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DIREITO À EMIGRAÇÃO, DESEQUILÍBRIOS

NO MERCADO DE TRABALHO:

A EUROPA E O MUNDO

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PARTE I

As migrações na Europa

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Calais, via sem saída

Gérard Davet

Imaginar-se-ia de boa vontade num outro lugar. Em Londres, evidentemente. Ou no seu lugar indevidamente ocupado, no porto. Com outros eritreus, desertores do exército, como ele. Mas está ali, com as mãos a tremerem, e responde às perguntas de um polícia visivelmente cansado. Awet Alem diz ter 21 anos, conta o seu périplo desde a Eritreia, o trânsito pela Líbia, a embarcação onde veio entre gente amontoada, o desembarque sobre uma praia italiana e seguidamente as horas de comboio, sempre a evitar cruzar o olhar com alguém, antes de alcançar Calais. Ele quer, como todos os outros que desfilam neste posto de polícia, alcançar a Inglaterra. Há-de chegar lá, custe o que custar.

Os seus amigos esperam-no no corredor, sentados num banco, onde está pendurado um par de algemas. Eles também serão interrogados por um investigador, antes de serem libertados, exactamente a tempo para se juntarem no cais Paul-Devot e se integrarem na fila dos miseráveis à procura de uma refeição quente. Este banco, no posto de polícia, faz parte da história. Foram tantos os que aí se sentaram, ligeiramente abatidos. E com ele se conta o destino de Calais, esta cidade onde o prefeito é alcunhado de “Papon”, e os polícias são tratados de gente da Gestapo por certos militantes. Uma vez que os clandestinos afluem, os polícias tentam contrariar a onda. Agarrando, por vezes, voluntários, culpados por terem ajudado os clandestinos. Quarta-feira, 8 de Abril, deviam organizar-se manifestações em mais de 70 cidades, para protestar contra este “delito de solidariedade”.

Agostina F., 26 anos, frequentou este banco. E, no entanto, não tem nada de uma clandestina. É uma voluntária que vem ajudar os refugiados em Calais. Mas foi mantida sob vigilância TIR (Termo de Identidade e Residência), em Fevereiro. Conta. “Nevava, dois estrangeiros tinham necessidade de ir ao hospital, tinham sarna, pediram-me que os levasse lá. Não tinha visto o carro

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da polícia do ar e das fronteiras, que vinha atrás de mim. Obrigou-me a parar. Puseram-me em TIR (Termo de Identidade e Residência), tratada como os criminosos. Levaram o meu telemóvel, disseram-me que era ilegal ajudar estrangeiros em situação irregular. Mas eu não os levava para Inglaterra, levava-os para o hospital!”

A história lá se resolveu, a bem. Agostina foi libertada, sem processo judicial. Mas este episódio conta um clima. O clima reconstituído pelo filme Welcome, de Philippe Lioret, no qual Vincent Lindon desafiou o artigo da Lei L 622-1* que reprime qualquer ajuda à estada de um clandestino. Este ajuda e aloja um jovem refugiado. No filme, Vincent Lindon é denunciado, colocado na prisão. Vêem-se cães policiais de dentes caninos bem salientes, polícias com aspecto de robôs, vizinhos com tendências colaboracionistas. Uma visão com demasiado aspecto de pesadelo para ser completamente real.

Na região, em seis anos, nove voluntários foram postos em causa exactamente na base do artigo L 622-1, de acordo com a prefeitura de Pas-de-Calais. Dois deles foram condenados, mas com pena suspensa. A última controvérsia recente, a 25 de Fevereiro: Monique Pouille, membro da associação Terre d’errance, é interpelada pelos polícias. Acusam-na de ter recarregado as baterias de telefones portáteis de clandestinos, de acordo com a versão da situação que esta forneceu aos meios de comunicação social. Os polícias, eles, afirmam que de acordo com as escutas telefónicas feitas sobre o seu telefone, esta teria aceitado, a pedido de passadores notórios, transportar clandestinos para parques de estacionamento, para que estes pudessem saltar para os camiões que partiam para a Inglaterra. Monique Pouille foi reposta em liberdade, na sequência da sua audição.

“A caça aos associativos de que nos acusam é uma controvérsia mal intencionada”, denuncia Jean-Philippe Jobert, procurador em Boulogne-sur-Mer, “o realizador de Welcome ganhou uma publicidade fácil. Na verdade, nenhuma instrução foi dada ao serviço de polícia para perseguir os voluntários. De resto, temos necessidade destas associações. E não haveria nenhum sentido em perseguir alguém porque aloja clandestinos em situação difícil. É uma

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questão de bom senso. Em contrapartida, se se trata de ajudar um estrangeiro em estada irregular a passar para a Inglaterra, é diferente…”

Estabelecer uma tal distinção exige por vezes verdadeiras proezas. Trata-se de um grande problema da administração francesa, que gere numa base casuística, dificultada por estas indefinições, bloqueada entre estes voluntários, às vezes ingénuos mas indispensáveis, e entre criminosos, profissionais do tráfego de seres humanos. Aqueles existem, prosperam, em especial em Calais. O artigo L 622-1 foi invocado pela justiça francesa em 4 800 situações em 2008, mas unicamente, assegura o Ministério da Imigração, para lutar contra estes passadores.

Em Calais, 500 clandestinos vivem nos arredores do porto. Os eritreus em casas que ocupam indevidamente, os afegãos “na selva”, estas barracas de acaso construídas em terrenos vagos, ao vento, perto da zona industrial das Dunas. Os efectivos renovam-se mensalmente. Não se envelhece aqui. Algumas dezenas de clandestinos passam para a Inglaterra em cada noite. O Reino Unido é o destino quimérico onde tudo se pode confundir no meio, sem se estar a temer os controlos dos polícias.

Em Londres, poderão trabalhar, não lhes irá ser pedido os documentos, tão permissiva ainda é a legislação inglesa. Calais é, por conseguinte, a promessa de um mundo melhor. Mas primeiro é necessário encontrar os meios para sobreviver. Sem estes voluntários, não há nenhuma salvação. É a associação Salam que organiza a refeição da noite, prevista para várias centenas de clandestinos, homens na sua maior parte. Cerca das 18 horas, pode ver-se Sylvie Copyans, 50 anos, a encher a tigela dos migrantes. “A polícia deixa-nos actuar, ainda que se esteja na ilegalidade, uma vez que se ajuda os clandestinos”, diz. “Mas nada está previsto para os tratar, cansam os clandestinos esperando assim eliminá-los da paisagem, mas isso não funciona assim”. Serviu de guia a Philippe Lioret, o realizador de Welcome, e deu-lhe a sua visão da situação. “Tudo o que está no filme é verdadeiro, a pressão acentuou-se, assegura. Desconfia-se dos polícias, estão prontos a tudo para nos fazer cair”.

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Jean-Claude Lenoir será julgado em Junho, por insultos a um polícia. Já tinha sido condenado, em 2004, esta vez ao abrigo do artigo L 622-1. Membro da Salam, é reincidente. Este professor de techno já conheceu de tudo: Termo de Identidade e Residência, as escutas telefónicas, as perseguições. “Tornamo-nos mesmo paranóicos”, conta, em dado momento “mudava de percurso, tinha a obsessão, tinha o medo de ser espancado”. Alojou no seu pequeno pavilhão um sem número de clandestinos, utilizou mesmo nomes falsos, via Western União, de modo a que os seus hóspedes pudessem transitar o seu dinheiro. “Os polícias sabem efectivamente bem que nunca ganhei um só cêntimo, que não transporto os migrantes para a Inglaterra. Mas vejam o estado em que estão os clandestinos! Quando os nossos filhos julgarem a história, que ideia é que terão de tudo isto?” Diz-se de esquerda, admite “gritar um pouco forte”, mas quer neutralizar qualquer controvérsia simplesmente política: “Nunca pensei que Eric Besson, o ministro da Imigração, era um fascista, nem mesmo que Nicolas Sarkozy era um ditador. Mas ao ver em 2009, em França, pessoas atingidas por gás, mulheres grávidas presas, militantes incomodados, eh bem, é bastante surpreendente…”

Entende-se bem com a presidente da Câmara Municipal, do partido UMP no Governo, Natacha Bouchard. Os chuveiros deveriam brevemente ser instalados e foi o município que pôs à disposição este Inverno uma sala de alojamento. Mas Natacha Bouchard está irritada. “O filme Welcome exacerbou as tensões na cidade, enquanto esta população demonstra uma incrível disciplina”, diz. “Mas desde há dez dias, sente-se subir uma tensão, há automóveis apedrejados. Recebo queixas todos os dias. A situação pode degenerar a qualquer momento”. Natacha Bouchard não quer criar as condições “de um acolhimento demasiado confortável, se não será o afluxo”. Esta lamenta, sobretudo, esta economia subterrânea que gangrena a cidade, estes “passadores” que se aproveitam da miséria dos migrantes. Os voluntários não falam em demasia, não procuram saber. Os polícias, estes, incomodam-se. E irritam-se quando Philippe Lioret comparou os migrantes aos “judeus, em 1943”. Incessantemente, tentam desmontar as fileiras. Sem ilusão.

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É necessário ver, por volta das duas horas da manhã, estes clandestinos, fantasmas de uma noite, com banho de chuveiro dado pela chuva glacial, meterem-se aos zig zags num parque de estacionamento de auto-estrada, conduzidos pelos passadores de capuzes negros. Esta noite, são 42 a marcharem uns atrás dos outros, a esperarem para subir para um veículo pesado, com destino ao porto de Calais. O estacionamento “é controlado” por afegãos. Isto vale caro, um lugar estratégico deste tipo pode revender-se a um bando rival até cerca de 300 000 euros, segundo fonte policial. Os refugiados pagaram ao seu passador entre 300 e 400 euros, eles tomaram conta dos seus magros haveres. Quando o motorista do veículo pesado é um cúmplice, as tarifas aumentam: 1 000 euros a passagem.

Num canto do parque de estacionamento, uma equipa da polícia das fronteiras (PAF) tenta não ser vista. Os clandestinos não são realmente a sua preocupação. Sabem efectivamente que uma vez presos, serão postos em liberdade. Os números? Em 2008, 7 964 procedimentos relativos a estrangeiros em situação irregular foram iniciados, somente 248 tiveram uma sequência judicial…

Estes polícias interessam-se pelos passadores, por estas fileiras estruturadas, com cabeças que pensam e montam os esquemas no estrangeiro, colectores nas estações de transportes, pelos passadores e pelos sentinelas nos parques de estacionamento. Seriam quase admiradores do seu knowhow, da sua capacidade organizativa. “Passeiam-se com a malinha do perfeito topa-tudo, do faz de tudo”, sublinha o tenente Muriel Leclercq, “sabem estoirar com os selos dos produtos na alfândega e de os refazer num abrir e fechar de olhos”. Em cada três ou quatro meses, o passador — frequentemente ele mesmo antigo migrante — vai refazer-se numas férias na Inglaterra, e seguidamente retorna. Nestes tempos, o clima tornou-se mais tenso, facas e mocas já não estão sequer dissimuladas. “Vê-se o ódio nos seus olhos”, testemunha o cabo-chefe Sandra Ruckebusch. “Para eles, a vida dos clandestinos não vale nada, são mercadorias, fazem-nos mesmo subir para os camiões frigoríficos. E se tentas subir por ti mesmo num camião, ficas retido depois”.

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E a situação dura toda a noite. É uma ocasião para discutir. Estes polícias não gostam de Welcome, de resto não foram vê-lo. Dizem não perseguir as associações de ajuda aos clandestinos. “Dizerem que os tratamos como se nós fôssemos fascistas”, suspira Muriel Lelercq. “Eu admiro estes voluntários, seria desumano incomodá-los. Sabe, quando se vêem crianças de pequena idade com os clandestinos, sentimo-nos emocionados, nós também. Sabe-se muito bem que são alojados por militantes associativos, nunca iremos prendê-los. É pena que a maioria da população tenha uma visão também minimalista da situação…”

A chuva acaba por acalmar os ardores dos passadores, que desaparecem na obscuridade. Uma vintena de clandestinos pôde subir para três reboques enquanto os motoristas dormiam. Talvez já tenham passado para a Inglaterra, depois de terem enfrentado os detectores de gás carbónico, os cães polícias. Ou reencontrá-los-emos no dia seguinte, no banco do posto de polícia de Coquelles, dispostos a recomeçarem a seguir ao cair da noite. Os polícias, em Calais, têm a sensação de fazerem o seu trabalho. “Não se tem realmente o sentimento de que nos comportamos como homens da Gestapo”, insurge-se o Comissário de Divisão Marie-Hélène Justo, dirigente da PAF. “Faz-se o melhor possível pelos migrantes. Propõem-se-lhes sistematicamente um alojamento, eles não querem. Em todo o caso, deixam-se tranquilos os que os apoiam, enquanto se tratar de socorro humanitário”.

O prefeito de Pas-de-Calais, Pierre de Bousquet de Florian, assegura não ter assinalado nenhum excesso. “O equilíbrio é difícil de encontrar”, reconhece. “Respeito a postura daqueles que agem por pura solidariedade, mas não aceito que se faça referência à polícia de Vichy. Em Calais, não se faz a caça aos voluntários. O problema é que os passadores abusam dos militantes associativos, confundindo-se com os clandestinos. Constatou-se a ansiedade de certos voluntários, que se têm tornado profissionais muito empenhados, quando interviemos…” Uma desconfiança mútua instalou-se. Doentia, com ares de paranóia. Ainda que Jean-Claude Lenoir, da associação Salam, tente relativizar: “95% dos polícias são honestos, há porém alguns excitados entre

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eles. Sobretudo, não é uma guerra que oponha migrantes e voluntários de um lado e polícias do outro. É primeiramente um problema humano a resolver”.

Em finais de Abril, Eric Besson, o ministro da Imigração, deve anunciar um reforço dos controlos na fronteira. A mensagem dirigida aos migrantes será ainda mais clara: deixem Calais.

* O artigo L 622-1 do código da estada dos estrangeiros

“Qualquer pessoa que, por ajuda directa ou indirecta, tenha facilitado ou

tenha tentado facilitar a entrada, a circulação ou a estada irregular de um estrangeiro em França será punida com prisão por um período de cinco anos e uma multa de 30 000 euros. Será punido com as mesmas penas quem, qualquer que seja a sua nacionalidade, tenha cometido o delito definido no primeiro parágrafo do presente artigo enquanto se encontrava no território de um Estado, outro que a França, que faça parte da convenção assinada em Schengen a 19 de Junho de 1990.

Será punido com as mesmas penas quem tenha facilitado ou tenha tentado facilitar a entrada, a circulação ou a estada irregular de um estrangeiro no território de um outro Estado parte da convenção assinada em Schengen a 19 de Junho de 1990”.

Os deputados socialistas defenderão a 30 de Abril na Assembleia um texto que visa “despenalizar qualquer ajuda quando a salvaguarda da vida ou a integridade física do estrangeiro está em causa, excepto se esta ajuda der lugar à uma contrapartida directa ou indirecta”. Assim, não entraria mais no âmbito da lei “o simples facto de levar no seu veículo um estrangeiro qualquer que seja o trajecto”.

Gérard Davet, “Calais, voie sans issue”, Le Monde, 8 de Abril de 2009.

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“Sei o que faço. A minha casa continuará a estar aberta”

Pierre Falk

Os seus protegidos chamam-no “Senhor Pierre” e, quando as suas finanças o permitem, atravessa a Mancha, entra em Inglaterra para reencontrar os clandestinos que alojou na sua pequena casa, em Boulogne-sur-Mer. Às vezes, transporta as suas malas, que deixaram à sua guarda. Pierre Falk, vendedor de discos, teve direito a várias prisões à vista.

“Não tenho necessariamente muito a dizer nem a justificar. É assim, e

não de outro modo, não estou certo de ter razão, mas a minha vida e a minha participação no andamento do mundo são assim. Não me considero como estando acima das leis, mas penso que podem ser eventualmente transgredidas. Não me considero como um Justo, um Militante, um Humanitário, um Direito do Homem ou não sei que mais ainda.

Não sou crente, eu não peço nenhum elogio, não agi por piedade ou por bom sentimento, não sou a honra da França, não tiro nenhum orgulho nem lucro pelo que faço, ponho mesmo um ponto de honra a nunca pedir nenhuma participação nas despesas. Exactamente um humano sobre a Terra que tem um pouco mais de possibilidade que estes e estas, aqui bem perto, que é possível encontrar… Então SIM, desde há mais de seis anos, tento ajudar tanto quanto posso as pessoas, outros cidadãos do mundo, a sobreviverem um pouco melhor momentaneamente, albergando-os e fazendo trabalhar a minha velha máquina de lavar, por exemplo.

A minha pequena casa é um tempo de pausa e de descanso onde coisas elementares e vitais são possíveis: sentar-se a uma mesa para comer, dormir bem em roupa lavada, lavar-se, tomar banho, ir à casa de banho, fazer a sua higiene pessoal, pentear-se, maquilhar-se, barbear-se, estar protegido da chuva, do frio, da angústia e do stress quase permanentes, olhar os mapas-mundo, trocar informações, falar, encontrar (se), criar ligações, cozinhar, brincar, rir…

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Por estes poucos momentos de vida roubados à adversidade eu não me considero como um delinquente, como um desobediente, e a eles, não os considero como sem-papéis, ainda menos como delinquentes. OK, são ilegais, irregulares, mas sobretudo migrantes que não têm outras escolhas que não sejam a fuga dos países em guerra, de governos totalitários ou devastados por crises económicas endémicas e mesmo assim ainda sonhando com uma vida melhor. Após travessias de terras, de desertos, de mares, pelo menos muito difíceis, eles chegam aqui nesta espécie de beco sem saída fazendo do beco sem saída um fosso, uma fossa… Aqui estagnam várias semanas, ou mesmo vários meses em condições de vida que não se desejaria a ninguém. Então sim, é verdadeiro, há escroques, pessoas pouco frequentáveis, máfias que prosperam sobre as seus costas, um sistema gerado pelo dinheiro-rei, mas também uma imensa fractura Norte-Sul, a ausência de política migratória aberta, digna, respeitadora, a hipocrisia inglesa, e a nossa também.

Não me associo realmente a esta maneira exagerada, desproporcionada (mas que pode finalmente ser produtiva) de gritar alto à bestialidade, de urrar contra a Milícia ou contra o fascismo, ou ainda ousar comparações que não têm lugar de ser. A minha prisão à vista, esta última e as precedentes, passaram-se bem, tive de lidar com uma polícia correcta, que faz o trabalho que se lhe pede para ser feito, com interrogatórios corteses e profissionais. Talvez este bom comportamento se deva ao facto de eu estar em situação regular, de cidadão europeu, branco, normal que… Irritam-me exactamente um pouco os pequenos sorrisos manhosos “Ah, o senhor, o humanista, o senhor é um doce sonhador, o mundo é o que é e não pode de modo nenhum mudá-lo”. Mas revoltam-me e atingem-me sempre com força as práticas indignas, inadmissíveis, injustificáveis!

Face ao que nos acusam, a nós, benfeitores (a solidariedade? a cumplicidade?), colocarem-nos sob escuta telefónica, sob vigilância, pôr em marcha tais procedimentos de intimidação, dispendiosos para além do mais, não serve para muito. Não andando a gritar aos quatro ventos o que faço, sei o que faço e saberei o que responder se me vierem interpelar de novo. Se por

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acaso tenho a ocasião de me cruzar com uma jovem mulher que se queira arranjar ou com um homem com uma perna partida, a minha casa continuará a estar aberta”.

Pierre Falk, “Je sais ce que je fais. Ma maison restera ouverte”, Le Monde, 8 de Abril de 2009.

Um inverno inglês para Fitwi

Catherine Simon

Tem algo de calma, a múmia egípcia do Museu de Bolton (Norte da Inglaterra). “Não é uma cópia, é uma verdadeira”, sublinha o vigia. Inclinado sobre a caixa de vidro, onde está o cadáver seco de um antepassado anónimo, Fitwi agita a cabeça em silêncio. Os últimos mortos que viu, foi no deserto líbio. Verdadeiros mortos, eles também. Do seu grupo de 92 migrantes, empilhados durante duas semanas em Land Cruiser’s, catorze morreram “de sede ou de cansaço”. Nem todos puderam ser enterrados. “Os motoristas líbios estavam com pressa”, explica o jovem. Ele, por sorte, chegou até esta pequena cidade tão inglesa, próxima de Manchester, após vários anos de uma terrível odisseia. Chegar vivo: um milagre. E finalmente contente: uma raridade.

Com a idade de 32 anos, Fitwi faz parte das centenas de eritreus que passaram “pela selva” de Norrent-Fontes (Nord-Pas-de-Calais) e chegaram a Inglaterra, escondidos num camião frigorífico. Melhor — e menos frequente: conseguiu o sacrossanto estatuto de refugiado. De acordo com as últimas estimativas do ministério do Interior Britânico, o número de requerentes de asilo no Reino Unido seria este ano ligeiramente superior (4%) em relação a 2008.

Entre os 6 045 requerentes registados durante o segundo trimestre 2009 (de Abril a Junho), estavam 5 770 a fazer esta diligência pela primeira vez.

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Destes, 72% receberam uma primeira recusa. Os outros, ou seja, quase 30%, receberam quase que imediatamente a luz verde para permanecer no Reino Unido: ao abrigo “da protecção humanitária” (11%) ou de asilo (18%).

É o caso de Fitwi. Não somente, recebeu o estatuto de refugiado, mas conseguiu igualmente obter trabalho — uma proeza, em tempos de crise. Trabalhador numa fábrica de bolos, chega, com as suas 800 libras de salário, a poupar mensalmente algum dinheiro. Tenciona estudar para ser enfermeiro. E pensa mesmo partir para Cartum (Sudão), aquando das festas de Natal, para abraçar a sua mãe que não vê desde há sete anos… “É um rapaz que tem possibilidade!”, suspira um dos seus compatriotas, que espera, sem grande esperança, vir a ser regularizado.

Que vivam em Manchester ou nos seus arredores mais próximos, os imigrantes eritreus conhecem-se muito entre si. “Quando cheguei, em 2001, não havia mais de uma vintena. Hoje, deve atingir-se os 2 000”, pensa Seyoum Tamerat, animador da pequena igreja ortodoxa eritreia, que reúne, cada Domingo à tarde, os fiéis de Manchester. A capital do futebol de resto enriqueceu-se de um (bom) restaurante eritreu, o Habesha, pertença de um antigo refugiado, Bethy, que obteve facilmente, como a sua família, a nacionalidade britânica.

As histórias destes exilados assemelham-se todas. Todas têm por pano de fundo a interminável guerra que opõe os regimes de Addis-Abeba (Etiópia) e de Asmara (Eritreia). Ao ouvir esta história, banal e terrível, que Fitwi conta com uma voz tranquila, com fish and chips à sua frente, no centro de Bolton, diz-se que ele não roubou este precioso estatuto de refugiado! E o que ele teve, na verdade, foi uma grandíssima sorte.

Obrigatório desde 1998, o recrutamento “por tempo indefinido” no exército eritreu transformou assim uma geração inteira, de raparigas e de rapazes, em carne para canhão. Ou em desenraizados. É “a razão principal das partidas”, considera Fitwi. A guerra e a ditadura, quebrando as esperanças de liberdade e os sonhos de regresso da diáspora, acabaram por arruinar uma economia balbuciante. “É por isto que as pessoas partem”, sublinha Fitwi, que

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telefona semanalmente à sua família, que permanece no país. Os seus irmãos estão no exército. Tendo-se casado, a sua irmã escapou ao uniforme. Fitwi, por seu lado, passou seis anos nos campos de batalha — “um pesadelo”, diz. O compatriota que o aloja, no pavilhão que habita com a sua esposa eritreia, é de resto um antigo amigo de regimento, reencontrado, por acaso, no estádio de futebol do Bolton. Esta guerra sem fim, Fitwi pensa sempre nela. Quando criou o seu endereço electrónico, o antigo soldado colocou lá dentro quatro números: 1905, o 19 de Maio, o dia da sua evasão da prisão eritreia, onde, desertor, falhou em deixar aí a sua pele. Sobre os seus oito camaradas de fuga, quatro vivem hoje na Inglaterra, dois permaneceram no continente africano; os dois últimos, não sabe.

Entrado na Europa pela Itália, em Agosto de 2008, Fitwi seguiu o percurso “clássico” dos seus compatriotas sem papéis: chegar primeiro a Paris, seguidamente um squat (ocupação ilegal de um imóvel) em Calais — destruído este Outono — e, por último, “a selva” de Norrent-Fontes, perto de Béthune. Depois de duas semanas de tentativas infrutíferas, o “bom” camião leva-o, a ele e a mais dez candidatos a partirem.

O veículo pesado passa os três postos de controlo do porto de Calais (dois franceses e um britânico) sem ser referenciado. Imobiliza-se no porão do ferry. Dentro do camião, os jovens eritreus tremem de frio. Falta-lhes o ar. Mas ninguém se move. Uma vez nos arredores de Douvres, o motorista, alertado pelos muros nas paredes do camião, chama a polícia. Libertação? Sim e não.

As prisões britânicas onde o grupo passa uma noite, com o interrogatório e o registo de impressões digitais que lhes tiram, parecem confortáveis aos viajantes. No entanto, a angústia está lá dentro, uma angústia que faz mal às tripas: como os seus companheiros, Fitwi teme “ser reenviado para a Itália, devido às impressões digitais”. Ah! Estas famosas impressões! Tiradas no país de entrada na Europa, são registadas no ficheiro Eurodac. Os migrantes, cujos pedidos foram rejeitados ou que se considerem indesejáveis, podem ser reenviados para este país de entrada — ainda que não seja lá que queiram viver. Mas há pior. “De Itália, pode-se ser deslocado para a Líbia, sem outra

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forma de processo”, o que durante muito tempo inquietou Fitwi, e não sem razão. Ele mesmo, antes de deixar Roma, queimou a zona das suas impressões digitais. Dedo por dedo. “Com um cigarro”, precisa. A prática é corrente.

Mas como ter a certeza que isto será suficiente? Para Fitwi, o período de angústia durou sete meses. Primeiramente, instalado num centro de alojamento para requerentes de asilo em Croydon, no Sul de Londres, o jovem eritreu foi enviado seguidamente para Bolton. Porquê Bolton? Disso, não sabe nada. Outros são colocados em Manchester, em Birmingham, em Liverpool… Durante estes meses de espera, Fitwi morou gratuitamente num apartamento colectivo — com o sistema de aquecimento, infelizmente, defeituoso… — e recebeu, de acordo com os regulamentos em vigor, um pecúlio semanal de 42 libras “para comer”.

São os funcionários do National Asylum Support Service (NASS), departamento especializado do ministério do Interior, que “decidem e acompanham os processos”, explica Malcolm Ngouala, assalariado da associação Befriending Refugees and Asylum Seekers (BRASS), uma associação de ajuda aos migrantes, criada em Bolton em 2001. “Aqueles a quem o asilo foi recusado encontram-se sem nada: sem tecto, sem alimento, sem roupas; e não têm o direito de trabalhar”, explica o fundador da associação, Ray Collett. Este fervente cristão, apoiado pela igreja metodista, viu em poucos anos o número dos “destituídos”, dos sem nada, aumentar a grande velocidade. São hoje “mais de 80” os que virão, cada Quarta-feira à tarde, às sessões “portas abertas” organizadas por BRASS, uns para ter uma refeição quente, os outros para frequentar um curso de inglês ou para fazer uma partida de baby-futebol.

“Mais de 50% dos requerentes de asilo acabam, depois de meses de espera e de diligências repetidas, por obtê-lo pelo estatuto de refugiado. Ou pelo menos acabavam. É a este nível que se fecha a torneira: os eleitos são agora cada vez menos numerosos, argumenta Malcolm Ngouala que, ele mesmo, foi sujeito durante vários anos a uma vida de galeras antes de ser reconhecido como refugiado. Mas este estatuto, apesar de restrições múltiplas,

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continua a ser muito vantajoso em relação a outros países da Europa”. Facilita o acesso à propriedade. E permite, se for renovado, poder levar a obter a nacionalidade britânica. Ainda assim é necessário primeiro tê-lo…

São cada vez mais numerosos os que não o conseguem: rejeitados nos limbos, alguns naufragam no desespero. “Ando a passear horas inteiras pelas ruas. Não posso nem partir, nem trabalhar. É por isso que odeio este país! Os pensamentos giram na minha cabeça e eu ando à volta…”, diz-nos um destes infelizes que, contrariamente a Fitwi, foi apanhado pelas impressões digitais.

Igualmente um sem nada, um “destituído”, Rahel (pseudónimo), chegado a Londres no Outono 2008, sobrevive graças a um casal de eritreus onde habita e que o alimenta. Sai raramente, passa o seu tempo a ler a Bíblia. “E eu, ou fico louco ou me suicido”, diz-nos a jovem mulher, de aspecto impecável. “E em França, dar-me-iam os papéis?”, pergunta bruscamente.

Este Verão, seis eritreus foram presos pela polícia nas ruas de Manchester: trabalhavam ilegalmente. “Condenaram-nos a seis meses de prisão firme. À saída, correm o risco de ser expulsos”, revolta-se Seyoum Tamerat, que considera o sistema britânico “hipócrita e cada vez mais duro”. Vários “destituídos” eritreus suicidaram-se durante estes dois ou três últimos anos, insiste. Fitwi, evidentemente, vê as coisas diferentemente. “É um bom dispositivo, o melhor!”, diz acaloradamente. O antigo desertor do exército de Eritreia sonha doravante com a nacionalidade britânica. São mais de 175 000 estrangeiros a obtê-la anualmente (contra cerca de 100 000 em França). Uma percentagem que aumentou de 114%. O que é que Fitwi detesta na Inglaterra? Sorri: “O Inverno”. Catherine Simon, “Un hiver anglais pour Fitwi”, Le Monde, 3 de Novembro de 2009.

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A Argentina sujeita a uma imigração brusca de origem africana Christine Legrand

Sobre a principal avenida de Buenos Aires, a “9 de Julio”, Gaola arvora a

bandeira branca dos “Lions de la Téranga”, a equipa nacional de futebol do Senegal. Com 22 anos, está desde há um ano na Argentina e vende jóias de fantasia e óculos de sol, no passeio. Gosta de falar sobre futebol, o que mais aprecia na Argentina. Mas continua a ficar silencioso quando lhe perguntámos porque e como é que chegou até aqui. E se tem os papéis em regra.

Como ele, há cada vez mais clandestinos africanos que vêm encontrar asilo na Argentina, fugindo mais à miséria que à perseguição. As portas dos países europeus são cada vez mais difíceis de cruzar. Desde há dois anos, o número de estatutos de refugiados na Argentina aumentou cerca de 142% e a maioria dos requerentes vem do Senegal. Não há estatísticas oficiais sobre o seu número exacto.

De acordo com a agência para os refugiados em Buenos Aires, os requerentes africanos de pedido de asilo obtêm um visto para o Brasil e passam-se seguidamente para a Argentina. Os que não têm os meios para ir de avião vão clandestinamente em embarcações numa viagem de vinte dias de travessia. A comissão católica argentina para a imigração reclama um melhor controlo dos novos recém-chegados. Indica que aos africanos se recusa uma licença de residência, mas não são expulsos e permanecem sem estatuto legal, alvos ideais para as redes de tráfico de pessoas.

País de imigração, símbolo de eldorado no passado, a Argentina, duramente atingida pelo desemprego, está hoje mal preparada para receber esta onda de imigrantes ilegais. Os africanos, como mais de 42% dos argentinos, trabalham na economia paralela, são trabalhadores ilegais, e por conseguinte não têm nem segurança social nem reforma.

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Um “Pequeno Dacar” Os senegaleses são numerosos no bairro popular de Once, baptizado “o

pequeno Dacar”. É o feudo tradicional da comunidade judaica, invadido nestes últimos anos por pequenos supermercados chineses e coreanos, com paraguaios que vendem roupas nas ruas e com indígenas, vindos das províncias pobres do Norte argentino, que oferecem especiarias e legumes nos passeios. Nesta torre de Babel, Cirilo, um senegalês chegado aqui há dois anos, ele também vendedor ambulante de jóias e de óculos, sente-se discriminado: “Muitas pessoas maltratam-nos.”

Nas pensões, recusa-se-lhes frequentemente uma cama. “Muitos dos meus colegas recusam recebê-los, confirma um motorista de táxi. Têm medo”. Os argentinos não têm o hábito de andar com os negros excepto os vindos do Brasil. Para Cirilo, “os habitantes de Buenos Aires acreditam no mito da Argentina branca e europeia”. Julga-os racistas “por ignorância”. “Ignoram mesmo que há uma população argentina de origem africana devido ao tráfico dos escravos no século XVIII”, prossegue. Cirilo prefere correr as feiras do interior do país, “porque as pessoas são mais calorosas e têm também a pele mais escura devido às suas origens indianas”. “Sobrevivo”, confessa. Ignora se vai retornar um dia ao país, sonha viajar.

Todos os senegaleses conhecem o seu compatriota, o músico Abdul. Faz figura de patriarca porque está instalado no velho bairro de San Telmo desde 2001. Convidado a dar uma série de concertos, foi surpreendido, pouco depois da sua chegada, pelo desmoronamento financeiro da Argentina. Perdeu todas as economias, não tendo assim os meios para voltar ao Senegal ou para prosseguir a sua tournée na América do Sul. É famoso entre os jovens argentinos. Os seus cursos de dança e de diferentes tambores africanos estão sempre cheios. Os seus espectáculos são uma nova atracção no bairro mais na moda da capital. Abdul obteve o direito a residência na Argentina. É pouco falador quando o interrogamos sobre os novos recém-chegados senegaleses.

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No fundo de uma galeria no centro de Buenos Aires, uma espécie de caverna de Ali Baba, abriu-se o stand “Africa Mia”. Boua e Bodi são sobrinhos de Abdul. Vendem estatuetas, jóias, tecidos africanos. Também eles são desconfiados quando os interrogamos.

Todos os Domingos, uma grande parte da comunidade senegalesa reencontra-se para comer pratos do país. Os argentinos, tradicionais comedores de carne grelhada, abrem-se aos sabores exóticos. Depois da cozinha chinesa, vietnamita, indiana, aparecem nas revistas as receitas de pratos africanos.

Christine Legrand, “L'Argentine connaît une immigration soudaine d'origine africaine”, Le Monde, 20 de Outubro de 2009. Como perdi a minha identidade nacional Michka Assayas Nicolas Sarkozy escreve que “o sentimento de perder a sua identidade pode ser uma causa de sofrimento profundo” (Le Monde, de 9 de Dezembro). Não deve acreditar bem na grande verdade que diz. A história que vivi não tem nada de excepcional. Desde há cerca de quatro anos, deve ter atingido dezenas de milhares dos nossos concidadãos.

O mecanismo é simples. Admita-se um cidadão francês de nascimento. O

seu passaporte emitido antes de 2005 chega ao seu limite de validade ou perdeu-o, danificou-o ou ainda ter-lho-ão roubado. Munido do título de identidade em mau estado ou da declaração de perda, vai à câmara municipal ou à esquadra local da polícia do vosso distrito. Preenche um formulário. Devem indicar-se o estado civil e o local onde nasceram os vossos pais. Um funcionário verifica se, de facto, nasceram em França. Se é o caso, aplica o

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procedimento susceptível de vos fazer obter, após verificações, um novo passaporte dito “protegido”. No caso contrário, bloqueia-o.

O funcionário a isto é obrigado pelo decreto n.º 2005-1726 relativo aos passaportes: pode bem ser-se francês, ter nascido em França e sempre aqui ter vivido, trabalhado e votado, ter-se aqui casado e ter tido filhos, ter regularmente recebido documentos de identidade, mas nada disto nos autoriza a obter um novo título “protegido”. Se um dos vossos pais, pelo menos, tiver nascido no estrangeiro, um novo constrangimento vos é então imposto: fornecer a prova que se era ou é bem francês.

Mas não pensem que, se os vossos pais se tiverem casado em França, e se lhes tiverem dado uma caderneta de poupança familiar, se lhes tiver sido emitida uma caderneta de poupança familiar e bilhetes de identidade, tudo isto seja suficiente. De acordo com as novas regras, nada disto faz prova, em nada, da nacionalidade deles nem, por maioria de razão, da nossa. Talvez as administrações antigas tenham errado… Cabe-vos por conseguinte apresentar um acto civil que estabeleça a origem da sua nacionalidade. Caso contrário, não obtém o “certificado” de nacionalidade francesa, o único acto que permite a emissão de um título de identidade “protegido”.

Tal é a situação imposta aos franceses que tenham pelo menos um dos pais a ter nascido no estrangeiro: colocam-nos na situação de ter de provar pelos seus próprios meios que a administração francesa não se enganou conferindo a nacionalidade francesa a este progenitor. Se não o fizer, passa a estar proibido de deixar o país. E isto, em virtude do decreto de aplicação de uma lei que o governo Villepin, do qual Nicolas Sarkozy era o ministro do Interior, fez aprovar em 2005 pela Assembleia Nacional. Uma lei graças à qual os responsáveis da administração têm por último a possibilidade de conceder ou não o direito que os seus antecessores, desde há um século, ou mesmo mais, tinham deixado de tomar como relevante.

Não vou alongar-me no meu caso. Do lado do meu pai, a minha família é francesa desde Bonaparte. A minha mãe era uma refugiada húngara originária de Szolnok, uma pequena cidade da qual o avô paterno de Nicolas Sarkozy foi

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o adjunto do presidente da Câmara Municipal. Mandaram-me “ao pólo da nacionalidade francesa”. Uma empregada perguntou-me, sem estar a rir: “Como é que é francês, senhor? ” Não lhe respondi o que devia: “Como a senhora. ” E esta subentendia: “Por nascimento ou por aquisição? ”, mas o efeito é, no entanto, estranho. Regressado à esquadra da polícia de Paris, apresentei o documento que provava que tinha nascido em Paris. Uma empregada examinou-o e entregou-mo dizendo: “Não prova nada, mesmo nada…”

O meu caso era urgente. A France Musique para que produzisse uma emissão tinha previsto enviar-me a Berlim. Com um bilhete de identidade degradado e um passaporte perdido, impossível partir. Preveni a minha direcção. O serviço de imprensa da rádio teve, para o meu caso, um encontro de emergência no departamento da polícia. Nesse dia e à hora prevista, trouxe todos os documentos de identificação que pude. O resultado foi mitigado: atribuíram-me um passaporte de emergência, válido para um ano apenas. Este documento provisório não me pode permitir, nomeadamente, ir aos Estados Unidos sem visto. O responsável da polícia informou-me que me atribuíam este documento a título excepcional, que o faziam uma só vez, mas não duas, e que eu tinha interesse em juntar o mais rapidamente possível os documentos necessários para voltar a ter um passaporte normal. O que actualmente me é impossível obter.

