direitos humanos, gênero e sistema prisional

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DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E SISTEMA PRISIONAL: AS MULHERES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE Viviane Isabela Rodrigues 1 Ângela Diana Hechler 2 Giovana Henrich 3 Luciane Kraemer 4 RESUMO Atualmente o sistema prisional brasileiro vem apresentando mudanças quanto ao perfil dos apenados, assim como tipologia dos crimes cometidos, observando-se um aumento no número de mulheres presas nas últimas décadas. Em razão das transformações contemporâneas, delineadas pelo sistema capitalista, identificam-se impactos sociais de diversas ordens, especialmente no que se refere ao campo da proteção social e direitos humanos. A agudização da questão social, representada neste contexto pelo aumento da violência e da criminalidade, vem demandando a intervenção direta do Estado mediante ações do sistema de justiça e da política de segurança pública. É neste contexto que atualmente evidencia-se o aumento da inserção de mulheres na prática criminal e consequentemente seu ingresso no sistema prisional brasileiro. Assim o presente estudo apresenta o perfil sociocultural e as condições de vida das mulheres apenadas nas instituições carcerárias da 4ª regional da SUSEPE. Palavras-chave: Sistema prisional brasileiro. Direitos Humanos e Proteção Social. Questão de Gênero. 1 Assistente Social junto a Superintendência dos Serviços Penitenciários (RS). Graduada em Serviço Social (Universidade Luterana do Brasil), Graduada em Gestão Pública (Instituto Federal de Santa Catarina), Especialista em Metodologia de Intervenção com Família (UPF), Especializanda em Gestão Pública (UFRGS). E-mail: [email protected]. Telefone: (54)3329-1855. 2 Professora adjunta do curso de Serviço Social da Universidade de Passo Fundo. Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Arthur J. Arnold, 16, Floresta, Carazinho/RS. Telefone: (54) 91815831. 3 Professora adjunta do curso de Serviço Social da Universidade de Passo Fundo. Mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Antonio Liborio Bervian, 35, Seminário, Tapera/RS. Telefone: (54) 91624548. 4 Assistente Social do DAS-STDS-RS e Doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Pedro Vargas, 460/1102, Centro, Carazinho/ RS. Telefone (54)33317510.

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Direitos Humanos e gênero

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  • DIREITOS HUMANOS, GNERO E SISTEMA PRISIONAL: AS MULHERES EM PRIVAO DE LIBERDADE

    Viviane Isabela Rodrigues1

    ngela Diana Hechler2 Giovana Henrich3

    Luciane Kraemer4

    RESUMO

    Atualmente o sistema prisional brasileiro vem apresentando mudanas quanto ao perfil dos apenados, assim como tipologia dos crimes cometidos, observando-se um aumento no nmero de mulheres presas nas ltimas dcadas. Em razo das transformaes contemporneas, delineadas pelo sistema capitalista, identificam-se impactos sociais de diversas ordens, especialmente no que se refere ao campo da proteo social e direitos humanos. A agudizao da questo social, representada neste contexto pelo aumento da violncia e da criminalidade, vem demandando a interveno direta do Estado mediante aes do sistema de justia e da poltica de segurana pblica. neste contexto que atualmente evidencia-se o aumento da insero de mulheres na prtica criminal e consequentemente seu ingresso no sistema prisional brasileiro. Assim o presente estudo apresenta o perfil sociocultural e as condies de vida das mulheres apenadas nas instituies carcerrias da 4 regional da SUSEPE. Palavras-chave: Sistema prisional brasileiro. Direitos Humanos e Proteo

    Social. Questo de Gnero.

    1 Assistente Social junto a Superintendncia dos Servios Penitencirios (RS). Graduada em Servio Social (Universidade Luterana do Brasil), Graduada em Gesto Pblica (Instituto Federal de Santa Catarina), Especialista em Metodologia de Interveno com Famlia (UPF), Especializanda em Gesto Pblica (UFRGS). E-mail: [email protected]. Telefone: (54)3329-1855. 2 Professora adjunta do curso de Servio Social da Universidade de Passo Fundo. Mestre em Servio Social pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS. E-mail: [email protected].

