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DIREITOS FUNDAMENTAIS, PROPRIEDADE INTELECTUAL E SUA FUNÇÃO SOCIAL: O LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO DE MEDICAMENTOS LOS DERECHOS FUNDAMENTALES, LA PROPIEDAD INTELECTUAL Y SU FUNCIÓN SOCIAL: LA CONCESIÓN DE LICENCIAS OBLIGATORIAS DE MEDICAMENTOS Armando Zanin Neto RESUMO O Art. 5º, XXII da Constituição Federal, assegura inequivocamente que o direito de propriedade deve ser sempre contrastado com as restrições do inciso seguinte, de que a propriedade atenderá sua função social. Também no Art. 170 a propriedade privada é definida como princípio essencial da ordem econômica, sempre com o condicionante de sua função social. Os interesses social e econômico devem ser compatibilizados de maneira a possibilitar que o desenvolvimento de novas tecnologias, sejam aplicadas não só para a obtenção de lucros extraordinários mas também para beneficiar os seres humanos que, em especial nos países em desenvolvimento, necessitam do produto dessa nova tecnologia, cito medicamentos, cultivares entre outros para melhorar sua condição de existência humana. Hodiernamente, nas discussões levadas a cabo nos órgãos internacionais responsáveis pela regulação e controle da propriedade intelectual no mundo, predomina o interesse dos países desenvolvidos, seja na redação dos tratados internacionais em que os países subdesenvolvidos são obrigados a aderir por pressão internacional, seja nas matérias eleitas para estas discussões. Nesse contexto, o instrumento do licenciamento compulsório de patentes medicamentosas pode contribuir para a mudança desse cenário desastroso, transferindo tecnologia para países em desenvolvimento, gerando emprego e estimulando o desenvolvimento humano de seus habitantes, bem como reduzindo os recursos despendidos com o pagamento de royaltes, transformando o que era despesa em investimento, contribuindo para a formação de um ciclo virtuoso e melhor qualidade de vida para as pessoas. Em 13 de novembro de 1996, foi aprovada a Lei no 9.313 que tornou obrigatória a distribuição de medicamentos antiretrovirais (ARVs) pelo sistema público de saúde. Frente à epidemia HIV/AIDS no Brasil, tal normativa fortaleceu o arcabouço legal já existente, pois garantiu o acesso a ARVs e outros medicamentos para o tratamento de infecções relacionadas à doença. Além de elogios internacionais de países e órgãos como a Organização Mundial de Saúde, a aplaudida política de distribuição universal brasileira pode ser demonstrada em números: entre 1997 e 2004, a mortalidade foi reduzida em 40% e a morbidade em 70%; e a redução das internações hospitalares e do tempo médio de internação hospitalar foi de 80%, a economia de recursos foi da ordem de US$ 2,3 bilhões com gastos hospitalares . Destaca-se ainda a redução significativa dos preços de medicamentos ARVs com o incremento da produção local. No dia 4 de maio de 2007, o governo brasileiro decidiu licenciar compulsoriamente o medicamento Efavirenz – componente do coquetel contra o HIV, cuja patente pertence ao laboratório Merck Sharp & Dohme. De acordo com o Programa DST/AIDS do Ministério da Saúde, o 6776

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DIREITOS FUNDAMENTAIS, PROPRIEDADE INTELECTUAL E SUA FUNÇÃO SOCIAL: O LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO DE

MEDICAMENTOS

LOS DERECHOS FUNDAMENTALES, LA PROPIEDAD INTELECTUAL Y SU FUNCIÓN SOCIAL: LA CONCESIÓN DE LICENCIAS OBLIGATORIAS DE

MEDICAMENTOS

Armando Zanin Neto

RESUMO

O Art. 5º, XXII da Constituição Federal, assegura inequivocamente que o direito de propriedade deve ser sempre contrastado com as restrições do inciso seguinte, de que a propriedade atenderá sua função social. Também no Art. 170 a propriedade privada é definida como princípio essencial da ordem econômica, sempre com o condicionante de sua função social. Os interesses social e econômico devem ser compatibilizados de maneira a possibilitar que o desenvolvimento de novas tecnologias, sejam aplicadas não só para a obtenção de lucros extraordinários mas também para beneficiar os seres humanos que, em especial nos países em desenvolvimento, necessitam do produto dessa nova tecnologia, cito medicamentos, cultivares entre outros para melhorar sua condição de existência humana. Hodiernamente, nas discussões levadas a cabo nos órgãos internacionais responsáveis pela regulação e controle da propriedade intelectual no mundo, predomina o interesse dos países desenvolvidos, seja na redação dos tratados internacionais em que os países subdesenvolvidos são obrigados a aderir por pressão internacional, seja nas matérias eleitas para estas discussões. Nesse contexto, o instrumento do licenciamento compulsório de patentes medicamentosas pode contribuir para a mudança desse cenário desastroso, transferindo tecnologia para países em desenvolvimento, gerando emprego e estimulando o desenvolvimento humano de seus habitantes, bem como reduzindo os recursos despendidos com o pagamento de royaltes, transformando o que era despesa em investimento, contribuindo para a formação de um ciclo virtuoso e melhor qualidade de vida para as pessoas. Em 13 de novembro de 1996, foi aprovada a Lei no 9.313 que tornou obrigatória a distribuição de medicamentos antiretrovirais (ARVs) pelo sistema público de saúde. Frente à epidemia HIV/AIDS no Brasil, tal normativa fortaleceu o arcabouço legal já existente, pois garantiu o acesso a ARVs e outros medicamentos para o tratamento de infecções relacionadas à doença. Além de elogios internacionais de países e órgãos como a Organização Mundial de Saúde, a aplaudida política de distribuição universal brasileira pode ser demonstrada em números: entre 1997 e 2004, a mortalidade foi reduzida em 40% e a morbidade em 70%; e a redução das internações hospitalares e do tempo médio de internação hospitalar foi de 80%, a economia de recursos foi da ordem de US$ 2,3 bilhões com gastos hospitalares . Destaca-se ainda a redução significativa dos preços de medicamentos ARVs com o incremento da produção local. No dia 4 de maio de 2007, o governo brasileiro decidiu licenciar compulsoriamente o medicamento Efavirenz – componente do coquetel contra o HIV, cuja patente pertence ao laboratório Merck Sharp & Dohme. De acordo com o Programa DST/AIDS do Ministério da Saúde, o