O meu caso está longe de ser o pior. Dezenas de milhares de franceses foram colocados na situação de serem obrigados a provar que eram franceses. Testemunhos como o meu abundam desde há dois anos nos jornais ou na Internet: reformados do ministério da Educação a quem proíbem de irem visitar familiares doentes ao estrangeiro, militares que arriscaram a sua vida pela França, mas em que os pais tiveram a má ideia de nascer em quartéis no estrangeiro, considerados como apátridas, empregados de empresas que são impedidos de se deslocarem ao estrangeiro onde um trabalho exige a sua presença, estudantes que não podem apresentar-se a exames, advogados que não podem prestar juramento. A todos, todos os dias, recusam-se os

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documentos. Proíbe-se-lhes de circular, trabalhar, numa palavra, de viver, como todos os franceses. Alguns vêem a sua situação desbloqueada ao fim de seis meses ou de um ano, outros nunca.

Perante tal situação, podemos rir ou ficarmos furiosos. Pode exclamar-se: “É Gogol!” (ou Courteline, ou Kafka), pode mexer-se os ombros e dizer: aí está! Esta é mesmo a administração francesa e a sua mecânica barroca, que produz o absurdo em nome da aplicação escrupulosa de regras estritas. Não é o meu ponto de vista. Tal situação é inaceitável. Resulta da aplicação neutra de uma lei que também se quer neutra. É mesmo muito pior. Porque, de facto e de direito, esta lei não tem nada de neutro. Esta lei é moral, política e juridicamente inadmissível.

Não sou jurista. Mas este facto não me impede de saber ler o código civil: nos termos do seu artigo 2.º, “a lei dispõe apenas para o futuro; não tem nunca nenhum efeito retroactivo”. Ora a aplicação desta lei, da qual o decreto n.° 2005-1726 é a expressão, é, de facto, retroactiva. Nasceu francês, sempre o foi e, um dia, catrapus: um serviço administrativo notifica-vos que já não o é mais, e que, por conseguinte, foi-o erradamente assim como os vossos pais também. Embora não tenha cometido nenhum crime ou delito. Não é talvez o espírito da lei, mas é um efeito mecânico da sua aplicação. Esta recusa de um princípio ancestral do direito francês não parece perturbar certos funcionários. Junto ao telefone com o meu advogado que se ocupa do meu caso, uma pessoa responsável “do pólo da nacionalidade francesa” não hesitou sequer a declarar apenas “atribuiu-se de forma demasiado fácil a nacionalidade francesa nestas últimas décadas”. Quanto ao efeito político desta lei, como é possível não ver que é destrutivo? Enquanto esperava a minha vez na polícia, tive a disponibilidade de falar com o meu vizinho, francês como eu. Este homem de cerca de trinta de anos, nascido de um pai marroquino, tinha tido a infelicidade de entornar café sobre o seu passaporte, que deixou de passar no scanner dos controlos nos aeroportos. Este voltava pela terceira vez à polícia. Quando chegou a sua vez, o tom subiu rapidamente entre ele e a empregada: “Não, não

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senhor, não é por causa do seu nome, é a mesma coisa para todos os franceses!”, pôs-se esta a gritar. O homem saiu, cabisbaixo, derrotado.

Como não ver que a aplicação mecânica desta lei, nos factos, põe em causa, nalguns, a sua pertença à nação no que isto tem de mais visceral? Como não ver que tem como efeito criar uma discriminação artificial entre franceses que seriam de primeira categoria, com dois pais nascidos na França, e outros de segunda categoria, que se sentem atingidos pela suspeita, e aos quais cabe trazer a prova que são bem franceses? Em direito penal, existe uma presunção de inocência. Porque é que no direito civil, existe desde 2005 uma presunção de usurpação de nacionalidade para com certos franceses? Se o Estado contesta a sua nacionalidade, é a ele que lhe cabe fazer a prova que se enganou ao conceder-lha, e não o inverso.

Última questão: a lei de 2005 prevê excepções. É o que se chama “a prova pela posse de estado de ser francês”. É claro, se for provado que o vosso pai ou a vossa mãe eram franceses “de forma constante”, a lei permite à administração que vos emita, a título excepcional, um título de identidade “protegido”. Interrogado pelos deputados da oposição como pelos da maioria sobre esta questão, o ministério do Interior parece incentivar estas excepções e circulares lembram aos funcionários que podem usar de um direito de apreciação pessoal e demonstrar flexibilidade e compreensão.

Na prática, as administrações não aplicam estas recomendações. Mostram-se de uma rigidez inflexível. Isto conduz a um impasse injustificável. Que este impasse resulte da aversão de qualquer funcionário a tomar uma decisão que o singularize e corra o risco de criar problemas não é de modo nenhum uma circunstância atenuante. Para mim, é uma circunstância mesmo agravante.

Porque esta dupla linguagem hipócrita? Não sei a resposta. Mas não posso tolerar viver num país onde se pratica, no que diz respeito a uma certa categoria de cidadãos, arbitrariamente designada, uma forma de suspeita. Nos factos, isto equivale a uma forma inédita de segregação. Permanece por conseguinte apenas uma solução: fazer com que a lei seja mudada. Não posso

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crer que um só dos deputados e senadores, de todos os quadrantes políticos, que votaram este texto tenham desejado instalar uma situação tão iníqua e em nome “da segurança” dos passaportes. Não duvido que terão a coragem de a modificar. Michka Assayas (escritor e produtor em France Musique), “Comment j'ai perdu mon identité nationale”, Le Monde, 30 de Dezembro de 2009. O mal-estar social-democrata, entre fluxos financeiros e fluxos migratórios Mathieu Potte-Bonneville e Thomas Gérard

Desde há vinte anos, a importância que os governantes europeus

concedem ao controlo dos fluxos migratórios cresce ao mesmo ritmo que o mal-estar de que sofre a democracia. Simples coincidência? Argumentar-se-á sobretudo que a incapacidade dos sociais-democratas em se distinguirem claramente dos seus adversários da direita neste domínio desempenha um papel decisivo na crise persistente das esquerdas de governo.

Para apoiar esta tese, é necessário recomeçar a partir do fim da guerra fria e do consenso criado entre progressistas e conservadores europeus: a partir de 1989, uns e outros estão perfeitamente de acordo em associar a construção da Europa a um processo de liberalização mundial das trocas. Do lado social-democrata, a adesão a este processo assenta numa dupla aposta: por um lado, considera-se que desembocará, a prazo, numa prosperidade susceptível de ser compartilhada equitativamente e, de outra parte, garante-se que as regressões sociais que vai primeiro causar (serviços públicos sujeitos às regras da concorrência, orçamentos sociais sacrificados aos imperativos do rigor orçamental) serão compensadas pela reconfiguração dos direitos sociais em termos de liberdades e de garantias fundamentais.

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Os progressistas que fazem a aposta da mundialização empenham-se por conseguinte no aparecimento de uma protecção social mais indexada aos progressos do Estado de Direito do que à manutenção dos regimes estatutários, preferindo, por exemplo, o tema do direito à segurança dos percursos profissionais ao da segurança do emprego.

Concebido para inflectir uma liberalização tanto política como económica, este projecto revelou-se impotente para poder mudar no decurso de uma mundialização que não foi liberal mas neoliberal. As desregulações que presidiram à edificação da nova economia mundializada incitaram, com efeito, os gestores de capitais a preocuparem-se menos com a rentabilidade perene das empresas e a preocuparem-se mais com o aumento a curto prazo do seu valor accionista. Ora, o triunfo desta cultura do rendimento provocou um aprofundamento das desigualdades e o desenvolvimento da precariedade que os esboços de extensão dos direitos individuais não foram capazes de conter.

Para conjurar as tensões sociais das quais a cultura neoliberal é portadora, os seus promotores governamentais elaboraram duas estratégias sucessivas. Primeiro, desde o começo dos anos 90, empenharam-se em esconder a precarização e o empobrecimento dos excluídos na distribuição dos dividendos, induzindo-os a endividarem-se para adquirir os meios do seu próprio consumo e, graças ao desenvolvimento do crédito imobiliário, para adquirirem também a sua ascensão social. Seguidamente, a partir de Setembro de 2001, este desejo de rejeitar “o assistencialismo” prodigalizado pelo Estado Providência em proveito de uma autonomia adquirida pela capacidade de contrair empréstimos, aparece com um regresso e um reforço da problemática da segurança cada vez mais de forma obsessiva.

A obsessão e a preocupação de um terrorismo globalizado e a projecção na circulação das pessoas das apreensões nascidas da mundialização das trocas permitiram substituir as protecções sociais (doravante decretadas sem preço) pela promessa de segurança oferecida pela filtragem das fronteiras e pela intransigência em relação aos estrangeiros culpados de perturbações ou suspeitos de abusos.

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A história destas estratégias elucida-nos sobre a importância que os governos neoliberais atribuíram às questões migratórias. Nos anos 90, a figura do estrangeiro atraído para a Europa pelo elevado nível dos salários e pelas protecções sociais veio garantir a ideia que o acesso individual ao crédito devia doravante substituir as garantias colectivas do Estado Providência: acusados de participar no aumento dos défices, os migrantes foram designados como os sintomas do “assistencialismo”, tanto mais dispendioso quanto é facilmente explorável.

A partir de 2001, foi atribuído aos estrangeiros um outro papel: assistidos por excelência, tornam-se além disso uma ameaça prioritária (através da confusão existente entre clandestinos, traficantes e terroristas), o que vem a justificar pela sua própria presença a redefinição policial do tipo de segurança que os Estados devem assegurar aos seus cidadãos.

Perante esta dupla utilização “do problema da imigração”, os sociais-democratas cada vez mais optaram por uma forma de seguidismo. Primeiro, preocupados em conjurar a acusação de “arcaísmo”, ratificaram o discurso que consiste em fazer do controlo das fronteiras o primeiro dever de um Estado que renuncia por último a viver acima dos seus meios. “Não se pode acolher toda a miséria do mundo”: que, a partir de 1990, a questão da imigração tenha sido colocada nestes termos, mostra bem que se trata então de dar garantia de renúncia à definição “providencial” do Estado, generosa mas inconsequente. Seguidamente, é o seu ardor em recusar a suspeita de “angélico” que levou sociais-democratas a reconhecerem-se “no realismo” que os seus adversários políticos assumiram na sua abordagem obsessiva de uma imigração portadora de insegurança.

O momento contemporâneo pode incitar a social-democracia a abandonar o mimetismo? A recente falência da cultura neoliberal colocou certamente em dificuldade o discurso que apresenta o endividamento como a via de uma mundialização feliz; de todos os lados, parece estar-se de acordo quanto à justificação “de um regresso do Estado”. No entanto, por esta mesma razão, numerosos progressistas consideram que a procura de regulação e de protecção

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suscitada pela crise deve levá-los a empenharem-se em ser também tanto mais ofensivos sobre a questão social, quanto discretos sobre o terreno das liberdades, sobretudo com o que tem a ver com o direito dos estrangeiros: porque, num período marcado pela incerteza e pelo apelo ao poder público, a luta contra a imigração teria mais que nunca a vocação de encarnar a dimensão protectora dos Estados.

Porque opõe a necessidade de regulação económica à defesa das liberdades associando ao mesmo tempo o pedido de protecção social à ideologia da segurança, este raciocínio permanece sujeito à cultura neoliberal; também se revela incapaz de restaurar a confiança na social-democracia.

Enquanto os progressistas não ousarem denunciar a desregulação dos fluxos financeiros e o tratamento doentio dos fluxos migratórios como as duas vertentes de um mesmo dispositivo político, não obterão nenhum benefício do processo hoje levantado aos mercados e ao laisser-faire: por não desmistificar “o perigo migratório”, “o regresso do Estado” só pode desenhar um espaço político entregue à oposição, seja entre as direitas autoritárias actualmente dominantes ou entre as formações nacionalistas reforçados pela crise.

Para os sociais-democratas europeus, combater a vertente de segurança e xenófoba do neoliberalismo consiste por conseguinte menos em demonstrar coragem do que conseguir os meios para escapar ao mal-estar que precipita o seu declínio.

Mathieu Potte-Bonneville e Thomas Gérard (filósofos), “Le malaise social-démocrate, entre flux financiers et flux migratoires”, Le Monde, 17 de Julho de 2009.

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Nascido do lado mau do planeta Claire Brisset

Sábado, 20 de Junho, 16 h e 30 min, aeroporto de Roissy-Charles-de-Gaulle, o voo 796 de Air France, destino Paris-Bamako está pronto para a descolagem. Vou ao Mali com vários colegas para uma conferência sobre os direitos da criança.

O embarque chega ao seu fim. Do fundo do avião ouvem-se de repente urros. Um jovem africano é embarcado pela porta traseira, algemas, agarrado por seis polícias e gendarmes, vários dos quais estão com fato militar. O jovem africano está amarrado ao seu lugar.

Urra: “Não quero partir! Solta! Deixa!” Mexe os braços com o combate. O comandante de bordo tenta conversar com ele. Vários passageiros agrupam-se em redor da linha de lugares onde se desenrola a cena. Tentamos intervir. O que dirige as forças da ordem tenta a intimidação: “Se continuam a opor-se a este embarque, são vocês que vão ser expulsos do avião”.

A cena dura uma hora. O jovem africano debate-se cada vez mais. Urra: “Vou fazer explodir o avião!”, diz ele, completamente algemado e com os vários polícias zangados a agarremos seus braços e pernas. O comandante de bordo insiste: “Senhoras e Senhores, sentem-se, peço-vos. Tenho uma linha de descolagem, é necessário que partamos”. No fundo do avião, os urros diminuem. Depois recomeçam com mais força. Os últimos passageiros instalam-se. O voo está cheio de crianças, é a época do regresso ao país.

O que fazer? Se causamos a nossa expulsão do avião, este descolará sem nós, e que bonito negócio! E o jovem será expulso de acordo com o esquema previsto. Nós voltamo-nos a sentar nos nossos lugares com um intenso sentimento de covardia e de impotência. O avião descola, os gritos acalmam-se. Recolhemos dinheiro junto dos passageiros de modo que o jovem, pelo menos, à chegada, tenha com que se juntar à sua família ou à sua aldeia. Os passageiros, insultados na sua maior parte, são generosos.

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Durante todo o voo, magro consolo, vamos basicamente ao fundo do avião para ver como os três polícias à civil tratam “o reconduzido”. A calma retornou. “Vê”, dizem-nos os polícias, “se pessoas como vocês não se tivessem levantado e não se tivessem manifestado, tudo teria corrido bem”. Sim, corrido bem.

É verdade. A culpa é nossa. As pessoas como nós têm papéis e têm a boa cor de pele. Nada disso nos acontecerá, nunca. Nascemos por azar do bom lado do planeta. Foi o nosso movimento de indignação elementar que criou o problema, nada mais. Deveríamos ter-nos calado. Foi o que acabámos por fazer, vencidos pelo sentimento de impotência. E o gosto amargo do dever não realizado.

Claire Brisset (mediadora da cidade de Paris), “Né du mauvais côté de la planète”, Le Monde, 25 de Junho de 2009. Sou francês por puro acaso Maurice T. Maschino

O “debate” que o ministro da Imigração Eric Besson lançou sobre a identidade nacional não tem, como muitos já o sublinharam, nenhum sentido. Pela simples e boa razão que, durante séculos, as características — geográficas, humanas, culturais, políticas — da França se alteraram e que a sua identidade sempre foi provisória. Dito de outra maneira, a França não tem identidade. Dado que o que é característico da identidade é, precisamente, o facto de não variar.

Mas há um aspecto da questão sobre o qual, parece-me, não se tem insistido. Desde os artigos aos comentários, acaba-se por não se ridicularizar o que quer dizer “ser francês”. Invoca-se a adesão a certos “valores” — a liberdade, os direitos do homem, a laicidade — como se os milhões de

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franceses os tomassem como seus. E como se os que não são franceses lhes fossem mais ou menos estranhos, mais ou menos indiferentes.

Há apenas uma só definição possível de “francofonia”: é francês todo aquele que é reconhecido como tal pelo Estado francês e possui, como sinal deste reconhecimento, um bilhete de identidade nacional. “Francofonia” é uma categoria jurídico-política que o poder maneja e manipula a seu modo: que a lei mude e que o que ontem era francês hoje já não o é mais.

“Francofonia” é, por conseguinte, uma característica meramente legal, completamente acidental, fortuita, que não tem nenhum conteúdo (mental, ideológico) específico, que não define em nada uma pessoa na sua singularidade e não diz nada sobre o que ela é. Esta simplesmente liga a sua posição em relação a um código, e nada mais: tal indivíduo, nascido nos Estados Unidos de pais franceses, é francês, chama-se Jacques ou John, conheça ou não a França, fale ou não francês… Tal outro, nascido em França de pais estrangeiros, que vive e trabalha em França, paga os seus impostos, permanece sempre sob a ameaça de uma expulsão é estrangeiro.

As disposições do código da nacionalidade, eminentemente variáveis de uma época para a outra, de uma política a outra, fazem de nós franceses ou estrangeiros. É pura contingência, puramente arbitrário, é fruto do acaso, como o reconhecia Montesquieu: “Se soubesse uma coisa útil ao meu país que fosse ruinoso para outro, não o proporia ao meu príncipe, porque eu sou homem antes de ser francês ou porque sou necessariamente homem e sou francês apenas por acaso”.

Não há que estar “orgulhoso” deste acaso, que, por definição, é totalmente gratuito. Fazer dele um valor e o objecto de um debate nacional é uma fraude.

Maurice T. Maschino (jornalista, escritor), “Je ne suis français que par pure contingence”, Le Monde, 30 de Dezembro de 2009.

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“O que Sarkozy propõe é o ódio pelo outro” Entrevista a Emmanuel Todd, demógrafo e historiador, engenheiro de investigação no Instituto Nacional de Estudos Demográficos (INED)

Inspirador do tema da fractura social, retomado por Jacques Chirac aquando da sua campanha presidencial de 1995, analisa desde há muito tempo a separação entre as elites e as classes populares. Esta é a primeira análise pública que faz quanto ao debate sobre a identidade nacional. Sem dissimular a sua cólera. “Se chegar ao poder e se não se consegue nada no plano económico, a procura de bodes expiatórios custe o que custar torna-se então uma segunda natureza”, afirma Todd.

P.: Que lhe inspira o debate sobre a identidade nacional?

R.: Distanciei-me, tanto quanto possível, porque este debate é, do meu ponto de vista, realmente perverso. O governo, com a aproximação de uma data de eleições propõe, diria mesmo impõe, uma temática da nação contra o Islão. Estou revoltado como cidadão. Como historiador, observo como é que a temática da identidade nacional foi activada pelo topo da administração como um projecto bastante cínico.

P.: Qual é a sua análise das razões para este debate? R.: A Frente Nacional começou a infiltrar-se no mundo operário em 1986, numa época em que as elites recusavam interessar-se pelos problemas colocados pela integração das populações imigradas.

Então sentiu-se uma ansiedade que vinha da base da sociedade, o que permitiu à Frente Nacional existir até 2007. Como o sublinhei no meu livro, Le destin des imigrés em 1994, o mapa dos votos FN era determinado estatisticamente pela presença de imigrantes de origem magrebina, que

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cristalizavam uma ansiedade específica devido a problemas antropológicos reais, ligados às diferenças de sistema de costumes ou de estatuto da mulher. Depois disso, as tensões acalmaram-se. Todas as sondagens de opinião o mostram: as temáticas da imigração, do Islão, estão em queda livre e ficaram largamente para trás das preocupações económicas.

A realidade da França é que está em vias de concluir e bem o seu processo de integração. As populações de origem muçulmana da França são globalmente as mais laicizadas e integradas da Europa, graças a uma taxa elevada de casamentos mistos. Para mim, o sinal deste apaziguamento é precisamente o desmoronamento da Frente Nacional.

P.: Considera-se geralmente que é a política conduzida por Nicolas Sarkozy que fez perder votos à Frente Nacional… R.: Os sarkozystas pensam que recuperaram o eleitorado da Frente Nacional porque efectuaram esta política de provocação, porque Nicolas Sarkozy deitou fogo aos subúrbios e porque consideram que as ligações à FN ficam politicamente caras. Mas é um erro de interpretação. O avanço da direita em 2007, na sequência dos motins dos subúrbios de 2005, não era um confronto sobre a imigração, mas mais um ressentimento anti-juventude expresso por uma população que está a envelhecer. Não esqueçamos que Sarkozy é o eleito dos velhos.

P.: Como qualifica esta direita? R.: Não quero dizer mais sobre uma direita de governo. Não é mais a direita, não é exactamente a direita… Extrema-direita, ultra direita? É uma outra coisa qualquer. Não tenho palavras para isto. Penso cada vez mais que o sarkozysmo é uma patologia social e exige uma análise durkheimiana — em termos de anomia, de desintegração religiosa, de suicídio — tanto quanto uma análise

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marxista — em termos de classes, com conceitos de capital-socialismo ou de emergência oligárquica.

P.: O chefe do Estado assegurou que se esforçava em não ser “surdo aos gritos do povo”. O que pensa disto? R.: Para mim, é uma pura mentira. No vosso jornal, Le Monde, Sarkozy goza com a palavra “povo”, fala do povo, fala ao povo. Mas o que propõe aos franceses porque não consegue resolver os problemas económicos do país, é o ódio pelo outro, contra o outro.

A sociedade sente-se muito perdida mas não penso que as pessoas tenham grandes dúvidas sobre a sua pertença à França. Sou sobretudo optimista: quando se vai realmente ao fundo das coisas e ao longo do tempo, o temperamento igualitário dos franceses faz com que não tenham nada a preocupar-se quanto a questões sobre a cor e sobre a origem étnica ou religiosa!

P.: Porque é que, nestas condições, o governo continua a assumir por conta própria uma temática da extrema-direita? R.: Está-se no registo dos hábitos. Sarkozy tem um comportamento e um vocabulário extremamente brutais no que diz respeito às crianças dos subúrbios; tinha-os utilizado durante a campanha presidencial enquanto exprimia a sua hostilidade à entrada da Turquia na União Europeia utilizando uma linguagem codificada para activar o sentimento anti-muçulmano. Ele pensa que isto poderia funcionar de novo.

Interrogo-me ainda se a estratégia de confronto com os países muçulmanos — como no Afeganistão ou no Irão — não é para ele sobretudo um elemento do seu jogo interno. Talvez as relações entre a região de Hauts-de-Seine e a de Seine-Saint-Denis sejam já para ele a política externa? Pode colocar-se a questão.

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Se chegar ao poder e se não consegue nada no plano económico, a procura de bodes expiatórios custe o que custar torna-se então uma segunda natureza. Como um reflexo condicionado. Mas quando se é confrontado com um poder que activa as tensões entre as categorias de cidadãos franceses, somos levados, apesar de tudo, a pensar na procura de bodes expiatórios tal como se fez antes da Segunda Grande Guerra.

P.: Quais são os pontos de comparação com este período? R.: Um ministro disse-o ele mesmo — é o regresso dos recalcamentos, é o inconsciente — fez referência ao nazismo. (Christian Estrosi, a 26 de Novembro, declarou: “Se, na véspera do segundo conflito mundial, numa altura em que a crise económica invadia tudo, o povo alemão tivesse assumido interrogar-se sobre o que funda realmente a identidade alemã, herdeira das Luzes, pátria de Goethe e do romantismo, então talvez se tivesse evitado o atroz e doloroso naufrágio da civilização europeia”.) Manifestando de resto uma ignorância da história completamente extraordinária. Porque a realidade da história alemã de entre as duas guerras, é que não se tratou apenas de um debate sobre a identidade nacional. A diferença está em que os nazis eram verdadeiramente anti-semitas. Eram e mostraram-no. A França não está de forma alguma neste esquema.

Não é necessário fazer nenhuma confusão, mas mesmo assim é-se obrigado a fazer comparações com as extremas-direitas de antes da Guerra. Há todas as espécies de comportamentos que são novas mas que reenviam ao passado. O Estado que se coloca a este nível ao serviço do capital, é o fascismo. O anti-intelectualismo, o ódio ao sistema de ensino, a caça ao número de professores está também na história do fascismo. Assim como a capacidade de tudo dizer e a seguir o seu contrário, é uma característica do sarkozysmo.

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P.: A comparação com o fascismo, não é excessiva? R.: Não se trata de forma alguma de dizer que é a mesma coisa. Há grandes diferenças. Mas está-se a entrar num sistema social e político novo, que corresponde a uma deriva para a direita do sistema, de que alguns traços recordam a subida ao poder da extrema-direita na Europa.

P.: Foi no entanto Nicolas Sarkozy que nomeou para postos-chave vários representantes dos filhos dos imigrantes… R.: A habilidade do sarkozysme é funcionar sobre os dois pólos: de um lado o ódio, o ressentimento; do outro a encenação de actos a favor do culto muçulmano ou das nomeações de Rachida Dati ou de Rama Yade para o governo. A realidade é que em todos os casos a temática étnica é utilizada para fazer esquecer as temáticas de classes.

Entrevista de Jean-Baptiste de Montvalon e Sylvia Zappi, “Ce que Sarkozy propose, c'est la haine de l'autre”, Le Monde, 27 de Dezembro de 2009. Identidade nacional: a indignação de Martine Aubry Pierre Jaxel-Truer e Jean-Michel Normando

À esquerda, Martine Aubry, a primeira secretária do Partido Socialista. A

direita, Jean-François Copé, o patrão do grupo UMP na Assembleia Nacional, partido do Governo. Quinta-feira, 26 de Novembro, na emissão “A vous de juger”, no canal de televisão France 2, o debate sobre a identidade nacional, lançado há um mês por Eric Besson, ministro da Imigração e da Identidade nacional, concretizou-se por um frente-a-frente entre dois dos principais representantes da maioria presidencial e da oposição, em directo, numa hora de

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grande audiência. Aos que duvidavam da existência de uma clivagem entre direita e esquerda, o diálogo, onde frequentemente se discutiu o lugar das populações de origem estrangeira na sociedade francesa, mostrou um nítido desmentido.

Para Francois Copé, a identidade nacional é a “questão mais essencial”, “esta vai estruturar todo o debate público durante os próximos dez anos que aí vêm”. “As pessoas, em bairros inteiros, nas entradas dos prédios, nos corredores das habitações de aluguer médio (HLM) não se falam, não se respeitam, porque não se conhecem”, assegura, evocando uma “nação que se desintegra em silêncio”.

“Falso debate”

“Falso debate”, responde Martine Aubry. “O governo quer fazer-nos crer

que se a França vai mal, isso não é devido ao seu malogro no plano económico, à questão social, ao serviço público que se destrói, ou às desigualdades que se geram e se amplificam, mas porque há imigrantes. “Isto são os valores que nos opõem”, insiste a primeira secretária, que define a identidade nacional evocando “uma escola que dá a sua oportunidade a cada um, o nosso modelo social, os direitos do homem”. Acusa o governo “de dar cabo desta França que amamos” e critica o escudo fiscal (“bouclier fiscal” 1).

A questão da identidade nacional é “essencial, não pode reduzir-se ao escudo fiscal”, responde François Copé, para quem o PS foge ao debate. Apela a que se “ultrapassem as segmentações direita-esquerda”.

                                                            1 Bouclier fiscal é uma medida fiscal instituída em certos países para limitar a taxa de imposição fiscal global dos contribuintes. Esta medida visa desempenhar a função de protecção de um sistema fiscal no qual a sobreposição de diferentes impostos pode, em certos casos, gerar um volume de impostos que absorve uma proporção considerada excessiva dos rendimentos. Para muitos, este mecanismo, o bouclier fiscal, é uma medida custosa para as finanças públicas e um dispositivo que favorece os contribuintes mais ricos [N. de T.]. 

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Este frente-a-frente pontua uma semana no decorrer da qual o tema da identidade nacional, encaixado com a discussão recorrente sobre a imigração, retornou em força alguns dias antes do primeiro debate na província pretendido pelo ministro Eric Besson. A reunião terá lugar a 30 de Novembro em Verdun, lugar altamente simbólico. Perto de 250 debates estão programados até ao fim Janeiro, presididos pelos prefeitos e sub-prefeitos em 70 departamentos.

Domingo, 22 de Novembro, em Grenoble, no congresso do Movimento dos Jovens Socialistas, Martine Aubry tinha criticado Nicolas Sarkozy, que “envergonha a França”. “Nunca lhe perdoarei ter misturado a identidade nacional à imigração”, insistiu. Antes de se defender a seguir “uma larga regularização dos sem-papéis”.

Os tenores do UMP (partido da União da Maioria Presidencial) responderam imediatamente, rejeitando a crítica da mistura dos géneros sobre a oposição. “É vergonhoso fazer tais amálgamas”, declarou Xavier Bertrand, o secretário nacional do UMP. Um quadro do UMP, na Quarta-feira, não escondia no entanto o seu prazer de ver Martine Aubry posicionar-se no terreno da imigração que ele considera como “uma armadilha” para os socialistas. A primeira secretária do PS enquadrava aí a posição de Xavier Darcos, o ministro do Trabalho, que tinha evocado em O Parisiense o seu projecto de fechar as empresas que empregam estrangeiros em situação irregular. E abria o caminho à resposta de Sarkozy, na Quarta-feira: “Não aceitarei uma regularização global” dos sem-papéis, assegurou, “contrário à ideia” que ele tem dos “valores da República”. Para os socialistas, que evocaram a questão da imigração na Terça-feira à noite, não se tratava de pôr o debate em termos idênticos aos de Eric Besson, ministro da Imigração e da Identidade Nacional. A discussão ao nível do Conselho Nacional do PS, inicialmente prevista para a semana precedente foi atrasada devido à realização do congresso dos presidentes das câmaras municipais de França, e esta foi determinada, precisa o Partido Socialista, pela amplitude tomada pelas acções dos assalariados sem papéis.

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Para os socialistas, a questão da imigração já não se coloca mais nos mesmos termos que outrora. O tema tem-se tornado menos conflituoso na sociedade francesa, mais preocupada com as consequências sociais da crise.

O apelo a uma “larga regularização” não é contudo desprovido de considerações tácticas. A secretária-geral procura menos responder à direita que comunicar ao eleitorado de esquerda que a quatro meses das eleições regionais de Março de 2010, o PS está decidido a reapropriar-se das temáticas sociais de que tinha tido tendência a deixar cair para os Verdes, ou mesmo para a esquerda da esquerda.

Pierre Jaxel-Truer e Jean-Michel Normando, “Identité nationale: l'indignation de Martine Aubry”, Le Monde, 27 de Novembro de 2009. As raízes da identidade nacional Thomas Wieder

Candidato, Nicolas Sarkozy não deixou de utilizar a expressão; no dia

seguinte ao da sua eleição, retomou-a para dar o nome a um ministério; desde o dia 2 de Novembro, o seu governo faz dela o tema de um “grande debate”, no qual os cidadãos são convidados a participar: num espaço de cerca de dois anos, a “identidade nacional” invadiu o espaço político e a cena mediática. Singular destino para uma noção cujo emprego, ainda não há assim muito tempo, nem sequer era pensável. E com razão: não existia.

Quando é que a expressão apareceu na língua francesa? “Apenas nos anos 80”, responde a historiadora Anne-Marie Thiesse, directora de investigação no CNRS e autora de La création des identités nationales. Europe XVIIIe - XXe (Seuil, 1999). Uma consulta ao catálogo da Biblioteca Nacional da França (BNF) confirma-o: o primeiro livro cujo título contem a expressão

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“identidade nacional” foi publicado em 1978 (um ensaio sobre o poeta chileno Pablo Neruda).

Facto revelador: quando Fernand Braudel fez, já no fim da sua vida, um estudo sobre L’Identité de la France (publicado em 1986, alguns meses após a sua morte), reconheceu que o emprego do termo não lhe tinha sido natural: “A palavra seduziu-me, mas não deixou durante anos de me atormentar”, confiava o historiador. Ninguém melhor que o escritor peruano Mario Vargas Llosa soube explicar o opróbrio que tinha na época a referência “ao nacional”: “Se se considera o sangue que ela fez correr ao longo da história,... o álibi que ofereceu ao autoritarismo, ao totalitarismo, ao colonialismo, aos genocídios religiosos e étnicos, a ideia de nação parece-me o exemplo privilegiado de uma imaginação maligna”.

Hoje, Braudel sentir-se-ia menos sozinho: de acordo com a BNF, 30 livros que têm no seu título a expressão “identidade nacional” foram publicados em França desde 2000. Ou seja, tanto em dez anos como no decorrer dos vinte anos precedentes.

Se a expressão se difundiu nos anos 80, a sua genealogia merece contudo ser recordada. “Foi nos Estados Unidos, nos anos 60, que sociólogos como Erving Goffman começaram a aplicar a noção de identidade a grupos”, explica Anne-Marie Thiesse. “Os primeiros a apropriarem-se foram as mulheres e os negros, ou seja, grupos vítimas de discriminações para os quais a afirmação de uma identidade era uma maneira de virar ‘o estigma’ que os diferenciava, fazendo dela um elemento de orgulho”.

A historiadora insiste na importância do sentimento de vulnerabilidade que está na origem das reivindicações das identidades: “É quando se sente ameaçado que um grupo constata a necessidade de radicalizar a sua diferença em relação aos outros”, explica. “Não é por acaso que a expressão ‘identidade nacional’ aparece nos anos 80, quando a França perdia a sua liderança e sentia-se, de imediato, mais vulnerável”. A época em que a Frente Nacional se instala na paisagem política, e onde a imigração se tornou um tema marcante em período eleitoral.

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O tema “do declínio francês”, reconhece Anne-Marie Thiesse, não data dos anos 80. Mas um factor, segundo ela, explica que a nação tenha então constituído uma espécie de refúgio de identificação: “É uma época onde passou a ser mais difícil mobilizar outras identidades, como a identidade de ‘classe’ por exemplo, atingida pelo declínio do marxismo”. Um sentimento comum de vulnerabilidade, acrescentado a uma crise dos ideais colectivos de substituição: tal seria por conseguinte o campo que teria permitido ao tema “identidade nacional” prosperar nas duas últimas décadas.

Se a noção de identidade, ligada ao adjectivo “nacional”, é uma invenção recente, o sentimento nacional é, por seu lado, muito mais antigo — no caso francês, o fim da Idade Média constituiu, sem dúvida, um momento inaugural, como outrora o mostrou Colette Beaune (Naissance de la Nation France, Gallimard, 1985). Não é contudo antes do século XIX que as nações se formaram enquanto corpos políticos apoiados numa cultura.

Período de desenvolvimento — e de sucessos nos casos italianos e alemães — dos grandes “movimentos nacionalitários”, laboratório dos nacionalismos (e, França, o termo apareceu por volta de 1890), o século XIX é também o século em que as nações europeias inventam uma “alma” ou um “génio”. Todas elas, para isso, “fabricaram” o que o etnólogo Orvar Löfgren chamou muito apropriadamente um “conjunto” (kit) identitário. Uma espécie de lista cujos mesmos elementos se combinaram um pouco por toda a parte e ao mesmo momento: uma história multissecular, dos antepassados fundadores (Gauleses para os Franceses, Daces para os Romenos, Hunos para os Húngaros…), alguns heróis, uma língua, um folclore, uma gastronomia. “As nações formaram-se umas em relação às outras a partir de métodos estandardizados. A construção das identidades nacionais foi sobretudo um fenómeno transnacional”, explica Anne-Marie Thiesse.

A partir desta base comum, diferentes concepções da nação são, contudo, confrontadas. Durante muito tempo, esteve na moda opor uma “concepção francesa” da nação, fundada sobre a ideia de adesão voluntária a uma “concepção alemã”, alicerçada na exaltação das origens. O contrato social

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contra o Volksgeist (espírito do povo), o direito do solo contra o direito do sangue, a nação revolucionária contra a nação romântica.

Hoje, a maior parte dos historiadores julga esta oposição demasiado simplista. “Mesmo no interior da França, existiram estas duas teorias”, recorda assim Michel Winock, professor emérito no Instituto de Estudos Políticos de Paris, de quem vários artigos sobre a ideia nacional acabam de voltar a ser publicados (Le XXe siècle ideologique e polítique, Perrin). “Há ‘um nacionalismo fechado’ e ‘um nacionalismo aberto’. ‘Fechado’, é o de Barrès e de Maurras. É a ideia que não se vem a ser francês, mas que se é francês porque os seus antepassados já o eram. É o culto do enraizamento, é a tónica colocada na herança, daí a referência constante, em Barrès, ’à terra’ e ‘às mortes’. Em França, este nacionalismo é menos baseado na raça do que na identidade católica, o que explica que do mesmo modo que há uma rejeição dos imigrantes há, também, uma tendência para querer desmascarar os ‘maus Franceses’ — ou seja, no fim do século XIX, os judeus e os protestantes. No seu oposto, tem-se o nacionalismo ‘aberto’, republicano, o que, na esteira de 1789, pensa a nação assim como o resultado da vontade geral”.

Se uma frase de Barrès resume a primeira concepção (“O nacionalismo é a aceitação de um determinismo”, 1902), é uma conferência de Ernest Renan, pronunciada em 1882, na Sorbonne, que frequentemente é citada como fundadora da segunda. À questão “o que é uma nação?”, o historiador respondia que esta não se definia nem pela raça, nem pela língua, nem pela religião, nem pela geografia, nem mesmo por uma comunidade de interesses. Para ele, a nação era uma “grande solidariedade”, constituída pelos “sacrifícios que se fez e pelos que se está disposto a fazer ainda”. Se “ela supõe um passado”, ela não se concebe sem “o desejo claramente expresso de continuar a vida comum”. Uma fórmula fez sucesso: “A existência de uma nação é... um plebiscito diário como a existência do indivíduo é uma afirmação perpétua de vida”.

Esta definição voluntariosa da nação — Renan fala do “desejo de viver juntos” — assenta na adesão a um certo número de valores comuns. Como

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recorda o historiador Vincent Duclert, professor agregado na Ècole des Hautes Études en Sciences Sociales e autor de La France, une identité democratique (Seuil, 2008), é no final do século XIX, no contexto de uma República simultaneamente conquistadora e contestada, nestes anos em que o regime teve que fazer face a duas grandes crises (o boulangisme e o processo Dreyfus), que estes “princípios fundamentais" se cristalizam. “Numa República que não tinha verdadeiramente Constituição”, observa o historiador, “são as grandes leis que serviram de textos fundadores: sobre a liberdade da imprensa (1881), sobre a escola (1881-1882), sobre os sindicatos (1884), sobre a liberdade de associação (1901), sobre a separação das Igrejas e o Estado (1905)…”

No decorrer do tempo, esta “identidade democrática” não cessou de se enriquecer: sob a Frente Popular, com as leis sobre os feriados pagos; sob a Libertação, quando as mulheres obtiveram o direito de voto e a Segurança Social foi criada; em 1981, com a abolição da pena de morte… A existência deste “património comum de direitos e de liberdades”, cuja lista está por definição aberta, constitui o que Vincent Duclert chama, por conseguinte, a identidade democrática da França — expressão que prefere à de identidade nacional, na medida em que coloca a tónica sobre um “projecto político” em curso mais do que sobre uma “definição essencialista” fixada uma vez por todas.

A combinação de uma herança comum e de uma esperança partilhada, uma definição que assenta paradoxalmente sobre a recusa de uma definição demasiado precisa… Ao jornal Le Monde que lhe perguntou em 1985 se era possível dar um conteúdo à noção “identidade da França”, Fernand Braudel respondeu: “Sim, na condição de que se deixe espaço a todas as interpretações, a todas as intervenções... Há uma identidade da França a procurar com os erros e os sucessos possíveis, mas fora de qualquer posição política partidária”. Antes de formular esta injunção: “Não quero que ninguém se divirta com a identidade”. Thomas Wieder, “Aux racines de l'identité nationale”, Le Monde, 6 de Novembro de 2009.