    Endereo: Rua Arthur J. Arnold, 16, Floresta, Carazinho/RS. Telefone:(54) 91815831. 3 Professora adjunta do curso de Servio Social da Universidade de Passo Fundo. Mestre em Servio Social pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS. E-mail: [email protected]. Endereo: Rua Antonio Liborio Bervian, 35, Seminrio, Tapera/RS. Telefone: (54) 91624548. 4 Assistente Social do DAS-STDS-RS e Doutoranda em Servio Social pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Servio Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS. E-mail: [email protected]. Endereo: Rua Pedro Vargas, 460/1102, Centro, Carazinho/ RS. Telefone (54)33317510.

  • 1 INTRODUO

    Evidencia-se contemporaneamente que a criminalidade e a violncia

    constituem-se em graves expresses da questo social, atingindo diferentes

    grupos sociais. Neste contexto identifica-se que a atuao do estado vem

    privilegiando aspectos que reorientam as estratgias de enfrentamento

    relacionadas penalizao da questo social em detrimento de aes de

    proteo social. Neste sentido o aumento de atos criminais cometidos por

    mulheres, bem como o consequente ingresso destas no sistema prisional

    brasileiro, vem se constituindo em questo relevante na sociedade atual,

    refletindo e reproduzindo no interior dos presdios, em muitos casos, situaes

    pregressas de precarizao das condies de vida das famlias, associadas a

    violao de direitos humanos, fruto da agudizao da questo social e da

    radicalizao da desigualdade em curso na sociedade.

    Sendo assim, o trabalho objetivou compreender e analisar o perfil

    sociocultural, bem como o modo e a condio de vida das mulheres apenadas

    no interior dos presdios da 4 regio da SUSEPE do Estado do Rio Grande do

    Sul, tendo como objetivos especficos: Traar um perfil sociocultural e

    demogrfico das mulheres detentas nos presdios que compem a 4 Regio

    da SUSEPE; Identificar a tipologia dos crimes cometidos pelas mulheres

    detentas nos presdios da regio; Desvendar o modo e condio de vida na

    priso das mulheres detentas nos presdios que compem a 4 Regio da

    SUSEPE; Analisar a estrutura fsica das prises, relacionada as necessidades

    humanas bsicas e as singularidades do universo feminino das mulheres

    detentas, e identificar quais os projetos de vida das mulheres presas, assim

    como quais suas expectativas em relao ao retorno ao convvio social e

    familiar. Neste cenrio cabe evidenciar a categorias terica central relacionada

    ao tema que orientou a elaborao do projeto e a anlise de resultados, sendo

    esta gnero e privao de liberdade.

    Sobre este tema sabe-se que o Sistema Penitencirio Brasileiro formado por

    um conjunto de estabelecimentos fechados que tem por funo manter sob sua

  • guarda os sujeitos que contrariam as leis estabelecidas no ordenamento

    jurdico.

    O Sistema Penitencirio est ligado ao sistema de justia e integra o

    aparato do Estado no que se refere as condies da segurana pblica no

    pas. No Brasil esse sistema tem duas funes, uma de carter retributivo e

    outra de carter ressocializador ou correcional. Senna (2008, p. 02) qualifica as

    prises como estabelecimentos que o Estado destina para manter sob sua

    guarda aqueles indivduos que, em decorrncia de seu comportamento

    antissocial, precisam ser segregados, a guisa de reprimenda, desde que haja

    norma jurdica assim determinando.

    No que se refere a privao de liberdade e ao crcere, contribuies

    tericas informam que nos primrdios da civilizao as prises eram utilizadas

    com fins diversos, desde evitar a vagabundagem at assegurar mo de obra

    para a execuo de trabalhos forados( casas de trabalho, a primeira delas na

    Inglaterra), todas elas tendo em comum o carter segregatrio(SENNA,2008) .

