropolitanas,

aglomerados urbanos e cidades com mais de 150 mil habitantes.

Como se pode verificar, muitas foram as iniciativas governamentais, sob a

forma de políticas públicas, voltadas a suprir o déficit de oferta de moradia de baixo

custo e mesmo à classe média. Entretanto, verifica-se, também, que via de regra, os

objetivos foram supra-estimados e deixaram de ser alcançados.

Identifica-se, pois, um misto de otimismo, com irresponsabilidade e,

possivelmente, certa pirotecnia eleitoral, voltada a objetivos menos eficazes que o

da redução do déficit de moradias. Também não se viu falar eficazmente de

programas de desestímulo à migração interregional no país – certamente um dos

fatores responsáveis pela grande concentração populacional nos grandes centros e

fator de pressão social habitacional, a expandir as moradias subhumanas. A

incapacidade de pagamento dos financiamentos, em razão dos altos custos e da

baixa renda da população também se fez fator de pressão negativa. A história

brasileira demonstra que o Estado não tem sido capaz de garantir a igualdade

habitacional, como o direito social à moradia, seja por meio de suas intervenções

operativas, seja por meio de reformas pontuais. Como se constatou, os interesses

da população, em especial, a de baixa renda, tem sido atendidos sistematicamente

de forma parcial, incompleta e, por vezes, injusta, disponibilizando benefícios que se

concentraram nas mãos da classe média e, por vezes, até beneficiaram a classe

mais alta, sem, contudo, resolver o problema das classes subalternas.

IV - VISÃO CRÍTICA DO PROBLEMA

Sarlet (2011, p. 703) critica a desatenção com a referida política, fenômeno

responsável pela carência de ações e resultados no espaço público e privado das

metrópoles brasileiras, onde o problema se mostra mais caótico, com o

desenvolvimento de soluções informais desumanas, como o direcionamento quase

que natural das populações carentes à opção por instalar-se em modelos de

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concepção perversa, como as favelas, os cortiços e moradias precárias, em áreas

de risco, como também destaca Azevedo (2012, p. 2).

Almeida (2009, p. 83) informa que a Constituição atribuiu ao Estado a

responsabilidade de defender o direito à moradia em termos de garantia, tutela e

efetivação, vinculando-o à noção de conteúdo mínimo existencial, vale dizer,

complexo de tutelas materiais voltadas a conferir condições mínimas essenciais de

vida digna, que, por sua vez, não se confunde com a noção subexistencial do

“mínimo vital” ou “mínimo de sobrevivência”, por sobrepor-se à mesma tanto em

alcance quanto em intensidade, por ir alem da mera sobrevivência para abarcar a

noção de vida digna. O certo é que a noção de mínimo existencial tem comportado

as mais diversas, severas e acaloradas discussões em torno de seu conteúdo

material e processual, não se podendo sustentar que qualquer direito possa ser

incluído nesse especial rol, dado o risco de vulgarização de classe criada e

destinada a justificar tratamento diferenciado, materializador da igualdade

substancial, o que não se coaduna com generalizações irresponsáveis, dada a sua

dimensão essencial inalienável (TORRES, 2009, p. 13).

O mínimo existencial se vincula sobremaneira ao princípio da dignidade da

pessoa humana, constituindo-se pressupostos existenciais mútuos (RANGEL et

SILVA, 2009, p. 65). Nesse jaez, ninguém pode se ver privado do que se considera

o mínimo necessário à conservação de sua vida, em termos de prestações sociais

asseguradas pelo Estado (ALMEIDA, 2009, p. 85) e mesmo pela sociedade – pelo

princípio da solidariedade universal.

Sarlet (2011, p. 696) menciona o pensamento de Hegel (1981) no sentido de

que a propriedade constitui o espaço de liberdade da pessoa (SphäreihrerFreiheit),

ou seja, a pessoa não terá a sua dignidade garantida se residir em um local que não

lhe garanta a mínima segurança para si e sua própria família ou que não assegure

um espaço para se viver com condições mínimas, com qualidade de vida, segundo

os parâmetros de exigência da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A dignidade da pessoa humana é um valor próprio da essência do ser

humano, serve de fundamento para qualquer reflexão que o envolve e sua

conceituação é difícil em função de sua evolução e transformação histórica

(TORRES, 2009, p. 13).

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Sarlet (2010, p. 70) elabora um conceito de dignidade da pessoa humana

tomando por base a evolução histórica desse princípio:

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Sarlet (2010, p. 68-89), com muita propriedade, adverte que a dignidade da

pessoa humana determina que os direitos e as garantias fundamentais devam ser

prestados na medida do possível, sem olvidar dos limites das possibilidades fáticas

e jurídicas, por isso tem-se a relação desse princípio com os direitos fundamentais

como vínculo indissociável, já que todos esses são fundamentados direto e

imediatamente ao princípio da dignidade da pessoa humana. A ausência de respeito

à vida e o desconhecimento dos direitos fundamentais reconhecidos e assegurados,

expõe as pessoas a arbitrariedades, injustiças e excessos pelo Estado e por

particulares.

Do exposto, conclui o autor (2010, p. 109 e 119), que diante de uma violação

a um direito fundamental, viola-se também o princípio da dignidade da pessoa

humana, pois o processo de humilhação ao qual alguém passa por se encontrar em

um estado de exclusão social ou de falta de condições ao mínimo existencial é

totalmente degradante.

Também conexo com a presente discussão, pode-se remeter ao problema de

carência habitacional dos denominados desplazados8. A Lei colombiana nº 387 de

1997, em seu artigo 1º, denomina como desplazado toda pessoa forçada – por meio

de violência - a abandonar sua residência ou atividade econômica habitual e migrar

dentro do território nacional por ocasião de conflito armado interno, disputa por

territórios geoestratégicos, áreas para prática de pecuária extensiva e agricultura

comercial, entre outros motivos.

                                                                                                                         8 OLIVEIRA (2006) recomenda o emprego do termo desplazados em espanhol – sem tradução, por não encontrar terminologia adequada em português a definir essa categoria jurídico-social. VIANA (2009) e também JUBILUT et APOLINÁRIO (2010) preferem empregar o termo deslocados internos para referir-se aos “refugiados” que se vêem expulsos de suas terras por narcotraficantes ou por força da guerra civil colombiana entre forças legais e guerrilheiros.

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De acordo com dados recentes do Alto-Comissariado das Nações Unidas

para os Refugiados (Agência da ONU para Refugiados – ACNUR), estima-se que há

mais de 43 milhões de pessoas em todos os continentes, que se encontram na

condição de refugiados, apátridas, repatriados e desplazados. Dos 13,5 milhões de

desplazados que o ACNUR estima existir no mundo, cerca de 3 milhões encontram-

se na Colômbia.

Viana (2009, p. 145) explica que mesmo sendo um problema extremamente

delicado, já que essas pessoas deixam suas residências e precisam procurar outras

localidades para viver, perdendo muitas vezes entes queridos em função da

violência e deixando para trás valores culturais, e que data da década de 1980, o

Estado colombiano só iniciou medidas para combater essa questão no final dos

anos 1990 com a Lei 387/1997, citada anteriormente, a qual transfere para o Estado

a responsabilidade na formulação de políticas e adoção de medidas para amparar a

população de desplazados. Tal situação mostra o desafio que os países afetados

por esse fenômeno precisam enfrentar para tentar possibilitar à essas pessoas a

recuperação do sentimento da dignidade da pessoa humana.

Segundo Sarlet (2011, p. 698), o fato da nossa Constituição se referir ao

direito a moradia no artigo 6º de forma genérica, ou seja, sem nenhum adjetivo, não

justifica que tal direito tenha seu conteúdo esvaziado e fique aquém dos critérios

estabelecidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana e do mínimo

existencial.

Nesse sentido, cabe mencionar a iniciativa das prefeituras em implantar o

auxílio do “aluguel social”, que consiste na concessão de benefício financeiro

destinado ao pagamento de aluguel de imóvel de terceiros para famílias que não

possuam outro imóvel próprio, visando ampará-las nas situações em que perdem

suas casas por ocasião de catástrofes naturais ou por viverem em áreas de risco9.

Em seu texto, Sarlet (2011, p. 702) cita que a Comissão da ONU criou um

padrão internacional para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, enunciando uma

série de elementos básicos a serem atendidos em termos de direito a moradia, tais

como a segurança jurídica para a posse; disponibilidade de infra-estrutura básica

para a garantia da saúde e saneamento básico; acesso em condições razoáveis à

moradia, especialmente para pessoas com deficiência e acesso ao emprego.

                                                                                                                         9  (Lei nº 1.101/2010, Art. 1º, REGISTRO – SP).  

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Todo cidadão tem a prerrogativa de recorrer ao Poder Judiciário para ter uma

resposta à violação de seus direitos, como preconiza o princípio da inafastabilidade

da jurisdição previsto em nossa Constituição no inciso XXXV do artigo 5º. Porém os

direitos fundamentais não são absolutos, por isso é necessário que sempre seja feito

o sopesamento dos bens constitucionais, princípios e direitos em questão para

chegar a uma decisão justa (ALMEIDA, 2009, p. 88). Nesse sentido, Campos (2010,

p. 50) afirma que é preciso interpretar os direitos sociais com clareza e coerência,

pois se o Estado provesse todos os direitos de forma plena, toda a sua condição

orçamentária seria afetada, levando-se em consideração a realidade e os limites do

mesmo. Tratar sobre a justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais é um tema

complexo e que ainda carece de respostas, inspirando debates e estudos sobre o

assunto, mas que não será objeto de discussão nesse presente trabalho.

Piovesan (2010, p. 55) afirma que, com relação ao aspecto constitucional

pátrio, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a incluir os direitos sociais como

direitos fundamentais. No mesmo sentido, Gallo (2007, p. 1551-1552) explica que

essa categoria de direitos tem caráter coletivo, dependem de decisões tomadas pelo

Poder Público e sua eficácia depende da ação conjunta dos três poderes e da

criação e implementação de políticas públicas.

Além disso, os objetos dos direitos sociais são bens públicos e coletivos, seus

conflitos são distributivos e plurilaterais, sendo que as perdas e ganhos dos conflitos

são divididos entre todos os cidadãos (MARINHO, 2009, p. 5).

Para Dias (2012, p. 4), a maior dificuldade para a eficácia dos direitos

fundamentais sociais é a prestação dos serviços sociais básicos pelo Estado, os

quais estão diretamente relacionados com a criação, execução e o gerenciamento

das políticas públicas.

A mesma autora questiona a viabilidade orçamentária e a responsabilidade de

planejar o desenvolvimento nacional, buscando condições para o exercício dos

direitos sociais pelos cidadãos.

Piovesan (2010, p. 67- 68) empresta o pensamento de Asbjorn Eide e Allan

Rosas (1995, p. 17-18) :

Levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério implica, ao mesmo tempo, um compromisso com a integração social, a solidariedade e a igualdade, incluindo a questão da

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distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e culturais incluem como preocupação central a proteção aos grupos vulneráveis. (...) As necessidades fundamentais não devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas estatais, mas devem ser definidas como direitos.

Embora se possa sustentar que a partir da inclusão do direito a moradia no rol

de direitos fundamentais sociais, todos os cidadãos teriam esse direito subjetivo, em

termos práticos e objetivos, Campos (2010, p. 50) ressalta que não é possível se

desprender da realidade, das limitações e condições orçamentárias e da escassez

de recursos do Estado, tornando a efetivação do direito à moradia, algo ainda

carente de grandes elaborações e construções jurídicas e econômicas.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS O direito a moradia vem sendo cada vez mais mencionado nas discussões

jurídicas e sociais, em função dos altos índices de déficit habitacional nas cidades e

da dificuldade de acesso a uma moradia digna para as parcelas mais pobres da

sociedade.

O direito a moradia foi incorporado pelo direito brasileiro em função,

principalmente, dos tratados internacionais de direitos humanos, tais como a

Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional dos

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), dos quais o Brasil é signatário.

Expressamente, o direito a moradia passou a fazer parte da Constituição Federal de

1988 por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 2000, a qual o incluiu no artigo

6º, que trata dos direitos fundamentais sociais.

Por se tratar de um direito fundamental, de acordo com o parágrafo 1º do

artigo 5º da Constituição, o direito a moradia deve ter aplicação imediata e eficácia

plena. No entanto, tendo em vista a questão orçamentária do Estado, a realização

desse direito de forma plena para todos os cidadãos é, praticamente, impossível.

Ter uma moradia que possibilite viver em segurança e em condições mínimas

de qualidade de vida é pressuposto básico fundamentado no princípio da dignidade

da pessoa humana e no mínimo existencial, sendo, por isso, de extrema relevância

a participação do Estado na proteção desse direito.

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O histórico das políticas públicas habitacionais no Brasil mostra como os

principais programas não conseguiram obter êxito entre as camadas sociais mais

baixas, facilitando, de certa forma, os financiamentos para as classes média e alta,

contribuindo diretamente no alto déficit habitacional brasileiro.

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O ESTADO DE BEM ESTAR SOCIAL É COMPATÍVEL COM A GLOBALIZAÇÃO?!

THE WELFARE STATE IS COMPATIBLE WITH GLOBALIZATION?!

JOSÉ VAGNER DE FARIAS1

SUMÁRIO: I. Introdução; II. Liberalismo, socialismo e as origens do “Estado do bem estar social”; III. Neoliberalismo e globalização; IV. A crise capitalista do “Estado do bem estar social”, globalização e reformas; V. Conclusões; X. Referências Bibliográficas.

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo uma análise da possível compatibilidade de “modelo de estruturação de Estado” conhecido como “Estado de bem estar social” em relação à proposta de organização de Estado oriunda do fenômeno mundial da globalização. Para tanto, como pressuposto para se compreender as raízes históricas e políticas da origem daquele, inicialmente faz-se uma análise das contradições e da dialética das propostas de organização estatal feitas pelo liberalismo e pelo socialismo. Depois, tenta-se demonstrar a ligação existente entre globalização e neoliberalismo. Numa crítica reflexão sobre uma suposta crise deste modelo especificadamente, sem levar as contradições maiores do capitalismo, constata-se como o ideário neoliberal globalizante procura justificar uma série de reformas nos Estados, estabelecendo-se um paralelo dessas possíveis modificações com o modelo estudado. Por fim, na conclusão, procura-se responder a indagação feita no título do artigo.

Palavras-chave: Estado de bem estar social. Globalização. Compatibilidade.

Abstract

This works aims to analyse the possible compatibility of the “model of State organization”, better known as “Welfare State” regarding to the one proposed after the phenomenon of globalization. For that, as a fundamental to the comprehension of the origin´s historical and political roots of the that one, initially its made an analysis of the contradictions and of the dialectic that exists in both liberal and socialist proposes. Than, it will be attempted to demonstrate the connexion between globalization and neoliberalism. In a critical observation about a supposed crisis of that last model, forgetting the largest constradictions of the Capitalism, it turns evident how the neoliberal ideas of globalisation try to justify a serie of reforms in the States´ organization, establishing a paralel between this possible changes and the studied model. Finally, at the conclusion of this paper, will seek to answer the question proposed in the title of this article.

Keywords: Welfare State. Globalization. Compatibility.

1 Defensor Público do Estado do Ceará, Aluno da Pós-Graduação em Direito da UNIFOR, no mestrado em Direito Constitucional.

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I. Introdução.

Para se tentar responder a relevante indagação, tema desse trabalho, a qual, atualmente,

tem gerado inúmeros debates e análises na academia, em forúns econômicos, na imprensa

mundial e que está relacionada com atuais e cada vez mais polêmicas reformas que têm sido

realizadas nas estruturas administrativas dos Estados pelo planeta, principalmente em setores

tradicionamente considerados como políticas de “Estado de bem estar social”, alterações estas

motivadas pela ideologia neoliberal muitas vezes não perceptível no fenômeno da

“globalização”, torna-se indispensável, antes mesmo de uma análise do quem vem a ser tal

fenômeno econômico-político na atualidade e se compreender o próprio conceito de “Estado

de bem estar social”, um breve esboço sobre os antecedentes sócio-econômicos de três

importantes perspectivas ideológicas que influenciaram direta ou indiretamente a organização

do Estado Moderno Ocidental, sob pena de não se compreender as razões de tais reformas: o

liberalismo, o socialismo e o “Estado do bem estar social”.

Isso ocorre porque a concepção ideológica neoliberal que é utilizada para tentar

justificar as reformas propostas aos Estados “para não serem empecílho à Globalização”, e,

por conseguinte, das recentes modificações dos ordenamentos jurídicos nacionais, em

matérias previdenciárias, trabalhistas, por exemplo, devem ser investigadas, inicialmente, a

partir do estudo das chamadas “fontes materiais”, que são o complexo de fatores sociais,

econômicos, históricos que contribuem para o surgimento, extinção e alteração das normas

jurídicas, e por conseguinte, de alterações legislativas e alterações das constituições dos

Estados a fim de se chegar a determinado objetivo. Para isso, a análise dessas concepções é

fundamental, se não indispensável, tendo em vista que não é plausível e, muito menos,

compreensível, analisar o surgimento de qualquer mudança jurídica tendo como ponto de

partida apenas as “fontes formais” do Direito, através de uma concepção artificial e afastada

da influência direta dos aspectos sociais, econômicos, políticos e ideológicos que os

ensejaram. No que pese a concepção de muitos juristas positivistas que entendem ser

relevante apenas o estudo das fontes formais, relegando o estudo daquelas à Sociologia

Jurídica, tal não pode prevalecer neste trabalho, sob pena de se estar tornando

incompreensível o tema.

“[...] A questão jurídica é, como se vê, apenas uma parte de realidade social, política e econômica do país. Não há como se entender todos os retrocessos nos últimos anos na seara do Direito, sem se atentar para as condições políticas e econômicas mundiais.” (PEREIRA SILVA, 2001, p. 86)

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Tentar compreender as raízes dos processos de reformas oriundas da Globalização que

ocorreram ou estão ou estão em trânmite nos ordenamentos jurídicos pátrios, relegando a

relação fundamental do Direito com os embates histórico-econômico-políticos mundiais é

tarefa impraticável, ainda mais quando possuem repercussão mundial, isto porque os

esquemas formalistas não resistem frente a uma crítica que tenha por base esses pressupostos.

Por isso, deve-se entender a relação do chamado “Estado do Bem Estar Social”, de uma forma

geral, com essas três importantes bases ideológicas que serviram ou servem, direta ou

indiretamente, para as estruturações no campo sócio-jurídico dos Estados modernos

ocidentais. A interdisciplinaridade, como se vê, é fundamental.

“[...] Não houve uma importante alteração do quadro jurídico de uma dada sociedade que não tivesse tido, em suas raízes, um capital de interesse de ordem econômica.” (MACHADO NETO, 1987, p. 244)

II. Liberalismo, socialismo e as origens do “Estado de Bem Estar Social”.

Cabe destacar, inicialmente, que a expressão “liberalismo” está longe de ser um termo

unívoco, tendo como paradigma os campos filosófico, econômico e político, tendo

diversidade de significados, inclusive, por exemplo, politicamente, dependendo da localidade

em que a expressão é utilizada. Nos EUA, por exemplo, a expressão “liberal” tem uma

conotação progressista, enquanto que no Brasil, carrega um sentido conservador. Pode-se

estabelecer, entretanto, que todas as suas ramificações estão historicamente relacionadas entre

si pelo avanço do “liberalismo econômico”, que consiste, basicamente, em uma doutrina

segundo a qual o ente estatal não deve, de maneira geral, intervir nas relações econômicas

entre os indivíduos, cabendo ao mesmo apenas exercer suas funções “típicas” de Estado,

como o exercício da justiça e do poder de polícia.

Não chega a ser reducionismo afirmar que o liberalismo econômico consiste, em sua

essência, na base ideológica do sistema capitalista. Para que se compreenda essa premissa, é

necessário analisar o contexto histórico em que se desenvolveu. Trata-se de uma perspectiva

com repercussões nos campos filosófico, econômico e político que possui suas origens ainda

no século XII. Suas premissas vão radicalmente de encontro às concepções predominantes do

sistema de produção feudal, destinando-se primordialmente a desenvolver uma “economia de

mercado”:

“[...] Na concepção liberal, mercado é o conjunto de relações sociais onde se efetuam as trocas de mercadoria. É um sistema econômico onde as quantidades produzidas e os preços praticados dependem da confrontação da oferta e procura, não de um planejamento.” (HOLLANDA, 1995, p. 30)

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Uma característica marcante do liberalismo é dar grande destaque ao individualismo,

uma vez que recorre à psicologia individual como maneira de explicar o interesse geral, de

maneira que defende essencialmente a tese de que a potencialidade do indivíduo não deve ser

“molestada pelo Estado”. Prova disso é que:

“[...] O liberalismo era avesso às intervenções da autoridade política na atividade econômica, de forma a mitigar a liberdade individual. O Estado deveria ficar restrito àquelas atividades indispensáveis, prevista no quadro constitucional. As funções dos poderes públicos deveriam, por isso, estar minuciosamente previstas, a fim de que não houvesse ofensa aos direito essenciais: propriedade, liberdade, segurança. Qualquer desvio significaria uma usurpação de poder.” (PEREIRA SILVA, 2011, p. 124)

Não é sem razão, entretanto, o fato de ser o liberalismo critico severo da atuação estatal

na esfera econômica. O seu surgimento está ligado aos questionamentos feitos por seus

defensores à maneira e as razões da intervenção do Estado na economia principalmente

durante o período do absolutismo monárquico, uma vez que, na maioria das vezes, esta foi de

encontro aos interesses da classe burguesa, em ascensão. Os altos impostos e os monopólios

impostos pela nobreza eram medidas que, geralmente, iam de encontro aos seus interesses,

limitando o direito de propriedade e o exercício da atividade econômica. Dessa maneira, a

concepção liberal vai trabalhar o ideário de que o Estado deve se restringir às suas atividades

básicas, defendendo a tese de que “a proteção social”, anteriormente pregada pela doutrina

cristã durante o feudalismo, seria o mercado, dentro de sua lógica de atuação. No modelo de

Estado que partisse dessa premissa, a burguesia poderia fazer prevalecer seus interesses sem

grandes riscos ou ameaças de forma mais tranquila. É nesse momento que entra a importância

do liberalismo clássico como ideologia, já que a conquista do poder econômico pela burguesia

foi fundamental para sua prevalência no campo político, que, de acordo com Raimundo

Falcão, (1986, p. 109), “[...] teve o cuidado de se armar de um conveniente embasamento

filosófico, político e religioso.” para atender seus interesses. Ela queria, na realidade, um

“Estado seu”, de acordo com Paulo Singer (1996, p.19).

Trata-se esse ideário do liberalismo econômico, a premissa que deveria prevalecer na

organização de um “Estado Liberal” em contraponto ao Estado Absolutista, tendo em vista

que sua diretriz fundamental seria a delimitação das funções estatais em relação aos planos

econômico e político, prevalecendo a figura individual em face do Estado. Consequência

disso é o caráter excepcional da intervenção da economia. Essa só poderia ocorrer para

garantir a permanência do mercado e a concorrência entre seus agentes. Caso contrário,

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haveria o receio de que o Estado restringisse, de qualquer modo, a acumulação do capital e o

direito de propriedade. O mercado, em seu livre funcionamento, seria o remédio para qualquer

conflito humano, pois a concorrência individual criaria os pressupostos para o bem geral.

Dentro desse contexto, em 1776, Adam Smith (1723-1790) publica a obra prima do

liberalismo clássico na seara econômica: Investigação sobre a natureza e as riquezas das

nações. Livro este que vai trabalhar de maneira sistemática as bases teóricas liberais, como

concepções de que a busca do interesse individual, por cada um, permite, em situação de

concorrência, atingir o bem geral e de que a “mão invisível do mercado” permite a

conciliação do interesse individual com o interesse geral. Outros pensadores que ocuparam

lugar central no pensamento clássico foram Jean Say (1767-1832), que dedicou seus estudos a

importância do papel do empresário e o lucro, tornando famosa a tese de que a oferta cria a

procura equivalente (Lei de Say); Thomas Malthus (1766-1834), que, embora liberal, se opôs

ao otimismo exagerado dos dois pensadores anteriores, tendo em vista que procurou colocar

suas concepções românticas dentro de uma visualização sólida empírica, destacando-se,

dentro dessa concepção, a famosa teoria da população, que se preocupou com a fome; David

Ricardo (1772-1823), considerado relativamente pessimista, já que defendeu a tese de que, a

prazo mais longo, qualquer população é ameaçada por um Estado estacionário, além de ter

trabalhado três conceitos vitais na organização capitalista: a análise de valor, a renda

diferencial e a lei das vantagens comparativas; e Stuart Mill (1806-1873), que mesmo

prolongando as análises de Smith e Ricardo, deu atenção especial aos problemas sociais que

acompanham o capitalismo liberal, fazendo parte de uma corrente reformista, que será melhor

compreendida posteriormente.

Para o o modelo clássico de Estado capitalista liberal, o Direito é uma estrutura para a

conservação da ordem e da segurança indispensáveis à reprodução das relações sociais e

econômicas. O papel do Estado deveria ser, fundamentalmente, garantir a liberdade

econômica, a propriedade e as relações mercantis. Dentro desse paradigma, é que se

compreende o caráter sintético das primeiras constituições do Estado moderno, pois é nesse

momento que se fortalece o movimento liberal, mostrando-se um instrumento de defesa que

favorecia a nova classe ascendente.

O principal fato histórico ocorrido como consequência da implantação de organização

estatal liberal foi a Revolução Industrial, que ocorreu devido, principalmente, ao grande

acúmulo de riquezas pela burguesia, favorecida pelo modelo estatal de pouca intervenção na

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economia e a exploração sobre as classes proletárias. Com isso, grandes transformações

sociais ocorreram na Europa ocidental e América do norte, possibilitando a formação de uma

sociedade urbana, em que os trabalhadores eram submetidos a uma disciplina desumana de

produção.

Dentro desse contexto, outro fato histórico da prevalência do modelo de Estado Liberal

foi empobrecimento cada vez maior das massas, o que propiciou o surgimento de ideologias

que começaram a questionar seus fundamentos como modelo que contemplasse os interesses

maiores de qualquer sociedade .

O modelo liberal resultou em altíssimas jornadas de trabalho para os trabalhadores,

habitações insalubres, explorações sobre mulheres e crianças nas fábricas, salários

insignificantes, altos índices de mortalidade, o que motivou o insurgimento da classe

trabalhadora. A principal reação ideológica desta foi o surgimento do socialismo, ideologia

que pregou uma opção de modelo de sociedade em relação não só ao liberalismo

especificamente, mas ao próprio sistema capitalista.

Os franceses Saint-Simon (1760-1825) e Charles Fourier (1772-1837) e o inglês Robert

Owen (1771-1858), foram chamados de “socialistas utópicos”, pois ao almejarem uma

sociedade mais solidária daquela em que viviam, caracterizaram-se por não saberem como ela

se originaria e nem sua estruturação. Ao tentaram colocar suas idéias em prática, não

obtiveram êxito devido ao caráter “sonhador” de seus projetos. Eram autênticos idealistas, por

isso a designação que receberam. Posteriormente, surgiram os “socialistas cientificistas” que

se destacaram por terem trabalhado no sentido de organizar suas idéias em dimensões

sociológicas, econômicas e filosóficas como fundamento para ruptura do sistema capitalista.

O pensador mais importante dessa corrente foi o alemão Karl Marx (1818-1883), criador

do chamado “socialismo científico”, posteriormente chamado de “marxismo”. Em seus

trabalhos, foi indispensável a ajuda dada pelo seu companheiro Friedrich Engels (1820-1895),

que também foi autor de diversos livros relacionados ao tema.

A principal análise de Marx em relação à compreensão da História e o funcionamento

da sociedade (incluindo-se, aí, também o modelo de organização política de um Estado) é o

funcionamento de sua produção econômica, já que o modo como os homens se relacionam

socialmente no processo produtivo determina o tipo de sociedade que existirá.

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Merece destaque sua famosa “teoria da mais-valia”, trabalhada de forma minuciosa no

livro O capital, em que tenta demonstrar, de maneira cientifica, que o capitalismo sempre

promoverá injustiça social, tendo em vista que a única maneira de alguém ficar rica é

explorando economicamente outras pessoas (trabalhadores), pois um capitalista não paga pelo

“trabalho de um trabalhador”, mas pela sua força de trabalho (capacidade de trabalhar),

auferindo daí o lucro.

Após a análise dessa premissa, é razoável a concepção marxista de que não existe

“Estado neutro”, pois, para esta, a organização estatal é o espaço por excelência dos

representantes das classes que dominam a economia. Apesar de não se poder cair em um

determinismo de que a economia traça toda a história do homem, sendo esse o maior

problema do pensamento marxista: o reducionismo, é lógico que a preponderância econômica

prevalece na organização econômico e política de qualquer Estado. O fator econômico é,

entre as forças modeladoras do direito, o que exerce a influência mais decisiva e mais

palpável. Apesar dessa premissa, não se pode radicalizá-la a um ponto de se cair em uma

visão simplista de que a toda história é movida pelo aspecto econômico, já que são vários os

acontecimentos históricos que o economicismo reducionista marxista não explica. Mesmo

assim, a análise marxista tem seu valor porque é inovadora ao levar em consideração as

ligações estruturais sócio-econômicas, tendo em vista o caráter indissociável do aspecto

econômico e análise da sociedade.

“[...] Sob o Socialismo temos o planejamento, a execução e o controle da economia centralizados pelo poder político, sendo o Estado detentor, em sua forma mais ideologicamente estruturada, de todos os meios de produção.” (MAGALHÃES FILHO, 2001, p.127)

Tal radical concepção socialista contribuiu para a emergência de idéias por parte de

alguns capitalistas no sentido de revisar as bases do Estado liberal. Eram necessárias

mudanças, tendo em vista que o “avanço vermelho”, com greves, revoltas e manifestações,

colocava em risco seus maiores interesses, já que pregavam o fim de acúmulo de riqueza pela

burguesia atráves do fim da exploração do proletariado, por ser aquela detentora dos meios de

produção, e do Estado Capitalista, que atuava para manter tal situação.

Diversas manifestações isoladas contra o quadro de injustiça do Estado liberal

ocorreram, porém só com o fortalecimento do movimento operário, em virtude da

organização e do crescimento de seu número, ficou insustentável a necessidade de ampliação

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de direitos sociais. Os trabalhadores, portanto, conseguiram melhores condições sociais

porque lutaram por tais, dentro de uma lógica dialética de luta de classes, o que ratifica que

um direito social é uma conquista, e isso não ocorre sem luta. Essa questão é indispensável

para compreensão das mudanças ocorridas nos ordenamentos jurídicos dos Estados modernos

que não aderiram ao socialismo. As idéias revolucionárias espantavam a burguesia, diante da

possibilidade de que tais concepções se expandissem cada vez mais, sob pena de perder todos

os seus privilégios no Estado Liberal. Para essa, também não foi tarefa extremamente onerosa

a concessão de alguns direitos de impacto social, devido ao grande excedente de riquezas

propiciadas pelo mesmo.

O ápice desse movimento dentro do Estado capitalista ocorreu com o surgimento da

chamada corrente reformista, que se caracteriza por ser uma doutrina que critica alguns

aspectos do funcionamento do sistema capitalista, sem, contudo, ter como finalidade a sua

extinção, utilizando diversos meios para reduzir seus inconvenientes.

Como foi mencionado, no capitalismo praticado sob a tutela do Estado liberal, não

existe reconhecimento natural de direitos sociais, primeiro porque o liberalismo é pensando

dentro de uma visão individual, e principalmente pelo fato de que suas concessões repercutem

diretamente nos interesses econômicos da burguesia, seja através do pagamento de impostos,

seja pela intervenção direta ou indireta na propriedade. Direitos sociais, assim começaram a

ganhar destaque a partir do quadro revolucionário socialista que colocava em risco a sua

própria existência. Para a classe detentora do poder econômico e político, restou a alternativa

de promovê-los, sob pena de perder seus privilégios de maneira total dentro do sistema

capitalista.

"Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas" (BOBBIO, 2004, p.05).

A repercussão prática das correntes reformistas capitalistas na esfera jurídica foi a

ampliação dos direitos sociais nos ordenamentos jurídicos estatais. Relações previdenciárias,

trabalhistas e assistencialistas começaram a ser criadas e regulamentadas com objetivo de

apaziguar os conflitos decorrentes das lutas de classes. A emergência de movimentos sociais

foi o fator fundamental para tais mudanças. É no momento desses avanços que Bismarck

(1815-1898), na segunda metade do século XIX, ao chegar ao poder na Alemanha, amplia os

direitos sociais da carta magna desse recém criado Estado após sua unificação de tal maneira

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que passa a ser um marco inicial de um constitucionalismo bastante diferente do modelo

pregado no liberalismo, com diversas normatizações de direitos sociais e econômicos, até

então, praticamente ausentes: o chamado “constitucionalismo social”, com regulamentações

de temas sociais que antes não eram sequer objeto de debates por juristas e políticos, passando

a se voltar para a sociedade geral e não apenas para o indivíduo.

Porém, mesmo com tímidos avanços sociais, o estopim de todas as contradições do

sistema econômico capitalista liberal veio com a grave crise mundial de 1929. Uma

superprodução provocou estagnação econômica, tendo em vista que se produzia bens, mas

não havia quem consumi-los.

Dentro do contexto da “grande depressão”, surge, dentro dos próprios defensores do

capitalismo, a proposta keynesiana. Mesmo não se afastando inteiramente das teorias do

liberalismo, Keynes (1883-1946) faz sua crítica ao mesmo quando radicalmente exercido

baseando-se na teoria geral do emprego (Theory of employment, interest and Money) e da

função estatal na economia, afirmando que o mercado não produz, por si só, uma demanda

efetiva dos fatores de produção, sendo necessária a ação estatal e de agentes econômicos. Seu

estudo inova porque, antes dele, a análise da economia de cunho liberal baseava-se quase

inteiramente à micro-economia, do ponto de vista de uma empresa. Keynes criou um novo

ramo da teoria econômica, chamada de macro-economia.

Keynes foi um fiel defensor que seria o próprio Estado o agente capaz de controlar os

excessos do liberalismo econômico, cabendo ao mesmo a intervenção econômica no sentido

de promover o desenvolvimento em setores estratégicos da economia. Estaria ali os

fundamentos que inspirariam o chamado “Estado de bem estar social”.

“[...] O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado Liberal. Seus matizes são riquíssimos e diversos. Mas algo, no ocidente, o distingue, desde as bases, do Estado proletário, que o socialismo marxista intenta implantar: é que ele conserva sua adesão à ordem capitalista, princípio cardeal a que ele não renuncia.” (BONAVIDES, 1980, p. 205).

A intervenção econômica estatal a fim de implantar políticas sociais a favor das classes

menos favorecidas não surgiu como fruto de uma mera evolução natural dentro do capitalismo

liberal ou simples liberalidade daqueles que detinham o poder no Estado liberal. Ao contrário,

foi uma necessidade, inclusive para sua sobrevivência.

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No campo jurídico, ocorreu a consagração definitiva de direitos econômicos e sociais

nas constituições e em legislações infraconstitucionais nas áreas relativas à saúde, segurança,

higiene, moradia, previdência e outras. Consolidava-se o chamado “Estado de bem estar

social.”

III. Neoliberalismo e globalização. A principal consequência da implantação do modelo de Estado de bem estar social foi

o refortalecimento do capitalismo, que chegou a um patamar de grande desenvolvimento, com

taxas de crescimentos industrial e comercial superiores a qualquer outro momento capitalista

visto na história. Durante as décadas de 1950 e início da década de 1970, viveu-se o chamado

“período de ouro” do capitalismo contemporâneo. Entre 1945 e 1975, ocorreram os "30

gloriosos" da França, ou "wirtschaftswunder" (milagre econômico) alemão. O crescimento

econômico com desenvolvimento social é o traço marcante nesse período.

Contudo, a partir do fim da década de 1970, esse modelo econômico-social começou a

se questionado por começar a enfrentar suas primeiras crises. Crises, ressalta-se, que são

inerentes ao próprio sistema capitalista, concentrador de riquezas por excelência.

A diminuição do rendimento de capital por parte da burguesia, a redução dos avanços

tecnólogos de produtividade, a luta contra a inflação, o crescimento das despesas sociais, a

“crise do petróleo”, a profunda instabilidade monetária são alguns fatores que contribuíram

para o fortalecimento do ataque contra o Estado de bem estar social. Contudo, o motivo

principal, mais razoável e causa principal de todos os outros problemas, foi, mais uma vez, a

superprodução.

O consumo, essência do sistema capitalista, já não crescia como antes, pois as pessoas,

nos países em que tal doutrina de Estado de bem estar social, prevaleceu, seja em maior ou

menor grau, estavam, de maneira geral, satisfeitas por terem chegado a um limite natural de

consumo de bens, já que, devido aos salários dignos, os bens de consumo mais importantes

estavam em suas residências. Como a produção continuou crescendo mais rápido do que o

consumo, estourou, consequentemente, mais uma crise de superprodução.

Os programas sociais keynesianos, então, começaram a ser apontados como os causadores

do abrandamento do crescimento dos rendimentos nacionais, por parte dos detentores do

poder econômico e político dos Estados capitalistas.

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A compreensão da dialética histórica e econômica mencionada até aqui nesse trabalho, é

fundamental para que se compreenda a tese de que a burguesia nos Estado de bem estar

social não aceitou tal modelo por simples vontade ou caridade, mas por necessidade, tendo em

vista que, a partir do momento que os planos sócio-conômico keynesianos começaram a

corroer, por contradições do próprio capitalismo ressalta-se, a tendência seria de um

retrocesso liberal, pois a função primordial da intervenção estatal social foi mitigar os

conflitos existentes no Estado liberal. Isso foi fortalecido, posteriormente, com o fracasso da

primeira tentativa prática do modelo socialista, principal símbolo de alternativa ao modelo

capitalista em geral, apesar de suas imensas contradições entre o defendido por Marx e o

exercido na prática pelas Ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), onde o

dirigismo estatal acabou provocando ineficiência econômica e despotismo político, chegando

a um extremo patamar de violência em muitos países e que, para muitos, descaracterizaram o

modelo teórico marxista.

“[...] De tal sorte que, verificada a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, instalou-se a crise do socialismo e uma suposta neutralidade do campo ideológico, a qual vem sendo exibida, com ares triunfais, pelo capitalismo e sua recente ideologia “sem ideologia”, cifrada no neoliberalismo da globalização.” (BONAVIDES, 1999, p.19)

Sem o “perigo vermelho” e com as crises do capitalismo baseado na linha de política

econômica do modelo keynesiano, o resultado foi que os pensadores de um “novo

liberalismo” passaram a ganhar força e coesão, sendo considerados os salvadores para a crise

econômica predominante, contando com o apoio do poder ideológico da classe dominante.

Tais crises deram voz ao pensamento de economistas como Friedrich Hayek (1899-1992) e

Milton Friedman (1912 - 2006). A maior parte dos países do mundo ocidental passaram a

seguir suas teorias e tentar implantá-las, de maneira mais moderada ou radical, acatando ao

chamado “Consenso de Washington”, realizado em 1989 nos Estados Unidos da América

(EUA), reunião esta que fortaleceu o debate de “reenquadramento” dos Estados ao modelo

neoliberal. Isto, sem dúvidas, está relacionado às reformas ocorridas e que estão sendo

propostas baseados no ideário da Globalização.

Apesar da aparente contradição, as origens do movimento neoliberal, ideologia

sustentáculo da globalização, estão relacionadas com a decadência do “antigo liberalismo

clássico” (pode-se afirmar que o mesmo representou a figura mitológica grega Fênix, a qual

“ressurgiu das próprias cinzas”). Após o fortalecimento inicial, dentro do sistema capitalista,

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do modelo de organização estatal do “Welfare State”, diversos pensadores, principalmente

aqueles oriundos do chamado grupo da Universidade de Chicago, tentaram restabelecer uma

tese de defesa da ordem econômica anterior, que era, comparativamente ao keynesianismo,

mais favorável aos interesses das classes proprietárias. Para isso, tais intelectuais, autênticos

liberais, procuraram promover alterações, mais profundas, na concepção clássica com o

intuito de reverter o liberalismo econômico, tendo em vista a dificuldade de sua sustentação

devido a já comentada decadência de tal modelo em se tratando de reverter o quadro de crise

de 1929.

“[...] A crise do Liberalismo e o triunfo das políticas de intervenções estatais de orientação Keynesiana e Socialista, não foram motivo suficiente para inibir sua produção teórica e nem o desenvolvimento de uma militância política—embora restrita aos meios acadêmicos e aos institutos de pesquisa privados—a seu favor.”(HOLANDA FRANCISCO URIBA, XAVIER DE; ABU-EU-HAJ, JAWDAT. 1995. P3)

A diferença básica histórica do liberalismo clássico para o neoliberalismo é que aquele

representa a defesa da sociedade burguesa contra as sociedades pré-capitalistas, enquanto que

este procura legitimar os interesses burgueses contra às tendências keynesianas e socialistas

existentes. Outra distinção é que o liberalismo clássico é trabalhando dentro da lógica de

Estados nacionais, a fim de que a não intervenção econômica favoreça uma “burguesia

nacional”, já o neoliberalismo, também objetiva contemplar os interesses da burguesia,

porém sem aspecto de nacionalidade, por isso a importância da noção de globalização,

afastando-se qualquer noção de capital nacional. A globalização, nesse sentido, representa a

superação do Estado nacional nesse aspecto.

A concepção do intervencionismo estatal é o outro importante divisor de águas entre o

“antigo” e o “novo liberalismo”. Se para os clássicos, existe uma rejeição teórica à ação do

Estado agindo na economia de maneira quase absoluta, excetuando-se a sua legitimidade na

questão de manutenção do mercado, no neoliberalismo isso não ocorre. De acordo com esse, o

Estado não deve sair por completo da economia, já que o que é necessário ocorrer é uma

mudança de orientação da interferência estatal: deve-se deixa de impor limites e restrições ao

capital, estimulando e subsidiando, contudo, as grandes empresas. Os neoliberais são

autênticos defensores de um Estado forte para aniquilar os sindicatos, controlar o orçamento

público e realizar reformas fiscais para incentivar os chamados “agentes econômicos”, tudo

isso sobre o pretexto de se garantir crescimentos econômicos a partir de uma interação

econômica global.

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“É por esse motivo que fica superado o debate acerca do chamado “Estado Mínimo” que é pregado pelos teóricos neoliberais, tendo em vista que o Estado neoliberal, como qualquer outro, sempre desenvolveu atuações no campo econômico, porém a partir de diferentes motivações. A questão que o caracteriza está na resposta da indagação: deixar de intervir em quais áreas e para favorecer quem? Neoliberalismo é orientação estatal intervencionista para favorecer aos grandes grupos econômicos e não-intervencionista naquilo que não é de seus interesses, pois o capitalismo não prescinde a intervenção, já que qualquer política de desregulamentação sempre está calçada sobre a construção de um novo modelo genérico de regulação. “[...] Para a teoria neoliberal a dicotomia entre intervenção ou não intervenção do Estado é totalmente desprovida de sentido. Está claro que todo o Estado tem que agir; ao agir implica intervir nisto ou naquilo.”(HOLANDA, 1995, p.32)

Esse tipo de intervenção atende aos interesses burgueses, já que estimula a sobrevivência

do capital, sobretudo dos grandes monopólios e do capital financeiro. Por isso é que se

defende que o neoliberalismo e a globalização nunca objetivaram, e nunca objetivarão,

“Estado mínimo”. É pura retórica para aqueles que querem reduzir políticas e direitos sociais.

Como se pode concluir, o neoliberalismo só é benéfico a uma parcela reduzida da sociedade

(as grandes empresas e os especuladores financeiros), sendo nocivo à produção de riquezas e

sua distribuição, já que fortalece, ainda mais, dentro do sistema capitalista, a concentração de

renda na mão de poucos, seja dentro de uma esfera nacional seja em esfera internacional. Esse

aspecto que retifica o intervencionismo neoliberal ocorre quando se tem movimentos que

representam ameaça ao status quo, já que o Estado neoliberal deixa de lado a doutrina do

laissez-fair e age de forma direta em nome dos interesses burgueses.