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antiretroviral Efavirenz é o medicamento importado mais utilizado no tratamento da AIDS: atualmente, 38% das pessoas que vivem com HIV/AIDS no Brasil utilizam o remédio em seus esquemas terapêuticos. Estima-se que até o final deste ano, 75 mil das 200 mil pessoas farão uso desse medicamento. O Programa informa, ainda, que com os valores praticados pelo laboratório para o país, o custo por paciente/ano equivale a US$ 580, o que representaria um orçamento anual de US$ 42,9 milhões para 2007. Os preços do produto genérico variam de US$ 163,22 a US$ 166,36 o custo por paciente/ ano. A partir desses valores, com o licenciamento compulsório, a redução de gastos em 2007 foi em torno de US$ 30 milhões. A estimativa de economia até 2012, data em que a patente Efavirenz expira, é de US$ 236,8 milhões, segundo o Ministério da Saúde. O licenciamento compulsório foi uma demanda de diversas Organizações não Governamentais (ONGs). Historicamente, movimentos sociais e coletivos de ONGs têm lutado no Brasil para garantir a sustentabilidade de políticas públicas de saúde, o acesso universal a medicamentos utilizados no tratamento de pessoas que vivem com HIV/AIDS e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A medida é histórica e inédita na América Latina, embora já tenha ocorrido em outros países como Canadá, Tailândia e Itália, inclusive em relação a medicamentos da própria Merck. A decisão do governo foi o desfecho de uma longa negociação com o laboratório e foi tomada com responsabilidade, sem desrespeito às legislações nacionais e internacionais em vigor. A humanidade necessita de uma alteração no paradigma de valores que hoje imperam em nossa sociedade. O poder econômico não pode mais prevalecer sobre o ser humano. A crise financeira mundial pela qual o mundo atravessa desde 2007, mostra que a supervalorização do capital é um contra senso numa sociedade onde pessoas estão sobrevivendo miseravelmente, sem alimentação ou medicamentos, numa condição sub humana. O caso do Efavirens demonstrou que a experiência da licença compulsória traz inúmeros benefícios, principalmente na persecução dos objetivos nacionais brasileiros que coloca a Saúde como dever do Estado e direito do cidadão. Assim sendo, como demonstrado ao longo de toda a exposição, a comunidade internacional precisa se unir, contando com maior participação de países em desenvolvimento em órgãos multilaterais, atribuindo-lhes poderes de veto. Neste espeque, países como o Brasil, a Índia, a China e Rússia devem possuir maiores poderes junto a Organização Mundial do Comércio, no Conselho da Organização das Nações Unidas e integrar grupos até então formados apenas pelas grandes potências como o G8. Assim, necessitamos trabalhar conjuntamente para que a experiência hodierna do desenvolvimento econômico combinado com a valorização do ser humano que parece ser o caminho trilhado pelos países em desenvolvimento, passem a integrar os paradigmas de valor hoje presentes nos órgãos mundiais de controle, bem como, na mente das sociedades presentes em países desenvolvidos que, muita vez, atingiram um patamar elevado de desenvolvimento, graças a exploração de países que hoje buscam um desenvolvimento sem exploração, mas construtivista.

PALAVRAS-CHAVES: PROPRIEDADE INTELECTUAL, FUNÇÃO SOCIAL; LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO, EFAVIRENS

RESUMEN

El artículo 5, XXII de la Constitución Federal establece claramente que la propiedad debe ser contrastada con las restricciones del siguiente tema de la propiedad que se

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ajusten a su función social. El artículo 170 también en la propiedad privada se define como un principio fundamental de orden económico, con la condición de su función social. Los intereses sociales y económicos deben ser compatibles, a fin de que el desarrollo de nuevas tecnologías se aplican no sólo para obtener beneficios extraordinarios, sino también para beneficiar a los seres humanos, especialmente en los países en desarrollo, la necesidad de este nuevo producto la tecnología, dice que los medicamentos, entre otros cultivos para mejorar su condición de la existencia humana. Hoy, en los debates llevados a cabo en los organismos internacionales encargados de la regulación y el control de la propiedad intelectual en el mundo, domina el interés de los países desarrollados es en la redacción de los tratados internacionales en los que los países en desarrollo están obligados a adherirse a la presión internacional, es en el campo elegido para los debates. En este contexto, el instrumento de la concesión obligatoria de licencias de las patentes de los medicamentos pueden ayudar a cambiar esta desastrosa situación, la transferencia de tecnología a los países en desarrollo, generar empleo y estimular el desarrollo de sus habitantes, así como la reducción de los recursos gastados en el pago de royaltes, transformando lo que era en el gasto de inversión, contribuyendo a la formación de un círculo virtuoso, una mejor calidad de vida de las personas. El 13 de noviembre de 1996, la Ley fue aprobada en 9313 hizo obligatorio que la distribución de medicamentos antirretrovirales (ARV) por el sistema de salud pública. Frente a la epidemia de VIH / SIDA en el Brasil, el fortalecimiento de este marco jurídico normativo que ya existe, como garantía de acceso a los antirretrovirales y otros medicamentos para el tratamiento de las infecciones relacionadas con la enfermedad. Además de los elogios de los países y organismos internacionales como la Organización Mundial de la Salud, dio la bienvenida a la política brasileña de distribución universal puede demostrarse en cifras: entre 1997 y 2004, la mortalidad se redujo en un 40% y la morbilidad en un 70% y la reducción de hospital hospital y el tiempo promedio de hospitalización fue de 80%, la economía de los recursos fue del orden de US $ 2,3 mil millones en gastos de hospital. Es también una reducción significativa de los precios de los medicamentos antirretrovirales para aumentar la producción local. El 4 de mayo de 2007, el gobierno brasileño decidió licencia obligatoria de la droga Efavirenz - componente de un cóctel contra el VIH, cuya patente pertenece al laboratorio Merck Sharp & Dohme. Según el Programa de ETS / SIDA del Ministerio de Salud, el tratamiento antirretroviral Efavirenz es el medicamento importado más utilizado en el tratamiento del SIDA: hoy, el 38% de las personas que viven con el VIH / SIDA en Brasil el uso de medicamentos en sus regímenes de tratamiento. Se estima que para finales de este año, 75 mil de 200 mil personas van a utilizar este medicamento. El programa también informa de que los valores por el laboratorio para el país, el costo por paciente por año equivale a $ 580, lo que representaría un presupuesto anual de $ 42,9 millones para 2007. Los precios de la gama de productos genéricos a partir de $ 163,22 a $ 166,36 el costo por paciente por año. De estos valores, con la concesión de licencias obligatorias, la reducción de los gastos en 2007 fue de alrededor de 30 millones de dólares EE.UU.. El ahorro estimado para el año 2012, cuando expira la patente Efavirenz, es de $ 236,8 millones, según el Ministerio de Salud. La concesión de licencias obligatorias fue una demanda de varias organizaciones no gubernamentales (ONG). Históricamente, los movimientos sociales y colectivos de las organizaciones no gubernamentales en Brasil han luchado para garantizar la sostenibilidad de las políticas de salud pública, el acceso universal a los medicamentos utilizados para tratar a las personas que viven con el VIH / SIDA y el fortalecimiento del Sistema Nacional de Salud (SUS). La medida es histórica y sin precedentes en América Latina, a pesar de que ha ocurrido en otros países como

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Canadá, Tailandia e Italia, incluso en relación a Merck de la propia droga. La decisión del Gobierno fue el resultado de una larga negociación con el laboratorio y fue tomada con responsabilidad, sin faltar el respeto a las leyes nacionales e internacionales en vigor. La humanidad necesita un cambio de paradigma en los valores que prevalecen hoy en día en nuestra sociedad. El poder económico ya no puede prevalecer sobre el ser humano. La crisis financiera mundial a través de la cual el mundo desde 2007, muestra que la sobrevaloración del capital es un contra del sentido en una sociedad donde las personas son miserablemente sobrevivir sin comida o medicina, un sub-condición humana. El caso de Efavirens mostró que la experiencia de las licencias obligatorias tiene muchas ventajas, principalmente en la búsqueda de objetivos que pongan Nacional de Salud del Brasil y el deber del Estado y derecho del ciudadano. Así pues, como se ha demostrado a lo largo de la exposición, la comunidad internacional tiene que unir, con una mayor participación de los países en desarrollo en los organismos multilaterales, dándoles poder de veto. Puncheon esto, países como Brasil, India, China y Rusia deberían tener más competencias en la Organización Mundial del Comercio, el Consejo de las Naciones Unidas y luego unirse a los grupos formados solamente por las grandes potencias como el G8. Por lo tanto, tenemos que trabajar juntos para hoy la experiencia de desarrollo económico combinado con el reconocimiento del ser humano parece ser la forma en las pistas de los países en desarrollo, tendrá que integrar los paradigmas de valor en el mundo de hoy al organismo de control y, en cuenta de las empresas en los países desarrollados, mucho tiempo, llegó a un alto nivel de desarrollo mediante la explotación de los países que ahora buscan un desarrollo sin explotación, pero constructiva.