    As penas nesse perodo eram castigos fsicos e at a morte, conforme relata

    Senna (2008, p.02) apontando que era utilizado o carcer em Roma como uma

    garantia para a instruo criminal para deter os processados, e a pena para

    eles ia dos castigos corporais sucinta execuo dos condenados.

    Nesse sentido, pode-se observar certo avano histrico no que se refere

    ao tratamento dos indivduos que violam as leis sociais e tambm quanto a

    aplicao da pena de restrio de liberdade. Tais mudanas na concepo da

    pena de privao de liberdade, segundo Auwerter (2008), decorrem do fato de

    que a teoria de tratamento se sobreps a de punio. Dessa forma, ao

    longo do tempo a privao de liberdade passa a ser utilizada tambm como um

    perodo de tempo para a readequao do indivduo para um convvio social

    ajustado conforme as normas sociais legalmente estabelecidas, e o sistema

    penitencirio passa a ser o local utilizado para isso. A ideia contempornea de

    aplicao da pena restritiva de liberdade a de um perodo de tratamento, ou

    ressocializao do indivduo, a partir do qual ele tenha a possibilidade de

    realizar atividades e desenvolver aes no interior do sistema penitencirio que

  • sejam capazes de transform-lo num indivduo apto ao retorno no convvio

    social de forma ajustada. Sendo assim, a ideia de

    recuperao/ressocializao torna-se o principal escopo do sistema

    penitencirio, prescindindo a ideia de punio.

    Os ndices atuais mostram que esmagadora maioria dos detentos do

    sistema penitencirio brasileiro hoje oriunda da parcela mais vulnervel da

    populao. Esses sujeitos so advindos das periferias das cidades, so pobres

    e possuem baixo grau de escolarizao. No caso das mulheres, as pesquisas

    apontam que, a maioria encontra-se no sistema penitencirio em razo de

    envolvimento com o trfico de drogas. Esses so condicionantes importantes

    que, quando somados a atual estrutura e funcionamento do Sistema

    Penitencirio no Brasil, informam uma situao bastante catica no que se

    refere a capacidade de realizar a pretensa ressocializao dos sujeitos

    apenados e dar a eles melhores condies de retorno social aps o perodo de

    restrio de liberdade do que aquela que detinham antes de seu ingresso

    nesse sistema.

    Em relao ao tratamento e as condies de permanncia no Sistema

    Penitencirio existem vrias normativas e convenes que definem aos

    indivduos presos condies dignas de permanncia na priso. Entre essas

    normativas pode-se citar a Declarao Universal dos Direitos Humanos, a

    Declarao Americana de Direitos e Deveres do Homem, a Resoluo da ONU

    que prev regras mnimas para o tratamento dos apenados, e no Brasil a

    Constituio Federal que no artigo 5 trata das garantias fundamentais do

    cidado, e no que se refere proteo e aos direitos dos apenados, reserva 32

    incisos. H ainda em mbito nacional a Lei de Execuo Penal (LEP), que no

    artigo 41, incisos I a XV, dispe dos direitos reservados aos sentenciados

    durante seu processo penal.

    Estudiosos do tema apontam que a legislao brasileira no que tange

    aos direitos humanos e fundamentais dos sujeitos presos uma das mais

    avanadas e modernas do mundo, assim como tambm em relao aos

    direitos sociais. Assis (2007, p. 03) ao referir-se ao estatuto penal refere sua

  • condio amplamente democrtica e enfatiza que est baseado numa ideia de

    que a execuo da pena privativa de liberdade deve ter por base o princpio

    da humanidade, sendo que qualquer modalidade de punio desnecessria,

    cruel ou degradante ser de natureza desumana e contrria ao princpio da

    legalidade.