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Identidade nacional: recusemos um debate posto em termos xenófobos!

Vários autores

O lançamento do debate sobre a identidade nacional é um acto político ou

apenas politiqueiro? No contexto da campanha para as eleições regionais de 2010 e com a acumulação de sondagens de opinião que lhe são desfavoráveis, cada um adivinha que o governo procura explorar os medos dos franceses ligando os temas do estrangeiro e da segurança, assim como os do comunitarismo e o da condição das mulheres. Mas não haverá, além disso, um debate político de fundo o qual não se poderá recusar por princípio? Muitos pensam assim. Contudo correm o risco de o lamentar quando descobrirem a forma como este debate terá sido organizado no concreto.

Para compreendê-lo, é necessário ler a circular enviada aos prefeitos a 2 de Novembro pelo ministro da Imigração, da Integração e da Identidade Nacional, Eric Besson, onde se lhes pede para “organizarem e presidirem” por toda a parte em França aos debates locais sobre a identidade nacional, e cuja síntese será posteriormente publicada pelo governo como sendo o resultado desta vasta consulta dos franceses.

Descobriu-se uma lista de preconceitos e de falsas evidências que definem antecipadamente a identidade nacional enquanto pretendem pô-la em debate. Muitos assuntos são abordados, mas o tema “do estrangeiro” é realmente central. E certas perguntas formuladas a este respeito são orientadas, chocantes e inaceitáveis. Detalhe-se esta: “Como evitar a chegada ao nosso território de estrangeiros em situação irregular, com condições de vida precárias geradoras de desordens diversas (trabalho clandestino, delinquência) e manter, numa parte da população, a suspeita no que diz respeito ao conjunto dos estrangeiros?” Encontra-se aqui, condensados numa mesma frase, todos os lugares comuns do discurso xenófobo.

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1 — Os sem-papéis teriam necessariamente chegado de modo irregular. Na realidade, a irregularidade da estada não supõe a entrada ilegal. As últimas reformas minaram o estatuto dos estrangeiros que residem em França, fazendo-os cair na irregularidade por motivos cada vez mais numerosos (poligamia, separação do casal, fim do contrato de trabalho, rejeição do pedido de asilo, fim dos estudos, etc.).

2 — Os sem-papéis teriam necessariamente condições de vida precárias. É a famosa “miséria do mundo” e não é totalmente falso. No entanto, realmente, se a sua situação administrativa é necessariamente precária, os sem-papéis podem também ser qualificados, integrados, trabalhar, ter um alojamento e pagar impostos.

3 — Esta precariedade seria necessariamente fonte de trabalho clandestino. Não é totalmente falso. No entanto, realmente, muitos sem papéis trabalham com um verdadeiro contrato de trabalho e estão declarados. De resto, “o trabalho na economia paralela” não é reservado somente aos estrangeiros irregulares. É pelo contrário bastante vasto (guarda de crianças, cursos nocturnos, família, costura, passagem a ferro, ajudas ao domicílio, etc.).

4 — Esta precariedade seria necessariamente causa de delinquência. É o velho tema da extrema-direita, estrangeiro = delinquente, dissimulado sob a máscara da piedade sobre a pobreza. Na realidade, os clandestinos são certamente todos os delinquentes no sentido administrativo (ausência de papéis). Mas para tudo o resto, a sua particularidade é a de ser geralmente e pelo contrário muito respeitadora da ordem pública de modo a não se fazerem notar.

5 — Isto mantém a suspeita da população relativamente ao conjunto dos estrangeiros. Esta ideia que a luta contra os imigrantes clandestinos permitiria aos imigrantes legais serem aceites e de se integrarem é uma ideia falsa. Primeiro o discurso xenófobo, mesmo limitado aos clandestinos, pode apenas alimentar uma xenofobia mais geral (basta lerem-se os discursos sobre a religião muçulmana e os seus “sinais ostensivos”). Seguidamente, as práticas policiais que decorrem da luta contra a imigração clandestina tocam realmente

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todos os franceses cuja pele não é branca. O exemplo mais evidente é o controlo de identidade na via pública, por outras palavras, o controlo da cor e da pele.

Assim, este debate sobre “a identidade nacional” não é somente contestável na sua base, é-o também e primeiro sobre o método. A leitura da circular Besson mostra que as conclusões estão na sua maioria antecipadamente escritas. Não somente a circular formula as perguntas que serão debatidas, mas contém, além disso, uma lista de quinze propostas precisas que, como por azar, se referem em 11 dos 15 casos aos estrangeiros (o resto consiste em cursos de instrução cívica, na obrigação das crianças cantarem regularmente a Marselhesa e de os edifícios públicos arvorarem o retrato de Marianne e a bandeira tricolor).

Tudo indica efectivamente o nível real do debate que é proposto e a base do pensamento daqueles que o conceberam. O que é que poderia suscitar este debate, fazê-lo sair destes quadros estreitos de cariz xenófobo?

Em nenhum momento se exige a presença dos investigadores especialistas da sociedade francesa, capazes de ajudar a objectivar a sua história e a sua composição actual, como também não se exigiu a presença de representantes dos diversos partidos políticos, sindicatos profissionais, grandes associações nacionais, instituições religiosas nem também as diversas “comunidades” no entanto evocadas na circular.

Nestes debates, apenas é pedido aos representantes do príncipe que recolham cuidadosamente os medos “do bom povo” para poderem seguidamente tranquilizá-lo falando-lhe “do orgulho de ser francês”. Não, decididamente, os dados estão viciados, trata-se de uma manipulação e nós apelamos aos nossos concidadãos para contestar estes métodos políticos retrógrados que sobretudo ameaçam mais do que servem a coesão social reactualizando o bom velho maniqueísmo que opõe duas entidades míticas: “a comunidade nacional” e “os corpos estrangeiros” que a ameaçariam.

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Christophe Daadouch, jurista; Laurent Mucchielli, sociólogo; François Dubet, sociólogo; Jean-Pierre Dubois, presidente do LDH; François Geze, editor; Véronique Le Goaziou, socióloga; Claire Lévy-Vroeland, socióloga; Gérard Marle, padre; Stéphane Maugendre, presidente do GISTI; Antoine Math, economista; Marwan Mohammed, sociólogo; Richard Moyon, co-fundador de RESF; Marie NDiaye, escritora; Laurent Ott, educador; Pierre Piazza, politólogo; Philippe Rigaut, sociólogo; Serge Slama, jurista; Alexis Spire, sociólogo; Jérémie Wainstain, chefe de empresa; Vincent Tiberj, politólogo; Pierre Tritz, padre; “Identité nationale: refusons un débat posé en termes xénophobes!”, Le Monde, 24 de Novembro de 2009. Nicolas Sarkozy quer atingir a esquerda; em realidade, abala a coesão nacional Guilherme Bachelay

A muito querer imitar os florentinos de Maquiavel, esquece-se a armadilha da razão tão cara a Hegel. Esta verdade, o presidente da República poderia senti-la cruelmente com “o verdadeiro debate sobre a identidade nacional” que acaba de relançar através do seu ministro da Imigração. Ele julga colocar uma armadilha à esquerda. Por pouco que esta fale e que fale bem, o retorno do bastão poderia ser-lhe fatal.

Nicolas Sarkozy quer dividir a esquerda? Que ele pense sobre o precedente ocorrido no outro lado do Atlântico. Longe de recusar o debate sobre “os valores americanos”, Barack Obama colocou-se deliberadamente neste terreno para mostrar que era o depositário da promessa dos Pais fundadores, insultada por G. W. Bush e pelos neoconservadores.

Eric Besson quer federar a direita? Tem ainda a aprender com o campo a que aderiu. Nem toda a gente liga nação e imigração! Existe uma direita republicana no nosso país que não esqueceu Romain Gary, conhecido por

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Kacew, em 1914 e em Vilnius, companheiro da Libertação, diplomata, escritor, que afirmava no crepúsculo da sua vida: “Não tenho nenhum problema de identidade. Sinto-me insolentemente francês”.

A UMP quer seduzir a extrema-direita? Em 2007, o seu candidato ganhou porque absorveu as vozes da Frente Nacional, mas estes vasos comunicantes eleitorais tinham um preço: contra os bandos, “o Kärcher”; contra o individualismo, “a liquidação de Maio de 68”; contra o mundo interdependente, “a imigração escolhida”. Dois anos e meio depois, enquanto se aproximam as eleições regionais, aí está a prova de que “a terra não mente”. Em pura perda: os “ultras” nunca estão satisfeitos…

“A operação identidade” teleguiada pelo presidente da República, pelo Eliseu, não coloca, de modo algum, o Partido Socialista em situação difícil. Somos o primeiro partido de eleitos locais do país. Da câmara municipal ao monumento aos mortos, passando pela escola, mostramos diariamente a nossa fixação à nação federativa, educadora, protectora. Também foram tiradas as lições que havia a tirar com os anos de governo e com o que separou o PS da sua ancoragem popular, esta tecnocracia matizada de elitismo que evocava a história da França apenas para pedir perdão.

No ano do 150.º aniversário do nascimento de Jaurés, a esquerda não tem nenhuma preocupação com a identidade francesa. Aos nossos olhos, esta ainda e sempre significa a República. De Renan a Lavisse, a França forjou-se contra uma concepção étnico-nacional fundada em critérios de pertença. Quando “o ser-se francês” se torna abafador, como com a colonização ou sob Vichy, o nosso país apaga as Luzes e vive noites bem escuras.

A identidade republicana tem ainda mais ressonância com a crise. O desemprego explode. A desindustrialização faz enormes estragos. Os défices públicos acumulam-se. Para os nossos co-cidadãos, o problema central é a questão social. Sobre este debate, o governo continua a ser discreto! E tem a sua razão: em lugar de reduzir as desigualdades, as suas escolhas orçamentais e fiscais agravam-nas. Pior, danifica as invariantes que, para lá das condições económicas e das alternâncias políticas, cimentavam a França: a separação da

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política e do religioso, uma diplomacia singular, uma moral elementar que não fazia do dinheiro a medida de todas as coisas. Neste caminho republicano, vivemos actualmente uma perigosa abanadela.

A identidade da França, tanto dentro como fora, é primeiramente os direitos do Homem. O que é que permanece quando reenviamos os refugiados de um país em guerra para esse mesmo país? A identidade da França é a laicidade. Porque qualificá-la “de positiva”: não existia ela sem epíteto? Com que é que rima a suposta superioridade do padre sobre o professor “na transmissão dos valores”?

A identidade da França é o universalismo. Mas então, porquê o etnocentrismo do discurso de Dakar sobre o homem africano ou o ocidentalismo que subjaz no regresso ao comando integrado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)?

A identidade da França é a igualdade. Entre 2002 e 2009, 5% dos franceses, os mais ricos, beneficiaram de dois terços dos 30 mil milhões de redução de impostos. Quanto ao nosso sistema de protecção social, o fundamento do modelo francês e amortecedor de crise, segundo as palavras dos seus próprios críticos, é atacado por todos os lados: saúde, reformas, acidentes do trabalho, desemprego, não escapa nada ao rolo compressor do neoliberalismo.

Por último, a identidade da França é a liberdade que consiste também em não impor estes grandes princípios a golpes de matraca ou de regras. É pela força do seu projecto que a República, filha da razão, quer a adesão de todos os franceses. Não se impõe uma identidade: constrói-se uma identidade. Pelo respeito das pessoas e dos compromissos. É provavelmente aí que o sarkozysmo peca mais. Por cálculo e por temperamento divide em vez de reunir, como se, para fazer a nação, fosse necessário separar “o trigo do joio”, o “bom” jovem do delinquente, a França que “se levanta cedo” e a que é excluída do mercado de trabalho. Por ideologia, o sarkosysmo bloqueia os motores da coesão nacional. Onde está o plano Marshall para os subúrbios, os créditos para as associações dos bairros populares, as dotações perenes para as

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autarquias locais, o apoio aos serviços públicos, aos correios, aos hospitais, à polícia, à justiça e aos seus agentes? E a escola da igualdade real, onde está ela, na hora da guetização, do fim da carta escolar, da supressão de milhares de postos de professores?

Decididamente, neste “debate”, o Partido Socialista não tem nada a temer, não tem que se envergonhar. É chegada a altura de enfrentar os defensores da identidade de Fouquet para lhes dizer como o fez Jaurès aos demolidores de há um século: “Uma vez que abandonam a política republicana, cabe-nos, a nós, socialistas, fazê-la”.

Guilherme Bachelay (Membro do Labo 76, conselheiro general de Seine-Maritime e secretário nacional do Partido Socialista),  “Nicolas  Sarkozy  veut gêner la gauche; en réalité, il ébranle la cohésion nationale”, Le Monde, 6 de Novembro de 2009. O reenvio por avião de afegãos de Calais é indecente e incoerente

Pierre Micheletti, Oliveira Bernard, Bernard Granjon Eric Besson, [ministro da Imigração, da Integração e da Identidade Nacional e do Desenvolvimento Solidário], confirmou Quarta-feira, 7 de Outubro, que os voos serão organizados para repatriar refugiados afegãos apanhados “na selva” de Calais. Direcção Cabul, capital do país “de uma eternidade em guerra”. Este dispositivo, precisa o ministro, será aplicado “sob reserva (que se possa) estar certo que as pessoas estarão em segurança ao chegarem a Cabul, e em segundo lugar que haja a possibilidade de uma ajuda à reinstalação…” Subtileza semântica e incoerência política rivalizam nesta decisão que aflige e que é apresentada além disso como “destinada a enviar um sinal de firmeza contra os passadores”... Sancionando entretanto os clientes…

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Subtileza semântica, porque, no perímetro quase que militarizado e controlado pelas forças da coligação afegã na capital, Cabul, a chegada imediata far-se-á com efeito em segurança. E para além? Os afegãos dos campos para deslocados internos sabem-no melhor que ninguém, eles a quem a insegurança os forçou a deixar as suas regiões de origem. Seguidamente, uma “ajuda à reinstalação” (?) será proposta aos desafortunados migrantes de Calais antes de voltarem a esta terra afegã que a todo o custo quiseram deixar, e ao preço elevadíssimo de mil obstáculos.

Quem é que já não teve medo? Quem nunca sentiu esta surda apreensão, incontrolável, perante um perigo difuso? No que respeita à sua percepção da segurança, os afegãos presentes em Calais já deram a sua resposta! A sua presença no beco sem saída sórdido da selva, nas praias do Norte, e os seus olhares aquando da última rusga é a sua resposta, inequívoca.

Para quem conhece o Afeganistão hoje, é de tal forma evidente que os propósitos que acompanham o anúncio dos envios são indecentes. No Afeganistão, o medo é omnipresente, quase palpável. Percebe-se isso na concentração preocupada das tropas de ocupação quando as observamos, olhando para tudo o que mexe, patrulhando em cima dos seus veículos blindados. Percebe-se isso também nas instruções de segurança drásticas que as equipas humanitárias são obrigadas a cumprir. Nos seus perímetros de acção cada dia mais reduzidos.

A Associação Médicos do Mundo está presente em Calais mas igualmente em Cabul desde há muitos anos e pode confirmar a degradação de segurança que obriga a reduzir a sua ajuda às populações vulneráveis.

Incoerência política seguidamente e de países que gastam milhões de dólares numa guerra apresentada exactamente como justa e salvadora, face ao perigo extremista dos talibãs e que fazem de má vontade um simples gesto de humanidade no que diz respeito a cerca de uma centena de migrantes do medo.

Incoerência política a querer proteger “lá longe” e a tornar inseguros “aqui” outros afegãos, às vezes prisioneiros de outros, malfeitores. Se, para punir os bandidos se deve dar caça às suas presas, então é necessário, o mais

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rapidamente possível, esvaziar o Afeganistão da sua população e permitir pelo contrário uma emigração maciça dos milhares de pessoas expostas à violência e à coerção! Incoerência política de países que pedem aos seus exércitos que paguem “o preço do sangue” para proteger as populações locais, como o evocou o presidente Sarkozy aquando da sua visita ao local a 22 de Dezembro de 2007. Ao contrário, hoje, é necessário actuar rapidamente e fazer regressar os afegãos de entre eles que se refugiaram em Calais. Mas, Sr. Presidente, eles são os mesmos! Aqui e ali são os mesmos! Que coerência para os soldados franceses e para as suas famílias há nestas decisões? Estão a bater-se por um povo de delinquentes?

Durante este tempo, as imagens da operação policial de evacuação da selva de Calais sucederam-se nas cadeias de televisão afegãs. Na hora de uma informação instantânea, mundializada e manipulada, ninguém duvida que estas imagens retransmitidas não contribuirão em nada para provar as boas intenções dos países ocupantes em relação à população civil.

A coberto de uma política de luta contra o tráfico de seres humanos, é contra os que sofrem este tráfico que o ministro se vira. O Alto-comissário dos Direitos do Homem do Conselho da Europa, Thomas Hammarberg, aliás, bem se preocupou: “As vítimas do tráfico dos seres humanos não devem ser consideradas como que tenham cometido um delito, existem normas internacionais reconhecidas... para proteger as vítimas do tráfico contra qualquer responsabilidade penal. Não são os imigrantes que são criminosos mas os traficantes”. Estes comentários valem para todas as nacionalidades dos refugiados presentes nas redondezas de Calais.

Na mesma altura, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) publica o seu relatório anual. O documento questiona um certo número de ideias aceites (e mediatizadas) sobre os volumes e os prejuízos supostos da imigração nos países ocidentais. Este documento prova, pelo contrário, os efeitos benéficos para os países de acolhimento no

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plano económico e demográfico. É uma verdadeira acusação contra as políticas anti-migratórias. Procurem o erro…

Pierre Micheletti, Oliveira Bernard, Bernard Granjon, “Le renvoi par avion des Afghans de Calais est indécent et incohérent”, Le Monde, 16 de Outubro de 2009. Patrick Weil: Hortefeux “inflaciona os números de reconduzidos à fronteira” Entrevista a Patrick Weil, director de investigação do CNRS, especialista de migrações. P.: Porquê teimar numa política do número? Patrick Weil: Porque fixar um número, e seguidamente dar o sentimento que este objectivo calculado foi realizado, é, desde que Sarkozy tomou em mãos o processo da imigração e desde que é presidente da República, procurar mostrar que domina o Estado e a sua acção, que produz resultados, que não se satisfaz anunciando decisões, mas que as realiza.

P.: Depois das diferentes acções efectuadas por Hortefeux, a sua opinião no que diz respeito ao ministério da Imigração é que este evoluiu positiva ou negativamente? R.: A criação deste ministério comporta duas dimensões: primeiro, colocar em funcionamento uma administração comum da imigração, reunindo um conjunto de serviços que anteriormente estavam dispersos, principalmente entre três ministérios: o do Interior, o do Trabalho e Assuntos Sociais e o dos

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Negócios Estrangeiros. A fusão de diferentes serviços pode racionalizar a acção do governo em matéria de imigração.

A desvantagem desta fórmula é que separa a administração da imigração destes três grandes ministérios supracitados, o que contribui para que estes dela se desinteressem. Este inconveniente não era visível com Hortefeux, que dispunha pela sua proximidade com o presidente da República de um poder importante no que diz respeito aos outros ministérios. Agora não é certo que ao longo do tempo isto funcione da mesma maneira.

A segunda dimensão deste ministério é o seu nome: Imigração e Identidade nacional. O ministro Hortefeux quis banalizar esta denominação dizendo: identidade nacional significa apenas cidadania. Realmente, o sinal que se dirigia a um eleitorado antes próximo da extrema-direita, que em parte aderiu a Sarkozy a partir da primeira volta da eleição presidencial, traduziu-se concretamente, sob Hortefeux, por políticas que, no terreno, permitem distinguir os estrangeiros de acordo com as origens nacionais, em ruptura com o princípio da igualdade. Penso nomeadamente nas novas exigências impostas aos cônjuges de franceses para terem o seu direito de realizar uma vida comum com o seu cônjuge e na reforma dos procedimentos de naturalização, que vai criar duas vias distintas de tratamento dos processos, muito discriminantes em relação aos candidatos que as prefeituras não queiram tratar prioritária ou favoravelmente.

P.: Qual é o impacto do número de expulsões na economia francesa? R.: É muito difícil sabê-lo. Não tenho o sentimento que as interpelações se produzam, antes de mais nada, nas empresas. Por conseguinte não estou certo que este impacto seja significativo.

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P.: Quais são os efeitos da nova política do agrupamento familiar (as leis ditas Sarkozy e Hortefeux)? R.: As novas leis sobre o agrupamento familiar aumentaram sobretudo os prazos de agrupamento, dado que a baixa anunciada pelo governo do número de agrupamentos familiares tem a ver principalmente com o aumento da duração mínima de estada em França antes do arranque de um procedimento (passagem de 12 para 18 meses em 2006) e com o aumento das condições de recursos e de alojamento para realizar este agrupamento. As medidas tomadas que exigem por exemplo a feitura de testes de língua francesa antes da chegada a França apenas entraram em vigor recentemente, não se podendo ainda medir os seus efeitos.

P.: Para onde é que se vai? Como considerar a política que a França põe em prática? Uma imigração profissional?!?! O que para mim quer dizer: pilhagem dos cérebros, os intelectuais de África! R.: É necessário deixar de ser, neste domínio, cego ou hipócrita. Se todos os países do Norte tivessem uma política comum de recusa em atrair para eles a imigração qualificada, então uma política francesa que vai no mesmo sentido teria efeito. Se a França é o único país a praticar esta política, os qualificados do Sul, que são pela sua qualificação procurados num mercado mundial, podem ir para outro lugar, se a França não os quer aceitar.

Para sair desta quadratura do círculo, é necessário inventar regimes de estada com diversos graus, que permitam a estes qualificados do Sul terem uma carreira profissional a nível das suas esperanças e ao mesmo tempo que esta carreira possa beneficiar o seu país. É necessário por conseguinte permitir que cartas de residente atribuídas na Europa ou em França possam continuar a ser válidos de maneira permanente ainda que estes qualificados repartam a sua estada com o seu país por um período longo.

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É necessário permitir também aos diplomados do ensino superior europeu vindos destes países do Sul que tenham uma espécie de visto permanente que lhes permita circular entre nós e eles. É esta solução que permitirá não “pilhar o Sul” sem estar a impedir esta elite de realizar também as suas aspirações.

P.: Se o Pacto europeu permanece por si só desprovido de força vinculativa, não constitui ele portanto uma vitória política para a presidência francesa da União Europeia e, pessoal, para o ministro Hortefeux? R.: É a questão da relação entre o simbólico e o real. O presidente Sarkozy tinha anunciado um pacto europeu sobre a imigração, o ministro Hortefeux pôde assim assinar na parte inferior de um pergaminho o conjunto da União, e é um acto simbólico em si, dado que é o primeiro texto assinado pelos 27 países da nova União sobre a questão da imigração. Agora, nada impede por este texto que cada país tenha a política de imigração que deseje.

P. Pensa que a política de ajuda ao retorno é um sucesso? As ajudas humanitárias para o regresso não servem essencialmente para fazer inflacionar os números dos reconduzidos à fronteira? R.: Certamente, esta política inflaciona os números dos reconduzidos à fronteira. Se se deduzir dos números anunciados por Hortefeux os regressos voluntários e aquilo a que se chama os reenvios, ou seja, o envio para um país fronteira da França pelo qual um estrangeiro não europeu tenha passado para vir a França, há uma baixa dos reconduzidos à fronteira entre 2007 e 2008. Por conseguinte sem este tipo de reconduções, o ministro Hortefeux não teria podido anunciar na sua conferência de imprensa desta manhã o aumento que proclamou nas ondas da rádio e nos ecrãs.

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P.: A vontade francesa, e da União Europeia, de formalizar as suas relações migratórias com os países “geradores” não assinala a entrada das problemáticas migratórias na idade da realpolitik? R.: É antes um regresso ao início do século XX. Querer quebrar com o presente sem conhecer o passado é às vezes condenar-se a revivê-lo. O ministro Hortefeux faz apenas coisas que já foram feitas no início do século XX com países europeus de imigração e depois das independências coloniais. Com a Argélia, por exemplo, com Portugal, com a Tunísia, com Marrocos, numerosos acordos foram já assinados. Têm eles sentido? Vão eles ter algum efeito dado que a entrada em França depende hoje de uma política europeia de vistos? Desde o momento em que o retorno forçado está sujeito às normas europeias ou constitucionais? Desde então, enfim, que os meios de circulação dos migrantes como indivíduos progrediram muito relativamente ao início do século XX. A proclamação que estes acordos seriam o nec-plus-ultra (o que há de melhor) desta nova política de imigração mostra bem que Sarkozy tem uma visão de intervencionismo estatal e policial da regulação migratória.

Ora, mesmo com o risco de surpreender, quero dizer que teria sido talvez mais eficaz, do ponto de vista do controlo migratório, proceder de modo diferente. Por exemplo, abrindo a França as suas fronteiras mais cedo do que o fez à imigração europeia vinda dos novos países-membros da União. Fizemo-lo em Julho de 2008, outros países europeus (Grã-Bretanha, Irlanda, Suécia, Itália, Finlândia) fizeram-no muito mais cedo que nós. E os imigrantes europeus que neles foram trabalhar bloquearam uma grande parte da imigração de trabalho ilegal que teria podido querer desenvolver-se.

P.: Os meios dados à integração são suficientes? R.: O principal meio da integração é a segurança do documento de residência e o mecanismo de naturalização. Se convocamos as pessoas todos os seis meses à prefeitura, se os colocamos numa situação de insegurança quanto ao

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seu estatuto porque não dominam bastante os “códigos” da sociedade francesa, a língua francesa; se, quando querem pedir para se naturalizar, os fazem esperar entre sete e dez anos para lhes mostrar a extrema reserva da França a seu respeito, nada disto favorece a integração. Se, por último, quando são franceses, seja porque foram naturalizados seja porque nasceram em França e que tenham sido franceses desde a nascença ou nos anos da sua adolescência, estão sujeitos a controlos discriminatórios tendo em conta a sua aparência física ou a percepção de uma diferença cultural, tudo prejudica consideravelmente a sua integração.

E alguns milhões de euros que se consagrariam às “políticas de integração” não podem, de modo nenhum, compensar os efeitos negativos dos dispositivos que acabo de enunciar.

P.: Será que o modelo de assimilação francês está doente face ao modelo anglo-saxónico? R.: Em todos os países de imigração, os estrangeiros aspiram à assimilação… jurídica. Eles querem e muito frequentemente ter os mesmos direitos quando são residentes e frequentemente desejam tornar-se cidadãos do seu país de residência. Por conseguinte a assimilação é uma disposição praticada por todas as grandes democracias em relação à sua imigração.

Acrescento que os Estados Unidos, frequentemente apresentados como um modelo de integração, praticam também a assimilação política e cívica: saudação à bandeira, canto do hino nacional em competições nacionais de basebol, de futebol, rugby, juramento de fidelidade aos Estados Unidos todos os dias na escola pública. Isto é a assimilação política. Além disso, tem uma maior valorização das origens culturais ou nacionais dos migrantes.

A França não tem nada contra a manutenção das tradições culturais nacionais. A França, antes dos Estados Unidos, e como a Inglaterra de resto, desde há muito tempo que aceitaram a dupla nacionalidade. Mas é verdade,

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mais tardiamente que os outros países, a França desenvolveu o direito de associação para os estrangeiros.

Há também entre nós uma tendência para não ter em conta a diversidade em relação à história da França. Pode sentir-se francês de diferentes maneiras. As pessoas da Alsácia ou de Mosela que mudaram várias vezes de nacionalidade num século têm uma relação com a França mais complexa do que os habitantes de Ile-de-France. E do mesmo modo, as pessoas das Antilhas ou Franceses procedentes do Magrebe, que conheceram uma França ligeiramente diferente da que os metropolitanos conhecem desde a Revolução francesa. E esta diversidade deve ser melhor admitida nos discursos públicos, nos manuais escolares e nas relações sociais.

P.: Pensa que o Estado tem verdadeiramente uma legitimidade em definir o que é a identidade nacional, em vez de deixar que os seus cidadãos a estabeleçam no plano dos factos? R.: O Estado pode participar e participou na construção desta “identidade nacional”. Por exemplo, definindo os programas de história nas escolas, estabelecendo as comemorações, construindo os TGV. A relação com o espaço evoluiu desde que o TGV se desenvolveu e reduziu de facto as distâncias no espaço nacional. Por conseguinte, muitas políticas públicas participam na transformação da identidade nacional e associar esta identidade à imigração tinha por conseguinte um sentido específico, codificado, que recordava os trabalhos do Clube do relógio dos anos 80. Entrevista de Laetitia Van Eeckhout, “Patrick Weil: Hortefeux ‘gonfle les chiffres de reconduites à la frontière’”, Le Monde, 13 de Janeiro de 2009.

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Boat people de hoje Daniel Rondeau Nomeado embaixador de França em Malta em 2008, Daniel Rondeau viu-se rapidamente confrontado com o afluxo dos imigrantes que chegam aos milhares a esta ilha, porta da Europa. O diplomata sobrevoa as suas embarcações de acaso, informa-se sobre as razões e as condições da sua viagem. É o escritor que nos dá aqui esta “crónica quase diária do sofrimento e do exílio”.

Figurinos com a dimensão humana foram instalados em meados de

Novembro em face do monumento às mortes de La Valette. Estas estátuas representam os Reis Magos e anunciam o Advento. O negro, com o turbante é Baltazar. A primeira vez que o vi, imediatamente pensei que este Baltazar maltês devia às vezes sentir-se um pouco sozinho. Há poucos africanos nas ruas de Malta, mesmo se me acontece cruzar uma ou duas vezes, à noite, na alta da vila de Floriana, com fantasmas em jeans ou fatos coloridos, escondendo a sua miséria sob risos e com grandes passos.

No entanto, durante a bela estação, várias vezes por semana, os diários malteses relatam em primeira página a chegada de embarcações de imigrantes. O dia em que assumi as minhas funções em La Valette, numa Quarta-feira, 23 de Julho de 2008, o Malta Today contava que um barco carregado com 28 homens e 2 mulheres tinha sido interceptado a 6 milhas náuticas da costa de Marsaxlokk e escoltado até um cais próximo do Freeport e que os imigrantes ilegais tinham sido entregues às autoridades policiais.

Alguns dias depois, o Malta Independant trazia como notícia principal “uma grande fotografia de um barco que transportava 95 passageiros (80 homens e 15 mulheres), localizado pelas forças maltesas a duas milhas náuticas da costa, e escoltado por duas patrulhas, a P-24 e o Melita-1, até Birzebbuga. No mesmo dia, 28 imigrantes (dos quais 2 mulheres) tinham

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chegado num barco de “fortuna” até aos penhascos de Ghar Lapsi, onde famílias maltesas tentavam escapar ao aperto do calor enfiando-se em piscinas naturais escavadas nas rochas e protegidas do sol por uma caverna aberta num braço de penhasco. Um último exemplo, encontrado no Times de 10 de Setembro de 2008. Uma embarcação de imigrantes tinha-se virado a 72 milhas de Malta.

Um helicóptero das forças maltesas tinha colocado salvadores para recuperar em pleno mar sobreviventes e nomeadamente duas crianças já queimadas pelo sal, que foram transportadas urgentemente para o hospital. A embarcação completamente perdida tinha sido assinalada às autoridades maltesas pelos observadores de um Falcon francês que supervisiona a zona no âmbito da operação Frontex. Os salvadores chegaram demasiado tarde para salvar uma mulher, sem dúvida a mãe das crianças, que já tinha perdido a consciência. Morreu antes da chegada de um outro helicóptero. Esta crónica quase diária do sofrimento e do exílio perturba apenas os turistas e os alunos de liceu vindos de toda a Europa para melhorar o seu inglês na ilha de Calypso.

O Verão em Malta é colocado sob o signo da luz, dos fogos de artifício e da festa. Um sol impassível, as terras de um pálido seco entre sebes nas rochas, um mar sempre sorridente e ao crepúsculo o regresso da frescura. As noites de Paceville escrevem cada dia um novo capítulo desta “movida” mediterrânica, que celebra, de Barcelona a Djerba, a alegria de existir. Por toda a parte nas praias ou nos clubes nocturnos, os mesmos DJ fazem com que se agitem ao ritmo as mesmas multidões dionisíacas com danças muçulmanas, que partilham uma mesma sede de prazer e de esquecimento, a igual distância entre o passado e o futuro.

E é pensando no passado (das ilusões destruídas) e no futuro (das esperanças improváveis) dos boat people africanos que, um mês depois da minha chegada, tomei contacto com a tripulação do Falcon 50 que, com base em Malta, patrulhava acima do mar no âmbito da operação Frontex. A agência europeia Frontex coordena, desde 2004, os responsáveis civis e militares

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encarregados de reunir informações sobre as redes de imigração e de organizar os meios náuticos e aéreos que supervisionam as fronteiras externas europeias.

O tenente Carré propôs-me imediatamente que passasse um dia em voo com a sua tripulação da marinha nacional. Eram cinco, das quais uma mulher, Marie-Odile, o piloto, um co-piloto, dois observadores colocados na frente de uma grande vigia rectangular e um operador de radar, instalado na frente do seu ecrã ao fundo da cabina. Todos vestiam conjuntos kaki e verdes, com um colete de salvamento, e correspondiam entre si por rádio interna. Era a sua sétima missão, tinham assinalado embarcações de imigrantes todos os dias e não estavam descontentes por saber que dois lactentes, alguns dias antes, tinham sido arrancados à morte graças à sua intervenção. “Tem-se a impressão de se ser útil”, tinha-me dito o homem do radar, passando a sua mão pelos seus cabelos brancos. Fiz-lhe notar a ambiguidade da sua missão. Um antigo ministro francês dos Negócios Estrangeiros, muito conhecido pela sua clareza de análise e pelo seu humor frio, não me tinha dito, quando o informei de que ia participar num voo Frontex: “Dir-me-á quantos levou a saltarem dos barcos?” A tripulação do Falcon estava lá para supervisionar as fronteiras europeias, impedir a entrada de imigrantes ilegais ou para os salvar? A resposta do mestre foi imediata: “Somos marinheiros, respeitamos a lei do mar”, diz-me, mostrando-me o seu escudo Maritime Rescue Control Center. “Ordena-nos que se dê assistência a qualquer barco em perigo”.

Aquando da descolagem, Malta estava ainda banhada de uma ligeira bruma azul. O tenente Carré assinalou-me por rádio as telas das tendas do campo aberto que acolhe uma parte dos imigrantes clandestinos que alcançaram a margem maltesa, seguidamente e de forma rápida tomámos um pouco de altitude. O mestre mostrou-me no radar a zona que o Falcon iria sobrevoar, fazendo voos sistemáticos de vai e vem entre Malta e os confins das águas territoriais da Líbia. “Vigiamos bandas paralelas. Quando o mar está liso como hoje, nada nos escapa. Uma pequena bóia de pescador, um cardume de peixes à superfície, ou mesmo um saco de plástico, qualquer coisa que flutue deixa um eco sobre o ecrã”.

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Cada vez que um eco aparecia, o homem do radar assinalava a posição ao posto de pilotagem e descíamos imediatamente a 200 pés acima da água para identificar a sua origem. Durante as primeiras horas, o mar pareceu-me desesperadamente vazio. Nem cargueiros, nem veleiros. Nada de pescadores, também. “As embarcações evitam aproximar-se das águas territoriais líbias, é por isso que há pouco tráfego nesta zona” . Muitos alertas, no entanto. Sacos de plástico, barris vazios que flutuavam à deriva, restos diversos. No radar, eu podia ver as plataformas petrolíferas libanesas, a costa da Tunísia, as de Malta e de Gozo. Pela vigia, a luz alterava-se em cada momento. O espelho do mar passava por todas as gamas de azul. Azul de cerâmica ou céu terno, azul safira, de ardósia, quase malva às vezes, com matizes de verde e amarelo quando nos aproximamos das costas africanas. E no céu, sempre, nem uma nuvem. O piloto anunciou por rádio que bem gostaria de comer uma banana e de beber um chocolate. Era a hora de pausa para café.

Acabávamos de virar e começar a nossa segunda faixa de vigilância. Embarcações! Eram apenas pescadores tunisinos, a alguns milhas de Lampedusa. Um deles tinha colocado um pára-sol amarelo no seu barco para se proteger do sol. Passamos ainda entre duas outras embarcações de pesca, seguidamente o mar animou-se. Acabávamos de entrar na zona das tartarugas. Vêem-se algumas à esquerda do aparelho. As suas carapaças captam a luz das ondas. Um tubarão nada à superfície. Não se demora e desaparece entre duas águas sob as asas do avião. Pássaros amedrontados pelo barulho dos reactores partem em estrela a rasar a água. Um pouco mais longe, uma grande lula deriva com um ar de preguiçosa. O mar já não é um deserto.

De repente, o avião inicia uma viragem e o piloto grita pelo rádio: “Embarcação afundada à direita”. Marie-Odile fotografa o barco naufragado que parece prisioneiro do mar. Era um barco de imigrantes que se tinha afundado uns dias antes. Alguns tinham podido ser salvos. Mas os outros? O que é que lhes aconteceu? No caso do naufrágio, nunca se sabe com precisão qual o número de desaparecidos. O mar já não era um deserto, mas sim um cemitério. A alguns milhas do barco naufragado passava um veleiro holandês.

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O piloto entra imediatamente em contacto com o capitão, por rádio. Era bom ouvir uma voz. Cinco minutos ainda, um grito nos nossos capacetes. Thomas, o co-piloto, anuncia uma baleia sobre a esquerda. Demasiado tarde, esta já tinha mergulhado.

O operador de radar assinalou um novo eco, e o avião desviou-se ligeiramente para se deslocar sobre a zona. Alguns minutos foram suficientes. Todos os membros da tripulação gritaram ao mesmo tempo apercebendo-se da embarcação: um grande barco de pesca, com uma cabina de madeira pintada de fresco em branco no meio da ponte, que dissimula o acesso ao porão. A embarcação navegava em direcção a Lampedusa. Não tinha matrícula. Sobre a ponte amontoavam-se uns cinquenta africanos, numa incrível desordem, apertados uns contra os outros, frequentemente com a cabeça entre as mãos, alguns caídos sobre a ponte do navio, alguns pendurados sobre o tecto da cabina ao lado de barris azuis, reservas de água ou de combustível. “Devem ser tão numerosos no porão, diz uma voz no meu capacete. Vêm da Líbia e já têm pelo menos trinta horas de mar atrás eles”.

A embarcação destacava-se sobre o fundo azul sombrio do mar e avançava sob a abertura das vagas de espuma sob um céu límpido. O céu era tão claro, o mar tão sereno mas não o era naturalmente para esta nuvem de homens matraqueados pelo sol de Setembro, para eles era apenas uma sucessão de abismos. Uma trovoada, uma avaria, e o seu navio insensato, uma antiga embarcação de pesca no limite da sua vida física útil podia tornar-se o seu túmulo. Anteriormente, estas embarcações eram reparadas durante o Inverno e repostas como novas. Hoje, estes barcos frequentemente mal arranjados, susceptíveis de múltiplas avarias, são vendidos a preços de ouro e permitem aos passadores substanciais lucros. Mais passageiros que os barcos pequenos permitem, mais segurança, mais facilidade de reparar entre duas viagens, peças de substituição abundantes em todo o Magrebe, era o necessário. Dito isto, nenhum pescador embarcaria alguma vez num barco em tão mau estado. Giramos à sua volta, a baixa altitude, Marie-Odile tira fotografias que envia imediatamente indicando a posição do navio ao Centro

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de Controlo e de Investigação em Roma. A maior parte dos passageiros não nos olha. Adormecidos, atingidos pelo calor, doentes talvez. E os que nos olham, não manifestam nada.