PALAVRAS-CLAVE: PROPIEDAD – INTELECTUAL - FUNCIÓN SOCIAL - LICENCIAMIENTO COMPULSORIO – EFAVIRENZ

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende investigar o tratamento dispensado pela Lei maior à propriedade intelectual, sua função social, aos direitos dela decorrentes e até que medida os direitos de exclusividade e os privilégios conferidos à PI se sustentam frente ao instrumento do licenciamento compulsório, utilizado para a quebra da patente em benefício do interesse público.

Neste espeque, este artigo busca analisar as disposições legais acerca do tema, a natureza jurídica da propriedade intelectual, sua função social determinada positiva e negativamente por seus limites, em especial, o limite compulsório externado pelo instrumento do licenciamento compulsório, sua aplicação no âmbito das patentes de medicamentos e o único caso brasileiro de quebra da patente: o Efavirenz. – medicamento componente do coquetel antiaids distribuído pelo Ministério da Saúde, dentro do programa de universalização da saúde previsto na Lei 9.313/96.

1.1 PROPRIEDADE INTELECTUAL

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Podemos dizer, de maneira geral, que a propriedade intelectual se constitui do conjunto de princípios e de regras que regulam a aquisição, o uso, o exercício e a perda de direitos e interesses sobre ativos intangíveis diferenciadores, que são suscetíveis de utilização no comércio. Este instituto não abarca todos os ativos intangíveis, mas aqueles que servem de elementos de diferenciação entre concorrentes.

Assim, conforme Carvalho[1], o objeto tratado pela propriedade intelectual abrange os elementos diferenciadores que apresentem: a) novidade, que diferencia quanto ao tempo; b) originalidade, que diferencia quanto ao autor; c) distingüibilidade, que diferencia quanto ao objeto.

A propriedade intelectual compreende: I) Propriedade Industrial: marcas, patentes, desenho industrial, indicações geográficas e cultivares e; II) Direitos do Autor e Direitos Conexos: obras literárias e artísticas, programas de computador, domínios da internet e cultura imaterial. Os conhecimentos tradicionais ainda não foram reconhecidos como parte da Propriedade Intelectual.

Como o objetivo do presente trabalho é investigar a interpretação da propriedade intelectual sob o prisma da função social, com ênfase no licenciamento compulsório, optamos por sinteticamente conceituar a propriedade intelectual sem maiores digressões.

2. NATUREZA JURÍDICA

Se os direitos do autor de obra ou invento são configurados como verdadeira propriedade intelectual, forçosamente somos obrigados a concluir que estamos tratando de uma espécie de propriedade, e que portanto, caberiam ao proprietário todos os frutos de seu bem imaterial, de maneira exclusiva e privilegiada.

Demais disso, se a CR/88 fala em garantia do direito de propriedade, as prerrogativas do autor sobre sua obra estariam garantidas de maneira permanente, cito:

“Artigo 5º: ...

XXII – é garantido o direito a propriedade”

Todavia, no inciso XXIII, do artigo que trata dos direitos e garantias fundamentais, o legislador inseriu de forma genérica, que toda propriedade atenderá a sua função social, in verbis:

“Art. 5º

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”

A nosso ver, a maneira genérica com a qual o legislador constituinte originário impôs a observância da função social à propriedade fora intencional, pois desta forma estendeu a obrigatoriedade de atendimento da função social, não só à propriedade

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material de bens corpóreos mas também à propriedade imaterial, constituída por bens incorpóreos.

Parece-nos que a natureza jurídica encontra-se delineada: Um direito de propriedade que detêm em sua concepção primeira, privilégios e exclusividades, naturalmente será um direito de natureza patrimonial.

Todavia, pela vontade do legislador constituinte, acreditamos que o “tempero” da função social trazido no inciso XXIII do artigo 5º, impõe limites ao direito patrimonial, a ponto de impor ao particular a perda da propriedade e dos direitos dela decorrentes, em favor do interesse público.

Assim, temos que o direito de propriedade é garantido e prestigiado no Brasil (regime capitalista da livre iniciativa), porém, esta garantia é mitigada pelo interesse público que sempre prevalecerá sobre o interesse do particular.

3. INTERESSE SOCIAL E O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E ECONÔMICO DO PAÍS

A propriedade intelectual, sob o prisma dos direitos humanos, apóia-se em dispositivos constitucionais e tratados internacionais internalizados e materializados na legislação brasileira por normas infraconstitucionais. Além da parte final do artigo 5º, inciso XXIX, da CF/88, a carta aponta para a existência de interesses sociais coletivos, imputando ao Estado o dever de garantir o acesso a tais objetos culturais. Assim, por exemplo, nos artigos seguintes, temos que:

Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

(...)

Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

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V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

No dizer de Denis Borges Barbosa[2], na seara do direito constitucional, os direitos intelectuais de conteúdo essencialmente industrial (patentes, marcas, nomes empresariais, etc.) são objeto de tutela própria, que não se confunde com a regulação econômica dos direitos autorais. Em dispositivo específico, a Carta sujeita a constituição de tais direitos a condições especialíssimas de funcionalidade (a cláusula finalística), compatíveis com sua importância econômica, estratégica e social. Não é assim que ocorre no que toca aos direitos autorais.

O Art. 5º, XXII da Carta, que assegura inequivocamente o direito de propriedade, deve ser sempre contrastado com as restrições do inciso seguinte, de que a propriedade atenderá sua função social. Também no Art. 170 a propriedade privada é definida como princípio essencial da ordem econômica, sempre com o condicionante de sua função social [3].

Os interesses social e econômico devem ser compatibilizados de maneira a possibilitar que o desenvolvimento de novas tecnologias, sejam aplicadas não só para a obtenção de lucros extraordinários mas também para beneficiar os seres humanos que, em especial nos países em desenvolvimento, necessitam do produto dessa nova tecnologia, cito medicamentos, cultivares entre outros para melhorar sua condição de existência humana.

Hodiernamente, nas discussões levadas a cabo nos órgãos internacionais responsáveis pela regulação e controle da propriedade intelectual no mundo, predomina o interesse dos países desenvolvidos, seja na redação dos tratados internacionais em que os países subdesenvolvidos são obrigados a aderir por pressão internacional, seja nas matérias eleitas para estas discussões.