    Entretanto, contrariando todas essas normativas legais e constitucionais

    as condies concretas dos apenados no Sistema Penitencirios hoje no pas

    apontam para uma srie de violaes no campo dos direitos humanos. So

    duras as crticas ao cumprimento da pena de privao de liberdade no interior

    desse sistema. As condies das prises no Brasil so degradantes e os

    sujeitos apenados passam por todo o tipo de privaes. As mais srias dizem

    respeito s condies de sade dos presos e a violncia e abusos por eles

    sofridos. Assis (2007, p. 03) no que se refere a permanncia dos presos no

    Sistema Penitencirio informa que

    A partir do momento em que o preso passa tutela do Estado ele no perde apenas o seu direito de liberdade, mas tambm todos os outros direitos fundamentais que no foram atingidos pela sentena, passando a ter um tratamento execrvel e a sofrer os mais variados tipos de castigos que acarretam a degradao de sua personalidade e a perda de sua dignidade, num processo que no oferece quaisquer condies de preparar o seu retorno til sociedade.

    A condio do atual Sistema Penitencirio brasileiro de celas

    superlotadas, precariedade e insalubridade dos presdios. Soma-se a isso, ms

    condies de alimentao e higiene, o sedentarismo dos presos alm do uso

    indiscriminado de drogas. Todos esses fatores tornam as prises um espao

    de degradao humana.

    No que se refere violncia no interior das prises, so comuns os

    abusos e castigos fsicos por parte dos prprios agentes penitencirios ou entre

    os prprios presos que constroem uma rede de poder paralelo no interior das

    penitencirias. H tambm os abusos e violncia sexual, muito comum no

    interior das prises. Outra violao bastante comum em relao aos presos a

    demora na concesso de benefcios e de concesso de progresso de regime

  • quando do direito destes a essas condies. Ainda, no que tange a questo do

    trabalho, a maioria dos detentos ficam ociosos e no realizam nenhuma

    atividade, contribuindo ainda mais para o aumento da violncia no interior do

    crcere, alm de terem tolhido seu direito ao trabalho o que poderia contribuir

    para a reduo da sua pena e faz-los auferir uma renda e mantendo ativa sua

    capacidade laborativa.

    Essa situao aponta para um desrespeito aos direitos humanos e s

    garantias fundamentais dos detentos no interior do Sistema Penitencirio

    brasileiro, dicotomizando a realidade com as prerrogativas legais existentes.

    Mostra-se desse modo, que muito mais do que a simples privao da liberdade

    os indivduos presos esto condenados a outras muitas privaes e violaes.

    Isso muito se deve a uma cultura social instituda de um Estado penal, em que

    o Sistema Penitencirio serve como um depsito para onde so encaminhados

    os inadaptados do sistema social vigente.

    nessa direo que emerge a incidncia de um Estado penal cada vez

    mais forte, onde a partir de um decrscimo cada vez maior no campo das

    polticas sociais que atendam a essa camada mais empobrecida e

    marginalizada da populao, cresce a condio de cerceamento da liberdade e

    do controle social, muitas vezes com base na violncia. H uma tendncia

    clara de criminalizao da questo social, onde situaes limites que dizem

    respeito a toda a sociedade, mas que atingem de forma desigual e com maior

    intensidade os mais pobres e vulnerveis, so tratadas como casos de polcia

    ao invs de serem tratadas como casos que demandam polticas pblicas.

    Wolff (2009, p. 13) destaca o predomnio do Estado penal frente ao Estado

    social e afirma que

    [...] vivemos uma crescente tendncia de penalizao das questes sociais, numa tentativa de fazer com que o controle social repressivo d respostas ausncia ou enfraquecimento do Estado no mbito das polticas sociais. Por isso, temos hodiernamente notcias de leis mais gravosas no campo penal e discusses sobre a necessidade de construo de novos presdios e de presdios de segurana mxima e, no entanto, temos poucas notcias sobre novas medidas de implementao dos direitos sociais.

