direitos humanos na prisÃo civil do devedor … · 1 art. 5°, § 2°: “os direitos e garantias...

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1 DIREITOS HUMANOS NA PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR FIDUCIANTE EM GARANTIA Fernanda Ferrarini * Introdução A partir do século XVIII, o século das Luzes, os direitos da pessoa humana ganharam relevância, valorizando o cidadão. A Inglaterra foi pioneira em proteger os direitos do homem em 1684, seguida dos EUA, em 1778 e da França, em 1789, até culminar na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1948. Aflorou-se uma sistemática internacional de proteção aos direitos humanos, responsabilizando o Estado no plano externo, quando seus órgãos competentes não solucionavam os conflitos internos. A universalidade e a indivisibilidade de tais garantias superaram a tradicional divisão de direitos, que priorizava os interesses públicos. Atualmente vigora a era dos direitos internacionalmente tutelados, especialmente após a II Guerra Mundial, haja vista as atrocidades ocorridas com Hitler. Houve um amadurecimento dos direitos da pessoa humana, do respeito ao homem, que ultrapassou interesses exclusivamente dos Estados e assim, a soberania estatal absoluta. Predomina a globalização dos direitos humanos, a defesa contra à discriminação racial, da mulher, a exploração do trabalho infantil, direitos civis e políticos, dos presos, ressaltando os direitos individuais, sociais, econômicos, políticos, culturais, a liberdade. O ápice desses direitos ocorreu com a Constituição Federal de 1988, cujo espelho foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, muito embora, desde 1919 já existisse a Organização Internacional do Trabalho, determinando normas * Fernanda Ferrarini é graduada e Mestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP (pesquisadora da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Advogada e consultora jurídica, membro da Associação dos Advogados de São Paulo, Docente Universitária.

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DIREITOS HUMANOS NA PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR

FIDUCIANTE EM GARANTIA

Fernanda Ferrarini *

Introdução

A partir do século XVIII, o século das Luzes, os direitos da pessoa humana

ganharam relevância, valorizando o cidadão. A Inglaterra foi pioneira em proteger os

direitos do homem em 1684, seguida dos EUA, em 1778 e da França, em 1789, até

culminar na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1948.

Aflorou-se uma sistemática internacional de proteção aos direitos humanos,

responsabilizando o Estado no plano externo, quando seus órgãos competentes não

solucionavam os conflitos internos. A universalidade e a indivisibilidade de tais

garantias superaram a tradicional divisão de direitos, que priorizava os interesses

públicos.

Atualmente vigora a era dos direitos internacionalmente tutelados,

especialmente após a II Guerra Mundial, haja vista as atrocidades ocorridas com Hitler.

Houve um amadurecimento dos direitos da pessoa humana, do respeito ao homem, que

ultrapassou interesses exclusivamente dos Estados e assim, a soberania estatal absoluta.

Predomina a globalização dos direitos humanos, a defesa contra à discriminação

racial, da mulher, a exploração do trabalho infantil, direitos civis e políticos, dos presos,

ressaltando os direitos individuais, sociais, econômicos, políticos, culturais, a liberdade.

O ápice desses direitos ocorreu com a Constituição Federal de 1988, cujo

espelho foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, muito embora,

desde 1919 já existisse a Organização Internacional do Trabalho, determinando normas * Fernanda Ferrarini é graduada e Mestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP (pesquisadora da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Advogada e consultora jurídica, membro da Associação dos Advogados de São Paulo, Docente Universitária.

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mínimas de trabalho digno. Ela criou parâmetros consentâneos com a nova ordem

mundial, fruto de uma profunda tendência à socialização do Direito.

Logo nos primeiros artigos da CF/88, arts. 1°, 5°, 6°, 7°, constam direitos

mínimos do homem, conforme a maioria dos ordenamentos jurídicos alienígenas. No

seu § 2° do art. 5° 1 consta que tais garantias são exemplificativas, não excluem outras,

nem mesmo presentes em tratados internacionais que o Brasil eventualmente possa vir a

ratificar.

Ao incorporar estes direitos internacionalmente protegidos a Constituição

Federal está concedendo-lhes natureza jurídica constitucional e concomitantemente,

enfraquecendo a soberania estatal absoluta, de conformidade com os modernos

doutrinadores internacionalistas. Os tratados internacionais que não cuidam de direitos

humanos não receberão igual tratamento, sendo incorporados como normas

infraconstitucionais.

Em abono a tal privilégio, o § 1° do art. 5° da Carta Magna complementa que

“as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”

Então, tão logo forem ratificados, os tratados com conteúdo de direitos humanos têm

aplicação instantânea, dispensando a edição de decretos para promulgá-los, além de

constituírem cláusulas pétreas (CF/88, art. 60, § 1°, IV – “qualquer proposta tendente a

abolir direitos e garantias individuais não será objeto de deliberação”), cuja violação

propiciará intervenção federal (art. 34, inc. VII, ‘b’).

Embora a distinção em Direito Público e Privado seja didática, é assente sua

existência: norteia princípios específicos, finalidades, efeitos e decisões mais

apropriadas à utilidade precípua da lei, conforme seja pública ou privada. No entanto, a

Constituição influenciou sobremaneira o Código Civil, socializando-o, de forma a

originar uma intrincada interação de um com o outro.

1 Art. 5°, § 2°: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (Constituição da República Federativa do Brasil, 33ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 13).

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1. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA

O CC/16 não regulou a fidúcia, a comissão, a corretagem, a incorporação

imobiliária, os contratos bancários, o contrato estimatório, de transporte, de agência e

distribuição, de factoring, lesasing, o eletrônico, dentre outros.

A fidúcia 2 é uma modalidade contratual própria dos países do common law, não

tratada nos países de origem romano-germânica, como o nosso. Por isso, o CC/02

também não regulou especificamente esse contrato, mas só a propriedade fiduciária

(arts. 1361-8).

Mas o direito romano conhecia o negócio fiduciário: fiducia cum amico –

contrato de confiança e não de garantia, onde o fiduciante alienava seus bens a um

amigo, sob condição de lhe restituir, quando cessassem as circunstâncias aleatórias

(p.ex. guerra, viagem, fatos políticos, etc) – fiducia cum creditore – caráter de garantia,

onde o devedor vendia seus bens ao credor, sob condição de recuperá-los, após efetuar o

pagamento.

“In casu”, em ambos os contratos transferia-se o bem ou direito em troca de um

fim: o adquirente devolveria-o, após o alienante cumprir escopo específico, como o

pagamento do débito, ou para resguardar a coisa de riscos. Foram institutos muito

usados na era clássica, mas abolidos com Justiniano.

Em resumo, considerava-se negócio fiduciário aquele em que se transmitia uma

coisa ou direito ao fiduciário, em geral, bens móveis duráveis 3, para garantir ou

2 “Fidúcia é o contrato pelo qual uma das partes, recebendo da outra bens móveis ou imóveis, assume o encargo de administrá-los em proveito do instituidor ou de terceiro, tendo a sua livre administração, embora sem prejuízo do beneficiário” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. V. 3, Rio de Janeiro: Forense, p. 382). 3 Contrato dirigido a coisa fungível traz inconvenientes. O STJ já uniformizou-se no entendimento de ser descabido: “BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Alienação fiduciária – Bens fungíveis e consumíveis – Orientou-se a jurisprudência do STJ no sentido de que bens fungíveis e consumíveis não podem ser objeto de alienação fiduciária. Recurso não conhecido, aplicando-se quanto ao capítulo do dissídio, a Súmula 83” (Resp. n° 43.561/SP – Rel. Min. Costa Leite – julgado em 17.4.95 – Decisão unânime).

“BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Alienação fiduciária - Bens fungíveis e comerciáveis – Impossibilidade de serem alienados fiduciariamente – Os bens fungíveis que constituem mercadoria comerciável da empresa vendedora (sapatos, tamancos, bolsas,

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resguardar direitos, estabelecendo a obrigação do adquirente devolvê-los ao alienante,

após atender um fim pretendido. Eram tratadas como figuras negociais fiduciárias: a

venda e compra com fins de garantia; a venda com fins de administração; a venda para

recomposição de patrimônio; a venda e compra com reserva de domínio.

A alienação fiduciária em garantia, semelhante à fiducia cum creditore, dos

romanos, é uma garantia real, onde há transferência do domínio resolúvel e da posse

indireta da coisa móvel alienada ao credor, independentemente da tradição efetiva do

bem, ou seja, mediante tradição ficta (constituto possessório), em garantia do débito do

devedor, resolvendo-se o direito do adquirente com o adimplemento da obrigação, ou

melhor, com o pagamento da dívida garantida (Lei n° 4.728/65 - Lei do Mercado de

Capitais, arts 66 e 68, alterada pelo Decr.-lei n° 911/69; CC/02, art. 1.361).

O devedor ou alienante torna-se possuidor direto e depositário. O credor

fiduciário adquire a propriedade dos bens alienados pelo devedor fiduciante, mas não é

proprietário pleno. Apenas detém propriedade resolúvel, que por sua vez, confere-lhe

todos os direitos de dono, ainda que seja temporariamente 4.

O instituto tem duas finalidades precípuas: a) propiciar maior garantia aos

credores, que detêm a propriedade resolúvel da coisa móvel financiada, enquanto não

pago o bem, ou seja, tornar as operações de crédito mais vantajosas, reduzindo custos e

riscos de inadimplência, pois trata-se de mútuo, seja bancário 5 ou civil; b) acoroçoar o

sandálias) não podem ser objeto de alienação fiduciária, pois por sua própria natureza destinam-se à venda imediata pela devedora, no exercício normal de seu ramo de mercancia, e nem poderá haver certeza ou possibilidade de reposição de idênticos produtos ao tempo do vencimento da dívida. – Não é lícita, aliás, em casos tais, a prisão civil, porque se depósito houvesse seria depósito irregular, sujeito às regras do mútuo, inviável, o retrocesso aos tempos prístinos da execução por coação corporal. Votos vencidos. Recurso especial conhecido, mas não provido” (Resp. n° 6.566/PR – Rel. Min. Athos Carneiro – julgado em 11.11.91). 4 “A alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual uma das partes adquire, em confiança, a propriedade de um bem, obrigando-se a devolvê-la quando se verifique o acontecimento a que se tenha subordinado tal obrigação, ou lhe seja pedida a restituição” (GOMES. Orlando, Alienação fiduciária em garantia, 4ª ed., São Paulo: RT, 1975, p. 18). 5 Em decorrência do instituto ter nascido a partir da Lei do Mercado de Capitais, há quem defenda que apenas instituições financeiras ou administradoras de consórcios é que têm aptidão para o financiamento, visto a finalidade ser o crédito e não a aquisição. Para esses, cita-se o prof. Silvio de Salvo Venosa: “a alienação fiduciária pactuada por outra espécie de credor constituirá contrato atípico, não gozando das garantias típicas do negócio fiduciário regido pela lei de mercado de capitais” (VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil, v. III, São Paulo: Atlas, 2003, p. 102).

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Bancário e processo civil – Recurso Especial – Fundamentação parcialmente deficiente – Contrato bancário – CDC – Aplicabilidade – Contrato

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consumo, a aquisição de bens duráveis móveis, com captação de dinheiro emprestado de

instituições financeiras, geralmente. Mas para adquirir o bem, o consumidor é obrigado

a tornar-se adquirente fiduciário.

A garantia do crédito permite o adimplemento da obrigação, vez que o credor

pode buscar meio alternativo, secundário para ressarcir-se. A natureza do instituto da

alienação fiduciária é um negócio-meio, a propiciar a realização de um negócio-fim.

Trata-se do mútuo, em que o devedor, para garantir suas obrigações, aliena a

propriedade do bem ao credor, alienação esta que se faz em fidúcia. Isto é, o credor

carrega apenas a posse indireta da coisa, devolvendo-a após a devolução de todo o

dinheiro emprestado 6.

Desde Roma já existiam meios de garantir as obrigações patrimoniais, mas

recaiam sobre o próprio corpo do devedor. Após a ‘Lex Poetelia Papiria’, 300 a.C., a

garantia deixou de ser pessoal para transformar-se em patrimonial.

Atualmente são comuns as garantias pessoais - a fiança e o aval, por exemplo, e

as reais - penhor, hipoteca, alienação fiduciária. Para satisfazer o crédito oriundo do

penhor ou hipoteca, é necessário ajuizar ação de execução, por meio da qual o bem será

leiloado. Além de outras possibilidades legais a serem interpostas, outros credores têm

preferência no crédito: a Fazenda Pública, a Previdência e os empregados.

de financiamento com alienação fiduciária em garantia – capitalização de juros – vedação – taxa de juros – fundamento inatacado – Mostra-se deficientemente fundamentado o Recurso Especial quanto ao ponto quando não indicado dispositivo legal porventura violado nem julgado eventualmente divergente. - São aplicáveis as disposições do Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários. - É vedada a capitalização de juros se inexistente legislação específica autorizadora. - A subsistência de fundamento inatacado, apto a manter a conclusão do acórdão recorrido, impõe o não-conhecimento do Recurso Especial quanto ao ponto. Agravo no Recurso Especial não provido. (AGRESP 544813/RS – Relª Min. Nancy Andrighi – DJU 01.12.2003 – p. 00356).

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Processo civil e bancário – Agravo no agravo de instrumento – Recurso Especial – Embargos de declaração – interrupção do prazo recursal – Contrato de financiamento com alienação fiduciária em garantia. Juros. Limitação. – Os embargos de declaração, ainda que não conhecidos por inexistirem os alegados vícios na decisão embargada, interrompem o prazo para interposição de outros recursos, ao teor do art. 538, caput, do CPC. – A limitação dos juros na taxa de 12% ao ano estabelecida pela Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33) não se aplica às operações realizadas por instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional. (AGA 475752 – RS – Relª Min. Nancy Andrighi – DJU 05.05.2003 – p. 00294). 6 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 13ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 464.