Essa perspectiva funesta, atribui ao instrumento do licenciamento compulsório de patentes uma importância muito grande no contexto atual: A possibilidade dos países em desenvolvimento se aproveitarem das tecnologias já desenvolvidas para impulsionar a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias em seu próprio território, formando um ciclo virtuoso em que há o estímulo à formação de novos pesquisadores, à criação de novos institutos de pesquisa, ampliação da produção industrial, geração de empregos, melhor formação educacional e maior renda a todos os ocupantes dessa cadeia produtiva.

4. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA, A PROPRIEDADE INDUSTRIAL E A DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA

A legislação brasileira sobre propriedade industrial é baseada essencialmente em tratados internacionais (Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial (CUP), a União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas (UPOV) e o Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual relacionados com o

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Comércio (TRIPs, em inglês)), que, em sua grande maioria como vimos, regulam o tema de maneira a privilegiar as nações que possuem um maior número de patentes, (anos à frente em pesquisa e desenvolvimento), em detrimento de nações em desenvolvimento com menor número.

Em brilhante ensaio sobre a propriedade industrial das plantas, Kelly Bruch, Débora Hoff e Homero Dewes[4], traçam um breve panorama da legislação internacional e nacional:

“O Acordo sobre os Aspectos de Direito de Propriedade Intelectuais relacionados com o Comércio (TRIPs) tem como objetivo geral reduzir as distorções e obstáculos ao comércio internacional e assegurar que as medidas e procedimentos de repressão ao comércio ilícito de bens protegidos por direitos de propriedade intelectual não se tornem, por sua vez, obstáculos ao comércio internacional legítimo. Ele foi consolidado no âmbito da Organização Mundial do Comércio, no Anexo 1.C de seu Acordo Constitutivo. Este Acordo estipula uma proteção mínima da propriedade intelectual em nível mundial, buscando uma harmonização do nível de proteção em todos os Membros e garantindo esta proteção mediante procedimentos judiciais pré-determinados que sejam ágeis e efetivos. O referido Acordo, em suas exigências, não entra em conflito com as disposições previstas nas Atas da UPOV. Em seu texto, dentre outras disposições, o TRIPS determina que haja a proteção das variedades vegetais, seja mediante patentes, seja mediante um regime sui generis, sejam por ambos os regimes. Entretanto, ele permite explicitamente a exclusão da patenteabilidade de plantas pelos Membros em suas normas internas, de forma a permitir a possibilidade de proteção por apenas um regime sui generis. É a partir dos dispositivos proporcionados pela TRIPs que surgem, especialmente em países em desenvolvimento ou periféricos, as patentes biotecnológicas e a proteção de cultivares, antes apenas existentes nos países desenvolvidos. O mesmo também permite a concessão de licenças compulsórias e licenças obrigatórias, não se manifestando, no entanto sobre a aplicabilidade e extensão do princípio da exaustão de direitos. Em 1995, sob influência da TRIPs, foi promulgado no Brasil um conjunto de leis que visavam estabelecer a proteção de praticamente todas as áreas da propriedade intelectual, dentre as quais destacam-se: a lei n. 9.279 de 14 de maio de 1996, que se refere à propriedade industrial e a lei n. 9.456 de 25 de abril de 1997, que disciplina a proteção de cultivares.”

Antes do Acordo TRIPs, os Estados eram livres para determinar seus padrões de patenteabilidade. O patenteamento de bens essenciais, tais como medicamentos e alimentos, foi considerado por um bom tempo como sendo evidentemente contra o interesse público. Durante a Rodada Uruguai de negociações do GATT, os países em desenvolvimento aceitaram a proteção da propriedade intelectual no âmbito da OMC não porque esta era uma de suas prioridades, mas sim porque a propriedade intelectual estava dentro do pacote oferecido, que incluía a redução de medidas protecionistas pelos países desenvolvidos.

O avanço e o amadurecimento das economias de países desenvolvidos, lhes possibilita uma maior dedicação e concentração de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novos inventos e, por conseguinte, de novas patentes, sedimentando o indigitado círculo virtuoso no seio de sua sociedade.

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De outro lado, os países subdesenvolvidos hoje são dependentes dessa tecnologia e sem recursos financeiros para direcionarem a pesquisa e desenvolvimento, ajudam a formar um cenário tenebroso, no qual a propriedade intelectual favorece o proprietário e/ou cessionário da patente (geralmente localizado em países desenvolvidos) com privilégios sobre sua utilização e que impõe ao país subdesenvolvido o ônus do pagamento de royalties, agravando ainda mais a condição do subdesenvolvimento no que toca ao dispêndio de recursos de que disporia para pesquisa e desenvolvimento.

No Brasil, o registro de patentes continua sendo um problema em todo o País. Os pedidos brasileiros de concessão de patentes representam uma pequena fração do total mundial, 0,09%[5]. A Lei 9.279/96, que trata de propriedade intelectual, provocou o aumento do investimento da iniciativa privada e dos pedidos de concessão de patentes de instituições brasileiras no exterior. Até 1995, antes da lei entrar em vigor, pesquisas indicam que foram registrados, no total, 40 pedidos de patentes da iniciativa privada. Este número evoluiu para 215, desde que a lei entrou em vigor até o ano de 2007. Vale frisar, que até 1995 os depósitos de patentes foram quase exclusivamente de universidades, mas após esse ano as empresas passaram a representar cerca de 40% dos registros de patentes, os institutos de pesquisa 10% e as universidades o restante.

Apesar de a lei ter motivado a expansão dos depósitos, o Brasil ainda está em 28º lugar no número de pedidos concedidos pelo United States Patent and Trade Mark Office (USPTO), dos Estados Unidos, e apresenta um investimento em pesquisas e desenvolvimento muito baixo. Enquanto os países desenvolvidos investem 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisas, o Brasil investe apenas 1%, sendo que 65% desses recursos saem dos cofres públicos.

O governo federal lançou em 2004 uma política industrial e tecnológica para o setor, financiada pelo BNDES. O programa foi renovado pelo banco há menos de um ano e irá até 2012, com dotação de R$ 3 bilhões. Há R$ 1 bilhão de projetos aprovados e contratados em carteira, mas a maioria é de implantação de unidades produtivas, não de P&D.

Falta muito para o Brasil conseguir repetir o exemplo da Índia. Algumas farmacêuticas do país asiático enxergaram que só tinham futuro investindo decididamente em inovação. Tornaram-se competitivas em genéricos no mercado mundial e passaram a respeitar patentes. Depois disso é que grandes empresas multinacionais reconheceram a competência indiana e levaram para lá laboratórios de P&D.

A título de registro, autores listam uma série de situações desvantajosas aos países subdesenvolvidos, tais como[6]:

a) barreira à transferência tecnológica do centro para a periferia, fazendo com que a periferia tenha que pagar pelo direito de uso de tecnologias específicas;

b) criar mercados para produtos casados (caso dos herbicidas criados para plantas geneticamente modificadas);

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c) dependência tecnológica, pois a compra de uma tecnologia principal pode desencadear a compra de tecnologias complementares, bem como serviços de manutenção e melhoria;

d) redução da competitividade, pois a aquisição de tecnologias no mercado não garante o domínio sobre tecnologias de ponta, ou pode significar incremento de custos pelo pagamento de royalties.