  • Nessa direo a pena de privao de liberdade, no atual contexto do

    Sistema Penitencirio brasileiro e diante da situao da Segurana Pblica no

    pas, est longe de alcanar seu intento de ressocializao dos apenados e de

    ser condio favorvel para a diminuio da criminalidade. Ao contrrio o

    Sistema Penitencirio tem sido um espao de extrema violncia institucional e

    a privao de liberdade em nada tem contribudo para um decrscimo da

    violncia socialmente instituda. Porm, mesmo diante de ndices e dados

    estatsticos que provam essas condies, h uma tendncia cada vez maior ao

    crescimento do Sistema Penitencirio, e poucas discusses que apontem

    formas de qualificao desse sistema e de uma anlise profunda de sua real

    eficcia.

    a partir dessa realidade que ficam esquecidos, abandonados nos

    presdios uma parcela enorme de apenados, que geralmente s so lembrados

    quando provocam alguma ao que lhes d visibilidade no interior do Sistema

    Penitencirio, como as rebelies e os motins. Na atual conjuntura,

    praticamente impossvel que a partir da privao de liberdade o apenado

    retorne sociedade em melhores condies do que aquelas que possua antes

    de seu ingresso nesse sistema. Pelo contrrio, essas condies, na maioria

    das vezes, apenas se agudizam ainda mais, pela perda de referncias e pelo

    estigma que a priso traz a vida dos condenados ao crcere.

    Embora as estatsticas apontem que a maioria dos ingressos no Sistema

    Penitencirio so homens, e uma minoria so mulheres, a condio dessas

    nesse sistema possui particularidades importantes ligadas a condio de

    gnero.

    Assim a segunda categoria analtica constitui-se na questo de gnero.

    Conforme j apontado anteriormente, os dados relativos ao Sistema

    Penitencirio brasileiro mostram que a maioria do contingente de presos no

    pas so homens e uma minoria so mulheres. Wolff (2009, p. 10), aponta que

    existem algumas diferenciaes no universo dos presdios femininos pela

    prpria questo do gnero, como por exemplo, a presena de crianas, as

  • demandas no campo da sade, as inmeras questes familiares que o

    aprisionamento feminino traz consigo. Porm, segundo a autora ( WOLFF,

    2009,p.10), embora existam particularidades,existem situaes comuns a

    homens e mulheres presos.

    No entanto, a superlotao, a falta de recursos humanos e materiais para efetivao dos direitos legalmente estabelecidos (individualizao da pena, assistncia material, sade, jurdica, social, psicolgica, educacional e religiosa), e ainda a dificuldades para o desenvolvimento de projetos de formao profissional e de trabalho e para a preparao para a liberdade o colocam em p de igualdade aos presdios masculinos.

    A questo do gnero traz particularidades para a pena de privao de

    liberdade, sobretudo pelo papel social ocupado pela mulher, geralmente a

    funo de cuidadora da famlia, que fica vazio quando do ingresso desta no

    sistema penitencirio. Esse papel, ocupado pela mulher no atual contexto

    social uma construo histrica na relao entre os sexos, que foi

    determinando papis diferenciados para homens e mulheres. Os papis sociais

    e familiares ocupados por homens e mulheres dependem de cada contexto

    histrico determinado e das relaes estabelecidas entre eles nas mais

    variadas dimenses, como a subjetiva, social, poltica e de poder. O percurso

    histrico da mulher, tanto no espao privado como no pblico, vem sendo

    permeado por processos de violncia de gnero, esses muitas vezes velados e

    naturalizados por toda a sociedade.

    Historicamente e culturalmente para a mulher foi atribudo o papel de

    responsvel pelos cuidados despendidos a famlia, ou seja, atribui-se o cuidado

    dos filhos e do marido. Neste sentido a mulher torna-se responsvel pela

    realizao do trabalho domstico, sendo este, um trabalho no remunerado,

    considerado como obrigao da mulher, ou seja, uma contribuio invisvel,

    no remunerada (SOIBET, 2006, p. 363).