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A alienação fiduciária nasceu para extirpar tais inconvenientes, surgindo como

cláusula adjeta da compra e venda. Em garantia o consumidor aliena a propriedade

resolúvel do bem ao credor, um direito real, ficando com a posse direta da mesma. Se a

dívida não for paga no vencimento o credor deverá escolher uma das alternativas legais:

1) vender o bem extrajudicialmente, se estiver com ele em suas mãos,

devolvendo o excedente da dívida ao devedor (CC/02, art. 1.364); o art. 66, § 6.° da Lei

n° 4.728/65 e o art. 1.365 do CC/02, inibem expressamente o credor de tornar-se

proprietário vitalício do bem, por meio da cláusula comissória;

2) propor ação de busca e apreensão, podendo ser concedida liminarmente

(Decreto-lei n° 911/69, art. 3°), para retomar a posse direta sobre o objeto 7.

Nesse caso o fiduciante será citado para contestar, oportunidade em que ele só

poderá alegar pagamento do débito, ou o cumprimento adequado do contrato, ou então,

purgar a mora em três dias, se já pagou 40% do preço financiado (inclusive o devedor

poderá depositá-lo judicialmente, se no prazo judicial para o pagamento o credor não

comparecer) 8.

7 BRASIL. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Segunda Turma. Processo civil – Busca e apreensão – alienação fiduciária – Licitude da exclusão da correção monetária, da comissão de permanência e dos juros sobre o total do débito – Purgação da mora: admissibilidade não dependente de percentual de pagamento do preço financiado em favor da preservação do contrato – Súmulas n°s 30 e 93 do STJ aplicáveis aos demais casos em exame – Agravo de instrumento improvido – Decisão indiscrepante – Busca e Apreensão. Decreto nº 911/69. Compulsoriedade da liminar, uma vez comprovada a mora do devedor fiduciante. Inteligência do art. 3º do Decreto-Lei nº 911. Não malfere o devido processo legal, o deferimento liminar da busca e apreensão, nos termos da Lei de Regência. - Juros moratórios. Limitação de 1% ao mês. Prevalência da legislação civilista. Capitalização mensal de juros. Incidência das Súmulas nºs. 121 do STF e 93 do STJ. Inadmissibilidade da cumulação de juros remuneratórios, chamados pelo mercado financeiro de comissão de permanência, a teor da Súmula nº 30 do STJ. - Honorários advocatícios fixados em patamar de razoabilidade. Aplicação do § 3º do art. 20 do CPC. - Agravo de instrumento improvido, à unanimidade de votos. (AI 57849-0 – Rel. Des. Jones Figueiredo – DJPE 23.01.2004). 8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Ação de busca e apreensão – contrato de alienação fiduciária em garantia. Purgação da mora. Pagamento inferior a 40% do débito. Inadmissibilidade. Comissão de permanência. Substituição. Juros. Limitação. Questões não conhecidas. Súmula 284/STF. Confronto analítico dos julgados. Ausência. I. Na linha da orientação majoritária da segunda seção deste Superior Tribunal de Justiça (RESP nº 128.732/RJ, DJ 01.08.00), somente poderá purgar a mora, nos termos do artigo 3º, § 1º, do Decreto-Lei nº 911/69, o devedor que já tiver pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado. II. As questões relativas à substituição da comissão de permanência pela correção monetária e à limitação dos juros não podem ser examinadas na via especial, eis que não foi apontado qualquer dispositivo legal a ser reputado como violado (Súmula 284 do STF), nem realizado o confronto analítico entre os julgados apontados como divergentes. Recurso provido. (RESP 362056 – MG – Rel. Min. Castro Filho – DJU 29.09.2003 – p. 00241).

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A mora decorre do inadimplemento contratual e deve ser comprovada por carta

registrada, expedida pelo Cartório de Títulos e Documentos 9 (art. 2°, § 1° do Dec.-lei

n° 911) ou por protesto do título. Não purgada a mora e nem contestada, o juiz proferirá

sentença em cinco dias, da qual caberá apelação apenas com efeito devolutivo.

Portanto, a apelação não impedirá a venda extrajudicial da coisa (CC/02, art.

1.364). Na venda judicial aplica-se o CPC, arts. 1.113 a 1.119 (Decreto-lei n° 911/69,

art. 3°, § 5°) 10.

3) se a coisa não for encontrada, ou se apenas alguns bens o forem, o credor

poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão 11, nos mesmos autos, em

ação de depósito, consentâneo com o CPC, arts. 901 a 906, quanto aos bens não

encontrados 12.

9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Processo civil – Recurso Especial – Ação de busca e apreensão fundada em contrato de alienação fiduciária em garantia – Mora – Notificação do devedor – Divergência jurisprudencial – Ausência de similitude entre os julgados confrontados – Certidão do Cartório de Títulos e Documentos considerada inválida no acórdão recorrido. Reexame do conteúdo fático-probatório do processo. - O Recurso Especial por alegado dissídio jurisprudencial exige a existência de similitude entre os julgados confrontados. - A comprovação da mora é imprescindível à busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente. Súmula nº 72/STJ. - A prova do recebimento da notificação pelo devedor-fiduciante para a caracterização da mora no contrato de alienação fiduciária em garantia incumbe ao credor-fiduciário. Precedentes. - Não resta caracterizada a mora do devedor-fiduciante quando a certidão do Cartório de Títulos e Documentos a respeito do recebimento da notificação se mostra incongruente. - No processo em exame, para se afastar a conclusão do acórdão recorrido de invalidade da certidão do recebimento da notificação, necessário seria o revolvimento do conteúdo fático-probatório do processo. Súmula nº 7/STJ. Recurso Especial não conhecido. (RESP 469360 – RS – Relª Min. Nancy Andrighi – DJU 10.11.2003 – p. 00187). 10 Na alienação fiduciária com garantia de bem imóvel o credor fiduciário apenas consolida a propriedade em seu nome, devido à falta de purgação da mora perante o registro de imóveis pelo devedor intimado, em conformidade com a Lei n° 9.514/97 (sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário), art. 26. 11 Na hipótese de falência do devedor, se a busca ainda não tinha sido efetivada, o credor fiduciário poderá simplesmente pedir a restituição no juízo falimentar, sem necessidade de habilitar-se (LF, art. 7°). Mas se a liminar da ação de busca e apreensão já tinha sido proferida, ao ser decretada a falência, a ação prosseguirá até o final, no juízo em que foi proposta e o síndico representará o falido. 12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Alienação fiduciária em garantia – Ação de busca e apreensão – Ação de depósito – Conversão – Possibilidade – Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, ao credor é permitido requerer seja convertido o pedido de busca e apreensão em ação de depósito (art. 4º do Decreto-Lei nº 911, de 1º.10.1969). Recurso Especial conhecido, em parte, e provido. (RESP 533892 – MS – Rel. Min. Barros Monteiro – DJU 19.12.2003 – p. 00487).

8

Assim, por ficção, o devedor-fiduciante é equiparado ao infiel depositário,

possibilitando sua prisão civil, em tese, caso não devolva o bem ou não restitua seu

equivalente monetariamente corrigido. Entretanto, a prisão, para quem a aplaude, só

será decretada após a sentença e vencido o prazo de vinte e quatro horas para a entrega

do objeto alienado, ou sua quantia em dinheiro. A justificativa à prisão é que não se

trata de prisão por dívida e sim por quebra na confiança decorrente do depósito.