“[...] Até poucos anos as grandes empresas e os grandes grupos capitalistas viam a participação do Estado nas atividades econômicas e sociais como um fator de restrição à liberdade. Entretanto, essa participação acabou por ser altamente benéfica para os detentores de capital e dirigentes de empresas, pois o Estado passou a ser grande financiador e um dos principais consumidores, associando-se com muita freqüência aos maiores e mais custosos empreendimentos.”(DALLARI, 2002, p. 236)

Com a chegada ao poder de Margaret Thatcher (1925) , “a Dama de ferro”, na Inglaterra

entre 1979 e 1990, e Ronald Reagan (1911-2004) entre 1981-1989, nos Estados Unidos da

América, o neoliberalismo se consolidou como uma reação política prática veemente contra o

Estado intervencionista e de bem-estar. O Consenso de Washington realizado em 1989 é

também outro marco histórico no que tange à propagação e compromissos oficiais dos

dirigentes estatais em executar a “nova cartilha liberal” ou neo-liberal, pois a nova pauta

defendida eram as de idéias desreguladoras a fim de se facilitar a globalização. Sob a

alegativa de crescimento da interdependência de todos os povos e países da superfície

terrestre, o discurso que objetiva legitimar a globalização é o de reduzir as barreiras

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alfandegárias e facilitar as trocas comerciais e financeiras das entidades em qualquer país,

tornando cada vez mais livres a circulação de bens e serviços entre os países envolvidos, isto

é, evitar ingerências sobre a propriedade privada agora em um processo supranacional, com

privatizações, alterações de regime de aposentadorias, liberalização das transações

financeiras, e pelo desprezo ao estado de bem-estar social.

A expressão "globalização", portanto, é utilizada em um sentido ideológico, no qual

observa-se no mundo inteiro um processo de integração econômica sob a égide do

neoliberalismo. A globalização tem forçado o Estado a abdicar de sua soberania e autonomia

em nome de uma internacionalização neoliberal, onde, cada país para legislar precisa estar ao

encontro desta para saber o que realmente podem regular ou intervir.

[…] Do prisma econômico, a globalização representa pelo menos um brutal esvaziamento da territorialidade. Do ponto de vista político, a formação de grandes blocos e os organismos supranacionais relativizam a soberania. Finalmente, do prisma jurídico, o direito do mercado globalizado flexibiliza o direito positivo em todos os planos (direitos individuais, políticos e sociais).”(CAMPILONGO, 2002, p.29)

IV. A crise capitalista do “Estado do bem estar social”, globalização e reformas.

.A originalidade do “Estado do bem estar social” é, em sua essência, a de uma doutrina

de moderação, isto é, uma linha reformista em relação ao socialismo e, portanto, a rejeição da

revolução proletária como o único meio de ação. Contudo, tal modelo econômico não nega a

doutrina liberal, já que aceita a existência do mercado, porém com uma preocupação que visa

garantir uma melhor distribuição da riqueza.

Afora os interesses dos grandes grupos econômicos em promover a globalização impondo

o modelo neoliberal aos países, deve-se ressaltar que diversas contradições nos Estados de

bem estar social facilitam cada vez mais a sua propagação e implantação. Inicialmente,

porque a perspectiva de redistribuição econômico-social não impediu o aumento das

desigualdades e o surgimento de novas formas de exclusão, isso, logicamente, consequência

do capitalismo e, também, devido ao aumento da carga fiscal sobre as famílias, havendo

questionamentos sobre qual o nível máximo que o setor produtivo e parcela da sociedade

aceitam financiar os gastos sociais.

Outro grande dilema é que, a população dos países centrais do capitalismo, principalmente

os europeus, tiveram o envelhecimento de sua população, aumentando os gastos sociais com

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aposentadoria e saúde, estimulando ainda mais demandas sociais e, consequentemente,

diminuindo a mão de obra, cada vez mais cara.

Até os anos de 1940, a economia sempre foi enfocada, em grande parte, dentro de uma

realidade nacional, uma vez que seu desenvolvimento predominava dentro das fronteiras do

Estado. Isso mesmo no auge do liberalismo, nos Estados que se denominavam socialistas, e,

obviamente, com a expansão do modelo de Estado de bem estar social. A partir deste período,

entretanto, vem ocorrendo uma inversão gradual desta perspectiva econômica, uma vez que os

Estados estão, cada vez mais, incorporado-se aos mercados, deixando de haver, pelo menos

para os neoliberais, as barreiras estatais para o desenvolvimento do mercado, com um

enfoque, desta vez, mundial. Essa inversão é a própria concretização da "globalização"e seu

fortalecimento tem, portanto, um impacto cada vez mais significativo sobre a sobrevivência

do Estado do bem bestar.

Os países centrais capitalistas então, principalmente os da Europa e os Estados Unidos da

América, diante dessa crise interna, começaram a usar veementemente seu controle sobre as

instituições financeiras internacionais com o fito de impor reformas neoliberais para

enquadrar os demais países periféricos a essa lógica de “mercado sem barreiras”, para com o

peso de suas economias conquistarem novos mercados, ao mesmo tempo que, internamente,

faz fortes cortes de políticas sociais, fortalecendo o mito do “livre mercado”. Supõe-se que,

com o avanço da globalização, seguindo o seu curso programado, vai-se enfraquecer cada vez

mais a noção de “Estados nacionais” oriundos há cinco séculos atrás, ou dar-lhes novas

formas e funções, fazendo com que novas instituições supranacionais gradativamente os

substituam.

Entretanto, longe de resolver a questão do financiamento das políticas sociais, tal solução

só adia o problema, pois a lógica de concentração de riqueza e as demandas sociais não

desaparecerão. Deve-se ressaltar que os defensores da globalização e do neoliberalismo

revitalizam, de certa maneira, a tese do liberalismo clássico ao defenderem que as moléstias

sociais, em um contexto mundial, só serão sanadas com o livre mercado. Consequência disso

é que as políticas de promoção do emprego, de melhoria de vida, de condições de trabalho,

proteção e do diálogo social e de luta contra a exclusão só vem ser permitidas dentro de uma

concepção restritiva, isto é, na medida em que não vão de encontro ao mercado livre, um vez

que não pode haver distorções na livre concorrência.

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A história demonstrou que essa lógica de não atuação no mercado/economia a fim de

aparar arestas sociais não foi suficiente em promover desenvolvimento social à humanidade,

pelo contrário, levou a maior crise econômico-social da história no ano de 1929 . E, mesmo,

onde essa lógica neoliberal básica da globalização começou a ser implantada com rigor, as

respostas às demandas sociais pelo mercado não foram tão animadoras assim. O principal

exemplo desse modelo são os Estados Unidos da América:

“What thinking about such a policy? In the U.S., it encouraged the return of full employment; but at the cost of the emergence of a "working poor class", a class of sub-wage labor or workers living below the poverty level. In doing so, it increased inequalities between the richests and poorests. After having first resisted to this evolution, the European countries finally took the same path.” (BOTTINI, 2012, p.07)

Ressalta-se que não há questionamentos que na atualidade vive-se uma crise que atinge

o capitalismo e consequentemente os Estados, sejam eles mais liberais, como os EUA, sejam

eles mais sociais, como na Europa. Outro questionamento é se o neoliberalismo e a proposta

da globalização de reorganização dos sistemas econômico e de proteção social será capaz de

fazer retornar o crescimento econômico com desenvolvimento social, compartilhando os

ganhos do crescimento econômico.

A proposta neoliberal globalizante tende a fazer o caminho contrário do keynesianismo,

pois o ciclo vicioso econômico tenderá a diminuir seu crescimento, já que, com corte de

gastos e menos distribuição de riquezas, a tendência é haver menos consumo e menos

crescimento, e isso resultará em novos déficits.

Política e economicamente enfraquecido, o Estado do bem estar social, dando-se destaque

aos provedores europeus, passam por testes de resistência que colocam seu futuro em

perspectivas obscuras, uma vez que toda a sua concepção de política está sob ataque.

A expressão "globalização" tem sido, na realidade, utilizada num sentido

predominantemente ideológico, em que se constata no mundo inteiro a um processo de

interação econômica sob a égide do neoliberalismo, caracterizado, primordialmente, pelo

predomínio dos interesses financeiros da burguesia, pela desregulamentação dos mercados,

pelas privatizações das empresas estatais, e, por assim dizer, pelo abandono do estado de bem-

estar social.

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A globalização, entretanto, ao contrário de seus defensores, tem sido a responsável pela

intensificação da exclusão social, com o aumento do número de miseráveis e de

desempregados, e de provocar crises econômicas sucessivas, arruinando milhares de

poupadores e de pequenos empreendimentos.

Tal acontecimento é um claro retrocesso, porque a experiência do Estado do bem estar

social, pela primeira vez, no capitalismo, em vez de simplesmente propagar a ideia liberal de

igualdade de direitos para todos os cidadãos, tornou cada vez mais possível. Entretanto, o

desenvolvimento da atual crise por que passa o capitalismo, e a ascensão do neoliberalismo,

está na contramão desse progresso.

Inegável que o intervencionismo do Estado reflete uma demanda social. Se o Estado do

bem-estar social deve ser reformado por conter alguns equívocos, devido às novas concepções

econômicas resultantes da globalização, a sua existência não pode ser ameaçada, uma vez que

o intervencionismo do Estado é necessário uma vez que a auto-regulação do mercado sempre

foi um mito.

"[...] A proposta do chamado Estado mínimo é apenas, quando feita de boa fé, uma das tantas ilusões do neoliberalismo. O Estado não tem de ser mínimo, nem máximo; tem de ser suficiente para assegurar o exercício de suas responsabilidades: a soberania do país, o desenvolvimento de sua economia e a justiça social. O Estado mínimo que nos tem sido proposto não atende a essas responsabilidades; ao contrário, aprofundará e perpetuará o quadro de desigualdades sociais em que vivemos. Esse Estado mínimo, portanto, é uma forma de neocolonialismo." (CABRERA, 2012.)

Nesses primeiros anos de expansão da globalização alicerçada no neoliberalismo, é

possível destacar alguns fatos. Apesar de se destacar a diminuição da inflação, o avanço

tecnológico, o crescimento da taxas de desemprego e o aumento significativo das

desigualdades, tais medidas não promoveram, até o momento, a “reanimação” do capitalismo

pregada por seus defensores, tendo-se obtido taxas de crescimento muito inferiores aos anos

anteriores aos anos 70.

“[...] Para fazer-lhe o balanço, reúnem-se, desde 1970, em Davos, na Suíça, chefes de Estado, banqueiros, financistas, dirigentes de grandes empresas transnacionais, buscando auferir os avanços da economia de mercado, do câmbio-livre, da desregulamentação.”(AZEVEDO, 2000. p, 120).

V. Conclusões.

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Através do presente estudo pode-se concluir que a globalização é incompatível com o

Estado de bem estar social.

O neoliberalismo, base ideológica da globalização, vem avançando em nível global e vem

sendo o fator mais importante no que diz respeito à “reorganização” dos Estados. É, sem

dúvidas, o modelo econômico que os governos vem mais se pautanto, seja de suposta

dogmática ideológica de esquerda ou de direita.

Aqueles países que, anteriormente, implementaram, seja qual for o nível, políticas

relacionadas ao Bem estar social estão revertendo suas bases para atender ao modelo imposto

pela globalização, seja pela imposição política dos grandes grupos econômicos, seja pelos

grandes países capitalistas. O impacto disso no Direito é inevitável, por se tratar de um dos

meios, se não o principal, que o Estado utiliza para alcançar seus fins.

“[...] A desestruturação e mesmo o mero enfraquecimento do Estado conduzem destarte, inevitavelmente, à ausência de quem possa prover adequadamente o interesse público e, no quanto isso possa se verificar, o próprio interesse social.” (GRAU, 1991, p.52)

Está claro, portanto, de que o objetivo principal do neoliberalismo é reverter o quadro

jurídico-estrutural keynesiano, que ainda não está totalmente desmantelado. Esta realidade é

um dos fatores que mais influenciam a atual crise por que passa a questão jurídica, através da

quebras de suas unidades, não obstante muitos juristas e setores da sociedade não estarem

atentas à relação existente entre esses fatos. Em lugar de regulamentação econômica, ocorre a

desregulamentação e flexibilização, no lugar de aumento de previsão constitucional de

direitos sociais, ocorre um processo no sentido contrário, com a “desconstitucionalização” dos

mesmos.

“[...] Não se pode aceitar o discurso, tão em voga nesses tempos neoliberais, de que o papel do Estado é apenas garantir as liberdades básicas, cabendo à iniciativa privada a prestação dos direitos sociais e econômicos. Na verdade, se não houver uma intervenção estatal no sentido de promover a distribuição da riqueza, buscando a redução das desigualdades sociais (art. 3º, inc. III, da CF/88), através da concretização dos direitos sociais e econômicos, sobretudo para as pessoas mais carentes, a prometida “neo-liberdade” não passará de instrumento de escravização branca.”(MARMELSTEIN LIMA, 2004, p. 13.)

VI. Referências Bibliográficas.

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O SISTEMA JUDICIAL DE PROTEÇÃO À CULTURA NO ORDENAMENTO

BRASILEIRO, POLÍTICAS PÚBLICAS E LEGISLAÇÃO PARA A CULTURA:

ASPECTOS GERAIS DE UM SISTEMA JURÍDICO CULTURAL

THE JUDICIAL SYSTEM TO PROTECTION OF CULTURE IN BRAZILIAN LEGAL

ORDER, PUBLIC POLICY AND LEGISLATION TO CULTURE: GENERALITIES OF A

CULTURAL JURIDICAL SYSTEM

Gustavo Rosa Fontes1

RESUMO

O direito à cultura é protegido no ordenamento jurídico brasileiro por instrumentos jurídicos,

judiciais e legislativos. Trata-se de um direito de caráter eminentemente coletivo, e, por isso

mesmo, merece uma proteção especial, em consideração a esta característica. Além disso, o

direito à cultura exige a elaboração de políticas culturais, voltadas à proteção, promoção e

universalização do acesso aos bens e serviços culturais, de modo que existem mecanismos e

programas próprios voltados a este objetivo, tais como o Programa Nacional de Apoio à

Cultura (lei n. 8.313/1991), o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema

Nacional – PRODECINE (lei n. 8.685/1993), o Programa de Cultura do Trabalhador (lei n.

12.761/2012), além de incentivos via renúncia fiscal para apoio à cultura. Cabe observar

também que a estrutura administrativa brasileira dispõe de diversos órgãos voltadas à questão

cultural, como o Ministério da Cultura e entidades a ele vinculadas. Passamos por um

momento chave para a discussão do tema, haja vista que recentemente foi acrescentado o

artigo 216-A, à Constituição Federal, introduzindo em nível constitucional o Sistema

Nacional de Cultura.

Palavras-chave: Cultura; Direitos Culturais; Tutela judicial coletiva; Políticas Culturais;

Emenda Constitucional n. 71.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do

Amazonas/AM; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.

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ABSTRACT

The right to culture is protected in the Brazilian legal order, by, juridical, judicial and

legislative instruments. It is a right eminently collective, and, therefore, deserves special

protection, in consideration of this feature. Moreover, the right to culture requires the

development of cultural policies aimed at protecting, and promoting universal access to

cultural goods and services, so that there are mechanisms and programs geared themselves to

this purpose, such as the National Program Support to Culture (Law n. 8.313/1991), the

National Development Support of National Cinema - PRODECINE (Law n. 8.685/1993), the

Program of Culture for Workers (Law n. 12.761/2012), plus incentives via tax breaks to

support culture. It should be noted also that the Brazilian administrative structure have

several organs, focused on cultural issues, such as the Ministry of Culture and entities linked

to it. We pass through a key time for discussion of the topic, considering that recently was

added the article 216-A, to the Federal Constitution, introducing, in constitutional level, a

Culture National System.

Keywords: Culture; Cultural Rights; Collective law suit protection; Cultural Policies;

Constitutional Amendment 71.

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1 INTRODUÇÃO

O direito à cultura desponta neste ano como um importante tema a ser debatido, não

somente nos meios políticos, no âmbito da administração pública, mas também no âmbito

jurídico. Isso em consideração à profunda alteração que se pretende implementar no cenário

jurídico cultural, diante da Emenda Constitucional n. 71 de 29 de novembro de 2012. Difícil

afirmar, a esta altura, qual o alcance desta, modificação legislativa, especialmente em relação

aos âmbitos judicial, político e administrativo, no sistema brasileiro. Entretanto, vislumbra-se

uma maior preocupação quanto ao assunto nestes meios.

O direito à cultura, pois, possui conteúdo demasiado impreciso, da forma que é

delineado nos artigos 215, 216 e o recém-criado artigo 216-A, todos da Constituição Federal,

dado seu caráter coletivo, que de um lado se revela um direito social (direito fundamental de

segunda geração), e de outro, coletivo ou difuso (direito fundamental de terceira geração).

Assim, como direito social, é possível observar as normas que o instituem possuem caráter

geral, amplo, cuja eficácia depende de diversos atores e fatores, tal como uma política pública

adequada, bem como instrumentos judiciais eficazes a lidar com a natureza destes direitos.

Portanto, nem sempre é claro identificar a natureza de determinados direitos,

especialmente quando se trata de diversas facetas (coletiva e individual) de um mesmo

fenômeno (cultura). Por isso, é preciso realizar uma análise cuidadosa, de modo a permitir

uma proteção mais eficaz, e a consequente maior efetivação do direito à cultura.

Nesse contexto, a defesa judicial do direito à cultura envolve a aplicação de

mecanismos normativos e processuais. Ao mesmo tempo em que o direito à cultura constitui

um direito pertencente à coletividade – demonstrando, nesse caso, sua natureza difusa; –

também é possível vislumbrar direitos afetos à cultura pertencentes a determinados grupos

sociais, unidos por uma relação jurídica em comum – direito coletivo em sentido estrito – e,

ainda, outros em que se revela em seu aspecto individual, mas derivados de uma origem

comum, e, por isso, homogêneos. Por isso, a defesa judicial do direito coletivo à cultura pode

tomar sentidos diversos, submetendo-se a normas e mecanismos processuais próprios a cada

caso.

Além disso, é preciso lembrar que o direito à cultura depende em grande parte da

atuação da Administração Pública, ou seja, da formulação de programas e políticas públicas

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voltadas ao tema, sempre tendo em vista o contexto social, político e cultural de sua

aplicação. É nesse âmbito, em especial, que a Emenda Constitucional n. 71 provoca grandes

mudanças, o que instiga especial atenção ao tema.

Diante destas considerações, o objetivo deste trabalho será delinear as nuances deste

sistema cultural, tendo em vista a estrutura administrativa e o ordenamento jurídico brasileiro,

aludindo a algumas de suas principais normas protetivas, em especial a Constituição Federal;

em um segundo momento, este esforço se dará em abordar os principais mecanismos judiciais

de proteção destes direitos, com ênfase nos mecanismos de processo coletivo; e, por fim,

quais as diretrizes gerais a respeito da formulação de uma política cultural, tendo a legislação

como parâmetro.

Diante destas considerações, o objetivo deste trabalho será abordar os principais

mecanismos judiciais de proteção destes direitos, com ênfase nos mecanismos de processo

coletivo; em um segundo momento, buscaremos delinear diretrizes a respeito da formulação

de uma política cultural, tendo a legislação como parâmetro; e, por fim, analisaremos as

nuances deste sistema cultural, tendo em vista a estrutura administrativa e o ordenamento

jurídico brasileiro, aludindo a algumas de suas principais normas protetivas, bem como a

Constituição Federal.

Para isso, os métodos utilizados nesta pesquisa foram, quanto aos fins, exploratório-

descritivo e, quanto aos meios, o bibliográfico, utilizando do corpo normativo do

ordenamento brasileiro, envolvendo legislação, jurisprudência, com apoio da doutrina jurídica

e estudos sociais. Assim, buscamos estabelecer as linhas gerais do sistema cultural brasileiro,

identificando seus princípios e dificuldades.

2 O CARÁTER COLETIVO DO DIREITO À CULTURA E A TUTELA COLETIVA

JUDICIAL

O Direito à Cultura pode ser encarado sob a perspectiva subjetiva, ou seja, como um

direito exigível individualmente; também de caráter social (segunda dimensão dos direitos

fundamentais), inserido, pois, no Título destinado à Ordem Social na Constituição Federal. A

par disso, o direito à cultura é encarado como um direito coletivo ou difuso (terceira dimensão

dos direitos fundamentais). Isso significa que sua efetivação depende da consideração deste

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caráter coletivo, sem o que restará impossível a efetivação do direito subjetivo que daquele

decorre.

É interessante que, a partir disso, é possível perceber a relação que se desenvolve, de

modo cada vez mais próximo, entre Meio Ambiente (artigo 225, CF) e Cultura (arts. 215, 216

e 216-A, CF). É a ideia de Meio Ambiente Cultural, ou seja, a perspectiva de que não é

possível a concepção de meio ambiente afastada do aspecto sociocultural. A formação do

Patrimônio Cultural depende, pois, também da proteção dos aspectos ambientais, que envolve

a própria cultura, e vice-versa.

Exemplo dessa percepção é a chancela da Paisagem Cultural do Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, lançada pela Portaria n. 127/2009 deste

órgão. Segundo o artigo 1º deste regulamento, Paisagem Cultural Brasileira é “uma porção

peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com

o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram

valores” (IPHAN, 2009). Percebe-se nesta definição o esforço conceitual que por tantos anos

os doutrinadores do denominado “Direito Ambiental Cultural”.

Estes parênteses são importantes para a compreensão da ampliação dos instrumentos

de formação do patrimônio cultural, e consequentemente, maior efetividades dos direitos

relacionados à cultura. Por isso é possível afirmar que também o artigo 225, da Constituição

Federal, se estende de forma a alcançar a proteção à Cultura, se ligando de forma visceral ao

que dispõem os artigos 215, 216 e 216-A. Como consequência, servirá de apoio à

interpretação das normas relacionadas a cultura, em consideração à noção de sistema que

paira sob as normas do ordenamento jurídico, em especial a própria Constituição. In verbis, o

artigo 225, da Constituição Federal:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Como já se ventilou acima, o direito à cultura não pode ser encarado sob uma única

perspectiva, em relação à sua titularidade: o que se quer dizer é que, levando em consideração

sua natureza coletiva – tal como em outras questões, como o Meio Ambiente – o direito à

Cultura é, por um viés, um direito pertencente à coletividade (art. 215, CF: o Estado

garantirá a todos (...)), e, por outro, também é um direito que pode ser exercido por

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determinados grupos ou pelos indivíduos separadamente, mas derivados de uma situação em

comum.

No primeiro caso, trata-se de um típico direito difuso, segundo a classificação

comumente adotada doutrinariamente em relação aos direitos coletivos, e inserida no

ordenamento jurídico de maneira inovadora pelo Código de Defesa do Consumidor; no

segundo caso, o direito à cultura pertencente a um determinado grupo, unidos por uma relação

jurídica em comum – direito coletivo em sentido estrito; por fim, é um direito individual

homogêneo, quando deriva de uma origem comum, mas pertence ao patrimônio jurídico de

cada indivíduo, separadamente. Cabe observar, porém, que em qualquer desses casos, o

direito à cultura revela um interesse social coletivo. Estas noções levam à adoção de

mecanismos de proteção próprios, especialmente em consideração aos aspectos processuais

atinentes a sua defesa judicial.

O artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do consumidor, in verbis, traz as

referidas definições:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.(grifos nossos)

Zavascki (2005, p. 03 e 04) lembra que o Código de Processo Civil passou por um

ciclo de mudanças, transformando-se da ideia de uma tutela jurídica voltada aos direitos

subjetivos individuais, e, a partir 1985, a uma nova fase com a introdução de novos

instrumentos de tutela de demanda coletiva, tutela de direitos transindividuais, e, finalmente, a

própria ordem jurídica abstratamente considerada. A isso se seguiu o aperfeiçoamento destes

instrumentos, com o surgimento de leis específicas à tutela coletiva dos direitos e a ampliação

do papel do Ministério Público, nesse contexto, como legitimado extraordinário na defesa dos

interesses difusos e coletivos se revela decisivo, especialmente com a Ação Civil Pública.

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A par da discussão a respeito da distinção entre interesses e direitos coletivos2, o

código consumerista traz ao ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez, um ponto de

vista de proteção ampla dos direito coletivos. Ao lado deste diploma, é possível encontrar

outros mecanismos de importante alcance na proteção de direitos coletivos, formando um

microssistema processual coletivo (cf. DIDIER, 2009, p. 49 e ss.), tais como: a Ação Civil

Pública (art. 129, III, da CF e lei n. 7.347/85), a Ação Popular (art. 5º, LXXIII da CF e lei n.

4.717/65), o Mandado de Segurança Coletivo (art. 5º, LXX, CF e Lei n. 12.016/09), as Ações

Diretas de Constitucionalidade e Inconstitucionalidade (art. 103, CF e lei n. 9.868/99).

Vale lembrar que estas ações próprias à tutela coletiva não excluem outras formas de

defesa judicial destes direitos, especialmente as que estão vinculadas ao direito material

objeto de proteção, tais como: a ação de Improbidade Administrativa, as ações civis

tradicionais, especialmente as fundadas em legislação própria à proteção de interesses difusos,

como o Código de Defesa do Consumidor (parágrafo único do art. 81, 91 e ss., da lei n.

8.078), o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069, arts. 208 e ss.), o Estatuto do

Idoso (lei n. 10.741, arts. 78 e ss.), a lei n. 7.853/1989, destinada à proteção e apoio às pessoas

com deficiência (art. 3º), entre outros.

Não se deve esquecer que o tema que tem tomado repercussão nos meios acadêmicos,

no que diz respeito à elaboração de um “Anteprojeto do Código Brasileiro de Processos

Coletivos” – coordenado pela professora Ada Pellegrini Grinover – cuja pretensão é

consolidar os avanços do pensamento processual mais progressista, em relação aos direitos

coletivos (LEONEL, 2006, p. 185). É importante se ter em mente que, independente de um

código de processos coletivos, é inquestionável que há no ordenamento jurídico brasileiro um

sistema processual coletivo, formado pelo conjunto de normas acima mencionadas, entre

outras.

2.1 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA

2Em geral, a doutrina alude à distinção entre interesses públicos primário e secundário. O primeiro diz respeito ao interesse da coletividade, segundo o qual deverão atuar os órgãos da Administração, bem como dos Poderes Legislativo e Judiciário; o segundo se identifica com os interesses imediatos da administração pública, que devem se delinear aos limites daquele: “o interesse coletivo primário ou simplesmente interesse público é o complexo de interesses coletivos prevalente na sociedade, ao passo que o interesse secundário é composto pelos interesses que a Administração poderia ter como qualquer sujeito de direito, interesses subjetivos, patrimoniais, em sentido lato, na medida em que integram o patrimônio do sujeito (...)” (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 650).

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A ação civil pública tem previsão constitucional no artigo 129, inciso III, da Carta

Maior, onde se consagra a legitimidade do Ministério Público a sua propositura em defesa dos

“interesses difusos e coletivos”:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Além disso, é regulamentada pela lei n. 7.347/85, que a criou, e teve seu objeto

ampliado pela Constituição Federal de 1988, para a defesa de interesses difusos e coletivos,

do meio ambiente e do patrimônio público e social. Também foi modificada por diversas leis

posteriores, adicionando-se novas hipóteses: a proteção das pessoas portadoras de deficiência

(Lei n. 7.853/89), dos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei n. 7.913/89), das

crianças e adolescentes (ECA — Lei n. 8.069/90), dos consumidores (CDC — Lei n.

8.078/90), das pessoas atingidas por danos à ordem econômica (Lei n. 8.884/94) (MAZZILI,

2001, p 109).

Zavascki (2005, p. 48) explicita que a Ação civil pública é composta por diversos

mecanismos voltados à tutela preventiva, reparatória e cautelar de quaisquer direitos e

interesses difusos e coletivos. De fato, o artigo 1º da lei n. 7.347 provê grande alcance às

ações de responsabilidade por danos morais e materiais causados ao meio ambiente, ao

consumidor, a bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infração à

ordem econômica, à ordem urbanística e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. Indica

o autor, por isso, que as leis que posteriormente vieram a regulamentar de forma específica

direitos de natureza coletiva seguiram, na essência, a linha procedimental desta lei, adotando-

se sua aplicação de forma subsidiária.

Um aspecto de maior importância da Lei de Ação Civil Pública é a institucionalização

legislativa do acesso à justiça, atribuindo a legitimidade de propor esta ação ao mesmo tempo

a organismos públicos e privados, em conjunto ou separadamente (cf. MIRRA, 2004, p. 137).

Ainda, cabe mencionar que é atribuída a legitimidade às associações civis promoverem esta

ação, desde que constituídas há pelo menos 1 (um) ano e “inclua, entre suas finalidades

institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre

concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. O juiz

poderá dispensar a pré-constituição “quando haja manifesto interesse social evidenciado pela

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dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido” (art.

5º, §4º, da lei n. 7347/85) e, também, é garantida a gratuidade do acesso à justiça, exceto no

caso de comprovada litigância de má-fé (art. 17 da lei n. 7.347/85). Além das associações,

também estão legitimados o Ministério Público, a Defensoria Pública, a União, os Estados, o

Distrito Federal, e os Municípios, a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de

economia mista, nos termos do artigo 5º da lei da ação civil pública.

Percebe-se, portanto, haver uma ampla legitimação ativa, de forma a conferir uma

maior proteção aos direitos difusos e coletivos. Nesse contexto, a participação da sociedade

civil se revela decisiva como instrumento de racionalização do poder:

Trata-se de uma tentativa de gestão racional de determinados setores da vida coletiva, que tem a seu favor não apenas a fé iluminista no valor educativo da participação, mas ainda a convicção da necessidade de busca de novas formas de democracia, adequadas aos progressos e aos riscos da revolução técnico-científica (GRINOVER apud MIRRA, 2004, p. 143)

Cabe acrescentar que o Ministério Público se destaca como um órgão da sociedade,

embora formalmente um órgão do Estado (id., p. 147). Além de figurar como legitimado ativo

destas ações, o parquet deverá atuar como fiscal da lei (custus legis). Também deverá assumir

a titularidade ativa no caso de desistência infundada de associações (art. 5º, §1º, da lei n.

7.347).

Importante mencionar, em relação aos legitimados ativos, que estes poderão habilitar-

se como litisconsortes (art. 5º, §2º), bem como os Ministérios Públicos da União, Estados e

Municípios (art. 5º, §5º). Por fim, instrumento importante de solução de controvérsias e

proteção efetiva a direitos difusos é o compromisso de ajustamento, tomado dos interessados

pelos órgãos públicos legitimados, tendo força de título executivo extrajudicial (art. 5º, §6º).

A decisão promulgada na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, em caso de

procedência ou improcedência por pedido infundado. No caso de improcedência, vale lembrar

que não fará coisa julgada material no caso de deficiência de provas, possibilitando a qualquer

dos legitimados renovar a demanda, trazendo novos elementos (art.16). Mirra lembra que

estas disposições têm por objetivo evitar submeter o réu a reiteradas ações infundadas,

diminuindo, também, os inconvenientes aos co-titulares do interesse em causa e, ainda,

impedir “o conluio entre o autor legitimado e o réu para a propositura de ações simuladas, as

quais, devido à atuação insatisfatória do demandante na produção de provas, poderiam ser

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julgadas improcedentes, com a garantia da coisa julgada fraudulentamente obtida” (id., p.

139).

O art. 13 da lei n. 7.347 prevê a destinação das indenizações em dinheiro decorrentes

das ações em defesa dos direitos difusos a um fundo, gerido por Conselhos federal ou

estaduais, devendo estes recursos ser destinados à reconstituição dos bens lesados. Discussão

importante neste respeito é a vinculação dos recursos às respectivas áreas (espacial e material)

cujos direitos foram violados. Por exemplo, se a violação de direitos culturais ensejaria a

destinação dos valores à manutenção ou promoção do sistema nacional de cultura, ou

formação de patrimônio cultural, etc..

Em relação à vinculação por localidade, o Decreto Federal n. 1.306/1994, que

regulamenta o Fundo de Direito Difusos (FDD) no âmbito federal, impõe a obrigatoriedade de

aplicação dos recursos no mesmo local onde ocorreu o dano (art. 7º e parágrafo único do

Decreto n. 1.306/1994). Merece atenção as considerações de Silva (2006), argumentando que

tal vinculação ensejaria a destinação de grande parte dos recursos de forma bastante restritiva,

já que há concentração em poucas áreas, em especial referente às multas aplicadas pelo

Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Dessa forma, “se os valores

revertidos ao Fundo fossem afetados de acordo com a origem (matéria e localidade), a maior

parte dos recursos disponíveis seriam aplicados em prol da defesa da concorrência” (SILVA,

2006, p. 91).

Ainda que pairem dúvidas sobre a efetividade do FDD, com maior sucesso se dá a

reparação via Fundo dos direitos individuais homogêneos, pelo mecanismo denominado fluid

recovery. A “recuperação fluida” é um instrumento de liquidação e execução verdadeiramente

coletiva. Os valores arrecadados deverão ser objeto de liquidação pelos interessados (titulares

dos direitos individuais homogêneos lesados) que deverão se habilitar na demanda. Este

dispositivo evita com que os agentes causadores do dano saiam impunes, possibilitando que

demandas que seriam excessivamente custosas consideradas individualmente, sejam reparadas

no processo coletivo, de maneira mais econômica e célere.

Ainda, caso os interessados não se habilitem, o artigo 100 do Código de Defesa do

Consumidor admite que um dos entes legitimados extraordinariamente promova a liquidação

do direito reconhecido em sentença coletiva, em nome dos titulares de direitos individuais

homogêneos. Ou seja, no caso em que, decorrido o prazo de um ano sem que estes

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interessados promovessem, individualmente e em número compatível com a gravidade do

dano, a liquidação e execução do valor que lhe é devido, qualquer um daqueles legitimados

(art. 82, CDC) poderia fazê-lo de forma coletiva. E, assim, o produto da execução seria

revertido ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD), previsto no artigo 13 da lei de

Ação Civil Pública (lei n. 7.437/85). Nesse caso, há uma legitimação extraordinária residual,

pois surge somente após o lapso temporal de um ano do trânsito em julgado, e devidamente

chamados à habilitação os interessados (cf. ABELHA apud DIDIER, 2009, p. 378).

2.2 A AÇÃO POPULAR

A Ação Popular está prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal de 1988, e é

regulamentada pela lei n. 4.717/65. Sua característica de maior relevo é a ampla legitimação

atribuída, ou seja, o fato de que é possível a qualquer cidadão manejá-la, de maneira gratuita.

Trata-se de ação que tem por objetivo a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou

entidade de que o Estado participe. Além disso, é instrumento hábil à proteção da moralidade

administrativa, do meio ambiente, e do patrimônio histórico e cultural. É o que se depreende

do texto constitucional, in verbis:

Art. 5º. (...) LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

Segundo Zavascki (2005, p. 69), a ação popular surge no ordenamento jurídico

constitucional a partir da Constituição de 1934, perdurando até a atual – com exceção da

Carta de 1937, outorgada pelo Estado Novo. É um remédio de tradição consolidada, mas que

ao longo da evolução legislativa e constitucional ganha maior detalhamento, adquirindo

sentido mais amplo, até culminar na atual conformação acima citada.

O autor destaca entre seus principais avanços a alteração do conceito de patrimônio,

dada pela lei n. 6.513/77, incluindo os “bens e direitos de valor econômico, artístico. estético,

histórico ou turístico" (id., p. 70), e, com a Constituição Federal de 1988, acrescentando aos

bens tuteláveis por esta via o meio ambiente e a moralidade administrativa. Importante

ressaltar que a característica de maior realce da ação popular é seu exercício por qualquer

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cidadão, para a defesa de direitos coletivos (id., p. 71), e por isso mesmo, alinhando-se ao rol

de direitos políticos fundamentais.

Além de instrumento típico de cidadania – entendido o cidadão como aquele que não

apresente pendências cívicas, militares e eleitorais exigíveis por lei – é também, pois, voltado

principalmente à defesa do interesse público, ainda que possa gerar reflexo em posições

subjetivas (cf. MENDES, 2009, p. 590). Nesse sentido, a defesa do interesse público pelo

cidadão revela o aspecto transindividual do objeto da ação popular, como argumenta

Zavascki:

A transindividualidade dos interesses tutelados por ação popular fica evidenciada, não apenas quando seu objeto é a proteção do meio ambiente ou do património histórico e cultural (direitos tipicamente difusos. sem titular determinado), mas também quando busca anular atos lesivos ao patrimônio das pessoas de direito público ou de entidades de que o Estado tenha participação (2005, p. 72).

Lenza (2009, p. 746), elenca os seguintes requisitos referentes à propositura da ação

popular: a lesividade ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente

ou ao patrimônio histórico e cultural e a legitimidade, ou seja, a qualidade de cidadão. O que

é imprescindível, portanto, ao jurista e ao juiz, é a delimitação do que se entende por

lesividade.

A lesividade não estará presente sempre que houver a diminuição do patrimônio

público, pois esta constatação em si não pressupõe uma lesão. Na verdade, esta ocorrerá ou

em razão de violação à moralidade administrativa – que é, em si, uma ilegalidade –ou por

uma redução do patrimônio decorrente de ato ilegítimo. Para Zavascki (op. cit., p. 75), não há

que se falar em lesividade quando se trata de ato legítimo. Isso porque a lesividade pressupõe

a ilegalidade ou ilegitimidade do ato, porquanto a simples redução do patrimônio público não

enseja a lesão.

Ainda, este ato não pode ser suscetível de convalidação, lembrando que a nulidade se

trata de uma sanção jurídica. Por isso que “opera em plano exclusivamente jurídico, pois

decorre (= tem como causa necessária) da injuridicidade (= ilegitimidade, ilegalidade) do ato,

e não dos efeitos materiais que ele acarreta” (id., p. 76).

Em relação à violação à moralidade ou princípio da moralidade administrativa (art. 37,

CF), sua problemática exige a consideração de que se trata de uma cláusula normativa aberta,

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o que exige uma delimitação de seu conteúdo. Deve-se ter em conta que a sua força

sancionadora supõe os princípios da tipicidade e da irretroatividade das normas.

O conteúdo do princípio da moralidade deve necessariamente ser extraído de um sistema normativo previamente existente, conhecido e acessível a todos os seus destinatários e determinado democraticamente, isto é, por quem tem o poder de produzir regras de conduta (= normas jurídicas) (id., p. 78).

Os vícios dos atos administrativos por quebra da moralidade se revelam, portanto, de

causas subjetivas. Há um descompasso entre sua expressão formal e sua expressão formal,

pois a intenção do agente não se compatibiliza com os fins próprios à função que ele exerce

(id. P. 79).

2.3 O MANDADO DE SEGURANÇA E O MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO

O mandado de segurança tem previsão constitucional no art. 5º, LXIX, e sua

modalidade coletiva, no art. 5º, LXX. Trata-se também de remédio constitucional que visa à

proteção de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, contra

ato ou omissão ilegal de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de

atribuições do Poder Público. O mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por

partidos políticos e a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente

constituída há, no mínimo, um ano, em defesa dos interesses de seus membros.

Interessante observar que o artigo 21 da lei n. 12.016/2010 consagrou a posição

dominante na jurisprudência, em relação ao mandado de segurança movido por partidos

políticos, associações e organizações sindicais, na defesa de direito líquido e certo de seus

membros, no sentido da desnecessidade de autorização especial. Segundo Mendes (2009, p.

580), não se trata de uma nova modalidade da ação constitucional, mas de uma forma diversa

de legitimação ad causam, por substituição processual – enquanto a hipótese do art. 5º, LXX,

é caso de representação processual.

Além disso, o parágrafo único do referido artigo afirma que esta ação coletiva se

destina à proteção de direitos coletivos ou transindividuais e de direitos individuais

homogêneos. Não é destinado, pois, à defesa de direitos difusos strictu sensu, pois nesse caso

não há uma legitimidade daquelas entidades à utilização desta via para direitos desta natureza,

como o meio ambiente, e, no caso da cultura, se considerada abstratamente como bem de toda

a coletividade.

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Isso significa que o objeto de tutela do mandado de segurança são aqueles direitos

transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular “grupo ou categoria de pessoas

ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base”, ou ainda, “os

decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte

dos associados, ou membros do impetrante” (art. 21, parágrafo único, I e II).

Vale observar que estes conceitos claramente derivam da definição dada no parágrafo

único, I e II, do artigo 81 do Código de Defesa do consumidor, supramencionado, que serve

de parâmetro em relação às outras leis que tratam da tutela coletiva de direitos.

Percebe-se, por fim, que a lei n. 12.016/2010 veio a esclarecer dúvidas e fortalecer a

segurança jurídica, especialmente no que se refere ao mandado de segurança coletivo, já que a

legislação anterior não tratava especificamente desta modalidade. Coube à doutrina e à

jurisprudência delinear os contornos deste mecanismo, até a atual configuração legislativa,

que o consagrou em nível infraconstitucional.

2.4 AS AÇÕES DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE E DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE

A par de todo o regramento e de profunda discussão doutrinária acerca do instituto do

Controle de Constitucionalidade de atos normativos, aqui o que se busca é destacar o caráter

de proteção a direitos coletivos dado por estas ações constitucionais de controle, notadamente,

neste caso, o direito à cultura, em seu aspecto coletivo. Trata-se, indubitavelmente, de

instrumentos do mais amplo alcance, especialmente em razão da extensão de seus efeitos.

Além disso, possibilita a discussão de lei em tese, o que não é possível por outras vias de

tutela coletiva, como a própria ação civil pública.

Dessa forma, cumpre asseverar que a ação declaratória de constitucionalidade e a ação

direta de inconstitucionalidade são instrumentos do chamado controle concentrado de

constitucionalidade, em contraposição ao controle difuso – este realizado nas ações comuns,

sejam individuais ou coletivas, a partir do caso concreto. O que diferencia as primeiras neste

ponto é justamente o seu caráter abstrato, a discussão de constitucionalidade de ato normativo

em tese. Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 49), o controle difuso ou jurisdição

constitucional difusa é o exercício do controle constitucional reconhecido a todos os

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componentes do poder judiciário. O controle concentrado, por sua vez, é deferido ao tribunal

de cúpula ou a uma corte especial – no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal.

O artigo 103 da Constituição Federal traz o rol de legitimados à propositura destas

ações – o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a

Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de

Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil. partido político com representação no Congresso Nacional, a confederação

sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. Prevê a ação direta de inconstitucionalidade por

omissão – modalidade que se relaciona com o mandado de injunção (art. 5º, LXXI, CF), outra

forma de controle de constitucionalidade por omissão, nesse caso, pela via concreta.

Cabe afirmar, então, que o controle de constitucionalidade deriva do chamado

princípio da supremacia das normas constitucionais. É um princípio basilar do ordenamento

jurídico, de forma que todas as normas do ordenamento devem estar em conformidade à

normas da Constituição, ou devem ser extirpadas deste ordenamento, formando a ideia de

sistema jurídico.

Zavascki (op. cit., p. 249) acentua que o traço distintivo do controle abstrato de

constitucionalidade é justamente o seu caráter objetivo. Isso significa que neste processo “faz-

se atuar a jurisdição com o objetivo de tutelar, não direitos subjetivos, mas sim a própria

ordem constitucional, o que se dá mediante solução de controvérsias a respeito da

legitimidade da norma abstratamente considerada”. Complementa o autor que, neste caso,

não existem partes no processo, mas entes legitimados.

Além disso, as ações de controle de constitucionalidade concentrado possuem natureza

dúplice: a aptidão de formular juízos de constitucionalidade ou inconstitucionalidade das

normas, em seu julgamento de mérito. Isso quer dizer que a procedência da ação direta de

inconstitucionalidade enseja a declaração de nulidade da norma atacada, obtendo efeitos

retroativos e erga omnes e vinculantes. De outra forma, sua improcedência acarreta a

declaração de constitucionalidade da norma atacada, com os mesmos efeitos. Mutatis

mutandis, à ação declaratória de constitucionalidade se observa as mesmas assertivas (cf.

ZAVASCKI, p. 252).

Quanto aos efeitos da sentença, como se mencionou, muito se assemelham aos efeitos

próprios da ação civil pública (art. 16 da lei n. 7.347/85), atuando: de forma retroativa (ex

tunc), ou seja, desde a data em que a norma inconstitucional começou a produzir efeitos ou

desde o momento em que deveria ter produzido efeitos a norma constitucional; erga omnes,

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ou seja, seus efeitos valem contra todos, mesmo os que não fizeram parte da relação

processual; e vinculante, ou seja, em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à

Administração Pública federal, estadual e municipal (art. 28, da lei n. 9.868/99).

3 POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITOS CULTURAIS

A efetivação aos direitos culturais, tendo em vista a análise acima exposta, depende

essencialmente da elaboração e planejamento de políticas públicas e programas voltados à

efetivação destes direitos, constituindo-se em prestações positivas incumbidas aos órgãos e

agentes do Estado. Segundo Canotilho,os direitos sociais possuem, de um lado, uma dimensão

inerente à existência do cidadão, à sua dignidade (dimensão subjetiva); e, de outro, um

aspecto impositivo, voltado ao legislador, ou “deveres de prestações aos cidadãos”

(CANOTILHO, 2003, p. 476).