    Esta distino de papis, culturalmente atribudo, contribui para que a

    mulher seja vista enquanto classe subalterna, sendo muitas vezes, vtima de

  • processos de violncia dentro do mbito familiar. Nessa direo, Saffioti (1987,

    p.08) aponta que

    a identidade social da mulher, assim como a do homem, construda atravs da atribuio de distintos papis, que a sociedade espera ver cumprido pelas diferentes categorias de sexo. A sociedade delimita, com bastante preciso, os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.

    Ao analisar o universo feminino no interior dos presdios, em relao s

    particularidades do cumprimento da pena por parte das mulheres justamente

    o papel que lhe atribudo que chama a ateno. Ao assumir a funo de

    cuidadora e em muitos casos de mantenedora do lar, a lacuna que se

    estabelece na famlia quando da sua privao de liberdade muito grande.

    Dessa forma, as mulheres buscam continuar exercendo seu papel mesmo

    dentro da priso. Do mesmo modo elas no contam com a presena constante

    dos companheiros e maridos, assim como elas fazem quando estes esto

    presos.

    Nessa direo, as penitencirias femininas, alm das precrias

    condies gerais, tambm no oferecem condies adequadas para que as

    mulheres mantenham estreitas as relaes com os filhos e a famlia,

    aumentando suas angstias em relao a necessidade de cumprimento do seu

    papel social no grupo familiar, assim como tambm no levam em conta a

    necessidade de outras condies especiais que dizem respeito ao gnero,

    como a ateno especial sade, por exemplo.

    Nota-se que o interior do Sistema Penitencirio, inclusive do universo

    dos presdios femininos reflexo de uma sociedade que revela suas fissuras

    em relao a distribuio de renda e justia social. Do mesmo modo retrata os

    processos de violncia e discriminao em relao ao gnero existentes fora

    do universo da priso. Essas questes, porm, tornam-se ainda mais

    complexas e cruis quando somadas aos demais condicionantes existentes no

    interior do crcere no cumprimento das medidas de privao de liberdade.

  • 2 MATERIAL E MTODOS

    O desenho metodolgico da pesquisa tem como universo as mulheres

    presas em regime fechado (excluindo-se o aberto e semiaberto) em 50% das

    instituies prisionais que compem a 4 Delegacia Regional da SUSEPE5.

    Constitui-se em um estudo qualitativo, realizado a partir do mtodo dialtico

    crtico. A referida pesquisa caracteriza-se por ser um estudo exploratrio do

    tipo estudo de caso. Definiu-se como amostra a no probabilstica por

    tipicidade, totalizando 10 mulheres presas h seis meses, no mnimo, em

    regime fechado, entrevistadas junto aos presdios pr-estabelecidos da 4

    regio. Quanto coleta de dados, o principal instrumento utilizado foi a

    entrevista, tendo como fonte auxiliar a observao. Todas as entrevistas

    realizadas contaram com o aceite da equipe diretiva das instituies

    penitencirias e das apenadas atravs da assinatura do termo de autorizao e

    do TCE (termo de consentimento livre e esclarecido). Quanto a anlise dos

    dados, realizou-se por intermdio da tcnica de anlise de contedo.

    3 Resultados e Discusso: Perfil sociodemografico e condies de vida

    das mulheres apenadas na priso

    Compreende-se que as condies de vida das mulheres apenadas

    relacionam-se ao contexto societrio atual, que atravessado por variadas

    formas de excluso e desigualdade, atingindo especialmente as famlias

    pobres e da classe trabalhadora, o que somado as particularidades do sistema

    prisional, afetam de muitas formas as mulheres presas, que passam a conviver

    com as mltiplas facetas da intolerncia e da excluso intramuros, mas

    tambm com formas de solidarismo e estratgias de sobrevivncia que surgem

    no contexto institucional.

    5 Os dados ora apresentados representam os resultados parciais obtidos mediante as

    entrevistas junto a 30% do universo da pesquisa.