4) o credor poderá, ainda, ajuizar ação executiva para cobrar o saldo não

satisfeito com a venda ao particular 13 (Lei n° 4.728, art. 66, § 5.° e Decr.-lei n° 911, art.

5.°), penhorando outros bens do devedor, se houver.

Na prática o credor propõe todas as medidas cabíveis concomitantemente,

optando pela que melhor lhe aprouver, na oportunidade devida. Roborando com a

inconstitucionalidade (CF/88, art. 5°, inc. XXXII: “o Estado promoverá, na forma da

lei, a defesa do consumidor”) da prisão civil na alienação fiduciária em garantia, cita-se

o caput do art. 42 do CDC: “na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não

será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou

ameaça” 14.

Na verdade – não obstante podendo até admitir-se como válidas (o que não são) as razões invocadas para justificar a conformação desse instituto entre nós – o que ocorreu foi um acentuado reforço da garantia nas operações com as financeiras, chegando-se ao extremo de considerar o simples comprador de uma mercadoria a crédito

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. PROCESSUAL CIVIL – Alienação fiduciária em garantia – Desaparecimento do bem por motivo de furto – Ação de busca e apreensão – Conversão em depósito – Prosseguimento para execução do equivalente em dinheiro ao bem desaparecido – CPC, ART. 906 – I. A jurisprudência da 2ª Seção do STJ consolidou-se no sentido de que em caso de desaparecimento do bem alienado fiduciariamente, é lícito ao credor, após a transformação da ação de busca e apreensão em depósito, prosseguir nos próprios autos com a cobrança da dívida representada pelo "equivalente em dinheiro" ao automóvel financiado, assim entendido o menor entre o seu valor de mercado e o débito apurado. II. Recurso Especial conhecido e parcialmente provido. (RESP 439932 – SP –Rel. Min. Aldir Passarinho Junior – DJU 08.09.2003 – p. 00335). 14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Código de defesa do consumidor – Repetição do indébito. Devolução em dobro. Alienação fiduciária. Deve ser restituída em dobro a quantia cobrada a mais em razão de cláusulas contratuais nulas, constantes de contrato de financiamento para aquisição de veículo com garantia de alienação fiduciária. Art. 42 do CDC. Recurso conhecido em parte e provido. (RESP 328338 – MG – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – DJU 30.06.2003 – p. 00253).

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como DEPOSITÁRIO e, como tal, se inadimplente, levá-lo à prisão, e ainda (o que só excepcionalmente se admite no penhor) de poder a credora (financeira) vender o bem, particularmente, pagando-se da dívida e devolvendo o restante (o que é bem raro ocorrer, por óbvio). 15

Vê-se, portanto, que inexiste risco ao credor, pois o consumidor fica com igual

responsabilidade que o devedor de alimentos. Embora formalizado por um contrato

padrão, podendo ser público ou particular, o financiamento com garantia fiduciária é

típico contrato de adesão (CC/02, art. 424), com cláusulas redigidas e impostas pela

financeira, que não sofre risco algum 16.

Se público, o registro é feito no Cartório de Títulos e Documentos do domicílio

do devedor, para gerar oponibilidade erga omnes (art. 1.361, § 1.° do CC/02) ou na

competente repartição para o licenciamento do veículo, anotando-se no Certificado de

Registro (art. 121 do Código de Trânsito Brasileiro) 17.

Entretanto, para a jurisprudência majoritária, só é indispensável a inscrição no

Registro de Títulos e Documentos. A ausência de registro no Detran não impede a ação

de busca e apreensão de veículos alienados fiduciariamente, protegendo o terceiro de

boa-fé 18.

O credor pode, ainda, cumular as garantias, ou seja, paralelamente à alienação

fiduciária, poderá exigir a fiança ou aval, como complemento. Caso o bem vendido não

satisfaça o crédito total, devido à sua desvalorização, resta exigir o remanescente do

fiador, que poderá ser solidário ao devedor, se renunciou o benefício de ordem, muito

15 WALDIRIO, Bulgarelli. Contratos mercantis, 9ª ed., São Paulo: Atlas, 1997, p. 308. 16 É mister ressaltar que a transformação do devedor-fiduciante em depositário ocorreu por meio de Decreto-lei, editado por uma Junta Militar, baseada nos Atos Institucionais n° 5 e 12, de 1968 e 1969, processo mais rápido e fácil que reformar a Carta Magna, para inserir uma nova forma de prisão civil. 17 Súmula 92 do STJ: “a terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no Certificado de Registro do veículo automotor”. 18 BRASIL. Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. Décima Câmara. Alienação fiduciária – Busca e apreensão – comprovação – registro no Detran – Necessidade – Oponibilidade a terceiro de boa-fé – Registro no Cartório de Títulos e Documentos – Indispensabilidade – Eficácia erga omnes – O registro da alienação fiduciária de veículo faz-se necessário no Departamento Estadual de Trânsito – Detran para resguardo da boa-fé de terceiro adquirente do veículo alienado. Indispensável é o registro do contrato de alienação fiduciária no Registro de títulos e Documentos para a eficácia dele erga omnes. A inexistência de registro da alienação fiduciária junto ao Detran não obsta a Ação de Busca e Apreensão do veículo alienado fiduciariamente (Apelação Cível n° 515.006 – Rel. Juiz Adail Moreira – julgado em 15.4.98).

10

comum nos contratos de consórcio (a Súmula 6 do 1° Tribunal de Alçada Civil de São

Paulo admite a legitimidade dos consórcios para realizarem financiamentos mediante

alienação fiduciária).

Apesar de haver controvérsia jurisprudencial, há quem pense que uma vez

vendido o bem dado em garantia extrajudicialmente, não se pode mais exigir qualquer

valor do fiador, vez que a fiança se extingue. Se o bem foi excutido não há sub-rogação

do fiador na garantia real, ou seja, pagando o remanescente da dívida inexiste bem do

devedor principal para ressarcir-se. Então, se o credor priorizar a garantia real, resta

extinta a pessoal.

Mas a corrente majoritária pensa o contrário: pelo princípio da boa-fé objetiva,

se o fiador for notificado da alienação extrajudicial do bem dado em garantia, não há

qualquer impedimento em permanecer a fiança. Se o débito for quitado por terceiro, no

caso o fiador, dá-se a sub-rogação no crédito.

Ratificando tal posicionamento, o art. 1° do Decreto-lei n° 911/69 disciplina

que: “se o preço da venda da coisa não bastar para pagar o crédito do proprietário

fiduciário e despesas, na forma do parágrafo anterior, o devedor continuará

pessoalmente obrigado a pagar o saldo devedor apurado.”

Responder pessoalmente, seria no caso de crédito quirografário. Mas na época

do Decreto-lei, 1969, o legislador não imaginaria a cumulação das garantias real e

fidejussória. Portanto, cientificado o fiador da venda, nada impede cobrá-lo pelo

restante do débito. Exceto se ele preferir remitir o devedor principal, sub-rogando-se na

garantia real.