A maioria dos imigrantes vem hoje da Somália, Eritreia, em menor escala do Mali, da Costa de Marfim, do Níger ou da Nigéria. Todos estão prontos a morrer para viver na Europa. Cada época teve as suas viagens infernais. O século XX não inventou nem o ódio nem a indiferença, mas precipitou dezenas de milhões de homens e de mulheres para a morte ou para a deportação. Cada um sabe como as políticas criminais que devastam a África, mortalmente doente de SIDA, lançam agora populações inteiras no exílio. Este exílio não é no entanto o único sofrimento destes homens desenraizados, condenados a progredir para o Mar Mediterrâneo por estradas sem leis.

A esperança é um muito longo caminho, que pode durar meses ou mesmo anos. Eles só encontram na estrada das suas vidas o desprezo do estrangeiro. Obrigados a trabalhar para pagarem a sua viagem, sempre roubados, frequentemente abusados, às vezes abandonados a uma morte certa em pleno deserto do Sahara e sujeitos em cada etapa a aberrantes direitos de passagem, todos eles sujeitos à chantagem de toda a gente, polícias, agentes de alfândega, comerciantes, transformados em escravos ou prostituídos, raptados, sequestrados, submetidos às piores abjecções, os homens assim como as mulheres, e as crianças também, são homens moralmente exangues que conseguem alcançar as praias líbias (Tripoli, Zuwarah ou Al-Khums, Misratah ou Zlitan) onde poderão, talvez, depois das humilhações finais e depois de ter pago 1 000 dólares, por fim, embarcarem (eles frequentemente já terão gasto entre 1 000 e 1 500 dólares para a sua viagem terrestre).

Todos sabem as engrenagens destas organizações mafiosas, os nomes de certos responsáveis são conhecidos (na Nigéria, em Cartum e noutros lugares) e numerosas reuniões de peritos europeus, e nomeadamente os responsáveis de Frontex, confirmam que a rota dos clandestinos, descrita pelo jornalista italiano Fabrizio Gatti em 2007, continua a estar sempre pavimentada pelos

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mesmos horrores. Mas a verdade continua sempre por construir, como dizia Camus, como o está o amor, como o está a inteligência.

Cada um a bordo do Falcon imaginava a sua viagem. Voávamos em círculos curtos e repetidos acima das suas cabeças. Para quê, demorarmo-nos? Todas as informações relativas à posição da embarcação, a sua velocidade e a sua rota presumida tinham sido transmitidas. Em princípio, os passageiros estavam agora em segurança. O avião retomou a direcção de Malta. Ninguém mais falava, mas a observação continuava. Um pescador à esquerda, que faz rota para o Norte! Duas embarcações de casco verde! Esta construção muito branca, à direita, é um draga-minas tunisino! Depois de seis horas de voo a rasar as ondas, diversos sonhos enchiam o nosso cérebro, preenchiam os nossos pensamentos. A maior parte das crianças das embarcações da imigração africana tinham nascido da prostituição forçada. As suas mães frequentemente estavam infectadas pelo vírus da SIDA. Interrogava-me, sem estar a ousar falar, se as duas lactentes recentemente arrancadas ao mar não estariam elas já doentes, elas também, quando o piloto assinalou um pequeno barco preto, voltado e vazio, que derivava sobre a nossa direita.

Este tipo de embarcação ligeira, frequentemente de má qualidade, é o barco mais frequentemente utilizado pelos passadores, que se servem também de barcos de fibra de vidro, de qualidade frequentemente fragilizada por uma construção apressada, uns e outros equipados de motores fora de borda de 40 cavalos. Estes barcos partem das margens com a sua sobrecarga de passageiros, jerricãs de gasolina, reservas de água e de alimentos.

Os passageiros, cujos papéis de identidade terão, na sua maior parte do tempo, sido roubados, entregues a si mesmos (os passadores ficam nas margens), têm como única instrução colocarem o leme. Às vezes estão equipados de compassos, de GPS ou de telefones satélites (Turaya SO-2520). O material utilizado continua a ser sempre o mesmo, sinais da existência de redes estruturadas e estáveis.

O preto da pequena embarcação fazia uma mancha preta sobre o mar. Estes pequenos barcos assim como os barcos de fibra de vidro, sempre no

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limite de flutuação, são frágeis, ligeiros, indefesos perante uma qualquer rabanada de vento, e mesmo de uma má vaga. O Verão é também a estação de tempestades tão rápidas quanto brutais. Nunca são longas, mas mostram-se impiedosas para os frágeis barcos da imigração. Os marinheiros franceses do Arago sabem disso alguma coisa, eles que, em vão, assinalaram ao responsável da Frontex (nesse dia um oficial alemão) uma embarcação a algumas horas de uma rabanada de vento já previsto. Decidir não lhes levar assistência, era condenar os 30 passageiros a uma morte certa. Nenhum sobreviveu. Todos os candidatos à partida conhecem os perigos, mas é demasiado tarde para eles voltarem para trás. E voltar para ir para onde? Para o deserto? Sem dinheiro? A sua travessia dura em geral dois a três dias. Em casos de avaria ou erro de direcção, pode durar dez dias. O seu destino prioritário é a ilha de Lampedusa, mais raramente a Sicília. Malta é, diz-se, apenas frequentemente um destino por defeito (mas em 2008, 2 522 imigrantes ilegais mesmo assim alcançaram o solo maltês, ou seja, um pequeno milhar a mais do que em 2006 e que em 2007).

Conhecemos o número dos que chegam, mas nunca o dos desaparecidos. Como é que este pequeno barco que andava à deriva, vazio, debaixo das nossas asas não levava passageiros? Morreram quando estavam quase a alcançar o fim pelo qual tinham aceitado tantos sofrimentos e privações. Nunca as suas famílias saberão no que eles se tornaram. Mortos, sem sepultura, sem epitáfio, sem nome, solitários e mudos na morte como se assim tivessem estado durante os últimos meses da sua vida. Uma hora depois, apercebíamo-nos da frente ensolarada das falésias de Dingli e sobrevoámos numerosas reentrâncias da costa. Entre Gozo e Comino, as explorações de criação de atuns desenhavam círculos na água. Dois dias depois, soubemos que o barco grande sobrecarregado que sobrevoámos durante muito tempo e que com pesar tínhamos deixado nunca chegou a lado nenhum. Os sobreviventes destas modernas odisseias são colocados, à chegada, em Malta num campo de detenção esperando ser interrogados e fixado o seu estatuto. Os estrangeiros não reconduzíveis são devolvidos à liberdade, depois de dezoito meses de

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detenção (é um máximo; a média é de um ano). A maior parte refugia-se nos campos abertos, como o campo de lona de Hal Far. Saem de manhã do seu abrigo para procurarem trabalho para o lado de Marsa.

Tinha chovido toda a noite quando fui a Marsa, numa manhã de Dezembro; como sempre em Malta, quando chove com abundância, certas ruas ficam transformadas em rio. A chuva tinha cessado à minha chegada perto do porto. Às 5 horas da manhã, as ruas deste baixo bairro em metade abandonado ainda estão desertas. Seguidamente, a igreja abriu as suas portas, ao mesmo tempo que dois ou três cafés, e os primeiros fiéis atravessaram a praça. Foi nesse momento que começaram a chegar, como sombras que deslizam nas últimas cortinas da noite. Sozinhos, ou em pequenos grupos, duas ou três bicicletas, bem vestidos e com a cabeça enfiada no capuz da sua parca para se protegerem do vento matinal. Agruparam-se em diversos lugares à beira da estrada, nomeadamente em redor de uma rotunda. É aí que têm o hábito de esperar uma eventual contratação. Automóveis passam, param, o motorista negoceia o preço do trabalho para o dia ou para a semana.

No início do mês de Dezembro de 2008, Brice Hortefeux, ministro da Imigração, da Integração, da Identidade nacional e do Desenvolvimento Solidário, anunciou que a França acolheria, em 2009, 80 imigrantes vindos de Malta. Encontro neste momento Tonio Borg, o simpático ministro maltês dos Negócios Estrangeiros, por ocasião de uma recepção dada na casa de campo Arrigo. Falamos das tradições de Natal em Malta, dos infantários animados, da Córsega, de Bonaparte (o escritório de Tonio Borg no ministério tinha sido, em Junho de 1798, e durante alguns dias, o escritório e o quarto de dormir do general francês), depois perguntei-lhe sobre o que pensa da decisão francesa. “Excelente! Isto mostra que a Europa não é apenas a afirmação comum dos nossos egoísmos. Sabe, quando falei desta eventualidade a um ministro francês há alguns anos, uma mulher, disse-me: ‘Peçam tudo o que quiserem, excepto isso!’ Progredimos.” A notícia é muito recente. Muitas perguntas permanecem ainda, quanto aos procedimentos a fazer.

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No dia seguinte, tomo contacto com o Padre Joseph Cassar, jesuíta que anima a secção maltesa Jesuit Refugees Services, uma organização internacional criada nos anos 80 aquando do drama dos boat people. Alto e magro, bonito rosto enquadrado por uma barba curta e branca, de óculos leves, de olhos sombrios, transbordante de uma bondade voluntária, de calma também, o Padre recebe-me no escritório da WS Aloysius's Gonzaga College, sob uma fotografia do Pai Arrupe tirada no Japão. Em redor do jesuíta, alguns membros da sua equipa, um outro padre da sua companhia, dois eritreus, e três mulheres, das quais uma jovem francesa, Céline. “Existimos em Malta desde 1993”, diz o padre Cassar. “Era necessário então responder ao número crescente de iraquianos imigrados, na sua maior parte cristãos, seguidamente bósnios que procuram refúgio em Malta depois de uma passagem pela Líbia. Desde 2002, ocupamo-nos dos imigrantes africanos chegados por barco. São os boat people de hoje. É a mesma tragédia que aquela que se desenrolou ontem no mar da China, e que Bernard Kouchner conhece bem”. A única diferença, certamente, é que agora, é aqui, na nossa Europa, no Mediterrâneo.

Quando o interrogo sobre se é possível avaliar o número de desaparecidos, responde após um silêncio. “É impossível sabê-lo com precisão. Mas tentamos fazer avaliações. Todos os candidatos à viagem são organizados por famílias, por fratrias ou por aldeias, e comunicam por telemóvel. Quando um barco está em dificuldade, ou estão sem notícias, acontece que as famílias nos contactam. Chegamos assim a fazer algumas avaliações. Pensamos que, em cada ano, entre 600 e 1 200 imigrantes morrem no Mediterrâneo”. Mais de um terço dos que partem não chegariam a terra firme?

As primeiras tempestades de Outono desencorajam a aventura da travessia. Em meados de Novembro, um moderno paquete de cruzeiro não teve um grande azar ao entrar no porto de Palermo? Mas durante alguns meses ainda, corpos levados pelas correntes encalhavam na margem do Sul da Sicília; os pescadores de Malta e outros continuam a apanhar restos de homem nas suas redes. Acontece, no entanto, que alguns audaciosos, aproveitando o

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período de bom tempo, tentam ainda a travessia. O padre diz-me que, no fim de Novembro, um cargueiro russo socorreu várias dezenas de naufragados. “Isto pelo menos prova que nem todas as embarcações desviam a sua rota quando se apercebem de um barco em dificuldade. Certamente”, responde-me o padre. “A solidariedade das pessoas que navegam no mar não morreu, ainda que todos tenhamos conhecimento de dramáticas entorses às regras de assistência e de salvamento”. Quando deixo o seu escritório, o padre Cassar mostra-me um fresco pintado por congoleses. É uma pintura naif, muito figurada, que representa a sua terrível viagem e se assemelha a uma dança macabra, apesar das cores vivas, dos vermelhos e dos amarelos.

Os povos em torno do Mediterrâneo procuraram sempre as eternas promessas da vida. Esta procura deu frequentemente aos homens boas razões para abandonar as suas aldeias, as suas cidades e de se irem embora. Gregos, fenícios, cartagineses, deixaram anteriormente as suas margens para seguirem a rota de Ulisses. Mais perto de nós, em pleno século XIX, numerosos franceses, artesões nas cidades, trabalhadores na casa dos quarenta e mais anos, embarcados no fundo de porão de batelões, seguidamente sobre fragatas, atravessaram o Mediterrâneo para irem fundar colónias, explorações agrícolas e aldeias, em regiões pantanosas ou zonas de arbustos bravios. E no século XX, quantas travessias no outro sentido! Camponeses do Rif, do Chouf ou de Kabylie vindo trabalhar nas minas e nas fábricas francesas. Franceses da Argélia retornando a França apenas com a sua mala como património. Tudo isso não se pode ter passado sem dor.

A História continua apaixonante e terrífica. Mas hoje, a única promessa cumprida, e demasiado frequentemente, é o túmulo. Ulisses é negro e morre no mar, no silêncio das ondas, depois de meses de espera, de aflição.

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Nunca encontrará o rei mago Baltazar. O Mediterrâneo, onde procuramos infatigavelmente o rosto da sabedoria e da beleza, não deve tornar-se num cemitério. Daniel Rondeau, “Boat people d’aujourd’hui”, Le Monde, 26 de Março de 2009. Negro italiano e a minha vida de obstáculos Pap Khouma

Eu sou italiano e tenho a pele de cor negra. Um negro italiano, como já foi dito no controlo de passaportes do aeroporto de Boston, por agentes de segurança americanos de origem africana. Mas fazem alguma ideia do que significa ser italiano e ter a pele de cor negra na Itália de 2009?

Quando vou aos serviços a Milão pedir a emissão de um certificado, mostrar o meu passaporte ou o meu bilhete de identidade de nacionalidade italiana, acontece-me que a funcionária dos serviços, sem sequer olhar para os meus documentos de identidade, me olha para a cara e me pede o visto de autorização de residência, documento este que nenhum cidadão italiano possui. Lembro-me de uma ocasião, num dos serviços estatais da região de Milão, em que a funcionária ficou surpreendida pelo facto de eu poder ter o bilhete de identidade italiano e chamou dois colegas para a ajudar, colegas estes que deixaram as pessoas numa fila de espera para o poder fazer. A conversa foi mais ou menos o que se segue:

“Deu-me o seu bilhete de identidade italiano e diz-me que não tem nenhum documento de autorização de residência. Como é que isto é possível?” “Como é que conseguiu que lhe dessem um bilhete de identidade, se não tem uma autorização de residência... Diga-me? Onde é que obteve este documento?

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Compreende a língua italiana?”. “Eu tenho autorização de residência”, foi o que me limitei a responder.

No documento emitido pelos serviços em Milão (e pelas mãos de três funcionários dos serviços da cidade), foram impressas as palavras “cidadão italiano”, mas eles continuaram a só se concentrarem na cor negra da pele da minha cara e enquanto isso as pessoas das duas filas de espera começaram a perder a paciência.

“Mas, porque é que não lê o que está escrito no documento?” Sugeri eu. Mas, surpresa, foi o que ela me disse a seguir. “O senhor é um cidadão italiano? Porque é que não mo disse, logo? Não estamos habituados a ver um ‘extra-comunitário’” Esta afirmação parece ter algum sentido, mas se, para sermos rápidos, nos lembrarmos de que os funcionários são cidadãos italianos e respondermos então frases como: “tem um passaporte italiano, mas não é italiano”. Ou, ainda, com um sorriso: “não tem a nacionalidade italiana como nós, o senhor só tem a cidadania italiana, porque é extra-comunitário”. Quando eu morava perto de Viale Piave, na zona central de Milão, aconteceu-me uma noite, enquanto eu estava para abrir o meu carro e tinha as chaves na mão, ter-se uma pessoa aproximado de mim e perguntado peremptoriamente porque é que estava a abrir o carro. Instintivamente respondi: “Porque o estou a roubar! Chame a polícia imediatamente”. E o justiceiro, com ar de imbecil, não teve outra saída que ir-se embora. Numa outra ocasião, em Milão, às oito da manhã e numa avenida com muito movimento, a minha companheira que ia a conduzir, inadvertidamente, deixou-se passar de faixa de rodagem na rua e bateu numa mulher que ia numa scooter. E correu para ela para se certificar como é que ficou a infeliz. Eu segurei o volante para deslocar o carro e deixar passar o tráfego na hora de ponta. Outra mulher (branca) atrás de nós desceu do seu carro e dirigiu-se para a minha mulher (branca), com um ar de pânico e disse-lhe: “Enquanto a senhora está aqui a olhar, um extra-comunitário está-lhe a roubar o carro”. “Não é um ladrão, ele é o meu companheiro”, respondeu-lhe ela.

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Todas as vezes que mudei de casa, enfrentei sempre uma espécie de ritual da mudança. Em primeiro lugar, cumprimentava com um sorriso moradores com quem me cruzava no hall de entrada: “Olá, bom dia!” ou à noite “boa noite”. Com os jovens tudo ia bem. Quanto aos adultos, estes são mais desconfiados. Eu posso entendê-los até que me perguntam se eu moro lá, porque é a primeira vez que nos encontramos. Mas fico espantado quando respondo a frases do género: “Não compre nada. Aqui não pode vender”. “Quem o deixou entrar?”.

Em Setembro deste ano estava com o meu filho de 12 anos e estávamos à espera da chegada do metro na estação de Palestro. Como sempre, os altifalantes pediam aos passageiros que não ultrapassassem a linha amarela de segurança. Um senhor idoso chamou o meu filho: “Eles estão a falar consigo, menino. O menino passou a linha amarela. Sabe, devia saber que aqui é proibido passar para além da linha amarela... mal-educado”. Indiquei ao senhor já de idade que o meu filho estava longe da linha amarela, mas ele continuou a insistir: “vê-se mesmo que não deve estar neste país... volte para casa, escória do mundo”.

Há já algumas semanas atrás, entrei na tabacaria do aeroporto de Linate para comprar um jornal. O empregado da caixa era um jovem todo tatuado e dirigi-me a ele para lhe pagar mas este apontou-me uma outra caixa sem ninguém. Paguei, e dirigi-me para a saída, quando o jovem começou a gritar para a jovem colega da outra caixa: “Esse homem de cor pagou-te o jornal?”. A caixa respondeu, gritando: “Sim, o homem negro pagou”. Voltei atrás e disse-lhes: “Não há necessidade de gritar desta maneira, com uma mensagem desta forma. Viu bem que eu paguei o jornal”. “O senhor viu-me bem? Você sabe com quem está a falar?” Olhe bem para mim! Sabe o que eu sou? Olha, ele percebe o que é que eu sou?”. Ele tentava intimidar-me. “Racista!”, disse-lhe eu. “Sim, eu sou um racista. Tenha muito cuidado”. “Você é um idiota”, respondi.

Quem vive situações destas no dia-a-dia há mais de 25 anos e eventualmente as aceita finge que não foi nada para poder viver sem ficar

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louco, ou então pode tornar-se um desconfiado, um mal-encarado, cheio de “preconceitos ao contrário”, muitas vezes no limite de correr o risco de confundir as situações e de ver racistas surgirem-lhe por todos os lados, de perder a cabeça, de gritar e de começar a insultar as pessoas. E o seu acusador que tem a faca em punho, calmamente diz usando uma “fórmula” fixa, mas muito eficaz: “Olha, está a gritar, isto é um insulto. Ele é apenas um convidado em minha casa... são todos minhas testemunhas”.

Assisti, por acaso, à representação de uma banda musical em Aguzzano. Quando quase toda a gente se foi embora vi no meio da praça uma bandeira italiana a arder sem nenhuma explicação plausível. Eu não me lembrei de a apagar, ainda que estivesse perto. Que coisa pensariam, ou como é que as pessoas reagiriam ao verem um “extra-comunitário” na praça de uma pequena cidade a segurar a bandeira italiana a arder? São muitos, muitos símbolos em conjunto. Deixei a bandeira a arder em boa paz com todos.

Mas eu tenho, por vezes, apreciado calmamente, o comportamento dos agentes de segurança da Praça do Duomo, em Milão. Eu não queria chegar tarde ao trabalho e ia a correr no meio das pessoas. De repente, senti-me agarrado pelas costas e empurrado. Eu vi-me diante de um jovem polícia de uniforme que me gritou para entregar os meus documentos. Eu dei o meu bilhete de identidade ao polícia que, já furioso, e sem o abrir, mandou-me acompanhá-lo. Chegou à esquadra, disse aos seus colegas: “Estes extra-comunitários comportam-se de forma tão arrogante”.

Felizmente, as minhas explicações não foram desmentidas pelos colegas que assistiram aos factos. Os polícias verificaram cuidadosamente os meus documentos e depois de terem concluído que o seu jovem colega tinha errado alargaram-se então em desculpas. Também foram mesmo desculpados por eu ter chegado atrasado ao trabalho. Depois de tudo isto, tenho a impressão de que, em comparação com a maioria das pessoas, para os polícias não parece anormal encontrarem-se em face de um italiano de pele negra ou morena. “Nós não estamos acostumados!”, parecem sempre dizer, por todo o lado, nove em cada dez pessoas. É uma desculpa que não colhe depois de vivermos e

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trabalharmos aqui há mais de trinta anos, de nos termos casado italiana/italiano, termos filhos de cor mestiça ou não, que crescem e são educados em escolas e universidades italianas.

Um facto chocante foi quando há três anos fui atacado por quatro inspectores da ATM em Milão e acabei na sala de urgência do hospital. Ainda hoje estou a enfrentar o processo, mas com os controladores como vítimas e eu como réu. Uma coisa é certa, eu ainda tenho fé na justiça italiana.

Pap Khouma, “Io, nero italiano e la mia vita ad ostacoli”, La Repubblica, 12 de Dezembro de 2009. Disponível em http://www.repubblica.it/cronaca/2009/12/12/news/io_nero_italiano_e_la_mia_vita_ad_ostacoli-1820188/.

Conflito racial atinge cidade italiana e Máfia é suspeita Rachel Donadio ROMA — Mais de mil trabalhadores africanos foram metidos nos autocarros e comboios na região sul da Calábria, na Itália, no fim-de-semana e foram enviados para os centros de detenção de imigrantes, na sequência de alguns dos piores distúrbios no país nos últimos anos.

O confronto começou na noite de Quinta-feira em Rosarno, uma cidade

composta maioritariamente por trabalhadores, entre pomares de citrinos na Calábria, bem no Sul da Itália, depois de um imigrante legal do Togo ter sido levemente ferido num ataque à mão armada nos subúrbios de uma vila próxima. Não está claro quem é que puxou o gatilho — as autoridades disseram que estão a investigar se foi o crime organizado (Máfia) que provocou os motins — mas as consequências foram graves.

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Culpando os racistas pelo ataque, dezenas de imigrantes queimaram carros e partiram vitrinas em Rosarno durante dois dias de tumultos, atirando pedras aos residentes locais e lutando contra a polícia. Mais de 50 imigrantes e polícias ficaram feridos, nenhum gravemente, e 10 imigrantes e habitantes locais foram presos antes das autoridades começarem a enviar os imigrantes para os centros de detenção, noutros lugares no Sul da Itália, no Sábado.

As imagens transmitidas da Calábria, no fim-de-semana — carros incendiados e imigrantes africanos irritados a arremessarem pedras — foi o exemplo mais vivo das crescentes tensões raciais em Itália, as quais têm sido agravadas por uma crise económica cuja profundidade só recentemente foi reconhecida no contexto do diálogo nacional. Quer a economia oficial quer a economia subterrânea dependem cada vez mais dos imigrantes, enquanto a Itália continua a estar dividida entre a aceitação desta realidade e a xenofobia. Os motins também mostraram e de uma forma intensa, um lado do país raramente mostrado nos roteiros turísticos. No domingo, as autoridades começaram a demolição dos acampamentos improvisados fora de Rosarno, onde centenas de imigrantes viviam, segundo os grupos defensores dos direitos do Homem, em condições sub-humanas. Estes muitas das vezes recebem menos do que20 euros por dia na apanha de fruta, um trabalho que muitos italianos consideram muito abaixo deles. Os sindicatos do crime organizado são conhecidos por terem um controlo forte em todos os níveis da economia da Calábria. “Este evento trouxe à luz do dia algo que nós, que trabalhamos no sector sabemos bem, mas de que ninguém fala: que muito da realidade da economia italiana está baseada na exploração do trabalho a baixo custo da mão-de-obra estrangeira, que vive em condições sub-humanas, sem direitos humanos”, diz-nos Flavio Di Giacomo, o porta-voz da Organização Internacional para as Migrações, em Itália.

Os trabalhadores vivem em “semi-escravidão”, acrescentou. Di Giacomo, que acrescenta: “É vergonhoso que isto esteja a acontecer no coração da Itália”.

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O Papa Bento XVI alterou o discurso que tinha preparado para a sua mensagem de Angelus de Domingo, para denunciar a violência na Calábria. “Um imigrante é um ser humano, diferente na origem, na cultura e na tradição, mas uma pessoa a respeitar, com direitos e com deveres”, disse o papa. Criticou ainda a “exploração” dos imigrantes.

Não é totalmente claro se todos os imigrantes deixaram voluntariamente a região para irem para os centros de detenção ou se alguns deles foram forçados a sair. Numa reconstrução do dia de violência, a polícia disse que estava a proteger os imigrantes contra supostos assaltantes, pelo menos, um dos quais brandia uma pistola.

Alguns imigrantes disseram à imprensa italiana que havia calabreses que tinham atirado contra eles e tinham-nos espancado com varas durante os motins e um editorial de primeira página do jornal La Repubblica, no Domingo, comparou a situação de violência à actuação do Ku Klux Klan nos Estados Unidos, na década de 60. Mas outras reportagens disseram que muitos imigrantes tinham fugido dos seus acampamentos apressadamente antes da polícia ter começado a limpar o terreno com bulldozers. Nem todos os imigrantes parecem ter deixado a cidade, mas aqueles que estão nos centros de imigração com residência regular, ou que pediram asilo político, são livres de saírem, afirmou o ministro do Interior, Roberto Maroni, no Domingo, numa entrevista na televisão. Os outros, segundo ele, serão identificados e deportados.

Os motins em Rosarno foram um caso raro de uma cidade inteiramente envolvida pela violência contra os imigrantes. Em Setembro de 2008, a Itália enviou cerca de 400 membros da Guarda Nacional para Castel Volturno, fora de Nápoles, depois de protestos violentos terem eclodido a seguir à morte de seis imigrantes africanos em confrontos com a Camorra, a máfia napolitana. Em Fevereiro passado, os imigrantes incendiaram o centro de detenção na ilha de Lampedusa, onde muitos tinham sido detidos e onde aguardavam a deportação.

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Há 4 milhões de imigrantes legais em Itália, para uma população de 60 milhões, e há mais ainda de imigrantes ilegais. E enquanto muitos italianos contam com eles para trabalharem nas suas empresas ou para cuidarem dos seus filhos ou dos seus pais idosos, muitos italianos vêem os recém-chegados ao mercado como uma ameaça.

Em entrevistas de televisão, alguns moradores de Rosarno disseram que tinham vivido em paz ao lado dos imigrantes e tentaram dar-lhes trabalho e comida. Mas outros foram mais hostis. “Temo-los aturado ao longo de mais de 20 anos”, gritou um homem numa entrevista na televisão Sky TG24.

Nos últimos anos, o governo de centro-direita do primeiro-ministro Silvio Berlusconi emitiu um conjunto de declarações fortemente anti-imigrantes. Berlusconi, que está a recuperar depois de ter sido atingido no rosto com uma estatueta da catedral de Milão por um homem mentalmente instável no mês passado, ainda não comentou nada sobre os motins.

Mas na sua entrevista no Domingo, o ministro do Interior, Maroni, considerou a situação em Rosarno como “o fruto do tipo errado de tolerância”. Um dia antes, ele havia sido citado como tendo dito que os motins foram fruto de “muita tolerância”.

Maroni, um membro do poderoso partido Liga do Norte, conhecido pela sua linguagem anti-imigrante, também defendeu uma proposta apresentada pelo seu partido na semana passada para limitar o número de estudantes imigrantes nas aulas das escolas públicas em 30 por cento. “Às vezes eles falam línguas diferentes, e não há um equilíbrio comum na sala de aula”, disse Maroni.

Grupos ligados à defesa dos Direitos do Homem dizem-nos que muitos imigrantes africanos vêm para Itália na base do que parecem ser ofertas legais de trabalho no sector agrícola no Sul, muitas vezes mediante o pagamento a intermediários de mais de 10 000 dólares por essa oportunidade. Quando aqui chegam, confirmam estas Organizações dos Direitos Humanos, os imigrantes encontram-se frequentemente na situação em que os empresários agrícolas se recusam a honrar o seu contrato, forçando os migrantes para a situação de

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trabalho clandestino, informal, com salários muito abaixo do salário mínimo legal. Muitas vezes, os empresários que os contratam têm ligações com o crime organizado, a Máfia. O ministro Maroni também afirmou que a 'Ndrangheta, a máfia calabresa é o mais poderoso grupo do crime organizado em Itália e onde os seus membros estão vinculados por fortes laços de sangue, tornando-se difícil conseguir arranjar informadores. Na semana passada, duas bombas foram encontradas no principal tribunal de Reggio Calabria, o que foi amplamente visto como uma mensagem da 'Ndrangheta aos procuradores que tentam desmantelar os clãs.

O ministro Maroni disse ainda que a ideia de que a 'Ndrangheta tenha provocado os motins é “uma hipótese possível” que as autoridades estão a examinar. Numa entrevista ao jornal La Repubblica de Sábado, Roberto Saviano, autor do best-seller Gomorra, sobre o crime organizado na região de Nápoles, considerou que os imigrantes em Rosarno eram corajosos. “Os imigrantes são sempre mais corajosos contra os clãs mafiosos do que nós”, disse Saviano.

Rachel Donadio, “Race Riots Grip Italian Town, and Mafia Is Suspected”, The New York Times, 10 de Janeiro de 2010. Disponível em http://www.nytimes.com/2010/01/11/world/europe/11italy.html. Imigrantes enganados em Itália são evacuados de edifícios Flavio Di Giacomo Itália — Cerca de 700 imigrantes, que estavam a ocupar edifícios abandonados, sem água e sem electricidade em San Nicola Varco, a cerca de 100 quilómetros ao Sul de Nápoles, foram evacuados pela polícia italiana, sendo muitos deles transferidos para os centros de identificação e de expulsão, nas proximidades.

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Os imigrantes, todos homens jovens provenientes de Marrocos, trabalhavam sem contrato de trabalho no sector agrícola, onde eram explorados por empregadores sem escrúpulos em estufas e nos campos vizinhos.

Uma equipa da OIM (Observatório da Imigração Ilegal) descobriu em Julho que muitos dos imigrantes tinham entrado em Itália com vistos legais. Alguns disseram que pagaram cerca de 8 000 euros aos intermediários (os contratadores) em Marrocos, para obterem um contrato de trabalho sazonal, em Itália.

Uma vez no país, os imigrantes descobriram que o seu patrão havia desaparecido ou simplesmente se recusou a empregá-los.

Sem uma autorização de trabalho legal, tornaram-se migrantes em situação irregular, caindo muitos em situações de grande exploração quando conseguiram trabalho no sector agrícola. Os imigrantes, todos homens jovens, disseram que tinham sido pagos com um salário entre 15-25 euros para um dia de 12,5 horas e tiveram de pagar aos empregadores serviços como a água.

“Descobrimos que muitos imigrantes tinham informação detalhada dos empregadores italianos que se tinham recusado a contratá-los. Colhemos todas as informações relevantes e transmitimo-las ao Ministério Público local. Queríamos dar aos migrantes a possibilidade de denunciar esta fraude a fim de receberem alguma protecção”, diz Peter Schatzer, Chefe de Missão da OIM em Itália.

Sem uma resposta das autoridades competentes, a OIM está preocupada com a hipótese de que a possível deslocação dos migrantes enganados irá pôr um fim ao inquérito judicial em curso.

“Isto efectivamente significa que aqueles que organizaram e beneficiaram deste esquema não podem ser levados perante a justiça, enquanto os imigrantes, que foram enganados por patrões sem escrúpulos, correm o risco de serem denunciados como migrantes irregulares no âmbito de uma nova lei”, diz Peter Schatzer da OIM. “Seria também um precedente no sentido de que a quota de trabalhadores sazonais pode ser utilizada para enganar mais imigrantes em busca de melhores condições de vida”.

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O trabalho ilegal em Itália, especialmente no sector agrícola, é generalizado. As estatísticas oficiais mostram que representa cerca de 15,9 a17,6 por cento do produto interno bruto do país.

A procura por esse tipo de trabalho é o centro de uma nova campanha que a OIM lançou no mês passado. “Compre de modo responsável” pretende não só sensibilizar as pessoas para o lado da procura da exploração do trabalho, mas também para incentivar os consumidores a desempenharem um papel activo para acabar com este tipo de exploração.

Para saber mais sobre a campanha, consulte www.buyresponsibly.org. 

Flavio Di Giacomo (IOM Roma), “Deceived Migrants in Italy Evacuated from Buildings”, 17 de Novembro de 2009. Disponível em http://www.iom.int/jahia/Jahia/media/press-briefing-notes/pbnEU/cache/offonce?entryId=26644. Papa apela a Itália acerca dos imigrantes

O papa Bento XVI apelou aos italianos para respeitem os direitos dos imigrantes.

Isto acontece depois de uma onda de violência contra os trabalhadores

rurais africanos no Sul da Itália, que deixou cerca de 70 pessoas feridas. A polícia evacuou centenas de africanos em autocarros da cidade de

Rosarno, na Calábria. Correspondentes dizem que o problema está intimamente relacionado com o crime organizado na região.

O papa Bento XVI fez um forte discurso a favor dos direitos dos pobres trabalhadores rurais africanos, que têm sido alvo de violência nos últimos dias. Cerca de 70 pessoas ficaram feridas, incluindo os imigrantes, moradores e polícias que estavam a tentar restabelecer a ordem.

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“Um imigrante é um ser humano, diferente apenas pela origem de onde ele vem, pela sua cultura e tradição”, disse aos peregrinos reunidos na Praça de São Pedro no Vaticano. “Convido todos a olharem olhos nos olhos os seus vizinhos e olharem para a sua alma”. “Eles são pessoas a respeitar, com direitos e com responsabilidades, e devem ser respeitados especialmente no mundo do trabalho, onde a exploração do trabalho é uma tentação”.“Temos de ir ao cerne do problema, ao significado e à importância do ser humano”, disse o papa. “A violência nunca deve ser um meio para resolver as dificuldades”. “O problema é um problema humano e convido todos para olharem cara a cara as pessoas próximas e verem a sua alma, a sua história e a sua vida e dizer para si: é um homem e Deus ama-o como Deus me ama a mim”.

Hiperligação Mafia

O correspondente da BBC David Willey de Roma diz que muitos dos

imigrantes do Norte e Oeste da África têm estado a auferir salários de fome a trabalhar nas frutas e nos produtos hortícolas — trabalho árduo que os italianos não querem fazer. O mercado de trabalho é controlado pela máfia local, chamada de 'Ndrangheta, que se pensa estar a empregar um número crescente de trabalhadores sazonais ilegais diariamente.

Os trabalhadores vivem em condições infra-humanas e são pagos com salários muito baixos, para além de que eles têm de pagar comissões aos seus contratadores, diz o correspondente. Os salários são pagos em dinheiro, as leis laborais e os regulamentos quanto a segurança e à saúde são ignorados, e muito raramente os impostos ou contribuições sociais são pagos.

A máfia calabresa tornou-se uma das mais poderosas organizações criminosas da Itália nos últimos anos, controlando grande parte do comércio de narcóticos da Europa. O ministro do Interior italiano, Roberto Maroni, provocou uma tempestade de críticas da oposição de esquerda, ao sugerir que a violência foi o resultado de não se abordar a questão dos trabalhadores ilegais no país. “Há uma situação difícil em Rosarno, como noutros lugares, porque

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durante anos a imigração ilegal — que alimenta as actividades criminosas — tem sido tolerada e efectivamente nunca nada foi feito para tratar o problema”, terá ele dito segundo o jornal italiano La Repubblica. O líder da oposição, Pierluigi Bersani, afirmou: “Maroni está a passar a bola” ... “Temos de ir à raiz do problema: a máfia, a exploração, a xenofobia e o racismo”.

Disponível em BBC NEWS: http://news.bbc.co.uk/2/hi/8450657.stm. Questões raciais em Rosarno Daniele Mastrogiacomo Em substituição do campo de Rognetta far-se-á uma praça. Devemo-nos apressar. Exigem-no as autoridades, o país quer esquecer Os bulldozers contra o gueto da revolta e numa parede estava escrito “Igualdade” Palavras que evocam a necessidade de enfrentar, compreender o país sonhado como um paraíso, mas que, de repente, se mostra como um inferno ROSARNO — Criado por acaso, querido por muitos. Desaparece o campo de Rognetta. Desaparece um bom pedaço de diferentes humanidades. Os símbolos, as lembranças, os objectos, que a fuga repentina de 300 extra-comunitários deixa intactos, ainda estão lá. Fixos no tempo. Como uma fotografia que mostra o registo de diferentes pedaços de vida, sonhos, tristezas, solidão, miséria. No dia a seguir ao grande êxodo, apaga-se o horror e a vergonha. No lugar desta antiga fábrica de processamento de laranjas, destinado depois a acomodar durante mais de dez anos os fluxos de trabalhadores sazonais, vai ser criada uma praça. Deve-se ter pressa. Exigem-no as autoridades, o país quer esquecer. Por detrás das gruas e bulldozers surge o corpo central da antiga fábrica que nunca entrou em funcionamento: dois grandes hangares em cimento e ferro. O telhado em folhas de amianto está

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partido em vários lugares. No interior estão as divisões dos seus hóspedes. Quartos construídos com os restos de paredes que o tempo havia corroído, metal, papelão, toalhas e cobertores. Temos de avançar com dificuldade, ao longo de um caminho de túneis, de cavernas e de outras barracas.

As portas foram feitas a partir de recuperação do material de camas velhas. As janelas são feitas de madeira apanhada nos aterros de lixo. A entrada deste espaço dantesco está cheia de bicicletas. Grandes e pequenas, clássicas ou desportivas. Eram usadas para irem para os campos. Nem todos os africanos podiam pagar táxis. Nos fios esticados entre as paredes, há ainda roupa estendida. Casacos, calças, camisas. E, a seguir, dezenas de encerados, impermeáveis, botas de plástico para usar em dias de chuva, para proteger os pés quando se afundam na lama, debaixo das laranjeiras, mãos estendidas para apanhar citrinos, para encher as caixas. Dez a doze horas por dia. Em cada barraca há até cinco camas. Dificilmente há espaço para entrar e para sair. Redes antigas, alguns beliches, muitos sacos de dormir espalhados pelas carpetes e pelos tapetes. Os telhados são cobertos com um pano encerado, feitos com pranchas de madeira pregadas, fixas entre si por outras tábuas e pregos.