  • Estudos sobre as condies de vida das mulheres na priso afirmam

    que o sistema carcerrio reproduz as relaes de (des) proteo existentes na

    sociedade, agravando, muitas vezes, situaes pregressas de vulnerabilidade

    pessoal, social e familiar destas mulheres apenadas. Em um estudo recente,

    Medeiros discorre acerca das precrias condies de vida na priso.

    A priso funciona como reprodutora da misria, visto que, ao longo do perodo de encarceramento, inflige perdas mulher presa em diferentes dimenses da vida social, a comear pelo trabalho e pela moradia. Essa perda material tende, na maioria das vezes, a atingir a famlia e, em muitos casos, a estremecer relaes familiares e afetivas. A falta de apoio familiar, as reduzidas possibilidades de trabalho, de formao profissional, de lazer e a falta de acesso a bens materiais bsicos tornam difcil a vida da detenta dentro da priso e quando de seu retorno liberdade. Nesse sentido, pode-se afirmar que a priso empobrece ou agrava a pobreza preexistente. (BRANDO apud MEDEIROS, 2010, P.2)

    As estratgias utilizadas pelo estado brasileiro de fortalecimento de um

    Estado Penal em detrimento de um Estado Social refletem no cotidiano das

    mulheres presas atravs da infraestrutura fsica e das formas de atendimento

    no interior das prises.

    Outra caracterstica salientada por estes estudiosos diz respeito s

    relaes de poder que se estabelecem no interior das prises, evidenciando a

    necessidade de uma reorganizao social e psicolgica das presas que

    possibilite adaptao as dinmicas institucionais durante o perodo de

    recluso. A isto se somam as peculiaridades do universo feminino, em especial

    a maternidade e questes de sade relacionadas s diferentes fases do ciclo

    vital, entre outras e que fazem parte da vida das mulheres, j destacadas na

    discusso anterior sobre gnero e sistema prisional.

    Assim, a partir da anlise dos dados, identificou-se questes

    relacionadas ao perfil sociodemogrfico e as condies de vida das mulheres

    na priso, reforando as questes referidas na reviso terica da pesquisa.

    No que tange ao perfil sociocultural e demogrfico das apenadas,

    constatou-se que na sua maioria so mulheres naturais do RS e residentes nos

    municpios onde os presdios pesquisados encontram-se estabelecidos, ou

  • ainda, naturais de localidades pertencentes a rea de abrangncia das

    instituies prisionais . Possuam relacionamentos estveis anteriores a priso

    e, atualmente, encontram-se solteiras, tendo em mdia 3 filhos, a maior parte

    delas adolescentes ou adultos. Tambm se constatou que as mulheres

    possuem baixa escolaridade (1 grau incompleto), antes da priso trabalhavam

    como diaristas, faxineiras, revendedoras, prioritariamente vinculadas a

    atividades informais e com renda mdia de at um salrio mnimo, sendo as

    principais responsveis pelo sustento da famlia. Nenhuma das entrevistas

    recebe auxilio recluso; tem como maior problema de sade a depresso,

    fazendo uso de medicamentos contnuos. Tambm metade das entrevistadas

    afirmou fazer ou j ter feito uso de drogas lcitas/ilcitas.

    Quanto tipologia do crime, constatou-se que 87 % das entrevistadas

    esto presas em virtude da acusao de trfico; 50% so reincidentes; 75%

    consideram-se culpadas e 100% delas j teve algum familiar preso.

    No que se relaciona as condies de vida nos presdios, evidenciou-

    se que realizam em torno de 4 refeies dirias (caf, almoo, caf da tarde e

    janta). No que se refere aos alojamentos, os presdios possuem celas

    femininas separadas das masculinas, com uma mdia de 18 presas por cela,

    normalmente existindo 12 camas por alojamento. O banheiro composto por

    um chuveiro, um box e, por vezes, um vaso sanitrio. A manuteno da cela

    efetuada diariamente por uma presa. Quanto as questes de sade constatou-

    se que quando necessitam de atendimento mdico, normalmente solicitam

    para os agentes penitencirios. Habitualmente a instituio prov os

    medicamentos necessrios e as consultas requeridas, mas quando isso no

    possvel, a presa arca com seus custos. A maioria das presas no faz uso de

    mtodo anticonceptivo. No que se refere aos produtos de higiene, o provimento

    torna-se de sua responsabilidade, visto que a instituio no oferta este

    material. Quanto ao acesso a educao no interior dos presdios, em alguns

    deles a oferta de ensino bsico destina-se somente a homens, permanecendo

    as mulheres excludas desta atividade.