Nada impede o financiamento de imóvel, que no caso receberá tratamento

diferente, aplicando-se a Lei n° 9.514/97, arts. 22 a 33. Pode ser feito também,

financiamento de bem cujo proprietário é o próprio devedor, segundo a Súmula 28 do

STJ: “o contrato de alienação fiduciária em garantia pode ter por objeto bem que já

integrava o patrimônio do devedor” 19.

19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Processual civil – Alienação fiduciária em garantia – bem já pertencente ao devedor – circunstância que não descaracteriza o instituto – Ação de busca e apreensão – Conversão em depósito – Possibilidade – Inexistindo restrição legal a que o devedor aliene fiduciariamente ao credor bem que já lhe pertence, cabível é a ação de busca e apreensão em caso de inadimplemento da obrigação, bem como a sua conversão em depósito, quando verificadas as condições do artigo 4º do Decreto-Lei nº 911/69,

11

Os deveres e direitos do fiduciante são: permanecer com a posse direta do bem e

o direito eventual de reaver sua propriedade plena (por isso, pode ceder o direito

eventual de que é titular, independentemente da anuência do credor, registrando a

cessão de direitos); purgar a mora, se pagou 40% do preço financiado e for movida ação

de busca e apreensão; receber o saldo que sobejar a dívida, após a venda do bem;

responder pelo remanescente da dívida, se a garantia não se mostrar suficiente; devolver

o bem, se inadimplente. A precípua obrigação do credor fiduciário é financiar o valor do

bem, respeitando a posse direta do devedor, e ainda, sendo proibida a cláusula

comissória, ou seja, é vedado ele ficar com o objeto da alienação. No entanto, a venda

do bem poderá ser também extrajudicial.

2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Constituição Federal de 1969, no seu art. 153, § 17, determinava:

“Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel

e o de inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei”. A denominação “na

forma da lei” tratava-se de norma de eficácia contida, significando que a lei ordinária

regulamentaria o assunto e que tal processo restringir-se-ia a estas hipóteses, sem

possibilidade de outra forma procedimental.

Mas o STF editou a Súmula 619, em 1984, violando expressamente a CF/69, art.

153, § 17, ao dizer que a prisão do depositário judicial poderia ser decretada no próprio

processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura da ação de

depósito.

A CF/88, art. 5°, inc. LXVII não reproduziu o termo final do art. 153, § 17 da

Carta anterior: “...na forma da lei”, que seria o procedimento da ação de depósito. A

prisão do devedor-fiduciante independeria do processo da ação de depósito, tornando a

Súmula 619 do STF constitucional.

O fato é que o art. 5°, inc. LXVII da CF/88 proíbe a prisão civil por dívida,

exceto pelo inadimplemento de obrigação alimentícia (CPC, art. 733, § 1°) e a do

depositário infiel (art. 652 do CC/02). Trata-se de norma de eficácia plena, direta, artigos 5º. Recurso Especial provido. (RESP 341374 – MS – Rel. Min. Castro Filho – DJU 16.06.2003 – p. 00334).

12

integral, enumerando um rol ‘numerus clausus’, pois são exceções. Não alcançam

outras hipóteses criadas por leis especiais, sob pena de lesão aos interesses do devedor.

É ilícito estender a restrição de direitos a hipóteses não redigidas na lei, como

ocorre na alienação fiduciária, pois o credor faz uso da conversão da mesma em ação de

depósito, independente do processo de depósito específico (CPC, art. 904).

Para piorar, o art. 66 da Lei n° 4.728/65, do Mercado de capitais, diz que todas

as responsabilidades e encargos do depositário aplicar-se-ão ao devedor-fiduciante. Ou

seja, o devedor da alienação fiduciária em garantia foi equiparado, por lei ordinária, ao

devedor da ação de depósito, o que ocorre em desfavor ao réu.

No entanto, deve-se assinalar que a norma constitucional de 1969 era de eficácia

contida, possibilitando que a lei ordinária equiparasse o devedor fiduciante ao

depositário infiel. Esta também é a justificativa da Súmula 619, visto o STF acreditar na

constitucionalidade da prisão civil do devedor-fiduciante.

A Constituição diz, a contrariu sensu, que é possível a prisão civil do

depositário infiel, mas sem exigir que essa prisão seja conforme forma legal específica,

como exigia a anterior. Portanto, quando a Constituição fala em depositário infiel,

refere-se ao do Código Civil (depósito clássico), pois é o único diploma legal que

disciplina o contrato de depósito, vedando assim, a ampliação das hipóteses cabíveis de

restrição da liberdade através de lei ordinária.

Após 1988, a Lei n° 4.728 tornou-se iniludivelmente ampliativa, violando a

reserva constitucional acrescentada no art. 5° - LIV da CF: o princípio do devido

processo legal. Este esvaziou a Sumula 619 do STF, pois a prisão civil na alienação

fiduciária é considerada fora da forma legal, por não ser sinônimo da ação de depósito 20.

20 "Por isso, com o devido respeito à orientação consagrada por certos arestos, não vejo como se possa impor tão grave sanção sem observância de um procedimento regular traçado em lei, isto é, fora da ação de depósito, que, in casu, se apresenta como o devido processo legal (uma das garantias fundamentais dos direitos humanos). Inexiste na lei permissivo para decretar sumariamente a prisão do depositário, sem que se lhe enseje contraditória a defesa ampla, segundo os ditames do devido processo legal. Afinal, a liberdade é um valor transcendental, que não pode ficar na dependência do arbítrio de soluções tomadas sem amparo em lei e sem a observância de um procedimento adequado adredemente traçado pelo legislador" (THEODORO Júnior, Humberto. Curso de Direito processual civil, vol. III, 15ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 73-4).

13

"Em nenhum instante a ele se atribui o bem para exercício do dever de custódia

estruturado na sua guarda e conservação, muito menos para o exercício de um dever de

restituição quando exigido pelo credor fiduciante" 21. Depositário, então, é aquele que

guarda bem alheio: "é o contrato pelo qual uma pessoa recebe um objeto móvel alheio,

com a obrigação de guardá-lo e restitui-lo em seguida" 22. Ex positis, o Decreto-lei n°

911/69 considerou depósito aquilo que não é.

Se leis infraconstitucionais descrevem como depósito hipóteses diferentes da que

consta no seu núcleo conceitual, tendo como desiderato autorizar outros casos de prisão

por dívida civil, o fazem em detrimento do mandamento constitucional. Por tratar-se de

norma excepcional, deve ser interpretada restritivamente. Aí está a origem da

inconstitucionalidade da prisão civil na alienação fiduciária, além de outras hipóteses

que venham a ser inventadas pelo legislador 23.

Há vasta divergência doutrinária e jurisprudencial que municiam a balbúrdia

legislativa nacional, quanto a este tema. Hodiernamente esta situação traz prejuízos,

haja vista o mundo globalizado em que vivemos, onde o escopo é justamente a

uniformização legislativa, desde que respeitados os direitos humanos, bem como as

particularidades internas de cada nação.