Ao fundo está uma pequena cozinha e um cilindro a gás. Ficou no fogão e lá está, uma panela cheia de água. Perto dali, numa mesa já torta, uma tigela de arroz. A dispensa está debaixo da cama. Pratos, plástico e tachos de barro. Latas, copos, talheres. Pacotes de macarrão, sacos de batatas. As camas estão desfeitas, as roupas deixadas a granel. Não houve tempo para levar nada, mesmo nada. A fuga foi desencadeada repentinamente. Tudo está como estava nessa manhã. Como todas as manhãs. O despertador na escuridão, o rádio arranhando música crioula, ritmos africanos, tambores e zabumbas, cânticos longínquos, cheios de nostalgia. As paredes estão cobertas com fotografias. Crianças, mulheres. Caras alegres, sol. Numa pequena mesa, colocada no centro, entre duas camas, lençóis, jogos de cartas, cadernos. Um cão, seguido por um cachorro, surge de um beco. E a única presença de vida neste deserto que em breve será destruído pelas escavadoras. Cimento, folhas de zinco,

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roupas e alimentos. Tudo será esmagado, desfeito, comprimido. Aproxima-se um polícia: “Não podemos salvar coisa nenhuma. Nem mesmo as roupas. Há o risco de infecção. Inimaginável reciclar este material”. Duas tendas à entrada estavam destinadas à recepção. O registo, explicam os dois letreiros presos por um fio, é feito uma vez por semana. No chão está a lista de chegadas e partidas, as suas posições, os turnos de limpeza, de cozinha, de compras e fornecimentos. Na confusão do dia resistia uma ordem, uma organização que pode garantir uma coexistência. Uma terceira barraca servia de escritório. Em cima da mesa, ao centro, há folhas, lápis, livros. E, depois, uma pilha de cadernos. Alguém tinha tempo e vontade para andar ainda na escola. Esse alguém aprendia italiano. O quadro é um muro pintado de branco. Existem ainda os deveres e os testes de gramática. A escrita é feita com carvão vegetal. Exercícios de tradução. Do italiano para francês. E uma palavra “Egalité” [igualdade] foi escrita na parede. Palavras que evocam ansiedade, a necessidade de enfrentar a situação. Para compreender um país com que se sonhou como sendo um paraíso e que mostra afinal ser como o inferno. Duvidar, divertir-se, ficar descontente, comunicar, considerar-se culpado, resmungar, sonhar, decidir, gritar, querer, falar, trabalhar. Os tractores começam com o seu barulho ensurdecedor. A casinhota do vigilante é reduzida a escombros. Há uma pequena multidão reunida em frente. Homens, mulheres, idosos e crianças. Observam em silêncio. Hoje não se verifica a caça ao negro. Hoje é dia de celebração e de oração. Os sinos da catedral, sobretudo na região montanhosa, chamam para as pessoas se juntarem. O pastor vai proferir palavras fortes durante o sermão. Palavras de repúdio pela violência, contra os encurralamentos, contra o êxodo imposto e forçado. Não há somente homens de cor em volta. Não acontecia nada disto desde há dez anos. Rosarno acorda atordoada e confusa. Utilizada. No seu íntimo, sente-se mais sozinha. Daniele Mastrogiacomo, “Le ruspe contro il ghetto della rivolta e su un muro c'era scritto ‘Egalité’”, La Repubblica, 11 de Janeiro de 2010. Disponível em

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http://www.repubblica.it/cronaca/2010/01/11/news/le_ruspe_contro_il_ghetto_della_rivolta_e_su_un_muro_c_era_scritto_egalit-1901775/. Declarações de Roberto Saviano, autor de Gomorra Segundo Saviano: “contra as máfias, os africanos foram mais corajosos do que nós, vamos escolhê-los como aliados”.

“A Revolta do Rosarno é a quarta maior revolta dos africanos em Itália contra as máfias” e, por isso, segundo Roberto Saviano, num comunicado à agência ANSA, são mais corajosos do que nós e não devemos por isso incriminá-los, mas escolhê-los como aliados contra a ilegalidade. “A primeira vez — lembra Saviano à Ansa — foi na Villa Literno em 1989, a segunda foi em Castel Volturno em 2008 e os dois últimos em Rosarno, sempre depois dos ataques sofridos por membros da comunidade africana. Os imigrantes parecem ter a coragem contra as máfias que os italianos perderam, pelo que a sua oposição às organizações criminosas é uma questão de vida ou morte. E seja qual for a nossa opinião sobre as formas assumidas pela revolta é necessário perceber que o facto de se terem revoltado é a parte saudável da comunidade africana que recusa aceitar algum compromisso com a 'Ndrangheta”. Para o autor de Gomorra “os imigrantes que estão a protestar são os nossos aliados no combate contra a ilegalidade e não devemos criminalizá-los. Eu gosto de sublinhar, nesta questão, e mais uma vez, que os africanos estão em Itália para fazer trabalhos que os italianos não querem fazer e para defender os direitos que os italianos já não querem defender”.

Il Messaggero, 8 de Janeiro de 2010. Disponível em http://www.ilmessaggero.it/articolo_app.php?id=25438&sez=HOME_INIT ALIA&npl=&desc_sez=.

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Em Itália, “O racismo é uma alavanca na exploração de trabalhadores migrantes sazonais”

Para Alain Morice, antropólogo, investigador no CNRS e membro do laboratório URMIS (Unidade de Investigação “Migrações e Sociedade”, da Universidade Paris-Diderot), pode questionar-se se a máfia local não está por detrás dos primeiros actos de violência que desencadearam uma caça “aos imigrantes” no Sul de Itália, matando e fazendo sessenta e sete feridos entre Quinta e Sábado.

P.: A utilização de mão-de-obra estrangeira sazonal é um fenómeno antigo na Europa?

R.: Sim, nalguns países de imigração antiga, como a França. Lembremo-nos especialmente dos belgas recrutados para a colheita de beterrabas no Norte de França, ou dos italianos na área de Marselha para a cultura de legumes ou ainda dos espanhóis para as vindimas. O fenómeno cresceu com a industrialização de determinados sectores da agricultura, o que foi acelerado na década de 70, quando Jacques Chirac foi ministro da Agricultura resultando daí uma procura significativa de mão-de-obra para culturas mais intensivas e mais pontuais. Esta tendência estendeu-se na década de 80 a Espanha e à Itália, ex-países de emigração, quando, por sua vez, estes países desenvolveram o cultivo intensivo de frutas e de legumes.

Mas trata-se sobretudo de variações do “modelo” californiano que se impôs há um século atrás, a Oeste dos Estados Unidos: recorre-se a um trabalho migrante menos caro, frágil, pois a este pode confiscar-se os seus documentos ou impedir a sua renovação, e facilmente explorável porque o objectivo destes trabalhadores de países pobres é ganhar o máximo de dinheiro num tempo mínimo. A ideia é sempre que estes estrangeiros não se devem instalar definitivamente porque, dizem as entidades patronais, se estes permanecem ao ano, tornar-se-ão então em “braços quebrados”, sem ardor no

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trabalho duro e particularmente preocupados e interessados em receber a ajuda social. O racismo é uma alavanca para a exploração destes trabalhadores migrantes sazonais.

P.: A origem e as condições de trabalho desses trabalhadores variam de país para país? R.: Existem vários modelos de mobilização da força de trabalho na agricultura que, no entanto, convergem todos para a preocupação de se assegurar a sua flexibilidade e precariedade. Em França, isto verificou-se principalmente após a integração dos trabalhadores espanhóis e portugueses na União Europeia, dos marroquinos, e numa menor escala, dos tunisinos, cujos países assinaram com a França em 1963 acordos de trabalho. Estes eram os famosos “contratos OMI”, o nome do Serviço Internacional de Migração (Office des Migrations Internationales) assinados por um período de seis meses (prorrogáveis a oito meses). Recentemente, os polacos tornaram-se a maioria, principalmente nas vindimas, mas agora são todos eles beneficiários do direito à liberdade de circulação dos trabalhadores na Europa. Estes contratos, concedidos anualmente a conta-gotas pelos governos das regiões, são simultaneamente valiosos para os empregadores e para os trabalhadores sazonais. Este sistema é suposto garantir a paz social.

A Andaluzia, no Sul da Espanha, foi no início utilizada principalmente pelos marroquinos, incluindo os de presença irregular. Mas, quando eles mostraram uma certa resistência e tentaram fazer valer os seus direitos em ser regulamentados, houve uma tentativa de diversificação. Vieram os latino-americanos (principalmente os equatorianos), presumivelmente mais pela religião e pela língua. Os países da Europa Oriental são também representados. Mulheres com filhos pequenos são agora privilegiadas pelos contratos de origem, negociados por exemplo, como na Andaluzia, entre a província e uma agência marroquina, com a participação dos sindicatos: um contingente anual de trabalhadores sazonais está disponível para os agricultores.

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No Sul de Itália, o recrutamento é principalmente informal, sob o controlo das máfias locais (por exemplo, a 'Ndrangheta na Calábria), que têm controlo sobre o sistema administrativo, o que garante um grau de impunidade para os empregadores. Recrutados na base de mentiras, ou porque não estão documentados ou por medo de serem presos, os africanos e cidadãos de países de Leste são objecto de sobre-exploração e praticamente feitos prisioneiros sob a supervisão dos chefes (“cabeças”). A revolta actual na Calábria reflecte a gravidade desta situação, embora esta seja conhecida desde que um jornalista, Fabrizzio Gatti, lhe dedicou um artigo sensacional, em Setembro de 2006. Do mesmo modo na Grécia, trata-se sobretudo de trabalho clandestino, e os trabalhadores sazonais são muito mal aceites pela população local: logo não há contestação, submetem-se.

P.: Houve já precedentes na explosão da violência que visou os trabalhadores africanos na Calábria? R.: Em 2000, na região de Almeria, na Andaluzia, após o assassinato de uma mulher espanhola por um marroquino desequilibrado, as pessoas envolveram-se numa verdadeira caça ao homem contra estes trabalhadores em grande parte em situação irregular. Estes tinham atravessado o estreito de Gibraltar em condições difíceis e tinham a intenção de permanecer em Espanha todo o ano. Hotéis mobilados, lojas pequenas e cabines telefónicas haviam-se desenvolvido na cidade. A violência racista explodiu porque os trabalhadores residentes sazonais tinham deixado fazer crer que eles se fixariam aqui, quebrando assim o pacto de invisibilidade que tacitamente permitia que tolerassem a sua presença.

O que está a acontecer no Sul de Itália é diferente. Estes eram ilegais e só estariam ali por alguns meses e mantidos em situação muito precária. Não está claro ainda, mas o surto de violência racista pode ter surgido de modo bem oportuno: os trabalhadores foram expulsos quando não eram mais precisos e até porque os preços dos citrinos são tão maus que a sua colheita deixou de ser

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rentável. Podemo-nos questionar se a máfia local não está por detrás das primeiras violências que desencadearam depois os protestos a que se seguiu uma “caça aos imigrantes”.

Entrevista de Claire Ané, “En Italie, ‘le racisme est un levier de l'exploitation des saisonniers migrants’”, Le Monde, 11 de Janeiro de 2010. Racismo: o sindroma de Rosarno Philippe Ridet

Duas viaturas carbonizadas colocadas num monte de pneus usados. À saída de Rosarno, na estrada que atravessa a planície calabresa em direcção a Gioia Tauro, estes são os únicos sinais visíveis das confrontações que, nos dias 9 e 10 de Janeiro, opuseram uma parte dos imigrantes africanos contra os habitantes desta pequena cidade calabresa de 15 000 habitantes. Não distantes, dois polícias supervisionam a entrada de um imenso hangar, onde às centenas os africanos passavam a noite durante a estação da colheita dos citrinos. Um pouco de descansos entre dois dias de doze horas, pagos a 25 euros.

Hoje, mais ninguém quer encontrar refúgio nestas correntes de ar. “É estranho ver Rosarno sem os seus Africanos”, lamenta Damiano, 16 anos, aluno do liceu La Piria. Com a sua amiga Erika, tinha organizado cursos de alfabetização para os imigrantes e também um espectáculo de Natal. “Os imigrantes estavam bem em Rosarno”, assegura. “Tratou-se apenas de uma pequena minoria que os quis expulsar. Nós prevenimos as autoridades regionais, locais. Fotografias provam-no”, recorda Dom Ennio Stamile, delegado regional da Caritas para a Calábria, a organização católica internacional na qual o Estado italiano parece ter delegado uma parte da sua política social. “As condições de vida dos imigrantes eram insuportáveis, mais cedo ou mais tarde isto tinha que acontecer. Mas ninguém nos respondeu”.

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Em dois dias de violências, Rosarno tornou-se o símbolo da infiltração mafiosa na agricultura local, da intolerância em relação aos estrangeiros, de uma forma de escravidão moderna e da impotência do Estado. O presidente da República, o primeiro-ministro, deputados desfilam na Calábria. Vêm a Rosarno para compreender. Porque é que, num país que viu emigrar 27 milhões dos seus habitantes através de todo o mundo, 1 500 africanos foram aterrorizados e em seguida expulsos a tiros de caçadeira e à paulada, com cabos de picareta.

Alessandro Campi, director científico da Fundação Farefuturo, próximo da direita, interpreta os acontecimentos de Rosarno como “um sinal”. “Mas, interroga-se, “como integrar os estrangeiros enquanto o país ainda não encontrou a sua identidade 150 anos depois do nascimento do Estado italiano? Continuamos a estar profundamente divididos, imóveis, agarrados às nossas identidades locais. A integração supõe uma mobilidade social e uma forma de unidade em torno de um projecto”. Aos seus olhos, a sociedade italiana não tem “nem um nem outro”. “Satisfazemo-nos em gerir as urgências numa forma de eterno presente”.

Em Rosarno, primeiramente apontou-se o presumível papel da 'Ndrangheta (a máfia calabresa). Está em curso um inquérito para tentar saber se as famílias mafiosas que reinam na economia local não provocaram voluntariamente “a caça ao negros” de Rosarno para fazer desaparecer estes imigrantes que se tornaram inúteis, a partir do momento em que os subsídios da União Europeia dão mais aos empresários que a venda das laranjas, das tangerinas e dos kiwis. É culpa da Camorra (a máfia napolitana) dizia-se igualmente, quando, em Setembro de 2008 em Castel Volturno (Campanie), sete africanos tinham de facto sido executados.

A culpa foi de vizinhos que se excederam, ouviu-se depois dos incêndios, na Primavera e no Verão de 2007, de vários campos de ciganos na periferia de Nápoles e de Roma… A explicação é em parte verdadeira. Mas foi necessário um artigo do diário do Vaticano, O Osservatore Romano, a 11 de Janeiro, para pôr os pratos na mesa: “Não foram somente repugnantes os episódios de

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racismo de que a imprensa se fez eco, estes conduziram-nos ao ódio mudo e selvagem para com uma outra cor de pele que julgávamos já ter sido ultrapassado... Nunca brilhámos pelo nosso sentido de abertura, nós italianos do Norte para com o Sul”.

Verona, 260 000 habitantes, situada na muito rica Veneza, a 1 000 km ao Norte de Rosarno. Aqui, reina o partido anti-imigrante da Liga do Norte. No hotel da cidade, Flavio Tosi, o jovem presidente da câmara municipal, filiado na Liga, eleito em 2007 com 60% dos votos, acaba de ser condenado definitivamente por propósitos racistas a três anos de proibição de participar em comícios políticos. Haveria uma relação de causa e efeito entre o seu discurso e o do seu partido e os acontecimentos de Rosarno “A Liga não existe na Calábria. Porque querem que sejamos os responsáveis?”

No entanto, é efectivamente este partido, com o peso dos seus quatro ministros entre os quais o do Interior, que multiplica as provocações racistas. “A criminalização” da imigração clandestina, susceptível hoje de seis meses de prisão, é a da responsabilidade da Liga. A legalização “das rondas de cidadãos” para fazer reinar a ordem e a tranquilidade? É também dela. A operação “Natal branco” numa pequena cidade de Lombardia para recensear e expulsar os imigrantes clandestinos antes das festas? Ainda ela por detrás.

A temática eleitoral é ganhadora: a Liga vale quase 30% dos votos em certas províncias do Norte e a sua influência ganha terreno. “Pela primeira vez em Itália, desde o fascismo, certas formas de racismo são assumidas no topo das instituições”, explica Enrico Pugliese, sociólogo da Universidade de Sapienza, em Roma. “Esta legitimação da xenofobia conduz a orientações violentas e, para além do mais, explícitas”.

Na cidade de Romeu e Julieta, os imigrantes representam 13% da população. Tornaram-se invisíveis, relegados nos bairros periféricos. A paz social, para o presidente da câmara municipal, assenta num único pilar: a regra. “O presidente anterior da câmara municipal era demasiado laxista”, explica. “Deixou os imigrantes instalarem-se por toda a parte, nos parques e nos jardins da cidade. Os habitantes tinham medo. Nós multiplicamos os controlos. Os

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estrangeiros devem saber que não podem viver aqui entre nós como viviam na terra deles. A Itália não é um país racista, mas os que não estão em regra devem ser punidos”.

Punidos, estes imigrantes que têm como único papel uma licença de estada já em mau estado e um aviso de expulsão, reencontramo-los em Caserte (Campanie). “A Tenda de Abraão” é um destes numerosos centros de acolhimento para alguns destes africanos que chegaram a alcançar a Itália pelo mar antes que a assinatura de um acordo de retorno com a Líbia secasse este fluxo de imigração. Apertada entre dois terrenos vagos, esta construção feia abriga 70 pessoas enquanto foi prevista para alojar uma vintena. Dorme-se aos seis a oito por quarto.

O imigrante Assim, chegado do Togo há um ano e meio, conta: “Todos os dias, por volta das 4 h 30 min, vamos para um dos carrosséis da cidade. Os empregadores da construção vêm contratar-nos. Outras vezes, são os empresários das plantações de tabaco. Os dias, esses duram desde o nascer do dia até ao cair da noite. Sou pago a 25 euros por dia”. O empregador nunca contrata duas vezes de seguida os mesmos imigrantes, com medo de ser reconhecido e denunciado. “Por vezes acontece terem boas relações com eles?”, perguntamos. “Levam-nos para trabalhar, não para saberem coisas das nossas vidas”, diz Michel Djibo, da Costa do Marfim.

Sair, ter contactos com a população? Demasiado arriscado. Demasiado humilhante também. “Nos bares, se pedimos um café, é-nos servido em copo de plástico. Como se tivéssemos alguma doença contagiosa”. Mamadou, da Costa do Marfim, tem os olhos cheios de lágrimas: “A vida é demasiado difícil aqui. É necessário um papel antes de se poder começar a viver, trabalhar, encontrar um alojamento. Os negros vivem mal, mal, muito mal. Somos infelizes, encarcerados. Os italianos consideram-nos como cães. Não, nem mesmo isso. Os animais são tratados melhor que nós”. Gian Luca Castaldi, que gere este centro de acolhimento, tenta uma explicação: “Não é necessariamente o racismo por parte dos italianos, mas a inveja. Para um jovem daqui a viver à esquina, o máximo da ambição social é obter uma indemnização de

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desemprego. Vêem chegar tipos que arriscaram a sua vida para fazer os trabalhos que os mesmos não querem fazer. No fundo, invejam a coragem destes imigrantes”.

Reduzidos à uma forma de escravidão, estes imigrantes não escolheram a Itália por azar. Sectores inteiros da economia, a construção e a agricultura, assentam na exploração de clandestinos. Quanto menos estiverem em regra, mais são maleáveis e exploráveis “Os imigrantes continuarão a desafiar todas as leis, mesmo as mais restritivas, enquanto souberem que na Itália não há necessidade de autorização de residência para se poder trabalhar”, escreve o economista Tito Boeri, em La Repubblica.

A situação só se tem agravado. Enquanto a lei prevê um prazo máximo de vinte dias para obter a renovação da licença de estada, os imigrantes devem doravante esperar entre cinco e dezoito meses para obter este mesmo documento. Vontade deliberada por parte da administração de deixar esta população numa situação frágil a fim de a poderem explorar ainda mais? “A lei produz voluntariamente a clandestinidade. É uma forma de discriminação institucional”, afirma Shukri Saïd, fundadora da associação Migrare, que efectuou uma longa greve da fome para denunciar as lentidões da administração.

Director do Instituto de Estudos Sociais Cencis, que ausculta desde há mais de quarenta anos a vida dos italianos, o sociólogo Giuseppe Rita assegura, ele, que “os Italianos não são mais racistas que os restantes europeus quando confrontados com a imigração, mas estão habituados a um certo sentimento de superioridade”. “Os napolitanos [explica] tentaram mandar embora os americanos quando se libertaram em 1943. Os italianos imaginam-se sempre mais fortes que os últimos que chegaram”.

Philippe Ridet, “Racisme: le syndrome de Rosarno”, Le Monde, 3 de Fevereiro de 2010.

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Nos guetos de Itália, este não é um homem! De novo, ponderem novamente Se este é um homem, Como um sapo em Janeiro, Que se põe em movimento no escuro e na névoa E volta quando há névoa e está escuro, Que se estatela na borda da estrada, Cheira a quivi e a laranjas do Natal, Sabe três línguas mas não fala nenhuma, Que disputa com os ratos o seu jantar, Que tem dois chinelos de reserva, Um pedido de asilo, Um diploma de engenharia, uma fotografia, Mas esconde tudo isso por baixo dos cartões E dorme sobre os cartões da Rognetta, Sob um tecto de amianto, Acende o lume com o lixo, Que está no seu lugar, Em nenhum lugar, E sai da toca, depois do tiro ao alvo, Dizendo «Falhaste!», Claro que falhou, O Homem Negro Da miséria negra, Do trabalho «negro», e de Milão, Pela esmola de uma atenuante Escrevem maiúsculas: NEGRO, Rejeitado por um capataz, Cuspido por um pobre cristo local, Agredido pelos seus patrões,

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Pelos cães deles, Invejando os vossos cães, Invejando a prisão (Um bom sítio para enforcar-se), Que mija aos cães, Que morde os cães sem dono, Que vive entre um NÃO e um NÃO, Entre um Município-Comissariado da Máfia E um Centro de Último Refúgio, E, quando morre, um peditório Dos seus irmãos a um euro à hora remete-o além-mar, além-deserto, Para a sua terra — «Para aquele país!» Meditai sobre isto que aconteceu, Sobre isto que acontece, Que Estado é este? Voltai a ler os vossos ensaiozecos sobre o Problema, Vós que adoptais à distância, Com segurança, no Congo, na Guatemala, E escreveis no aconchego, nem daqui nem dacolá, Nem bondade, coisa da Caritas, nem Brutalidade, coisa da Administração Interna, Tépidos, como um barrete de dormir, Desviais o olhar desta Que não é uma mulher, Deste que não é um homem, Que não tem uma mulher E os filhos, se tem filhos, estão longe, E pedis outra vez que os vossos filhos Não vos virem a cara.

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Adriano Sofri (Ex-político, escritor e jornalista italiano, antigo líder da Lotta Continua), tradução de Carlos Araújo. Poema publicado pelo jornal La Repubblica e disponível em http://www.repubblica.it/statickpm3/rep‐

locali/repubblica/popup/2010/sofri‐poesia/01.html.

Um trabalhador imigrante passa olhando para uma nova mensagem mural em Rosarno, Itália

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PARTE I

Migrações no mundo

Ideias para uma cidadania do trabalhador

transnacional

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Passos para uma Cidadania do Trabalhador Transnacional

Jennifer Gordon

Qualquer esforço para enfrentar os desafios levantados pela migração global de trabalho exige uma tremenda humildade. A migração para trabalhar é uma força poderosa e complexa, motivada pela forte desigualdade entre países2. Estima-se que 86 milhões de pessoas estejam hoje a trabalhar fora dos seus países de origem3, em busca de melhores oportunidades para alcançar um                                                             2 O risco de se discutir a migração de trabalho como se fosse um fenómeno distinto, como eu faço aqui, é que ela implica uma distinção muito clara entre aqueles que saem de casa em busca de trabalho e aqueles que migram por outras razões, inclusive para se reunir com a família e para fugir à guerra, à perseguição ou às catástrofes naturais. Migrantes, como todos os seres humanos, têm motivações complexas e dinâmicas, interesses e ligações com outras pessoas, e em que todas elas (em combinação com as oportunidades e os regimes jurídicos com que se deparam) influenciam suas decisões sobre onde vivem e trabalham, e por quanto tempo lá permanecem. Ao mesmo tempo, um número significativo de migrantes identifica a procura de uma melhor situação económica como a motivação primária na decisão de deixar o seu país de origem. O meu estudo da migração de trabalhadores no presente relatório destina-se a abordar o papel que o trabalho tem na vida de tantos migrantes, ao invés de sugerir que "trabalhadores migrantes temporários" são intrinsecamente diferentes dos outros que vivem e trabalham fora de seus países de origem. 3 International Labour Office, Towards a Fair Deal for Migrant Workers in the Global Economy 7 (2004). Uma nota sobre o vocabulário. Eu uso a expressão "país de origem" para referir um Estado cujos nacionais partem em busca de trabalho no estrangeiro, e "país de destino" para se referir a um Estado que é essencialmente um destino para tais migrantes. Refira-se que muitos países, tanto enviam como recebem receber migrantes — por exemplo, o México é um país de origem, tendo como referência os Estados Unidos, mas um país de destino para muitos centro-americanos. Descrevo os migrantes com que estou principalmente preocupado neste artigo, e o trabalho que fazem, como trabalhadores de "baixos salários". Eu uso esse rótulo com trepidação. Não há nada inerentemente de baixos salários, quer nos migrantes, quer no seu trabalho. Apesar das minhas preocupações, no entanto, eu prefiro a expressão "baixos salários" relativamente ao pejorativo "não qualificados". Tal como Samuel Gompers apontou há já muitas décadas atrás,"Não existe tal coisa como o trabalho não

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melhor nível de vida para si e para as suas famílias. O fluxo de migrantes é configurado pela ânsia dos empregadores nos países de destino em obter de forma imediata trabalhadores de salários baixos; é facilitada pela existência de um vasto conjunto legitimado de angariadores corruptos de trabalhadores, por "especialistas" privados em imigração e pelas autoridades governamentais, e este fluxo é canalizado através de redes informais de migrantes que são o elo de ligação entre os países e as comunidades. Esta complexidade significa problemas para as políticas de migração. O mundo está farto de que tentem reformular os padrões de migração mas não só não se conseguiu atingir os seus objectivos, como também se criou uma série de novos problemas ao longo do caminho.

A humildade, então, é necessária. Mas a humildade não se pode tornar uma desculpa para se afastar da obrigação de considerar as diversas alternativas. O nosso actual mosaico de um regime de migração de trabalho tem benefícios significativos para os governos dos países de origem, que actualmente recebem remessas na escala dos 300 mil milhões de dólares por ano4, para muitos empregadores e consumidores nos países de destino, que beneficiam dos preços mais baixos que são gerados e por uma riqueza criada por uma mão-de-obra barata, para os angariadores de trabalho e, de maneira um pouco complicada, para muitos dos próprios imigrantes. Mas os seus prejuízos são enormes. A corrupção é endémica. A imigração ilegal está a tornar-se norma. Os migrantes são maltratados no trabalho e com uma regularidade revoltante. Os trabalhadores nacionais com níveis de escolaridade

                                                                                                                                   qualificado, por si só. A distinção entre os assalariados é somente de grau". Dorothy Sue Cobble, Reviving the Federation's Historic Role in Organizing 23-24 (Inst. for the Study of Labor Org.; Working Papers, 1996). Ver também Roger Waldinger e Michael I. Lichter, How The Other Half Works: Immigration And The Social Organization of Labor 10 (2003) ("Ao mesmo tempo que pode haver alguns trabalhos para os quais o rótulo de "não qualificados" significa o que diz, esse número é pequeno". 4 International Fund for Agricultural Development (IFAD), Sending Money Home: Worldwide Remittance Flows to Developing Countries, http://www.ifad.org/events/remittances/maps/.

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mais baixos, aqueles que menos os podem fazer, parecem pagar o preço mais alto pelo afluxo de imigrantes5.

Podemos nós fazer melhor? A migração de trabalhadores é uma força enorme, mas ela não é (com poucas excepções) uma força da natureza. As leis e as políticas não podem conduzir o comboio da migração, mas também não são irrelevantes para determinar a sua direcção. Os regimes jurídicos nacionais e internacionais directa ou indirectamente ajudam a moldar as decisões que os trabalhadores, os migrantes e os outros tomam. Ao mesmo tempo, uma nova política deve reflectir, para o trabalho, a lógica interna da migração dos trabalhadores e deve ter em conta as necessidades do maior número de participantes tanto ou melhor do que a velha política.

Este artigo é parte de um esforço para se imaginar como podemos reconfigurar a migração dos trabalhadores a nível global, com especial atenção para os salários mais baixos do continuum de migrantes, para que seja melhorado o destino dos trabalhadores, tanto migrantes como nascidos no espaço nacional. É profundamente solidário com os esforços da Organização Internacional do Trabalho (OIT), das organizações não-governamentais e dos sindicatos para criar um direito global baseado no quadro de migração de trabalho, com especial ênfase nos instrumentos internacionais para proteger os migrantes que se deslocam de um país para outro. Ainda assim, até agora nenhum grande país de destino ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros das suas Famílias, passados 18 anos desde a sua adopção pelas Nações Unidas,6 e, embora a OIT tenha trabalhado essencialmente para o avanço da aceitação dos

                                                            5 Julie Murray, Jeanne Batalova e Michael Fix, The Impact of Immigration on Native Workers: A Fresh Look at the Evidence, MPI Insight (Migration Policy Institute), Julho, 2006, 5. 6 Para uma lista de países que assinaram e/ou ratificaram a Convenção ver United Nations Education, Science and Cultural Organization (UNESCO), Present State of Ratifications and Signatures of the UN Migration Convention, http://portal.unesco.org/shs/en/ev.php-URL_ID=3693&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html.

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padrões de trabalho em todo o mundo, esta não tem capacidade de execução. Na ausência de ampla aceitação das regras internacionais de trabalho aplicáveis, este documento analisa o que os governos, organizações da sociedade civil e os próprios migrantes estão a fazer, e o que é que eles poderiam fazer mais, para aumentar a protecção ao trabalhador.

O presente trabalho começa com uma proposta de um novo regime, Cidadania do Trabalhador Transnacional, cujo objectivo explícito é a redistribuição de parte dos ganhos da migração de trabalho com exclusão dos angariadores e empregadores que actualmente a exploram, para os trabalhadores nativos e imigrantes cujos sacrifícios e trabalho árduo dão origem a estes possíveis ganhos. De fundamental importância, Cidadania do Trabalhador Transnacional destina-se a desmantelar o muro construído com frequência entre duas categorias de novos trabalhadores: aqueles que são admitidos num país como trabalhadores temporários e que têm sido historicamente tratados como uma solução para as necessidades de trabalho de curto prazo do país de destino, sem receber quaisquer direitos a prestações sociais ou a participação política, e aqueles que são admitidos como imigrantes permanentes, através de programas que fornecem para o reagrupamento familiar, benefícios sociais, e um caminho para a obtenção da cidadania. A proposta Cidadania Transnacional do Trabalho insiste em que todos os imigrantes são seres humanos completos e merecem ser tratados como tal. Nesse sentido, além de ser uma proposta para melhorar as condições de trabalho para todos os trabalhadores com salários baixos, Cidadania do Trabalhador Transnacional é um esforço para demonstrar que é possível responder à realidade da migração de trabalho temporário e é uma recusa também a tratar os migrantes temporários como mercadorias a serem negociados num mercado global.

No que se segue, descreve-se a ideia de Cidadania do Trabalhador Transnacional, que se desenvolveu no contexto dos Estados Unidos. A partir daí, apresento as minhas notas preliminares sobre as experiências que estão a emergir ao redor do globo e em que ecoam dois dos elementos centrais de

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Cidadania do Trabalhador Transnacional: os esforços do país de origem para fazer valer os direitos laborais para os imigrantes e dos esforços da sociedade civil e das iniciativas sindicais em prestar apoio contínuo aos migrantes, ligando na origem e no destino as organizações de trabalhadores. Eu reflecti sobre as primeiras lições dessas experiências que dizem respeito a alguns dos desafios que um regime de Cidadania do Trabalhador Transnacional terá de enfrentar e levantei questões para um estudo mais aprofundado.

I. INTRODUÇÃO DE CIDADANIA DO TRABALHADOR TRANSNACIONAL7 A. Migração de trabalho de baixo salário no contexto dos estados unidos

Mais de um milhão de novos imigrantes chegam anualmente aos Estados

Unidos8 para virem trabalhar para aqui. Para aqueles que vêem tanto a livre circulação das pessoas como a preservação das condições de trabalho decentes como essenciais para a justiça social e económica, o fluxo contínuo de trabalhadores imigrantes apresenta um dilema aparentemente insolúvel. Querer evitar que as pessoas se desloquem em busca de trabalho é estar a querer diminuir a possibilidade de construir uma vida digna para si e para as suas famílias. Mas, na visão popular dos trabalhadores nativos do país que os recebe, quanto mais imigrantes maior é a concorrência, mais a situação do trabalhador se torna pior.

Em resposta, muitos políticos nos Estados Unidos exigiram uma redução da imigração. No entanto, em face da enorme desigualdade entre países e                                                             7 As Partes A e B desta secção são adaptadas em parte de Jennifer Gordon, Transnational Labor Citizenship, 80 S. CAL. L. REV. 503 (2007). 8 Jeffrey S. Passel, D’Vera Cohn, Trends in Unauthorized Immigration: Undocumented Inflow Now Trails Legal Inflow (Pew Hispanic Ctr.), 2 de Outubro, 2008, p. 2, disponível em http://pewhispanic.org/files/reports/94.pdf. O exemplo inclui imigrantes legais e também não documentados, mas não os migrantes temporários documentados.

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mercados de trabalho globalmente integrados, é profundamente irrealista pensar que os controles de imigração vão impedir que as pessoas se desloquem do Sul para o Norte. O fluxo de migrantes podem subir e descer, mas de uma maneira ou de outra, aqueles que querem migrar vão encontrar um caminho, cujos números são gerados não só pelas nossas políticas formais, mas também por décadas após décadas de pressões económicas e sociais em ambos os países, de origem e de destino. Imaginar que podemos recuar um século ou mais da história de migração entre os Estados Unidos e o México (e de outros países também), que podemos erradicar as actuais redes de migrantes entrincheirados, que ligam os dois países um ao outro, e desfazer a teia complexa de interdependência económica que caracteriza o nosso mercado de trabalho totalmente integrado é pura fantasia.

No longo prazo, uma verdadeira solução para os dilemas da imigração deve concentrar-se em enfrentar os factores subjacentes, que levam a que tantos que lutam e que se esforçam tanto para fazer o melhor para si e para as suas famílias tenham que as deixar. Quando há desenvolvimento sustentável nos países de origem, a decisão de não migrar vai tornar-se uma opção económica mais viável. Até então, a luta para continuar a estar no lugar, a opção que mais desejam tomar, deve ser tratada caso a caso e em paralelo com a luta pela migração em condições justas. Mas, como Alejandro Portes e Rubén Rumbaut nos lembram no seu clássico Immigrant America: A Portrait, " a migração do trabalho manual é... não um fluxo unidireccional para fugir para longe da pobreza ou de simples querer, mas é, sobretudo, um processo nos dois sentidos alimentado pela evolução das necessidades e dos interesses das pessoas que vêm e daqueles que lucram com o seu trabalho"9. Nenhuma abordagem será eficaz a não ser que também aborde o trabalho e as condições de trabalho nos Estados Unidos.

                                                            9 Alejandro Portes e Rubén G. Rumbaut, Immigrant America: A Portrait 18 (2d ed. 1996).

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É particularmente preocupante, então, que a migração actual de trabalhadores das indústrias de baixos salários nos Estados Unidos esteja estruturada de forma a que activamente esteja a degradar os padrões mínimos de trabalho. Os imigrantes sem documentos representam hoje uma grande parte dos trabalhadores imigrantes manuais neste país10.

Os imigrantes sem documentos legais para trabalhar são muitas vezes relutantes em informar que os seus empregadores lhes pagam salários abaixo do mínimo legal ou lhes dão más condições de trabalho, por medo que daí resulte a sua deportação. Um certo número de trabalhadores de baixos salários são trabalhadores legais para trabalho de curta duração, logo são portadores de vistos temporários para empregos agrícolas sazonais11. Os programas de trabalhadores assim contratados nos Estados Unidos, como em todo o mundo, admitem imigrantes para realizar um trabalho específico para um empregador específico, os chamados "guest workers". Um trabalhador com visto para contrato temporário é um trabalhador cativo que não pode abandonar um mau emprego para ir para um emprego melhor, e em que uma queixa dos riscos de um tratamento abusivo a que tenha estado sujeito pode levar não apenas a cessação do seu visto, mas também à sua inclusão numa lista negra oficial que efectivamente o leva a nunca mais poder voltar12.

                                                            10 Estima-se que 27% dos trabalhadores na transformação de produtos alimentares sejam não documentados. Jeffrey S. Passel, The Size and Characteristics of the Unauthorized Migrant Population in the U.S. (Pew Hispanic Ctr.), 7 de Março, 2006, at ii-iii, disponível em http://pewhispanic.org/files/reports/61.pdf. Quase metade dos trabalhadores agrícolas nos EUA são imigrantes sem documentos U.S. Department of Labor, Findings From The National Agricultural Workers Survey 2001–2002: A Demographic and Employment Profile of United States Farmworkers 6 (2005), disponível em http://www.doleta.gov/agworker/report9/naws_rpt9.pdf. 11 Os Estados Unidos têm duas categorias de vistos de não-imigrantes para os trabalhadores de baixos salários: o programa H-2A para os trabalhadores agrícolas e o programa H-2B para outros trabalhadores sazonais. 8 U.S.C. § 1101(a)(15)(H) (2000). 12 Para uma descrição dos abusos endémicos aos programas "guest workers", ver Southern Poverty Law Ctr., Close To Slavery: Guestworker Programs In The United States (2007), disponível em http://www.splcenter.org/pdf/static/SPLCguestworker.pdf.

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Os incentivos do nosso actual programa de migração de trabalhadores geram exactamente efeitos opostos aos que pretendiam alcançar. A migração de trabalhadores propriamente dita deve ser reconfigurada para que esta reforce, em vez de reduzir a possibilidade de tratamento digno para os novos migrantes e para os trabalhadores que já trabalham nos Estados Unidos.

B. A resposta: cidadania do trabalhador transnacional

Este projecto propõe uma ampla reforma do nosso sistema de imigração

de trabalhadores. Num artigo recente, sugeri uma "experiência intelectual" sobre um novo regime de imigração a que chamo Cidadania do Trabalhador Transnacional13.