Desta exposição, ficam as questões:

1) Como proceder para compatibilizar os interesses de um lado, dos países e iniciativa privada que investem bilhões em pesquisa e desenvolvimento e querem lucrar com o produto destas e de outro, dos países que não têm condições e recursos para realizar pesquisas científicas, mas que, na maioria das vezes, são os que mais necessitam das inovações tecnológicas para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes em todos os níveis?

2) De que maneira compatibilizar o sistema capitalista de busca do lucro (mais valia) com um sistema comunitário internacional que valorize o ser humano acima de tudo, utilizando-se da tecnologia em prol do bem estar da humanidade?

5. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL

Como concluímos alhures, a propriedade intelectual possui natureza patrimonial. Com efeito, a Constituição Federal/88 no artigo 5º, inciso XXII, garante o direito de propriedade a todos os brasileiros. Da mesma sorte, o indigitado diploma insere no inciso seguinte, cito o XXIII, que a “propriedade atenderá a sua função social”.

A nosso ver, o inciso XXIII impõe à propriedade um requisito essencial para o seu exercício, qual seja, o atendimento da função social.

Mas o que entendemos por “função social”?

A sociologia define a expressão, indicando a idéia de uma sociedade vista como um organismo vivo, onde cada parte tem uma função.

De outro lado, se interpretarmos a expressão “função social da propriedade” sob o prisma das ciências jurídicas, temos a propriedade como uma parte do organismo social, cabendo a esta, a realização de uma função.

Neste esteio, podemos dizer que caberá a cada nação definir qual será a função atribuída à propriedade segundo a opção política de seu povo.

Neste aspecto, vale transcrever as criteriosas ponderações de Orlando Gomes[7] que identifica a diferença estrutural e política existente entre a propriedade que tem função social e propriedade que é função social:

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“...Essa energia moral da concepção de que a propriedade é uma função social não tem, entretanto, inspiração socialista, como se supõe, por desinformação, particularmente os socialistóides levianos ou contrabandistas de idéias.

Muito pelo contrário. Se não chega a ser uma mentira convencional, é um conceito ancilar do regime capitalista por isso que, para os socialistas autênticos, a fórmula da função social, sobre ser uma concepção sociológica e não um conceito técnico jurídico, revela profunda hipocrisia pois “mais não serve do que para embelezar e esconder a substância da propriedade capitalista. É que, legitima o lucro ao configurar a atividade do produtor da riqueza, do empresário, do capitalista, como exercício de uma profissão de interesse geral. Seu conteúdo essencial permanece intangível, assim como seus componentes estruturais. A propriedade continua privada, isto é, exclusiva e transmissível livremente.

...

O primeiro problema foi levantado por Perlingieri na sua obra Introdução à Problemática da Propriedade, publicada em 1971 pela Escola de Aperfeiçoamento em Direito Civil da Universidade de Camerino. Registrando a evidente diferença estrutural e política existente entre a propriedade que tem função social e propriedade que é função social, esclarece que, na primeira colocação, a propriedade permanece como uma situação subjetiva no interesse do titular, e que só ocasionalmente este é investido na função social, enquanto na outra perspectiva a propriedade é atribuída ao proprietário, não no interesse preponderante deste, mas no interesse público ou coletivo.

No mundo moderno, o direito individual sobre as coisas impõe deveres em proveito da sociedade e até mesmo no interesse dos não proprietários. Quando tem por objeto bens de produção, sua finalidade social determina a modificação conceitual do próprio direito, que não se confunde com a política das limitações específicas ao seu uso. A despeito, porém, de ser um conceito geral, sua utilização varia conforme a vocação social do bem no qual recai o direito, - conforme a intensidade do interesse geral que o delimita, e conforme a sua natureza na principal rerum divisio tradicional.”

No Brasil, adotamos o regime capitalista e a propriedade corpórea e incorpórea é privada, tendo função social e não sendo uma função social, para utilizarmos as idéias trazidas pelo douto autor.

Desta feita, a função social preconizada por nossa carta magna, nunca será plena como aquela imaginada em um Estado que adota a opção político-econômica do socialismo, pois em nossa opção econômica, o proprietário possuirá sempre prerrogativas positivas, tais como privilégios, exclusividades e direito de proteção, em face de seus semelhantes.

Contudo, a despeito de não ser plena, a função social inserta da Constituição Federal, impõe aos proprietários de bens corpóreos e incorpóreos uma importante limitação: O interesse público deverá ser sempre observado, prevalecendo sobre o interesse privado.

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Assim, temos que o Estado deve garantir o direito de propriedade ao dono, concebendo instrumentos jurídicos para esta proteção erga omnes. De outro lado, deve o proprietário retribuir à sociedade a concessão desta garantia, utilizando a propriedade de maneira adequada, coadunando-se com o conceito da função social.

No direito de propriedade industrial, esta face positiva pode ser compreendida como o direito que o titular da patente tem de explorá-la no território onde esta se encontra protegida bem como de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar o produto objeto de patente e o processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.

Na face negativa encontra-se o impedimento de que o proprietário use seu bem de forma nociva à coletividade. Também estão compreendidas na face negativa as situações em que legalmente o proprietário não pode impedir o terceiro de atuar. Trata-se da possibilidade de utilização de sua invenção em caráter privado e sem finalidade comercial, desde que não acarrete prejuízo ao interesse econômico do titular da patente; aos atos praticados por terceiros não autorizados, com finalidade experimental, relacionados a estudos ou pesquisas científicas ou tecnológicas; à preparação de medicamento de acordo com prescrição médica para casos individuais, executada por profissional habilitado, bem como ao medicamento assim preparado; o produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto que tiver sido colocado no mercado interno diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento; a terceiros que, no caso de patentes relacionadas com matéria viva, utilizem, sem finalidade econômica, o produto patenteado como fonte inicial de variação ou propagação para obter outros produtos; a terceiros que, no caso de patentes relacionadas com matéria viva, utilizem, ponham em circulação ou comercializem um produto patenteado que haja sido introduzido licitamente no comércio pelo detentor da patente ou por detentor de licença, desde que o produto patenteado não seja utilizado para multiplicação ou propagação comercial da matéria viva em causa; e aos atos praticados por terceiros não autorizados, relacionados à invenção protegida por patente, destinados exclusivamente à produção de informações, dados e resultados de testes, visando à obtenção do registro de comercialização, no Brasil ou em outro país, para a exploração e comercialização do produto objeto da patente, após a expiração dos prazos estipulados no art. 40 da Lei 9.279/96.

Em ambos os casos, tanto positiva quanto negativamente, a intervenção estatal pode se dar de maneira limitadora ou impulsionadora. A maneira limitadora se traduz em todos os deveres legalmente estabelecidos que determinam que o indivíduo deva agir ou deixar de agir de determinada forma. No direito de propriedade industrial esta intervenção limitadora poderia ser compreendida como o limite temporal que a lei determina para a exploração da proteção da patente de invenção. A maneira impulsionadora implica na intervenção do Estado na atuação do indivíduo quando a limitação legal por si só não é suficiente. No direito de propriedade industrial esta intervenção impulsionadora pode ser traduzida na concessão de licenças compulsórias por abuso de direito, bem como na decretação da caducidade da patente por falta de exploração desta.