Neste sentido, Freire Júnior, dando enfoque à necessidade de efetivação dos direitos

fundamentais, se propõe a conceituar a expressão “políticas públicas”: “(...) de um modo

geral, a expressão pretende significar um conjunto de ou uma medida isolada praticada pelo

Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado

Democrático de Direito” (2005, p. 47). Acrescenta, ainda, que é possível se falar na existência

de um direito constitucional à efetivação da Constituição, aduzindo que “a abstinência do

governo em tornar concretos, reais, os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes,

constituirá, inelutavelmente, uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente,

de violação de direitos subjetivos dos cidadãos” (id., p. 49)

Para Bucci, a expressão “Políticas Públicas” deve ser entendida como “programas de

ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades

privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados

(...) são ‘metas coletivas conscientes’(...)” (BUCCI, 2002, p. 241). A autora ressalta, ainda,

que há uma interpenetração entre as esferas jurídica e política, argumentando que a

comunicação entre Direito e Política é necessária, no sentido de permitir a interação entre os

atores sociais, de modo que seja possível inferir deste relacionamento uma ação política

coordenada e socialmente útil (ibidem).

Na formulação de uma política pública eficiente deve-se buscar, portanto, o diálogo

constante entre os diversos atores sociais, de forma que seja possível propiciar o alcance dos

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fins instituídos pela Constituição – ou seja, a busca de um Estado igualitário, pautado nos

princípios da justiça social. É interessante notar também que esta troca de informações torna

possível auferir as técnicas mais adequadas, de acordo com a atividade social que se quer

efetivar,“que determinadas atividades sociais são mais propícias a uma ou outra técnica” (id.,

p. 246).

Em relação ao caráter programático de grande parte das normas definidoras de direitos

sociais, cabe afirmar que muitas vezes acarreta na necessidade ulterior legiferante, ou seja, a

elaboração de instrumentos normativos que regulamentem as formas de efetivação de tais

direitos. Por outro lado, estas mesmas normas diversas vezes conferem a incumbência de

efetivar os direitos sociais a outros agentes, que não o legislador.

De fato, há uma correspondência entre a formulação da constituição dirigente, especialmente a partir da obra de José Joaquim Gomes Canotilho, e a ideias de um direito administrativo voltado para a concretização, pela Administração Pública, dos ditames constitucionais e, em decorrência, de políticas públicas. A ideia da Constituição programático-dirigente, cuja atualização deve ser feita pelo legislador, com base no conceito de reenvio dinâmico, é bastante pertinente à abordagem adotada neste trabalho. Assim como Canotilho trata da cooperação do legislador infraconstitucional na ‘determinação’ e ‘conformação material’ da Constituição, o enfoque das políticas públicas destaca o papel da administração na ‘determinação e conformação’ material das leis e das decisões políticas a serem executadas no nível administrativo. (BUCCI, 2002, p. 246)

A eficácia das políticas públicas depende do grau de articulação entre os poderes e

agentes públicos envolvidos na promoção destas ações. Mas também a própria sociedade civil

deve trabalhar em conjunto aos atores estatais quando da elaboração de planos de governo,

especialmente em relação às áreas mais sensíveis de cada população. Deve-se, então, atentar à

forma de aplicação destes programas, bem como a correta aplicação dos recursos a eles

destinados.

Sob estas considerações, é necessário a estabelecimento de uma política cultural.

Marilena Chauí defende que a política cultural deve se basear sob o aspecto de uma

democracia cultural. Assim, esta seria fundada em uma definição alargada de cultura,

identificando-a com símbolos, valores, ideias, objetos, práticas e comportamentos pelos quais

uma sociedade define para si as relações com o espaço, a natureza, o tempo e o homem. A

cultura deve ser vista como um trabalho de criação, buscando a inovação, a criatividade, como

resultado de reflexão e crítica. Os sujeitos da cultura são os sujeitos históricos da sociedade,

que articulam o trabalho cultural e a memória social. (CHAUÍ, 2006, p. 72)

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Para Silva, “A questão da política cultural está exatamente no equilíbrio que há de se

perseguir entre um Estado que imponha uma cultura oficial e a democracia cultural” , sendo

garantido pela própria Constituição a liberdade de criação, expressão e de acesso às fontes de

cultura nacional. O autor caracteriza a ideia de democracia cultural sob os seguintes aspectos:

a) não tolher a liberdade de criação, b) expressão e de acesso à cultura; criar condições para a

efetivação dessa liberdade num clima de igualdade; c) favorecer o acesso à cultura e o gozo

dos bens culturais à massa da população excluída (SILVA, 2001, p. 209).

Ademais, conseguimos identificar, no âmbito das políticas públicas relacionadas à

cultura, alguns aspectos especificamente ligados a esta, destacando-se no contexto

constitucional e de efetivação dos direitos aí inscritos. Entre eles, se destacam a valorização

das culturas populares em face das indústrias culturais de massa; a questão da distribuição de

equipamentos culturais, de modo a proporcionar o acesso aos bens culturais; a formação do

gosto, com apoio da Educação, de forma a ampliar o interesse da população em geral pelos

variados bens culturais, desvinculando-a à imposição das indústrias; e, por fim, a questão do

financiamento cultural, especialmente em relação às leis de incentivo à cultura.

A par disso, a política cultural está indissociavelmente ligada a uma política

educacional. A formação do gosto possibilita não só a criação de indivíduos capazes de

fruição estética, mas também com capacidade de compreensão e crítica, de percepção de

diferenças, e de relativização das próprias crenças e gostos (SILVA, 2007, p. 29).

Bastos ressalta o papel da educação na proteção do patrimônio cultural,afirmando que

é através dela que são transmitidos os conhecimentos básicos do indivíduo, possibilitando seu

desenvolvimento intelectual, sua inserção na sociedade a qual pertence e sua formação como

cidadão. “As escolas devem incentivar as manifestações culturais e artísticas dos educandos,

e, sobretudo lhes ensinar o valor da preservação do patrimônio nacional cultural” (BASTOS,

1998, p. 702).

No entanto, vale também lembrar a opinião de Teixeira Coelho, que afirma que há um

grupo que “de boa fé, por ignorância ou descuido, confunde cultura com educação e quer

transformar o teatro, o cinema, a biblioteca ou o centro de cultura em substitutivos para um

sistema educacional” (COELHO, 1989, p. 10).. E, por isso, cabe a afirmação de que “a

Educação ensina e faz conhecer as obras, a função da cultura é a de as fazer amar”(CAUNE,

apud SILVA, 2001, p. 208)

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Garcia Canclini, em consideração à formulação de políticas públicas para o

fortalecimento da América Latina no âmbito global, defende que para atingir este objetivo

deve-se proceder à consolidação do patrimônio histórico material (monumentos, sítios

arqueológicos, bosques, artesanatos) e imaterial ((línguas, tradições e conhecimentos

socialmente benéficos). Aduz, ainda, que muitos países europeus sem grande expressividade

no âmbito global conseguem proteger sua produção de conteúdo cultural por meio de leis de

proteção, valorizando seu cinema e televisão.

É impensável fortalecer o que ainda existe em termos de cultura e sociedades nacionais [...] sem empreender projetos como região que a permita crescer e relocalizar-se no mundo. Essa perspectiva significa colocar no centro as pessoas e as sociedades, não os investimentos nem indicadores financeiros ou macroeconômicos, que articulam, de forma difusa, a América Latina. A pergunta-chave não é com o que ajustes econômicos internos vamos pagar melhor as dívidas, mas que produtos materiais e simbólicos próprios (e importados) podem melhorar as condições de vida das populações latino-americanas, e potencializar nossa comunicação com os demais (GARCIA CANCLINI, 2003,p. 33-34).

Nesse sentido, o autor defende que deve se proceder à consolidação do patrimônio

histórico material (monumentos, sítios arqueológicos, bosques, artesanatos) e imaterial

((línguas, tradições e conhecimentos socialmente benéficos). Afirma, ainda, que muitos países

europeus sem grande expressividade no âmbito global conseguem proteger sua produção de

conteúdo cultural por meio de leis de proteção, valorizando seu cinema e televisão.

4 A ESTRUTURA ADMINISTRATIVA, LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO,

PROMOÇÃO E INCENTIVO À CULTURA, E A EMENDA CONSTITUCIONAL

N. 71/2012

A estrutura administrativa da cultura é o conjunto de órgãos que, em maior ou menor

grau, aplica as políticas voltadas à preservação, promoção e acesso à cultura. Dessa forma,

estes órgãos são responsáveis pela criação de programas, prêmios, bolsas, editais, e outros

instrumentos para a concretização do direito à cultura, tal como ele é delineado na

Constituição Federal, bem como nas legislações federais, estaduais e municipais. Fazem parte

deste conjunto, no âmbito federal, o Ministério da Cultura, as Secretárias estaduais e

municipais da cultura, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, as

fundações, agências voltadas à cultura, e outras organizações de terceiro setor, podendo

incluir entre estas entidades como o SESC, SENAI, SESI, e outras, que possuem, em alguns

estados, importante papel na produção cultural.

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A estrutura organizacional do Ministério da Cultura é regulamentada, atualmente, pelo

Decreto n. 7.743/2012. Segundo o Anexo I deste diploma, ao Ministério da Cultura compete a

Política Nacional da Cultura e a proteção do patrimônio histórico e cultural. Sua estrutura

organizacional é descrita pelo art. 2º do Anexo I do Decreto n. 7.743/2012, dividindo-se em

órgãos de assistência direta e imediata ao Ministro de Estado; órgãos específicos singulares;

órgãos descentralizados: (Representações Regionais); órgãos colegiados; entidades

vinculadas. Dentre estas últimas, vale mencionar que estão incluídas as autarquias, como o

IPHAN, a ANCINE e o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM e as fundações, como a

Fundação Casa de Rui Barbosa – FCRB, a Fundação Cultural Palmares – FCP, a Fundação Nacional

de Artes - FUNARTE e a Fundação Biblioteca Nacional - FBN.

Portanto, a estrutura do Ministério da Cultura é modelada de acordo com os seus

objetivos, quais sejam, a formulação de uma política nacional da cultura e a proteção do

patrimônio histórico e cultural. É importante mencionar que estas atribuições são decorrentes

do disposto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal. Além disso, a legislação

infraconstitucional forma um sistema legal da cultura, criando mecanismos para

implementação e efetivação destes direitos.

A lei n. 8.313 de 1991, conhecida como lei Rouanet, configura um dos mais

importantes diplomas legislativos neste âmbito. Ela estabelece os princípios de políticas

culturais no âmbito federal, bem como institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura

(PRONAC), com o objetivo de captar e canalizar recursos para o setor. Além disso, prevê a

implementação do PRONAC, através do Fundo Nacional da Cultura (FNC), dos Fundos de

Investimento Cultural e Artístico (FICART) e dos incentivos a projetos culturais.

É nesse sentido que Silva (2007, p. 173), destaca que o sistema de financiamento

cultural se dá por três mecanismos: os recursos orçamentários, compostos por recursos

destinados ao FNC, somados aos recursos orçamentários das Instituições Federais de Cultura

(MINC, entidades vinculadas e Fundações); os incentivos fiscais, direcionados às pessoas

físicas e jurídicas, mediante dedução de parcelas de impostos para doação e apoio direto a

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atividades culturais; e os fundos de investimentos, FICART e FUNCINE3, ainda de pouca

efetividade.

A modalidade do incentivo fiscal implica na renúncia de parte da receita fiscal pelo

Estado, possibilitando a alocação de recursos para a cultura por meio do patrocínio ou do

mecenato. Os incentivos fiscais são parte do sistema de financiamento que se constituem em

instrumento do poder público par direcionar recursos privados a seguimentos estratégicos (id.,

p. 199).

Vale observar que o artigo 4º da lei n. 8.313 fixa critérios aos quais deverão obedecer

os projetos culturais submetidos à análise do Ministério da Cultura, para que possam receber

recursos do Fundo Nacional da Cultura. Além disso, as Instrução Normativa n. 1 de 2012 do

Ministério da Cultura, em conformidade com a lei n. 9.874, estabelecem procedimentos para

apresentação, execução, acompanhamento e prestação de contas das propostas culturais,

relativos aos mecanismos de incentivos fiscais do PRONAC.

A lei n. 8.685/1993, (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela Medida

Provisória n. 2.228 de 2001, cria o Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do

Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema (ANCINE) e o Fundo de

Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE). O objetivo principal

desta lei é a criação de mecanismos de fomento à produção audiovisual no Brasil,

especialmente na forma de renúncia fiscal do Estado, via dedução fiscal do imposto sobre a

renda de particulares. A aprovação de propostas de projetos de produção audiovisual será

submetida à ANCINE, e a agência cuidará da destinação dos recursos via fomento direto ou

indireto.

O Plano Nacional da Cultura (PNC), previsto no 3º do artigo 215, da Constituição

Federal, foi instituído recentemente pela lei n. 12.343/2010, que cria, também o Sistema

Nacional de Informações e Indicadores Culturais - SNIIC. Em conformidade ao referido

dispositivo constitucional, que exige a duração plurianual do PNC, o artigo 1º da lei n. 12.343

prevê sua duração pelo período de 10 (dez) anos, revisado periodicamente, tendo sua primeira

3 Lei n. 8.685 de 1993 (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela Medida Provisória n. 2.228 de 2001, cria o

Programa Nacional de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema

(ANCINE) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE) (SILVA, 2007, p. 173).

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revisão a ser realizada após 4 (quatro) anos da publicação da lei (art. 11). Este Plano

estabelece os princípios, objetivos e atribuições do poder público na elaboração de políticas

culturais, em âmbito nacional, e tem por finalidade o planejamento e implementação de

políticas públicas de longo prazo, voltadas à proteção e promoção da diversidade cultural. O

SNIIC é um instrumento de controle, monitoramento e gestão de políticas culturais, obrigando

a União, os Estados, Municípios e Distrito Federal à sua atualização permanente (arts. 9 e 10).

Outro recente diploma legislativo para a cultura é a lei n. 12.761/2012, que institui o

Programa de Cultura do Trabalhador, criando também o “vale-cultura”. Trata-se de uma

tentativa de ampliação do acesso à cultura, para permitir, estimular e incentivar o uso dos bens

culturais pela população. Nesta lei, o sentido que se dá à cultura é o vinculado às atividades de

cunho artístico e cultural, em especial às artes visuais, artes cênicas, audiovisual, literatura,

humanidades e informação, música e patrimônio cultural.

O vale-cultura é destinado aos trabalhadores que perceba até 5 (cinco) salários-

mínimos mensais, e para os que percebam além deste limite, desde que garantido à totalidade

daqueles outros. Além disso, o valor despendido para aquisição do vale-cultura poderá ser

deduzido do imposto de renda pela pessoa jurídica beneficiária tributada com base no lucro

real, no limite de 1% do imposto sobre a renda devido; poderá deduzir também como despesa

operacional neste mesmo caso, desde que inscrita no Programa de Cultura do Trabalhador.

Estas deduções serão aplicadas em relação ao valor distribuído ao usuário (art. 10, §§1º a 4º,

da lei n. 12.761).

Finalmente, a Emenda Constitucional n. 71 de 29 de novembro de 2012 acrescentou o

art. 216-A à Constituição Federal, cria a previsão do Sistema Nacional de Cultura, instituindo

um “processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e

permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo

promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos

culturais” (Art. 216-A, caput, CF). Trata-se de um sistema descentralizado e organizado em

regime de colaboração, fundamentado nas diretrizes do Plano Nacional de Cultura.

O §1º do referido artigo elenca os princípios estruturantes do Sistema Nacional de

Cultura, destacando de forma central a diversidade das expressões cultura e a universalização

do acesso aos bens e serviços culturais. A principal característica destes princípios,

sobressaindo-se especialmente por sua consagração em nível constitucional, são a

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democratização dos processos decisórios, com participação e controle social (inciso X), a

descentralização (inciso XI), e a ampliação progressiva dos recursos dos orçamentos públicos

para a cultura (inciso XII). O §2º estrutura o Sistema Nacional da Cultura em cada nível

federal, devendo, por isso, cada ente observar esta estrutura na elaboração dos respectivos

Sistemas. Os §§3º e 4º, finalmente, preveem a edição de leis em cada nível da Federação,

portanto, em âmbito federal, estaduais, municipais e no Distrito Federal, por leis próprias.

Nesse sentido é que o Ministério da Cultura publicou o Guia de Orientações para os Estados

(2011) e o Guia de Orientações para os Municípios (2011), para implementação dos

respectivos Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura, disponibilizando, inclusive, modelos

para projetos de lei.

5 CONCLUSÃO

O Direito à Cultura possui um caráter eminentemente coletivo, o que não exclui o

direito subjetivo individual a que faz jus cada cidadão. Desta característica sobressalente,

deriva um regramento especial para a sua proteção: de um lado, um sistema judicial de

proteção a direitos coletivos, que possui instrumentos próprios a defesa destes direitos,

assegurando maior efetividade na sua tutela. De outro, a estrutura administrativa e legal

voltada à cultura sustenta um sistema jurídico de proteção à cultura.

No referido sistema, incluímos o Ministério da Cultura, bem como as entidades a ele

vinculadas, como o IPHAN, a ANCINE, as Fundações, já referidas acima; os instrumentos

previstos na legislação cultural, como: o Plano Nacional da Cultura previsto no 3º do artigo

215, da Constituição Federal, foi instituído recentemente pela lei n. 12.343/2010; o Programa

Nacional de Apoio à Cultura, implementado pelo Fundo Nacional da Cultura, bem como

pelos Fundos de Investimento Cultural e Artístico (FICART) (lei n. 8.313/91); o Programa de

Cultura do Trabalhador, criado pela lei n. 12.761/2012; o Programa Nacional de Apoio ao

Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), a Agencia Nacional do Cinema

(ANCINE) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINE),

todos criados pela lei n. 8.685/1993, (lei do Audiovisual), com as alterações dadas pela

Medida Provisória n. 2.228 de 2001.

Finalmente, o Sistema Nacional da Cultura, que ganha relevo especial em razão da

Emenda Constitucional n. 71/2012, que incluiu à Carta o art. 216-A. Vale observar que o que

se pretende é a implementação de um sistema descentralizado e organizado em regime de

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II

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colaboração, que visa a promoção e gestão conjunta da cultura por todos os entes federados.

Além disso, pode-se notar um intuito maior de universalização do acesso aos bens e serviços

culturais.

Observe-se que, até o presente momento, alguns estados e municípios já elaboraram a

legislação específica prevista neste dispositivo constitucional, tais como: o Sistema Estadual

de Cultura do Acre, criado pela lei estadual n. 2.312, de 25 de outubro de 2010; o Sistema

Estadual de Cultura de Rondônia, instituído pela lei n. 2.746, de 18 de maio de 2012; a

Política Estadual de Cultura, da Bahia, prevista na lei n. 12.365 de 30 de novembro de 2011; o

Sistema Estadual de Cultura do Ceará, instituído pela lei n. 13.811, de 16 de agosto de 2006;

o Sistema Municipal de Cultura de Ananindeua (PA) – SMC, de instituído pela lei municipal

n. 2.518, de 1º de julho de 2011; o Sistema Municipal de Cultura de Santa Bárbara D’oeste

(SP), criado pela lei municipal n. 3.373 de 13 de março de 2012; o Sistema Municipal de

Cultura de Rio Branco (AC), instituído pela lei n. 1.676 de 20 de dezembro de 2007; o

Sistema Municipal de Cultura de Boca do Acre – SMC, pela lei n. 003 de 28 de junho de

2012; o Sistema Municipal de Cultura de Belém, pela lei n. 8.943, de 31 de julho de 2012.

Portanto, o cenário brasileiro atual promete uma nova perspectiva em relação aos

direitos culturais, da mesma forma que outros direitos coletivos e sociais têm ganhado espaço

– o que se pode notar, por exemplo, em relação ao meio ambiente (art. 225, CF), objeto de

atenção especial em 2012, quando da realização da Conferência Mundial sobre

Desenvolvimento Sustentável (CNUDS) no Rio de Janeiro (Rio +20). Vislumbra-se, assim,

oportunidade à discussão e questionamentos a respeito das políticas e programas com aquele

objetivo, ou seja, uma democracia cultural, e a consagração dos objetivos previstos nos

artigos 215 e 216 da Constituição Federal.

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O TRABALHO PENOSO DOS BANCÁRIOS: ADOECIMENTO, GRAVOSIDADE E DESIQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES LABORAIS

José Ricardo Ceatano Costa1

Liane Francisca Hüning Birnfeld2

RESUMO

Este artigo busca contribuir na construção da configuração do trabalho penoso, inscrito no rol dos direitos do art. 7º, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988, ainda não regulamentado. Busca-se inserir, entre as muitas atividades que podemos, na atualidade, considerarmos como penosas, o trabalho dos bancários e similares. Esta atividade, diante das condições de trabalho que se apresentam na nova configuração do mercado de trabalho e na fase atual do capitalismo, passa a apresentar contornos ainda não vislumbrados, os quais pretende-se investigar. Exemplo disso são as lesões por esforços repetitivos (LER/DORT), as doenças psicossomáticas e, especialmente, as diversas síndromes trazidas pela organização do trabalho nesse novo momento do capitalismo, tais como a síndrome de esgotamento profissional, conhecida como Síndrome de Burnout, do pânico, do humor etc). Além disso, vislumbram-se crescentemente os casos de assédio (moral e sexual) no ambiente do trabalho, pouco ainda investigado.

PALAVRAS-CHAVE: Mundo do Trabalho; Trabalho Nocivo; Direitos Sociais.

THE DIFFICULT OF BANK EMPLOYEES JOBS: SICKNESS, SEVERITY AND INSTABILITY IN LABOR RELATIONS ABSTRACT This article pretends to contribute on building the painful work scenario, that is mentioned on Federal Constitution of 1988, at article 7º, XXIII, that is still unregulated. It intends to consider bank employees jobs and similar as one of the difficult activities we can find nowadays. In front of the new work conditions at the labor market and against the actual capitalism scenario, those activities start to present not glimpsed shapes, that we pretend do study. To exemplify there are Repetitive Strain Injuries, 1 Professor da FADIR/FURG, Mestre em Direito (UNISINOS), Mestre em Serviço Social (PUCRS), Pós-doutor em Educação Ambiental no PPGEA/FURG. Endereço Eletrônico: [email protected]. 2 Professora da FADIR/FURG e da Faculdade de Direito da UCPel. Mestre em Direito pela UFSC e Doutoranda em Direito na PUCRS, com Bolsa da CAPES, Endereço Eletrônio: [email protected].

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psychosomatic illness and especially the work syndromes originated by work organization on the actual capitalism period, like Burnout Syndrome. Furthermore , it is increasing the cases of sexual harassment or bullying in the workplace, that is still poorly investigated. KEYWORDS: Workplace; Injurious Jobs; Social Rights.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

I - O Ambiente do Trabalho como Parte do Meio Ambiente Como um Todo

II – Gênese da Aposentadoria Especial

III – Labor e Nocividade: aproximações com o conceito de trabalho penoso

IV - A Penosidade Vista pela Ótima do Trabalhador Bancário

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende investigar as condições (e limites) de possibilidade

da aposentadoria especial aos trabalhadores em estabelecimentos bancários lato sensu,

daquilo que podemos denominar de “trabalho penoso”.

A possibilidade da proteção ao trabalho penoso, por sua vez, constou do

catálogo dos direitos do art. 7º, em seu inc. XXIII, da Constituição Federal de 1988.

Ocorre que esse direito ainda não foi regulamentado pelo legislador ordinário (após

duas décadas da vigência do Texto Maior).

Registre-se, por oportuno, que a aposentadoria especial, como um todo,

foi a mais afetada nas últimas reformas previdenciárias.

As profundas alterações no/do mundo do trabalho conduzem a uma

sociedade cada vez mais complexa e automatizada, fato que pode ser constatado se

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analisarmos a distribuição do trabalho nas agências bancárias antes e após a denominada

“terceira revolução industrial”.

O medo, o sofrimento e as pressões do mundo do trabalho passaram a

desencadear patologias até então não conhecidas, conduzindo os trabalhadores à crise

psíquica e a doenças mentais (DEJOURS, 2007, p. 141).

Neste passo é que se entende a dicção primeva do artigo 202, inc. II, da

Carta Magna de 1988, em que o legislador constituinte quis proteger a aposentadoria

por tempo de serviço reduzido daqueles misteres sujeito a condições especiais, sejam

elas periculosas, insalubres ou penosas.

Pretende-se demonstrar que mesmo após as alterações introduzidas pelas

Emendas Constitucionais nº. 20/98 e 41/03, de cuja constitucionalidade torna-se no

mínimo questionável, mantém-se a possibilidade da aposentadoria especial para todas as

atividades que são nocivas à saúde dos trabalhadores. No caso específico dos bancários,

defende-se a tese da presença do agente nocivo - penosidade - em seus labores

habituais. Para tanto, buscou-se pesquisas científicas já publicadas que demonstram a

existência desse elemento nocivo à saúde dos trabalhadores bancários.

I - O AMBIENTE DO TRABALHO COMO PARTE DO AMBIENTE COMO UM TODO

A Constituição Federal de 1988, na dicção dos artigos 225, caput, e 200,

incisos II e VIII, ofereceu um norte até então inusitado: a compreensão do ambiente do

trabalho como parte integrante do meio ambiente ou simplesmente do "ambiente" como

parece ser o mais correto.

No primeiro artigo citado o legislador garantiu a todos os cidadãos um

ambiente ecologicamente equilibrado, sendo dever do Poder Público e da sociedade

como um todo os esforços para alcançar esse objetivo. Já no artigo 200 da CF/88,

destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), este passa a ter a incumbência de executar

as ações de vigilância sanitária epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador,

enquanto no sétimo expressamente encontramos que é seu mister "colaborar na proteção

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do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho". Estes dispositivos, conjugados

com outros de natureza trabalhista e de proteção ao trabalhador, determinam o sistema

jurídico de tutela do meio ambiente do trabalho. (GARCIA, 2011, p. 19).

Não deve pairar nenhuma dúvida, a partir do Texto Constitucional, do

pertencimento do ambiente do trabalho ao ambiente como um todo. Socorrendo-se à

clássica classificação do ambiente ou meio ambiente, podemos dividi-lo em: a)

NATURAL ou FÍSICO; b) CULTURAL; c) ARTIFICIAL e, d) MEIO AMBIENTE

DO TRABALHO, sendo este o próprio local em que é realizada as atividades do

trabalhador (ARAÚJO; NUNES JÚNIOR, 2006, p. 29).

Como aponta Raimundo Simão de Melo, "a definição geral do meio

ambiente abarca todo cidadão e, a de meio ambiente do trabalho, todo cidadão que

desempenha alguma atividade, remunerada ou não ... porque realmente todos recebem a

proteção constitucional de um ambiente de trabalho adequado e seguro, necessário à

sadia qualidade de vida." (MELO, 2008, p. 27). Logo, segundo este mesmo autor, o é

fundamental que tenhamos um meio ambiente do trabalho sadio, edificante, respeitoso,

salubre, cuja não observância destas condições levam ao desrespeito à toda a sociedade

(MELO, 2008, p. 28).

A Organização Internacional do Trabalho - OIT, também apontou a

importância da saúde e segurança dos trabalhadores quando, na Convenção 155 de

1981, focaliza em seu artigo terceiro como meio ambiente do trabalho "todos os locais

onde os trabalhadores devem permanecer ou para onde têm que se dirigir em razão do

seu trabalho, e que se acham sob o controle direto ou indireto do empregador."

(FERREIRA, 2004, p. 50).

Com efeito, se não há dúvidas no enquadramento do ambiente do

trabalho como parte do meio ambiente no sentido amplo, não paira dúvidas de que este

ambiente se apresenta de forma nociva, com efeitos deletérios, aos trabalhadores em

geral.

Trazemos, nesse trabalho, o caso específico dos trabalhadores bancários,

mas certamente vários dos aspectos aqui abordados podem servir de análise também

para tantas outras categorias profissionais: trabalhadores da saúde, motoristas, entre

tantos outros.

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É com esse intuito, portanto, que passamos à análise das condições que

julgamos penosas, no dia a dia dos trabalhadores bancários.

II – GÊNESE DA APOSENTADORIA ESPECIAL

A previsão da aposentadoria ordinária por tempo de serviço, cujo

desdobramento originou a aposentadoria especial sob análise, resultou de longa luta dos

trabalhadores na busca deste benefício. Despontam, nesta perspectiva histórica,

justamente os bancários que, na greve histórica de 1933. Na pauta de reivindicações

encontramos a aposentadoria ordinária com 30 anos de serviço ou 50 anos de idade,

além de outros pontos reivindicatórios (COHN, 1980, p. 23).

Em setembro de 1934, o governo assina decreto criando o Instituto de

Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB), contemplando não somente esta

modalidade de benefício como a aposentadoria por idade.

Registre-se, por oportuno, que o IAPB despontava como um dos

principais Institutos Previdenciários neste período, pois além de reivindicar e garantir

estes benefícios fornecia a todos os seus associados serviços médicos. Fato este que não

é de pequena grandeza, tendo-se em conta que o maior Instituto, o dos Industriários

(IAPI), somente garantia a assistência médica a 30% dos seus sócios.

Pela sistemática da LOPS de 1960, o benefício da Aposentadoria por

Tempo de Serviço foi garantido a todos os trabalhadores que tivessem 30 e 35 anos de

labor (mulheres e homens, respectivamente), embora restasse um limitador de idade de

55 anos (para homens e mulheres).

A Aposentadoria Especial, por sua vez, igualmente restou assegurada aos

15, 20 ou 25 anos de labor em atividade considerada nociva à saúde dos trabalhadores,

dependendo do mister que se ocupassem, contendo, igualmente, o requisito etário de 50

anos de idade (para ambos os sexos, conforme previsto no art. 31, da LOPS de 1960).

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A subcomissão de seguro social que elaborou a Lei Orgânica da

Assistência Social – LOPS, neste particular, assim justificou a redução do tempo de

labor para esta modalidade de benefício:

“Dúvida não paira que as profissões por sua natureza penosas (como a de ferroviários, propriamente dito) ou insalubres demandam uma idade limite inferior à que normalmente é adotada nos planos de seguro-velhice. Tais misteres sujeitam o segurado a um desgaste bem mais acentuado que no comum das profissões, tornando as mais das vezes praticamente inatingível o limite normal de sessenta e cinco anos. É justo, indubitavelmente, que para tais misteres se institua um seguro velhice de caráter excepcional, com a idade limite reduzida, como terminada o artigo 2º da Lei nº. 593.” (ROSA, s/d, p. 60/61).

No Decreto nº. 48.949-A, de 19 de setembro de 1960, que aprovou o

Regulamento da LOPS de 1960, restou igualmente assegurado o direito à Aposentadoria

Especial (art. 65 e 66), referendo no Quadro nº. II, deste Decreto, as atividades que

seriam insalubres, periculosas ou penosas.

A discussão acerca das atividades que devem ser consideradas nocivas à

saúde dos trabalhadores sempre foi objeto de controvérsia, na qual o Judiciário foi

chamado, historicamente, a pronunciar-se.

Frise-se, por oportuno, que os agentes periculosos, insalubres ou penosos

não são ilididos pelo uso dos IPI e IPC, muito embora sirvam os mesmos para evitar

acidentes do trabalho, eis que não ocorre a sua neutralização, o que virá ocorrer somente

com a eliminação do risco3

O entendimento de que o rol das atividades nocivas deva ser exaustivo, e

não meramente exemplificativo, extrapola a exegese que deve ser feita da legislação,

sempre quando esta visa abordar a totalidade de uma determinada realidade. Isso

porque, como é sabido, a realidade nunca se dá ou aparece em sua totalidade, sendo

necessário uma busca constante e profunda para que se possa, paulatinamente, a

3 No mesmo sentido a Súmula n. 9. da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, que assim dispôs: “O uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), ainda que elimine a insalubridade, no caso de exposição a ruído, não descaracteriza o tempo de serviço especial prestado”.

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(des)cobrindo. Como poderia, neste entendimento, o legislador ter abrangido, quando da

montagem do rol das atividades especiais, a sua totalidade diante da complexidade que

se apresenta? Como poderia ter contemplado no ínsito do rol das atividades especiais as

novas atividades e funções que surgem diuturnamente? Isso, na verdade, é totalmente

impossível.

Neste passo a importância das decisões judiciais, que buscam, na análise

de cada caso em sua concreticidade e faticidade, preencher as lacunas constantes na

legislação. É assim que a jurisprudência, especialmente a construída em primeiro e

segundo graus, vem construindo a história dos direitos sociais no Brasil, como é o caso

da aplicação das atividades especiais para os trabalhadores que laboram em telefonia.

Com a possibilidade da transformação do tempo especial em comum,

significativa parcela dos trabalhadores em telefonia passou a ter direito à aposentadoria

por tempo de serviço (se preencherem os critérios pré-Emenda Constitucional n. 20/98)

ou por tempo de contribuição (após a referida EC), amenizando as agruras pelas quais

passou a enfrentar, mormente quando, pela idade considerada avançada, sob o prisma

do mercado, como se viu, não mais conseguiu emprego formal, ou, como também se

verificou, passou a fazer parte da gama imensa dos trabalhadores informais ou

precarizados.

Frise-se que o STF, em se tratando de casos concretos que buscam a

aposentadoria especial, está julgando conforme a Constituição, neste diapasão da

fundamentalidade da aposentadoria especial. Isso porque a Constituição Federal de

1988, na redação original do seu artigo 202, inciso II, assegurava aposentadoria “após

trinta e cinco anos de trabalho ao homem e após trinta à mulher e em tempo inferior se

sujeitos ao trabalho sob condições especiais, que prejudicassem a saúde ou a integridade

física definidas em lei.”

Recentemente, tanto a EC n° 20/98 como a EC n° 47/05 alteraram

significativamente a existência material deste benefício, não com o intuito de

aperfeiçoá-lo, pelo contrário, de tornar inviável a sua concessão.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em 30 de agosto de 2007, ao

julgar o Mandado de Injunção n° 721, em que uma servidora pública da área da saúde,

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que trabalha sob condições especiais (insalubres), requer a aposentadoria especial, com

fulcro no art. 202, inc. II da CF/88, assim entendeu:

“Não há dúvida quanto à existência do direito constitucional para a adoção de requisitos e critérios diferenciados para alcançar a aposentadoria daqueles que trabalham sob condições especiais, e em funções que prejudiquem a saúde e integridade física”. 4

Na decisão supra que foi julgada por unanimidade, o Ministro-relator

ressaltou ainda que “há de se conjugar o inciso 71 do artigo 5º da Constituição Federal,

com o parágrafo 1º do citado artigo, a dispor que as normas definidoras dos direitos e

garantias fundamentais constantes da Constituição têm aplicação imediata”,

reconhecendo o caráter de fundamentalidade do direito ao benefício da aposentadoria

especial quando atendidos os critérios de nocividade.

Neste contexto, tornam-se questionável, sob o ponto de vista

constitucional, as alterações neste benefício advindas com a EC 20/98 e 47/05, em

virtude dos limites impostos ao legislador constituinte reformador.

Desse modo, se o benefício da aposentadoria especial é um direito

fundamental social5, de cunho prestacional, implica reconhecer que nenhuma Emenda

Constitucional ou lei infraconstitucional poderá dispor no intuito de desconfigurá-lo

enquanto tal. Aliás, o critério de penosidade, inscrito no Catálogo dos direitos do art. 7,

em seu inc. XXIII, ainda não foi regulamentado pelo legislador ordinário (passada duas

décadas da vigência do Texto Maior)6.

4 Conforme asseverou o Min. Marco Aurélio Mello. Conf. página do STF na Internet: <http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=241160&tip=UN>acessado em 27/08/08. 5 Embasados na premissa de que todas as normas definidoras dos direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata e carga eficacial suficientes para o seu cumprimento, sem limitar estes direitos ao rol constante do Catálogo do artigo sétimo, da CF/88 (SARLET, 2004, passim), embora careçam, em se tratando de direitos sociais fundamentais, de reconhecimento infraconstitucional (FREITAS, 2004, p. 209), entendemos que o direito à aposentadoria por tempo de serviço especial não pode ser revista, retirada do rol dos direitos sociais via Emenda Constitucional ou por lei infraconstitucional. 6 Embasados na premissa de que todas as normas definidoras dos direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata e carga eficacial suficientes para o seu cumprimento, sem limitar estes direitos ao rol constante do Catálogo do artigo sétimo, da CF/88 (SARLET, 2004, passim), embora careçam, em se tratando de direitos sociais fundamentais, de reconhecimento infraconstitucional (FREITAS, 2004, p. 209), entendemos que o direito à aposentadoria por tempo de serviço especial não pode ser revista, retirada do rol dos direitos sociais via Emenda Constitucional ou por lei infraconstitucional.

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Além deste aspecto, é notável a intenção sempre presente, em cada

processo de reforma constitucional ou infraconstitucional, de descaracterizar a

aposentadoria especial em sua existência material e concreta.

É neste passo que se compreende a alteração de paradigma introduzida pela Lei nº. 9.032/95 quando deu nova redação ao artigo 55 da Lei nº. 8.213/91, terminando com o critério de categoria profissional, até então vigente, instituindo um novo critério em que caberá aos trabalhadores a prova do exercício de seus misteres enquanto nocivos. O que vale dizer que, a partir desta lei, caberá ao “segurado comprovar o tempo de trabalho permanente, não ocasional nem intermitente, exposto aos agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física” dos trabalhadores. SALIBA; CORRÊA, 2000, p. 181).

Pontuam-se, no próximo item, as razões e fundamentos nos quais se

ancora a compreensão da penosidade do labor das atividades exercidas pelos bancários.

III – LABOR E NOCIVIDADE: APROXIMAÇÕES COM O CONCEITO DE TRABALHO PENOSO

Se a configuração dos agentes insalubres7 e periculosos8 foram de fácil

compreensão, eis que tomados da Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, a idéia-

base do que sejam estas atividades, o labor penoso não restou assim configurado.

Por óbvio, que a natureza dos agentes supra possuem uma conotação no

Direito Laboral diferentemente do Direito Previdenciário, não havendo uma relação

necessária, ou pelo menos direta, entre ambos: o que significa dizer que o fato de um

trabalhador receber de seu empregador um dado adicional não implica, tacitamente, no

reconhecimento de mister ensejador à aposentadoria especial. Ou vice-versa.

7 Conforme o art. 189 da CLT, “serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos”. 8 No artigo 193, também da CLT, encontramos a seguinte disposição: “São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado”.

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De outro lado, ninguém duvida de que o fato de o segurado/empregado

perceber um adicional de insalubridade (independente do grau) ou de periculosidade

(em grau único, de 30% sobre o seu salário) já seja um indício da existência de algum

elemento nocivo à saúde do trabalhador.

Com isso, afirma-se que tanto a insalubridade como a periculosidade

sempre foram mais fácil de ser avaliadas, o que não ocorre com a penosidade, seja no

aspecto trabalhista ou previdenciário, do que seja e consista esse tipo de labor.

Com efeito, no próprio Quadro II, em seu segundo item, da LOPS de

1960, encontra-se uma amostra incipiente do trabalho penoso como sendo aqueles

serviços que demandam excessivo esforço físico em relação a condições normais de

trabalho ou que exigem posição viciosa do organismo.

De outro lado, a doutrina e a jurisprudência estão preenchendo esta

lacuna, no sentido de definir o que é trabalho penoso. Neste passo, vale citar a definição

de Wladimir Novaes Martinez, para quem:

“Penosidade é área avara em doutrina, não sendo fácil es miuçar seu significado, embora comuns as funções onde presente. Pode ser considerada penosa a atividade produto produtora de desgaste no organismo, de ordem física ou psicológica, em razão da repetição dos movimentos, con dições agravantes, pressões e tensões próximas do indivi duo. Dirigir veículo coletivo ou de transporte pesado, habi tual e permanentemente, em logradouros com tráfego in intenso é exemplo de desconforto causador de penosida de.” (MARTINEZ, 2001, p. 30).

Nesse sentido, podemos afirmar que a penosidade geralmente é uma

"doença invisivel", não necessariamente deixando seqüelas aparentes, o que dificulta

deveras a sua configuração aparente, sendo velada e sorrateira. As suas conseqüências,

tal como se mostra nos casos de LER/DORT, somente o tempo deixará à mostra. Mas

seus efeitos são implacáveis.

Destaca-se que a melhor definição do que seja a penosidade dada pela

doutrina, ancora nos estudos de Wladimir Novaes Filho, quando afirma:

“Estar-se-á diante da penosidade quando atividade laborativa exigir por parte do exercente um empenho

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físico ou psicológico que gere desgaste acima do normal de todo trabalhador. Aliás, esse raciocínio deriva da própria finalidade da aposentadoria especial, qual seja entender que o ser humano submetido ao trabalho penoso tem um desgaste maior; deverá em contraposição aposentar-se mais cedo. Percebe-se, assim, que o trabalho penoso é aquele que subtrai, exclusivamente, as energias do trabalhador, repetindo-se, tanto física como psicologicamente. Não existe, como no caso da periculosidade, definição legal a respeito. Cabe à jurisprudência e à doutrina esmiuçar esse conceito.” (NOVAES FILHO, 2005, p. 148).

Quiçá nenhuma atividade reúna, hodiernamente, tantos atributos que

caracterizam o labor penoso como a atividade dos bancários. A saber, alguns destes

atributos: a) processos de LER/DORT9 devido à utilização intensa do computador e

similares; b) precariedade das condições de trabalho, com ruídos elevados, temperatura

desagradável, parca iluminação, somente para citar alguns dos problemas mais

frequentes; c) exposição do organismo a jornadas de trabalho saturantes, com acúmulo

de funções e de responsabilidades etc.; d) forte pressão psíquica, seja pelas metas que se

exige seja por assédio moral, pelas pressões oriundas da concorrência ou pela

introdução de novas tecnologias, tudo isso aliado ao medo constante dos assaltos cada

vez mais constantes; e) ambiente de trabalho inapropriado, sem obediência do disposto

na NR 17, que ordena alguns procedimentos necessários a um ambiente saudável,

ergonomicamente correto, com mesas, escrivaninhas e guichês com bordas

arredondadas, com altura regulável, com apoio completo do antebraço ou sobre o braço

da cadeira, além do monitor regulável, preferencialmente em nível dos olhos; f)

Doenças pisicossomáticas, fruto de uma organização social e cultural deletéria ao

organismo dos trabalhadores, conduzindo ao adoecimento mental; g) o esgotamento

9 Entende-se por Lesões por Esforços Repetitivos ou Distúrbios Osteomusculares Relacionados

ao Trabalho (LER/DORT) uma série de doenças interconectadas, mormente as afecções ocasionada nos músculos, fáscias musculares, tegumentos, tendões, ligamentos, articulações, vasos e nervos sanguineos. Este quadro pode variar do Grau I, em que o trabalhador sente uma sensação de peso e desconforto no membro afetado, até o Grau IV, em que sente uma forte dor, sempre contínua, perdendo a força e os movimentos, com comprometimento das atividades da vida diária. (Conf. Saúde do Trabalhador Bancário: conhecer para Transformar. Federação dos Bancários do RGS. Porto Alegre, 2007.

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profissional, denominado atualmente como Síndrome de Burnout, doença esta que

ultrapassa o estresse devido a cronicidade com que se apresenta, entre outros.

Como constata Mayte Amazarray, no caso dos bancários, seus trabalhos

implicam em um desgaste mental provocado por suas atividades, cuja execução das

tarefas exigem alto esforço cognitivo, de atenção, memorização e de responsabilidade,

além de físico, devido aos esforços repetitivos, posturas estáticas, acuidade visual, razão

pela qual, historicamente, esta categoria teve sua jornada laboral reduzida para seis

horas diárias (AMAZARRAY, 2011, p. 102).

Diante do exposto, pelo que se observa do trabalho dos bancários, como

se verá alhures, suas atividades não podem ser consideradas essencialmente insalubres

ou periculosas, como já vem decidindo a jurisprudência pátria, mas sim penosas.10

IV - A PENOSIDADE VISTA PELA ÓTICA DO TRABALHADOR BANCÁRIO

Registram-se, destarte, alguns destes indicativos cuja cientificidade é de

todo comprovada, em virtude dos métodos de pesquisa e seriedade com que foram

organizadas.