Cidadania do Trabalhador Transnacional é baseado na teoria de que a única maneira de criar uma base real sobre as condições de trabalho num contexto de forte imigração é a ligação das organizações dos trabalhadores à aplicação dos direitos fundamentais do trabalho de uma forma que atravesse as fronteiras tal como os trabalhadores também o fazem. Inspira-se nos trabalhos de investigadores sobre questões das migrações como Douglas Massey e Jorge Durand, que observaram que as políticas restritivas de imigração e de controlo das fronteiras aumentaram nos Estados Unidos desde os anos 1980 e impediram que pudesse ocorrer um movimento de idas e vindas mais fluído quanto à circulação dos trabalhadores imigrantes da América Latina14. O objectivo de Cidadania do Trabalhador Transnacional é facilitar a capacidade de emigrantes poderem escolher migrar de forma temporária, tanto quanto o quiserem ou precisarem de o fazer, enquanto geram tentativas para estabelecer a base de referência das condições de trabalho.

Em termos práticos, ao abrigo do regime Cidadania do Trabalhador Transnacional, um migrante pode tornar-se elegível para trabalhar nos Estados                                                             13 Gordon, veja-se nota supra 6. 14 Douglas S. Massey, Jorge Durand e Nolan J. Malone, Beyond Smoke and Mirrors: Mexican Immigration in an Era of Economic Integration 128-33 (2002).

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Unidos na base de um visto de TLC* "depois de se ter associado a uma organização transnacional de trabalhadores, mais do que através de uma ligação para um determinado empregador como os regimes de trabalho temporário actualmente o determinam. Aos titulares de vistos TLC seria permitido trabalhar para qualquer empregador nos Estados Unidos, com garantia de todos os direitos de trabalho e eventual conversão para residência permanente e de cidadania, se o imigrante assim o desejar. O migrante e a sua família podem entrar e sair à vontade entre os Estados Unidos e o país de origem, permanecendo aqui, quando os empregos são abundantes e voltar para casa, por curtos períodos de tempo para as colheitas nas suas próprias fazendas ou nos períodos de feriados.

Os benefícios do programa na perspectiva dos migrantes necessitam de pouca elaboração. Mas as obrigações em que os participantes ficam sujeitos também podem ser sérias. A fim de serem certificados como elegíveis para um visto TLC pelo governo do país de origem, os imigrantes interessados teriam de aderir a uma organização transnacional dos trabalhadores "em ou perto da sua comunidade de origem. Para permanecerem nos Estados Unidos mais de um mês para além da data de entrada, os imigrantes também teriam de aderir a uma organização transnacional dos trabalhadores "activa na área geográfica dos Estados Unidos onde se estabeleceu a indústria em que trabalham. Igualmente importante, cada migrante seria convidado a fazer um "juramento de solidariedade", como condição de adesão. Em troca de autorização de trabalho, os titulares de visto TLC deveriam fazer um relatório sobre os seus empregadores que violam as leis de trabalho nos Estados Unidos ou os acordos colectivos de trabalho. A falha no cumprimento destes requisitos, seria motivo de afastamento do membro da organização do trabalho transnacional e retirado o seu visto.

                                                            * TLC, sigla inglesa de Cidadania do Trabalhador Transnacional (Transnational Labor Citizenship) [N. de T.].

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Para fazer o juramento de solidariedade real, os Estados Unidos e o país de origem em que está baseada a organização transnacional dos trabalhadores devem trabalhar intensamente com os migrantes no terreno, colaborando entre os países para defender os direitos dos seus membros através de uma combinação de acção governamental, de acções judiciais e de pressão colectiva. Essas organizações podem também oferecer aos migrantes uma variedade de outros serviços, desde aulas de Inglês para facilitar o envio das remessas até aos cuidados de saúde a preços acessíveis nos dois países. Os grupos seriam ligados à criação de uma rede com uma forte presença, tanto nos países de origem como de destino, com a função de fazer subir a base sobre salários e sobre as condições de trabalho para todos os trabalhadores dentro dos Estados Unidos. A rede seria gerida através de um órgão de coordenação, a que chamamos de Transnational Worker Justice Collaborative, e cuja função seria a de fiscalizar e credenciar as organizações membros, apoiar o trabalho de uns para com os outros, monitorar o processo de migração, e procurar melhorar as tentativas de reforma da política de migração. Este órgão poderia ser autónomo, nunca uma agência governamental ou parte de um sindicato já existente ou um centro de trabalho, quer nos Estados Unidos, quer nos países onde existe Cidadania do Trabalhador Transnacional, com vista ao cumprimento dos direitos fundamentais de base e para permitir que os imigrantes mantenham benefícios e serviços com eles mesmo que se movam de um país para outro. O seu objectivo, até então evasivo, é o de facilitar a livre circulação de pessoas, evitando a degradação das condições de trabalho no país que os recebe. Há um debate entre os estudiosos da migração sobre se os imigrantes de hoje são mais "transnacionais" do que no passado, ou mesmo se eles são de facto transnacionais15. Sem tomar posição na disputa, parece                                                             15 Para uma lista de trabalhos fundamentais, em que se apresenta o argumento para um novo transnacionalismo, ver Towards a Transnational Perspective On Migration: Race, Class, Ethnicity, and Nationalism Reconsidered (Nina Glick Schiller et al. eds., 1992). Roger Waldinger, David Fitzgerald, Nancy Foner, and Jonathan Fox, entre outros, apresentaram críticas ao argumento que os imigrantes de hoje são “transnacionais”, numa forma que os distinga significativamente das gerações passadas de imigrantes.

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claro que a política americana de imigração mais restritiva e de maior controlo nas fronteiras traduz-se em fazer com que os imigrantes se sintam menos transnacionais do que seriam se fossem autorizados a reagir a mudanças nos mercados americanos de trabalho e às suas próprias necessidades e oportunidades nos seus países de origem. A Cidadania do Trabalhador Transnacional viria assim restaurar essa fluidez, fazendo de um vai e vem na estrutura da migração uma opção, tanto quanto um migrante o deseje ou tenha necessidade de o fazer, sem esquecer as implicações da migração de trabalhadores de baixos salários nos Estados Unidos16.

Eu coloco Cidadania do Trabalhador Transnacional como uma intervenção que os leitores podem assumir a vários níveis. No seu sentido mais abstracto, Cidadania do Trabalho Transnacional defende a ideia de que os mecanismos para reforçar os direitos dos trabalhadores não podem ser vistos como um simples acrescentar aos programas de migração temporária de trabalho. Os programas de migração temporária de trabalho continuarão a degradar os direitos dos trabalhadores, a menos que sejam explicitamente, e fundamentalmente, destinados a reforçá-los. Em termos mais explícitos, os princípios centrais da Cidadania do Trabalhador Transnacional, explicados mais abaixo, sugerem caminhos para a integração dos direitos dos trabalhadores e da migração, que podem ser implementados de várias maneiras. Finalmente, ao nível mais concreto, os contornos da oferta proposta por Cidadania do Trabalhador Transnacional são uma abordagem específica para colocar os direitos no centro da migração do trabalho.

                                                                                                                                   Ver Nancy Foner, What's New About Transnationalism? New York Immigrants Today and at the Turn of the Century, 6 DIASPORA 355 (1997); Jonathan Fox, Unpacking “Transnational Citizenship,” 8 ANN. REV. POL. SCI. 171 (2005); Roger D. Waldinger e David Fitzgerald, Transnationalism in Question, 109 AM. J. SOC. 1177 (2004). 16 Ao contrário dos programas de "guest worker" que procuram impor uma natureza transitória de uma estada do migrante, a Cidadania do Trabalhador Transnacional facilitaria a migração temporária, enquanto o migrante o pretendesse, abrindo a possibilidade opcional de residência permanente e de cidadania. O visto da TLC também seria estendido aos cônjuges dos migrantes e das suas crianças.

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C. Princípios centrais de cidadania do trabalhador transnacional Para uma exaustiva implementação da proposta Cidadania do

Trabalhador Transnacional nos Estados Unidos seria necessário um número de mudanças, que são difíceis de imaginar no clima político actual. Por exemplo, o governo dos Estados Unidos teria de estar disposto a entrar em acordos vinculativos sobre a migração com os seus principais parceiros, países de origem, o que não mostra nenhuma tendência a considerar. A estrutura familiar da migração de trabalho temporário, com duração ligada a ofertas de emprego de um empregador, teria que ser desfeita e a favor de um regime de solidariedade familiar do trabalhador. Possivelmente apareceriam dezenas de novas organizações de trabalhadores e seria necessário criar um organismo de coordenação. Por causa da enorme distância entre a situação em que estamos actualmente nos Estados Unidos e o que a proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional exigiria, esta proposta pode parecer impossível e utópica. E ainda, se partimos de Cidadania do Trabalhador Transnacional nas suas principais componentes e se olharmos à volta do mundo para exemplos de experiências que incorporam aspectos destas componentes, torna-se evidente que noutros fluxos de migrantes o que agora propomos está muito mais próximo de ser já realizado ou de ser realizável.

No seu núcleo, Cidadania do Trabalhador Transnacional visa criar incentivos e mecanismos para a aplicação dos direitos fundamentais do trabalho na própria migração de trabalhadores, especialmente para os trabalhadores de baixos salários que compõem a maior parcela no volume total dos migrantes. Para conseguir realizar uma versão completa de Cidadania do Trabalhador Transnacional, esta realização exigiria, entre outras funcionalidades:

• Gestão multilateral da migração de trabalho com direitos como sendo um princípio central: a negociação de acordos multilaterais ou regionais

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entre os governos de origem e de destino, em que se coloquem as protecções à migração no centro dos programas de migração de trabalho, e um compromisso de cooperação de origem e destino dos governos, para fazer valer esses e outros direitos de trabalho.

• "Cidadania de trabalho móvel": A organização dos migrantes em ambas as extremidades do fluxo de migrantes pelos sindicatos e pelas organizações da sociedade civil, de modo a que estes possam viajar como trabalhadores e cidadãos entre países de origem e destino, com a capacidade de fazer valer os direitos que lhes foram concedidos. Estas organizações estariam ligadas umas às outras, através de uma rede de apoio entre os países. • A colaboração entre governos e organizações da sociedade civil para fazer cumprir as normas de trabalho17: A criação de mecanismos de colaboração através dos quais, por exemplo, os Ministérios do Trabalho estadual e Federal poderiam aumentar a sua capacidade de detectar violações no respeito dos contratos em termos de salários, aprendendo com o conhecimento dos trabalhadores das organizações sobre o terreno. As próprias organizações de trabalhadores, por sua vez, poderiam confiar no governo para direccionar os seus recursos para melhor garantir o respeito pelos direitos dos trabalhadores respondendo assim às preocupações dos trabalhadores migrantes de modo efectivo e de modo também a sensibilizá-los para esses mesmos direitos. • Benefícios móveis: a criação de sistemas de cuidados de saúde e de segurança social, entre outros benefícios, que sejam acessíveis e garantidos aos migrantes, independentemente do país onde estivessem.

                                                            17 Num artigo a publicar brevemente em co-autoria com Janice Fine desenvolve-se esta ideia.

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D. As práticas emergentes

Como se sublinhou acima, vários dos elementos da proposta Cidadania

do Trabalhador Transnacional que parecem mais improváveis do ponto de vista americano já estão a começar a surgir noutras partes do mundo. Este artigo analisa esse fenómeno em duas das principais áreas em destaque acima: os esforços dos países de origem para ligar a migração de trabalho temporário com os direitos específicos do trabalho e com os mecanismos de aplicação, quer unilateralmente quer através de acordos bilaterais, quer ainda com as iniciativas de sindicatos e de outros grupos da sociedade civil, para conseguirem levar a cabo a organização de esforços no apoio aos migrantes, quer no país de origem quer no de destino, para que os imigrantes tenham acesso ao apoio contínuo na defesa dos seus direitos.

Depois de definir uma gama de práticas nestas duas áreas tiraremos as lições preliminares capazes de nos orientarem para o trabalho futuro. Questiono-me sobre o que podemos aprender com os esforços actualmente em curso quanto à melhor forma de realizar os objectivos fundamentais da Cidadania do Trabalhador Transnacional: a criação de mecanismos e práticas para a sua execução e as instituições que respondam à realidade de uma força de trabalho transnacional móvel, aumentando a capacidade de emigrantes para corrigir os abusos que enfrentam no trabalho e responder às necessidades de ambos, quer dos trabalhadores nativos, quer dos trabalhadores migrantes para estabelecer e impor condições de trabalho dignas.

II. EXECUÇÃO DOS DIREITOS DOS MIGRANTES NO PAÍS DE ORIGEM

Não é uma questão simples para um país de origem tomar uma posição

em favor dos direitos dos seus trabalhadores migrantes. As remessas dos migrantes fornecem entradas de milhares de milhões de dólares por ano para as

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economias que estão sujeitas a oportunidades de trabalho desajustadas, a sistemas financeiros e de segurança social débeis e a perspectivas de desenvolvimento limitadas. As necessidades geradas por esta situação dão aos governos um forte incentivo para promover a migração e para minimizar os custos envolvidos na contratação de seus cidadãos, uma meta que não é necessariamente reforçada quando há uma posição forte sobre o salário mínimo e sobre as protecções de trabalho. Ao mesmo tempo, no entanto, alguns governos dos países de origem são ingénuos acerca da redução das migrações e muitos resistem em assumirem o papel de corretor de trabalhadores ou de intermediários, indiferentes à forma como os seus cidadãos são tratados, desde que continuem a enviar dinheiro para casa. O clamor público quanto ao abuso sobre os emigrantes no estrangeiro, bem como a procura de maior protecção da população da diáspora em si mesma, têm levado um número de países de origem a tomar medidas para intervir nas condições em que os seus migrantes trabalham.

O que se segue são exemplos de soluções em que os países de origem estão a procurar desempenhar um papel activo na protecção dos migrantes nos seus locais de trabalho no exterior, tanto em coordenação com os países de destino, como através de iniciativas unilaterais.

A. Acordos bilaterais de migração de trabalhadores de baixos salários.

A fim de tornar a protecção no local de trabalho uma peça central da

migração de trabalhadores, a aplicação global de Cidadania do Trabalhador Transnacional exigiria parcerias multilaterais entre os governos dos países de origem e de destino. Todas as partes participariam na negociação dos termos de migração de trabalhadores e na aplicação dos direitos dos trabalhadores migrantes.

Os acordos comerciais de dimensão regional são cada vez mais comuns. Mas são muito poucos os acordos comerciais existentes que tratam da

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circulação de pessoas assim como o fazem com as mercadorias através das fronteiras nacionais. A União Europeia é a excepção óbvia18. E quando os acordos comerciais tratam, de facto, da migração de trabalhadores, estes parecem que tratam, em quase tudo, mais exclusivamente das condições que permitem a circulação de profissionais do que dos trabalhadores migrantes de baixos salários19. Porque os governos de países ricos em regiões de grande migração, como a Ásia e a América do Norte, têm sido particularmente resistentes à negociação sobre a mobilidade de trabalho regional para os trabalhadores de baixos salários não nos concentraremos aqui sobre acordos regionais. Em vez disso, exploraremos o instrumento mais limitado, mas

                                                            18 A experiência da União Europeia com a mobilidade do trabalho de baixos salários merece um estudo mais detalhado do que aquele que eu poderei fazer no presente relatório. Vou abordar esse assunto, e a sua perspicácia na minha proposta para a Cidadania do Trabalhador Transnacional, num outro artigo. 19 Outros acordos regionais que permitam circulação de trabalhadores de baixos salários, bem como trabalhadores profissionais estão sob consideração. Em 2007, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) emitiu uma Declaração para a Protecção e Promoção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes, e recentemente começou a considerar medidas para uma maior mobilidade de trabalho entre os países membros. ASEAN, ASEAN Cooperation on Labour: An Overview, http://www.aseansec.org/21009.htm. A Comunidade Andina de Nações na América Latina, que inclui Peru, Equador, Colômbia, Bolívia e Venezuela, está a caminhar para uma mobilidade regional do trabalho para um conjunto definido de pessoas, incluindo trabalhadores agrícolas temporários. Andean Labor Migration Instrument, Decision 545 (2003), disponível em http://www.comunidadandina.org/ingles/normativa/D545e.htm; Kevin O’Neil, Kimberly Hamilton e Demetrios Papademetriou, Migration Policy Inst., Migration in the Americas 32 (Global Commission on Int’l Migration, Paper, 2005). Em África, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) promete um direito recíproco de "estabelecimento" (isto é, o direito de exercer actividades económicas, incluindo o trabalho) para os cidadãos das suas quinze nações signatárias, embora essa promessa não tenha sido totalmente realizada. O Protocolo do Mercado Comum da África Oriental e Austral (COMESA) relativo à livre circulação de pessoas ainda hipotética, mas, se implementada, vai progressivamente eliminar todos os obstáculos à mobilidade do trabalho entre os 19 países membros do COMESA. Int’l Org. on Migration, Int’l Dialogue on Migration, Intersessional Workshop on Free Movement of Persons in Reg’l Integration Processes, Supp. Materials 6 (2007), disponível em http://www.iom.int/jahia/webdav/site/myjahiasite/shared/shared/mainsite/microsites/IDM/workshops/free_movement_of_persons_18190607/idm2007_handouts.doc.

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também o mais simples e mais facilmente alcançável, que são os acordos bi ou multilaterais de migração temporária de trabalho.

Nos Estados Unidos, a sugestão de que a política de imigração poderia ou deveria ser estabelecida através do diálogo com os países de origem é frequentemente olhada com perplexidade, se não mesmo com desdém. A última vez que os Estados Unidos abordaram a questão da migração de trabalhadores de baixos salários como um problema a negociar com o país de origem dos migrantes foi nos primeiros anos do programa Bracero, com a assinatura de um acordo com o México, que incidiu sobre mais de quatro milhões de trabalhadores mexicanos a serem autorizados a trabalhar nos campos nos Estados Unidos, entre 1942 e 196420. Desde então, com raras excepções e pequenas, o governo americano definiu sempre a sua política de imigração de modo unilateral21. Enquanto os Estados Unidos regularmente negoceiam acordos bilaterais e regionais sobre questões relativas ao comércio, os problemas da migração de trabalhadores com baixos salários estiveram conspicuamente sempre ausentes nestes acordos22. Não é assim no resto do mundo, em que cada vez mais se tende para acordos bilaterais entre as nações com meio de criar os meios que regem o fluxo de trabalhadores migrantes temporários.                                                             20 Para uma análise do programa bracero, Ver Kitty Calavita, Inside The State: The Bracero Program, Immigration, And The I.N.S. (1992); Ernesto Galarza, Merchants of Labor: The Mexican Bracero Story (1964). 21 Dias antes de 11 de Setembro, o Presidente Bush reuniu-se com o então Presidente mexicano Vicente Fox para discutir um quadro para a migração México-EUA. Com os acontecimentos do 9 de Setembro, as conversações terminaram, não tendo sido retomadas nos anos seguintes. Muzaffar Chishti, Guest Trabalhadores na Casa do Trabalho, 13 NEW LAB. F. 67, 70-71 (2004). Muzaffar Chishti, Guest Workers in the House of Labor, 13 NEW LAB. F. 67, 70-71 (2004). 22 Em raras ocasiões, os Estados Unidos incluíram disposições para migrantes temporários nos tratados, que são principalmente comerciais. Exemplos, incluem o visto TN para determinados profissionais canadianos e mexicanos criado pelo NAFTA, e a retirada de 1 400 vistos temporários para trabalhadores chilenos profissionais com ofertas de emprego ao abrigo do Acordo de Livre Comércio negociado em 2003. O’Neil, Hamilton e Papademetriou, veja-se nota supra 18, at 31. Os Estados Unidos não têm acordos bilaterais relacionados com trabalhadores de baixos salários.

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Os acordos bilaterais normalmente facilitam um fluxo unidireccional de migrantes, levando a que um país de destino estabeleça, nomeadamente, um certo número de vistos de trabalho temporário para os cidadãos de um país de origem particular. Estes acordos muitas vezes respondem às necessidades de trabalho dentro de um determinado sector bem preciso, como a construção, o trabalho na agricultura ou ainda como o trabalho doméstico. Esses acordos estão a aumentar em todo o mundo23. Em 2004, um levantamento nos 30 países que compõem a Organização para a Cooperação Económica e o Desenvolvimento (OCDE) verificou que havia 176 acordos bilaterais sobre o recrutamento de trabalho temporário24. Os países latino-americanos assinaram mais de 140 destes acordos25. Mais recentemente, a Ásia-Pacífico e países do Médio Oriente começaram também a negociar acordos bilaterais ou Memoranda of Understanding (MOU) sobre a migração de trabalho temporário26. A principal origem e os países de destino têm muitas vezes acordos múltiplos. As Filipinas têm acordos bilaterais de migração, ou MOU, com pelo menos 14 das nações para as quais envia os seus migrantes27. A Espanha tem acordos de trabalho temporário e migrante com cerca de oito dos países que compõem a sua população de imigrantes28.

                                                            23 Apesar dos números crescentes, os acordos existentes ainda regulamentam uma percentagem relativamente pequena do total das migrações de trabalho entre os países no mundo. Daniela Bobeva e Jean-Pierre Garson, Overview of Bilateral Agreements and Other Forms of Labour Recruitment, in Migration For Employment: Bilateral Agreements at a Crossroads 11, 12, 22 (2004). 24 Id. at 12. Para uma lista dos países da OCDE, ver Ratification of the Convention on the OECD, http://www.oecd.org/document/1/0,3343,en_2649_201185_1889402_1_1_1_1,00.html. 25 O’Neil, Hamilton e Papademetriou, veja-se nota supra 18, at 32-33. 26 Bobeva e Garson, veja-se nota supra 22, at 11-12. Os acordos bilaterais tendem a ser mais detalhados, mais restritivos e mais orientados para a acção do que os MOUs. 27 Dovelyn Rannveig Agunias, Managing Temporary Migration: Lessons from the Philippine Model, MPI INSIGHT (Migration Policy Inst.), Outubro, 2008, at 33. 28 Eduardo Geronimi, Lorenzo Cachón e Ezequiel Texidó, Oficina Internacional Del Trabajo, Acuerdos Bilaterales de Migración de Mano de Obra: Estudio de Casos 16 (2004), disponível em http://www.ilo.org/public/english/protection/migrant/download/imp/imp66s.pdf.

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Em teoria, uma abordagem bilateral de gestão da migração de trabalho oferece a oportunidade para os países de origem e de destino de escaparem à armadilha de regimes de imigração unilaterais definidos pelos países de destino, e que são regimes em que, muitas vezes, a par de declarações públicas de oposição à imigração ilegal, se faz a aceitação tácita dos grandes fluxos do trabalho em situação irregular (regulamentado através da repressão em tempos de crise económica) e de assim negociarem uma alternativa que beneficie igualmente ambas as partes. Os acordos permitem que os países de destino estabeleçam as suas necessidades cíclicas de trabalho e oferecem aos países de origem e aos seus cidadãos o acesso a trabalhos mais bem remunerados do que seria possível no espaço nacional, com a promessa concomitante do aumento das remessas. Importante segundo a proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional, tais acordos também parecem constituir um fórum para os países de origem e de destino colaborarem em tratarem das ligações entre a migração e a protecção dos trabalhadores migrantes.

Vários acordos bilaterais abordam a questão dos direitos dos trabalhadores migrantes, dos quais falaremos a seguir. Mas, primeiro, é necessária uma dose de realismo. Os acordos bilaterais são geralmente muito mais pretendidos pelos países de origem do que pelos países de destino, e as negociações ocorrem sob a sombra do desequilíbrio de poder existir entre os dois tipos de países. Os países de origem estão muitas vezes hesitantes em exigir protecções que possam levar a que os seus nacionais fiquem mais caros do que os migrantes de estados concorrentes. Não surpreende, então, que a maioria dos acordos sejam silenciosos quanto a normas de trabalho, e todos eles mantêm a ligação clássica entre um visto e um contrato com uma entidade específica, uma exigência que impede a aplicação dos direitos dos migrantes, pois temem que se falarem possam mesmo perder o emprego e, também, o seu próprio visto. Além disso, alguns deles contêm disposições que, explicitamente, restringem os direitos dos migrantes. Por exemplo, o acordo entre a Indonésia e a Malásia sobre trabalhadores domésticos permite que um empregador guarde o passaporte do trabalhador a fim de garantir seu retorno e

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impedem os trabalhadores de se filiarem num sindicato29. Os acordos da Tailândia permitem ao empregador reter 15 por cento dos salários dos migrantes com a mesma finalidade30.

No entanto, alguns acordos bilaterais começaram a incorporar explicitamente os esforços para aumentar os direitos do trabalho dos migrantes. A maioria destes contém uma declaração pró-forma em que aos imigrantes devem ser concedidos os mesmos direitos que aos trabalhadores nativos, mas não criam mecanismos de acompanhamento e execução necessárias para que estes passem a fazer parte do reino da realidade31. Alguns, contudo, vão mais longe (pelo menos no papel). A lista a seguir destaca algumas características de protecção do trabalho migrante que fazem parte de recentes acordos bilaterais, com algumas referências sobre os obstáculos à sua implementação.

                                                            29 Human Rights Watch, Help Wanted: Abuses against Female Migrant Domestic Workers in Indonesia and Malaysia 81 (2004), disponível em http://www.hrw.org/reports/2004/indonesia0704/indonesia0704full.pdf. 30 Piyasiri Wickramasekara, Int’l Labour Office, Labour Migration in Asia: Role of Bilateral Agreements and MOUs 12 (17 de Fevereiro, 2006) (apresentação no Workshop on International Migration and Labour Markets in Asia, Tokyo, Japan), disponível em http://www.jil.go.jp/foreign/event_r/event/documents/2006sopemi/keynotereport1.pdf. Por outro lado, o governo da Tailândia tem sido elogiado pela sua disponibilidade em tornar públicos os seus MOUs, a "melhor prática" no terreno. 31 Stella P. Go, Asian Labor Migration: The Role of Bilateral Labor and Similar Agreements 9 (Setembro, 2007) (artigo não publcado aresentado no Reg’l Informal Workshop on Labor Migration in Southeast Asia, Manila, Phil.), disponível em http://www.fes.org.ph/2007%20conferences/reading%20and%20presentations/Stella%20Go's%20Paper.pdf.; Rene E. Ofreneo e Isabelo A. Samonte, International Labour Office, Empowering Filipino Migrant Workers: Policy Issues And Challenges 14, 61 (2005), disponível em http://www.oit.org/public/english/protection/migrant/download/imp/imp64.pdf; Wickramasekara, veja-se nota supra 29, at 16.

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Algumas linhas de protecção dos Acordos Bilaterais sobre o trabalho dos migrantes:

• Os contratos elaborados ou realizados com a colaboração dos sindicatos e das ONG. No Reino Unido, Itália e República Eslovaca, o governo tem considerado as recomendações dos agentes da sociedade civil, como organizações de migrantes e dos sindicatos na negociação e na elaboração dos acordos bilaterais32. Na Coreia, Nepal e Filipinas, entre outros países, os sindicatos estão em processo de negociação com as autoridades governamentais para um papel oficial na determinação dos direitos previstos para os migrantes, sejam direitos sobre a formação a ser fornecida aos migrantes definidos antes da partida e para depois da chegada nos termos dos acordos bilaterais33. • A incorporação do Model Employment Contracts Mandating Minimum Wages and Working Conditions. O Sri Lanka, Filipinas e Indonésia, entre outros países de origem, têm negociado acordos bilaterais que incluem o contrato modelo de emprego34. Quando nenhum acordo bilateral formal é adoptado, podem ainda ser acordados contratos modelo entre os dois países. Por exemplo, o governo filipino negociou um contrato de trabalho padrão nacional com a Malásia, que garante aos trabalhadores domésticos das Filipinas um dia por semana de folga e estabelece um mínimo fixo de

                                                            32 Bobeva e Garson, veja-se nota supra 22, at 19, 28. 33 Entrevista com Umesh Upadhyaya, Deputy Sec’y Gen., General Federation of Nepalese Trade Unions (GEFONT), em Manila, Filipinas. (Out. 25, 2008); Entrevista com Chang-geun Lee, Director Internacional, Korean Confederation of Trade Unions (KCTU), em Manila, Filipinas. (Out. 26, 2008); Entrevista com Josua Mata, Sec’y Gen., Alliance of Progressive Labor (APL), em Manila, Filipinas (Out. 26, 2008). 34 Para um estudo dos contratos das Filipinas e também das cópias de vários modelos de contractos das Filipinas, ver International Organization For Migration (IOM), Labour Migration in Asia: Protection of Migrant Workers, Support Services and Enhancing Development Benefits 34-36, 75-79 (2005). On Sri Lanka, see id. at 59.

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salário mensal35. Em Hong Kong, as Filipinas adoptaram como um padrão o mínimo que o governo de Hong Kong determina no contrato modelo para "empregados domésticos"36. Como se descreva a seguir, no entanto, os migrantes muitas vezes enfrentam graves problemas na aplicação das disposições do contrato, uma vez no país de destino. • A substituição dos funcionários consulares como Monitores sobre os Direitos. O Programa para os trabalhadores agrícolas migrantes sazonais estabelecido entre o México e o Canadá exige ao México que atribua um funcionário consular como elemento oficial de ligação "para acompanhar os migrantes e monitorar e combater as violações sobre os direitos dos trabalhadores. Uma exigência semelhante foi negociada como parte do programa Bracero. No entanto, como os programas de protecção consular se iniciaram independentemente de um acordo bilateral (como veremos depois, estes esforços têm sido criticados como ineficazes)37.

                                                            35 Human Rights Watch, veja-se nota supra 28, at app. D. 36 O contrato obriga o empregador a pagar casa, comida, cuidados médicos e de fornecer um dia de descanso semanal e até duas semanas de férias pagas por ano. H.K. Labour Dep’t, Practical Guide For Employment of Foreign Domestic Helpers—What Foreign Domestic Helpers and Their Employers Should Know, 11, 13, app. I, disponível em http://www.labour.gov.hk/eng/public/wcp/FDHguide.pdf. Hong Kong atribui a responsabilidade pela aplicação das disposições do contrato ao seu Departamento do Trabalho. Nilim Baruah e Ryszard Cholewinski, Handbook on Establishing Effective Labour Migration Policies in Countries of Origin and Destination 52 (2006), disponível em http://www.osce.org/publications/eea/2006/05/19187_620_en.pdf. A Jordânia também criou um modelo de contrato de trabalhadores estrangeiros. O contrato foi desenvolvido pelo governo, em colaboração com organizações da sociedade civil e o Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento das Mulheres (UNIFEM), e o seu uso é obrigatório para a emissão de um visto de entrada. Baruah e Cholewinski, supra, 35. Apesar do contrato, que entrou em vigor em 2003, o tratamento em geral dos migrantes na Jordânia deteriorou-se a tal ponto que as Filipinas acabaram com novas migrações em 2008. Ver em Secção II.C.2 infra. 37 No que respeita às insuficiências da protecção consular durante o programa Bracero, consulte Galarza, veja-se nota supra 19, at 146, 183-98; David Fitzgerald, State and

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• Criação de alternativas ao Recrutamento Privado do Trabalho. Nos termos do acordo bilateral acima referenciado entre o México e o Canadá, o governo mexicano recruta, anualmente, de forma directa perto de 14.000 mexicanos para o trabalho sazonal com contrato e de acordo com o programa do Canadá38. O Memorando de Entendimento (MOU), entre as Filipinas e Taiwan, estabelece o "Special Hiring Program in Taiwan", uma via oferecida pelo organismo governamental filipino Manila Economic and Cultural Office, através do qual os empregadores de Taiwan podem contratar os migrantes filipinos directamente, sem a intervenção dos de angariadores privados39. As taxas que os migrantes pagam através deste programa são muito inferiores aos cobrados pelas empresas privadas com fins lucrativos40.

B. Esforços unilaterais dos países de origem para proteger os direitos dos migrantes

Alguns dos maiores países de destino têm estado dispostos a entrar em

acordos migratórios bilaterais sobre trabalho migrante. Os Estados Unidos são                                                                                                                                    Emigration: A Century of Emigration Policy in Mexico 11-12 (Ctr. for Comparative Immigration Studies, Univ. of Cal., San Diego, Working Paper No. 123, 2005), disponível em http://www.ccis-ucsd.org/PUBLICATIONS/wrkg123.pdf.. No contexto do moderno programa México-Canadá, é frequentemente notada a insuficiência da protecção do Consulado mexicano para os trabalhadores. Tanya Basok, Tortillas And Tomatoes: Transmigrant Mexican Harvesters In Canada 111–14 (2002); Kerry Preibisch, Globalizing Work, Globalizing Citizenship: Community-Migrant Worker Alliances in Southwestern Ontario, in Organizing the Transnational: Labour, Politics, and Social Change 97, 102 (Luin Goldring e Sailaja Krishnamurti eds., 2007). 38 Ver Citizenship and Immigration Canada, Facts and Figures 2006, Annual Flow of Foreign Workers by Top Source Countries 1997-2006, http://www.cic.gc.ca/english/resources/statistics/facts2006/temporary/03.asp. 39 Veja-se nota supra 30, at 4. 40 Manila Warns of Non-existent Jobs in Taiwan, Manila Standard Today, 17 de Abril, 2008, disponível em http://www.manilastandardtoday.com/?page=politics4_april17_2008.

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apenas um exemplo. Embora o governo filipino tenha celebrado 12 acordos de trabalho bilaterais, vários dos seus principais países de destino, incluindo o Japão, Singapura e Arábia Saudita, não estão dispostos a negociar sobre as políticas relativas aos trabalhadores migrantes41. No entanto, no que respeita à protecção dos direitos dos migrantes, os países de origem não se têm limitado a acordos de cooperação. Mesmo quando os países de destino são parceiros relutantes, os governos dos países de origem têm procurado realizar diversas formas de acção unilaterais, como um complemento aos acordos bilaterais.

Esforços unilaterais feitos pelos países de origem para proteger os

migrantes • Regulamentação no recrutamento. Um importante ponto de potencial intervenção para os países de origem é o processo de recrutamento, que é notoriamente corrupto e explorador. Uma vez que o recrutamento ocorre normalmente no país de origem, os governos dos países de origem são capazes de o regular directamente (por contraste com os abusos sobre o trabalho que ocorrem no exterior, onde os governos de origem não têm qualquer competência). Uma alternativa, procurada pelo Paquistão, Filipinas, Sri Lanka e pela Roménia, entre muitos outros, é que o governo crie regimes de licenças, taxas e exigências de relatórios sobre a contratação sectorial42. Aqui, de novo, a aplicação coerente provou para ser um verdadeiro desafio43.

Uma abordagem complementar é muitas vezes que o governo, ele próprio, funcione como o agente responsável pelo recrutamento, quer de

                                                            41 Veja-se nota supra 30, at 3; Wickramasekara, veja-se nota supra 29, at 15. 42 IOM, veja-se nota supra 24, at 23-27; Dana Diminescu, Assessment and Evaluation of Bilateral Labour Agreements Signed by Romania, in Migration For Employment: Bilateral Agreements at a Crossroads 65, 68-69. 43 Philip Martin, Merchants of Labor: Agents of the Evolving Migration Infrastructure 3-6 (Int’l Inst. for Labour Studies, Discussion Paper No. 158, 2005), disponível em http://www.ilo.org/public/english/bureau/inst/download/dp15805.pdf.

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modo exclusivo quer como uma alternativa pública aos organismos privados. Por exemplo, o governo romeno criou o seu Gabinete o Trabalho de Migrantes em 200144. Entre outras responsabilidades, recruta trabalhadores para empregos nos países em que a Roménia não tem nenhum acordo bilateral. Nesse sentido, concorre directamente com os operadores (angariadores) privados. Os Governos das Filipinas e do México também fazem eles próprios o recrutamento directo de certos programas temporários, como se descreve acima. (O recrutamento não é da competência exclusiva dos governos nacionais. Por exemplo, os indivíduos mexicanos também têm tido recrutamento directo para os programas de trabalho de trabalho temporário legal nos Estados Unidos, através de autorizações dadas pelas agências estatais americanas)45.

Finalmente, as Filipinas aprovaram uma lei que faz com que os angariadores sejam responsáveis solidariamente pelas violações cometidas pelos empregadores de trabalho estrangeiro, descritos com maior detalhe abaixo.

                                                            44 Diminescu, veja-se nota supra 41, at 65, 68-69. A função de recrutamento do governo romeno tem gerado algum ressentimento entre os angariadores particulares, e também tem criado tensões com o papel do governo como um impulsionador dos direitos dos migrantes. Id. at 69. 45 Por exemplo, em Zacatecas, o Migration Institute estatal desenvolveu um programa onde directamente pesquisa e selecciona trabalhadores para a colocação em empresas participantes, eliminando o papel do angariador. Miguel Moctezuma Longoria, Trabajadores Temporales Contratados por EE.UU.: Informe Sobre el Programa Piloto del Gobierno de Zacatecas [Temporary Workers Contracted by the U.S.: Report on the Pilot Program of the Government of Zacatecas] (relatório não publicado). Os estados de Michoacán e Guanajuato criaram programas semelhantes. Entrevista com Rachel Micah-Jones, fundador e Director Executivo, Centro de los Derechos del Migrante, Inc., em Zacatecas, Mex. (24 de maio, 2006). O mesmo com o estado de Jalisco. Fitzgerald, Fitzgerald, veja-se nota supra 36, at 17. Numa rara harmonia, em 2008, a norte-americana United Farm Workers assinou um acordo com o governo do estado mexicano de Michoacán para recrutar trabalhadores rurais para empregos sindicalizados no âmbito do H-2A programa de trabalho temporário agrícola. Susan Ferriss, UFW Signs Pact with Mexican State for Guest Workers on U.S. Farms, Sacramento Bee, 18 de Abril, 2008, at A4.

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• Regulamentação para partir. Os países que regulam a saída dos seus migrantes podem exigir que um migrante que quer partir mostre um contrato de trabalho temporário que satisfaz certas e determinadas normas mínimas de modo a receber uma autorização de saída. Este mecanismo é utilizado pelas Filipinas. A complicação aqui é que não é raro que os angariadores e os empregadores exijam que os imigrantes assinem um segundo contrato, com menos normas de protecção à chegada, insistindo em que as suas disposições permitem evitar as protecções do primeiro contracto46. Por exemplo, quando os filipinos chegam à Arábia Saudita, rotineiramente é-lhes exigido que assinem um segundo contrato renunciando aos seus direitos ao abrigo das leis das Filipinas47.

• Intervenção diplomática. Um número de países de origem têm colocado Labor Attachés ou seus equivalentes nos postos consulares no estrangeiro para conciliar os litígios sobre trabalho que vierem a surgir, e / ou para fornecer alguma forma de representação jurídica para os imigrantes em questões de trabalho. No Paquistão, nas Filipinas e no Sri Lanka, entre outros países, os funcionários consulares têm sido utilizados para monitorar e estabelecer as condições de trabalho efectuado sob contrato temporário no exterior48. Estes esforços têm muitas vezes falhado devido à falta de financiamento e de formação do pessoal, às dificuldades de intervenção dentro do sistema jurídico de outra nação, e às pressões contraditórias que os funcionários consulares enfrentam, enquanto tentam manter boas relações com o país de acolhimento encarregado de

                                                            46 Ver, e.g., Robyn Rodriguez, Brokering Bodies: The Philippine State and The Globalization of Migrant Workers (a publicar em 2009). 47 Mary Lou L. Alcid, Overseas Filipino Workers: Sacrificial Lambs at the Altar of Deregulation, in International Migration And Sending Countries: Perceptions, Policies And Transnational Relations (Eva Østergaard-Nielson ed., 2003) 99, 115-116. 48 IOM, veja-se nota supra 33, at 17-18, 21, 23.