Por fim, estas limitações podem existir em face do interesse público ou do interesse privado. Tratam-se de limitações de interesse público aquelas que dizem respeito a reflexos que se espraiam por toda a sociedade. No direito de propriedade

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industrial esta limitação pode ser percebida quando a lei determina que se possa utilizar o invento para pesquisa e desenvolvimento. Embora pareça que, em um primeiro momento, está se desprezando o privilégio do particular em utilizar o invento, na verdade está se garantindo a toda a sociedade o progresso científico e tecnológico. Isso se explica da seguinte forma: se a um titular fosse dada a possibilidade de proibir a pesquisa sobre suas inovações, ele teria o monopólio não somente sobre o fruto destas, mas sobre a possibilidade de se avançar cientificamente, determinando a estagnação do conhecimento nesta área.

Tanto a maneira limitadora quanto a maneira impulsionadora de intervenção do estado sobre o direito de propriedade, podem ser entendidas como formas de governabilidade, possibilitadas pelo direito de propriedade industrial. Estas formas de governabilidade podem ser utilizadas para defender os interesses do país perante os avanços tecnológicos permitidos pela Pesquisa e Desenvolvimento, mas protegidos pelo direito.

Isto posto, vale enfatizar que no âmbito da propriedade industrial, dentro das categorias supra mencionadas, são tratados os seguintes limites: temporais, territoriais, compulsórios e de esgotamento de direitos.

Neste artigo trabalharemos com o denominado limite compulsório e sua aplicação sobre os medicamentos e as consequências para o país que o utiliza, no cenário internacional.

6. LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO DE MEDICAMENTOS

No Brasil, o licenciamento compulsório está regulado na Lei 9.279/96, em seus artigos 68 usque 74, os quais dispõem que o titular ficará sujeito à quebra da patente nos casos de: a) exercício dos direitos dela decorrentes de forma abusiva; b) prática de abuso de poder econômico; c) não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto; d) falta de uso integral do processo patenteado e; e) a comercialização não satisfizer as necessidades do mercado.

Segundo o artigo 70 da indigitada Lei, a licença compulsória poderá ainda ser concedida quando, cumulativamente, se verificarem: a) ficar caracterizada situação de dependência de uma patente em relação a outra; b) o objeto da patente dependente constituir substancial progresso técnico em relação à patente anterior; e c) o titular não realizar acordo com o titular da patente dependente para a exploração da patente anterior.

O Acordo da OMC sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS, sigla em inglês) permite que os Membros da Organização, na qual inclui-se o Brasil, emitam licenças compulsórias (artigo 31 do tratado internacional) em circunstâncias específicas, entre elas emergências nacionais relacionadas à saúde pública. No caso dos medicamentos, a licença compulsória por interesse público suspende os direitos patentários sobre determinado produto e abre caminho para a importação ou produção de genéricos a um custo bastante inferior.

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Ocorre que, na quebra de uma patente medicamentosa, mais importante que a economia em termos de gastos públicos para um país em desenvolvimento como o Brasil, é o estímulo ao desenvolvimento de uma competência tecnológica nacional para desenvolver e testar um princípio ativo. É uma condição necessária para desenvolver o setor de fármacos no país e reduzir sua dependência na importação de produtos de química fina.

As farmacêuticas brasileiras, apesar de avanços recentes, não têm tradição de pesquisa nem recursos financeiros para se tornarem tão cedo de fato inovadoras. Farmanguinhos, da Fiocruz, é um laboratório público, que se associou a duas empresas privadas nacionais para desenvolver o Efavirenz, medicamento que teve sua patente quebrada pelo governo brasileiro através do Decreto nº 6.108/2007. No caso brasileiro, parece ser esse o caminho do desenvolvimento tecnológico: criar consórcios para aglutinar competências e ganhar escala, com foco na inovação que vá além da simples cópia de medicamentos consagrados.

O Decreto que inaugurou o instituto da licença compulsória por interesse público no Brasil, utilizou-se da faculdade prevista no artigo 71 da Lei 9.729/96, dispositivo este que fora instituído no país graças à assinatura pelo Brasil do Acordo da Organização Mundial do Comércio sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS, sigla em inglês), in verbis:

Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.

Parágrafo único. O ato de concessão da licença estabelecerá seu prazo de vigência e a possibilidade de prorrogação.

Atendendo aos requisitos do citado artigo, o Decreto 6.108/2007, vaticina:

Art. 1o Fica concedido, de ofício, licenciamento compulsório por interesse público das Patentes nos 1100250-6 e 9608839-7.

§ 1o O licenciamento compulsório previsto no caput é concedido sem exclusividade e para fins de uso público não-comercial, no âmbito do Programa Nacional de DST/Aids, nos termos da Lei no 9.313, de 13 de novembro de 1996, tendo como prazo de vigência cinco anos, podendo ser prorrogado por até igual período.

§ 2o O licenciamento compulsório previsto no caput extinguir-se-á mediante ato do Ministro de Estado da Saúde, se cessarem as circunstâncias de interesse público que o determinaram.

Art. 2o A remuneração do titular das patentes de que trata o art. 1o é fixada em um inteiro e cinco décimos por cento sobre o custo do medicamento produzido e acabado pelo Ministério da Saúde ou o preço do medicamento que lhe for entregue.

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Art. 3o O titular das patentes licenciadas no art. 1o está obrigado a disponibilizar ao Ministério da Saúde todas as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução dos objetos protegidos, devendo a União assegurar a proteção cabível dessas informações contra a concorrência desleal e práticas comerciais desonestas.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto no art. 24 e no Título I, Capítulo VI, da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, no caso de descumprimento da obrigação prevista no caput.

Art. 4o A exploração das patentes licenciadas nos termos deste Decreto poderá ser realizada diretamente pela União ou por terceiros devidamente contratados ou conveniados, permanecendo impedida a reprodução de seus objetos para outros fins, sob pena de ser considerada ilícita.

Art. 5o Nos casos em que não seja possível o atendimento à situação de interesse público com o produto colocado no mercado interno, ou se mostre inviável a fabricação, no todo ou em parte, dos objetos das patentes pela União ou por terceiros contratados ou conveniados, poderá a União realizar a importação do produto objeto das patentes, sem prejuízo da remuneração prevista no art. 2o.

Art. 6o Caberá ao Ministério da Saúde informar ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI, para fins de anotação, o licenciamento compulsório concedido por este Decreto, bem como alterações e extinção desse licenciamento.

Art. 7o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 4 de maio de 2007; 186o da Independência e 119o da República.

LUIZ ÁCIO IN LULA DA SILVA José Gomes Temporão”

Muitos setores reagiram de maneira positiva, tendo expressado apoio público à emissão da licença compulsória brasileira. O ex- Ministro francês das Relações Exteriores, Philippe Douste-Blazy, apoiou a decisão e afirmou que a medida tem fundamento no TRIPs, que prevê que cada país possui a liberdade de determinar os motivos que levam à emissão das licenças compulsórias. O ex-Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Bill Clinton, também apoiou a decisão do governo brasileiro. Estes apoios públicos, representam a confirmação de que o Brasil segue na direção correta em termos de ação de saúde pública e que a medida adotada está absolutamente de acordo com o disposto no Acordo TRIPs, não caracterizando nenhuma arbitrariedade ou estatização.