21 ALVES, Vilson Rodrigues. Responsabilidade civil dos estabelecimentos bancários, 1.ª ed., Campinas: Bookseller, 1997, p. 256. 22 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. 3.ª ed., Livraria Francisco Alves, v. 5., p. 06. 23 Situação idêntica ocorre com a Lei n.º 8.866/94, que qualificou como depositário da Fazenda Pública a pessoa a que a legislação tributária ou previdenciária imponha a obrigação de reter ou receber impostos, taxas ou contribuições de terceiros para depois repassá-las ao Fisco (art. 1.º). Ela prevê que a ausência deste repasse caracterizaria o responsável ou substituto tributário em depositário infiel (§ 1.º), passível de prisão civil (art. 4.º, §§ 1.º e 2.º). A lei, ainda, excluiu expressamente a aplicabilidade da regra do art. 1.280 do Código Civil de 1916, pela qual o depósito de bens fungíveis submete-se à disciplina legal do mútuo (art. 9.º).

Esta lei teve sua inconstitucionalidade argüida pela via direta (ADIn 1.055-7), tendo o STF concedido medida liminar apenas para sustar os efeitos do dispositivo que: a) impunha a prisão civil no início do processo, caso não houvesse recolhimento ou depósito da quantia em discussão (art. 4.º, § 2.º e caput do art. 7.º); b) condicionava o exercício de defesa, sob pena de revelia, ao depósito da quantia em discussão (art. 4.º, § 3.º); c) estendia a prisão civil aos "empregados que movimentavam recursos financeiros" da pessoa jurídica, quando esta fosse a "depositária" (caput e par. único do art. 7.º).

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Terceira Turma. Não se suspenderam, entretanto, as regras que qualificam o substituto ou responsável tributário como depositário, cominando-lhe a prisão civil (ADIn 1.055-7, Rel. Min. Sidney Sanches, julgado em 16.06.94, DJU 13.06.97, p. 26.689).

14

O STF sempre decidiu-se a favor dos pactos externos, em detrimento do direito

interno, seguindo a teoria monista, assim como a maioria dos outros países. Mas em

1978, ao julgar o Recurso Extraordinário n° 80.004, cujo relator foi o Min. Celso de

Albuquerque Mello, por maioria ele seguiu a tese dualista, julgando contra o direito

internacional. Na Constituição de 1967 não constava norma garantidora da prevalência

da lei especial posterior e interna, frente ao tratado, até então também considerado lei

especial, porém anterior. O intuito do legislador era deixar que a jurisprudência

decidisse.

A posição moderna era no sentido de se adotar uma soberania limitada,

municiada pela Convenção de Viena, cuja determinação é que “o Estado não pode

invocar seu direito interno para não executar o tratado”.

Entretanto, o entendimento do Supremo pacificou-se, pois a CF/88 recepcionou

o Decreto-lei n° 911/69, assumindo uma posição insulada dos demais tribunais:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, Alienação fiduciária. Prisão civil. Depositário infiel. Constitucionalidade. Pacto de São José da Costa Rica que, além de não poder se contrapor à permissão do art. 5º, LXVII, da CF, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais que regem a matéria. Tratando-se de alienação fiduciária, é constitucional a possibilidade de decretar-se a prisão civil do depositário infiel, uma vez que as disposições contidas no Pacto de São José da Costa Rica, além de não poderem contrapor-se à permissão do art. 5º, LXVII, da CF, não derrogaram, por serem normas infraconstitucionais gerais, as normas infraconstitucionais especiais que regem a matéria. (Recurso Extraordinário n. 225.386-3/GO. Recorrente: COPLAVEN. Recorrido: Albertino Delamuta e cônjuge. Relator Ministro José Carlos Moreira Alves, julgado em 02.06.1998, DJU p. 223, 11.11.1998) 24.

A atual posição do Supremo é dividida, visto três Ministros não adotarem

posição específica: Ministros Antônio Cezar Peluso, Carlos Ayres de Britto e Joaquim

Benedito Barbosa Gomes. São favoráveis à prisão do devedor fiduciante, os Ministros:

Gilmar Mendes, José Celso de Mello Filho, Maurício Corrêa, Ellen Gracie e Nelson

24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Não há constrangimento ilegal ou ofensa à Constituição no decreto de custódia, após decisão definitiva da ação de depósito, com a não devolução do bem, nem o pagamento do valor correspondente, pelo paciente, configurando-se a situação de depositário infiel, prevista no art. 5.º, LXVII, da Constituição de 1988. (HC 70.625-8/SP, Rel. Min. Neri da Silveira, DJU, 20.05.1994, p. 12.248).

15

Jobim; são contrários à mesma prisão civil: Min. Carlos Velloso, Sepúlveda Pertence e

Marco Aurélio Mello.

O STJ repartiu-se, com decisões em ambos os sentidos, até o julgamento do

Embargo de divergência n° 149.518/GO, cujo relator foi o Min. Ruy Rosado de Aguiar

quando pacificou-se, por maioria, pelo descabimento da prisão civil do devedor

fiduciante:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Corte Especial, Alienação fiduciária. Prisão civil. Não cabe a prisão civil do devedor que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária. Embargos acolhidos e providos. (Embargos de divergência no Recurso Especial n. 149.518/GO. Embargante: Álvaro de Castro Morais e outro. Embargado: Ministério Público do Estado de Goiás. Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgado em 05.05.1999. DJU, p. 29, 21.02.2000) 25.

25 Ainda sob a égide da Carta Constitucional anterior, já se pugnava pela inconstitucionalidade da prisão civil do consumidor: " BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. A Constituição da República, no art. 153, par. 17, proíbe a prisão civil por dívida, abrindo duas únicas exceções que, como tais, se interpretam estritamente. Uma delas é a do ‘depositário infiel’, expressão cujo significado não pode ser senão o que ressalta do art. 1.287 do Código Civil, e implica a não restituição da coisa (‘o depositário, que o não restituir, quando exigido’). É obviamente a essa hipótese, e só a ela, que alude o texto constitucional, insuscetível de ampliação. Na alienação fiduciária em garantia não se cogita de ‘não restituição’, pela singela e bastante razão de que o devedor não recebeu a coisa das mãos do credor, e só se restitui ou não a alguém o que desse alguém se houver recebido. Reconhecer à lei ordinária a possibilidade de equiparar outras situações, substancialmente diversas, à do depositário infiel, para o fim de tornar aplicável a prisão civil, equivale a ESVAZIAR A GARANTIA CONSTITUCIONAL. Mediante a ‘equiparação’, qualquer devedor – um simples mutuário, por exemplo – acabará podendo ver-se sujeito a medida cujo emprego a Constituição quis limitar a casos bem definidos" (REsp. n° 7.943-RS, Rel. Min. Athos Carneiro, julgado em 30.04.91, DJU 10.06.91, p. 7.854).

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. A jurisprudência da 6.ª Turma do STJ orienta-se no sentido de que, na alienação fiduciária, torna-se incabível a prisão civil do devedor-fiduciante, por não estar o mesmo equiparado a depositário. Recurso provido (HC n° 4.319-GO, Min. Anselmo Santiago, DJU 21.08.95, p. 25.408).