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estabelecer e determinar as violações dos direitos sobre os migrantes49. Nos casos mais evidentes os consulados podem fazer acordos em curto espaço de tempo ou então usar a diplomacia para resolver casos de exploração flagrante. Tais intervenções raramente são pressionadas até ao ponto em que pudessem tornar tensas as relações com o país anfitrião.

• Os direitos dos Migrantes quanto a Educação. Uma série de governos de países de origem começaram a colaborar activamente com as organizações da sociedade civil nos seus esforços para dar aos migrantes informações sobre os seus direitos antes de deixarem o país. Por exemplo, no Sri Lanka, Filipinas, Roménia e Polónia, entre outros países, o governo trabalha com organizações de migrantes e dos sindicatos para integrar a formação sobre os direitos e soluções nas orientações oficiais antes da partida50. Sindicatos e ONGs em muitos outros países estão a pressionar para que estas orientações assumam um carácter formal, o que na sua opinião, actualmente tendem mais a sublinhar a conformidade com as exigências dos empregadores do que sobre a defesa os direitos dos trabalhadores migrantes51.

• Instrumentos Internacionais. Há países de origem que também têm procurado levar os direitos dos migrantes até à área dos direitos humanos internacionais, trabalhando através da OIT e das Nações Unidas para prosseguir com a ratificação dos instrumentos internacionais como a Convenção sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores

                                                            49 Para uma crítica ao nível de protecção assegurado pelos funcionários consulares das Filipinas, ver Rodriguez, veja-se nota supra 45 (manuscripto cap. 6); Ofreneo e Samonte, veja-se nota supra 30, passim. 50 IOM, veja-se nota supra 33, at 118-20; Bobeva e Garson, veja-se nota supra 22, at 18-19. 51 Entrevista com Josua Mata, veja-se nota supra 32; Entrevista com Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32; Entrevista com Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32.

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Migrantes e Membros das suas famílias. Até agora, contudo, nenhum país de destino importante assinou a Convenção52.

C. Abordagens contrastantes: México e Filipinas Enquanto este resumo até agora tem sublinhado o que há de comum entre

os países de origem, existem diferenças marcantes entre as nações de origem na maneira de escolher a estrutura da emigração e na maneira de lutar contra (ou não) as violações dos direitos dos seus emigrantes no estrangeiro. Para dar uma ideia da variedade de abordagens, passamos agora à análise das políticas do México e as Filipinas, os dois principais países de origem que têm abordado a gestão da migração de trabalho e de protecção dos trabalhadores migrantes de maneira muito diferente.

1. México

Cerca de doze milhões de mexicanos vivem actualmente no estrangeiro.

Cerca de noventa e oito por cento deles estão nos Estados Unidos, ou seja, catorze por cento da força de trabalho mexicana53. Em 2007, esses migrantes enviaram para casa um valor estimado em vinte e quatro mil milhões de dólares em remessas, ou seja cerca de dois a três por cento do PIB do país54. Apesar do papel central da emigração para o trabalhador no México, tanto de hoje como historicamente, pelo menos desde há meio século, o governo tem sido veemente em negar que promove a emigração como uma solução para a

                                                            52 Ver veja-se nota supra 5 e o texto que o acompanha. 53 11.8 Million, Chicago Trib., 21 Agosto, 2008, at C19; Mexican-Born Persons in the US Civilian Labor Force, Immigration Facts (Migration Policy Inst.), Novembro. 2006, at 1, disponível em http://www.migrationpolicy.org/pubs/FS14_MexicanWorkers2006.pdf. 54 James Painter, U.S. Woes Slow Migrant Remittances, BBC NEWS, 12 de Março, 2008, disponível em http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/americas/7292216.stm.

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situação económica calamitosa do país55. O governo mexicano caracteriza hoje a emigração como o produto de forças globais, em vez de a considerar como política de Estado. Nas palavras do actual director do Ministério Mexicano de Relações Exteriores, o governo não está "na actividade de promover a migração de trabalho, facilitando-o, ou a recrutar trabalhadores para outros países"56. Também não procura regular o fluxo de saída de migrantes, em parte como reconhecimento da impossibilidade de uma gestão eficaz do movimento migratório ao longo de toda a sua fronteira com os Estados Unidos de quase 2 000 km de cumprimento57.

Apesar do desmentido, o tratamento do governo mexicano nas questões da migração não é totalmente de quem se coloca de fora, não é completamente passivo. Foi negociado um acordo bilateral com o Canadá, que rege a migração temporária de trabalhadores agrícolas, e desde o final dos anos 90 tem procurado tratar a migração para os Estados Unidos como uma questão bilateral embora aqui com menos sucesso58. Na última década, o México também criou um programa em larga escala para criar vínculos com os seus cidadãos no exterior e incentivar a continuação do envio das suas remessas e investimentos59.

                                                            55 Para sínteses históricas da política de emigração do México, consulte Jorge Durand, From Traitors to Heroes: 100 Years of Mexican Migration Policies, MPI Migration Info. Source, Março, 2004, disponível em http://www.migrationinformation.org/Feature/display.cfm?ID=203; Fitzgerald, veja-se nota supra 36; Marc R. Rosenblum, Moving Beyond the Policy of No Policy: Emigration from Mexico and Central America, 46 LATIN AM. POL. & SOC’Y 91 (2004). 56 Entrevista com Daniel Hernandez Joseph, Dir. Gen. for Prot. & Consular Affairs, Bureau of Consular Prot., Ministry of Foreign Relations of Mex. (SRE), Cidade do México, México (5 de Março, 2008). 57 Apesar de existir uma exigência legal de que os migrantes provem que têm um contrato de trabalho e que cumprem os requisitos de entrada antes de partir, o governo não o impõe. Fitzgerald, supra nota 36, 15-16. 58 Rosenblum, veja-se nota supra 54, at 108-13. 59 Fitzgerald, veja-se nota supra 36, at 14; Rosenblum, veja-se nota supra 54, at 111-12. As políticas incluíram a criação de um Instituto de Mexicanos no Exterior, através do qual os migrantes aconselhavam o governo mexicano sobre as suas políticas; disposição

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No entanto, uma área onde o governo mexicano não tem prosseguido uma política coerente é em relação com os direitos do trabalho dos seus imigrantes. Ao contrário de muitos outros grandes países de origem de migrantes, os consulados do México nos Estados Unidos não têm qualquer programa organizado para ajudar os imigrantes com problemas de trabalho, embora haja cônsules que individualmente se possam interessar pelas questões laborais. Alguns consulados têm acordos com o Ministério do Trabalho dos Estados Unidos ao abrigo do qual este ministério concorda em fornecer formação sobre os direitos dos trabalhadores aos agentes do consulado e ao próprio cônsul perante situações que o justifiquem60. Outros consulados têm ocasionalmente procurado encontrar soluções juridicamente aceitáveis de apoio judicial ou contratado advogados para intervirem em processos judiciais onde os interesses dos trabalhadores mexicanos estavam em risco61. Às vezes, um funcionário consular poderá criar um acordo com um sindicato local ou com uma organização sobre direitos dos trabalhadores62. Mas Daniel

                                                                                                                                   pelos consulados da “matrícula consular”, uma forma de identificação oficial; dupla nacionalidade: o direito de votação no México, eleições para cidadãos mexicanos no exterior e a criação do programa “ três para um”, que afecta as remessas de imigrantes a projectos de desenvolvimento através dos canais oficiais, a uma taxa de três para um. Gustavo Cano e Alexandra Delano, The Mexican Government and Organised Mexican Immigrants in the United States: A Historical Analysis of Political Transnationalism (1848-2005), 33 J. Ethnic & Migration Stud. 695 (2005). 60 Para um exemplo de tal acordo que envolve o Consulado Mexicano em Houston, ver U.S. Dep’t of Labor, Occupational Safety & Health Admin., Alliance Agreement (24 de Março, 2006), disponível em http://www.osha.gov/dcsp/alliances/regional/reg6/mex_con_houston_final.html. 61 In 1998, por exemplo, o governo mexicano juntou-se a uma acção judicial contra DeCoster Egg Farm, alegando violações de normas salariais e outras leis laborais. Este foi primeiro processo do México contra um empregador americano. Northeast: Poultry, Eggs, 4 Rural Migration News (Julho, 1998), disponível em http://migration.ucdavis.edu/rmn/more.php?id=283_0_2_0. 62 Isto aconteceu em meados da década de 2000 na região metropolitana de Nova Iorque, quando o então Cônsul (actual Embaixador) Arturo Sarukhan fez um esforço para cimentar relações com os centros de trabalhadores no contexto dos conflitos em torno do dia do trabalhador mexicano em Nova Iorque e Nova Jérsia. Comunicação pessoal com Arturo Sarukhan, Cônsul do México, em NY, NY (28 de Outubro de

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Hernandez Joseph, director do departamento do governo mexicano de Protecção Consular, descreve a defesa dos direitos dos trabalhadores como uma das mais baixas prioridades do sobrecarregado pessoal do consulado63. O México não estabelece requisitos mínimos para o emprego dos seus nacionais nos Estados Unidos, não oferece modelos de contratos ou de acordos, não tem limites quanto à migração, não faz nenhuma formação prévia quanto aos direitos dos migrantes e faz apenas os esforços mínimos para regular o recrutamento em solo mexicano.

Se os quisesse usar, o governo mexicano tinha instrumentos à sua disposição para controlar o recrutamento altamente explorador de trabalho migrante. Por exemplo, o artigo 28* da Lei Federal do México sobre o Direito do Trabalho determina que os angariadores a operar no México tenham sido autorizados pelo Governo, que aos trabalhadores sejam antecipadamente pagos os custos de viagem e taxas de visto, que aqueles apresentem uma cópia do contrato de trabalho, e o pagamento de uma caução no caso de os direitos dos trabalhadores serem violados. Ainda não há nenhuma situação documentada em que o governo mexicano tenha aplicado essa lei contra os angariadores de mão-de-obra migrante64:

                                                                                                                                   2005). Para uma nota sobre uma colaboração informal entre o consulado mexicano em Chicago, e um sindicato que procurava organizar os migrantes mexicanos, ver Leon Fink, Labor Joins La Marcha: How New Immigrant Activists Restored the Meaning of May Day (2008) (manuscrito não publicado). 63 Daniel Hernandez Joseph, Dir. Gen. for Prot. & Consular Affairs, Bureau of Consular Prot., Ministry of Foreign Relations of Mex. (SRE), Remarks at the Binational Labor Justice Convening (Out. 6, 2007); entrevista com Daniel Hernandez Joseph, veja-se nota supra 55. * Ver caixa (N. de T.). 64 Jorge Fernandez Souza, Juiz, Professor de Direito e antigo Reitor, Universidad Autónoma Metropolitana, México, Remarks at the Binational Labor Justice Convening (6 de Outubro, 2007). Para um argumento para a aplicação do artigo 28 pelos tribunais americanos, ver Kati L. Griffith, Globalizing U.S. Employment Statutes Through Foreign Law Influence: Mexico’s Foreign Employer Provision and Recruited Mexican Workers, 29 COMP. LAB. L. & POL’Y J. 383 (2008).

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TRABALHO

Direito Nacional do Trabalho

Artigo 28.º

Na prestação de serviços para os trabalhadores mexicanos fora da República,

terão que ser respeitadas as seguintes normas:

I. As condições de trabalho serão estabelecidas por escrito e devem conter, para

serem válidas, as cláusulas seguintes:

a) Os requisitos previstos no artigo 25.º

b) As despesas de transporte, repatriamento, transporte para o local de origem e

alimentação do trabalhador e sua família, se for caso disso, e todos os relacionados com

a passagem pela fronteira e o cumprimento das disposições legais relativas à migração,

ou qualquer outro factor similar, serão da responsabilidade exclusiva do empregador. O

trabalhador receberá o salário integral que lhe é devido não sendo descontada qualquer

quantia para essas despesas.

c) O trabalhador tem direito aos benefícios que as instituições de segurança social

concedam aos estrangeiros no país em que irá prestar os seus serviços. Em qualquer

caso, terá direito a ser indemnizado pelos riscos do trabalho e, pelo menos, segundo os

valores estipulados pela lei, no mínimo.

d) Terá o direito de desfrutar, no local de trabalho ou nas proximidades, por

arrendamento ou de outro modo, de uma habitação decente e higiénica.

II. O patrão deve fixar o domicílio dentro da República para todos os efeitos

legais.

III. O contracto que contém as condições de trabalho, deverá ser sujeito a

aprovação da Câmara de Conciliação e Arbitragem em cuja jurisdição se celebrou, a

qual depois de comprovar a verificação dos requisitos legais prevista na Secção I,

determinará o valor da caução ou do depósito que considera suficiente para garantir o

cumprimento das suas obrigações. O depósito deverá ser constituído no Banco do

México ou na instituição bancária por ele designada. O empregador deve provar na

mesma Câmara, o outorgamento da caução ou a constituição do depósito.

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Numa entrevista recente, Hernandez explicou que o México tem falta de investimento na protecção dos trabalhadores nos Estados Unidos como resultado da indiferença do público mexicano quanto às violações dos direitos dos trabalhadores migrantes mexicanos. A esta situação contrapõe a insistência dos mexicanos quanto a uma resposta consular à situação das mortes nas fronteiras, à repatriação dos corpos e à pena de morte, de que resultou a canalização de milhões de dólares em iniciativas diplomáticas nestas áreas65. Outros factores estarão provavelmente a funcionar muito bem. Por exemplo, ao contrário do repatriamento, a defesa dos direitos põe o consulado mexicano em conflito directo com os empregadores, que de outra forma seriam vistos como aliados desejáveis. 2. As Filipinas

Hoje, mais de 8,2 milhões de filipinos vivem em mais de 190 países,

representando um quarto da força de trabalho das Filipinas66. Em 2007, as remessas enviadas pelos filipinos a trabalhar no estrangeiro totalizaram mais de catorze mil milhões de dólares, cerca de dez por cento do PIB do país67. Tal como estes números indicam, ainda mais do que o México, as Filipinas é um dos mais activos países exportadores de mão-de-obra. É também entre todos eles, um dos mais organizados, com uma ampla gama de leis e instituições destinadas a canalizar a migração e a regular os angariadores, os empregadores e os próprios migrantes. Em contraste com o México, oferece o exemplo de um

                                                            65 Entrevista com Daniel Hernandez Joseph, veja-se nota supra 55. 66 Dovelyn Rannveig Agunias e Neil G. Ruiz, Protecting Overseas Workers: Lessons and Cautions from the Philippines, Insight (Migration Policy Inst.), Sept. 2007, at 2, disponível em http://www.migrationpolicy.org/pubs/MigDevInsight_091807.pdf. 67 AFX News Limited, Philippines 2007 Overseas Workers' Remittances at Record 14.4 Billion Dollars, Fev. 15, 2007, disponível em http://www.forbes.com/markets/feeds/afx/2008/02/15/afx4659876.html. Para comparar, em 2007, o México recebeu 24 mil milhões de dólares em remessas de emigrantes, correspondendo a 2-3% do PIB. Painter, veja-se nota supra 53.

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país de origem que tem uma abordagem mais pró-activa, embora ainda conflitualmente abafada — tanto quanto à gestão (e ao encorajamento) da migração de trabalho como quanto a querer fazer respeitar os direitos laborais dos migrantes.

As Filipinas já têm uma longa história de emigração de trabalhadores desde 1974, quando o então presidente Ferdinand Marcos anunciou uma nova política em que de forma claramente afirmativa iria promover a emigração legal temporária como uma fonte de emprego para os filipinos e de rendimento para o desenvolvimento das Filipinas68. Na sequência disso, o envolvimento do governo no processo de migração aumentou significativamente e as taxas de emigração aumentaram fortemente. Nas décadas seguintes, o Estado das Filipinas criou um conjunto de instituições para incentivar e regulamentar a migração com base em contratos de trabalho no estrangeiro.

A Phillipines Overseas Employment Agency (POEA) é o organismo governamental encarregado de gerir a emigração. Todas as entidades de recrutamento devem ser licenciados pela POEA, e apenas as empresas licenciadas pela POEA ou a própria POEA com os seus programas de recrutamento directo estão autorizadas a colocar os trabalhadores em postos de trabalho no exterior. A POEA está encarregada de monitorização das agências privadas de recrutamento, embora a sua capacidade de o fazer seja limitada69. Se os migrantes encontram trabalho através do governo ou de uma agência privada por si regulada, os contratos que assina têm força executiva segundo a lei das Filipinas70. Se o empregador estrangeiro não respeitar os termos do

                                                            68 Agunias e Ruiz, veja-se nota supra 65, at 2, 6; Joaquin L. Gonzalez Iii, Philippine Labour Migration: Critical Dimensions Of Public Policy 33-36 (1998); Kevin O’Neil, Labor Export as Government Policy: The Case of the Philippines, MPI Migration Info. Source, Jan. 2004, http://www.migrationinformation.org/USFocus/display.cfm?ID=191. Embora esse esforço tenha aumentado a percentagem de filipinos que migram legalmente, há ainda uma quantidade significativa de migração ilegal. Id. 69 Agunias, veja-se nota supra 26, at 16-17. 70 O’Neil, veja-se nota supra 67.

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contrato, a agência de emprego filipino é solidariamente responsável pelas violações71. Esta medida destina-se a dar aos trabalhadores migrantes filipinos uma forma de obter uma indemnização por abusos de trabalho, uma vez que regressem ao seu país de origem, em reconhecimento das dificuldades muitas vezes intransponíveis de por directamente em tribunal um processo contra o empregador, enquanto trabalhava no estrangeiro sob um contracto72. A POEA também estabelece padrões mínimos para o emprego em indústrias específicas73, processa os contratos de trabalho e certifica que os trabalhadores têm o nível de qualificação para se poderem empregar no exterior. Finalmente, a POEA procura desenvolver novas oportunidades de trabalho no exterior para os filipinos e ela própria recruta trabalhadores para alguns empregos no exterior74.

A Overseas Workers Welfare Administration (OWWA) é o organismo principal através do qual o governo das Filipinas presta serviços aos migrantes. A OWWA gere um fundo de previdência de 246 milhões de dólares que é financiado através das contribuições obrigatórias dos imigrantes (e, nominalmente, as dos seus empregadores, embora a parcela patronal da taxa é frequentemente transmitida através do trabalhador)75. Isto permite que os imigrantes contribuam para o seguro de vida e de invalidez, empréstimos, subsídios de educação e de formação, assistência ao repatriamento, representação jurídica, e assistência directa ao trabalhador76. A OWWA também colabora com grupos sobre direitos dos migrantes, com os

                                                            71 Philippine Migrant Workers and Overseas Filipinos Act of 1995, Rep. Act No. 8042 § 10 (1995). 72 Ver Narcan Inc. Shipping and Placement Agency v. Nat’l Labor Relations Comm’n, C.A. G.R. No. 66264 at 7 (2006), disponível em http://ca.supremecourt.gov.ph/cardis/SP66264.pdf. 73 IOM, veja-se nota supra 33, at 34-36, app. F, G at 75-79. 74 Alcid, veja-se nota supra 46, at 106-07. 75 Agunias e Ruiz, veja-se nota supra 65, at 10, 12; Mensagem de Aubrey Makilan ao Migrants News Monitor, http://migrantsnews.blogspot.com/2008/01/congress‐oversight‐of‐owwa‐funds‐sought.html (13 de Janeiro, 2008, 4:07 p.m.). 76 Agunias e Ruiz, veja-se nota supra 65, at 14-19.

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angariadores e organizações da sociedade civil para levar a cabo as orientações para quem vai migrar e adaptadas a determinados sectores e abrangendo cobertura competências técnicas, direitos, cultura e costumes do país que os vai receber77. Possui uma equipa de 580 pessoas, incluindo 180 pessoas em países que são grandes países de destino, com o maior número de Overseas Foreign Workers78.

Em 1995, o governo das Filipinas passou oficialmente de uma atitude pró-afirmativa da migração para uma mais protectora, em resposta à onda de manifestações de massa que se seguiu ao assassinato de Flor Contemplacion, a filipina da Overseas Foreign Worker condenada à morte em Singapura, acusada de assassinato79. A lei Migrants Workers and Overseas Filipinos Act de 1995 declara que "o Estado não promove o emprego no estrangeiro como um meio para sustentar o crescimento económico e alcançar o desenvolvimento nacional", e determina que o "Estado deve apenas colocar trabalhadores filipinos em países onde os direitos dos trabalhadores migrantes filipinos estão protegidas"80. Entre outras novas protecções ao trabalhador migrantes, a lei criou o cargo de Overseas Welfare Officer com funcionários colocados em 28 embaixadas e consulados de países com elevados níveis de imigração filipina, e encarregados de responder às denúncias de abuso sobre os trabalhadores. O Overseas Welfare Officer investiga denúncias de abusos, procura resolver as disputas entre os migrantes e empregadores através da negociação e, se necessário, contratar advogados para representar os imigrantes com processos em questões laborais nos tribunais estrangeiros81.

Como se mencionou acima, as Filipinas também começaram a incorporar modelos de contratos de trabalho específicos nos acordos bilaterais que

                                                            77 IOM, veja-se nota supra 33, at 118-19, 202. 78 Agunias e Ruiz, veja-se nota supra 65, at 9-10. 79 Id. at 7. 80 Philippine Migrant Workers and Overseas Filipinos Act of 1995, Rep. Act No. 8042, §§ (2)(c), 4 (1995). 81 Baruah e Cholewinski, veja-se nota supra 35, at 57; Agunias e Ruiz, veja-se nota supra 65, at 19.

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negoceiam. Além disso, o governo tem, por vezes, de cortar o apoio à saída de novos trabalhadores emigrantes das Filipinas para países onde as violações são particularmente graves. As Filipinas, até agora, aplicaram esta sanção contra cinco países de destino, incluindo mesmo, durante um curto espaço de tempo em 2008, a Jordânia, um país com o qual tinha negociado um acordo de migração que se ficou a dever a relatos de abuso sobre trabalhadores domésticos pelos seus empregadores82. Finalmente, as Filipinas têm sido activas na ratificação de acordos internacionais de protecção de migrantes e na promoção desses mecanismos de protecção dos migrantes nos fóruns internacionais83.

As Filipinas pagaram o preço pela sua reputação como um povo que exige respeito pelos direitos dos seus migrantes. Por exemplo, os migrantes filipinos estão a ser suplantados, no mercado de Hong Kong para os trabalhos domésticos, pelos de outros países, menos exigentes em termos de protecção aos seus migrantes, tais como a Indonésia84. Observadores sugerem que esta mudança é o resultado das exigências salariais mais elevadas e de uma maior consciência dos direitos dos filipinos em relação aos seus concorrentes da

                                                            82 A proibição foi iniciada em Janeiro de 2008. Philippines: No More Workers to Jordan, Associated Press, 23 de Janeiro, 2008, disponível em http://www.usatoday.com/news/world/2008-01-23-903913811_x.htm. Foi levantada em Agosto de 2008. Philippines Allows Workers to Jordan, ASSOCIATED PRESS, 1 de Agosto, 2008, disponível em http://www.iht.com/articles/ap/2008/08/01/asia/AS-Philippines-Jordan.php. As Filipinas terminaram formalmente a migração para a Nigéria, Afeganistão, Líbano e Iraque, por motivos semelhantes. Id. As Filipinas tinham imposto uma proibição semelhante à migração oficial para a Jordânia em 1990, mas levantaram-na em 2005, depois de novas disposições de protecção terem sido aprovadas pelo governo da Jordânia. Philippines Dep’t of Labor & Employment, Deployment Ban of DH to Jordan Lifted, 3 de Março, 2005, http://www.dole.gov.ph/news/details.asp?id=N000000452. 83 Veja-se nota supra 30, at 11-12. 84 Nicole Constable, Maid to Order in Hong Kong: Stories of Migrant Workers vii (2d ed., 2007); Hsiao-Chuan Hsia, Transnationalism from Below: The Case Study of Asian Migrants Coordinating Body 4-5 (Julho, 2007) (artigo não publicado apresentado no 15th Int’l Symposium of the Int’l Consortium for Soc. Dev., H.K.), disponível em http://www.apmigrants.org/papers/Transnationalism_fr_below.pdf.

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Indonésia85. As Filipinas têm procurado abordar a questão da concorrência enfrentando-a através da negociação de um Memorandum of Understanding com a Indonésia, o primeiro a ser concluído entre dois países de origem. O acordo de 2003, estabelece um compromisso comum de formar e certificar os migrantes, promover os direitos dos trabalhadores migrantes no exterior, e prestar assistência jurídica em defesa dos direitos dos trabalhadores imigrantes86.

Para todos, a aplicação da grande amplitude da protecção para os migrantes filipinos as leis têm, no entanto, ficado muitas vezes apenas no papel. Em parte, o problema reflecte as deficiências nas instituições específicas encarregadas da sua aplicação87. As agências encarregadas da protecção dos migrantes filipinos estão cronicamente com pessoal a menos do que é necessário88. Os críticos acusaram que os adidos consulares, encarregados de lutar contra as violações de trabalho, são muitas vezes de nomeação política e sem experiência especializada nas matérias em questão89. Há geralmente uma falta de transparência e de responsabilidade pública em programas de serviço de apoio aos migrantes filipinos e são frequentes as acusações de corrupção e de desperdício na Overseas Workersb Welfare Administration90. Mesmo quando o governo filipino foi mais inovador, por exemplo, com a legislação que impõe a responsabilidade conjunta nas violações no recrutamento dos empregadores estrangeiros, o efeito desta legislação é reduzido na prática pela

                                                            85 Constable, veja-se nota supra 83, at 86-88; Hsia, veja-se nota supra 83, at 8-9. 86 Veja-se nota supra 30, at 4–5. 87 Rodriguez, veja-se nota supra 45 (manuscrito no cap. 6); Agunias, veja-se nota supra 26 at 16-24; Agunias e Ruiz, veja-se nota supra 65; Xinying Chi, Note, Challenging Managed Temporary Labor Migration as a Model for Rights and Development for Labor-Sending Countries, 40 N.Y.U. J. International L. & POL. 497, 514-16 (2008); Ofreneo e Samonte, veja-se nota supra 30. 88 Agunias, veja-se nota supra 26, at 16. 89 Chi, veja-se nota supra 86, at 515; Ofreneo e Samonte, veja-se nota supra 30, at 62. 90 Agunias e Ruiz, veja-se nota supra 65, passim.

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própria sobrecarga das instituições legais, o que tornam, em termos de tempo e de eficácia mais difícil a prossecução dos seus objectivos91.

Além disso, e em termos gerais, as limitações do governo filipino na sua abordagem para fazer respeitar os direitos dos trabalhadores migrantes reflectem a tensão entre o desejo de manter boas relações com os países de destino e sua posição como defensor dos direitos dos seus emigrantes. Apesar das suas proclamações oficiais, o governo filipino continua a depender fortemente da migração para o exterior. Como observa o sociólogo Robyn Rodriguez, no seu estudo sobre o papel do governo filipino no tratamento de um conflito entre os migrantes filipinos e a fábrica onde trabalhavam no Brunei, a relutância do governo em colocar em risco as suas relações diplomáticas com os países de destino chave pode levá-lo a fazer pressão sobre os seus migrantes para chegarem a um acordo ou para deixarem cair as suas reivindicações, mais do que actuar na qualidade de seu advogado92. Além disso, como se mencionou anteriormente, muitos dos mecanismos que o governo filipino criou para proteger os direitos dos migrantes — modelos de contratos e salários mínimos, a exigência de que os migrantes tenham um contrato válido para terem a autorização de saída, a responsabilidade dos angariadores nas violações dos empregadores — podem estar, e muitas vezes estão, curto-circuitadas pela exigência comum de que os migrantes assinem um segundo contrato, de menos protecção, à sua chegada ao país de destino93. Por todas estas razões, os migrantes que procuram o apoio e assistência do Governo das Filipinas na resolução dos problemas no local de trabalho, muitas vezes constatam que o governo não cumpriu as suas promessas de protecção.

 

                                                            91 Chi, veja-se nota supra 86, at 514-16. 92 Rodriguez, veja-se nota supra 45 (manuscript at ch. 6). 93 Para uma crítica ao funcionamento do contracto modelo no contexto de Hong Kong, ver Constable, veja-se nota supra 83, cap. 6. Contratos impostos pelo Governo pouco valem a menos que o país de destino também assuma a sua obrigatoriedade. Gwenann S. Manseau, Contractual Solutions for Migrant Labourers: The Case of Domestic Workers in the Middle East, 2 HUM. RTS. L. COMMENT. 25, 30 (2006).

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D. Desafios e lições aprendidas Esta análise não deixa nenhuma dúvida de que existe uma alternativa à

política de migração de trabalho definida unilateralmente pelos países de destino. Em muitos lugares à volta do mundo, a gestão da migração laboral está a ser feita de forma bilateral. E, embora os países de origem enfrentem incentivos consideráveis para minimizar a questão dos direitos dos migrantes, a política nacional em termos da emigração é complexa e, também, há razões para um país de origem a tomar medidas pró-activas para defender os direitos dos seus imigrantes. Quanto à comparação entre o México e as Filipinas, esta ilustra que o grau de pressão política interna em torno da questão pode ser um factor importante para que um país coloque em primeiro plano os direitos na sua política de emigração. Assim, também é com a geografia que as Filipinas, que com a sua configuração insular, têm maior controlo sobre a migração exterior, para um amplo leque de países parceiros como potencial destino, do que tem o México, que está trancado por uma relação com um único grande país de destino com o qual partilha uma extensa fronteira.

Uma outra questão é saber qual a eficácia que um país de origem pode ter quando decida assumir os direitos laborais como um assunto próprio a resolver. Nem os esforços independentes dos Estados dos países de origem para proteger os direitos dos migrantes, nem os mecanismos de protecção dos acordos bilaterais têm sido avaliados sistematicamente. O que está claro, a partir de uma análise das críticas e da literatura que avalia outros aspectos da origem da políticas estatais de migração, é que as protecções estabelecidas no papel raramente estão totalmente aplicadas, se é que estão mesmo a serem aplicadas. Os Estados de origem tem um fraco poder nas negociações sobre trabalho imigrante e a protecção que conseguem estabelecer é frequentemente comprometida, tanto pelos limites práticos da capacidade do país de origem em fazer cumprir as leis próprias de trabalho fora do seu território (em

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especial, dada a fragilidade das suas instituições jurídicas)94, e por tensões sobre se a aplicação destas leis faz sentido, quando o objectivo do país é manter um elevado nível de emigração de trabalho.

No mercado global de emprego, há uma pressão significativa sobre os países de origem para as questões a informalidade dos direitos dos migrantes, a fim de tornar os seus cidadãos mais desejáveis como trabalhadores temporários. Como, estes casos tornam evidente, a negociação de acordos bilaterais sobre trabalho migrante (em oposição aos multilaterais ou regionais) intensifica esta preocupação, assim como os países de origem temem que, se tentarem fazer com que os direitos dos migrantes sejam uma prioridade, podem ser ultrapassados por potenciais "parceiros " dos países de destino, países que exigem menos direitos a favor dos seus migrantes. Para evitar este resultado, alguns países, uma vez definido o salário mínimo para os seus emigrantes, como o Paquistão, abandonam esse esforço e agora limitam a sua abordagem à regulação das agências de recrutamento e sobre as violações mais graves dos direitos humanos no exterior95. Os acordos multilaterais ou regionais, pelo contrário, têm a capacidade de colocar os direitos do trabalho fora da concorrência entre países, definindo a linha de base para esses mesmos direitos para todas as nações de origem e de destino. Por esta razão, estes acordos são de longe preferíveis a uma abordagem bilateral, na perspectiva dos direitos dos imigrantes.

Finalmente, os casos reforçam a impressão de que não importa o quanto criativo ou activo é um país de origem na protecção dos direitos dos trabalhadores migrantes, pois há limites para o que pode conseguir, desde que não tenha a colaboração activa do país de destino. Não só os países de destino detêm maior capacidade de negociação, mas é igualmente no país de destino que ocorrem as violações ao direito do trabalho e são as suas leis e as suas instituições jurídicas que são maioritariamente utilizadas para lhes dar resposta                                                             94 Chi, veja-se nota supra 86, at 511-16; Ofreneo e Samonte, veja-se nota supra 30, at 14. 95 IOM, veja-se nota supra 33, at 33.

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e as resolver. As meias medidas que dependem exclusivamente de esforços de um país de origem estão, portanto, condenadas a terem mesmo muito pouco sucesso. Se as protecções migrantes devem ser uma realidade, cabe aos países de destino o dever de liderar o processo, tomando como central a questão dos direitos fundamentais na concepção dos seus programas de trabalho migrante e criar os mecanismos de financiamento suficientemente concretos para reforçar as protecções de trabalho para os migrantes.

Se os países de destino pretenderem aplicar um programa equivalente ao da Cidadania do Trabalhador Transnacional há razões para acreditar que este país poderia também fazer apelo também à participação dos países de origem. O programa Cidadania do Trabalhador Transnacional iria criar mais linhas de abertura para os trabalhadores migrantes, aumentar os salários dos migrantes e remover os obstáculos à migração de retorno, sendo todos estes efeitos igualmente do interesse dos países de origem. Se os países de destino fizessem disto uma prioridade abrir-se-ia também a porta para a negociação desses acordos, numa base regional, em vez de uma abordagem menos eficaz, de país a país. Finalmente, o programa Cidadania do Trabalhador Transnacional criaria uma rede de trabalho interligando as organizações de protecção na origem e nos países de destino e facilitaria a colaboração directa entre países de origem, as organizações de trabalhadores e os governos dos países de destino sobre os esforços para fazer cumprir as normas de trabalho, podendo apoiar o país de origem nas suas preocupações sobre a inadequação dos seus instrumentos actuais para a defesa do trabalhador migrante.

III. EXEMPLOS EMERGENTES DA CIDADANIA DO TRABA-LHADOR MIGRANTE

A. Compensação da cidadania do trabalhador migrante

No cerne da proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional está a

ideia de que os migrantes e os trabalhadores no país de destino estarão melhor

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protegidos se migrantes viajarem através das fronteiras como "cidadãos trabalhadores". Para alcançarem este estatuto, os imigrantes teriam vínculos com as organizações de trabalhadores nos seus países de origem, antes da partida, bem como nas comunidades de destino onde irão trabalhar a totalidade ou uma parte do ano. Refiro-me a este estatuto como cidadania do trabalhador móvel. Na proposta completa, o que permite aos migrantes terem um visto de trabalho no país de destino é a cidadania e o cumprimento das suas obrigações, ao invés de uma ligação ao seu empregador.

A colaboração entre as organizações de trabalhadores de países de origem e de destino para garantir os direitos dos migrantes são parte de um espectro mais amplo de solidariedades do trabalho global. Na América do Norte e na União Europeia, em particular, a solidariedade global é mais frequentemente activada através de campanhas em que os sindicatos (e, por vezes, as organizações de defesa dos direitos), em diferentes países unem forças para pressionar uma multinacional a melhorar o tratamento em relação aos trabalhadores. O objectivo dessas campanhas é geralmente alcançar uma vitória específica relativamente a um determinado local de trabalho ou de emprego num único país. À medida que o capital circula cada vez mais livremente através das fronteiras, estas campanhas são cada vez mais comuns e mais necessárias96. A solidariedade entre os países é uma componente essencial de toda e qualquer estratégia para aumentar os salários e melhorar as condições de trabalho na economia global. Mas o seu foco é a detenção do capital móvel contabilizável, numa base caso a caso97. Nesta forma distinta da

                                                            96 Para uma análise histórica da colaboração transfronteiriça ao nível do trabalho, ver Beverly J. Silver, Forces of Labor: Workers’ Movements and Globalization Since 1870 (2003). Exemplos de campanhas recentes são dados em Global Unions: Challenging Transnational Capital Through Cross-Border Campaigns (Kate Bronfenbrenner ed., 2007) [a partir daqui, Global Unions], and Global Unions? Theory and Strategies of Organized Labour in the Global Political Economy (Jeffrey Harrod e Robert O’Brien eds., 2002). Para uma perspective crítica, ver Alan Howard, The Future of Global Unions: Is Solidarity Still Forever?, DISSENT MAG., Fall 2007, at 62. 97 As Federações Sindicais também começaram a negociar acordos de âmbito internacional, com empresas transnacionais, como forma de as obrigar a um conjunto

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proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional, que visa reforçar o controlo dos próprios migrantes que passam as fronteiras, com o objectivo de criar uma capacidade do trabalhador móvel defender os seus direitos de forma contínua e numa ampla faixa de empregadores98. A cidadania do trabalhador móvel, um componente central da proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional, exige a criação de estruturas organizativas e de relações que correspondam às realidades da migração. Em comparação com outras formas de solidariedade de trabalho global, a cidadania de trabalho migrante ainda está na sua infância. No entanto, sindicatos e ONGs de todo o mundo estão a começar a reconhecer a sua necessidade e a explorar o seu potencial.

A cidadania do trabalhador móvel é um aspecto do esforço por parte dos sindicatos de todo o mundo para desenvolver uma resposta positiva à última vaga de imigração global. Ao longo de várias décadas, Sindicatos da União Europeia e dos países de destino na América do Norte têm experimentado diversas formas para acolher novos imigrantes (incluindo os indocumentados) nas suas fileiras e para defender os direitos dos imigrantes como trabalhadores. Nos Estados Unidos, os sindicatos têm feito grandes progressos na organização

                                                                                                                                   uniforme de práticas laborais a nível mundial. Ver Dimitris Stevis e Terry Boswell, International Framework Agreements: Opportunities and Challenges for Global Unionism, in GLOBAL UNIONS, veja-se nota supra 95, at 174. 98 Uma crítica comum a alguns esforços para tornar o capital global responsável — em particular, os acordos de vigilância privada negociados entre marcas transnacionais e organizações não-governamentais — é que o processo enfraquece os trabalhadores que trabalham para as empresas subcontratadas pelas transnacionais, e cujos empregadores podem utilizar os acordos para evitar a sindicalização. Para uma crítica, veja-se Jill Esbenshade, Monitoring Sweatshops: Workers, Consumers, And the Global Apparel Industry 198-201 (2004). A Cidadania do Trabalhador Transnacional pode ser entendida como uma resposta a essa agenda inacabada, em que aborda as condições de trabalho global a partir da perspectiva dos trabalhadores e com a sua participação activa. Mark Barenberg oferece um modelo de controlo alternativos na Toward a Democratic Model of Transnational Labour Monitoring?, in Regulating Labour in the Wake of Globalisation: New Challenges, New Institutions 37 (Brian Bercusson e Cynthia Estlund eds., 2008).