10

10 Conf. neste sentido, a ementa do julgado que segue: Previdenciário. Processo Civil.

Atividade Especial. Bancário. Não Comprovação de Exposição a Agentes Agressivos. Manutenção Integral da Sentença Recorrida. (...) 4. Infere-se da conclusão do laudo pericial realizado que a atividade exercida pela autora no período aludido “não é considerada como insalubre tampouco periculosa”, considerando a inexistência no local de trabalho de quaisquer agentes químicos, biológicos, poeiras, aerodispersóides e demais agentes insalubres catalogados pela NR 15, a existência de ruído de 66/74 decibéis e, ainda, mobiliários próprios dotados de assentos e encostos ajustáveis (fls. 280/288), sendo, portanto, irreparável a sentença. 5. Apelação da parte Autora improvida. BRASIL. Tribunal Regional Federal (3ª Região). AC nº. 1111705-SP (2003.61.83.001074-0). 7ª Turma. Relator Rosana Pagano. Decisão Unânime. São Paulo, 28 de abril de 2008. Diário Eletrônico da Justiça Federal da 3ª Região de 13 de agosto de 2008.

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Primeiramente, analisam-se alguns dos resultados obtidos pela Federação

dos Bancários do Rio Grande do Sul, publicados em março de 2007, cujos dados

qualitativos foram organizados por Mayte Raya Amazarray.

Segundo esta publicação, denominada “Condições de Trabalho e Saúde

da Categoria Bancária”, a começar pela excessiva jornada laboral, cerca de 85% dos

entrevistados trabalham mais de seis horas, sem nenhum respeito aos intervalos para

descanso, em virtude do longo período destinado à digitação (FEDERAÇÃO DOS

BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 03). Nesta mesma linha, 56% dos entrevistados consideram

que seu volume de trabalho é excessivo.

Em relação ao estabelecimento de metas para serem cumpridas pelos

trabalhadores bancários, a exigência de seus superiores é, no mínimo, reveladora: 92%

dos entrevistados responderam que existem exigências em virtude das denominadas

“metas”, assim distribuídas em decorrência dos bancos pesquisados: Banco do Brasil

39%; Caixa Econômica Federal 72%; BANRISUL 83%; Bancos Privados (diversos)

65%.(FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 07)

Outro índice que se apresenta revelador se refere ao elevado número de

acidentes do trabalho ocorridos nos bancos pesquisados, chegando a um percentual de

30%, embora somente 21% destes tiveram suas CAT’s emitidas. ((FEDERAÇÃO DOS

BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 09). Este dado comprova, na prática, a tese de que os Bancos

estão resistindo na emissão da Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT).

Quando perguntado sobre a sintomatologia em virtude das doenças que

apresentam, 61% dos entrevistados consideram que o trabalho afeta a sua saúde,

nomeando as principais conforme segue: Estresse 76%; Irritação 62%; Ansiedade 62%;

LER/DOR 52%; Cansaço visual 52%; Cansaço Freqüente 42%; Problemas Digestivos

36%; Insônia 36%; Dores de Cabeça 33%; Dificuldade de Memorizar 31% e Depressão

com 29%. ((FEDERAÇÃO DOS BANCÁRIOS DO RGS, 2007, p. 09).

Em outra pesquisa enfocando um banco privado, o BANCO REAL ABN

AMRO, publicada pelo Instituto Observatório Social, em julho de 2008, organizada

pelo Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, restam

apontados os mesmos problemas, em termos de saúde e caracterização de trabalho

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penoso, constatados na pesquisa realizada no Rio Grande do Sul. Abaixo, observam-se

alguns dados expostos nesta Pesquisa.

Tendo um universo de 73 entrevistados (sendo 59 mulheres e 14

homens), foi constatada a presença de LER/DORT em 54 dos entrevistados, além de

doenças mentais em mais 13 deles. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO

TRABALHO, 2008, p. 18).

Além de LER/DORT, sem dúvida a principal doença que afeta os

trabalhadores, segundo a pesquisa ora analisada, há o assédio moral (em decorrência das

metas exigidas), bem como o estresse pós-traumático, devido aos freqüentes assaltos

ocorridos nas agências. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO, 2008, p.

23)

Mostra-se interessante a análise feita na PESQUISA na atividade,

predominantemente, exercida por mulheres, denominada “Call Center – Programa Total

View”, do ABN. Isso porque esse programa é tido como exemplar devido ao serviço de

boa qualidade em termos de atendimento prestado ao público pelos funcionários. O que

o programa esconde é o alto nível de controle e pressão sobre o trabalho dos

funcionários, resultando no fato da metade deles (50% dos entrevistados) apresentar

depressão e doenças mentais devido ao ambiente de trabalho.

Conforme registra nesta pesquisa realizada em Osasco, SP, “os

atendentes do Call Center seguem um script para conscientizar os clientes a usar

internet para pagar contas, caixa eletrônico e o auto-atendimento. Essa é uma tarefa

contraditória para os funcionários, pois quanto maior for a adesão ao auto-atendimento e

à internet, menos pessoas serão necessárias para atendimento, o que provocaria mais

demissões.” Aliás, o processo de fusão, ocorrido pela incorporação do BANCO

SANTANDER, segundo avaliado, reduziu o número de trabalhadores, intensificando

ainda mais o trabalho dos bancários, com um aumento considerável do nível de

exigência e produtividade. Logo, aumentam o número de doenças relacionadas ao

ambiente do trabalho. (PESQUISA SOBER SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO, 2008, p.

30)

Em outra pesquisa realizada, entre os anos de 2001 a 2004, pelo

Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, restou confirmada a nova realidade trazida

pelas inovações tecnológicas e pela mudança do “mundo do trabalho”. Constatando que:

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“Os bancários estão praticando jornadas acima de 8 horas, e as formas de organização do trabalho (exigência de esforço mental, volume de trabalho excessivo, inadequação numérica, prolongamento de jornada) e as condições psicossociais (trabalho estressante, desvalorização do trabalho, insegurança no emprego) são destacadas pelos trabalhadores como fatores de adoecimento.” (NETZ; MENDES, 2006, p. 27/28)

Registre-se, por oportuno, que os trabalhadores bancários estão

vivenciando um outro modelo de gestão em que:

“Merece destaque o papel dos programas de qualidade, na medida em que tais estratégias modulam, de forma sutil, a subjetividade dos trabalhadores, cooptando-os a serem produtivos, flexíveis, motivados etc. Além disso, a introdução da remuneração variável, atrelada à produtividade e ao alcance de metas, também se constitui em um elemento responsável pela intensificação do trabalho e extensão da jornada laboral. (...) Destaca-se, também, que as metas comumente são estabelecidas por escalões hierárquicos superiores, de forma autoritária e unilateral, e não raramente são consideradas inatingíveis pelos trabalhadores.” (JACQUES; AMAZARRAY, 2006, p. 97)

De outro lado, a própria legislação previdenciária já avançou no sentido

de resguardar os direitos dos segurados que forem acometidos de LER/DORT. A

Instrução Normativa INSS/DC nº. 98, de 05 de dezembro de 2003 (DOU em 10/12/03),

é prova desse movimento.

Esta importante Portaria Administrativa reviu a OS INSS/DSS nº.

606/98, bem como uniformizou e buscou simplificar o trabalho médico-pericial no

âmbito da Previdência Social.

Segundo esta IN, a LER/DORT deve ser entendida como um problema

de saúde pública, sendo fruto da intensificação da tensão imposta pela organização do

trabalho, deixando explícito que a extensa lista das doenças do sistema osteomuscular e

do tecido conjuntivo relacionadas ao trabalho não é exaustiva, mas somente

exemplificativa.

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Por outro lado, as denominadas LER/DORT estão, paulatinamente, sendo

superadas por outras síndromes ligadas ao ambiente do trabalho, tais como as síndromes

do pânico, do esgotamento (Burnout), as doenças psicossomáticas, as tensões

traumáticas e outras tantas pressões relacionadas com o ambiente nocivo e deletério das

relações laborais vigentes.

Essas constatações passaram a ser mais visíveis quando pesquisas

realizadas pelos Sindicatos dos Trabalhadores Bancários apontaram sua ocorrência. No

Rio Grande do Sul, por exemplo, em uma campanha denominada "Tudo tem Limite!

Tolerância Zero com a Violência dos Bancos", realizada de 29/10/09 a 24/10/11, foram

registradas 94 ocorrências denunciando irregularidades no ambiente de trabalho

(excesso de trabalho, almoço reduzido, entre outros), e um número significativo de

assédio moral, no total de 68 ocorrências11.

Em relação às tensões pré e pós-traumáticas, devido aos crescentes

números de assaltos às agências bancárias, foram registrados, de 2006 a 2009, em Porto

Alegre e Região, um número alarmente de 228 assaltos e 3 sequestros de bancário.

Estes conjuntos de elementos, acreditamos, que confluem para o

esgotamento e adoecimento destes trabalhadores, tudo em conformidade com os novos

rumos trazidos pela reestruturação produtiva.

CONCLUSÃO

Pelo visto e exposto podemos concluir, preliminarmente, que a caracterização do trabalho bancário como penoso é tarefa árdua, a ser construída paulatinamente. A favor de sua não caracterização, milita o intento nada velado na desconstituição da aposentadoria especial. (COSTA, 2009).

De outro lado, a realidade concreta teima em superar a ficção: cada vez mais o mundo do trabalho se complexifica, o próprio capitalismo transmuta-se e o trabalho ganha outras e novas dimensões. O mundo do trabalho já não é mais o mesmo, 11

Esta pesquisa, realizada no período apontado alhures, consistia em um estímulo aos trabalhadores bancários em denunciar as práticas abusivas ocorridas em seus ambientes de trabalho, por meio de ligações telefônicas ou de comunicados virtuais. O Sindicato checava as informações e, a partir dessa constatação, passava a organizar as ações sindicais.

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como não são as infindáveis exigências feitas aos trabalhadores, mormente em se tratando dos bancários, justamente estes que permanecem/padecem no ínsito das instituições financeiras que sustentam o capital.

As pesquisas que ora colacionamos, mesmo que incipientes, apontam para a existência de novas patologias associadas às diversas síndromes até então desconhecidas ou pouco estudadas, tais como a de burnout, do pânico, entre outras. O assédio moral no trabalho, por sua vez, ganha proporções até então desconhecidas.

A exigência das metas, bem como o assalto crescente às agências bancárias, agravam esse quadro. Registre-se que as metas deixaram de ser cobradas somente às agências para, além delas, serem cobradas de forma individual, gerando uma competição interna que viola os mínimos princípios da solidariedade e da vivência em grupo. O resultado dessa política, ora institucionalizada, é o adoecimento dos bancários devido às doença que se desencadeiam devido à esse processo.

Não há dúvidas que o ambiente de trabalho dos bancários está em dissonância com o disposto no art. 225 da Carta Política de 1988, ou seja, um ambiente equilibrado, saudável e construtor dos direitos mínimos de cidadania. O adoecimento, cada vez mais frequente, os auxílios-doenças e as aposentadorias por invalidez precoces, que oneram o sistema previdenciário como um todo, são indícios desta realidade.

Todas estas questões, a nosso ver, confluem no conceito de penosidade, conforme vem sendo construído pela doutrina. Não há dúvidas que o labor dos bancários implica em um desgaste, psíquica e fisicamente, que conduzem a doenças mentais e físicas. Esse desgaste, ao que indicam as pesquisas, é paulatino, cumulativo, esparso. Seja a LER/DORT, que já perdeu espaço para outras doenças psíquico-somáticas, sejam as outras síndromes nominadas neste estudo, são "doenças invisíveis", o que dificulta a sua constatação.

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OS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS E PREVIDENCIÁRIOS E O PROCESSO

DE INCLUSÃO ECONÔMICO-SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO

BRASILEIRO: A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE

VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO E DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA.

THE LABOR AND SOCIAL SECURITY SOCIAL RIGHTS AND THE ECONOMIC

AND SOCIAL INCLUSION PROCESS IN BRAZILIAN DEMOCRATIC STATE:

THE IMPORTANCE OF PUBLIC POLICIES FOR THE DEVELOPMENT OF

MINIMUM WAGE AND INCOME TRANSFER.

Érica Fernandes Teixeira1

Palavras-chave: direitos sociais; trabalho digno; inclusão econômico-social; dignidade

humana; políticas públicas.

Keywords: social rights; decent work; economic and social inclusion; human dignity; public

policies.

Resumo: A exclusão social consiste num dos principais problemas a ser enfrentado pelas

nações de todo o mundo, em especial o Brasil. Para combater esse problema tão caro aos

sistemas ultraliberais, necessário efetivar os instrumentos para dignificação do cidadão. Os

ramos jurídicos sociais possuem papel essencial na promoção dos direitos humanos,

atenuando as forças do capital perante o indivíduo. A relação de emprego formal, regida pelo

Direito do Trabalho, e o Direito Previdenciário são analisados como instrumentos de

dignificação do cidadão. Os reais instrumentos de que dispõe o cidadão para promover, como

verdadeiro protagonista, uma sociedade mais justa, menos desigual e mais humana devem ser

efetivados e amplamente incentivados. O ramo justrabalhista é, em grande medida,

responsável pela desmercantilização do labor humano, beneficiando o trabalho com regras

distintas dos meros ditames do mercado, objetivando sempre atenuar o conflito entre capital e

trabalho. E, juntamente com o Direito Previdenciário compõem o rol de fundamentais direitos

sociais do cidadão, estabelecidos, solidificados e potencializados no Estado Democrático de

Direito. Neste trabalho são analisados alguns relevantes programas sociais de distribuição de

renda, assim como, as políticas de valorização do salário mínimo, como instrumentos de

1Doutora e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas, Professora de Direito e Processo do Trabalho (IEC/ PUC/MG). Advogada.

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justiça social, distribuição de renda e efetivação da dignidade humana. No sistema capitalista

contemporâneo, os direitos sociais assumem um papel crucial, definindo os novos atores

sociais, permitindo a inclusão econômico-social dos cidadãos e, enfim, instrumentalizando a

Democracia.

Summary: social exclusion is one of the major problems to be faced by Nations around the

world, especially Brazil. To combat this problem so expensive to ultra-liberal systems,

necessary to make the instruments for citizen's dignity. The social legal branches have key

role in promoting human rights, weakening the forces of capital before the individual. The

formal employment relationship, governed by the labour law and social security law are

examined as tools of citizen's dignity. The real instruments available to the citizen to promote,

as real protagonist, a fairer society, less unequal and more human should be enforced and

widely encouraged. The justrabalhista branch is largely responsible for the human labor,

decommodification enjoying working with distinct rules of mere market dictates, always

aiming to mitigate the conflict between capital and labor. And, along with the pension law

make up the catalogue of fundamental social rights of the citizen, established, solidified and

enhanced in the democratic State of law. In this work are reviewed some relevant social

programs of income distribution, as well as the enhancement of minimum wage policies, as

instruments of social justice, income distribution and completion of human dignity. In the

contemporary capitalist system, social rights assume a crucial role by setting the new social

actors, allowing for economic and social inclusion of citizens and, anyway, actually

Instrumenting the Democracy.

Índice: 1 Os direitos sociais trabalhistas e previdenciários e a inclusão econômico-social. 2 O

papel das políticas de transferência de renda. 3 As políticas públicas de valorização do salário

mínimo. CONCLUSÃO. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

DESENVOLVIMENTO:

1 Os direitos sociais trabalhistas e previdenciários e a inclusão econômico-social

O surgimento dos direitos sociais na ordem jurídica marcam o início do processo de

inclusão dos indivíduos.Verifica-se que tal concepção se perfaz através da proteção do

cidadão que despende força laborativa para prover uma melhor qualidade de vida, atrelado,

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pois, ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e à própria definição subjetiva do Direito

do Trabalho. (DELGADO, 2012).

Silva afirma: Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2006, p. 229).

O estado social é aquele que efetiva os direitos trabalhistas e previdenciários do

cidadão, além de promover educação e saúde com qualidade, distribuir de riquezas, efetivar

políticas públicas sociais, dentre outras ações. Consoante Bonavides, a partir do momento em

que o Estado:

[...] coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional e fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a denominação de Estado social (BONAVIDES, 1993, p. 182).

Conforme entendimento de Araújo e Nunes Júnior: [...] os direitos sociais, como os direitos fundamentais de segunda geração, são aqueles que reclamam do Estado um papel prestacional, de minorizaçao das desigualdades sociais. Nesse sentido, o art. 6 do texto constitucional, embora ainda de forma genérica, faz alusão expressa aos direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. (ARAUJO; NUNES JUNIOR, 2010, p. 218).

Os direitos sociais buscam a igualdade material entre os seres integrantes do Estado

Democrático de Direito, repelindo privilégios e discriminações, integrando-os ao sistema

produtivo e distribuidor de riquezas, a fim de efetivar a justiça social. Nesse sentido, os

direitos sociais devem ser compreendidos em uma dimensão retificadora, no sentido de

reduzir as desigualdades existentes entre os cidadãos, e também em uma função provedora,

para atender às demandas das populações referentes à dignidade da pessoa humana.

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A relação entre direitos sociais e igualdade é bem expressada por Fortes, in verbis: A igualdade na dignidade, resumida enquanto cidadania é exatamente a condição atribuída aos que são membros integrais da comunidade, isto é, os que partilham de seus valores e são, a um só turno, por ela responsáveis e beneficiados. Nesse sentido, os direitos sociais encontram-se situados no Estado Democrático de Direito como garantias iguais para todos os membros da comunidade política, sem estabelecimento de privilégios e distinções, portanto construídos sobre a idéia de Justiça Social. (FORTES, 2005, p. 173).

A denominação “diretos sociais” passou, a partir da segunda metade do século XIX, a

ter relação com os ramos jurídicos engajados com o processo inovador de democratização real

das sociedades. O Direito do Trabalho foi um ramo pioneiro com matriz jurídica social, de

natureza interventiva, gerindo interesses de caráter social. Mas, nas últimas décadas do século

XIX, e ao longo de todo século XX, houve o surgimento e estruturação do Direito

Previdenciário. Ainda nesse processo democratizante, ao longo do século XX, consolidou-se

também o Direito Consumeirista e o Direito Ambiental.

Em todos esses ramos, há larga prevalência de normas imperativas objetivando a

inclusão social. É inegável que, tão mais democrática é uma sociedade quanto mais includente

ela se caracterizar, por meio de normas imperativas que impliquem garantias para os

indivíduos, a fim de atribuir papéis ativos a todos os cidadãos.

Segundo entendimento de Maior, o conceito de “direitos sociais” extrapola a

hipossuficiência socioeconômica do obreiro, predominante no Direito do Trabalho e do

Previdenciário. Assim, seus princípios e postulados atingem ramos jurídicos tradicionalmente

vinculados tanto ao direito privado (como em algumas relações de consumo ou em pequenos

contratos vinculados ao sistema financeiro de habitação), quanto ao direito público (Direito

Previdenciário, concessão de remédios ou tratamentos pelo Direito Sanitário ou mesmo no

Direito Tributário). (MAIOR; CORREIA, 2007, p. 29).

O autor também destaca a amplitude das hipóteses de direitos sociais previstas no art.

6º da Constituição brasileira de 1988. Essa norma elenca ser direito social desde o direito à

moradia, quanto o direito ao lazer, incluindo o Direito ao Trabalho e à Previdência Social.

Certamente, outros direitos essenciais para a dignidade humana também estão aqui

abrangidos, devendo as hipossuficiências a eles relacionadas serem tuteladas pelo legislador

ou, até mesmo, pelo intérprete2. Os direitos e as garantias fundamentais, juntamente com os

2 Necessário destacar o entendimento de Jorge Luiz Souto Maior, do qual comungamos, de que as normas de Direitos sociais não possuem caráter programático. Tal caráter as faria dependente de norma infraconstitucional reguladora, além de reduzir sua efetividade, já que, em primeiro lugar, estariam vinculadas ao respeito às possibilidades econômicas e as políticas públicas eleitas pelo legislador constituinte. (SOUTO MAIOR; CORREIA, 2007, p. 29).

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direitos individuais (artigo 5º) e a previsão do artigo 170 da referida Carta, compreendem os

direitos sociais. Por tudo isso, as regras inerentes aos direitos sociais possuem: [...] caráter transcendental, que impõe valores à sociedade e, consequentemente, a todo ordenamento jurídico. [...] Os valores são: a solidariedade (como responsabilidade social de caráter obrigacional), a justiça social (como consequência da necessária política de distribuição dos recursos econômicos e culturais produzidos pelo sistema), e a proteção da dignidade da pessoa humana (como forma de impedir que os interesses econômicos suplantem a necessária respeitabilidade à condição humana). (MAIOR; CORREIA, 2007, p. 26).

Conforme ensinamentos de Lobo, que reforçam a necessidade de ampliação e

valorização dos direitos sociais: A fixação de políticas sociais produz o efeito, nem sempre desejado, de reduzir a dependência do trabalhador em relação ao empregador e termina por se transformar em fonte potencial de poder (Heimann apud Esping-Andersen, 1990:89), desencadeando um círculo virtuoso que tende a alimentar o processo de construção da cidadania baseada em direitos sociais e na desmercantilização da força de trabalho. Em outros termos, a desmercantilização fortalece o trabalhador e enfraquece a autoridade absoluta do empregador. Os direitos sociais, a igualdade e a erradicação da pobreza que um Estado de Bem-Estar universalista busca constituem pré-requisitos importantes para a força e a unidade necessárias à mobilização coletiva de poder. Na presença de mecanismos de proteção referentes ao conjunto da sociedade, tais como seguro-desemprego, seguro-velhice, seguro-doença, seguro-acidente etc., trabalhadores emancipados em relação ao mercado se habilitam com mais facilidade à ação coletiva, fortalecendo a solidariedade de classe e ampliando as chances para o estabelecimento de uma sociedade menos desigual. Ao contrário, quando os trabalhadores se encontram em situação de inteira dependência em relação ao mercado, o custo da adesão à ação coletiva se eleva, inibindo o potencial mobilizador das organizações do trabalho. (LOBO, 2010, p. 12).

Os direitos sociais nasceram “abraçados ao princípio da Igualdade" (BONAVIDES,

2001, p. 562) e umbilicalmente ligados ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da

Cidadania, já que têm, como um dos seus principais objetivos, a intenção de atenuar a

desigualdade entre cidadãos e proporcionar-lhes melhores condições de vida.

Bobbio (1992), ao analisar a instituição do direito social, afirma que tanto a

preocupação com o meio ambiente quanto a busca por uma melhoria na qualidade de vida dos

cidadãos foram tendências que ganharam grande importância na sociedade mundial após a

Segunda grande Guerra. Segundo o autor, assim foi vivenciada a “Era dos direitos”. Ele

assevera: Com o nascimento do Estado de direito, ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos. (BOBBIO, 1992, p. 69).

A garantia de um mínimo para sobrevivência dos indivíduos assegurada pelo Direito

Previdenciário, associada à “melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na

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ordem socioeconômica”, inerente ao Direito do Trabalho, acaba por restringir “o livre império

das forças do mercado na regência da oferta e da administração do labor humano”. A ligação

entre ambos os ramos jurídicos, como exposto, tem origem no processo de intervenção do

Estado no mercado de trabalho, a partir da segunda metade do século XIX na Europa

Ocidental. Tal vinculação preserva-se estreita, inclusive em razão de considerável parcela da

arrecadação da Previdência Oficial no sistema brasileiro originar-se da folha de salários das

empresas, conforme as verbas de natureza salarial auferidas pelos empregados. (DELGADO,

2012, p. 58; 80). Direito do Trabalho e Direito Previdenciário caminham juntos na busca pela

plena dignidade do cidadão numa sociedade mais igualitária.

É inegável afirmar que uma sociedade capitalista pautada pelo pleno respeito dos

direitos sociais é uma sociedade cujo princípio da Dignidade Humana deve estar em vigor

desde a essência, buscando ampliação do mercado de consumo, aumento da produção,

redução do desemprego e do informalismo, concedendo igualmente aos cidadãos uma ordem

crescente e efetiva de direitos trabalhistas e previdenciários. Nesse sentido, as políticas

públicas de valorização do salário mínimo e, também, de transferência de renda assumem um

papel fundamental na promoção da inclusão social e econômica de cidadãos.

Os reflexos da desigualdade provocada pelo sistema capitalista são claramente

verificados na seara da previdência social. A tendência de diminuição dos salários sentida no

bolso do trabalhador reduz sua capacidade contributiva. E, como se trata de um sistema cujo

objetivo é manter níveis de dignidade na velhice ou em casos de infortunística, com menores

contribuições, certamente, será mantido o tímido padrão de dignidade experimentado por

grande número de trabalhadores de baixa renda, o que indica a perpetuação da desigualdade

social.

Por sua vez, a assistência social possui caráter mais abrangente, caracterizando-se

como um sistema universal, que independe de contribuição (art. 203 e 204 da CF/88). Os

indivíduos desempregados que integram um exército constante de mão de obra disponível no

sistema capitalista3 geram indubitável ampliação dos gastos públicos, sejam através de

benefícios assistenciais ou mesmo programas sociais para população de baixa renda, sem os

quais nem mesmo a dignidade mínima do cidadão poderia ser mantida. Nesse aspecto, o

objetivo deste trabalho não é de discutir a extensão da fundamental responsabilidade do

Estado, mas, sim, de alertar que o sistema capitalista, ao lançar diversos indivíduos à margem

da sociedade em razão do desemprego, é absolutamente dependente da assistência social para

3 Expressão usada por Karl Marx. (MARX, 1988).

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prover a subsistência desses cidadãos. Assim é possível afirmar que tão mais desenvolvida é

uma nação quanto melhor e mais inclusivo for seu sistema de previdência social, apto a

garantir melhor qualidade de vida a todos os indivíduos contribuintes. Esses contribuintes e

segurados são também consumidores, o que, sem dúvida, é um grande catalisador para o

aquecimento do mercado e para o desenvolvimento do capitalismo.

No que se refere à precarização dos direitos trabalhistas em evidência no século XX,

trata-se do resultado da difusão dos ideais neoliberais, que pregaram a mínima atuação estatal

na regulação das relações econômico-sociais, associados à tentativa de flexibilização de

direitos, reduzindo a necessária tutela imperativa estatal, conduzindo para um quadro crítico

de desigualdade e concentração de renda. Os ataques às proteções e às garantias impostas pela

relação de emprego formal, regida pelo Direito do Trabalho, e também a tentativa de

desconstrução do primado do trabalho e emprego afetam “o mais importante veículo de

afirmação socioeconômica da grande maioria dos indivíduos componentes da sociedade

capitalista”. (DELGADO, 2005, p. 29).

Os indivíduos que vendem sua força de trabalho para prover sua subsistência precisam

contar com a rede de proteção e garantias imperativas instituídas pelo ramo justrabalhista.

Trata-se de uma condição essencial até mesmo à própria dinâmica do sistema capitalista, que

tem no Direito do Trabalho valioso instrumento de perpetuação (DELGADO, 2005, p. 29).

Ainda diante das desigualdades e exclusões promovidas pela essência desse sistema, através

da relação de emprego formal e dos direitos previdenciários, todos os cidadãos têm acesso a

uma das formas de inserção na sociedade em níveis cada vez mais dignos, contribuindo de

forma consistente para a distribuição de renda e para a promoção da justiça social. Nas

palavras de Delgado, cabe ao Direito do Trabalho:

[...] estruturar, impelir e organizar o mercado interno de absorção dos próprios bens e serviços gerados pela economia, mantendo-o renovado e dinâmico, por suas próprias forças de sustentação. Ora, ao elevar as condições de pactuação da força de trabalho, esse ramo jurídico não só realiza justiça social, como cria e preserva mercado para o próprio capitalismo interno, devolvendo a este os ganhos materiais socialmente distribuídos em decorrência da aplicação de suas regras jurídicas. (DELGADO, 2005, p. 123).

Em sua obra, Cardoso alerta para seguinte questão: “se o discurso neoliberal se

efetivasse em sua plenitude, não estaríamos diante do risco de dissolução dos laços sociais

mais estáveis do capitalismo, aqueles garantidos, justamente, pelo Direito do Trabalho?”

(CARDOSO, 2003, p. 119). E continua: Em nenhum lugar se fala a sério sobre essa diluição do direito do trabalho, exceto, no terceiro mundo e certamente no Brasil da década de 1990. Talvez porque no

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mundo desenvolvido se tenha alguma noção dos riscos de profunda crise social decorrente da diluição dos laços de solidariedade associados ao direito do trabalho. [...] O direito do trabalho cumpriu exatamente esse papel para o trabalhador diante do capitalista, fazendo-o ainda mais, como resultado universal, e por isso mesmo, social. [...] Apenas aqui não se reconheceu que o mercado, deixado a si mesmo, o mercado sem o Estado, é a guerra, a selva ou a máfia, ou tudo isso junto. (CARDOSO, 2003, p. 120-121).

O trabalho humano tutelado pelo Direito do Trabalho provém sustento para as

camadas significativas da população, dignificando o cidadão, além de distribuir riqueza,

implementar a democracia e realizar a justiça social. Assim, destaca-se aqui a relevância do

trabalho digno como um dos pilares do estado democrático. (DELGADO, 2011, p. 1167).

Quanto ao Direito Previdenciário, cabe ao Estado provedor ampliar sua rede tuitiva, a

fim de garantir um mínimo existencial a todos os cidadãos. Assim, além de garantir condições

mínimas de subsistência frente aos riscos sociais, é necessário que o Estado garanta níveis

cada vez maiores de cidadania, incluindo novos segurados ou mesmo garantindo qualidade de

vida àqueles que guarnecem em sua tutela.

A intervenção do Estado na regulação das relações de trabalho, dos processos de

dispensa, bem como na proteção àqueles que se encontram fora do mercado de trabalho,

através da legislação trabalhista e securitária, é fundamental para aumentar a segurança do

trabalhador e até mesmo o poder sindical. Quanto maior for a abrangência das políticas

sociais, menos mercantilizada será a força de trabalho. Dessa forma, no processo de

desmercantilização, são importantes não só a crescente efetivação das leis trabalhistas e

previdenciárias, mas também a criação de consistentes políticas sociais inclusivas objetivando

a justiça social.

2 O papel das políticas de transferência de renda

O processo de inclusão de cidadãos coincide, como exposto, com o fortalecimento da

democracia. A Constituição Federal de 1988 forneceu os fundamentos necessários para

inauguração de um período de desenvolvimento da proteção social em nosso país.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) ao Idoso e ao Deficiente estão previstos

no artigo 203 da Constituição Federal de 1988. Apesar de ser um benefício de assistência

social, de caráter não contributivo, necessário destacar aqui seu exponencial papel com

instrumento de redução de desigualdades. Consiste na garantia de um salário mínimo de

benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir

meios de prover à própria manutenção ou de não tê-la provida por sua família, conforme

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dispuser a lei. A regulamentação de tal regra está na lei nº 8.742 de 07/12/1993 (Lei Orgânica

da Assistência Social - LOAS) (BRASIL, 1993a) e no Decreto nº 6.214 de 26/09/2007

(BRASIL, 2007a). Tais regras foram alteradas pelas leis 12.435/2011 (BRASIL, 2011d) e

12.470/2011 (BRASIL, 2011e) e pelo Decreto 7. 617/2011. (BRASIL, 2011b).

A LOAS estabelece que é dever do Estado e direito do cidadão prover os mínimos

sociais, por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, a

fim de garantir o atendimento às necessidades básicas do cidadão.(CASTRO; LAZZARI,

2012, p.714).

Os artigo 21 e 22 da LOAS contêm os requisitos para a concessão do Benefício de

Prestação Continuada (BPC). Para fins do referido diploma, idoso é o cidadão com 65

(sessenta e cinco) anos ou mais e que deve comprovar não possuir meios de prover a própria

manutenção nem de tê-la provida por sua família. A família, nesse caso, é composta pelo

requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o

padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que

vivam sob o mesmo teto.

A LOAS caracteriza o deficiente como o cidadão que tem impedimentos de longo

prazo (com efeitos pelo prazo mínimo de 2 anos) de natureza física, mental, intelectual ou

sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação

plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. A concessão

do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento, composta por

avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do

Instituto Nacional de Seguro Social - INSS.

Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a

família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. Porém,

a remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para

fins desse cálculo.

Um dos grandes méritos do BPC é o amparo às pessoas idosas ou deficientes que não

poderiam, no âmbito do mercado de trabalho, buscar uma renda para prover sua

sobrevivência.

O gráfico abaixo expressa a evolução dos recursos da assistência social na União,

indicando um incremento significativo, partindo de R$ 10,7 bilhões em 2002 para R$ 31,5

bilhões em 2008 (valores corrigidos pelo IPCA-IBGE até 31/08/2009). Nos anos de 2004 e

2006, houve considerável elevação do montante de recursos destinados à assistência social.

Em 2004, o aumento deve-se principalmente ao aporte de recursos para o programa bolsa

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família (PBF) e para o benefício de prestação continuada (BPC).

Em outubro de 2003, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 132, convertida

na Lei nº 10.836/2004, que criou o PBF para atender as famílias em situação de pobreza e

extrema pobreza, aportando R$ 5 bilhões ao programa, o que possibilitou o aumento de 1,2

milhão de famílias beneficiárias em 2003 para 6,5 milhões de famílias em 2004. O aumento

dos recursos destinados ao BPC explica-se a partir da promulgação do Estatuto do Idoso, Lei

nº 10.741/2003, que ampliou o critério inclusivo quando diminuiu a idade para concessão de

67 para 65 anos e, também, estabeleceu a não contabilização, na renda per capita familiar, do

benefício já concedido a outro idoso da família. (BRASIL, 2009a).

Gráfico 2 Evolução financeira dos recursos da União na assistência social

Fonte: BRASIL, 2009a.

A referida lei 10836/2004 (BRASIL, 2004), que criou o programa de bolsa família, de

responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, unificou ações

de transferência de renda do Governo Federal, em especial, o programa nacional de renda

mínima vinculado à educação - bolsa escola, instituído pela Lei nº 10.219/2001 (BRASIL,

2001a), o programa nacional de acesso à alimentação - PNAA, criado pela Lei nº 10.689/2003

(BRASIL, 2003a), o programa nacional de renda mínima vinculada à saúde - bolsa

alimentação, instituído pela Medida Provisória nº 2.206-1/2001, o programa auxílio-gás,

instituído pelo Decreto nº 4.102/2002 (BRASIL, 2002a), e o cadastramento único do Governo

Federal, instituído pelo Decreto nº 3.877/2001 (BRASIL, 2001b).

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Pelo programa de bolsa família, as famílias pobres (definidas como aquelas que

possuem renda per capita de 70 até 140 reais) e extremamente pobres (com renda per capita

menor que 70 reais) recebem ajuda financeira, devendo, para tanto, manter seus filhos ou

dependentes na escola e vacinados. Os valores dos benefícios pagos por família variam entre

32 e 306 reais, conforme dados oficiais do governo. Em 2006, mais de 11,1 milhões de

famílias de todo o Brasil, o que corresponde a cerca de 45 milhões de pessoas, receberam 8,2

bilhões de reais, referente a 0,4% do PIB brasileiro. O aumento dos recursos destinados ao

BPC explica-se a partir da promulgação do Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/2003 (BRASIL,

2003b), que ampliou o critério inclusivo quando diminuiu a idade para concessão de 67 para

65 anos e, também, estabeleceu a não contabilização, na renda per capita familiar, do

benefício já concedido a outro idoso da família. (BRASIL, 2012b).

O benefício de superação da extrema pobreza na primeira infância é um novo

benefício que integrou o programa bolsa família, incluído pela Medida Provisória nº 570, de

2012 (já incorporado na lei nº 10836/2004), e tem como objetivo erradicar a extrema pobreza

entre as famílias que possuem crianças entre 0 e 6 anos. Por esse programa, que foi batizado

por Brasil carinhoso, as famílias já beneficiárias do PBF com crianças de até 6 anos que

permaneçam em situação de extrema pobreza, mesmo após o recebimento dos benefícios do

PBF, farão jus ao novo benefício, que elevará sua renda mensal per capita para acima de R$

70,00. Seu valor será correspondente ao montante necessário para que a renda mensal por

pessoa da família supere os R$70,00, conforme disposto no § 15 do artigo 2º da lei nº

10836/2004.

Os recursos destinados ao bolsa família são verdadeiros investimentos. Ao garantir

acesso à renda aos segmentos mais vulneráveis da população, o programa gera retornos para

toda a sociedade. Com a complementação das suas rendas, as famílias tornam-se novos

consumidores, o que fomenta a economia. Ademais, os gastos do governo com o bolsa família

acabam sendo amenizados em considerável montante com o retorno de valores arrecadados

por meio de impostos, como o Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de

serviços (ICMS), o Imposto sobre produtos industrializados (IPI) e o Imposto sobre serviços

(ISS).

O governo federal investiu em 2011 cerca de R$ 12 bilhões no programa bolsa família,

beneficiando quase 13 milhões de famílias. A título de comparação, em 2009, as deduções do

imposto de renda relativas a despesas médicas e educacionais da classe média serão da ordem

de R$ 4,4 bilhões; as deduções do imposto de renda de pessoa jurídica relativas à médica, à

odontológica e à farmacêutica de empregados chegarão a mais R$ 2,3 bilhões. Além disso, de

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janeiro a julho de 2009, a queda de arrecadação em relação ao mesmo período do ano

anterior, decorrente de desonerações tributárias, foi estimada em cerca de R$ 15 bilhões.

Conforme análise dos dados do IPEA, esses números constatam que o montante destinado ao

bolsa família ainda é modesto. Ressalta-se também que a sociedade tolera que o governo

transfira renda às classes mais abastadas e ao setor formal da economia, mas condena que

assim o faça para os que estão na base da pirâmide de renda, ainda que em uma escala bem

mais modesta. (MODESTO, 2009).

Não restam dúvidas de que o programa vem atingindo seus propósitos de melhorar as

condições de vida das famílias que estão na base da pirâmide de renda e de contribuir para

que elas tenham mais acesso a direitos sociais básicos, como saúde e educação. Conforme

estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o bolsa família provocou

aumento de cerca de 30% na renda das famílias mais pobres, o que justifica, em grande

medida, a redução de cerca de 20% no nível de desigualdade de renda entre os anos de 2004 e

2006. Também, conforme pesquisa da PNAD4, entre os anos de 2001 e 2007, o grau de

desigualdade de renda no Brasil, medida pelo coeficiente de Gini, declinou de forma

acentuada e contínua. Em 2007, ele foi o mais baixo dos últimos trinta anos. Tal queda foi

determinante para redução da pobreza e melhoria das condições de vida dos cidadãos mais

vulneráveis. O índice Gini apresenta escala de valores compreendida entre intervalos de 0 a 1,

sendo considerados importantes números que estejam próximos a 0 (zero), indicando assim

menor desigualdade de renda entre as famílias. (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA

APLICADA, 2006).

4 Os dados da Pnad são coletados anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e constitui a principal fonte de informação sobre concentração de renda no país. A Pnad é reconhecida internacionalmente como uma fonte de informações sobre desigualdade de excelente qualidade. Tanto o Banco Mundial quanto as Nações Unidas classificam a informações da Pnad como de excelente qualidade, mesmo quando comparadas a bases de dados similares em países desenvolvidos, conforme expõe Deininger e Squire (1996). Há, entretanto, poucas dúvidas de que as estimativas de renda baseadas em pesquisas domiciliares como a Pnad tendem a subestimar a renda total. Esse fato decorre da dificuldade de captar adequadamente algumas fontes de renda, tais como: renda não-monetária dos pequenos agricultores, rendimento de ativos e as rendas voláteis (ganhos com loteria, seguro-desemprego, entre outras). Ainda assim, como a proporção da renda subdeclarada é relativamente pequena e variou pouco ao longo do período analisado, tudo leva a crer que seu impacto sobre a variação no grau de desigualdade deva ter sido limitado, mesmo que o impacto sobre o nível possa ser significativo. (DEININGER, K.; SQUIRE apud INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2006.)

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Gráfico 3 - Evolução temporal da desigualdade de renda familiar per capita no Brasil.

Fonte: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2006.

A redução da desigualdade de renda guarda forte relação com os valores dos benefícios

pagos, bem como com os graus de cobertura e de atendimento à população carente. A partir

das informações disponíveis na Pnad, é possível identificar três tipos de transferências

públicas:

a) as pensões e aposentadorias públicas;

b) o Benefício de Prestação Continuada (BPC); e

c) os benefícios do bolsa família e outros programas similares, tais como o programa de

erradicação do trabalho infantil (Peti) e o bolsa escola. (INSTITUTO DE PESQUISA

ECONÔMICA APLICADA, 2006).

Consideradas em conjunto, as transferências governamentais contribuíram para redução

de cerca de 1/3 da concentração de renda, o que demonstra a elevada importância desses

fatores. Analisando-se as contribuições de cada um dos três componentes, é possível verificar

que elas foram razoavelmente similares, em torno de 10% cada. A contribuição relativa desses

diferentes componentes é bastante sensível à medida de desigualdade utilizada. Quanto mais

sensível à renda dos mais pobres é a medida, mais importante é a contribuição do bolsa

família e do BPC, e o efeito do primeiro é substancialmente mais forte. Ademais, o bolsa

família e o BPC ampliaram a abrangência, em vez de provocar aumento no valor do benefício

entre os que já recebiam. No caso das pensões e aposentadorias públicas, ocorreu o contrário,

pois apenas uma fração irrisória de sua contribuição para a queda da desigualdade veio da

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expansão da cobertura. O aumento na cobertura veio acompanhado de maior inclusão da

população mais carente. Caso essa inclusão não houvesse ocorrido, o grau de desigualdade

teria declinado 15% menos do que o efetivamente observado.

Outro aspecto positivo do bolsa família e também dos benefícios do regime geral da

previdência social, é o fato de contribuírem para manter o nível de consumo dessas famílias,

contribuindo para interromper o ciclo de miséria.

Acredita-se também que o bolsa família potencializa o cidadão no mercado de

trabalho, em vez de fomentar um "efeito-preguiça" entre os beneficiários, como por vezes

aventado. Inexistem dados oficiais que indiquem diminuição significativa da participação no

mercado de trabalho ou da busca por trabalho devido à participação no programa.

Pelo contrário, pesquisas recentes do IBGE sobre índice de emprego indicam

ocupação de 77% entre os beneficiários do bolsa família, contra 76% entre os não

beneficiários. (MODESTO, 2009) Observa-se, portanto, que os beneficiários do bolsa família

não se acomodam; ao ter acesso à renda, eles se sentem estimulados a buscar meios para

continuar melhorando de vida, confirmando a função inclusiva dos programas de

transferências de renda.

Dados também contestam o senso comum de que as mulheres teriam mais filhos

devido à participação no bolsa família. Na verdade, não há nenhuma indicação de aumento da

natalidade entre as beneficiárias. O que se constata é que as mulheres brasileiras, incluindo as

mais pobres, têm a cada dia um número menor de filhos. Tal tendência indica a necessidade

de investir em políticas focadas em jovens e crianças, o que vem sendo feito pelo programa

bolsa família, em especial, o Brasil carinhoso. A transferência de renda para crianças e jovens

contribui para que possam se alimentar melhor, permanecer na escola, escapar do Trabalho

Infantil e desenvolver sua capacidade de aprendizado. Essas crianças e esses jovens tendem a

ter, por isso, muito mais oportunidades do que tiveram seus pais, o que indica a quebra do

ciclo da pobreza. (MODESTO, 2009).

Figura 1 - Melhora generalizada: evolução por região do rendimento, do emprego, da

pobreza e da desigualdade de renda de 2003 a 2008

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Fonte: BRASIL, 2008.

O programa salário-família foi criado pela lei nº 4.266, de 3 de outubro de 1963. É

devido aos empregados formais de baixa renda (excetuando o doméstico), sendo pago sob a

forma de uma quota percentual, calculada sobre o valor do salário-mínimo local, arredondado

esta para o múltiplo de mil seguinte, por filho menor, até 14 anos de idade ou inválido.

Verifica-se, pois, que possui natureza nitidamente redistributiva, assemelhando-se, nesse

aspecto com o bolsa família.

Ruprecht expõe que o programa do salário-família busca a constituição ou o

desenvolvimento normal da família através do fornecimento de uma contribuição regular, de

caráter permanente, para manutenção das despesas pessoais, cujo encargo é do chefe de

família. (RUPRECHT apud CASTRO; LAZZARI, 2012, p.71).

A Constituição Federal consagrou o direito ao salário-família como sendo direito

social dos trabalhadores urbanos e rurais, devido em razão da existência de dependentes (art.

7º, XII CF/88). Com a Emenda Constitucional de nº 20/1998, a redação do artigo 7º, XII foi

alterada, estabelecendo que tal benefício será pago em razão do trabalhador de baixa renda.