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Segundo a ordem jurídica estabelecida pela Carta Magna de 1988, somente é admissível prisão civil por dívida nas hipóteses de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e de depositário infiel (CF. art. 5, LXVII). O devedor-fiduciante que descumpre a obrigação pactuada e não entrega a coisa ao credor-fiduciário não se equipara ao depositário infiel, passível de prisão civil, pois o contrato de depósito, disciplinado nos arts. 1.265 a 1.287, do Código Civil, não se equipara, em absoluto, ao contrato de alienação fiduciária. A regra do art. 1.º do Decreto Lei n. 911/69, que equipara a alienação fiduciária em garantia ao contrato de depósito, perdeu a sua validade jurídica em face da nova ordem constitucional. Habeas-corpus concedido (HC 3.206-SP, por maioria, Rel. Min. Vicente Leal, julgado em 21.03.95).

16

Ademais, no CC/02, art. 640, que disciplina o depósito, há expressa menção à

impossibilidade do depositário servir-se do bem, bem como a dá-lo em depósito a

outrem, sem licença expressa do depositante, sob pena de perdas e danos 26.

Na fidúcia, o consumidor tem a posse direta do bem para seu próprio uso e gozo,

diferente do contrato de depósito, onde seu desiderato é apenas a guarda do bem, com a

obrigação de devolvê-lo. Na alienação fiduciária o depósito serve para garantir o

crédito, sendo mera garantia de mútuo. O devedor exerce atos de propriedade sobre a

coisa, mesmo pendente de cláusula resolutiva.

Punir o réu com uma sanção não pouco draconiana é posição diametralmente

oposta ao moderno direito civil constitucional. Se no âmbito penal já há o devido

resguardo das restrições à liberdade do cidadão, a prisão civil deve continuar como

exceção, só admitida em casos extremos e expressos.

O valor liberdade como direito de ir e vir, situa-se em plano de importância infinitamente superior ao do desenvolvimento econômico, com que se justifica, na alienação fiduciária em garantia, a equiparação do devedor fiduciante ao depositário para fins de prisão civil. Ademais, como se admitir, sendo rígida a Constituição brasileira, possa a lei ordinária restringir o direito fundamental de ir e vir? Isto não apenas não é aceitável, como também não é compreensível, sob a ótica da rigidez constitucional. 27

Após interpretação obediente à literalidade do texto constitucional atual, art.

101, só o STF tem competência para analisar texto constitucional, enquanto o STJ

carrega competência limitada à legislação federal, segundo art. 105. Mas já é positiva tal

divergência, pois gera discussões e possíveis alterações, precipuamente quanto aos

Ministros indecisos.

26 BRASIL. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Sexta Turma. Responsabilidade civil – Alienação fiduciária – Acordo extrajudicial – Falta de comunicação ao juízo – Expedição de mandado de busca e apreensão – Constrangimento – Dano moral – Configuração – Evidenciada a negligência do banco e o constrangimento para o usuário que foi surpreendido com a visita do Sr. Oficial de Justiça em seu local de trabalho, munido de mandado de busca e apreensão do seu veículo, quando se encontrava com suas obrigações cumpridas, deve o causador do ato ilícito indenizar o ofendido, face o dano moral suportado. Recursos improvidos. Decisão unânime. (AC 80301-6 – Rel. Des. Jovaldo Nunes Gomes – DJPE 15.01.2004). 27 RABELLO, José Geraldo de Jacobina. Alienação fiduciária em garantia e prisão civil do devedor, 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 105-107.

17

Já os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais de Justiça Estaduais e os

Tribunais de Alçada Civil estão desunidos, com decisões em ambos os lados.

3. TRATADOS INTERNACIONAIS

O Brasil ratificou, dentre outros, o Pacto internacional dos Direitos Civis e

Políticos, de 1966, por meio do Decreto presidencial n° 592, de 06.07.1992, cujo art. 11

disciplina: “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma

obrigação contratual”.

Também ratificou a Convenção Americana de Direitos humanos de 1969 ou

Pacto de San José da Costa Rica, ratificado sem reservas pelo Decreto presidencial n°

678, de 06.11.1992, cujo art. 7°, inc. VII predispõe: “ninguém deve ser detido por

dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente

expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

Foi adotado, internamente, disciplinamento diverso da França, Grécia, Peru,

onde caso haja conflito de leis internas e externas, os tratados internacionais

predominam sobre a constituição interna. O STF deu a eles tratamento paritário com as

leis internas, ou seja, convenções externas são equiparadas às leis ordinárias, com a

normatividade interna. Tratados e leis estão no mesmo plano de eficácia, muito embora

autores de renome consideram os tratados internacionais sobre direitos humanos

superiores à própria Constituição Federal 28.

Então, a Lei n° 4.728/65, art. 66, bem como a CF/88, art. 5.°, inc. LXVII regram

diferentemente das normas internacionais, de que só as dívidas alimentícias ensejam

prisão civil. No entanto, o STF declarou o Decr.-lei n° 911/69 constitucional, haja vista

os tratados internacionais ratificados pelo Brasil entrarem no nosso ordenamento

jurídico, como leis ordinárias, as quais não derrogam leis especiais.

O Supremo explica que nem toda lei nova revogará lei anterior que com ela

conflite, pelo fato de ser mais recente. Ambas devem ser gerais, ou ambas especiais,

salvo se expressamente a lei geral determinou a revogação ou disciplinou toda a

28 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 98.

18

matéria; nunca uma lei geral revogaria uma especial. Trata-se do conflito de normas ou

antinomia.

‘Venia concessa’, revela-se descabida a posição da Suprema corte, devido ao art.

1287 do Código Civil/16 29, lei geral, como a Convenção Americana de Direitos

Humanos e por ela revogado, visto ser lei mais nova. Já não se podia mais falar em

prisão do depositário infiel desde a vigência interna dos tratados derrogadores. “Todas

as demais leis que a este artigo fazem remissão, direta ou indiretamente, perderam, de

uma só vez, todo o conteúdo compulsivo prisional que antes da ratificação daqueles

tratados pelo Brasil, ainda haviam” 30.

Portanto, o Decreto-lei n° 911/69, mesmo que recepcionado pela Carta Magna

de 1988, está sem efeito, já que sua fonte era o art. 1.287 do CC/16, além do CPC, arts

902 e 904. Não há lei expressa que decrete a prisão civil do depositário infiel, nem os

equiparados a ele, sendo inconstitucional, caso seja decretada (CF/88, art. 5.°, inc. II).

Consentâneo com o posicionamento próprio, o STF deve declarar revogadas as

leis gerais conflitantes com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o de

San José da Costa Rica, já que o excelso Tribunal considerou-os leis gerais. Portanto,

todo julgamento contrário a esse entendimento será ‘contra legem’. Até a CF/88, art. 5°,

inc. LXVII está sem efeito, pois deverá esperar novo texto legal para preencher-lhe o

conteúdo.

Entretanto, ressalta-se mais uma vez que o art. 5°, § 2° da CF/88 incorporou os

tratados de direitos humanos fundamentais ao ordenamento jurídico nacional,

equiparando-os às normas constitucionais, com aplicabilidade imediata e

pertencendo ao rol das cláusulas pétreas, visto serem considerados direitos

fundamentais (CF/88, art. 60, § 4°, inc. IV).

Assim, segundo o art. 5°, §§ 1° e 2° da CF/88, conjulgado com o art. 5°, inc.