  • Sobre religio, identificou-se que existem cultos nos presdios,

    representando esta uma atividade de socializao entre presos, embora em

    algumas instituies, destinem-se exclusivamente para os homens.

    Referente as condies de trabalho e ou capacitao profissional no interior

    dos presdios pesquisados so desenvolvidas atividades artesanais (croch),

    bem como as presas executam atividades de limpeza, como forma de remisso

    de sentena. O atendimento por equipe tcnica nos presdios da 4 regio

    encontra-se deficitrio em razo da ausncia de recursos humanos. As

    instituies no possuem equipe de sade prpria (mdicos, enfermeiros,

    dentistas) recorrendo ao atendimento do SUS, bem como inexistem outros

    profissionais da equipe bsica, tais como assistentes sociais e psiclogos.

    Quanto a estrutura fsica dos presdios constatou-se que estes so

    compostos por celas, salas de atendimento individualizado, cozinha dos

    funcionrios, cozinha dos presos, ptio, quadra esportiva e sala de aula.

    No que se refere ao modo de vida nos presdio, evidenciou-se que o

    relacionamento existente entre as apenadas muitas vezes conflituoso,

    agravado pelo fato de presas que cumprem pena por crimes distintos dividirem

    a mesma cela. No que se refere convivncia entre presas, equipe diretiva e

    agentes penitencirios foi constatado que existe uma boa relao. Quanto as

    estratgias que utilizam-se para garantir seus direitos no interior dos presdios,

    as apenadas afirmaram que, normalmente, a presa mais velha a porta voz do

    grupo.

    Por fim, constatou-se que sobre o que motivou a priso, a totalidade das

    detentas afirmou ser culpada pelo delito que resultou na recluso, mas

    pretendem se afastar do crime. Sobre o relacionamento familiar referem que a

    famlia continua presente e que tem como projeto de vida, principalmente

    retornar para casa, retomando os vnculos familiares e afetivos e ingressando

    no mercado de trabalho.

    CONSIDERAES FINAIS

  • Constata-se que com o aumento da criminalidade e com o

    recrudescimento da poltica de segurana pblica segregatria, os presdios

    enfrentam uma situao de superlotao, o que reproduz e agrava condies

    pr existentes de violao de direitos humanos. No que tange a insero das

    mulheres na criminalidade e consequentemente no sistema prisional,

    evidencia-se que estas se utilizam de prticas criminais como estratgia de

    sobrevivncia. Tratam-se normalmente de mulheres pertencentes a grupos

    sociais mais vulnerveis, com baixa ou nenhuma escolaridade, mantenedoras

    de famlias, residentes em reas perifricas, que encontram nas prticas

    ilcitas, em especial no trfico, uma forma de sustento. Tambm se observou

    que as mulheres tendem a ingressar no trfico para ajudar companheiros ou

    filhos que so traficantes, muitas vezes assumindo por eles a responsabilidade

    pela prtica criminal.

    No interior dos presdios pesquisados, o modo e as condies de vida

    das mulheres reclusas so semelhantes as que as mesmas possuam quando

    encontravam-se em liberdade. Identificou-se que as mulheres encontram no

    ambiente prisional a violao de seus direitos, o afastamento de sua famlia, o

    no acesso a condies dignas de vida que possibilitem a manuteno de sua

    sade fsica e psquica. Desta forma constata-se que o espao prisional que

    deveria possuir carter ressocializador e correcional torna-se tambm espao

    de (des) proteo social e de violao dos direitos humanos.

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