Com base nesse pressuposto, o Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999, estabeleceu o teto

para ter direito ao salário-família de R$ 360,00, à época. Este valor tem sido corrigido por

portarias do Ministério da Previdência Social (MPS). Certamente, tal alteração trouxe

prejuízos para os trabalhadores que necessitam desse auxílio para manter seus dependentes,

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mas que foram excluídos em razão de terem renda superior ao limite definido em lei. Porém,

na hipótese em que pai e mãe são segurados, o benefício é pago integralmente aos dois, ainda

que o somatório de suas rendas seja maior que o limite legal. Por tal razão, entendemos que a

limitação imposta pela Emenda Constitucional nº 20/1998 (BRASIL, 1998) causou retrocesso

na proteção previdenciária.

De acordo com a Portaria Interministerial nº 02, de 06 de janeiro de 2012, o valor do

salário-família passou a ser de R$ 31,22, por filho de até 14 anos incompletos ou inválido,

para quem ganhar até R$ 608,80. E para o trabalhador que receber de R$ 608,81 até R$

915,05, o valor do salário-família por filho de até 14 anos de idade ou inválido de qualquer

idade será de R$ 22,00.

A lei nº9876/1999 alterou o artigo 67 da lei 8213/1991, para estabelecer que o

pagamento do salário-família é condicionado à apresentação da certidão de nascimento do

filho ou da documentação relativa ao equiparado ou inválido, e à apresentação anual de

atestado de vacinação obrigatória e de comprovação de frequência à escola do referido

dependente.

Conforme estimativa a partir da Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílios (PNAD)

do IBGE o salário-família beneficiou, mensalmente, cerca de 5,8 milhões de trabalhadores no

ano de 2009. Segundo dados do Datamart/CNIS (sistema que disponibiliza dados oriundos da

base da GFIP), as despesas com o salário-família chegaram a R$ 2,002 bilhões em 2009

(considerando apenas valores informados em GFIP). De acordo com estimativa a partir da

PNAD 2009, o valor transferido por intermédio do salário-família é de R$ 2,47 bilhões. Com

base nesses dados, 4,1 milhões de famílias, em média, receberam mensalmente o salário-

família em 2009. O número médio mensal de trabalhadores que receberam o benefício foi de

5,8 milhões. Portanto, em cerca de 1,7 milhão de famílias beneficiadas, tanto o chefe da

família quanto seu conjugue receberam o benefício, representando 41,2% do total das famílias

beneficiadas. As famílias beneficiadas por este programa correspondem a 6,71% do total das

famílias brasileiras. O percentual alcançado pelo salário-família não apresenta distinções entre

as regiões do país, sendo o maior no Nordeste, região mais pobre, onde 7,9% das famílias

recebem o benefício e o menor no Sul, região mais rica, com 6,04%. Analisando por unidade

da federação encontramos diferenças grandes no alcance do programa. Enquanto o Ceará,

estado com maior alcance, 10,23% recebem o benefício, no Piauí apenas 4,65% são

beneficiados. Assim, evidencia-se que o alcance do benefício relacionado apenas à pobreza,

mas também à estruturação do mercado de trabalho. Dessa forma, o Piauí, mesmo sendo o

estado mais pobre é o de menor alcance em razão dos altos índices de informalidade lá

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cultivados. Enquanto no Brasil 44,2% dos trabalhadores ocupados tem emprego formal, no

Piauí esse índice é de apenas 20%. O número médio mensal de crianças beneficiadas em 2009

foi de 7,0 milhões, para uma média de 9,7 milhões de benefícios mensais. O valor médio

recebido por família ficou em R$ 50,29 mensais. As famílias beneficiadas pelo programa têm,

em média, 3,9 membros, portanto bastante acima da média geral, que é de 3,1. A renda

familiar per capita média em 2009 era de R$ 256,33. (GUIMARÃES, 2011).

O salário-maternidade é também benefício da previdência social destinado às

trabalhadoras que adotam ou dão a luz a um ou mais filhos. É devido até mesmo em caso de

parto com óbito do feto. Desde o ano de 2007 o benefício também é garantido para as

contribuintes que estão desempregadas, que ainda mantenham a qualidade de seguradas. A

criança adotada tem limite de idade até 8 anos para que a mãe que adotou receba o benefício

do INSS.

Concordamos com Alfredo Ruprecht, ao asseverar que o salário maternidade possui

notória função social, pois preserva a função fisiológica no processo de criação, facilita o

cuidado dos filhos e da família, garante os interesses profissionais e financeiros da mulher,

sem, contudo, diminuir sua condição feminina. (RUPRECHT apud CASTRO; LAZZARI,

2012, p.703).

A segurada desempregada terá direito ao salário-maternidade nos casos de demissão

antes da gravidez ou, caso a gravidez tenha ocorrido enquanto ainda estava empregada, desde

que a dispensa tenha sido por justa causa ou a pedido da obreira.

O benefício será pago durante 120 dias e poderá ter início até 28 dias antes do parto.

Se concedido antes do nascimento da criança, a comprovação será por atestado médico, se

posterior ao parto, a prova será a Certidão de Nascimento. Para receber o pagamento antes do

nascimento da criança, a comprovação deve ser feita com atestado médico de gravidez

com período de gestação. Para comprovar após o parto, basta apresentar a certidão de

nascimento da criança. A exceção é para as trabalhadoras desempregadas, que só podem

solicitar o benefício após o parto.

Em caso de abortos legalizados (em caso de risco de vida da mãe ou estupro) e

espontâneos, o pagamento do salário-maternidade será realizado apenas por 2 semanas. Nos

casos de adoção o tempo de pagamento varia de acordo com a idade da criança. No caso de

crianças de até 1 ano, o pagamento é feito em tempo integral de 120 dias. Crianças de 1 a 4

anos o benefício é realizado até 60 dias. E no caso de crianças de 4 a 8 anos, apenas 1 parcela

é paga. No caso de parto ou adoção de mais de 1 filho, o pagamento é feito contando apenas 1

criança. Para concessão do salário-maternidade, não é exigido tempo mínimo de contribuição

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das trabalhadoras empregadas, empregadas domésticas e trabalhadoras avulsas, desde que

comprovem filiação nesta condição na data do afastamento para fins de salário maternidade

ou na data do parto.

A contribuinte individual, a segurada facultativa e a segurada especial (que optou por

contribuir) têm que ter pelo menos dez contribuições para receber o benefício. A segurada

especial que não paga contribuições receberá o salário-maternidade se comprovar no mínimo

dez meses de trabalho rural imediatamente anteriores à data do parto, mesmo que de forma

descontínua. Se o nascimento for prematuro, a carência será reduzida no mesmo total de

meses em que o parto foi antecipado.

A trabalhadora que possui mais de um emprego tem direito a um salário-maternidade

para cada um deles, desde que contribua para a previdência nas duas funções.

Desde setembro de 2003, o pagamento do salário-maternidade das gestantes

empregadas é feito diretamente pelas empresas5, que são ressarcidas pela previdência social.

A empresa deverá conservar, durante 10 (dez) anos, os comprovantes dos pagamentos e os

atestados ou certidões correspondentes. As mães adotivas, contribuintes individuais,

facultativas e empregadas domésticas terão de pedir o benefício nas agências da previdência

social.

Em casos excepcionais, os períodos de repouso anteriores e posteriores ao parto

poderão ser aumentados por mais duas semanas, mediante atestado médico específico.

A lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008 (BRASIL, 2008) instituiu o programa

empresa cidadã. A empregada da pessoa jurídica integrante deste programa pode requerer a

dilação de 60 dias no período de sua licença maternidade. Tal pedido deve ser feito até o final

do primeiro mês após o parto. A solicitação da empregada é feita junto à empresa, de acordo

com as regras do Decreto nº 7.052/2009. (BRASIL, 2009b).

No caso das mães adotivas, se a criança tem até um ano de idade, a prorrogação segue

as regras da mãe biológica,ou seja, são cedidos 60 dias a mais. Para crianças entre um e

quatro anos são 30 dias. No caso de crianças entre quatro e oito anos, a prorrogação conferida

é de 15 dias. Vale ainda ressaltar que nos casos de parto antecipado a prorrogação também é

válida.

Acredita-se que na prática, o benefício terá alcance reduzido, pois podem abater do IR

5 Ressalvado o caso das empregadas domésticas. O art. 73, I, da Lei nº 8.213/1991, dispõe que o salário-maternidade será pago diretamente pela Previdência Social à empregada doméstica, em valor equivalente ao seu último salário-de-contribuição, que não será inferior ao salário-mínimo e nem superior ao limite máximo do salário-de-contribuição para a Previdência Social.

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os dois meses de salários extras das licenciadas somente as empresas que pagam o imposto

pela sistemática de lucro real, o que compreende cerca de 150 mil empresas no país, sendo a

maioria delas de grande porte. Já as empresas incluídas no simples ou que pagam IR pelo

sistema de lucro presumido, que correspondem em geral as pequenas e médias, podem aderir

ao programa, mas não terão abatimento no Imposto de Renda. Até o mês de julho de

2012,10,5 mil empresas já aderiram ao programa. (BRASIL, 2012a).

O retorno ao trabalho ao final da licença maternidade de 120 dias, regulada pelo artigo

392 da CLT, é considerado como um dos obstáculos à amamentação. Com o objetivo de

aumentar a adesão ao programa e incluir mais seguradas na licença ampliada, tramita no

Congresso um projeto de lei idealizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria que se aprovado

fará com que empresas que não concederem licença-maternidade de seis meses a suas

empregadas correm o risco de não poder participar de licitações públicas. Trata-se de uma

iniciativa de elevado caráter cidadão, que visa combater a mortalidade infantil, já que o leite

materno é uma fonte completa de nutrientes durante os seis primeiros meses de vida.

No âmbito da administração pública federal direta, autáquica e fundacional, o Decreto

nº 6690/2008 instituiu o programa de prorrogação da licença à gestante e à adotante. Tal

prorrogação será custeada pelo tesouro nacional, aplicando-se inclusive às servidoras que

tenham o período de licença maternidade concluído entre 10 de setembro de 2008 e a data da

publicação do referido Decreto.

Quadro 1 - Alguns programas federais de emprego, trabalho e renda no Brasil Nome Descrição Ano de Início N° de

trabalhadores beneficiados (2005)

Abono-Salarial Benefício no valor de um salário mínimo anual, assegurado aos empregados que percebem até dois salários mínimos de remuneração mensal, desde que cadastrados há 5 anos ou mais no PIS/Pasep e que tenham trabalhado pelo menos 30 dias em um emprego formal, no ano anterior.

1989 (1970 para contas individuais)

8.390.012

Intermediação de Mão-de-Obra / Sine

Captação de vagas junto a empresas e encaminhamento de trabalhadores em busca de emprego.

1977 Inscritos: 5.007.752 Colocados: 893.6556

Seguro-Desemprego

Assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado, em virtude da dispensa sem justa causa. Concedido em parcelas mensais, que variam de três a

-1986: Trabalhador formal

5.565.8567

6 O número de inscritos informa quantos trabalhadores procuraram o Sistema Nacional de Emprego (Sine), enquanto o de colocados refere-se apenas aos que conseguiram emprego após encaminhamento pelo Sine. 7 Inclui todas as modalidades.

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cinco, dependendo do número de meses trabalhado nos últimos 36 meses, para um período aquisitivo de 16 meses, ou seja: - três parcelas, se trabalhou pelo menos seis dos últimos 36 meses; - quatro parcelas, se trabalhou pelo menos doze dos últimos 36 meses; - cinco parcelas, se trabalhou pelo menos vinte e quatro dos últimos 36 meses.

-1992: pescador artesanal -2001: trabalhador doméstico -2003: trabalhador resgatado

Qualificação Profissional

Oferta de cursos de qualificação profissional para trabalhadores desempregados ou em risco de desemprego, e microempreendedores.

1995 50.359

Geração de Emprego e Renda

Concessão de crédito produtivo assistido a micro e pequenas empresas, cooperativas e trabalhadores autônomos.

1995 Operações: 2.977.328

Primeiro Emprego para Juventude

Promoção do ingresso do jovem no mundo do trabalho por meio de qualificação profissional, estímulo financeiro às empresas contratantes, parcerias para contratação de aprendizes e apoio à constituição de empreendimentos coletivos pelos jovens.

2003 Qualificados: 118.026 Colocados: 45.638

Economia Solidária

Apoio à formação e divulgação de redes de empreendimentos solidários, pelo fomento direto, mapeamento das experiências e constituição de incubadoras.

2003

Fonte: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2005.

3 As políticas públicas de valorização do salário mínimo.

A criação do salário mínimo ocorreu com a lei nº 185/1936 e o com Decreto 399/1938,

sendo seu valor fixado pelo Decreto Lei nº 2162/1940. Em maio de 1984, o valor do salário

mínimo foi unificado em todo o País, tendo por base as necessidades básicas do trabalhador

verificadas através de levantamento dos salários vigentes no País. Desde então, várias foram

as políticas públicas econômicas e salariais que disciplinaram essa matéria, tendo sofrido

valorizações (ilustrativamente na década de 1950 mediante forte movimentação coletiva), mas

sobretudo consideráveis reduções em vários momentos, mormente no período militar, como

forma de alcançar determinados objetivos político-econômicos. (MELO, 2010, p. 101).

Dentro da direção de valorização máxima do cidadão no estado Democrático de

Direito, o artigo 7º, IV da Constituição Federal, prevê o direito a um salário mínimo para

trabalhadores urbanos e rurais, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender as

suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação,

saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que

lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim. Também

foram criadas regras de proteção ao salário do trabalhador, tais como rejustes periódicos que 8 O número de operações pode ser superior ao número de beneficiados, já que uma mesma pessoa pode participar de mais de uma operação de crédito.

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lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

irredutibilidade do salário, salvo o disposto em acordo ou convenção coletiva; garantia de

salário nunca inferior ao mínimo para os que percebem remuneração variável, dentre outras.

O objetivo estampado no inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal é de conferir

ao trabalhador uma tutela mínima imperativa para sua sobrevivência e de sua família. Com

esse nobre objetivo, é imprescindível que políticas públicas que promovam a valorização do

salário mínimo sejam sempre fomentadas, o que atende, inclusive, ao disposto no artigo 170

da própria Constituição Federal. Esse artigo dispõe que a ordem econômica é fundada na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência

digna, conforme os ditames da justiça social, observados, dentre outros, os princípios da

redução das desigualdades regionais e sociais e da busca do pleno emprego.

Desde 2004, as Centrais Sindicais vêm promovendo campanhas envolvendo temas

relevantes, dentre eles, a campanha de valorização do salário mínimo, a fim de combater o

enorme processo de esvaziamento relativo à renda do trabalho. (POCHMANN, 2005). Em

dezembro de 2007 foi acordada, com o governo do presidente Lula, uma política explícita e

mais permanente de valorização do salário mínimo. Os reajustes e aumentos deixaram de ser

negociados anualmente, estabelecendo uma regra de maior prazo para sua valorização. Por tal

política, para o período de 2008 e 2011, foram previstos reajustes pela inflação ocorrida desde

o reajuste anterior e aumentos pela variação do PIB do ano anterior último. Ademais, o mês

do reajuste do salário mínimo passou a ser antecipado a cada ano, até ser fixado no mês de

janeiro de cada ano a partir de 2010 (MELO, 2010). Em 25/02/2011 foi, então, criada a lei

12382/2011 (BRASIL, 2011a), dispondo sobre o valor do salário mínimo e sua política de

valorização de longo prazo. Ainda assim, mesmo antes do sancionamento desse diploma

legal, o governo veio, a partir de 2004, cumprindo os compromissos estabelecidos.

Pochmann aduz que o salário mínimo deve se descolar:

[...] da simples concepção de piso monetário essencial à sobrevivência do trabalhador, para incorporar o objetivo de integração dos frutos do desenvolvimento econômico aos trabalhadores de menor remuneração e baixo grau de organização sindical. (POCHMANN, 2005, p. 137).

Não adentrando especificamente as discussões acerca de sua insuficiência de valores,

certo é que a política de valorização do salário mínimo possui grande impacto na redução das

desigualdades. Considerando o valor do salário mínimo com seu primeiro reajuste posterior

ao plano real (R$70,00, em setembro de 1994) e o valor de janeiro de 2010 (R$510,00)

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verifica-se que houve uma elevação de 628%. Tal valor supera o apontado pelos indicadores

de inflação ao consumidor entre 01/12/1994 e 31/12/2009, de aproximadamente 230%,

conforme tanto o INPC - IBGE quanto o ICV - DIEESE para o terço de famílias de menor

renda. A diferença entre a variação nominal do salário mínimo e a inflação gerou um aumento

significativo do seu poder aquisitivo (MELO, 2010, p. 105). Especificamente no governo

Lula, quando a política de valorização foi criada, segundo dados do DIEESE, o reajuste

aplicado ao salário mínimo no primeiro ano de sua atuação (2003) foi de 20,00%, para uma

inflação acumulada de 18,54%, correspondendo a um aumento real de 1,23%. No segundo

ano, a elevação foi de 8,33%, enquanto o INPC acumulou 7,06% e, em 2005, o salário

mínimo foi corrigido em 15,38%, contra uma inflação de 6,61%. Em 2006, a inflação foi de

3,21%, o reajuste foi de 16,67%, o que corresponde a um aumento real de 13,04%. Em abril

de 2007, para um aumento do INPC entre maio/2006 e março/2007 de 3,30% foi, aplicada

uma correção de 8,57% no salário nominal, o que representou um aumento real do salário

mínimo de 5,1%. Em 2008, o salário mínimo foi reajustado, em fevereiro, em 9,21%,

enquanto a inflação foi de 4,98%, correspondendo a um aumento real de 4,03%. Com o valor

de R$ 465,00, em 1º de fevereiro de 2009, o ganho real entre 2008 e 2009 foi de 5,79%.

Considerando a variação do INPC de fevereiro a dezembro de 2009 e o valor de R$ 510,00,

em 1º de janeiro de 2010, o ganho real acumulado no período será de 6,02%, resultante de

uma variação nominal de 9,68%, contra uma inflação de 3,45%. (DIEESE, 2010).

De forma complexa e combinada com outros relevantes fatores, como a elevação do

número de empregos formais e a criação de programas de transferência de renda, a

valorização do salário mínimo foi crucial para afastar da pobreza cerca de 21 milhões de

pessoas entre 2003 e 2009. (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA,

2012). Destaca-se, pois, a importância de políticas sociais com esses escopos específicos, a

fim de obter melhor distribuição de renda, aprimorar a estruturação do mercado de trabalho e

promover um crescimento econômico sustentado no Estado Democrático de Direito. Nesse

sentido, “a Constituição Federal de 1988 foi peça fundamental para a ampliação dos recursos

públicos na área social, responsável pelo financiamento dos programas de garantia de renda.”

(POCHMANN, 2005, p. 143).

A elevação do valor do salário mínimo é um eficaz caminho para a promoção da

cidadania e do desenvolvimento, permitindo a inclusão econômico-social de cidadãos. Em

referência aos direitos trabalhistas, dispõe Catharino: As vantagens da intervenção legal carecem de maiores esclarecimentos. Podem ser assim resumidas: produz a elevação do nível físico, intelectual e moral dos trabalhadores; aumenta o poder aquisitivo do operariado, melhorando seu padrão de

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vida; acelera o desaparecimento de toda indústria parasita; eleva o número dos consumidores, repercutindo na necessidade de maior produção, o que significa mais empregos e melhores salários; reduz os encargos do Estado, e, consequentemente, pode diminuir os tributos fiscais, pois, se os operários não ganhassem suficiente, necessitariam de maior assistência e amparo; favorece a planificação econômica; assegura a evolução mais tranquila da sociedade, etc. (CATHARINO, 1994, p.207-208).

E tal elevação tem reflexo direto na Previdência Social. Conforme previsão do artigo

201, § 2º da Constituição Federal, “nenhum benefício que substitua o salário de contribuição

ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal inferior ao salário mínimo”.

A definição de um valor mínimo para os benefícios que substituam o salário de

contribuição ou o rendimento do trabalho é uma norma de elevado caráter inclusivo.9 No que

se refere à área rural, a partir de 1988, houve considerável avanço com o incremento do

benefício para milhares de pessoas. A vinculação do piso da previdência social ao salário

mínimo possibilitou o incremento do consumo de milhares de aposentados e pensionistas,

gerando aumento de empregos, aceleração da economia, aumento de arrecadação de tributos,

dentre outras consequências positivas. (IBRAHIM, 2012). Em maio de 2012, dos 19,8

milhões de segurados com benefícios de um salário mínimo, 42,5% referem-se a pagamentos

do setor rural, 37,85% do setor urbano e 19,65% aos assistenciais. (PREVIDÊNCIA

SOCIAL, 2012).

No que se refere à assistência social, sua Lei Orgânica - LOAS - garante um salário

mínimo mensal para pessoas portadoras de deficiência e/ou maiores de 65 anos de idade,

desde que tenham renda mensal per capita familiar abaixo de um quarto do salário mínimo e

comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua

família (conforme previsão do inciso V, artigo 203 da CF/88). Para trabalhadores rurais, há o

direito à aposentadoria por idade ou invalidez, especialmente para aqueles que não

contribuíram anteriormente, cujo valor mensal é de um salário mínimo. Também para os

trabalhadores recém-desempregados, há o seguro desemprego, que confere o menor valor

equivalente ao salário mínimo nacional. Por fim, às famílias de extrema pobreza e às crianças

e adolescentes submetidos ao trabalho, há os programas de bolsa família e de erradicação do

trabalho infantil (Peti), que transferem mensalmente valores abaixo do mínimo (limite

máximo de 36% do valor do mínimo legal). (POCHMANN, 2005, p. 144).

Diante dessas colocações, verifica-se o alcance, com efeitos extremamente positivos,

que possui a valorização real do salário mínimo. Consequentemente, demonstrado está que

sua redução é eficaz fator de desigualdades e exclusão social. Seu valor não pode ser tão 9 Na Previdência Social, estão excluídos dessa regra o benefício do salário-família e auxílio acidente.

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mínimo, mas deverá ser um mínimo que promova o máximo de dignidade. (LÚCIO, 2005, p.

177). O aumento do salário mínimo eleva o patamar de rendimentos do trabalho e a

arrecadação pública, incrementa o consumo, além de reduzir os gastos sociais decorrentes do

desemprego ou da informalidade. Todas essas consequências convergem para a melhoria das

condições de pactuação da força de trabalho na ordem socioeconômica (DELGADO, 2012, p.

91), valorizando e potencializando o trabalho humano.

As políticas para elevação do salário mínimo e recomposição de seu valor devem, por

óbvio, preservar a vinculação com os benefícios sociais, pois se trata de um grande avanço

democrático inserido na Constituição Federal. E por destinar à proteção da dignidade humana

milhares de indivíduos urbanos e rurais, afirma-se que tal vinculação consiste num direito

fundamental do cidadão.

Para atender e incentivar a concretização da política de valorização do salário mínimo

devem ser adotadas medidas para aumentar a arrecadação previdenciária, a fim de preservar

seu equilíbrio financeiro e atuarial. Para tanto, a elevação dos postos de emprego, além de

significar maior número de contribuintes para o RGPS, também é eficaz instrumento para

elevar os níveis de civilização. Ademais, planos que visem ao aumento da cobertura

previdenciária, como o SIMPLES Nacional, Plano Simplificado de Previdência Social e

Microempreendedor Individual, são também meios de aumentar a arrecadação previdenciária

com alíquotas reduzidas e procedimentos facilitados, incluindo mais cidadãos. Valioso

também destacar aqui, como medida de elevação das arrecadações, o favorável impacto da

Lei nº 10.666, aprovada em 2003, que obriga as empresas que utilizam serviços de terceiros

(contribuintes individuais) a reter e repassar ao INSS o equivalente a 11% da remuneração

para tais trabalhadores. Assim, a contribuição de prestadores de serviços a empresas se tornou

compulsória, além de ter garantido o pagamento da alíquota patronal sobre os pagamentos

efetuados pelas empresas a esses trabalhadores. Enfim, um conjunto de medidas necessárias

para atender à política de valorização do salário mínimo.

Pochmann afirma que as políticas sociais devem ser adotadas de forma abrangente

para promover uma real valorização do salário mínimo, por exemplo, disponibilizando

produtos básicos a um valor reduzido, para garantir o abastecimento popular, ampliar a rede

de restaurantes populares, criar isenções fiscais ou carga reduzida para produtos de primeira

necessidade, dentre outras medidas. E ratifica:

Em síntese, o salário mínimo continua a representar uma excelente política pública de combate tanto à exploração dos trabalhadores de salário base, quanto à desigualdade de renda dos ocupados. A elevação do salário mínimo atua também

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favoravelmente ao enfrentamento da pobreza, especialmente no caso das famílias em que se encontram os trabalhadores de baixa remuneração. Nesse sentido, a retomada do crescimento econômico sustentado assim como a implantação de um projeto de desenvolvimento econômico-social compatível com o avanço da renda do trabalho abrem a perspectiva de elevação consistente do salário mínimo nacional. Do contrário, crescem as chances do rebaixamento dos rendimentos dos trabalhadores de salário base, colocando-os cada vez mais próximos da condição de nova pobreza no Brasil. (POCHMANN, 2005, p. 146).

CONCLUSÃO:

A exclusão social consiste num dos principais problemas a ser enfrentado com armas

eficazes pelas nações de todo o mundo. Exprime a crise de valores sociais, fortalecida pelas

práticas precarizantes e flexibilizadoras que insistem em atacar os direitos sociais. Para

combater essa tendência excludente tão cara aos sistemas ultraliberais, necessário trilhar o

caminho do desenvolvimento econômico, social, político e cultural, buscando efetivar os

instrumentos para dignificação do cidadão.

Os direitos sociais, em especial, os direitos trabalhistas e previdenciários, possuem

papel essencial na promoção dos direitos humanos, atenuando as forças do capital perante o

indivíduo. A relação de emprego formal, regida pelo Direito do Trabalho, e o Direito

Previdenciário foram analisados como instrumentos que contribuem para elevar a

dignificação do cidadão. As tutelas imperativas deferidas especialmente por estes ramos

jurídicos permitem melhor distribuição de renda e redução das desigualdades, sendo

fundamentais para promoção de uma sociedade inclusiva. Como verificado nesse estudo, o

sistema capitalista incorporou em seu âmago uma essencial função social, harmonizando-se

com os direitos fundamentais da pessoa humana.

O ramo jurídico trabalhista vem, ao longo da história, atuando em prol do

aperfeiçoamento da condição humana no mercado de trabalho da sociedade capitalista.

Através da relação de emprego formal confere aos indivíduos não somente uma das formas de

se conectarem dignamente ao sistema produtivo – via relação de emprego -, mas também lhes

confere afirmação social e poder. Por tudo isso, verificamos que o Direito do trabalho

instrumentaliza a afirmação da Democracia no Estado Democrático de Direito.

Como foi demonstrado, o Direito Previdenciário também possui um forte papel

inclusivo na sociedade brasileira. Como verificado, a relação de emprego juntamente com o

sistema previdenciário estatal formam um efetivo manto protetor contra as desigualdades

produzidas pelo sistema capitalista, além de contribuírem para a promoção da justiça social. O

Direito do Trabalho, juntamente com o Direito Previdenciário, exprimem a dimensão mais

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inclusiva dos Direitos Sociais. Ambos os ramos jurídicos objetivam emancipar o indivíduo

em face do mercado, tendo o fundamental papel de promover a cidadania, sendo, pois,

condição essencial para a existência do próprio Estado Democrático de Direito. Onde o Direito

ao Trabalho e o Direito Previdenciário não forem assegurados por regras estatais, visando

especialmente a supremacia dos direitos do indivíduo, não haverá uma sociedade efetivamente

democrática. O amadurecimento da Democracia teve forte influência pela eclosão de ramos

jurídicos sociais, em especial, repita-se, o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário.

Alguns relevantes programas sociais de transferência de renda foram analisados.

Assim, foi verificado que tais programas vêm atingindo com êxito seus valiosos propósitos de

melhorar as condições de vida das famílias que estão na base da pirâmide de renda e de

contribuir para que elas tenham mais acesso a direitos sociais básicos, como saúde e

educação. Algumas críticas a tais programas foram analisadas e caracterizadas como

extremadas e falaciosas, já que atuam como uma tentativa de agredir a necessária distribuição

de renda em nosso país.

A política de valorização do salário mínimo foi analisada como um efetivo

instrumento de inclusão econômico-social. Tal política possui um enorme alcance na esfera

trabalhista e previdenciária, combatendo com êxito o processo de esvaziamento relativo à

renda do trabalho. De forma complexa e combinada com outros relevantes fatores, como a

elevação do número de empregos formais e a criação de programas de transferência de renda,

a valorização do salário mínimo foi crucial para afastar da pobreza cerca de 21 milhões de

pessoas entre 2003 e 2009.10 Assim, foi constatada a importância de políticas sociais com

esses escopos específicos, a fim de obter melhor distribuição de renda, aprimorar a

estruturação do mercado de trabalho e promover um crescimento econômico sustentado no

Estado Democrático de Direito.

Consequentemente, foi demonstrado que a desvalorização do salário mínimo é eficaz

fator de desigualdades e exclusão social. Seu valor não pode ser tão mínimo, mas deverá ser

um mínimo que promova o máximo de dignidade. (LÚCIO, 2005, p. 177). Foi demonstrado

que o aumento do salário mínimo eleva o patamar de rendimentos do trabalho e a arrecadação

pública, incrementa o consumo, além de reduzir os gastos sociais decorrentes do desemprego

ou da informalidade. Todas essas consequências convergem para a melhoria das condições de

10 A FGV utiliza, para medir a pobreza, critério baseado em uma cesta de alimentos e serviços, que leva em conta as diferenças regionais e o custo de vida, além de outros fatores. O número de pessoas que cruzou a linha da pobreza, entre 2003 e 2009, segundo essa metodologia, é de R$ 20,5 milhões. Por esse critério, a linha da pobreza traduzida em reais é diferente em cada região. Na média nacional, corresponde às pessoas que sobrevivem com renda mensal de até R$ 144. (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2012).

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vida do cidadão, além de valorizarem o trabalho humano.

As políticas para elevação do salário mínimo e recomposição de seu valor devem, por

óbvio, preservar a vinculação com os benefícios sociais, pois representam um grande avanço

democrático inserido na Constituição Federal. A vinculação do piso da previdência social ao

salário mínimo possibilitou o incremento do consumo de milhares de aposentados e

pensionistas, gerando aumento de empregos, aceleração da economia, aumento de

arrecadação de tributos, dentre outras consequências positivas.

Para atender e incentivar a concretização da política de valorização do salário mínimo

devem ser adotadas medidas para aumentar a arrecadação previdenciária, a fim de preservar

seu equilíbrio financeiro e atuarial. Para tanto, a elevação dos postos de emprego, além de

significar maior número de contribuintes para o RGPS, também é eficaz instrumento para

elevar os níveis de civilização. Ademais, planos que visem ao aumento da cobertura

previdenciária, como o SIMPLES Nacional, Plano Simplificado de Previdência Social e

Microempreendedor Individual, são também meios de aumentar a arrecadação previdenciária

com alíquotas reduzidas e procedimentos facilitados, abrangendo e incluindo mais cidadãos.

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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NO BRASIL:

UMA VERTENTE PARA NOVAS PERSPECTIVAS

PUBLIC POLICIES FOR MICRO AND SMALL ENTERPRISES IN BRAZIL:

A NEW WAY TO SHED

Marco Antonio Lorga1

Co-autoria Prof. Dr. Paulo Ricardo Opuszka2

RESUMO

As Micro e Pequenas Empresas possuem no contexto econômico e social brasileiro uma

posição de destaque justificado pela participação do número de pessoas e

empreendimentos envolvidos nesse segmento. Alguns números estatísticos que

apresentaremos a seguir corroboram com a nossa afirmação. O crescimento desse

segmento e a sua importância para as economias no mundo tem sido alvo de estudos

científicos desse fenômeno por muitas disciplinas, como a Sociologia, a Economia, a

Administração de Empresas e o próprio Direito. Este estudo procura privilegiar a

multidisciplinariedade que a pesquisa desse tema exige. Temos como objetivo apresentar

uma visão ampla das Micro e Pequenas Empresas no Brasil com dados econômicos e as

políticas públicas que se desenvolvem na atualidade pelo Estado, caracterizando uma

vertente para novas perspectivas de desenvolvimento econômico e social.

PALAVRAS-CHAVE: Micro e Pequenas Empresas, Política Pública, Social, Economia.

ABSTRACT

The Micro and Small Enterprises have economic and social context in Brazil a prominent

position justified by the participation of many people and businesses involved in this

sector. Some statistical numbers we present below corroborate our assertion. The growth of

this segment and its importance to the economies in the world has been the subject of

scientific studies of this phenomenon for many disciplines such as Sociology, Economics,

Business Administration and Law itself. This study seeks to focus on multidisciplinary

1 Endereço para acessar este CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8845506061853001 2 Endereço para acessar este CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2323335691144453

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research that this issue requires. We aim to provide an overview of Micro and Small

Enterprises in Brazil with economic data and public policies that are developed today by

the state, featuring a new aspect to prospects for economic and social development.

KEYWORDS: Micro and Small Business, Public Policy, Social, Economy.

INTRODUÇÃO

As Micro e Pequenas Empresas possuem no contexto econômico e social

brasileiro uma posição de destaque justificado pela participação do número de pessoas e

empreendimentos envolvidos nesse segmento. Alguns números estatísticos que

apresentaremos a seguir corroboram com a nossa afirmação.

O crescimento desse segmento e a sua importância para as economias no mundo

tem sido alvo de estudos científicos desse fenômeno por muitas disciplinas, como a

Sociologia, a Economia, a Administração de Empresas e o próprio Direito.

O estudo procura privilegiar a multidisciplinariedade que a pesquisa desse tema

exige. Temos como objetivo apresentar uma visão ampla das Micro e Pequenas Empresas

no Brasil com dados econômicos e as políticas públicas que se desenvolvem na atualidade

pelo Estado.

Alguns aspectos que acreditamos serem cruciais para o foco das discussões sobre

a política pública voltada ao desenvolvimento do segmento são apresentados: como os

programas e instrumentos de adequação, as condições de aplicação e coordenação, a

institucionalidade, e o ambiente macroeconômico, legal e regulatório aplicado.

No final do século XX percebemos que os Governos no Mundo apresentaram

singular interesse para o segmento das Micro e Pequenas Empresas. Isso é interpretado

pela presença crescente nesse período de formulações de políticas publicas atentas as

potencialidade e contribuições desse segmento nos aspectos sociais e econômico. Vários

países vislumbraram então a importância da representatividade das Micro e Pequenas

Empresas como instrumentos de estabilidade social e desenvolvimento econômico

justificando o esforço em desenhar novas políticas de estímulo.

A política pública para as Micro e Pequenas Empresas diminui o seu foco nas

grandes corporações e passa a buscar ações permanentes dos Governos produzindo marcos

institucionais dentro da estrutura executiva da administração pública. Temos como

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exemplo claro dessa tendência mundial os tratamentos coletivos de apoios as atividades

segmentadas que promovem fluxo de conhecimentos produtivos e mobilização de Arranjos

Produtivos Locais (A.P.L) no Brasil, ou os Clusters como denominado na Itália,

compreendendo a união de micro e pequenos negócios, podendo ser rural ou urbano, de

atividades comuns com o objetivo de desenvolvimento segmentado, troca de experiências e

fortalecimento concorrencial de mercado.

No Brasil em consonância com a essa nova ordem mundial é observado a

evolução das análises e das ações políticas que orbitam em dois eixos principais: a busca

de associar desenvolvimento com a modernização da estrutura produtiva, ou seja, a criação

e difusão de novas tecnologias, sistema e formatos organizacionais, e por conseguinte, a

busca da potencialização e contribuição com o desenvolvimento social e econômico. Esse

último eixo, como veremos adiante exerceu um grande peso na minimização dos efeitos da

crise econômica de 2008, resultado das diminuições das desigualdades regionais e da

inclusão de segmentos sociais antes marginalizados.

A nossa análise tem o lapso temporal no segundo mandato do presidente Luís

Inácio Lula da Silva nos anos de 2007 a 2010 e o início da gestão da presidenta Dilma

Rousseff com mandato a partir de janeiro de 2011. Situamo-nos nesse período onde foi

marcada por uma forte criação de novos mecanismos de fomento e instrumentos de

redução a miséria, bem como, por uma evolução positiva nos números indicadores

relacionados ao desempenho das Micro e Pequenas Empresas, consequência de uma ativa

implementação novas políticas públicas voltadas ao social e o bem-estar da população.

Mesmo assim, compreendemos que há um longo caminho a percorrer nas políticas

públicas de estímulo à Micro e Pequena Empresa no Brasil.

2. A MICRO E PEQUENA EMPRESA NA ORDEM ECONOMICA BRASILEIRA

2.1. DEFINIÇÃO

Existem três critérios para a definição da Microempresa e da Empresa de Pequeno

Porte. O primeiro critério encontra-se na legislação, Lei Complementar 123/2006, também

conhecido como o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte,

que utiliza a classificação de tamanho da empresa pelo faturamento anual da empresa.

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Nesse critério para ser Microempresa deve possuir um faturamento anual até R$240.000,00

e para ser Empresa de Pequeno Porte um faturamento anual no intervalo entre

R$240.000,00 até R$2.400.000,00. Uma nova categoria recentemente foi introduzida na

nossa legislação que alterou a LC 123/2006, com a edição da Lei Complementar 128/2008,

criando o Microempreendedor Individual (MEI), pessoa que trabalha por conta própria e

que obtenha uma receita anual de até R$36.000,00 reais. (Lei Complementar 123/2006)

O segundo critério, encontra-se no método utilizado tradicionalmente pelo

SEBRAE – Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas que utiliza a classificação de

tamanho da empresa pelo número de empregos gerados pela empresa e da atividade

desenvolvida. Nesse critério para ser Microempresa na Indústria e Construção Civil até 19

empregados e no Comércio e Serviços até 09 empregados. Para ser Empresa de Pequeno

Porte na Indústria e Construção Civil de 20 à 29 empregados e no Comércio e Serviços de

10 a 49 empregados. (SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas

Empresas, 2012)

Esse critério, agora pouco utilizado, é criticado pela sua subjetividade e alto grau

de indefinição, pois alguns segmentos podem atingir faturamentos altíssimos com poucos

colaboradores, bem como, o inverso pode ocorrer. Além disso, seria um desestímulo a

geração de novos postos de trabalho, já que quanto menor o número de colaboradores

maior o estímulo da renúncia fiscal e grau de tratamento favorecido.

O terceiro critério é utilizado pelo principal fomentador financeiro para Micro e

Pequenas Empresas nos últimos anos, o BNDES, que utiliza uma classificação diferente

em números de faturamento anual muito superior aos estabelecidos pela Lei Complementar

123/2006. Segundo esse critério, para ser Microempresa deve possuir um faturamento

anual até R$2.400.000,00 e para ser Empresa de Pequeno Porte um faturamento anual no

intervalo entre R$2.400.000,00 até R$16.000.000,00. (BNDES – Banco Nacional de

Desenvolvimento Econômico e Social)

Essa falta de uniformização pode trazer distorções quando comparados os

números estatísticos de fontes diferentes, ensejando cautela ao pesquisador quando na

consolidação de resultados, pois distintamente podemos classificar os critérios como legal

ou tributário, estabelecido pela LC 123/2006, como de empresarial estabelecido pelo

SEBRAE e como financeiro estabelecido pelo BNDES.

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2.2. PARTICIPAÇÃO DAS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS NA ECONOMIA

As Micro e Pequenas Empresas possuem uma participação significativa na

economia brasileira. Segundo dados oficiais do Ministério de Trabalho e Emprego – MTE

da Relação Anual de Informações Socais – RAIS, no ano de 2010, haviam 3,4 milhões de

estabelecimentos no Brasil, sendo desse total 97,5% são Micro e Pequenas Empresas que

contribuíram com 40,4% dos empregos formais e aproximadamente 40% da remuneração

da economia, como segue o quadro abaixo:

# Quadro 1 #

ESTRUTURA PRODUTIVA, NÚMERO DE ESTABELECIMENTOS POR TAMANHO, GRANDES SETORES E EMPREGOS FORMAIS - 2010

Tamanho Micro Pequena Subtotal Média Grande Subtotal Estabelecimentos Indústria 290.480 50.078 340.558 10.693 2.180 353.432

Construção Civil 140.303 17.148 157.451 3.715 500 161.666

Comércio 1.183.519 164.624 1.348.143 12.257 7.046 1.367.446

Serviço 976.840 173.174 1.150.014 20.753 25.355 1.196.122

Agronegócios 315.849 7.727 323.576 1.046 161 324.783

Total 2.906.991 412.751 3.319.712 48.464 35.242 3.403.448

Percentual (%) 85,4 12,1 97,5 1,4 1,0 100,0

Empregos Formais Nº(31 de dezembro)

8.303.800

18,8

9.497.906

21,6

17.801.706

40,4

5.388.442

12,2

20.878.207

47,4

44.068.355

100,0

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego / Relação Anual de Informações Sociais (TEM/RAIS2010)

A importância desse segmento aumenta na economia brasileira a medida que se

confirma uma alta taxa de crescimento que há nos últimos anos. Entre 1996 e 2001

aumentaram seu número em 60%, sendo a média da taxa anual de crescimento anual das

Micro e Pequenas Empresas no restante da década que seguiu nos anos dois mil foi de 40%

anual. (SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, 2012)

Uma das características marcantes da Micro e Pequena Empresa é a sua atuação

em segmentos que contém baixa tecnologia e a presença de trabalhadores com baixa

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qualificação profissional. Grande parte dessas empresas se limita a atuação no mercado

local ou regional que tem pouca exigência na qualidade dos serviços e dos produtos.

No entanto, essa situação não deprecia a importante atuação e contribuição das

Micro e Pequenas Empresas na economia brasileira, pelo contrário, em muitas atividades

consideradas necessárias de conhecimento técnico e científico, como marketing e

publicidade, veterinária, arquitetura, desenvolvimento de softwares e informática têm

demonstrado grande dinamismo e atuação. São serviços que a carga de conhecimento

técnico e científico tem uma forte presença pessoal e qualificada. Nesse sentido, apresenta-

se um mercado de excelentes oportunidades de negócios aos empreendedores recém-

formados de nossas Universidades que estão preparados para desabrochar seus

conhecimentos que oferecem nas novas tecnologias.

Uma das grandes preocupações demonstradas nas políticas públicas na atualidade

está caracterizada pela alta informalidade no Brasil. Essa preocupação se evidencia na Lei

Complementar 128/2008 que criou regras extremamente facilitadoras, favorecidas e

diferenciadas ao Micro Empreendedor Individual – MEI. Existe certa dificuldade em obter

estatísticas precisas sobre a real dimensão desse fenômeno da informalidade no Brasil, em

um estudo relativamente recente do SEBRAE em 2005, sinalizou a existência de

aproximadamente 20 milhões de Micro e Pequenas Empresas Informais, envolvendo cerca

de 60 milhões de pessoas. (SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas

Empresas, 2012).

Esses dados revelam que grande parte das Micro e Pequenas Empresas têm sérias

dificuldades de entrar no mercado formal, quanto mais, se manter no mercado e expandir

suas atividades. Isso é fruto ainda de uma deficiência nas políticas públicas voltadas ao

desenvolvimento do segmento. Uma investigação realizada pelo SEBRAE revelou que no

ano de 2002, somente 50,6% das Micro e Pequenas Empresas sobreviveram no primeiro

ano de sua existência. A mesma investigação observou que a taxa de sobrevivência nos

dois próximos anos tinha um aumento significativo atingindo o expressivo número de 78%

no ano de 2005. A partir desses dados podemos concluir que diversos fatores de ordem

macroeconômicos e políticas públicas com foco na Micro e Pequena Empresa têm que ser

desenvolvido para melhorar as condições das atividades desse segmento.