A propósito, vale frisar que antes de decretar o licenciamento compulsório por interesse público, o Brasil seguiu o protocolo exigido pelo TRIPs, realizando negociações com a indústria farmacêutica detentora da patente a fim de compor o conflito de interesses amigavelmente. Ocorre que, a empresa negou-se a negociar. Talvez até pelo desgaste que o instrumento da licença compulsória atravessara eis que, em outras ocasiões, o Ministério da Saúde ameaçara empresas de quebra de patente em relação a outros medicamentos que também fazem parte do coquetel antiaids. Contudo, nestas

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oportunidades o país recuou, aceitando termos que, algumas vezes, não foram os mais interessantes para os interesses nacionais, como ocorre no caso Kaletra (Lopinavir + Ritonavir), fabricado pelo laboratório Abbott.

O uso racional da licença compulsória pode favorecer a transferência de tecnologia para a produção de medicamentos nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, em setores de vital interesse para saúde da população. Assim, apesar do poder econômico representado por gigantes do setor farmacêutico não estarem de acordo com a utilização da licença, ela é uma das poucas maneiras pelas quais os países mostram para a comunidade internacional que os valores prevalecentes nas culturas dos povos deve ser o da primazia do ser humano em detrimento do capital. Enquanto não unirmos esforços para deixar realçado o império de valores humanísticos, a sociedade continuará assistindo a genocídios em massa, como ocorre nos países africanos com a disseminação de epidemias e doenças infecto contagiosas, sem tratamento por falta de recursos. Não podemos aceitar que seres humanos, pelo fato de terem nascido em um país economicamente subdesenvolvido, agonizem aguardando a morte sem remédios ou outro tipo de tratamento, enquanto indústrias farmacêuticas, discutem qual será a repercussão em seu faturamento da quebra de uma patente em um país em desenvolvimento.

Os órgãos multilaterais internacionais possuem a obrigação de estimular, apoiar e assessorar os países em desenvolvimento a transferir tecnologia para o seu território, fazendo com que o desenvolvimento econômico atravesse as fronteiras para que um dia o instrumento do licenciamento compulsório não seja mais importante, dada a condição de desenvolvimento que o planeta atingirá.

7. O ÚNICO CASO BRASILEIRO DE LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO: O ANTIRETROVIRAL EFAVIRENZ

O Brasil alterou sua legislação de propriedade industrial em 1996, ajustando-se às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). A Lei no 9.279/96 ampliou o escopo das matérias patenteáveis e estabeleceu a possibilidade de proteção de todos os campos tecnológicos. Com isso, houve alteração significativa da lei anterior (Lei nº 5.772/71), que proibia, por exemplo, o patenteamento de substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação dos mesmos.

Em 13 de novembro de 1996, foi aprovada a Lei no 9.313 que tornou obrigatória a distribuição de medicamentos antiretrovirais (ARVs) pelo sistema público de saúde. Frente à epidemia HIV/AIDS no Brasil, tal normativa fortaleceu o arcabouço legal já existente, pois garantiu o acesso a ARVs e outros medicamentos para o tratamento de infecções relacionadas à doença.

Além de elogios internacionais de países e órgãos como a Organização Mundial de Saúde, a aplaudida política de distribuição universal brasileira pode ser demonstrada em números: entre 1997 e 2004, a mortalidade foi reduzida em 40% e a morbidade em 70%; e a redução das internações hospitalares e do tempo médio de internação hospitalar foi de 80%, a economia de recursos foi da ordem de US$ 2,3 bilhões com

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gastos hospitalares[8]. Destaca-se ainda a redução significativa dos preços de medicamentos ARVs com o incremento da produção local.

A manutenção da distribuição universal de ARVs encontra-se, no entanto, ameaçada pela sustentabilidade financeira do Programa. Os medicamentos antiretrovirais de primeira linha produzidos localmente não estavam sob proteção patentária no Brasil, já que à época do início da produção o país não reconhecia patentes farmacêuticas. Esse fato permitiu que 7 ARVs fossem produzidos como genéricos nacionais, o que reduziu o custo do tratamento e ampliou o acesso. Após a alteração da lei de propriedade industrial e o reconhecimento de patentes farmacêuticas, os novos medicamentos, agora patenteados no Brasil, impactaram e seguem impactando na política de distribuição universal de ARVs.

Em negociações com laboratórios farmacêuticos transnacionais detentores de patentes de Antiretrovirais, o Brasil utilizou a ameaça de licença compulsória como instrumento de pressão em três ocasiões: Primeira: Em agosto de 2001, o então Ministro da Saúde José Serra anunciou o licenciamento compulsório da patente do medicamento Nelfinavir (fabricado pela Roche). No mesmo dia, porém, e logo após o anúncio, foi anunciada a interrupção do processo porque a Roche aceitou reduzir o preço do medicamento em 40%. Segunda: Em dezembro de 2003, o Ministro da Saúde, Humberto Costa, anunciou que o governo brasileiro poderia, mais uma vez, adotar a medida para a produção do Nelfinavir no País. Em janeiro de 2004, depois de conseguir a redução do preço de cinco medicamentos - Nelfinavir, Lopinavir, Efavirenz, Tenofovir e Atazanavir - o Ministério da Saúde desistiu da medida. Terceira: Em junho de 2005, o atual Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva e o Ministro Humberto Costa, assinaram decreto no qual o medicamento ARV Kaletra (Lopinavir + Ritonavir), fabricado pelo laboratório Abbott, passou a ser de interesse público. A negociação com a empresa mostrou-se desastrosa, e foi assinado um contrato que continha cláusulas abusivas, tais como: a restrição da aplicação de flexibilidades legais; a fixação do valor unitário do medicamento até 2011, o que dificultava nova negociação de preço; e a previsão de aumento em 10% no preço da nova formulação do medicamento. Em suma, o preço da nova formulação praticamente anulou a redução de preço obtida à época. Diversas organizações da sociedade civil denunciaram aspectos abusivos do acordo e ingressaram na Justiça Federal para obrigar o Poder Executivo a licenciar compulsoriamente o medicamento Kaletra.

No dia 4 de maio de 2007, o governo brasileiro decidiu licenciar compulsoriamente o medicamento Efavirenz – componente do coquetel contra o HIV, cuja patente pertence ao laboratório Merck Sharp & Dohme. De acordo com o Programa DST/AIDS do Ministério da Saúde, o antiretroviral Efavirenz é o medicamento importado mais utilizado no tratamento da AIDS: atualmente, 38% das pessoas que vivem com HIV/AIDS no Brasil utilizam o remédio em seus esquemas terapêuticos. Estima-se que até o final deste ano, 75 mil das 200 mil pessoas farão uso desse medicamento.

O Programa informa, ainda, que com os valores praticados pelo laboratório para o país, o custo por paciente/ano equivale a US$ 580, o que representaria um orçamento anual de US$ 42,9 milhões para 2007. Os preços do produto genérico variam de US$ 163,22 a US$ 166,36 o custo por paciente/ ano. A partir desses valores, com o licenciamento compulsório, a redução de gastos em 2007 foi em torno de US$ 30 milhões. A

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estimativa de economia até 2012, data em que a patente Efavirenz expira, é de US$ 236,8 milhões, segundo o Ministério da Saúde.