LXVII, alterado pelo Pacto de San José da Costa Rica, não se pode mais cogitar a

hipótese da prisão civil de depositário infiel. Por isso, fica fácil concluir que a Lei n°

29 Art. 1287, do CC/16: “seja voluntário ou necessário o depósito, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos” (tal qual o art. 652 do CC/02). 30 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos humanos & relações internacionais. 1ª ed., Campinas: Agá Júris Editora, 2000, p. 139.

19

10.406/02, art. 652, norma geral, não derrogou o Pacto de San José da Costa Rica, art.

7°, n° 7, também dito como lei geral.

Pelo contrário: o art. 652 do CC/02 nasceu inconstitucional, quanto à prisão civil

por infidelidade depositária, já que os direitos individuais, bem como tratados

internacionais de proteção aos direitos humanos, são tratados pela Carta Magna como

cláusulas pétreas, sobrepondo-se ao direito interno.

A posição do STF é pletórica, tendo em vista que dentre os direitos

fundamentais do homem, privá-lo de sua liberdade é inaceitável. Não se está suprimindo

o direito interno em prol dos tratados e sim respeitando os direitos humanos,

preservando as garantias constitucionais fundamentais e outras, agasalhadas por ela,

ainda que decorrentes de convenções externas (CF/88, art. 5°, § 2°). Não são direitos

sem limites, pois a própria Carta Magna consagrou os princípios da relatividade ou

conveniência das liberdades públicas.

"Considera-se existir uma colisão de direitos fundamentais quando o exercício

de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito

fundamental por parte de outro titular" 31. Alexandre de Moraes ensina que, no conflito

de direitos fundamentais, deve-se tentar conjulgá-los:

Quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas 32.

Ao ser elaborada uma Constituição tradicional, o escopo cardeal do constituinte

é a organização fundamental do Estado e a limitação do poder, enquanto que o do

Código Civil é disciplinar a vida dos particulares. Mas a partir do Estado Democrático

de Direito, nasceu uma era social, na qual a Constituição de 1988 cuidou de assuntos

31 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, 6.ª ed. Coimbra: Almedina, 1993, pág. 643. 32 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, 2ª ed., v. 3, São Paulo: Atlas, 1998, pg. 46.

20

que não necessariamente deveria disciplinar, visando a tutela jurídica dos direitos

fundamentais, da família, do exercício da profissão, de cultos religiosos, das classes

desprivilegiadas, etc., servindo como norte delimitador do legislador ordinário.

Portanto, “não basta ensinar direitos humanos. É preciso lutar pela sua efetividade. E,

acima de tudo, trabalhar pela criação de uma cultura prática desses direitos” 33.

Os direitos fundamentais constituem garantias mínimas para assegurar a

liberdade, igualdade, convivência digna na sociedade, sem discriminação de qualquer

natureza, uma humanidade solidária. Os direitos da personalidade protegem o sujeito de

direitos enquanto indivíduo único, repercutindo na sua personalidade, enquanto

irrenunciáveis, intransmissíveis, vitalícios, ou seja, um conjunto de prerrogativas que só

seu proprietário pode dispor, fruir e que todos devem respeitá-lo. Os direitos

fundamentais garantem a permanência dos direitos da personalidade, na quinta geração

em que vivemos e onde se incluem os direitos do ser humano.

CONCLUSÃO

Alienação fiduciária em garantia consiste na transferência da propriedade

resolúvel e da posse indireta ao credor, para garantir um débito, que após quitado, fará

com que o primitivo devedor restabeleça a propriedade plena do objeto. Trata-se de

negócio jurídico bilateral, oneroso, acessório, formal, indivisível.

Qualquer bem móvel e infungível poderá ser alienado com base na Lei n°

4.728/65, alterada pelo Decreto-lei n° 911/69 e pela Lei n° 6.071/74, art. 4°,

preferencialmente por instrumento escrito e público. Bem imóvel será disciplinado pela

Lei n° 9.514/97, com exigência de escritura pública e seu respectivo assento no Registro

Imobiliário.

O credor fiduciário pode reivindicar o bem alienado fiduciariamente, vendê-lo a

terceiros (CC/02, arts 1364-5) e ainda, continuar credor, se a venda não satisfez o

crédito integral. Pode mover ação de depósito contra o fiduciante (CPC, art. 366), pedir

a devolução do bem, propor embargos de terceiro, caso ele sofra penhora de outro

33 André Franco Montoro. Cultura dos Direitos Humanos. In: Direitos humanos: legislação e jurisprudência. Série Estudos, n° 12, v. I. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1999, p. 28.

21

credor, requerer a busca e apreensão do mesmo, considerar vencida a dívida, se o

devedor não pagar uma das prestações.

Por outro lado, o fiduciário deverá ressarcir por perdas e danos o fiduciante,

quando não aceitar pagamento ou recusar-se em dar quitação, respeitar o uso do bem

pelo devedor, restituir o domínio gravado após a quitação, dar o restante do valor em

aberto ao devedor, pago com a venda da coisa a terceiro.

O devedor deve conservar o objeto, devolvê-lo ao credor, se inadimplente,

continuar obrigado pelo remanescente do débito, se após a venda, não foi pago todo o

saldo. A prisão civil decorrente da alienação fiduciária em garantia é proibida.

O tema deve ser interpretado restritivamente, não dando ensejo à analogia ‘in

malan partem’. A extensão da norma só abrangerá casos da mesma espécie normativa

(CF/88, 4°, II). A Constituição Federal de 1988, art. 5°, inc. LXVII só autoriza a prisão

civil do devedor de pensão de alimentos e do depositário infiel, aquele guardado de

objeto alheio mencionado no Código Civil de 1916, art. 1287.

Mas na mesma Carta magna, art. 5°, inc. LIV, consta o princípio do devido

processo legal, fato relegado no presente tema, precipuamente após a ratificação do

Pacto de San José da Costa Rica, em 1992, cujo princípio se inclina no sentido de que

só há prisão civil do devedor de pensão de alimentos.

É que o STF entende que este tratado internacional entrou no ordenamento

jurídico como lei ordinária e assim, não poderia revogar texto constitucional,

especialíssimo. Mesmo assim, adotando tal entendimento, então o pacto externo

revogou o art. 1287 do CC/16, bem como o CPC, arts 902, § 1° e 904, ambas leis gerais

e anteriores (CF, 5°, II). Como a repristinação é impossível em nosso ordenamento

jurídico, o art. 640 do CC/02, que trata do depositário, nasceu inconstitucional.

É de bom alvitre decidir se as normas externas ingressam com status de norma

constitucional ou simplesmente como legislação ordinária. É importante também, saber

se os tratados internacionais de direitos humanos, já integrados ao ordenamento jurídico

nacional, predominará sobre uma norma brasileira de mesma hierarquia, mas que

inclina-se em sentido contrário.

A moderna doutrina internacionalista acolhe arduamente, que os tratados

ratificados pelo Brasil ganham status de norma constitucional (CF, 5°, § 2°), protegidos

pelas cláusulas pétreas (CF/88, 60, § 4°, IV). Portanto, para estes, um tratado externo

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poderá revogar o texto constitucional, por ser mais novo. Mas a orientação

jurisprudencial não é a mesma, até agora.

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