Um dos focos atuais de políticas públicas no Brasil é a melhoria da atividade

inovadora nas Micro e Pequenas Empresas. Com o apoio do Ministério de Ciência e

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Tecnologia através do FINEP, o IBGE realizou uma sólida base estatística para análise da

atividade inovadora no Brasil. A quarta e mais recente edição estuda o período de

investigação entre os anos 2006 a 2008. Os dados para o período evidenciam que a maior

parte das inovações se concentra em produtos e processos novos para a empresa, mas já

existentes no mercado, envolvendo menores custos e riscos. Também apresenta um

número considerável de empresas com até 29 colaboradores que introduziram produtos

(3,6%) e processos (2,0%) novos no mercado brasileiro. No caso das Pequenas Empresas

que compreendem a categoria de 30 a 99 colaboradores, esses percentuais são próximo da

Microempresa, 4,1% e 1,9% enquanto o distanciamento para as Grandes Empresas é

visível, esses são de 27,1% e 18,8%. Essa análise demonstra a dificuldade da Micro e

Pequena Empresa em quanto a sua atividade de inovação, não por falta de criatividade ou

capacidade empresarial e muito mais porque esse segmento na sua maior parcela se

caracteriza pela atuação em setores tradicionais, porém, um terço se revela ativa em

processos inovadores apresentando ao mercado várias inovações. Vejamos o quadro a

seguir:

# Quadro 02 #

EMPRESAS QUE INTRODUZIRAM INOVAÇÕES POR TAMANHO, 1998-2008 (Em percentuais)

1998-2000

2001-2003

2003-2005

2006 - 2008

Número de Pessoas

Taxa de Inovação

Taxa de Inovação

Produto Novo por Empresa

Produto Novo por Mercado

Processo por Empresa

Processo novo por Mercado

10 a 29 25,3 30,4 29,8 37,4 20,2 3,6 29,6 2,0

30 a 99 37,6 34,5 35,8 37,6 19,6 4,1 30,7 1,9

100 a 499 51, 44,9 58,3 45,1 23,1 7,5 35,2 3,7

500 ou mais 75,6 72,6 79,6 71,7 40,6 27,1 56,0 18,8

Total 31,5 33,3 34,4 38,6 20,6 4,4 30,8 2,4

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Indústria, Pesquisa de Inovação Tecnológica, 2008, 2005, 2003 e 2000

Pelos aspectos estatísticos apresentados pode-se concluir que a situação de tensão

que vive a Micro e Pequena Empresa no Brasil não são nada fáceis em relação à

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concorrência com as empresas de maior porte. Essa situação estabelece uma convocação

imediata ao Estado brasileiro para cumprir o seu importante papel de estabelecer igualdade

através de políticas públicas positivas que fomentem e promovam o desenvolvimento

social e econômico desse importante segmento.

2.3. INSTRUMENTOS PÚBLICOS DE ESTÍMULO À PRODUÇÃO E INOVAÇÃO

Pretendemos nesse momento demonstrar os instrumentos utilizados na atualidade

pelo Estado brasileiro para estimular o desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas.

Esses instrumentos são um conjunto de iniciativas e programas governamentais de apoio e

fomento voltados para o financiamento de capital de trabalho e de investimentos, incentivo

à inovação e estímulo na criação e no fortalecimento de Micro e Pequenas Empresas de

base tecnológica.

O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) por meio do Plano de Ação em

Ciência e Tecnologia e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior

(MDIC) por meio do programa Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) têm esse

objetivo claro de atingir o desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas. De certa

maneira, se observa avanços, com iniciativas que caminham em sentido correto, mas que

necessitam crescer buscando a dinamização do conjunto do segmento e ampliar seu campo

de atuação. Em especial, no que se refere ao incentivo da inovação estamos ainda

engatinhando para um entendimento maior sobre a inovação que está restrita somente na

tecnologia de ponta em segmentos de conhecimento intensivo.

Uma visão geral das políticas e instrumentos para o financiamento das Micro e

Pequenas Empresas brasileiras é importante porque o sistema financeiro tem desenvolvido

uma gama de linhas de crédito voltada ao micro e pequeno negócio, ainda que, na nossa

análise, não seja o suficiente para atender a demanda de financiamento, comparada com as

experiências de outros países.

Na década de noventa, os bancos públicos e as agências de desenvolvimento

possuíam diversas linhas de crédito para o financiamento da produção, capital de trabalho,

equipamentos, exportações e desenvolvimento de capacidades tecnológicas, porém sem

distinção de porte, no qual, também podiam ser utilizadas pelas Micro e Pequenas

Empresas. A grande dificuldade era o acesso a esses financiamentos que normalmente

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ofereciam muitos obstáculos burocráticos exigindo uma organização acima da capacidade

dessas empresas. Isso contribuiu ao relativo fracasso dos programas de financiamento para

esse segmento.

As dificuldades que as Micro e Pequenas Empresas enfrentavam eram muitos,

mas podemos destacar dois que tradicionalmente ainda possuem. A primeira é adequar-se

às exigências para concessão dos créditos que estavam concebidos com foco em empresas

de maior porte e a segunda, o conflito entre a lógica comercial e política inerente sobre as

atividades desenvolvidas pelas Instituições Financeiras Públicas, causada por uma

crescente exigência de que os Bancos de Desenvolvimento deveriam converter recursos

públicos para Micro e Pequenas Empresas, sendo que esses tinham suas características

específicas e operações não estruturadas para atendê-las.

Citamos como exemplo, o BNDES, que tradicionalmente converte recursos ao

financiamento de projetos de grande porte e impactos econômicos. Ainda que tenha

priorizado linhas de crédito voltas para o segmento de pequeno porte, desde os anos

sessenta, os recursos eram disponibilizados através de uma rede de agentes financeiros

credenciados que não se interessam em trabalhar com o segmento por acreditarem que

possuíam uma baixa taxa de retorno comparada ao risco da inadimplência. Na década de

noventa, se implementou novas linhas de crédito e o aumento dos recursos para atender a

demanda das Micro e Pequenas Empresas, mas os resultados continuaram aquém do

desejado devido, principalmente, ao modelo de operação dos créditos.

Outras Instituições Financeiras Públicas também ofereceram linhas de crédito

para Micro e Pequenas Empresas, como o Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal,

com o objetivo de desenvolvimento regional e local nas regiões menos favorecidas. Além

disso, linhas de créditos tradicionais, voltadas aos pequenos produtores, formais e

informais, se colocaram em marcha por meio dos programas de microcrédito específicos

para pequenos produtores informais que operavam em uma estrutura familiar. Mesmo

assim, as Micro e Pequenas Empresas sofriam com a burocracia que incluíam várias fases

de trâmite necessários para operacionalizar a solicitação do crédito e as garantias exigidas.

Ainda, os bancos de desenvolvimento enfrentavam muitas dificuldades de

adaptação nos seus processos operacionais, pois tradicionalmente eram orientados para a

atenção às empresas de grande porte.

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Entre muitas das razões pela insuficiência na iniciativa implementadas no Brasil

na década de noventa podemos destacar (i) as dificuldades na convergência de políticas

macro e micro econômicas, (ii) o uso de instrumentos inadequados para a promoção das

Micro e Pequenas Empresas, que na sua grande parte eram inspirados em instrumentos e

exigências adequadas à empresas de grande porte e (iii) falta de prática da maioria dos

agentes financeiros em atender os Micro e Pequenos empresários e as atividades

associativas.

O tratamento privilegiado às Micro e Pequenas Empresas começam a sofrer

transformações após o ano de 2003 e observa uma considerável melhoria nas políticas

públicas que envolviam o acesso ao crédito estabelecidas no Plano Plurianual de 2004-

2007. Com destaque a participação das principais instituições bancárias, públicas e

privadas no Grupo de Trabalho Permanente dos Arranjos Produtivos Locais (GTP-APL) e

a implementação de linhas de crédito específicas para financiar os Arranjos Produtivos

Locais – APL. Esse é o reconhecimento de que o financiamento das Micro e Pequenas

Empresas incluídas nos APLs implicavam em menos riscos e melhores oportunidades.

Durante a Gestão do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, o BNDES teve grande

participação na execução das políticas públicas voltadas à Micro e Pequena Empresa.

Desde 2003, o banco tem buscado ampliar progressivamente seu campo de atuação, dando

ênfase ao desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas.

As operações de financiamento para o segmento de micro e pequeno porte

empresarial se efetivam por intermédio de instituições financeiras credenciadas que são

responsáveis pela análise, pelo estabelecimento de garantias e aprovação do crédito. Temos

como principais agentes credenciados os bancos comerciais que possuem uma grande

acesso a esse público.

Um instrumento interessante e inovador é o Cartão BNDES criado em 2003 que

teve uma excelente aceitação pela Micro e Pequena Empresa. Este cartão oferece um

crédito automático pré-aprovado para financiar investimentos produtivos, com taxa de

juros 1% ao mês. Há mais de 120 mil produtos que se podem ser adquiridos pelo cartão

como máquinas, veículos, peças, equipamentos de informática e software, equipamentos e

material de construção, que tenham a fabricação total ou parcial no Brasil. No ano de 2009

se introduziu a inovação no Cartão BNDES ao estabelecer a possibilidade de financiar a

compra de transferência tecnológica de serviços técnicos especializados em eficiência

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energética e impacto ambiental, desenho e criação de protótipos, soluções técnicas de alta

complexidade, melhoria de qualidade de produto e processo de software. No primeiro ano

de efetivação foram certificados 79 prestadores de serviços de inovação e realizou-se 62

operações de financiamento á inovação. (BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social)

O maior volume de desembolsos concedidos à Micro e Pequena Empresa, pelas

informações do próprio banco, se dão por meio do Fundo de Financiamento para Aquisição

de Máquinas e Equipamentos – FINAME. Trata-se de um dos instrumentos mais

tradicionais de financiamento de bens de capital que quando orientado para a

Microempresa, Pequena Empresa e Média Empresa representou 65% dos desembolsos do

BNDES para o segmento. Não há dados fornecidos pelo BNDES que particularizem a

participação somente da Micro e Pequena Empresa fato que com certeza será corrigido nas

próximas publicações da instituição para melhor análise da participação do segmento.

Outra importante ação do BNDES é a implementação do Programa de

Microcrédito instituído em 1996, que tem como objetivo promover a economia popular por

intermédio da oferta de recursos ao microempreendedor formal ou informal. O desembolso

do banco com este programa tem apresentado alguma oscilação positiva nos últimos anos.

Depois de 23,4 milhões de reais aplicados em 2008 e 19,5 milhões em 2009, se observou

um significativo crescimento em 2010, com um total de 58,1 milhões.

A criação do Fundo de Garantia para Investimentos em 2009 para Micro e

Pequenas Empresas com a finalidade de reduzir o risco de financiamento repassado pelo

BNDES também foi uma das medidas do Governo Federal a diminuir os efeitos da crise

financeira internacional e estimular o crédito.

O BNDES tem atuado significativamente como instrumento de políticas públicas

voltado ao desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas. Em 2010 o desembolso de

recursos chegou a 45.700 milhões de reais, o que resulta num aumento de mais de 90% em

relação ao ano anterior. Considerando que somente nas Micro e Pequenas empresas o

incremento foi de mais de 100% através de 417 mil operações de financiamento.

No entanto, os dados revelam que o BNDES não tem atingido o objetivo de

superar seu foco tradicional de emprestar recursos para as grandes empresas e projetos de

investimentos de grande porte. Isso fica claro ao analisarmos a participação relativa dos

recursos destinados para Micro e Pequenas Empresas e o total de desembolsos. Mesmo que

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em 2010 se tenha registrado o percentual mais alto dos últimos aos 27,1%, este não supera

o registrado em 2003 e 2004.

Esta questão é preocupante e fica mais evidente quando se considera que a

classificação de empresas por tamanho aplicado pelo BNDES é distinta da

costumeiramente empregada. Como já apresentado, a classificação para as empresas

consideradas pequenas pelo BNDES seriam na realidade Médias Empresas considerando a

classificação da LC 123/2006. As estatísticas disponibilizadas pelo Banco apresentam

somente os desembolsos para aquelas que consideram Micro e Pequenas Empresas, o que

inviabiliza uma leitura mais precisa dos dados, pois muitas das Médias Empresas estão

incluídas na estatística de desembolso como se fossem Micro e Pequenas Empresas.

# Quadro 03 # DESEMBOLSOS DO BNDES POR TAMANHO DE EMPRESA E PESSOAS FÍSICAS

Discriminação 2002

2003 2004

2005

2006

2007 2008 2009 2010

Micro e Pequena 2441 3439 3234 4014 6049 6049 9126 11620 23698

Média 2368 2613 2993 3768 4087 6079 8505 7247 13535

Subtotal 4808 6052 6227 7782 8108 12127 17631 18866 37233

Pessoa Física 3529 3972 6351 3880 3010 3939 4215 5053 8440

Subtotal MePE + Médiaᵃ

8337 10023 12578 11662 11117 16067 21846 23919 45673

Total de desembolsos

37419 33534 39834 46980 51318 64892 90878 137400 168400

Total % 22,3%

29,9% 31,6%

24,8%

21,7%

24,8% 24,0% 17,4% 27,1%

Fonte: http://www.bndes.gov.br

O PROGER – Programa de Geração de Emprego e Renda, criado pelo Ministério

do Trabalho e Emprego - MTE e o Conselho Deliberativo do Fundo de Assistência ao

Trabalho – CODEFAT são linhas oferecidas pelo BNDES. O Objetivo desse fundo é

financiar projetos de investimentos de Micro e Pequenas Empresas, que apresentem a

geração de empregos e renda. Há possibilidade de destinar os recursos tanto para o Capital

de Giro como para Investimentos. As empresas podem obter financiamento de até 80% do

valor do projeto no montante máximo não superior a 50 mil reais.

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Além do BNDES outros bancos públicos também têm desenvolvido linhas de

créditos voltados às necessidades da Micro e Pequena Empresa, em destaque o Banco da

Amazônia, Banco do Nordeste do Brasil, Banco do Brasil, e a Caixa Econômica Federal.

O governo brasileiro em 1999 criou a política de microcrédito com o objetivo de

ampliar o acesso ao financiamento para micro e pequenos empreendedores formais e

informais. A Lei 9.790/1999 determinou que as seguintes organizações sem finalidades

lucrativa pudessem oferecer o microcrédito: Organizações não Governamentais – ONG,

Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público e Sociedades de Crédito ao micro

empreendedor, sendo reguladas pelo Banco Central. Destaca-se que essas instituições não

lhes são permitidas a capitação de recurso no mercado e dependem de recursos do BNDES

e recursos públicos de âmbito municipal ou estatual. O ponto atrativo do microcrédito é o

baixo custo do crédito e os pequenos montantes que podem ser emprestados em média de

até 50 mil reais.

O Decreto 3.103/2003 também contribuiu para o Microcrédito no Brasil. Com o

objetivo de ampliação desse instrumento na busca de estimular a oferta de serviços

bancários para a população de baixa renda, criaram as contas simplificadas e o estímulo às

agências de microcrédito e cooperativas de crédito. Indicou-se aos Bancos Privados e

Públicos a emprestar 2% dos saldos captados em contas correntes para as operações de

crédito de pequeno volume com juros limitados a no máximo 2% ao mês, porém, se

observou uma baixa participação dos bancos privados que justificam que o risco é maior

que os juros limitados.

O PORTOSOL é uma experiência pioneira e interessante de microcrédito criada

no ano de 1996 em Porto Alegre. É uma instituição comunitária de crédito que apoia com

financiamentos de fácil acesso de R$200,00 a R$15.000,00 o desenvolvimento de

pequenos empresários e pessoas que trabalham na informalidade. O êxito dessa iniciativa

foi tão positivo que se chegou a mais de 130 milhões de reais financiados pelo

microcrédito.

Outra iniciativa positiva é o Programa de Microcrédito Produtivo Orientado –

CREDIAMIGO do Banco do Nordeste do Brasil, voltado às Micro e Pequenas Empresas.

O destaque ao êxito desse programa é a metodologia de aval solidário, no qual um grupo

de pessoas garante simultaneamente e espontaneamente a responsabilidade conjunta pelo

pagamento dos financiamentos. O banco oferece a orientação de melhor gestão dos

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recursos e a abertura e manutenção das contas bancária é sem custo ao integrante

correntista. Os volumes financiados variam de R$100,00 a R$6.000,00, podem chegar até

R$15.000,00. Esse programa já superou o total financiados de 2 milhões de reais em 2010.

No ano de 2005 foi instituído o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo

Orientado – PNMPO com o objetivo de incentivar a atividade produtiva e a geração de

emprego e renda, bem como, oferecer apoio técnico as instituições de microcrédito

produtivo. No início do programa, o valor máximo ao ano para acesso ao programa era de

60.000 reais, após 2008 foi aumentado para 120.000 reais. O Ministério do Trabalho e

Emprego, Ministério da Fazenda, Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério de

Combate a Fome compõem o Comitê Interministerial do PNMPO, demonstrado a sua

importância como Politica Pública no cenário Nacional.

O objetivo de consolidação do PNMPO buscou a aproximação entre as

instituições financeiras comerciais e instituições de micro crédito através da aquisição de

carteira e vinculação de outros serviços financeiros para concessão de créditos.

Estabeleceu-se um marco legal, com do regramento para repasse de recursos do banco

(depósitos especiais e FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador) para instituições de

microcrédito produtivo. Infelizmente estas mudanças tiveram poucos efeitos, reflexo de

uma tímida articulação do sistema bancário comercial e do sistema de microcrédito.

O SEBRAE também tem contribuído efetivamente no fortalecimento de diferentes

instrumentos de crédito. Com o Programa de Crédito Orientado aos Novos

Empreendedores (PCONE) que oferece linhas de financiamento para o

microempreendedor que deseja iniciar um negócio ou para que tenham um ano de

existência na atividade. O objetivo central do SEBRAE é a orientação ao Pequeno

Empresário na elaboração do plano de negócio, prestando assessoria técnica e análise do

perfil do microempreendedor. Os programas de incentivo ao cooperativismo de crédito e

apoio ao segmento de microcrédito buscam promover o desenvolvimento das modalidades

de crédito existentes no mercado além de ações de assessoria e capacitação empresarial.

Em 2006, um estudo realizado pelo Banco Central do Brasil estimou que naquele

ano haviam aproximadamente 220 operadores de microcrédito representados pela ONGs

no universo de 87%. Na sua posição geográfica brasileira 71% estavam situadas na região

sudeste, 5% na região nordeste, 18% na região sul e 6% nas regiões norte e centro do país.

Recentes dados de 2011 do PNMPO indicam a existência de 338 instituições de

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microcrédito produtivo habilitadas. Interessante salientar que a taxa de inadimplência do

microcrédito no Brasil é baixíssima de aproximadamente 4% contra 20% de empréstimos

comerciais normais das instituições bancárias comerciais.

O microcrédito como instrumento de política pública voltada ao desenvolvimento

socioeconômico e estímulo ao micro empreendedorismo no Brasil tem alguns desafios para

sua expansão que podemos destacar alguns pontos como (i) atingimento nas comunidades

localizadas no interior e norte do país, (ii) dificuldades de lideranças locais com

conhecimentos sobre a existência do microcrédito, (ii) escassez de recurso,

primordialmente de instituições que estão em seus estágios iniciais, (iii) baixa participação

do capital privado, (iv) poucas pessoas qualificadas na atividade de gestão, (v) restrições

técnicas e institucionais das OGNs, (vi) dificuldade de determinação do tamanho do

mercado, (vii) dificuldades de acesso a assistência técnica e assessoramento.

Os desafios para o aumento do microcrédito no Brasil são enormes, assim como, a

ampliação das políticas públicas voltadas ao estímulo das Micro e Pequenas empresas. Nos

últimos anos, devemos considerar que tem havido um crescente volume de recursos

voltados ao crédito desse segmento. Isso se deve ao significativo incremento de volume de

crédito no Brasil, do cenário de estabilidade e crescimento econômico e as políticas

macroeconômicas e de crédito adotadas.

Os mecanismos de incentivos potencializaram a estabilidade durante o período da

crise financeira internacional de 2008 e 2009. A percepção de que questões como a

dificuldade de acesso ao crédito pelas Micro e Pequenas Empresas não foram por todo

resolvido. Além disso, fatores relacionados ao contexto de política macroeconômica são

historicamente fatores que criam obstáculos de acesso das Micro e Pequenas Empresas ao

crédito e contribuem ao aumento do spread bancário que podem ser reduzidos.

A Lei Complementar 123/2006, com a simplificação dos procedimentos para a

arrecadação de tributos e a das exigências quanto à manutenção dos registros contábeis tem

colaborado para ampliar a base de empreendimentos aptos para receber o financiamento.

Os esforços de capacitação empresarial pelo SEBRAE e do IEL podem ser motivos de um

menor risco na avaliação do crédito. A dificuldade de oferecer garantias reais pode ser

reduzida com a consolidação de fundos garantidores de créditos para Micro e Pequenas

Empresas. Os fatores de custo financeiro podem ser mitigados na medida em que a taxa de

juros pode ser fixa e atrelada a TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo. E finalmente,

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mecanismos que oferecem crédito pré-aprovado como o Cartão BNDES são alternativas de

simplificação de procedimentos burocráticos na concessão de crédito à Micro e Pequena

Empresa de recursos provenientes do Governo Federal.

Dessa maneira, podemos analisar que diferentes iniciativas de políticas públicas

orientadas ao financiamento das Micro e Pequenas Empresas estão avançando na direção

correta. O desenvolvimento de algumas iniciativas recentes somente se poderá verificar sua

efetividade no decurso dos anos. Ademais, muitos atores e organizações representativas

concordam em que existem muitos desafios a serem transpostos, especialmente quando

tratamos de uma redução das assimetrias da informação entre instituições financeiras e

pequenos empreendedores, a redução dos riscos das operações de crédito e a redução dos

custos de concessão de crédito. (COSTA, 2010)

A Lei 10.973 de 02/12/2004, Lei da Inovação, busca regular e promover uma

maior interação entre as empresas e centros de investigação, facilitando a utilização de

laboratórios públicos e serviços tecnológicos pelas empresas. Esta Lei regulamenta a

criação de empresas de base tecnológica por investimentos de instituições públicas, como

também estabelece a subvenção econômica para projetos inovadores das empresas. Este

novo marco regulatório prevê a criação de novas instituições para coordenar e reforçar a

articulação entre as políticas governamentais e estratégias empresarias, tais como o

Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) e a Agência Brasileira de

Desenvolvimento Industrial (ABDI), bem como, a reestruturação do Instituto Nacional de

Propriedade Industrial (INPI) e a regulamentação da Lei de Biossegurança. Isso tudo vem a

colaborar e contribuir para um ambiente mais propício para desenvolvimento tecnológico

das empresas brasileiras e nelas incluídas as Micro e Pequenas Empresas.

O Governo brasileiro também desenvolveu outro instrumento para fortalecer o

financiamento com o objetivo de estimular a inovação nas Micro e Pequenas Empresas

criando fundos setoriais especiais. O Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia (FNDCT) é

administrado pelo FINEP em conjunto com o CNPQ, desde 1999 até 2010 foram criados

18 fundos setoriais especiais direcionadas especificamente para Micro e Pequenas

Empresas, com gestão compartilhada entre governo, indústria e instituições acadêmicas em

várias áreas de interesse.

O modelo de gestão compartilhada de fundos setoriais criada no governo Lula,

tem o objetivo de promover ações transversais não incluídas em setores já beneficiados por

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fundos de ciência e tecnologia existentes. Essas ações transversais são projetos estratégicos

que utilizam 50% dos recursos de fundos setoriais para promoção de Arranjos Produtivos

Locais, empresas incubadoras, parques tecnológicos e para financiar iniciativas que

promovam a inovação da indústria.

Outro marco legal importante para apoio à inovação industrial das Micro e

Pequenas Empresas é a Lei 11.196/2005, conhecida como a “Lei do Bem”, que estabeleceu

deduções fiscais para projetos de investigação e desenvolvimento, reduzindo impostos de

importação para a aquisição de máquinas e equipamentos com a subvenção de até 60% dos

saldos investidos diretamente na atividade inovadora das empresas. Esse mecanismo

favorece Micro e Pequenas Empresas na possibilidade de que grandes empresas podem

deduzir seus impostos fiscais investindo nas Micro e Pequenas Empresas que se dedicam

ao desenvolvimento tecnológico. O objetivo primordial desse instrumento é incentivar a

colaboração tecnológica entre as empresas de diferentes portes.

As transformações institucionais e com a crescente relevância dada ao papel da

tecnologia e inovação na competitividade da indústria brasileira, nos últimos anos se

criaram diversos programas e instrumentos. Muitos desses se apresentam em programas de

política recente como PITCE e PACTI e podem situar-se para efeitos dessa análise em três

partes: fomento das atividades inovadoras, empresas emergentes e capitais de risco, e

parques tecnológicos e incubadoras.

A política nacional de ciência tecnologia e inovação é ampla e envolve diferentes

Ministérios e Órgãos Federais que realizam ações em áreas definidas. No que diz respeito à

atividade de fomento das atividades inovadoras em empresas podemos destacar a FINEP –

Financiadora de Estudos e Projetos, vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia e o

BNDES, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

Uma das ações interessantes do FINEP é o programa “Juro Zero” criado em 2004,

com o objetivo de estimular o desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas

Inovadoras nos aspectos gerenciais, comerciais, de processos ou produtos e serviços,

viabilizando o acesso ao crédito. Esse busca superar as dificuldades que enfrentam as

Micro e Pequenas empresas de acesso ao crédito quanto as garantias reais. Beneficiam-se

empresas desse segmento inovadoras, vinculadas aos setores de semicondutores, software,

bens de capital, fármacos e medicamentos, biotecnologia, nanotecnologia e biomassa que

necessitem de financiamento de R$100.000,00 a R$900.000,00 sem juros, somente

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incidindo a correção monetária pelo INPC e as garantias são compostas em 20% por aval

pessoal dos sócios da empresa ou de terceiros, 30% pelo fundo de reserva e 50% pelo

fundo de garantia de crédito.

O Programa “Juro Zero” tem enfrentado dificuldades de implementação,

funcionando em três Estados do país. Sua principal dificuldade tem sido a falta de

disposição dos governos estaduais e outras organizações para destinar recursos para

construção dos fundos de garantia previstos pelo programa que devem prover 50% das

garantias. A limitada cobertura se manifesta nos números entre 2007 e 2010, onde haviam

sido beneficiados 47 projetos. (RESENDE, 2010)

São inúmeros os programas de fomentos voltados para inovação, porém na mesma

proporção são enormes as dificuldades de implementação pelo motivo de falhas no

processo de divulgação e a na falta de articulação entre governos federal, estaduais e

municipais. Através da Investigação sobre Inovação e Tecnologia (PINTEC) podemos

analisar o impacto das iniciativas de políticas de fomento à inovação.

Esses dados apresentados no próximo quadro se referem ao número de empresas

inovadoras que se beneficiaram de distintos modelos de fomento. Ainda que os dados

sejam restritos as empresas que inovaram, representam uma boa amostra, principalmente

se levarmos em conta que a PINTEC também considera as inovações que são novas só

para a própria empresa. Esses dados se referem ao período de 2006 e 2008, infelizmente

não refletindo os resultados mais recentes como os programas do BNDES Capital Inovador

e Inovação Tecnológica de 2008, o SIBRATEC criado em 2007, mas em consolidação e os

programas PRIME de 2009 e Pappe Integração de 2010 pela FINEP.

# Quadro 04 # EMPRESAS QUE RECEBERAM APOIO PÚBLICO PARA SUAS ATIVIDADES INOVADORAS, POR

TIPO DE PROGRAMA, SEGUNDO FAIXA DE PESSOA OCUPADO, 2006 A 2008 Atividade Selecionadas de Indústria e Serviços

Incentivo Fiscal

Financiamento

Total Total P&D Lei da Informática

Subvenção Econômica

Projetos de P&D e Inovação Tecnológica Sem aliança com Universidades

Projetos de P&D e Inovação Tecnológica Sem aliança com Universidades

Para Compra de Máquinas e equipamentos usados para inovar

Outros programas de apoio

10 a 29 25842 21,4 0,5 1,9 0,6 1,4 0,7 12,8 7,1

30 a 99 10513 22,1 0,6 1,3 0,4 0,9 0,9 15,1 6,9

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100 a 499 3612 24,2 2,2 2,0 1,2 1,2 1,6 14,1 8,2

500 e mais 1295 36,5 16,4 3,6 4,6 5,2 4,8 11,4 9,4

Total 41262 22,3 1,2 1,8 0,8 1,4 0,9 13,5 7,2

Fonte: IBGE, Pesquisa Brasileira de Inovação Tecnológica – PINTEC 2008

Observa-se que os distintos programas de inovação apresentados na investigação

resultaram muito menos relevantes para Micro e Pequenas Empresas. O foco em inovação

incrementada e atualização tecnológica refletem a importância maior das linhas de

financiamento dirigidas para aquisição de máquinas e equipamentos. Infelizmente, a

investigação apresenta inclinação a favor das atividades inovadoras consideradas de maior

conteúdo tecnológico e mais próximas das barreiras tecnológicas. Entretanto os programas

relacionados com P&D são enumerados, os conjuntos de programas que podem ser mais

relevantes para Micro e Pequenas Empresas se mostram agrupados dificultando a nossa

análise.

Os dados mostram que os principais beneficiários das políticas de fomento à

inovação foram, em números relativos, as grandes empresas. Aproximadamente 36,5% das

grandes empresas inovadoras foram favorecidas com alguma iniciativa, enquanto que o

percentual foi de 22,1% para as Pequenas empresas e 21,4% para o setor formado por

Microempresas. O baixo impacto sobre as Micro e Pequenas Empresas resulta mais

evidente se consideramos que o número de empresas que receberam apoio foi de 7.866,

que representa 0,87% das mais de 900.000 empresas industriais brasileiras. Esta situação

se expressa em taxas de inovação mais elevadas nas grandes de 71,7% e médias de 45,1%

do que nas Pequenas de 37,6% e nas Microempresas de 37,4%.

A política pública brasileira de ciência, tecnologia e inovação têm representado

algum resultado no esforço de superar a tendência de estimular a grande empresa em maior

conteúdo tecnológico. Um exemplo disso, encontramos nos dados referentes a projetos

apoiados pela subvenção econômica, com recursos na ordem de 360 milhões de reais para

2009 e 500 milhões de reais para 2010. Como se apresenta do gráfico a seguir, os esforços

para ampliar a participação das Micro e Pequenas Empresas têm produzido algum efeito,

ainda tímido, mas chegando as 81% no ano de 2009.

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# Gráfico 1 #

Subvenção Econômica: Distribuição dos Número de Projetos Apoiados por

Tamanho de empresa, 2006-2009

(em percentuais)

Fonte: MCT, 2010

Em verdade o que se observa, sobre a base dos tipos de instrumentos criados é

uma gradual ampliação do que se considera inovação, avançando mais no tradicional

fomento a empresas inovadoras de base tecnológica, que compreendem somente uma

pequena fração do universo das Micro e Pequenas empresas no Brasil. Inciativas recentes,

como o financiamento de serviços de consultoria, capacitação, fomento a cooperação e o

apoio do SIBRATEC, que busca resolver também os problemas tecnológicos mais básicos

e pertinentes à ampliação do universo de Micro e Pequenas Empresas, merecem

consolidar-se em larga escala. Esse processo é desenvolvido fundamentalmente pelas

iniciativas do SEBRAE, o SENAI e IEL que têm grande capilaridade e conhecimento das

realidades regionais e produtivas específicas das Micro e Pequenas Empresas. (SEBRAE -

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, 2012)

3. A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL 2008-2009

Os impactos da crise financeira internacional se fizeram sentir de forma mais

intensa nas economias dos países desenvolvidos, gerando uma significativa diminuição na

demanda por importações, bem como uma redução da oferta crédito nos mercados

internacionais. Este impacto afetou mais as médias e grandes empresas brasileiras que

micro e pequenas. São as grandes empresas que possuem significativamente maior parte

Grande Média Pequena e Micro

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das exportações e as que podem acessar a recursos no mercado financeiro internacional

que eram mais fáceis antes da crise econômica.

As Micro e Pequenas Empresas brasileiras reúnem uma série de características e

condições que as tornaram menos suscetíveis aos efeitos da crise. Essas empresas têm

menos flexibilidade para ajustar-se a variações da demanda pela redução da mão-de-obra,

ainda, é reduzido o número de exportadora focando no mercado interno, o modelo de

desenvolvimento aplicado nos últimos anos priorizou o aumento do ingresso dos setores de

menor renda, o que justificou a incorporação de novos segmentos ao mercado consumidor

e uma significativa expansão do consumo das classes mais baixas, mercados com maior

participação relativa de Micro e Pequenas Empresas, e finalmente, há que demonstrar que

essas empresas dificilmente demandam ao mercado financeiro internacional, dependendo

para esse efeito do mercado de crédito doméstico.

A orientação ao mercado interno e o maior participação nos mercados de

segmento popular, coincidem com o padrão de desenvolvimentos dos últimos anos. Em

referencia ao crédito, se verificou um importante esforço pelo Governo Federal na

ampliação das linhas e volume de recursos a disposição das Micro e Pequenas Empresas,

permitindo um cenário prévio favorável, somado ao conjunto de iniciativas de política,

contribuíram que o impacto da crise fosse relativamente menor sobre este setor

empresarial. Na época foram muitos os artigos e declarações na imprensa que qualificaram

as Micro e Pequenas Empresas como o “porto seguro” diante da crise ou como foco

prioritário para a superação desta.

Isso não significa que as Micro e Pequenas empresas estão imunes pela conjuntura

mundial. Essas se viram afetadas por uma relativa redução da demanda do mercado interno

e por uma menor oferta de crédito, sobretudo no que se refere às linhas convencionais dos

bancos comerciais. A queda do faturamento terminou por gerar uma maior demanda por

crédito imediato, que por sua vez o mercado não supria. Na medida eu o crédito no

mercado internacional se restringia, as empresas de grande porte encaminhavam sua

demanda ao mercado financeiro doméstico, provocando maior “competência” pelos

recursos disponíveis. No final do ano 2008 e no primeiro trimestre de 2009, o volume de

operações de crédito para pessoas jurídicas por montantes de até 100.000 reais permaneceu

quase sem demanda no país. Os empréstimos bancários por montantes entre 100.000 e 10

milhões de reais mostraram um baixa de 4,4% e, no contrário, as operações de montante de

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10 milhões de reais cresceram 5,4%. (SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e

Pequenas Empresas, 2012)

Um conjunto de medidas foram implementadas pelo Governo Federal para

minimizar os impactos econômicos. Essas medidas priorizavam áreas com grande efeito

multiplicador sobre os segmentos produtivos e de grande potencial na geração de

empregos. Essas medidas podem sintetizar nos seguintes pontos: (i) a manutenção do PAC

– Programa de Aceleração do Crescimento, (ii) Programa “Minha Casa Minha Vida”, (iii)

Programa de Sustentabilidade de Investimentos, (iv) Fomento ao Crédito para Micro e

Pequenas Empresas e (v) Iniciativas de caráter temporal. Nessa última medida emergencial

o BNDES teve um papel fundamental na manutenção da economia promovendo a

rebaixamento das taxas de juros e dando manutenção aos investimentos.

Os resultados atingidos pelas medidas aplicadas tiveram uma repercussão

positiva. No período mais grave da crise no final de 2008, as disponibilidades de recursos

para Micro e Pequenas Empresas mostram uma tendência de aumento, ainda que em

índices menores que nos anos anteriores e posteriores a crise.

O próximo gráfico representa a evolução do volume de crédito no Brasil destinado

a pessoas jurídicas.

# Gráfico 2 # Volume de Crédito no Braisl, segundo fontes, Programas e Tamanho de Empresa

Beneficiada, Valores Correntes – Números Índice (2002 =100)

Fonte: Banco Central do Brasil, BNDES e BND

BNB Crediamigo BNDES MPES BNDES Total

Total de Créditos PJ – recursos externos Total de Crédito PJ – Recursos domésticos

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Observa-se que o volume global de crédito oriundo de fontes domésticas, o

mesmo que os desembolsos do BNDES mantiveram uma trajetória de crescimento a longo

da crise, contrastando a significativa redução de disponibilidade de recursos no mercado

internacional. Os dados disponíveis para o principal programa de microcrédito do país e

desembolso do BNDES para Micro e Pequenas empresas mostram um crescimento ainda

mais expressivo. Interessante notar que, justamente em 2008, se observa uma tendência de

incremento nos desembolsos para Micro e Pequenas Empresas, superior ao aumento de

volume global de crédito para pessoas jurídicas. Isso sugere que as iniciativas descritas

anteriormente, especialmente da ampliação do volume de crédito disponível, para

constituição de fundos de garantias, a disseminação do Cartão BNDES e os incentivos

tributários, lograram efeitos positivos e concretos.

Por todo o exposto, conclui-se que a estratégia para promover uma diminuição

dos efeitos da crise e a rápido recomeço do crescimento foi obtido através do fomento para

Micro e Pequenas Empresas, o conjunto de iniciativas implementadas antes da crise e as

medidas específicas adotadas que resultaram de forma eficaz para dinamizar nossa

economia. As perspectivas recentes da estratégia de política pública de governo da

presidenta Dilma Rousseff indicam um aprofundamento nessa tendência, com a

centralidade nas Micro e Pequenas Empresas e a ênfase no desenvolvimento através da

inclusão produtiva.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A formulação e implementação de políticas para desenvolver a Atividade de

Fomento às Micro e Pequenas Empresas no Brasil é uma experiência recente. Durante o

século XX, a industrialização esteve fortemente baseada no Fomento do Estado ao

desenvolvimento da estrutura produtiva das grandes empresas. As iniciativas de fomento

ao universo das empresas de menor porte constituíam um tema de menor agenda no

Governo Brasileiro.

Destacamos dois importantes marcos institucionais e legais que provocaram o

início de um processo de construção à atividade de fomento das Micro e Pequenas

Empresas. O primeiro foi a criação na década de setenta, de um Centro de Negócios para

as Micro e Pequenas Empresas que resultou depois no Serviço de Apoio às Micro e

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Pequenas Empresas –SEBRAE. O segundo foi a criação na década de noventa da primeira

legislação específica para o setor a Lei 9.317/1996 – Lei das Micro e Pequenas Empresas e

a Lei 9.841/1999 - Estatuto das Micro e Pequenas Empresas.

Estas legislações possuíam no seu cerne a Atividade Fomentadora do Estado

Brasileiro às Micro e Pequenas Empresas em cumprimento à determinação no texto

constitucional de 1988 dos artigos 149, 170, IX e 179.

Porém, o reconhecimento dos mecanismos de políticas e instrumentos ocorreu de

forma muito lenta causados por um período marcado por uma forte orientação de políticas

macroeconômicas, em detrimento de políticas industriais e tecnológicas, que dificultou a

implementação de políticas de fomento das Micro e Pequenas Empresas.

As Ausências dessas políticas são resultado de uma grande dificuldade para

incluir questões de fomento destinado a essa classe empresarial de menor porte na

planificação do Governo e também no âmbito de prioridades governamentais. Isso ocorria

a tal ponto que as Micro e Pequenas Empresas não eram um tema relevante da agenda

governamental e as políticas de apoio ocorriam fora do governo federal, com as atividades

do SEBRAE e das administrações estaduais e municipais.

Apesar das políticas de fomento não serem consideradas na agenda

governamental, na esfera executiva do governo federal, haviam visíveis ações e esforços de

alguns ministérios. Porém, não havia efetividade na aplicação das políticas, porque as

iniciativas colidiam com os objetivos das políticas macroeconômicas desenvolvidas nos

anos noventa.

Nesse cenário, os micro e pequenos empresários tinham enormes dificuldades

para financiar seus negócios e muitos optavam por fechar seus estabelecimentos e trabalhar

na informalidade. As restrições de ordem macroeconômica contribuíram para neutralizar

os esforços de uma implementação de políticas industriais e tecnológicas, bem como, a

reformulação de linhas de financiamento voltadas para às Micro e Pequenas Empresas.

Esse período caracteriza-se por uma relativa ausência de consenso na formulação

de políticas públicas com vistas à prioridade do fomento que deveria ser dada para estas

questões. O governo federal, sobretudo, priorizava as políticas de estabilização monetária,

desestatização, a privatização, a desregulamentação da economia, seguindo os preceitos

neoliberais dos anos noventa.

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Ao final dessa década, como não poderia ser diferente, as reformas geraram

impactos negativos sobre diversos segmentos econômicos e em especial nas Micro e

Pequenas Empresas. Muitas ações buscaram mitigar esses efeitos danosos como ações para

aumentar o nível de produção e emprego, eliminar o déficit da balança comercial e

intensificação do ritmo das inovações tecnológicas. Estas iniciativas foram de curta

duração, pois as restrições macroeconômicas tinham uma fraca articulação entre os

distintos programas e os organismos responsáveis pela sua execução.

A partir do primeiro Governo Lula (2003-2006) o cenário modifica-se e se

introduz importantes inciativas de fomento as Micro e Pequenas Empresas. Observa-se que

pela primeira vez, a política de fomento às Micro e Pequenas Empresas passa a ser parte da

estratégia mais ampla do Estado brasileiro, buscando ampliar o fomento da

competitividade da estrutura produtiva e o desenvolvimento regional do país.

A Lei Complementar 123/2006 que instituiu o Estatuto Nacional da

Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e muitas outras inciativas foram

consolidadas e ampliadas ao longo do segundo Governo Lula (2007-2010), período que se

apresentou propício para impulsionar o plano de políticas industriais e de inovação com

uma perspectiva de desenvolvimento à longo prazo.

As perspectivas do governo Dilma que se apresenta na atual gestão, em grande

parte apresenta-se como uma extensão das diretrizes gerais que já vinham guiando a gestão

do Governo Lula. Enfatiza-se cada vez mais a relevância das Micro e Pequenas Empresas,

não só como geradoras de empregos e renda, mas também como elementos dinâmicos de

desenvolvimento do sistema produtivo, seja nas atividades tradicionais como em áreas

intensivas no conhecimento e alto conteúdo tecnológico.

Nesse último tempo não se têm indicado rumos muito diferentes na política de

fomento para as Micro e Pequenas Empresas. A opção tem sido a consolidação e

ampliação das atividades fomentadoras com êxito recentes. Desta forma, se observa uma

contínuo esforço para estender a participação das Micro e Pequenas Empresas como

beneficiárias de linhas de financiamento, incentivos a inovação, programas de capacitação

e de fomento as exportações.

Um critério central do atual programa de governo é dar continuidade ao projeto de

desenvolvimento que assegure um grande e sustentável desenvolvimento na transformação

produtiva do Brasil. Nesse contexto, as Micro e Pequenas empresas sobressaem como

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elemento impulsionador da economia. Tanto assim, que as diretrizes gerais destacam a

importância de conciliar desenvolvimento das grandes e médias empresas com das micro e

pequenas empresas e de fomentar o espírito empresarial.

A referência atribuída as Micro e Pequenas Empresas trazem consigo a discussão

a respeito da necessidade de promover mudanças no marco institucional de apoio. Disso se

desprende ao debate da pertinência da proposta de criação de um Ministério ou Secretaria

de Estado exclusivamente dedicada as Micro e Pequenas Empresas para a Atividade de

Fomento Estatal no cumprimento das políticas públicas.

REFERÊNCIAS

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Versiani, Trad.) Barueri, SP: Manole. COSTA, F. N. (Abril de 2010). Microcrédito no Brasil. IE/UNICAMP(175). GRAU, E. R. (2010). A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (14ª ed.). São Paulo:

Malheiros. KOLADICZ, A. C. (2009). A Atividade Empresarial Socioambientalmente Responsálvel e

Sustentável pela Via do Fomento Estatal. CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO. Curitiba, PR, Brasil.

Lei Complementar 123/2006. (s.d.). MELLO, C. A. (2011). O Contéudo Jurídico do Princípio da Igualdade (3ª ed.). São

Paulo: Malheiros. MELLO, C. B. (2011). Curso de Direito Administrativo (29ª ed.). São Paulo: Malheiros. ORTIZ, G. A. (2004). Principios de derecho público económico (3ª ed.). Granada:

Comares. RESENDE, S. M. (15 de Dezembro de 2010). Balanço Sintético do PACTI e metas para

2022. Brasília. ROCHA, S. F. (2003). Terceiro Setor. São Paulo: Malheiros. SEBRAE - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. (2012). Análise do

Emprego Fevereiro/2012. São Paulo: Sebrae.

COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 26 - Direitos Sociais e Políticas Públicas II

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POR UMA NOVA INTERPRETAÇÃO EM BUSCA DA EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS FRENTE À SOCIEDADE DO RISCO

BY A NEW INTERPRETATION IN SEARCH OF EFFECTIVENESS OF PUBLIC POLICY FRONT OF RISK TO SOCIETY

LUCAS ANTÔNIO BUENO

RESUMO

O presente trabalho trata de um estudo acerca da sociedade de risco e da efetividade das políticas públicas que os atores sociais podem conceder diante desta sociedade. O estudo é composto e objetiva essencialmente a discussão sobre a sociedade de risco e a necessidade de concretização das políticas públicas perante esta sociedade de iminente risco, a atuação dos atores sociais no sentido de dar concretude às políticas públicas, a sua judicialização como uma das saídas possíveis à efetivação, o neoconstitucionalismo como um modelo adequado visando os objetivos da república e a cooperação entre os poderes como uma forma de efetivar tais objetivos de forma sustentável, dentre eles as políticas públicas. Assim a justificativa do estudo está calcada na constatação que a sociedade de risco atual em que vive a sociedade brasileira criou historicamente mazelas sociais que devem ser contornadas com políticas públicas efetivas, através da força de atuação conjunta dos atores sociais e também da judicialização destas políticas. Na confecção do trabalho fora utilizada essencialmente um estudo bibliográfico revisando a literatura até agora escrita sobre o tema e documental consistente na analise de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Assim será utilizado o raciocínio dedutivo partindo da realidade geral da sociedade de risco, para um estudo especifico da sociedade brasileira e de como efetivar estas políticas públicas com qualidade alcançando de forma sustentável os objetivos da república por intermédio de uma nova interpretação neoconstitucional. Assim se observará que falar em sociedade de risco e no seu combate é falar em efetivar com qualidade políticas públicas, bem como ainda seu reverso é verdadeiro, a falta de efetividade destas políticas gera, por consequência, uma sociedade de risco que somente poderá ser rompida deste ciclo através de uma atuação cooperativa dos poderes da república e da atuação conjunta dos atores sociais privados e estatais, sem perder de vista a necessidade de uma interpretação neoconstitucional para a verdadeira efetivação das políticas públicas, um dos objetivos da república. Palavras-chave: sociedade de risco; efetivação de políticas públicas; cooperação entre os atores sociais; neoconstitucionalismo;

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ABSTRACT

The current article is about study of the society of risk and the effectiveness of public policies that social agents may grant to this society. The study is composed and its essential purpose is the discussion of the society of risk and the need for achievement of public policies towards this society of imminent risk, the role of social workers in order to give concreteness to its legalization and one of the possibilities to its execution, the new constitutionalism as a way to accomplish these goals in a sustainable among public policy. So, the rationale of this article is the finding Brazilian society historically created social ills that must be bypassed with effective public policy, through the power of joint action of the powers of the republic and of social agents and also the judicialization of this policy. It was used in the preparation of this article a bibliographic study reviewing the literature so far written on the subject and documentary analysis of the consistent decisions of the Federal Supreme Court. So, it will be used a deductive reasoning based on the general reality of the society of risk for a specific study of Brazilian society and how accomplish these public policies for achieving the goal of sustainable form of republic through the intermediary of a new constitutional interpretation. Thereby, we conclude that speaking in society of risk is speaking in accomplish policies with quality, and its reverse is also true, the lack of effectiveness of these policies produce a society that can only be ruptured this cycle through a cooperative action of the powers of republic and joint efforts of private and state social agents without losing sight of the need for a new constitutional interpretation so that there is true execution of public policy that is also one of the goals of the republic. Keywords: Society of risk; execution of public policy; joint performance of the judicial powers; new constitutionalism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1 A SOCIEDADE DE RISCO E A EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS

PÚBLICAS

1.1 A sociedade de risco

1.2 A efetividade das políticas públicas como uma forma de combate à sociedade de risco

CAPÍTULO 2 A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A NOVA

INTERPRETAÇÃO NEOCONSTITUCIONAL: em busca dos objetivos sustentáveis da

república

2.1 A judicialização como uma das saídas para a efetividade das políticas públicas

2.2 O neoconstitucionalismo como modelo adequado de interpretação visando à

efetividade dos objetivos da república

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

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INTRODUÇÃO

Este artigo trata de um estudo sobre a sociedade de risco e a necessidade de

efetivação de políticas públicas para fazer frente a esta sociedade de iminente caos por

intermédio de uma atuação conjunta dos atores sociais, privados e públicos.

Assim a investigação gira em torno da constatação da sociedade do risco em que

vive a sociedade, notadamente a brasileira; como efetivar políticas públicas de qualidade

para enfrentar estes riscos; a judicialização como uma das saídas possíveis na concretização

destas políticas; o neoconstitucionalismo como um modelo adequado para a efetivação das

políticas públicas; e a atuação conjunta dos atores sociais para alcançar com sustentabilidade

os objetivos da república.

Justifica-se a escolha do tema pela constatação que a sociedade de risco atual em

que vive a sociedade brasileira criou historicamente mazelas sociais que devem ser

contornadas com políticas públicas efetivas, através da força de atuação conjunta dos

poderes da república e dos atores sociais e também da judicialização destas políticas.

Para a consecução deste trabalho foi realizado um estudo essencialmente

bibliográfico revisando a literatura até agora escrita sobre o tema e documental consistente

na analise de decisões do Supremo Tribunal Federal. Para tanto será utilizado um raciocínio

dedutivo partindo da realidade geral da sociedade de risco, para um estudo especifico da

sociedade brasileira e de como efetivar estas políticas públicas com qualidade alcançando de

forma sustentável os objetivos da república por intermédio de uma nova interpretação

neoconstitucional.

O trabalho é composto de dois capítulos sendo que no primeiro se aborda a

sociedade de risco e a efetivação das políticas públicas no enfrentamento desta sociedade.

No segundo capítulo aborda a questão da judicialização como uma forma possível de

concretização destas políticas, no caso de falha, de omissão dos atores sociais e a

perspectiva do neoconstitucionalismo como um modelo adequado de interpretação visando o

cumprimento dos objetivos da república.

Neste sentido o trabalho em linhas gerais trata da necessidade de efetivação com

qualidade das políticas publicas para enfrentar a sociedade de risco que solapa a sociedade

brasileira, alcançando assim, de forma sustentável, os objetivos da república postos como

um dos comandos constitucionais que deve se concretizar não podendo esperar mais 25 anos

para que isto aconteça.

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CAPÍTULO 1 A SOCIEDADE DE RISCO E A EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS

PÚBLICAS

1.1 A sociedade de risco

A transformação da sociedade industrial para a sociedade moderna trouxe diversos

avanços científicos e tecnológicos em inúmeras áreas do conhecimento, da produção de

alimentos, na produção de outros bens de modo geral e em diversas tecnologias que surgem

a cada dia até o momento atual.

Fruto de uma ideologia em que se acreditava que somente com o avanço

tecnológico, o crescimento econômico, o conhecimento e domínio da natureza o homem

conseguiria se desvencilhar das mazelas seculares que o acompanham e melhorar sua

qualidade de vida.

Ocorre que juntamente com este pensamento de avanço, de crescimento, a história

humana deixou para trás rastros de destruições no seu processo evolutivo-tecnológico que

teve seu marco na sociedade industrial desaguando na atual sociedade de risco que solapa

quase todos os rincões do mundo e de forma acentuada a sociedade brasileira. O modelo de

progresso da sociedade industrial gerou uma sociedade de risco, o processo de

industrialização da forma em que foi pensado sempre esteve ligado ao processo de produção

de risco.

Barroso (2006, p. 10/11) explica esta mudança informando que:

praticamente, junto com a Revolução Francesa, representa o começo do processo de modernização, um fenômeno complexo, de amplo fôlego e multidimensional, que acontece em períodos de tempo diferentes e em todos os setores do sistema social, a que corresponde o paradigma da modernidade. [...] Com efeito, conduziu a relevantes reflexos econômicos e políticos além dos sociais, no ocidente.

Na mesma esteira o autor informa ainda (2006, p. 15) que assim:

surge a sociedade tecnológica, modelo de organização político-social estreitamente vinculado aos fatores condicionantes de uma sociedade pautada na utilização e incremento da tecnologia e circundado pela orientação capitalista.

A sociedade do risco surge, portanto de um avanço desordenado da ciência e da

tecnologia que tem por sua base a sociedade industrial na busca de um progresso

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independente de sua consequência, através de uma modernidade tardia e acrítica. Neste

sentido afirma Beck (2010, p. 23) que “na modernidade tardia, a produção social de riqueza

é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos.” Na mesma esteira é o

pensamento de Santos (2000, p. 56) para quem “a promessa da dominação da natureza, e do

seu uso para o benefício comum da humanidade, conduziu a uma exploração excessiva e

despreocupada dos recursos naturais” gerando este modelo de exploração e organização uma

sociedade de risco consequência e reflexo da sociedade industrial.

Fernandes (2001, p. 33) neste sentido em conceito irrepreensível baseado em Beck

informa que:

a sociedade industrial é uma sociedade de produção industrial que, na sua evolução, dá lugar a uma sociedade de sequelas industrias reflexo dela mesmo, que a excede nas dimensões (...). Acrescentamos nós: uma parte considerável dessas sequelas são os riscos inerentes (e resultantes) à opção pelo caminho trilhado.

No pensamento capitalista predominante na sociedade industrial e na sociedade

moderna na concepção do laissez faire, laissez passer o processo de modernização teve

como consequencias a projeção de riscos em uma grandeza jamais antes vista. Em todas as

etapas do desenvolvimento humano o risco foi e é inerente à humanidade não havendo que

se olvidar que quando o homem primitivo saia à caça em busca de comida o risco de ser ele

a comida de algum animal também existia, assim como os navegadores nas ondas das

grandes navegações dos séculos XV e XVI ao se lançarem ao mar o risco era inerente ao seu

ofício.

Ocorre que no processo de transição da sociedade industrial para a sociedade

moderna, os riscos que antes eram incipientes e individuais tomaram proporções diversas

daquela sociedade até então existente. Os riscos agora são a regra, extrapolam a barreira do

acidente e se tornam previsíveis extrapolando ainda qualquer barreira temporal, espacial e

política, bastando para tanto lembrar do acidente com a usina de Chernobyl e o ataque

terorrista de 11 de Setembro nos Estados Unidos da América. Na sociedade moderna os

riscos sociais, políticos, econômicos, industriais, e não só mais individuais, escapam ao

controle das instituições tomando cada vez maiores proporções, mais uma vez, fruto do

pensamento liberal econômico que in dubio pro progresso.

Os riscos na sociedade moderna estão por toda parte e escapam ao controle das

instituições e do Estado que vive a reboque da avalanche dos riscos, consequências do

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avanço desordenado da ciência e tecnologia, do avanço a qualquer custo, sem sofrer jamais

uma interferencia séria do Estado, pois este é parte integrante deste sistema de riscos.

Outro fator hodierno que interessa na analise dos riscos e trabalhado por Beck é a

globalidade, democratização e o indeterminismo dos riscos. O referido autor (2010, p. 26)

informa que:

os riscos e ameaças atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes medievais, com freqüência semelhantes por fora, fundamentalmente por fora, fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas causas modernas: são riscos da modernização.

Os riscos atuais perderam seu liame individual, espacial e causal. A globalização da

vida trouxe a globalização dos riscos, ao passo que se pode afirmar que no mundo hodierno

os riscos são coletivos, não respeitam os espaços soberanos estatais e temporais. A

globalização fez com que se encurtasse o tempo e os espaços entre as pessoas e, por

conseguinte, se aproximasse os riscos de forma temporal e espacial, os riscos agora são

globais de tal forma que, por exemplo, o uso imoderado de agrotóxicos na plantação de um

produtor tailandês pode causar riscos à saúde de um cidadão norte-americano.

Harvey (1992) citado por Martins:

enfoca a globalização através da caracterização do processo de compressão do tempo-espaço, isto é, a presença na história do capitalismo de uma tendência à aceleração do ritmo da vida, simultânea a uma conquista paulatina das barreiras espaciais, provocando uma sensação de ‘encurtamento do tempo’ e ‘encolhimento do espaço’.

Já para Manuel Castells o enfoque sobre a globalização está na atuação em rede.

Nos dizeres de Martins, Castells (1999):

reporta-se à sociedade em rede, nova forma de sociedade, resultante da criação e da implementação das novas tecnologias de informação e da reestruturação do capitalismo, que é orientada por organizações e trocas globais estratégicas. Nos aspectos socioculturais de transformação propriamente ditos, para bem ou para mal, a informatização tem, portanto, um papel fundamental na disseminação de idéias e valores nos níveis regional, nacional e internacional, possibilitando o acesso quase imediato a dados e informações.

Neste sentido os riscos agora não se limitam a um indivíduo ou atividade, não se

limitam ao espaço em que são produzidos. Com a aproximação do tempo e do espaço que

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Harvey informa ser uma das características da globalização e com o agir em rede da

sociedade global a que alude Castells os riscos também se aproximaram no tempo e no

espaço e se disseminam assim como a rapidez das novas tecnologias da informação e das

trocas capitalistas.

Outra característica dos riscos apontada por Beck (2010) e a sua “democratização”.

Informa o autor que nas sociedades de classes a dualidade se apresentava da forma entre os

detentores do poder do capital e aqueles que tinham apenas sua mão de obra para vender, a

sociedade de classes se dividiam entre os proprietários e os não proprietários entre os

incluídos e os excluídos, entre possuir e não possuir.

Ocorre que quanto aos riscos não se vislumbra as mesmas divisões, os riscos são

“democráticos” afetam tantos os detentores dos meios de produção quanto àqueles que não

possuem assim estar passível de afetação ou não estar passível de afetação pelo risco não se

polariza como possuir e não possuir na ideia da sociedade de classes.

Beck (2010) chama este efeito de boomerang, pois os riscos da modernidade geram

situações de perigo que podem atingir as diversas camadas da sociedade indistintamente se

ricos ou pobres, pois conforme o autor “a miséria é hierárquica, o smog é democrático”, o

risco é equalizador e relativiza a fronteira entre as classes sociais fazendo-se recair sobre

seus próprios produtores.

Informa ainda Beck (2010) que os riscos da modernidade perdem seu carater

determinista não se baseando mais em interpretações causais, certas da origem dos riscos.

Os riscos nas sociedade anteriores à industrial quase sempre timham uma explicação calcada

em um modelo determinista cartesiano-newtoniano.

Os riscos da modernidade perdem sua causa única original, sua certeza causal, são

agoras riscos invisíveis, multicausais e ocultos decorrente do fim das cetezas que na ciência

muito bem já prelecionava Prigogine (1996) trasnformando-se em riscos quase

imperceptíveis.

Aqui surge com grande importância para a legitimação dos riscos o papel da ciência

que dependendo do conhecimento, do saber os riscos poderão ser aumentados ou diminuidos

não em decorrencia apenas do saber científico é claro, mas decorrente também dos

interesses políticos a consciência dos riscos poderá ser alterada.

Os riscos na sociedade moderna, principalmente na brasileira, não são mais um

acidente de percurso fazem parte do cotidiano apresenta para o coletivo humano um mundo

da incerteza e de riscos produzidos. Como dito acima isto não significa que não havia riscos

para a vida anteriormente, mas que os fatores causais e a abrangência desses riscos, na

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modernidade, se modificam de maneira considerável. Antes os riscos eram acidentes,

individuais, temporais, espaciais, deterministas, agora só restam incertezas nestes riscos,

sendo neste sentido a importância do agir das políticas públicas no combate, no contorno

desta sociedade de risco.

A produção de risco está inexoravelmente ligada à falta de políticas públicas, veja

os exemplos atuais da epidemia de dengue que afeta o país ou mesmo a tragédia da Boate

Kiss em Santa Maria no Rio Grande do Sul em que se permitiu festejos em um local em que

não tinha as mínimas condições de segurança, com alvará vencido, com superlotação

demonstrando assim a falta de política pública na segurança o que, por conseguinte, reforçou

a sociedade do risco em que atualmente se vive. Os exemplos se multiplicam.

Os riscos sociais mostram o abismo em que as políticas públicas deverão atuar e o

seu reflexo também é verdadeiro, a falta de efetividade das políticas públicas mostra a

sociedade de risco que ela pode criar.

1.2 A efetividade das políticas públicas como uma forma de combate à sociedade de

risco

A inércia do Estado na implementação das políticas públicas tem como efeito a

criação ou o reforço da sociedade de risco, como visto anteriormente, bem como ainda a

sociedade de risco exige a implementação com qualidade de políticas públicas para fazer

frente a ela. Assim uma das respostas possíveis no combate da sociedade do risco é uma

atuação dos atores sociais em uma implementação que dê efetividade aos direitos sociais,

através das políticas públicas.

Na mudança da sociedade industrial para a sociedade moderna, com a modernidade

reflexiva, passou-se a viver em uma sociedade de riscos dimensionados de forma bastante

diferente da existente na sociedade tradicional. Os riscos decorrentes desta sociedade

moderna não têm fronteiras, nem tempo e atinge toda a coletividade, através do seu efeito

boomerang, consoante acentua Beck.

Destarte o combate a estes riscos também não pode se limitar a modelos temporais

e espaciais, os riscos devem ser levados em consideração na atuação das políticas públicas,

os riscos se fazem sentir nas políticas públicas.

Na atualidade da sociedade brasileira as políticas públicas no mais das vezes têm

servido a interesses políticos, sendo relegadas pelos atores sociais, principalmente os

estatais.

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As esferas das funções estatais, principalmente o legislativo tem feito apenas uma

política a que Weber (1980) chamou de política negativa, vale dizer, se restringe apenas a

receber os reclames dos cidadãos e analisar propostas orçamentárias de outras funções do

Estado, uma função formal, em contraponto ao que deveria ser na realidade o que chama o

mesmo autor do exercício de uma política positiva que se consubstanciaria na atuação, na

atividade de formulação, de acompanhamento e avaliação das políticas públicas. Assim

afirma-se neste trabalho que no enfrentamento da sociedade de risco que se impõe há a

necessidade de efetivação de políticas públicas, políticas positivas, por parte dos atores

sociais, os privados e os estatais.

As políticas públicas se consubstanciam em um conjunto de metas, decisões,

planos, ações das funções do Estado em nível, federal, estadual, distrital e municipal com o

fito de resolução de problemas específicos ou gerais da população.

Para Canela Júnior citado por Grinover (2010, p. 04):

por política estatal – ou políticas públicas – entende-se o conjunto de atividades do Estado tendentes a seus fins, de acordo com metas a serem atingidas. Trata-se de um conjunto de normas (Poder Legislativo), atos (Poder Executivo) e decisões (Poder Judiciário) que visam à realização dos fins primordiais do Estado.

Dworkin (2002, p. 36) conceitua o termo “política” (que adquire o sentido que se

pretende para políticas públicas) como “aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a

ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da

comunidade.”

As políticas públicas devem ser interpretadas como um processo de representação e

entendimento dos reclames da sociedade para agir diante desta realidade tal como ela é

percebida e existente, sendo a sociedade objeto e parte integrante de seu conceito.

Para dar efetividade aos objetivos da República brasileira e construir uma sociedade

livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e as desigualdades sociais e “combater a

sociedade de risco” faz-se necessário a implementação de políticas afirmativas, políticas

públicas que dêem efetividade aos direitos fundamentais.

Este é o entendimento de Sadek (2011, p. 09) asseverado que:

as analises mais influentes apontavam para o fato de que as abismais distancias econômicas e sociais entre os indivíduos ameaçaria a própria idéia de igualdade expressa em leis e colocaria em risco a paz social. Ademais julga-se que o livre desenvolvimento das forças de mercado não

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seria capaz por si só de atenuar as desigualdades. Daí a necessidade de se abandonar praticas baseadas na ortodoxia liberal e conhecer políticas afirmativas.

Neste sentido as noções de risco e de igualdade social estão ínsitas aos conceitos de

políticas públicas e na sua própria formulação e execução, esta mudança de comportamento

afeta diretamente a forma de se elaborar as políticas públicas, parte de uma constatação do

risco, da busca da igualdade, para afastar o processo auto-reprodutivo e de discriminação

social que até agora as políticas públicas têm incorrido.

Assim se chega a uma pergunta inarredável acerca das políticas públicas neste

momento. Quem são os atores destas políticas públicas? Quem é objeto e partícipe na

efetivação das políticas públicas?

Por muito tempo acreditou-se que a decisão das políticas públicas era um ato

puramente estatal e a melhora nas condições de vida da sociedade era seu objeto. Assim a

sociedade era vista apenas como um objeto estático, amorfo das políticas públicas que

deveria se submeter às decisões do Estado.

Uma nova interpretação acerca daqueles que são interessados na discussão

formulação, implementação e avaliação das políticas públicas se faz necessário sendo que

por esta interpretação deve passar a necessidade de participação de atores sociais estatais,

mas também privados.

Os atores sociais estatais são aqueles ligados à burocracia estatal, à administração

pública em qualquer das esferas das funções do Estado, notadamente os agentes políticos.

Ao passo que os atores privados são todos aqueles que não se encontram ligados diretamente

à administração pública, aos atores estatais, mas que querem participar da esfera pública nos

debates da efetivação das políticas públicas.

A participação dos atores sociais na efetivação das políticas públicas é fundamental,

pois muda seu papel de apenas um espectador e objeto estático para um componente

participativo e decisivo na implementação de tais políticas, possibilitando com sua

participação uma maior efetividade das políticas públicas, além de tornar o processo

democrático.

Com a contribuição dos atores sociais privados as políticas públicas têm mais

viabilidade de efetivação, pois são estes atores sociais quem no mais das vezes sofrem com

os perigos da sociedade de risco, assim ninguém melhor que eles para participar da

implementação destas políticas. As políticas públicas não devem ser apenas programas

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estatais, mas um instrumento de participação da sociedade na delimitação do espaço público,

um agir comunicativo entre os atores estatais e privados.

O modelo de políticas públicas pensadas até o presente levaram em consideração

apenas a ações calcadas quase tão somente nas decisões tomadas a partir dos protagonistas

do sistema estatal e de mercado criando o que Habermas (1997) chamaria de racionalização

técnica instrumental olvidando da participação da sociedade com todos os elementos que

esta poderia trazer para a discussão e implementação das políticas públicas, a esta discussão

e participação o autor chamaria racionalidade comunicativa.

No pensamento habermasiano há uma forte crítica a esta colonização do mundo

sistêmico, racionalização técnica instrumental (Estado e mercado) sobre o mundo da vida,

racionalidade comunicativa (agir comunicacional da sociedade). O mesmo neste sentido

poderia se criticar a forma que tem seguido até o momento as decisões e implementações

das políticas públicas que adota uma forma de colonização, imposição destas decisões do

Estado para com a sociedade.

A saída buscando a resposta em Habermas seria uma mudança nesta forma de

pensar e implementar as políticas públicas. O aumento dos canais institucionalizados de

participação social cria um modelo de democracia deliberativa, participativa na qual pelo

implemento de procedimentos discursivos, participativos, plurais amplia o espaço público de

tomada de decisões.

É neste modelo que os atores sociais privados, inseridos em uma sociedade de

risco, devem atuar. Criando um espaço público de discussão que interage em um processo

comunicativo os atores sociais públicos e privados podem desenvolver mecanismos de

coordenação de uma ação que dê efetividade às políticas públicas no seu enfrentamento da

sociedade de risco.

Nos dizeres de Habermas (1997, p. 92):

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo.

Por intermédio deste diálogo participativo não só dos atores sociais estatais, mas

também dos privados, nesta disputa do espaço social, nesta dialética participativa

consolidará um espaço verdadeiramente democrático, um espaço em que as políticas

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públicas não serão discutidas apenas pelos seus executores, mas com quem sofrerá a ação

destas políticas. O reflexo dessa forma de pensar diz respeito a uma maior efetividade das

políticas públicas e, por conseguinte, dos direitos fundamentais.

Esta parece também ser a proposta de Häberle (1998) ao chamar a sociedade, os

atores sociais privados, para interpretar à constituição, para participar do processo

interpretativo e efetivador dos comandos constitucionais, dentre ele é claro as políticas

públicas.

Neste sentido quer se dizer que a efetivação das políticas públicas, através de um

agir comunicativo entre os atores sociais estatais e privados, vai ao encontro dos objetivos

da república na busca de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza , a

marginalização e as desigualdades sociais.

Mas o que fazer se esta participação não é efetiva? O que fazer se os espaços

comunicativos se sucumbem ao poder do Estado e do mercado? O que fazer se o Estado se

nega a esta participação e a dar efetividade às políticas públicas? Uma das saídas também

possíveis que inclusive pode conviver com este espaço participativo é a judicialização das

políticas públicas frente à inafastabilidade do poder judiciário sempre no intuito da

efetivação dos direitos fundamentais.

CAPÍTULO 2 A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E A NOVA

INTERPRETAÇÃO NEOCONSTITUCIONAL: em busca dos objetivos sustentáveis

da república

2.1 A judicialização como uma das saídas para a efetividade das políticas públicas

Não se quer aqui afirmar que a judicialização das políticas públicas seja a melhor

fórmula e que deva substituir todas as demais. Afirma-se apenas que esta é uma

possibilidade a mais, juntamente com o processo participativo na esfera pública acima

defendido, de buscar todas as formas possíveis de uma maior efetividade dos direitos

fundamentais e alcançar os objetivos da república brasileira.

A falta de efetiva participação dos atores sociais, principalmente os estatais,

notadamente o legislativo e o executivo leva a possibilidade das políticas públicas serem

judicializadas. O judiciário sempre deverá atuar na falha, omissão dos atores sociais estatais,

pois não se pode olvidar que o judiciário, também é um ator social. Não se quer uma invasão

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e substituição da política pelo jurídico, mas quando aquela for omissa, falhar, o judiciário

pelo principio da inafastabilidade da jurisdição deve atuar.

Sadek (2011, p. 15) neste diapasão também é enfática ao mencionar que “o

magistrado dos últimos tempos ampliou consideravelmente sua participação e converteu-se

em um ator político, variando, contudo a sua expressão.”

A possibilidade das políticas públicas passarem pela analise do judiciário tem

trazido diversas interpretações que destoam entre si o que dificulta a efetivação destas

políticas. O que se deve indagar assim é se o judiciário poderá determinar ao administrador

público, ou por vezes ao congresso, a prestar determinadas políticas públicas que

consubstanciam muitas vezes em um direito fundamental?

O tema tem sido bastante debatido e com fortes argumentos para ambos os lados.

Assim os defensores da não intervenção do judiciário no planejamento e aplicação das

políticas públicas a fazem alegando que não cabe ao judiciário, pelo princípio da separação

dos poderes, atuar na aplicação das políticas públicas algo iminentemente de competência do

executivo e, por via reflexa, do legislativo.

Ao passo que os defensores da atuação do judiciário na concretização das políticas

públicas se baseiam em uma visão neoconstitucional de cooperação das funções estatais e na

necessidade de concretizar os direitos sociais e, principalmente por seu caráter de

fundamentalidade e de sua aplicação imediata, calcados no valor da dignidade humana.

A resposta, ao que parece, passa pela conclusão que no Brasil existe um déficit de

efetividade dos direitos fundamentais, notadamente os sociais que se torna não só possível,

mas necessário que o judiciário haja para tornar efetivo o mandamento constitucional.

Sarlet defende a intervenção do judiciário na composição das políticas públicas de

prestação de direitos sociais. Neste sentido manifesta o autor que:

de outra parte, não se pode olvidar que uma série de garantias constitucionais, como é o caso da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º. XXXV, da CF) viabilizam o acesso ao Judiciário, sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a direito, sem que se possa excluir qualquer direito e, em principio, qualquer tipo de ameaça de lesão ou lesão, ainda que veiculada por meio de “políticas públicas”, seja decorrente da falta destas.

Assim observa-se que na visão do autor o judiciário pela inafastabilidade geral da

jurisdição deve atuar na efetivação dos direitos fundamentais consubstanciados aqui através

das políticas públicas.

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A atuação do judiciário para efetivar as políticas públicas se funda na idéia de

justiça social e dignidade da pessoa humana e no argumento de que ficar omisso à

determinação da constituição também é uma forma de violação aos direitos fundamentais.

Saldanha também neste sentido é categórica ao afirmar que:

Entretanto, não se pode excluir o dever que os três poderes possuem de trabalharem independente e harmonicamente, o que significa a coexistência harmônica de eficácia positiva tanto da dignidade humana, como da separação de poderes. Reconhece-se desta forma, a legitimidade do judiciário para determinar as prestações necessárias à sua satisfação.

O controle judicial das políticas públicas tem o escopo de que os direitos

fundamentais não caiam no vazio normativo e que os mesmos produzam os efeitos

pretendidos pela norma constitucional.

Esse controle, outrossim, não pode ser de forma generalizada de forma que se

entregue a administração do Estado ao judiciário. Este controle deve ser excepcional

atuando somente quando a omissão dos atores sociais estatais possa inviabilizar o gozo dos

direitos sociais, quando ameace tais direitos, devendo ser restrito ao mínimo existencial da

dignidade humana.

Neste sentido quando a omissão na prestação das políticas públicas puder afetar a

vivência com um mínimo de dignidade e não puder ser sanado pelo executivo e legislativo,

atores sociais públicos, impõe-se ao judiciário a concretização do direito sendo sua atuação,

contudo subsidiária.

Assim deve-se levar em conta sempre certos requisitos objetivos da intervenção do

judiciário na prestação das políticas públicas. O judiciário somente poderá atuar de forma

subsidiária, ou seja, somente na falha do executivo e legislativo, os atores sociais estatais.

A atuação também deve ser excepcional, valendo dizer, somente em certos casos

concretos após uma ponderação de valores. Bem como ainda o judiciário somente poderá

atuar quando a omissão do Estado possa inviabilizar o alcance a mínimos existenciais dignos

para se viver.

Torres (2009) denomina a atuação do judiciário na concretização das políticas

públicas de status ativus processualis que seria a concretização do direito pela via

processual o que Peter Häberle entende como uma dimensão da afirmação da cidadania.

Nesta esteira de raciocínio Torres menciona os diversos meios processuais de se

chegar à efetivação das políticas públicas através do judiciário, tais como, a ação civil

pública, a tutela antecipada, mandado de segurança, mandado de injunção, como exemplos.

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Canela Júnior citado por Grinover (2010, p. 04) neste sentido afirma que:

Como toda atividade política (políticas publicas) exercida pelo legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituição, cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, o que se convencionou chamar de “atos de governo” ou “questões políticas, sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (art. 3º. da CF).

Outro também não é o entendimento de Grinover (2010, p. 04) ao asseverar que “o

controle da constitucionalidade das políticas públicas pelo Poder Judiciário, assim não se faz

apenas sob o prisma da infringência frontal à constituição pelos atos do Poder Público, mas

também por intermédio do cotejo desses atos com os fins do Estado”. Mais a frente ainda

continua a autora (2010, p. 19) afirmando que:

disso tudo surge uma inarredável conclusão: qualquer tipo de ação – coletiva, individual com efeitos coletivos ou meramente individual – pode ser utilizada para provocar o Poder Judiciário a exercer o controle e a possível intervenção em políticas públicas.

O Supremo Tribunal Federal (STF) também já decidiu sobre o tema e expôs ao

menos por via de um ministro o entendimento sobre a matéria.

O caso envolve a questão de veto do presidente da república na proposta normativa

que se converteu na lei 10.707/03 uma vez que se sustentava que com o veto, que cortava de

forma indireta gastos na saúde, teria se desrespeitado a EC 29/00 que prevê um mínimo de

recursos financeiros a serem aplicados na saúde.

Diante da situação o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) propôs a

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 45, contudo fora

considerada prejudicada com a disposição normativa de nova lei tratando sobre o tema.

Isto não impediu que o Ministro Relator Celso de Mello analisasse o tema tecendo

comentários de ordem doutrinária bastante salutares não para o caso, mas para outros

semelhantes. Neste sentido sustentou o relator da ADPF que a atuação do judiciário:

apresenta-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instancias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.

O Ministro entendeu que o STF não pode renunciar ao poder/dever de concretizar

os direitos estabelecidos na Carta Magna ainda que de conteúdos políticos haja vista a

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dimensão política da jurisdição constitucional. Assim continua o relator em seu voto

mencionado que o STF: Não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais que se identificam, enquanto direito de segunda geração com as liberdades positivas, reais ou concretas, sob pena do poder público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional.

Na decisão ainda o relator reafirmou o compromisso da Corte Suprema com a

concretização do estado de bem-estar social através dos direitos estabelecidos na

constituição ainda que em normas programáticas.

Assim através de uma decisão do STF, que é corroborada por grande parte da

literatura especializada, demonstrou-se a possibilidade do judiciário atuar na efetivação das

políticas públicas quando a omissão dos atores sociais estatais representar perigo de lesão

aos direitos dos cidadãos frente à sociedade de risco que é um dado a ser contornado.

As políticas públicas por terem certa carga de discricionariedade na sua forma,

tempo e modo de efetivação muitas vezes acabam sendo denegadas pelos atores sociais

estatais, principalmente legislativo e executivo. Esta certa dose de discricionariedade não

pode, contudo se transformar em uma válvula de escape para a falta de efetividade das

políticas públicas que devem ser implementadas através de decisões tomadas com equilíbrio

e harmonia sem perder de vista o mínimo existencial humano.

Judicializar não é a única saída, mas juntamente com a participação em um

processo comunicativo dos atores sociais, privados e públicos, frente à sociedade de risco se

mostra uma forma eficaz e valiosa de efetivar as políticas públicas, de concretizar os direitos

fundamentais e atingir os objetivos da república. Para tanto uma visão neoconstitucional,

principalmente quando as políticas são judicializadas, se faz necessário para uma efetiva

implementação das políticas públicas no combate à sociedade de risco.

2.2 O Neoconstitucionalismo como modelo adequado de interpretação visando à

efetividade dos objetivos da república

A partir da Segunda-Grande Guerra, após um quadro de terror calcado na

intolerância e no desrespeito aos direitos mais básicos dos indivíduos, os olhos da

comunidade internacional se voltaram para a imprescindibilidade de se proteger esses

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direitos com vistas, inclusive, a se evitar novos conflitos mundiais. Ora, tamanho flagelo não

poderia se repetir sob o pretexto da legalidade de um Estado de Direito.

Os direitos fundamentais então, concebidos como direitos humanos no plano

internacional ganharam especial destaque e passaram a orientar os ordenamentos internos

dos estados, que se submeteram a uma reconstitucionalização, sobretudo na Europa. É nesse

cenário que desponta o fenômeno do neoconstitucionalismo.

Para Cademartori e Duarte (2009, p. 29):

o neoconstitucionalismo é um fenômeno que transcende a dimensão puramente jurídica, encontrando também os seus fundamentos a partir de uma concepção própria de Estado de Direito e uma nova forma de enfocar o papel da Constituição, por parte dos poderes públicos e da própria sociedade.

Na conceituação irretocável de Barroso1:

o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (I) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (II) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (III) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.

Conforme se infere das lições supra colacionadas, o neoconstitucionalismo propõe

uma nova leitura da realidade constitucional, levando-se em conta as transformações sociais,

históricas, jurídicas, normativas, jurisprudenciais, dentre outras, ocorridas ao longo das

últimas décadas, sendo este seu ponto de interseção com a efetividade das políticas públicas

para fazer frente à sociedade de risco.

Manifesta-se, pois, como fenômeno inevitável, revolucionando a maneira de

pensar, o estudo e a interpretação do direito, revelando que o positivismo, embora tenha

exercido um papel importante na construção do direito, reconhecendo-o como ciência, não

se mostra mais adequado para sua orientação.

1 Trata-se aqui de Luis Roberto Barroso diferenciando-o do outro autor Lucas Abreu Barroso retro citado.

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Barroso novamente informa que o marco deste novo direito constitucional foi a

Europa continental, notadamente, no pós-guerra que orientou as constituições da Alemanha

e da Itália, dentre outras. No que diz respeito ao Brasil, o autor afirma que o marco “foi a

constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar.”

Com efeito, como representação e resultado do rompimento com um modelo

ditatorial, suprimidor de garantias, a Constituição da República de 1988 cuidou de

estabelecer o Estado Democrático de Direito, abrindo-se para a consagração ampla de

direitos e garantias fundamentais, que, a partir de então, passaram a ser assegurados

constitucionalmente. O neoconstitucionalismo abre a pauta da constituição, antes hermética,

para uma axiologia que transforma as opções constitucionais em verdadeiras normas que

devem se concretizar.

Assim a “Constituição Cidadã”, ao estabelecer o estado da justiça material, da

transformação da realidade social, da tutela jurídica ampla, dinâmica e aberta, pôs fim ao

dualismo que separava estado e sociedade em uma inovadora teoria dos direitos e das

garantias fundamentais.

As normas constitucionais, dentre elas os direitos sociais, as políticas públicas,

agora, segundo a interpretação neoconstitucional, devem sair de suas posições apenas

formais e se concretizarem. Diante da sociedade de risco em que vive a sociedade brasileira

políticas públicas efetivas se fazem necessárias para alcançar os objetivos da república,

tornando-os concretos e não meras promessas constitucionais que somente se tornariam

efetivas com a boa vontade da atuação do legislador infraconstitucional.

A partir do momento em que as decisões políticas e axiológicas se transformaram

em normas, em objetivos da república tornou-se imprescindível uma nova forma de

interpretação capaz de tornar concretas estas decisões.

Já no próprio preâmbulo da constituição pode se constatar o objetivo de concretizar

os direitos fundamentais e as diretrizes de uma tutela jurídica irrestrita nos planos do Direito

Coletivo e dos Direitos Individuais.

Neste diapasão oportunas são as palavras de Barroso ao asseverar que:

Não é surpresa, portanto, que as Constituições tivessem sido, até então, repositórios de promessas vagas e de exortações ao legislador infraconstitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. Coube à Constituição de 1988, bem como à doutrina e a jurisprudência que se produziram a partir de sua promulgação, o mérito elevado de romper com a posição mais retrógrada.

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Como resultado do processo de mudanças forçadas pela inevitável linha evolutiva

do direito, a Teoria do Direito teve que ser revisitada contemplando novos fenômenos que

passaram a ser aceitos paulatinamente na ordem prática.

O neoconstitucionalismo trouxe grandes transformações na hermenêutica,

principalmente, constitucional. Essa nova abertura interpretativa é que fará frente à postura

positivista e possibilitará a concretização das políticas públicas, principalmente quando

judicializadas e, por conseguinte dos objetivos da república derrocando a sociedade de risco.

É nesse contexto de mudança interpretativa que a tarefa de se interpretar a norma

(principalmente no que tange aos direitos sociais) agora é uma tarefa criativa, no sentido de

que o direito é criado, construído, no caso concreto. Assim, por exemplo, a tarefa

interpretativa neoconstitucional acerca das políticas públicas muda seu foco de uma

interpretação apenas declarativa, como declarar que os direitos sociais devem ser efetivados

pelo legislador infraconstitucional quando possível, para uma interpretação criativa,

evolutiva efetivando assim os comandos constitucionais dos direitos sociais, das políticas

públicas de imediato.

Neste sentido a hermenêutica neoconstitucional ainda exige a análise pautada na

proporcionalidade e na razoabilidade das normas, com vistas a proporcionar uma justiça

efetiva. Na arena neoconstitucional os conflitos específicos necessitam de conviver e

harmonizar diante de uma sociedade plural e de risco que urge. Assim conflitos na

efetivação das políticas públicas são inevitáveis como, por exemplo, entre a necessidade de

efetivar algum direito social e a alegação estatal da falta de valores no orçamento para tal.

Destarte a analise neoconstitucional se pauta nos casos difíceis, hard cases, que a

proporcionalidade se mostra interessante para buscar as respostas dos conflitos de forma

criativa e concretizadora.

Ainda no que diz respeito às transformações na ordem da hermenêutica no

neoconstitucionalismo, destaca-se a força normativa e contagiante da constituição. Em

verdade, os ramos do direito devem se orientar à luz da constituição que os toca como um

toque de Midas. Aliás, a Constituição, pode servir de fundamento para a invocação de um

direito, ressaltando-se que os direitos fundamentais também possuem dimensão subjetiva.

É neste sentido que se defende a importância de uma interpretação

neoconstitucional na efetivação das políticas públicas através do atores sociais e da

judicialização, pois nesta perspectiva de interpretação a constituição é o norte da

concretização e busca em sua força normativa, irradiante a fundamentação para a atuação do

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judiciário na concretização das políticas públicas quase sempre calcadas nos direitos

fundamentais.

Cademartori (2009, p. 30) nesta esteira de pensamento também afirma que: os princípios e normas programáticas de caráter socioeconômico e cultural de tais constituições vieram efetivamente a encontrar um horizonte de aplicabilidade, a partir do desenvolvimento de teorias hermenêuticas e de argumentação jurídica mais recentes, desenvolvidas sob o contexto do Estado Constitucional.

É no contexto do Estado Constitucional que a preocupação com a justiça efetiva e a

transformação da realidade social afloram e ganham terreno fértil para o seu florescimento.

Desta forma, o fenômeno do neoconstitucionalismo deve atuar no palco do Estado

Constitucional transformando efetivamente a Teoria do Direito e, mormente, dos direitos

fundamentais, notadamente no que tange a efetividade das políticas públicas pelos atores

sociais e através do judiciário quando judicializadas.

Hodiernamente, uma noção correta de estado, aqui tratada como “Estado

Constitucional”, exige, além da garantia do direito, um aparato com mecanismos jurídicos

suficientes para a implementação desses direitos de forma sustentável, tornando de

fundamental importância a participação dos atores sociais e da judicialização das políticas

públicas no combate ao caos que a sociedade de risco impõe.

O fenômeno do neoconstitucinalismo também se manifesta como resposta crítica ao

positivismo, pelo menos em relação a dois de seus pilares, consoante destaca Cademartori

(2009, p. 41) ao afirmar que “na realidade, o neoconstitucionalismo pretende ser uma teoria

que se opõe às duas teses mais importantes do positivismo conceitual, ou seja, a tese das

fontes sociais do direito e a não conexão necessária entre o direito e a moral”, que é de

grande importância esta mudança crítica para a efetivação das políticas públicas,

notadamente quando judicializadas.

Prossegue Cademartori (2009, p. 43) aduzindo que “o neoconstitucionalismo aceita

que as fontes do direito não oferecem respostas para muitos dos atuais problemas e se fazem

necessários novos conhecimentos para resolver tais impasses”. Ao lado de novos

conhecimentos exigem-se novas posturas imbuídas de um espírito cooperativo, por exemplo,

entre os atores sociais, com a finalidade de dar uma solução sustentável aos problemas, em

sua maioria ligados às ineficiências das políticas públicas, conforme demonstrado acima.

Resta claro que na temática do neoconstitucionalismo, a hermenêutica clama por

um novo parâmetro adequado de interpretação do direito. Urge uma revisitação da Teoria do

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Direito e dos direitos fundamentais, sob um olhar crítico e questionador diante da

insuficiência do modelo positivista fechado e limitado diante dos recentes acontecimentos

jurídicos. A sociedade atual, de risco, complexa, multifacetada e cada vez mais consciente

de seus direitos reclama por justiça material e por uma maior efetividade do direito que deve

se estender para fora dos seus limites, interferindo positivamente na realidade social,

transformando-a, Almeida (2008). Esta é a interpretação neoconstitucional que se deseja

acerca da efetivação das políticas públicas pelos atores sociais e pela judicialização quando

da ineficiência da atuação dos atores sociais públicos.

É sob esse condão interpretativo neoconstitucional, que se exige do direito e, por

conseguinte, do poder judiciário uma postura vanguardista, que trabalhe na defesa da ordem

constitucional, atuando positivamente para que os objetivos da república sejam cumpridos,

ainda que tenha que se voltar para o campo das políticas públicas em caso de omissão do

legislativo e do executivo, quando então podem ser judicializadas.

A “vontade constitucional” segundo preleciona Almeida (2008) não pode ser

desprezada no contexto do Estado Democrático de Direito, no âmbito do “Estado

Constitucional”, devendo os atores sociais lutar em comunhão de esforços para que a

proclamada concretização dos objetivos da república se efetive de forma sustentável.

O neoconstitucionalismo segundo Barcellos tem:

a missão de transformar o discurso da juridicidade, superioridade e centralidade das normas constitucionais em geral, e dos direitos fundamentais em particular, em técnica aplicável no cotidiano da interpretação e aplicação do direito. E uma vez que o discurso se transforme em técnica, a técnica poderá se transformar em diferença real para as pessoas em que vivem em um Estado de Direito Constitucional.

O que se espera da hermenêutica neoconstitucional é que na atuação conjunta das

funções estatais, na atuação dos atores sociais, privados e públicos, na judicialização das

políticas públicas, especialmente, faça frente à sociedade do risco e aos argumentos

positivistas contrários a efetivação dos direitos fundamentais, dos objetivos da república,

como por exemplo, no caso da judicialização, o argumento contrário a esta que defende

como intocável a separação dos poderes, a observância das regras orçamentárias e a

legalidade das despesas públicas, sem, contudo invadir e substituir a esfera política, mas que

quando esta for omissa que a interpretação neoconstitucional permita que se torne efetivo os

direitos sociais, as políticas públicas, enfim os objetivos da república.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe por fim tecer algumas considerações finais, uma vez que o tema é extremante

aberto e se encontra em grande debate não sendo possível uma exata conclusão.