O licenciamento compulsório foi uma demanda de diversas Organizações não Governamentais (ONGs). Historicamente, movimentos sociais e coletivos de ONGs têm lutado no Brasil para garantir a sustentabilidade de políticas públicas de saúde, o acesso universal a medicamentos utilizados no tratamento de pessoas que vivem com HIV/AIDS e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

A medida é histórica e inédita na América Latina, embora já tenha ocorrido em outros países como Canadá, Tailândia e Itália, inclusive em relação a medicamentos da própria Merck. A decisão do governo foi o desfecho de uma longa negociação com o laboratório e foi tomada com responsabilidade, sem desrespeito às legislações nacionais e internacionais em vigor.

Cumpre observar, que nos termos do Decreto 6.108/2007, o licenciamento compulsório foi concedido sem exclusividade e para fins de uso público não-comercial, no âmbito do Programa Nacional de DST/Aids, nos termos da lei 9.313/96, tendo como prazo de vigência cinco anos, podendo ser prorrogado por até igual período. A remuneração do titular das patentes, foi fixada em um inteiro e cinco décimos por cento sobre o custo do medicamento produzido e acabado pelo Ministério da Saúde ou o preço do medicamento que lhe for entregue, podendo a União realizar a importação do produto objeto das patentes, sem prejuízo da indigitada remuneração.

Em entrevista coletiva ofertada aos meios de comunicação nacionais e internacionais, no início de 2.009, por ocasião do primeiro lote do Efavirenz produzido no país, o atual Ministro da Saúde ressalta a extrema valorização desse momento, para que o Brasil possa enfrentar novos desafios e novas conquistas. Para que a entrega do Efavirenz fosse concretizada, o Ministro Temporão destacou quatro etapas: a dimensão política, quando os sanitaristas se uniram no Sistema Único de Saúde (SUS); a dimensão técnico científica, marcada pela capacidade dos pesquisadores brasileiros de organizar e aplicar seus conhecimentos aos serviços de saúde; a dimensão da política industrial e desenvolvimento, onde a saúde é vista como espaço de geração de riqueza e criação de empregos e a dimensão exercida pelo processo civilizatório, quando Betinho e Sérgio Arouca contribuíram para a formação de uma “consciência diferenciada”.

Temporão também afirmou que o setor da saúde será uma arma para enfrentar a crise econômica mundial iniciada em 2007 nos EUA, devido à geração de emprego, renda e tecnologia a partir de uma política industrial e de desenvolvimento nesse campo. Cita ainda, que o Efavirenz não é o fim da linha, mas a possibilidade de desenvolvimento e criação de novas tecnologias.

O presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, nesta mesma ocasião, lembrou que a produção do Efavirenz foi possível através de uma nova compreensão na área de patentes e que com isso 85 mil pessoas poderão ter acesso ao medicamento com qualidade e preço justo, assegurando a manutenção do Programa do Ministério da Saúde (DST/AIDS).Gadelha lembrou ainda dos avanços da Fundação Fiocruz em relação a prevenção, diagnóstico e tratamento da Aids, como a criação e aplicação do teste rápido para diagnóstico da doença (apresenta resultado em 30 minutos), os Centros de Referência, as campanhas educativas e a produção e distribuição de medicamentos.

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Por derradeiro, vale registrarmos que a experiência brasileira serve de exemplo para outras nações em desenvolvimento, tanto porque respeitou todo o protocolo estipulado no TRIPs para a realização da licença compulsória, utilizando-se legitimamente do instrumento, tanto porque utilizou-se desta oportunidade para transferir tecnologia para o país, impondo a laboratórios nacionais (parceria entre Farmanguinhos/Fiocruz e laboratórios particulares), o dever de pesquisa e desenvolvimento para o atendimento da demanda interna. É verdade que logo após o decreto da licença compulsória, o país ainda não tinha capacidade técnica para produzir o medicamento, importando-o da Índia mas, ao longo dos últimos dois anos, o caminho trilhado demonstra o sucesso da operação e a conseqüência principal da ampliação do desenvolvimento tecnológico no país.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A humanidade necessita de uma alteração no paradigma de valores que hoje imperam em nossa sociedade. O poder econômico não pode mais prevalecer sobre o ser humano. A crise financeira mundial pela qual o mundo atravessa desde 2007, mostra que a supervalorização do capital é um contra senso numa sociedade onde pessoas estão sobrevivendo miseravelmente, sem alimentação ou medicamentos, numa condição sub humana.

Nesse contexto, o instrumento do licenciamento compulsório de patentes medicamentosas pode contribuir para a mudança desse cenário desastroso, transferindo tecnologia para países em desenvolvimento, gerando emprego e estimulando o desenvolvimento intelectual de seus habitantes, bem como reduzindo os recursos despendidos com o pagamento de royaltes, transformando o que era despesa em investimento e melhor qualidade de vida para as pessoas.

O caso do Efavirens demonstrou que a experiência da licença compulsória traz inúmeros benefícios, principalmente na persecução dos objetivos nacionais brasileiros que coloca a Saúde como dever do Estado e direito do cidadão.

Assim sendo, como demonstrado ao longo de toda a exposição, a comunidade internacional precisa se unir, contando com maior participação de países em desenvolvimento em órgãos multilaterais, atribuindo-lhes poderes de veto. Neste espeque, países como o Brasil, a Índia, a China e Rússia devem possuir maiores poderes junto a Organização Mundial do Comércio, no Conselho da Organização das Nações Unidas e integrar grupos até então formados apenas pelas grandes potências como o G8. Assim, necessitamos trabalhar conjuntamente para que a experiência hodierna do desenvolvimento econômico combinado com a valorização do ser humano que parece ser o caminho trilhado pelos países em desenvolvimento, passem a integrar os paradigmas de valor hoje presentes nos órgãos mundiais de controle, bem como, na mente das sociedades presentes em países desenvolvidos que, muita vez, atingiram um patamar elevado de desenvolvimento, graças a exploração de países que hoje buscam um desenvolvimento sem exploração, mas construtivista.

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REFERÊNCIAS

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- TOUSSAINT, Eric. Deuda externa en el tercer mundo: las finanzas contra los pueblos. Venezuela : Nueva Sociedad, 1998, p. 291.

[1] CARVALHO, Nuno Tomaz Pires de. Propriedade Intelectual. Florianópolis: UFSC, 22 de maio de 2004

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[2] IBMEC. LL.M. em Direito Empresarial. Denis Borges Barbosa. Apostila Direitos Autorais, Conexos e de Software.

[3] José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, Ed. RT, 1989, p. 241: "a propriedade (sob a nova Constituição) não se concebe senão como função social".

[4] Bruch, Kelly Lissandra, Hoff, Debora Nayar, Dewes, Homero.A função social do direito de propriedade industrial como alternativa de governabilidade aos países em desenvolvimento: um estudo sobre a propriedade industrial de plantas. Revista Direito, Estado e Sociedade, n.32 p. 148 a 180 jan/jun 2008.

[5] Dados fornecidos pela Prospectiva Consultoria Brasileira de Assuntos Internacionais.

[6] CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. TOUSSAINT, Eric. Deuda externa en el tercer mundo: las finanzas contra los pueblos. Venezuela : Nueva Sociedad, 1998, p. 291.

[7] GOMES, Orlando. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2002, pág 107 a 109.

[8] Dados obtidos no sítio eletrônico do Ministério da Saúde: www.ms.gov.br

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