O artigo em linhas gerais abordou um estudo sobre a sociedade de risco e a

necessidade de efetivação de políticas públicas para fazer frente a esta sociedade de iminente

caos por intermédio de uma atuação conjunta dos atores sociais, privados e públicos.

Observa-se que a problemática de efetivação das políticas públicas é um problema

antigo da sociedade brasileira que remonta tempos inclusive anteriores à Constituição da

República de 1988, mas que somente nos últimos anos vem se pesquisando e estudando

sobre o assunto de forma mais profunda.

Ainda assim foram alcançados os objetivos deste trabalho que é contribuir para o

desenvolvimento do tema sobre a efetividade das políticas públicas e uma abertura

neoconstitucional para sua interpretação e participação conjunta do atores sociais em um

agir comunicativo nas redes do espaço público.

Neste sentido verificou-se ainda que é tema recorrente na efetivação das políticas

públicas problemas relacionados a falta de dinheiro para concretizá-las, segundo as

alegações dos entes públicos, e problemas relacionadas ainda com interpretações calcadas

em um positivismo insustentável hodierno em que muitas vezes obstaculiza a atuação do

judiciário através da judicialização das políticas públicas e conceitos arraigados de

separação de funções que não permite a atuação conjunta das funções estatais, que convive

com um legislativo fraco em sua atuação e um judiciário cada vez mais ativista e um

executivo que nega reiteradamente a prestação dos direitos sociais e efetividade das políticas

públicas.

Assim pode se considerar que um novo panorama surge após os 25 anos da

promulgação da CR de 1988 no tocante aos direitos fundamentais sociais e as políticas

públicas. Para fazer frente à sociedade de risco que é um dado, a efetivação das políticas

públicas com qualidade surge com primordial importância na vanguarda da atuação conjunta

dos poderes e dos atores sociais, privados e públicos, sem perder de vista a subsidiariedade,

sempre que necessário, da judicialização das políticas públicas para dar efetividade às

mesmas. Assim uma nova hermenêutica neoconstitucional se abre no horizonte para tornar

os direitos fundamentais sociais e as políticas públicas efetivas cumprindo, destarte de forma

sustentável os objetivos da república brasileira.

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REFORMA POLÍTICA E DEMOCRACIA: A IMPLEMENTAÇÃO DO

FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS COMO

GARANTIA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA

POLITICAL REFORM AND DEMOCRACY: THE IMPLEMENTATION OF

PUBLIC FUNDING OF ELECTORAL CAMPAIGNS AS A GUARANTEE OF

CONSTITUTIONAL PRINCIPLE OF ISONOMY

Heyde Medeiros Costa Lima*

Andréa Micaelle Santos Sousa**

RESUMO

O presente trabalho, por meio de pesquisa bibliográfica, aborda a questão das possibilidades de Reforma Política no Brasil, com o fito de maximizar o exercício da soberania popular e difundir o pluralismo ideológico, a partir de ponderações históricas das instituições políticas brasileiras. Para o aperfeiçoamento da democracia, instituto visado pela Reforma Política, foi importante perscrutar a realidade nacional, estudando a representatividade e a necessidade de promover as minorias no Poder. Para dar dimensão específica a essa reforma, foi aqui tratada, a problemática da implantação do financiamento público das campanhas eleitorais, com suas particularidades no caso brasileiro. Analisou-se, também, a situação dos partidos políticos e algumas de suas regulamentações constitucionais, como o Fundo Partidário. Ademais, buscou-se identificar os percalços do sistema eleitoral brasileiro, sobretudo a corrupção, e meios para minimizar algumas dessas práticas antidemocráticas. Por fim, aqui foram analisados os impactos do financiamento público no Sistema Político Brasileiro, especialmente na relação de governabilidade entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo. Palavras-chave: Reforma Política. Financiamento Público. Corrupção. Isonomia. Fundo Partidário.

ABSTRACT

This work, by means of literature, addresses the question of the possibilities of Political Reform in Brazil, with the aim of maximizing the exercise of popular sovereignty and disseminating ideological pluralism, from historical considerations of Brazilian political institutions. For the improvement of democracy, it was important to investigate the national reality, studying the representation and the need to promote minorities in power. To give

*Graduando em Direito na Faculdade Christus. Bolsista de pesquisa do Programa de Iniciação Científica da mesma faculdade. Endereço eletrônico: [email protected] **Graduanda em Direito na Faculdade Christus. Bolsista de pesquisa do Programa de Iniciação Científica da mesma faculdade. Endereço eletrônico: [email protected]

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specific dimension of this reform, it was treated here, the issue of using public financing of election campaigns, with its peculiarities in the Brazilian case. We analyzed also the situation of political parties and some of its constitutional regulations, as the Party Fund. Furthermore, we sought to identify the pitfalls of Brazilian electoral system, especially corruption and ways to minimize some of these undemocratic practices. Finally, we have discussed the impact of public financing on the Brazilian political system, especially in relation to governance between the Executive Power and the Legislative Power. Keywords: Political Reform; Public Financing; Corruption; Isonomy; Party Fund

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 promoveu grandes mudanças políticas, assegurando,

especialmente, os direitos democráticos. Estabeleceu, também, diretrizes para mudanças

posteriores, como o plebiscito que permitiu aos eleitores escolher a forma e o sistema de

governo. Em contrapartida, percebe-se que, em face dos inúmeros problemas que

comprometem a lisura do aparelho político brasileiro, tais diretrizes constitucionais se

mostram insuficientes.

Conquanto a Assembleia Nacional Constituinte tenha legislado a favor da

democracia e da transparência, ainda não é possível verificar efeitos plenos no que concerne à

ruptura do dogmatismo político1, sustentado por políticos que se beneficiam de um sistema

estático, dando-lhes praticamente cadeira cativa no aparelho estatal.

Assim sendo, pode-se afirmar que os cientistas políticos e os grandes estudiosos do

Direito Constitucional são versados consensualmente no que tange à necessidade de se

realizar mudanças na engenharia político-partidária brasileira, transformações essas capazes

de aprimorar a democracia e dificultar, ainda mais, ações corruptas de alguns dos

representantes públicos.

Em verdade, o que mais se debate é a profundidade e o conteúdo dessas

modificações. Para alguns, elas devem ser pontuais, isto é, devem modificar apenas detalhes

do cenário atual. Para outros, no entanto, faz-se mister realizar uma reforma profunda,

alterando as bases da legislação eleitoral. Aqueles que defendem apenas uma reforma parcial

fundamentam-se no fato de que a democracia brasileira, em tese, é uma das mais avançadas

do mundo, restando, portanto, apenas cumprir o que já está positivado, além de fiscalizar

rigorosamente os atores políticos. Já aqueles que apoiam uma reforma ampla, por sua vez,

1Entende-se por dogmatismo político as ideias de verdadeiro culto às formas de políticas já consolidadas, pode-se entender também como um conservadorismo exacerbado que impede a discussão de novas ideias na seara política.

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sustentam-se na ideia de que medidas paliativas não trarão alterações significativas, devendo

haver, assim, uma contemplação mais abrangente no que se refere aos conceitos de evolução

da conjuntura política do Brasil.

Especificamente, quanto à equidade nas disputas eleitorais, a grande discussão

gravita em torno de como as campanhas deveriam ser financiadas. Em uma democracia plena,

os mais variados partidos não deveriam ter iguais chances de chegar ao Poder? Para garantir

essa igualdade, não seria o financiamento público perfeitamente exequível? É possível

encontrar pessoas – parlamentares especialmente – digladiando-se a fim de determinar o que é

ter, de fato, iguais chances.

Muitas são as problemáticas oriundas do atual sistema político nacional. Assim

sendo, tratar-se-á aqui de possíveis soluções para o caso brasileiro, a partir da evolução

histórica das instituições representativas e eleitorais, a fim de que não mais reincidam os

equívocos outrora cometidos.

Além disso, diante da necessidade do fortalecimento dessas instituições e, em última

estância, do aperfeiçoamento da democracia brasileira, impõe-se uma reflexão aprofundada,

sempre à luz da Constituição, das propostas de reforma política e eleitoral, em especial das

referentes ao financiamento público dos pleitos eleitorais.

2 BREVE PANORAMA DAS TENTATIVAS DE REFORMA POLÍTICA NO BRASIL

Reforma política é algo profundo, que mexe com as raízes mais afixadas de um

regime nacional. O contexto histórico da política brasileira apresenta uma série de

modificações, não descartando a possibilidade das alterações apenas aparentes. Não

podemos, portanto, qualificar qualquer modificação no roteiro político do País como sendo

sinônimo de reforma, pois existiram, e a ainda existem, mecanismos que maquiam uma

aparente realidade.

Há de se ressaltar, por oportuno, que o cronograma da história política brasileira é

permeado por uma série de corrupções pontuais as quais subsistiram sem uma censura

devida. Daí surgem as noções de impunidade e indisposição para novas remodelações no

estrito âmago político, sendo que, na maioria das vezes, parte da população mantém-se

enganada ou indiferente a novos projetos de alteração.

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Trazendo à baila o período do Regime Militar, descortina-se uma modernização

conservadora2, cujas influências reverberaram profundamente na sociedade de então, como

bem assevera o historiador Boris Fausto:

Embora o poder real se deslocasse para outras esferas e os princípios básicos da democracia fossem violados, o regime quase nunca assumiu expressamente sua feição autoritária. Exceto por pequenos períodos de tempo, o Congresso continuou funcionando e as normas que atingiam os direitos dos cidadãos foram apresentadas como temporárias.3

Desta feita, percebe-se como a participação popular, exigindo uma reforma nos rumos

políticos do País, já se fez necessária em períodos cruciais da história. Por outro lado, sabe-se do

abismo que ainda separa o povo das próprias decisões as quais, de direito, deveriam ser

democráticas. Por isso são de fundamental importância as mudanças na mentalidade e nos

próprios costumes, já que grande parte das atitudes arbitrárias é auferida a partir da “experiência

do mando e do favor, da exclusão e do privilégio”.4

No que tange às tentativas de reforma, muitos são os embargos existentes. Quando se

refere à população brasileira no seio deste problema, percebe-se que, na maior parte do tempo,

faz-se presente iniciativas ineptas (ou, até mesmo, a ausência de atitudes), pelo simples fato de

muitos não possuírem, de forma bastante clara e acessível, as informações necessárias ao

aprimoramento do seu discernimento político.

Evidencia-se, de igual forma, flagrante descaso com as tentativas de reforma política

brasileira ao mencionarmos, exemplificativamente, o Projeto de Lei nº 2679/2003.5O citado

2Em outras palavras, a política brasileira da época tornou-se uma “ditadura mascarada”, pois os presidentes se alternavam no poder, a partir da formação de conluios, sem a aprovação popular, adotando medidas torpes e rígidas, sem o mínimo de democracia possível e aprovável. 3FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 257. 4BENEVIDES, Maria Victoria. As campanhas: informação, manipulação e poder econômico. In: BENEVIDES, Maria Victoria; VANNUCHI, Paulo; KERCHE, Fábio (Org.). Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Perseu Abramo, 2003, p.114. 5In verbis: Art. 1º Esta Lei dispõe sobre as pesquisas eleitorais, o voto de legenda em listas partidárias preordenadas, a instituição de federações partidárias, o funcionamento parlamentar, a propaganda eleitoral, o financiamento de campanha e as coligações partidárias, alterando a Lei n.º 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei n.º 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos) e a Lei n.º 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições). [...] Art. 4º Os arts. 13, 39, 44 e 45 da Lei n.º 9.096, de 1995, passam a vigorar com as seguintes alterações: [...]

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projeto, em síntese, foi, consecutivamente, apensado a dois novos Projetos de Lei e,

posteriormente, arquivado. O pedido de desarquivamento foi indeferido em face da

proposição do arquivamento definitivo do projeto.

Há de se perceber, a partir desse exemplo, o quão difícil permaneceu as propostas de

reforma na política brasileira. Quando se questiona, nesse caso, deliberações que foram

entravadas sem, ao menos, serem submetidas à votação em plenário, nota-se a enorme

tessitura de decisões que exigem remodelações iminentes, mas que permaneceram inertes,

devido à improbidade de certos representantes públicos. Acrescente-se a esse enredo de

dificuldades à implantação de um sistema eleitoral límpido, o fato de a Lei que rege o atual

código eleitoral, Lei nº 4737/65, ter sido instaurada perante uma urdidura de privações e

alienações políticas: o período da Ditadura Militar.

O atual Código Eleitoral provém do mesmo contexto histórico dos autoritários Atos

Institucionais, os quais simbolizam o auge da repressão política. Apesar de o quinto Código

Eleitoral brasileiro ter sofrido várias modificações e de diferir, razoavelmente, de sua forma

inicial, não se pode deixar de contrastar que, na mesma época em que desabrochou o atual

Código Eleitoral – o qual, dentre outras atribuições, deveria garantir a democracia brasileira a

partir dos direitos de representação política dos eleitores – também foi entabulado o AI-2 –

“que conferia mais direitos ao presidente para cassar mandatos e direitos políticos, extinguia

todos os partidos políticos existentes, criando apenas dois: ARENA e MDB.”6

Ressalta-se, sem mais delongas, que analisando os rumos históricos percorridos pela

política brasileira, os aportes teóricos que dão maior credibilidade às tentativas de reforma

não podem constar em uma contextura quimérica, ou seja, irrealizável. As mudanças devem

ser buscadas a partir da comparação entre o que foi e o que poderá ser, partindo do diálogo

confrontado entre o presente e o passado, procurando estabelecer padrões futuros de melhora,

a fim de dar alardes à tentativa de fortificação dos direitos políticos de cada cidadão

brasileiro.

Art. 39. Ressalvado o disposto no art. 31, o partido político ou federação pode receber doações de pessoas físicas e jurídicas para a constituição de seus fundos, sendo vedado usá-los no financiamento de campanhas eleitorais. (NR) [...] Art. 17. As despesas da campanha eleitoral serão realizadas sob a responsabilidade dos partidos e federações, e financiadas na forma desta Lei. § 1º Em ano eleitoral, a lei orçamentária respectiva e seus créditos adicionais incluirão dotação, em rubrica própria, destinada ao financiamento de campanhas eleitorais, de valor equivalente ao número de eleitores do País, multiplicado por R$ 7,00 (sete reais), tomando-se por referência o eleitorado existente em 31 de dezembro do ano anterior à elaboração da lei orçamentária. (grifos nossos) 6COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.476.

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3 FINANCIAMENTO PÚBLICO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS E SUAS IMPLICAÇÕES

3.1 Considerações Preambulares

Quando a democracia foi idealizada na Grécia Antiga, não se concebia a ideia de

representatividade. Para os gregos, o pensamento de cada cidadão deveria constar na pauta de

deliberações e, a partir disso, atingir-se-ia uma decisão. No entanto, em face da grande

extensão territorial dos países e do enorme contingente populacional, é bastante improvável

implantar, nos dias atuais, uma democracia direta.

Assim, a representatividade emergiu em períodos revolucionários em que camadas

sociais inferiores estavam imbuídas do desejo de terem seus ideais representados e,

consequentemente, por ora atendidos. Perceptivelmente, a representatividade está consolidada

nas ditas democracias ocidentais, mas os ideais que fundamentam o surgimento de partidos

políticos, peças-chave no sistema representativo, estão comprometidos por outros interesses

que não ideológicos, especialmente no Brasil.

Partido político pressupõe uma agremiação em que prevalece um pensamento

genérico comum e que, a partir dele, ocorrerão as decisões tomadas por atores políticos

adeptos desse partido. No Brasil, sabe-se que, por assim não acontecer, determinados partidos

“moldam” seus paradigmas para permanecerem no cenário de atuação e findam gravitando

em torno de partidos maiores.

Obviamente, essa problemática emana de diversos fatores pregressos que

contribuíram para a formação do cenário político brasileiro ao longo da história. Destaca-se,

dentre tantos, o breve contato entre certos partidos e a população durante o período eleitoral,

isto é, é possível aduzir que a falta de empatia ideológica da população com alguns partidos

ocorre devido a uma precária interlocução nos pleitos eleitorais.

Nesses períodos, os diversos partidos necessitam de angariar recursos, com o

objetivo de tornarem públicas as suas ideologias e, assim, conseguirem eleger parte dos seus

representantes políticos.

A partir daí surge o dilema do financiamento das campanhas eleitorais.

O financiamento atual brasileiro consiste também em usar fundos de origem pública,

mediante o Fundo Partidário e horário obrigatoriamente cedido pelas emissoras de rádio e

televisão, destinados ao exercício da propaganda eleitoral gratuita.

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Já o financiamento privado se dá pela possibilidade de doações financeiras de cunho

privado a candidatos ou a partidos políticos, tanto por pessoas físicas como jurídicas.7

A legislação eleitoral brasileira adota o financiamento privado das campanhas

políticas, cabendo aos partidos angariar recursos que custeiem seus gastos eleitorais.8

Contudo, esse sistema não é exclusivo, tendo em vista o emprego de recursos públicos, como

os disponíveis pelo fundo partidário, instituto que será estudado mais adiante.

O financiamento público exclusivo, ou seja, a vedação a qualquer tipo de doação de

cunho privado direcionado a financiar pleitos eleitorais, não é uma técnica muito utilizada

pelas diversas Nações. Até então, o Uzbequistão é o exemplo mais expressivo de onde tal

sistema foi adotado.

Sendo assim, é importante, logo de início, deixar claro que a proposta aqui aventada

não é a de adoção do financiamento público exclusivo, com a consequente extirpação do

financiamento privado. O que aqui se propõe é uma análise mais aguçada de como é feito o

repasse de verbas provindas do atual financiamento público, bem como a colaboração do

financiamento privado para a concentração do poder.

Serão feitas as devidas críticas, acompanhadas de prováveis soluções, para o dilema

existente entre os financiamentos público e privado, a fim de se garantir a afamada isonomia

da qual a política brasileira tanto prescinde.

A seguir estudaremos com maior propriedade o financiamento público das

campanhas eleitorais e alguns de seus mecanismos passíveis de aperfeiçoamento, bem como

propostas de mudanças as quais, ao nosso ver, seriam de fundamental importância no que

tange à reforma política brasileira.

3.2 Posicionamento crítico

O Brasil arrecada, nos tempos de eleições presidenciais, cerca de dois bilhões de

reais provenientes de financiamentos privados, sendo que a maior parte desse dinheiro é

cedido por grandes empresas. Há de se considerar que somas tão fartas não são doadas sem

7Financiamento e gastos de campanha eleitoral. Boletim Informativo da Escola Judiciária Eleitoral do TSE. n. 13, 6 set. 2010 Disponível em: <http://www.tse.jus.br/hotSites/eje/arquivos/informativos/13_Financiamento_Gastos_Campanha_Eleitoral.pdf > Acesso em: 22 ago. 2012. 8GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Direito Eleitoral. São Paulo: Atlas, 2010, v.18, p.90.

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um interesse oculto. Também seria inocência afirmar que os grandes bancos e as grandes

empreiteiras investem em campanhas eleitorais com o objetivo de proporcionar avanços

políticos e garantir a democracia no País. Não requer muito esforço, portanto, perceber que

parte da representação política potencialmente captável pelos grandes financiadores geram, a

curto prazo, uma certa proteção à interesses especiais.

Em outras palavras, existe, no Brasil, uma compra de influência política de forma

legalizada, pois frequentemente grandes empresas fazem a captura de políticos por meio de

vultosos financiamentos, o que, tecnicamente, não é corrupção, uma vez que a ação em apreço

não é ilegal.

Luiz Carlos dos Santos, dissertando dobre o tema, com precisão, assevera:

O financiamento das campanhas eleitorais é um dos focos da corrupção, favores ilícitos e venalidade de muitos representantes populares no Brasil. As campanhas são caras e, por vezes, interesses que se ocultam no escuro são lembrados para custear a campanha de candidatos. Se estes forem eleitos, ficarão vinculados a tais interesses, devotando seus mandatos a eles e não ao povo que devem representar.9

Percebe-se, portanto, que o cerne do problema está na influência desproporcional

exercida por alguns poucos financiadores (de expressivo poder econômico) sobre os políticos

que conseguem ser eleitos. Se as doações são concentradas, aqueles que investiram alguns

milhões nas campanhas políticas se acham no direito de cobrar dos que foram eleitos com a

sua ajuda, gerando, assim, trocas de favores que costumam refletir na formulação de leis.

O financiamento privado, portanto, firma alicerces influenciadores de grandes

corrupções, uma vez observado o vínculo criado pelos candidatos aos seus financiadores.

Exemplificativamente, quando surge alguma discussão de interesse das citadas grandes

empresas financiadoras, o dinheiro ao qual inicialmente foi investido em campanha eleitoral,

com certeza, exercerá sua ponta de influência sobre os projetos de lei que tramitam em

Congresso. Sendo assim, discussões legislativas que deveriam atender aos apelos sociais,

muitas vezes, podem se tornar monopolizáveis por interesses específicos.

3.3 Corrupção

9Idem, p.90.

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Não seria exagero afirmar que a corrupção, infelizmente, tornou-se uma prática

arraigada no cenário político brasileiro. Aqueles que estão no poder aspiram nunca perdê-lo e

isso gera tentativas obstinadas de manter, a qualquer custo, as garantias até então obtidas,

fazendo com que muitos partidos lancem mão de grandes financiamentos, com o objetivo de

vencer sucessivas eleições. Renato Janine Ribeiro descreve, com maestria, o que ocorre

atualmente:

[...] em nossos dias cresce uma corrupção pós-moderna. Esta não é um furto aos cofres públicos efetuado por indivíduos ou classes gananciosos. É, em seu cerne, uma corrupção fruto da busca do poder pelo poder, que portanto se auto-alimenta, porque a praticam grupos que têm por finalidade principal reeleger-se, assim necessitam de recursos pingues para serem competitivos no próximo pleito.10

Destarte, é imprudente afirmar que uma eleição não perpassa pelo poder econômico,

haja vista a influência da economia não só no processo eleitoral, mas em todo o Direito. Para

Ferdinand Lassalle, existe uma força ativa, dentro de cada sociedade, que influencia as leis e

as instituições jurídicas vigentes. Nessa perspectiva, é evidente que o poder econômico

constitui, à luz desse autor, essa força, denominada de fator real de poder11.

Assim, é válido frisar que “não há como deixar de reconhecer que a relação entre

dinheiro, campanhas eleitorais e partidos políticos atinge a todas as sociedades que

formalmente aceitaram as regras da democracia”.12 Deve-se, pois, analisar o modo como

haverá essa relação, com o fito de zelar pela lisura do processo eleitoral e promover as

ideologias partidárias.

Quando se analisa a situação brasileira, percebe-se que a corrupção no sistema

eleitoral tem ganhado amplitude notória. O poder econômico nas campanhas eleitorais

interfere diretamente no princípio de igualdade dos partidos, fato que, de certa forma, reflete

negativamente na soberania popular, seja na compra de votos, ou nas doações bondosas em

tempos de eleição ou nas campanhas ruidosas que tudo prometem resolver no subsequente

quadriênio.

10RIBEIRO, Renato Janine. Financiamento de Campanha. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p 79. 11LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001, p 10-11. 12LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. A democracia da atualidade e seus limites: o financiamento público de campanhas eleitorais. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 30 de abril de 2012.

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Obviamente, extirpar a corrupção de um país é tarefa utópica. Elaborar meios,

contudo, para evitá-la é absolutamente necessário. Portanto, impende lembrar que, sem

mecanismos severos de fiscalização, qualquer tipo de reforma na conjuntura política brasileira

fica, de certa forma, propensa a ruir diante da corrupção.

3.4 Do financiamento privado

A melhor forma de se justificar as hipóteses aventadas em prol do financiamento

público é contestar os principais argumentos favoráveis ao financiamento atual das

campanhas.

Assim, a preferência pela manutenção do atual sistema privado de financiamento dos

partidos, fundamenta-se em ideias restritas como a de que o Brasil não direciona recursos

suficientes para investir nos direitos sociais, tornando inviável destinar altas somas ao custeio

do processo eleitoral.

Tais levantamentos, contudo, estão travestidos de opiniões herméticas que

desconsideram os vultosos gastos oriundos da corrupção, sustentados, inclusive, pelo

financiamento privado das campanhas eleitorais:

Dados da organização Transparência Internacional e projeções da Federação das Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp) revelam que, no cenário mais otimista, o Brasil responde por 26% de todo o dinheiro movimentado pela corrupção no mundo. Na pior hipótese, esse índice alcança 43%. Enquanto as perdas médias globais anuais com o problema giraram perto dos R$ 160 bilhões nos últimos seis anos, o prejuízo nacional pode ter chegado a R$ 70 bilhões por ano — ou 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB).13

Os mais céticos ainda levantam a hipótese de que o financiamento público alardearia

maiores incentivos à forma clandestina de financiamento privado, sem conseguir eliminar a

pressão do poder econômico.14 Não há como se promover, entretanto, mudanças efetivas

13BATISTA, Vera. FONSECA, Marcelo da. Amarribo Brasil. Disponível em: < http://www.amarribo.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1107:brasil-abriga-ate-43-da-corrupcao-do-mundo&catid=50:combatendo-a-corrupcao&Itemid=152>. Acesso em: 31 mar. 2012. 14CASSEB, Paulo Adib. Financiamento público de campanha. In: ROLLO, Alberto (Org.). Reforma Política: uma visão prática. São Paulo: Iglu, 2007, p.66.

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dentro dessa contextura de financiamento público, sem asseverar formas que

instrumentalizem e garantam a transparência desse processo.

Cabe aqui uma rápida advertência: não se trata de ceder ao ingênuo argumento,

diversas vezes utilizado pelos defensores do financiamento privado, no sentido de que a

extinção deste modelo fomentaria uma espécie de mercado negro no âmbito das campanhas

eleitorais. Ocorre que o financiamento privado no Brasil apresenta, em suas raízes, defeitos

congênitos que muito colaboram para a perpetuação inadequada de uma minoria corrupta no

poder.

Senão vejamos.

Pessoas jurídicas podem doar até dois por cento do seu faturamento bruto para as

campanhas eleitorais. O teto de doação não é o mesmo para as pessoas físicas. Para estas, a

margem máxima do que pode ser cedido às campanhas é de dez por cento do que é declarado

no imposto de renda.15

Outrossim, não à toa, pouco se vê o investimento de pessoas físicas nas campanhas

eleitorais. Centralizando a discussão, percebe-se que igualar os montantes de doação das

pessoas físicas ao das grandes empresas não é uma tarefa fácil. Quase ninguém vai querer

fazer uma doação de dez por cento do seu rendimento econômico, enquanto que, para as

grandes corporações, torna-se mais fácil doar dois por cento do seu faturamento milionário.

Em outras palavras, o financiamento privado gera um ciclo vicioso. Alguns

candidatos são financiados com altos montantes provindos de grandes empresas. Justamente

por as doações serem de alto valor, reduz-se o número de financiadores. Depois de eleitos, os

políticos passam a atender interesses concentrados dos poucos que financiaram as suas

campanhas. Percebe-se, assim, que é mais cômodo para os candidatos requererem altos

financiamentos das grandes empresas do que pequenas doações de muitas pessoas físicas.

Acrescente-se, também, o fato de ser mais fácil atender aos interesses de poucos [as grandes

empresas] do que o de muitos [pessoas físicas].

Isso gera uma indução ao financiamento concentrado, justificando a máxima de que

não são somente os políticos que preferem adquirir o financiamento de grandes empresas, mas

sim a forma como está disposto o financiamento privado que os induz a optarem por tal

decisão.

15Os valores de porcentagens para financiamento auferidos às pessoas físicas e jurídicas foram regulamentados pela Lei nº 9.504/97, nos respectivos dispositivos: art. 23, § 1º, I e art. 81. § 1º.

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3.5 Do fundo partidário

O título II da Carta Magna de 88 dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais.

Entendem-se os Direitos Fundamentais como normas jurídicas axiológicas que dão base a

todo ordenamento jurídico e que têm por premissa garantir a dignidade da pessoa humana e a

limitação do poder estatal.16 As disposições que asseguram a existência dos partidos, além de

outros requisitos para seu funcionamento, encontram-se inseridos no título supracitado,

tamanha a importância dos partidos políticos para a manutenção da democracia.

Precisamente no § 3º do Art. 17 da Constituição Federal17, o legislador originário

previu a existência de um fundo partidário a ser regulamentado por lei infraconstitucional.

Assim sendo, utilizando-se de uma interpretação mais teleológica, pode-se afirmar que o

legislador constituinte decidiu promover uma ajuda financeira aos partidos para que pudessem

sustentar suas bandeiras, com menores riscos de sucumbirem sem, ao menos, terem a

oportunidade de chegar ao Poder. Para alguns, o Fundo Partidário é até mesmo o embrião do

financiamento público de pleitos eleitorais.

Guardando as suposições e atendo-se aos fatos, o Fundo Especial de Assistência

Financeira aos Partidos Políticos, o Fundo Partidário, é formado por dotações orçamentárias

da União, multas, penalidades, doações e outros recursos financeiros que lhes forem

atribuídos por lei. Esse montante, procedente tanto do setor privado como do setor público, é

administrado pelo TSE, regido pela Lei nº 9096/95, e são repassados aos partidos

mensalmente. Em seu Art. 41A18, o texto legal prescreve que apenas 5% dos recursos

arrecadados serão destinados a todos os partidos registrados no TSE, enquanto 95% serão

distribuídos aos partidos proporcionalmente aos votos que estes receberam para a Câmara dos

Deputados na última eleição.

16MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p. 20. 17In verbis: Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: [...] § 3º - Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei. (grifo nosso) 18In verbis: Art. 41-A. 5% (cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral e 95% (noventa e cinco por cento) do total do Fundo Partidário serão distribuídos a eles na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.

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Ao todo, no ano de 2011, somadas as quantias provenientes das multas e dos

duodécimos, o valor arrecadado para o Fundo foi de R$ 307.317.749,00. No entanto, o que

mais surpreende não é o valor absoluto da quantia, mas a discrepância entre o partido que

mais recebeu [R$ 51.072.690,48] e o que menos recebeu [R$ 144.472,59].19

Desse modo, há de se salientar que a distribuição do Fundo Partidário constitui uma

grave ofensa ao princípio da isonomia, visto que seus objetivos básicos são, dentre outros,

garantir a manutenção das sedes e serviços dos partidos e financiar a propaganda doutrinária e

política, previstos na própria Lei nº 9096/95.20 O que não pode ocorrer, de fato, dado a imensa

dissonância entre os montantes recebidos. Pode ser ousado, mas é válido afirmar, portanto,

que parte da referida lei é inconstitucional por estabelecer diferenças entre partidos sem

fundada razão, ferindo a igualdade material prevista na Constituição.

Além da ofensa a um princípio basilar do ordenamento jurídico, o repasse do Fundo

Partidário gera um tendente ciclo ad infinitum, pois os partidos que já estão no Poder

receberão mais e, por conseguinte, terão mais chances de lá permanecer.

Ao perscrutar a realidade política brasileira, percebe-se que muitos são os entraves

para o aperfeiçoamento da democracia. O Fundo Partidário, do modo como atualmente é

regulado, não será um embrião para o financiamento público dos pleitos eleitorais, mas um

meio institucional de privilegiar a maioria que já está no poder, reduzindo as chances das

minorias também chegarem.

4 PRINCÍPIO DA ISONOMIA COMO PILASTRA DO FINANCIAMENTO PÚBLICO

DOS PLEITOS ELEITORAIS

19Todos os valores apresentados são a soma da arrecadação dos duodécimos e das multas. TSE. Disponível em < http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-fundo-partidario-duodecimos-de-2011 >. Acesso em: 26 abr. 2012; Disponível em: < http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tse-fundo-partidario-multas-de-2011 >. Acesso em: 26 abr. 2012. 20In verbis: Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados: I - na manutenção das sedes e serviços do partido, permitido o pagamento de pessoal, a qualquer título, observado neste último caso o limite máximo de 50% (cinquenta por cento) do total recebido; II - na propaganda doutrinária e política; III - no alistamento e campanhas eleitorais; IV - na criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, sendo esta aplicação de, no mínimo, vinte por cento do total recebido. V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total.

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O financiamento público de campanhas, prima facie, “é uma salvaguarda do

princípio isonômico [igualdade de todos perante a lei] e um meio de coibir o abuso do poder

econômico nas eleições”,21 em outras palavras, é uma forma admissível de se conter os

ímpetos potestativos daqueles que se utilizam de mecanismos corruptos em pleito eleitoral.

O financiamento público dispõe de mecanismos que podem propiciar requisitos

igualitários entre os candidatos, já que, teoricamente, todos iriam dispor de um mesmo

montante para a campanha. Além disso, promoveria uma disputa mais justa, em que o poder

de convencimento do eleitorado seria peça-chave para o triunfo do candidato, e não uma

vitória promovida por aquele que conseguiu angariar ofertas mais expressivas de cunho

privado.

É fato que partidos políticos são entidades de direito privado e que, a princípio, não

deveria haver intervenções estatais. Por isso, são livres para convencionar seus estatutos e

defender as suas bandeiras. No entanto, sua vocação é exclusivamente pública, isto é, a razão

de existência de um partido é representar ideais na ordem pública. Então, o que aqui se propõe

é garantir que a vontade popular seja exercida plenamente nos termos da Lei Maior. Ademais,

investir em um sistema em que todos os partidos tenham iguais chances de demonstrar suas

ideologias seria um enorme avanço para a democracia.

Ainda nessa diretriz, é patente a tentativa, por meio do financiamento público, de

homologar a independência dos candidatos em contraponto à influência do poder econômico.

Como aduz Hervé Trnka:

[...] a ajuda pública aos partidos políticos constitui, evidentemente, o aspecto novo da regulamentação das relações do dinheiro e da política. Ela possui um certo número de objetivos e deve responder a um certo número de imperativos. Os objetivos são a independência e a liberdade dos partidos que, em face das necessidades financeiras, não devem se submeter a uma dependência para fazer cessar a falta de meios.22 (grifos nossos)

O poder, por si só, demanda desigualdade, ao passo que para se atender aos anseios

de uma sociedade plural, necessita-se de investir poderes, de forma concentrada, a alguns que

respondam pela maioria.

21DIRCEU, José. IANONI, MARCUS. Reforma Política: Instituições e democracia no Brasil atual. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 38. 22TRNKA, Hervé. Droit comparé du financement des partis politiques, des campagnes électorales et de La transparence des patrimoines des hommes politiques. In: TRNKA, Hervé (Org). Campagnes électorales et transparence financière. Paris: Economica, 1989, p.21. (tradução nossa)

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Todavia, essa, de certa forma, afronta ao princípio da isonomia só pode ser tolerada

até o momento em que os que receberam o título de representantes da maioria não usem a

máquina administrativa em favor de interesses particulares.

Aqui trazemos, novamente, ao centro das discussões, o repasse desigual de verbas

aos partidos políticos, feito a partir do Fundo Partidário. Considerando os argumentos

anteriormente já expostos, há de se acrescentar a crítica de Djalma Pinto, o qual fala que o

próprio Estado estaria contribuindo para a disseminação da desigualdade, ao passo que a

distribuição desigual fere o princípio nuclear de toda competição legítima, que é o princípio

da isonomia.

Fala-se, ainda, no desrespeito ao próprio contribuinte, uma vez que aos fornecedores

do dinheiro é desapontador saber que seu tributo, compelido aos cofres do Estado, está sendo

utilizado de forma a contribuir para os desequilíbrios entre os candidatos das campanhas

eleitorais.23

Por fim, reputa-se imprescindível para a seara jurídica buscar, ainda que seja

inatingível, a plena sensação de justiça. Vejamos, portanto, como a ideia de justiça se atrela ao

princípio em pauta.

Quando surgiu a ideia de isonomia entre os pensamentos burgueses na Revolução

Francesa, concebia-se essa igualdade apenas perante a lei, ou seja, todos deveriam ser tratados

igualitariamente na aplicação das normas jurídicas. À mesma época, experimentou-se também

a chamada Escola da Exegese, em que, em suma, o juiz era apenas um mero aplicador da lei.

Isso tudo deu margem ao surgimento a um Estado legalista em que a igualdade era, de fato,

apenas simbólica.

Atualmente, após experiências trágicas do legalismo dogmático24, é importante

acautelar uma igualdade pluridimensional. Além da igualdade na aplicação do direito, J. J.

Gomes Canotilho revela que se deve assegurar também a igualdade quanto à criação do

direito. O diferencial da ideia percebida por esse autor é que, ao se criar uma lei, deve-se

observar a igualdade justa. Atingir-se-ia a justiça a partir de um juízo e um critério de

valoração.25

Eis aqui, pois, a constatação. O modo atual como o Fundo Partidário é

regulamentado já demonstrou ferir a igualdade material, haja vista a infundada desigualdade

23PINTO, Djalma. Direito Eleitoral: improbidade administrativa e responsabilidade fiscal. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p:187. 24A fiel execução da lei sem questionamento de seu conteúdo permitiu que surgissem regimes totalitários, como o Nazismo. Nessa época, foram brutalmente eliminadas milhões de pessoas. Tudo isso sob a égide da lei. 25CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000, p. 416-420

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no repasse de verbas entre os partidos. Por seu turno, o financiamento privado, em sua

essência, não fere nem a igualdade material nem a igualdade formal. Em contrapartida, já

apresentadas aqui infindáveis vantagens do financiamento público, cabe apelar, em último

grau, para o senso de justiça. Assim sendo, à luz do pensamento de igualdade de Canotilho

supracitado, pode-se afirmar que mais justo seria se todos os candidatos pudessem ter iguais

chances de ascender ao Poder.

4.1 Democracia e Governabilidade: institutos antitéticos do poder

No presente momento é cabível uma breve abordagem acerca de dois temas que

cerceiam o princípio da isonomia, quais sejam a democracia e a governabilidade. Uma vez

que a democracia prima pela igualdade de todos perante os seus direitos, a governabilidade

surge como instrumento de afronta, pois se mostra totalmente em oposição à representação

das maiorias. Não é intento nosso, contudo, assumir aqui uma das posições e defendê-la

severamente. O principal objetivo é mostrar, dentro da esfera da reforma política, como se é

difícil garantir o princípio da isonomia no campo político brasileiro, considerando o contexto

em que institutos tão opostos estão a configurar e a lutar, cada um por seu espaço, em um

mesmo plano político.

Para alguns críticos mais severos, a governabilidade que os últimos Presidentes da

República gozaram é baseada em troca de favores.26 Para outra corrente, o que ocorre aqui é

um fenômeno tendente nos países democráticos: governo de coalizão. Nessa conjectura, o

chefe de governo precisa de apoio de outros partidos para poder conseguir lograr êxito nas

suas medidas políticas. É sabido que, em qualquer regime democrático de direito, não há

governo sem diálogo. Quanto mais houver interesses envolvidos, mais custoso é o processo

de negociação e mais difícil o controle dos atores envolvidos.27

Por isso, a boa relação entre o Poder Executivo e o Legislativo é essencial para o

avanço de leis, mas há de se notar que aqui, há algum tempo, boa parte dos parlamentares

assumem uma posição extremamente governista, em detrimento de uma oposição bem

26Há de se notar que, no Brasil, muitas vezes o Governo, a fim de alcançar seus objetivos no Congresso Nacional, oferece cargos como Ministérios para garantir que alguns partidos permaneçam na base aliada, o que pode ser entendido por alguns como “troca de favores”. 27SANTOS, Fabiano. Em defesa do Presidencialismo de Coalizão. In: SOARES, Gláucio Ary Dillon; RENNÓ, Lúcio R. (Org). Reforma política: Lições da história recente. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 287.

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articulada. Por assim ocorrer, muitos assuntos de grande importância social deixam de ser

debatidos porque, em determinadas situações, o Congresso Nacional torna-se uma extensão

dos interesses do Governo.

O dissenso, a discussão em plenário, que deveria ocorrer frequentemente no

Congresso Nacional, torna o jogo democrático mais rico e interessante para os diversos

grupos que integram uma sociedade. No entanto, como foi dito outrora, governabilidade e

democracia são institutos inversamente proporcionais. Quer-se tanto promover a democracia,

por meio de uma Reforma Política, mas a governabilidade é essencial para o avanço político,

social, econômico e jurídico de um país. É necessário, portanto, que haja um equilíbrio.

Como solução para esse dilema, trazendo à baila novamente o financiamento

público, pode-se afirmar que esse evento poderia ocasionar, a longo prazo, o fortalecimento

dos Poderes, especialmente do Legislativo, já que os atores políticos não ficariam tão

dependentes de alianças duvidosas para o pleito seguinte, pois contariam todos com o mesmo

montante financeiro, nem ficariam tão receosos de ir contra os interesses do Governo.

A partir daí, então, atingido certo nível democrático, os mais diversos grupos sociais

representados poderiam reivindicar seus interesses e lutar pela sua inclusão social. Em

contrapartida, quando os interesses deixassem de ser meramente setoriais e passassem a

envolver planos nacionais, um governo de coalizão, leia-se um governo de diálogo, seria uma

solução plenamente viável tanto para equilibrar aqueles institutos dicotômicos quanto para

promover os avanços no País.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reforma Política é um termo abrangente que envolve uma série de intervenções em

um sistema político com um propósito maior: promover ao máximo o exercício da soberania

popular. Reformar significa, em tese, aprimorar aquilo que já existe ou restaurar o que já está

fatigado. Analisando nessa perspectiva, o sistema político brasileiro, em alguns pontos, é

avançado em comparação com de outros países, precisando apenas de algumas melhorias,

enquanto, por outro lado, já demonstra grandes fissuras no que tange ao máximo exercício da

soberania popular. Por exemplo, o Fundo Partidário é uma previsão constitucional

extremamente avançada, contudo precisa apenas ser mais bem distribuído, ao passo que o

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Código Eleitoral, nascido em meio à Ditadura Militar, já se encontra desgastado e precisa de

grandes remodelações.

Desta forma, tendo em vista todo o exposto nesse estudo, algumas conclusões

merecem ser aqui costuradas.

A primeira delas refere-se ao fato de que o financiamento público de campanhas

eleitorais, em tese, seria capaz de promover maior independência dos partidos políticos, maior

difusão das ideologias partidárias e, por fim, o aprimoramento da democracia. Não seria

conveniente dizer, porém, que esse evento fomentaria o fim da corrupção. Essa vicissitude

impregnará sempre a condição humana. Ser humano significa ser potencialmente passivo de

corrupção.

Além disso, é necessário, em um país aspirante à consolidação do Estado

Constitucional de Direito, examinar constantemente a legislação ordinária, a fim de embasar

todo o Ordenamento com os princípios da Constituição. O Financiamento Público, pois, se

mostrou um meio eficaz de garantir, em especial, o princípio constitucional da isonomia entre

os partidos, gerando não somente a igualdade na letra da lei, mas promovendo, em última

estância, a maximização da democracia.

Ocorre que, de fato, em meio ao desequilíbrio político que o financiamento público

poderia ocasionar com tantas minorias eleitas, encontra-se um governo de coalizão para

garantir o diálogo e os avanços no plano nacional.

De tal forma, o que se precisa é de um Estado mais ágil e eficaz; uma Administração

que prime pela cidadania e qualidade de seus serviços; e a Política como exercício da

soberania popular, comprometendo-se com uma ordem social embasada de justiça e ética

sociais.28

Ademais, é necessário que a população em geral manifeste-se em favor da

democracia, reivindicando mudanças que julguem positivas. Afinal o poder emana do povo e,

em seu nome, deverá ser exercido. É imprescindível para um país que seu povo saiba escolher

cautelosamente seus representantes. Max Weber assevera sabiamente que não teria se atingido

o possível se não houvesse tentado o impossível. Para esse autor, somente o representante que

é capaz de esforço para tentar o impossível deve ser um líder e esse, somente esse, terá a

política como vocação.29

28AYDOS, Eduardo Dutra. Democracia plebiscitária: utopia e simulacro da reforma política no Brasil. Porto Alegre/Canoas: Universidade/UFRGS/Centro Educacional La Salle de Ensino Superior, 1995, p.25. 29WEBER, MAX. Ciência e Política: Duas vocações. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 124.

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Finalmente, conclui-se, em termos gerais, que toda mudança é uma tarefa difícil para

qualquer sistema complexo, quiçá um sistema político. No entanto, tão logo ocorram as

mudanças aqui apresentadas, o Brasil tenderá a se consolidar ainda mais como um país

politicamente desenvolvido, servindo, até mesmo, de inspiração para tantos outros que ainda

vivem à sombra do populismo e do autoritarismo.

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