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dos imigrantes99. Ao fazê-lo, no entanto, têm estado, em grande parte, a trabalhar sozinhos. Com excepções que são tão poucas mas que confirmam a regra100, estes não têm estado a colaborar com os sindicatos do país de origem para organizar os imigrantes provenientes desses países, nem mantêm uma presença acessível aos seus membros nos seus países de origem — para além de Farm Labor Organization Committee, cuja abordagem se discute abaixo. O mesmo poderia ser dito da maioria dos sindicatos no Canadá101. Embora tenha havido um pouco deste tipo de prática e de ligações na União Europeia e nos países do leste europeu nomeadamente na colaboração entre os sindicatos, a grande maioria desses esforços permanecem bastante unilaterais102.                                                             99 Para um conjunto de trabalhos sobre as novas preocupações dos movimentos de trabalhadores organizados sobre os trabalhadores imigrantes, ver Ruth Milkman, L.A. Story: Immigrant Workers and the Future of the U.S. Labor Movement (2006); Immanuel Ness, Immigrants, Unions, and the New U.S. Labor Market (2005); Organizing Immigrants: The Challenge for Unions in Contemporary California (Ruth Milkman ed., 2000). 100 O único exemplo, de que tenho conhecimento, em que um sindicato esteve directamente envolvido na organização de uma campanha envolvendo os imigrantes dentro dos EUA foi a colaboração entre o sindicato independente mexicano FAT (a Frente Autónoma de Trabajadores) e o sindicato independente dos EUA, UE (o United Electrical). Entre outros esforços colaborativos, a FAT foi para Milwaukee durante várias semanas em 1994 para ajudar o UE a organizar trabalhadores imigrantes mexicanos na fundição AceCo, lá localizada. Terry Davis, Cross-border Organizing Comes Home: UE & FAT in Mexico & Milwaukee, 23 LAB. RES. REV. 23 (1995). 101 Por exemplo, nos seus esforços para melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores agrícolas migrantes, a United Food and Commercial Workers Canada lançou uma rede de cinco centros regionais de apoio ao trabalhador Migrante. United Food and Commercial Workers Canada, UFCW Canada National Report on the Status of Migrant Farm Workers in Canada 3 (2004) disponível em http://www.ufcw.ca/Theme/UFCW/files/AgWorkersReport2004ENG.pdf. Também ganhou uma representação, nas eleições em quatro fazendas. Jennifer Hill, Binational Guestworker Unions: Moving Guestworkers into the House of Labor, 35 FORDHAM URB. L. J. 307, 320 (2008). Mas esses esforços não têm nenhuma ligação com instituições dos países de origem. 102 Um conjunto de sindicatos da UE iniciaram programas para chegar e incorporar membros imigrantes (incluindo os não documentados), mas a maioria destes programas têm sido implementados de forma unilateral, e não em colaboração com os seus homólogos dos países de origem. Veja-se as descrições das abordagens dos sindicatos aos imigrantes em Espanha, Itália e França em Julie R. Watts, Immigration Policy and

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Os esforços dos sindicatos do país de destino e das ONG são essenciais para garantir que os direitos dos migrantes sejam respeitados. Mas, especialmente nas situações em que os migrantes viagem para um e para outro lado, entre a sua casa e os países de destino, há limites para o que uma abordagem unilateral possa alcançar. A proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional apela a um reconhecimento do que quando os imigrantes continuam a moverem-se de um país para outro e é importante um elevado nível de coordenação entre as organizações de trabalhadores de origem e país de destino para garantir que os migrantes sejam capazes de defender seus direitos. Uma abordagem coordenada sobre a cidadania do trabalhador móvel complementará os muitos outros esforços que o país de destino e as organizações de trabalhadores do país de origem têm actualmente desenvolvido para responder às necessidades dos imigrantes.

A cidadania do trabalhador móvel está a assumir formas diferentes em todo o mundo. Na sua expressão mais literal, algumas Federações Sindicais ou GUFs (confederações de sindicatos por ramo industrial ou ainda Centrais Sindicais,) estão a trabalhar com os "passaportes da União", documentos que permitem que os indivíduos que pertencem a um dos seus sindicatos filiados num país de origem possam reivindicar alguns benefícios dos sindicatos irmãos no país de destino. Isso representa uma mudança significativa para a União das Federações de Sindicatos que anteriormente tinha centrado a sua

                                                                                                                                   the Challenge of Globalization: Unions and Employers in Unlikely Alliance (2002). Uma excepção interessante é o de uma década de longa colaboração entre o Building Trades Council, em Roma, e o seu homólogo na Roménia, através das quais os sindicatos romenos enviaram quatro representantes a Roma para ajudar a organizar os trabalhadores romenos lá migrantes. Entrevistas telefónicas a James O’Leary, Executive Dir., Int’l Labor Mgmt. Alliance (8 de Outubro, 2008, 10 de Outubro, 2008). Outra é a European Migrant Workers Union, lançada em 2004 pela IG BAU, o sindicato dos trabalhadores da construção civil alemão, com a colaboração intermitente com o seu homólogo polaco. Marcus Kahmann, The Posting of Workers in the German Construction Industry: Responses and Problems of Trade Union Action, 12 TRANSFER 183, 190-94 (2006); Nathan Lillie e Ian Greer, Industrial Relations, Migration, and Neoliberal Politics: The Case of the European Construction Sector, 35 POL. & SOC’Y 551, 564-68 (2007).

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atenção mais em conseguir que os seus sindicatos membros fizessem pressão sobre o capital transnacional do que no reforço da capacidade dos sindicatos para organizarem os trabalhadores móveis. A Global Union Federation dos trabalhadores de serviços profissionais e comerciais assim como, a Union Network International (UNI) lançaram “o passaporte UNI"103. A International Union of Food, Agricultural, e a Allied Workers (IUF) tem um "Union International Card"104. Mais recentemente, no final de 2008, a Bulding and Woodworkers International (BWI) iniciou o seu "passaporte dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes", que inclui informações sobre a história do sindicato, experiência profissional e formação; resume legislações pertinentes nos principais países de destino e habilita o seu portador ao apoio de ser participante nos sindicatos que constituem a BWI105.

Até agora a utilização do passaporte GUF representa mais uma declaração simbólica que fonte de melhorias tangíveis sobre as condições de trabalho da maioria dos migrantes. Um problema é que nem os mecanismos para a integração dos imigrantes que aparecem nos sindicatos do país de destino a pedir apoio, nem o financiamento para apoiar a prestação de benefícios para os recém-chegados foram já totalmente resolvidos. Um desafio mais fundamental surge do facto que os migrantes sindicalizados no país de                                                             103 UNI Global Union, The UNI Passport, http://www.union-network.org/Unisite/Groups/PMS/issues_passport.htm; UNI Passport Application & Information, http://www.union-network.org/Unisite/Groups/PMS/Passport/LeafletEng.pdf.; UNI Passport Scheme, http://www.union-network.org/unipm.nsf/9548462b9349db27c125681100260673/4fad77f585b1bd09c1256c44003e1f6b/$FILE/DanD.'s%20passport%20scheme-e.doc. 104 O nome completo da Federação é International Union of Food, Agricultural, Hotel, Restaurant, Catering, Tobacco and Allied Workers’ Associations. Ver IUF, Workers and Unions on the Move: Organising and Defending Migrant Workers in Agriculture and Allied Sectors 28 (Maio, 2008), disponível em http://www.iufdocuments.org/www/documents/IUFmigrantworkersmanual-e.pdf. 105 BWI Migrant Workers Rights Passport (disponível no autor); The BWI Migrant Workers Rights Campaign 17-18 (2008) [a partir daqui BWI Pamphlet] (disponível no autor); Entrevista a Jin Sook Lee, Reg’l Project Coordinator, BWI, Asia-Pacific Region, em Manila, Filipinas. (Out. 29, 2008).

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origem podem trabalhar num sector diferente e/ou num sector em que não haja sindicatos ou uniões sindicais no país de destino e vice-versa. Isso enfraquece a hipótese a partir da qual GUF desenvolve os seus esforços de promoção do passaporte da União são realizados: a de que os imigrantes que estão filiados num sindicato num país permanecem sempre dentro do mesmo sector (e dentro de um sindicato do ramo desse sector), depois de passar a fronteira, de modo que possam manter a sua filiação sindical num outro sindicato ou União no outro país que pertence ao mesmo GUF.

Estão a aparecer por todo o mundo vantagens mais concretas a partir de parcerias individuais entre sindicatos de países de origem e dos países de destino. Algumas delas envolvem apenas consultas breves ou pequenos apoios, mas outras estão a evoluir para colaborações bem apoiadas. No que se segue, apresento uma série de sínteses preliminares de novas iniciativas que têm tido abordagens diferentes para garantir que os migrantes estejam organizados como cidadãos de trabalho móvel onde quer que estejam no fluxo migratório. Duas destas sínteses estão no sector da construção global: um novo protocolo para a contratação de trabalhadores sindicalizados nos países de origem e no sector da construção quando há uma escassez entre os trabalhadores sindicalizados da construção civil num país de destino; um leque de colaborações entre sindicatos e afins dos países de origem e de destino para organizar os trabalhadores migrantes da construção civil na Ásia. As outras linhas de trabalho a que nos referimos estão localizadas no núcleo das indústrias de baixos salários, da agricultura e do trabalho doméstico, no que se refere à utilização de trabalho migrante. Uma tem a ver com uma União de Trabalhadores Agrícolas do país de destino que abriu uma delegação no país de origem da maioria dos seus membros, e a outra é uma União Sindical do país de origem que enviou um delegado ao país de destino para aí organizar os trabalhadores nacionais que para lá se deslocaram106.                                                             106 Os leitores interessados em analisar outros casos posteriores podem ver os resumos de outras colaborações no âmbito da OIT, recentemente publicados no manual In Search of Decent Work - Migrant Workers’ Rights: A Manual For Trade Unionists

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Sublinhe-se que falamos aqui dos passaportes da Global Union e das parcerias entre os países de origem e de destino por causa de meu interesse pela cidadania do trabalhador móvel, é importante deixar claro que não se trata apenas destes, que estes não são encarados isoladamente. Os passaportes e as parcerias são apenas um componente de campanhas mais sobre os direitos dos migrantes e que podem incluir esforços para fornecer informações precisas para os imigrantes antes da partida e depois da chegada, garantir que os direitos existentes quanto aos migrantes são respeitados, reforçar a legislação nacional e internacional e combater as práticas abusivas de recrutamento. São numerosas as Federações Sindicais, federações de trabalhadores nacionais, sindicatos e ONGs que têm realizado tais campanhas nos últimos anos, independentes uns dos outros e através de redes que assim, em conjunto, os colocam no mesmo plano.

Muita da colaboração entre dois espaços nacionais que vamos descrever nas secções seguintes é verdadeiramente nova. Algumas delas estão apenas em fase de planeamento e outras apenas começaram agora a ser postas em prática, o que limita as conclusões que podemos tirar sobre o impacto das suas abordagens. Tendo em mente que a maioria destas novas colaborações estão ainda na infância, preocupar-nos-emos em analisar os seus modelos e não tanto os seus resultados. Apesar de todos estes esforços terem em comum um compromisso com a filiação sindical, que é transportável através das fronteiras, diferem em aspectos importantes. Um tipo de colaboração tem a ver com os trabalhadores, reconhecidos como altamente qualificados, enquanto outros tipos de colaboração se concentram nos trabalhadores na parte mais baixa da escala dos salários / e do nível de formação profissional. Alguns dos tipos de colaboração estão ligados a programas de trabalho temporário legal sob contrato e, portanto, funcionam apenas com os imigrantes legais. Outros são mais inclusivos, assumindo a demografia do mercado de trabalho

                                                                                                                                   110-11 (2008); e o trabalho recente Unions Without Borders (A Primer on Global Unions and What They Can Do for Migrant Workers) (2008).

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existente, assim como a estrutura da migração como um dado, procurando integrar neste âmbito, tantos quanto for possível, os migrantes que trabalham na indústria. Na conclusão desta secção, sublinhemos o contraste entre os mecanismos e intenções apresentadas ao longo destas e outras linhas, procurando avaliar o seu eventual potencial para atingir os padrões de trabalho centrais nas metas da proposta de Cidadania do Trabalhador Transnacional.

B. As tentativas realizadas 1. A Construção: As Duas Abordagens

O sector da construção que hoje existe manifesta-se simultaneamente

através do nível global como também através de um nível local intenso. As empresas de construção fazem hoje parte e de modo crescente de alianças entre multinacionais. Os contractos na construção são frequentemente financiados pelo capital transnacional107. E ainda, a produção e a acumulação ou exploração de materiais de construção, assim como a construção em si, deve ser realizada numa base local definida e, portanto, exige a contratação de mão-de-obra local. A procura em reduzir os custos do trabalho tem levado as empresas florestais, as fábricas de madeira e a construção em todo o mundo a procurarem os trabalhadores migrantes108. Enquanto isso, a indústria da construção civil em todo o mundo tem visto o crescimento de pequenas empresas que operam em violação das normas nos salários, segurança e outras, numa tentativa adicional para reduzir os custos109. Estas empresas forçam-se

                                                            107 Jeff Grabelsky, Construction or De-construction? The Road to Revival in the Building Trades, 16 NEW LAB. F. 47, 49-50 (2007). 108 Grabelsky, veja-se nota supra 106, at 49-50; Brian Lockett, “Global Hiring Hall” Proposed as New Strategy for Responding to Shortages of Skilled Labor, 53 BNA LAB. REP. 281 (25 de Abril, 2007). 109 Para a análise deste fenómeno da Building and Wood Workers’ International (BWI)’s ver BWI, Building & Construction, http://www.bwint.org/default.asp?Issue=CONSTR&Language=EN.

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umas às outras para remunerar os trabalhos a valores ainda mais baixos através de um sistema de subcontratação, constituído por empresas cada vez mais informalizadas. Quando o imigrante chega ao seu destino, é, muitas vezes, contratado por empresas com taxas de salário inferiores aos valores negociados com os sindicatos e em condições de trabalho também inferiores às do país de destino. Embora a actual crise financeira mundial se reflicta numa redução global do emprego na construção civil, é também conduzida na base de uma busca intensiva de mão-de-obra barata. Com as economias dos países de origem a sentirem a desaceleração ao lado dos seus homólogos do país de destino, parece provável que os trabalhadores continuarão a atravessar fronteiras em busca de trabalho na construção civil.

A mobilidade dos trabalhadores na construção não é de modo nenhum uma situação nova. A criação de sindicatos e uniões sindicais está organizada de modo a reflectir a realidade que a maioria dos trabalhadores da indústria não está vinculada a um determinado empregador, uma vez que se deslocam de emprego para emprego quando um projecto termina e outra começa. Numa época em que o "trabalhador móvel" significava apenas que alguém que se mudou de um estado para outro estado dentro do país, os sindicatos da construção nos Estados Unidos desenvolveram um complexo conjunto de regras para gerir os direitos de trabalhadores "viajantes" membros do sindicato que se deslocavam para o trabalho através das linhas de competência do sindicato local110. O sistema de viajante permitia criar sindicatos para

                                                            110 Sempre que um sindicato local de construção não conseguisse fornecer os trabalhadores suficientes para um novo projecto de construção na sua região, o sindicato local convocaria membros de outros locais em todo o país, para o referido projecto. Estes trabalhadores quase nunca eram admitidos definitivamente no local onde o projecto se estava a realizar, esperando-se que eles regressassem após o final do projecto. Trabalhadores de construção civil não sindicalizados na área eram autorizados a fazer o trabalho, apenas a curto prazo (não podendo ser admitidos no sindicato) ou totalmente impedidos de o fazer. Lloyd Ulman, The Rise Of The National Trade Union: The Development And Significance Of Its Structure, Governing Institutions, And Economic Policies pt. II (1955); Int’l Brotherhood of Electrical Workers, Local 25, Travel Comm. Meeting, Rules of the Road, disponível em

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satisfazer a procura dos empregadores para o trabalho sem admitir novos trabalhadores para o sindicato numa base permanente que competiria pelo trabalho em tempos difíceis. Através deste sistema, muitos trabalhadores locais, especialmente imigrantes, mulheres e pessoas de cor, eram excluídos dos sindicatos de construção e dos empregos que eles controlavam111. Durante muitos anos, o efeito da existência de estratégias restritivas na actividade era fazer com que os sindicatos da construção da província fossem quase que exclusivamente constituídos por homens brancos. As centrais sindicais podiam mesmo defender modelos restritivos motivadas pela necessidade de limitar a concorrência económica e os custos dos litígios que estão enraizados na xenofobia ou no racismo112. No entanto, quando o efeito de limitar a concorrência económica é em grande parte para excluir os trabalhadores de cor de terem filiação sindical, a linha entre os dois pode ser difícil de analisar.

Contudo, nos anos recentes, enfrentando um dramático declínio na sindicalização, muitas das Uniões Sindicais profissionais norte-americanas (e especialmente aqueles que trabalham com trabalhadores da construção civil em geral, em vez de actividades de alto nível de formação, tais como pedreiros, operários e carpinteiros) rejeitaram a via restritiva da organização a favor de uma tentativa pró-activa para trazer novos trabalhadores, incluindo trabalhadores nativos de cor e, por vezes, também imigrantes, para

                                                                                                                                   https://www.ibew25.org/node/1316; Conversa pessoal com Jeffrey Grabelsky, Dir., Constr. Indus. Program, Cornell Univ., Sch. of Indus. & Labor Relations, in N.Y., N.Y. (18 de Junho, 2008). 111 Para uma análise de como os sindicatos de construção controlaram historicamente a adesão, nomeadamente aos imigrantes ver Gordon, veja-se nota supra 6, at 515-17. Para uma discussão mais profunda, ver Grace Palladino, Skilled Hands, Strong Spirits: A Century of Building Trades History 141–44 (2005). 112 Ver, e.g., Herman D. Bloch, Craft Unions and the Negro in Historical Perspective, 43 J. NEGRO HIST. 10, 10 (1958) ("Trabalhadores brancos discriminados contra trabalho ilegal, clandestino[W]hite workers discriminated against Negro employment … Justificaram a sua posição enfatizando a escassez de trabalho. Eles justificaram a sua posição ao enfatizar a escassez de trabalho. O preconceito de raça, declararam eles, não era a questão; por outras palavras, a industrialização e não o sindicalismo esteve na origem da discriminação".)

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pertencerem aos sindicatos113. Noutras partes do mundo, um número de sindicatos da construção, entretanto criados, começaram a utilizar diferentes abordagens para a organização daqueles que, como os trabalhadores em questão, tem um pé em cada um dos países, no de origem e no de destino.

a. Referências dos trabalhadores de Sindicato para Sindicato A International Labor Management Alliance (ILMA), uma organização

sem fins lucrativos, constituída nos Estados Unidos e na Itália, foi fundada em 2006, com o apoio dos sindicatos da construção, dos sindicatos patronais e de programas de gestão de trabalho, tanto nos países de destino como de origem114. Pretende promover a colaboração do trabalho de gestão a nível internacional em questões tais como o desenvolvimento da força de trabalho, a responsabilidade social das empresas, a formação do trabalhador e da migração. Com um dos seus projectos, ILMA iniciou um novo conceito para um protocolo internacional de referência para a criação de um sindicato dos trabalhadores (ILMA Protocol), em que os acordos de intermediação entre os

                                                            113 Miriam Jordan, Rebuilding Plan: Carpenters Union Courts Immigrants to Increase Clout — Undocumented Workers See Risk of Firings, Fewer Jobs, WALL ST. J., Dez. 15, 2005, at A1 (que discute o trabalho dos sindicatos na defesa dos trabalhadores migrantes nos tribunais; Nate Schweber, Worked Over? Union Organizers Say Immigrants Get Cheated, Herald News (Passaic County, N.J.), Set. 6, 2004, at A1 (relato dos esforços feitos pela Laborers’ International Union of North America para chegar aos imigrantes na construção civil em Nova Jersey); Nicole Andrea Silverman, Deserving of Decent Work: The Complications of Organizing Irregular Workers Without Legal Rights (Univ. of Oxford, Ctr. on Migration, Policy and Soc’y, Working Paper No. 21, 2005) (discussão de um estudo de caso dos esforços feitos pela New England Regional Council of Carpenters para organizer trabalhadores imigrantes latinos). Muitas destas novas organizações são criadas por sindicatos locais e não internacionais. 114 Esta descrição é baseada no International Labor Management Alliance (ILMA), Int’l Union Worker Referral Protocol (8 de Junho, 2008) (versão provisória disponível no autor); ILMA Home Page, http://www.internationalbuilders.org/; Entrevistas telefónicas com James O’Leary, Executive Dir., ILMA (13 de Outubro, 2006, 6 de Novembro, 2006); Entrevistas telefónicas com James O’Leary, veja-se nota supra 101.

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contratantes e os sindicatos para preencher os postos de trabalho disponíveis a curto prazo com os membros da união de um país de origem, onde o sindicato no país de destino não pode satisfazer a procura de trabalhadores com os seus membros já existentes.

O ILMA Protocol lançou o seu projecto piloto em 2007, com a colaboração entre o sindicato dos soldadores e do sindicato dos empreiteiros na indústria do petróleo nas areias betuminosas em Alberta, no Canadá, e entre Uniões de soldadores no Brasil e na Argentina. Na base do projecto-piloto, uma vez que o sindicato do Canadá determinou que nem os seus residentes nem os seus pares noutros países da América do Norte podiam fornecer o número suficiente de soldadores para o trabalho, o sindicato enviou representantes aos sindicatos brasileiros e argentinos que tinham um excedente de soldadores sindicalizados. Os sindicalistas brasileiros e argentinos foram seleccionados para garantir que respeitem as normas de soldagem no Canadá. Os participantes contratantes solicitaram autorização ao governo do Canadá para contratarem trabalhadores temporários estrangeiros; uma vez concedida a aprovação, o contratante faz ofertas de emprego aos membros do sindicato brasileiro e argentino através dos seus respectivos sindicatos, enquanto ajudavam os trabalhadores contribuindo com o processo de pedido de visto. Com os vistos nas mãos, os trabalhadores viajaram para o Canadá, onde são pagos pelo seu trabalho aos mesmos salários que os sindicalizados no Canadá. Os encargos e os custos dos serviços são partilhados por ambos os sindicatos. Quando o trabalho estiver concluído o visto expira e os trabalhadores voltam para casa. Em 2008, cerca de 200 sindicalizados soldadores recrutados entre a Argentina e o Brasil, através do Protocolo ILMA, viajaram para Alberta, no Canadá, com vistos de trabalho temporário.

Dada a história das organizações das abordagens restritivas na criação das Uniões sindicais norte-americanas e os seus recentes passos para uma maior inclusão de trabalhadores, uma estratégia que envolve a utilização de trabalhadores temporários de outros países para preencher postos na construção no país de destino, corre-se o risco de ser acusado de fazer reviver a

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tradição do “viajante" e de perpetuar a exclusão nas actividades da construção civil. O projecto ILMA, no entanto, destina-se apenas para atender picos de curto prazo na procura e não é um substituto para o desenvolvimento de profissionais locais. Segundo o Director Executivo James O'Leary, "o ILMA defende a formação de trabalhadores locais, em primeiro lugar, e acredita que maiores esforços devem ser feitos para recrutar as minorias, a fim de aumentar a oferta de mão-de-obra local e expandir a quota de mercado do sindicato no longo prazo"115. O'Leary assinala que o protocolo ILMA foi construído na base dos desincentivos económicos para a utilização de trabalhadores temporários que podiam fornecer um ímpeto para o desenvolvimento da força de trabalho local. No programa piloto, as companhias petrolíferas canadianas e os empreiteiros eram obrigados a pagar um conjunto de encargos e custos substancial para poderem utilizar o programa.

b. As parcerias entre centrais sindicais do país de origem e destino A Bulding and Wood Workers International (BWI) e a Global Union

Federation of Construction, forestry and wood working unions são membros de mais de 300 centrais sindicais de 135 países, representando cerca de 12 milhões de membros em todo o mundo116. Durante muitos anos, a BWI respondeu às mudanças nas condições do sector de construção, procurando limitar os abusos dos contratantes. Os seus esforços para conter a mobilidade do capital móvel tributável, inclui uma maior fiscalização sobre a aplicação das normas laborais nacionais e o desenvolvimento de normas internacionais aplicáveis ao trabalho sob contrato, e criando um quadro de solidariedade

                                                            115 Entrevistas telefónicas a James O’Leary, veja-se nota supra 101. 116 Sobre o BWI, http://www.bwint.org/default.asp?Issue=About&Language=EN. O BWI is é o resultado da fusão entre o International Federation of Building and Wood Workers (IFBWW) e a World Federation of Building and Wood Workers (WFBW), que ocorreu em Dezembro de 2005. Nos EUA, os sindicatos membros da BWI incluem Trabalhadores, Camionistas, Maquinistas, Trabalhadores Metalúrgicos, entre outros. BWI http://www.bwint.org/default.asp?Issue=conta&Language=EN.

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através do qual os sindicatos membros apoiar-se-iam mutuamente nas suas campanhas eleitorais117.

Nos últimos anos, reconhecendo que a pressão da mobilidade do capital é apenas meia batalha, BWI desenvolveu um outro centro de actuação sindical complementar, organizando e defendendo o trabalho móvel. Em 2004, lançou o seu Asia-Pacific Migration Project118. O objectivo do Projecto de Migração BWI é ocupar-se da exploração dos imigrantes pelos angariadores e empregadores através de uma combinação de estratégias de educação para os migrantes e para os trabalhadores nativos, pela defesa dos direitos a nível internacional e nacional (muitas vezes em colaboração com as ONGs), e do desenvolvimento de parcerias activas entre filiados da BWI dos países de origem e de destino a fim de organizar os imigrantes em conjunto com os trabalhadores locais.

O projecto começou por procurar construir um consenso entre os sindicatos membros da BWI nos países de destino em torno do principio que os trabalhadores migrantes deveriam ser pagos à mesma taxa que os trabalhadores nacionais e assegurar que o seu compromisso de organizar os migrantes presentes no sector até ao fim do contrato, ao mesmo tempo envolvendo nisso, sempre que possível, os sindicatos do país de origem como parceiros desse esforço. Hoje, cerca de quatro anos depois, um certo número dos seus sindicatos membros estão activamente envolvidos em colaborações entre países. Por último, como uma parte de sua meta mais ampla de organizar os migrantes e fazer valer os seus direitos, BWI tem a esperança de facilitar o

                                                            117 BWI Building & Construction, http://www.bwint.org/default.asp?Issue=CONSTR&Language=EN; BWI Migrant Workers, http://www.bwint.org/default.asp?Issue=Migrant%20workers%20and%20posted%20workers&Language=EN; BWI Solidarity http://www.bwint.org/default.asp?Issue=Solid&Language=EN. 118 A descrição que se segue baseia-se em BWI Pamphlet, veja-se nota supra 104; Entrevista telefónica a Jin Sook Lee, Reg’l Project Coordinator, BWI, Asia-Pacific Region (12 de Fevereiro, 2008); Entrevista telefónica a Jin Sook Lee, veja-se nota supra 104, bem como sobre outros materiais citados abaixo.

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crescimento da "dupla filiação", de modo que "os trabalhadores migrantes, que são membros de sindicatos no país de origem, podem ser reconhecidos como membros de pleno direito da União no sector onde trabalham no país de destino"119, incluindo acordos concretos sobre partilha de encargos, a portabilidade dos benefícios, bem como o financiamento de serviços para os membros migrantes. O Passaporte BWI descrito acima é o ponto de partida para esta abordagem.

As colaborações promovidas pelo Projecto de Migração BWI assumiram diversas formas, reflectindo instituições políticas muito diversas e contextos muito diferentes do ponto de vista político institucional e histórico em que operavam. Adicionalmente, embora as centrais sindicais participantes se refiram ao seu trabalho como organização de migrantes, com uma conotação de negociação colectiva, não estão apenas — por vezes mesmo primariamente — centrados na sindicalização. A maioria dos seus objectivos depende de múltiplas estratégias para defender e ampliar os direitos de ambos os tipos de trabalhadores, documentados e indocumentados, incluindo a educação dos trabalhadores, a sua representação legal, o seu protesto público e as intervenções políticas aos níveis local, nacional e internacional. E o principal alvo são os seus esforços na educação pelos direitos dos migrantes e a oferta da sua representação legal a todos os trabalhadores migrantes nos seus sectores de actividade e, não apenas, aos seus membros ou, até mesmo, aos seus membros potenciais.

A negociação de acordos de cooperação entre centrais sindicais do país de origem e do de destino tem sido uma abordagem assumida pelas filiais BWI. O primeiro acordo foi assinado em Março de 2007 pelas filiadas BWI do Nepal (país de origem) e da Malásia (país de destino). No seu "Memorandum of Understanding Regarding Migrants Workers" comprometem-se a "trabalhar em conjunto na elaboração de estratégias, desenvolvimento e execução... de um programa orientado para a organização dos trabalhadores migrantes do

                                                            119 Entrevista telefónica a Jin Sook Lee, veja-se nota supra 117.

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Nepal"120, cujo principal objectivo são os 70.000 nepaleses a trabalharem no sector da madeira na Malásia121. Pouco depois de o acordo ter sido finalizado, a organização de trabalhadores do sector na Malásia formou um trabalhador migrante do Nepal para funcionar como organizador sindical nas fábricas de madeira da Malásia122. Com a sua ajuda, a União Sindical da Malásia foi organizada em dez novas empresas no ano passado e conta agora com 1.500 migrantes entre os seus 10.000 membros, quando comparado com um número insignificante antes de a iniciativa ter sido efectuada123.

Outra abordagem na qual as filiais BWI trabalharam também foi o estabelecimento organizado do migrante local no país de destino. Em 2007, com o apoio das organizações dos trabalhadores do Nepal e de Hong-Kong e da BWE, os trabalhadores nepaleses da construção em Hong Kong, fundaram o Sindicato dos Trabalhadores de Construção do Nepal, filiado na Federação dos Centrais Sindicais de Hong Kong124. Em Dezembro de 2007, foi formalizada a colaboração, através de um acordo assinado pelo sindicato da construção de trabalhadores do Nepal (CUPPEC) e de Hong Kong General Construction Site Workers Union, comprometendo-se a "trabalhar em conjunto nas suas actividades para garantirem que os direitos de todos os trabalhadores nepaleses, tanto emigrantes como imigrantes, sejam protegidos em Hong

                                                            120 Memorandum of Understanding Regarding Migrant Workers Between Timber Employees Union Peninsular Malaysia (TEUPM) and Central Union of Painters, Plumber, Elector and Construction Workers (CUPPEC), 12 de Março, 2007. 121 Building and Wood Workers Int’l, BWI Unions in Nepal and Malaysia Agree to Work Jointly on Migration Issue, http://www.bwint.org/default.asp?index=757&Language=EN. 122 Entrevista a Mohd. Khalid B. Atan, Gen. Sec’y, Timber Employees Union of Peninsular Malay., em Manila, Filipinas (Out. 26, 2008); Entrevista telefónica a Jin Sook Lee, veja-se nota supra 117. 123 Entrevista a Mohd. Khalid B. Atan, veja-se nota supra 121. 124 Gurung Tulajang, Presidente, Nepalese Constr. Workers Union in H.K., Presentation at the BWI Forum on Migration, Manila, Filipinas (Out. 24, 2008).

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[Kong] através de uma filiação sindical"125. No seu primeiro ano, o Sindicato dos Trabalhadores de Construção nepalês cresceu para 500 membros126.

As possibilidades de colaborações entre organizações sindicais dos países de origem e de destino têm sido melhor exploradas naqueles em que uma ou mais federações nacionais de trabalhadores estão fortemente empenhadas em transpor fronteiras na solidariedade entre os trabalhadores e em organizar os migrantes. O Nepal é um exemplo de um país de origem, com este tipo de Federação e a Coreia, como país de destino, tem uma Federação com empenhamento similar. A seguir daremos um breve panorama dos esforços liderados pelas federações de trabalhadores em cada um destes países. Em ambos, o trabalho de BWI foi antecedido por parcerias bilaterais, as quais se estenderam, mesmo, para além do sector da construção civil, trabalho este que só ganhou consistência com o apoio da BWI.

No Nepal, a Federação Geral dos Sindicatos Nepaleses do Comércio (GEFONT) tem vindo a prestar apoio aos imigrantes do Nepal nos países asiáticos desde 1993127. GEFONT tem 26 Uniões Sindicais filiadas com um total de mais de 300.000 membros128. Começou por organizar comités de migrantes do Nepal, em Hong Kong, Coreia, Malásia, Índia e outros países e, em seguida, procurou parceiros sindicais nos países de destino nos quais os imigrantes se poderiam filiar. GEFONT dá aos migrantes participantes cartões de associado, ganhando logo uma filiação formal no movimento sindical do Nepal, mesmo que estejam organizados em sindicatos no país de destino. GEFONT e suas uniões filiadas têm agora parcerias activas com Uniões sindicais em Hong Kong, Coreia e Malásia, como foi descrito nesta secção.

                                                            125 Memorandum of Understanding Regarding Organizing of Nepalese Migrant and Immigrant Workers, 13 de Dezembro, 2007, disponível em www.bwint.org/pdfs/CSGWU-CCUPEC%20Revised.pdf. 126 E-mail de Jin Sook Lee, Reg’l Project Coordinator, BWI, Asia-Pacific Region, ao autor (24 de Novembro, 2008). 127 Esta descrição do trabalho da GEFONT é baseado na minha entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32. 128 GEFONT, http://www.gefont.org/gefont_brief.asp#membership.

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Embora GEFONT não disponha de financiamento para enviar organizadores para o estrangeiro, os seus quadros tiram proveito do dinheiro disponível para viagens associadas conferências, e do apoio de BWI, para apoiar os comités sobretudo em momentos críticos. Por exemplo, BWI forneceu o financiamento para GEFONT fazer duas visitas de uma semana a Hong Kong para ajudar a formar os líderes do novo sindicato Trabalhadores Senegaleses da Construção.

GEFONT estabeleceu também uma delegação de migração no Nepal para poder prestar apoio aos migrantes que retornam depois de terem sido maltratados no trabalho ou enganados pelas agências de empregadores ou de angariadores.

Na Coreia, a Confederação de Sindicatos (Korean Confederation of Trade Unions – KCTU) têm também sistematicamente desenvolvido relações com os sindicatos dos países de origem129. Os membros filiados em KCTU são para cima de 650.000 sindicalizados e são-no através das suas filiadas das Federações sindicais de 19 sectores e dos Conselhos Regionais. 130 Não é, pois, de surpreender, tendo em conta o empenhamento de ambos os grupos em organizar os trabalhadores migrantes, que KCTU colabore estreitamente com GEFONT e mais ainda que esta colaboração tenha sido forte. As duas federações têm trabalhado em conjunto para incentivar os trabalhadores migrantes indocumentados nepaleses a juntarem-se à organização pioneira Migrants Trade Union, uma filiada na KCTU. 131 As organizações KCTU e GEFONT pressionaram em conjunto o governo coreano e o governo nepalês de modo a que estes integrem a protecções aos migrantes no recém-assinado

                                                            129 Esta descrição é baseada na minha entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32. 130 Sobre a KCTU, disponível em http://kctu.org/2003/html/sub_01.php. Estatísticas actualizadas: E-mail de Chang-geun Lee ao autor (13 de Janeiro, 2009). 131 Entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32. Para uma breve descrição do Sindicato dos Migrantes, ver Wol-San Liem, History of Migrant Workers Trade Union, KOREA TIMES, Ago. 21, 2007, disponível em http://www.koreatimes.co.kr/www/news/special/2008/11/177_8684.html. O Sindicato dos Migrantes tem aproximadamente 300 membros. Id.

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Memorandum of Understanding sobre a migração de mão-de-obra temporária entre estes países, e procuraram que se cumprissem os requisitos onerosos para os vistos disponíveis, e os migrantes fossem informados sobre os seus direitos. 132 A KCTU também desenvolveu uma relação de trabalho com a federação sindical das Filipinas KMU (Kilusang Mayo Uno) e a KMU apoiou uma organização da comunidade para os filipinos na Coreia. No Bangladesh, onde a situação política da ditadura militar tornou difícil que a KCTU encontrasse uma federação sindical democrática com quem pudesse assumir uma parceria, esta passou a trabalhar com os líderes da Migrant Trade Union que foram deportados e enviados de volta para o Bangladesh. O objectivo é que os líderes estabeleçam uma rede de imigrantes do Bangladesh e de organizações com as quais a KCTU possa colaborar133.

2. Dois sectores no fundo da escala salarial

a. Agricultura: um sindicato de pais destino constrói uma base no país de origem Embora muito do trabalho temporário legal ("guest work"), nos Estados

Unidos, esteja exclusivamente ligado ao programa bracero, que trouxe dos campos do México trabalhadores braçais para os Estados Unidos a partir dos anos 40 até aos anos 60, de facto, ao longo do século XX e XXI, os Estados Unidos têm acolhido trabalhadores com contrato de trabalho temporário vindos

                                                            132 Entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32; Entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32. 133 Entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32; Abul Basher M. Moniruzzaman (Masum), former Gen. Sec’y, Migrant Trade Union, Presentation at the Global Union Forum on Migration, Manila, Filipinas (Out. 25, 2008). Sobre a deportação de Masum, ver Public Statement, Amnesty Int’l, Republic of Korea (South Korea): AI Condemns Secret Deportations of Senior Migrant Trade Union Officials (14 de Dezembro, 2007), disponível em http://www.amnestyusa.org/document.php?lang=e&id=ENGASA250082007.

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de todo o mundo134. Este tipo de trabalhadores raramente, ou nunca, é sindicalizado, sendo os programas bem conhecidos pelos seus abusos sobre os direitos dos trabalhadores135. Recentemente, no entanto, tanto a United Farm Workers Union e a Farm Labor Organizing Committee (FLOC) negociaram acordos colectivos de trabalho que protegem os trabalhadores migrantes agrícolas de trabalho temporário sob contrato nos Estados Unidos, chamados de trabalhadores "H-2AS" de acordo com a lei que autoriza a concessão de vistos para o efeito136. Da mesma forma, em 2006 e 2007, a United Food and Commercial Workers no Canadá ganhou as eleições em quatro explorações agrícolas localizadas em Manitoba e Quebec, representando os primeiros grupos de trabalhadores migrantes de trabalho temporário com contrato a termo organizados no Canadá137. Destes três exemplos, apenas um — FLOCs — se estabeleceu igualmente no país de origem dos trabalhadores migrantes de trabalho temporário que o tinha organizado.

O contrato FLOC 2004 com a Associação dos Produtores de Carolina do Norte (NCGA) — o maior empregador de trabalhadores estrangeiros nos EUA — foi o primeiro deste tipo nos Estados Unidos138. Antes disso, NCGA tinha entrado num acordo com FLOC e com Mount Olive Pickle Company, a multinacional a quem muitos dos produtores NCGA vendiam a sua produção, para pôr fim a cinco anos de campanha de boicote organizada pela FLOC contra Mount Olive e para aliviar a pressão criada por uma corrente de acções

                                                            134 Cindy Hakamovitch, Creating Perfect Immigrants: Guestworkers of the World in Historical Perspective, 44 Lab. Hist, 700, 79-80 (2003). 135 Sobre o abuso dos "guest workers", ver Southern Poverty Law Ctr., veja-se nota supra 11; para uma discussão, em termos históricos, da ausência de organização dos “guest workers” , ver Gordon, veja-se nota supra 6, 55354; Hill, veja-se nota supra 100, 308-10. 136 O acordo UFW, cobrindo quase 4000 H-2A trabalhadores levados para os EUA pela Global Horizons, uma grande empresa, foi anunciado na Primavera de 2006. Ver Jerry Hirsch, Farm Labor Contractor, Union in Pact, L.A. Times, Abr. 12, 2006, C2. 137 Hill, veja-se nota supra 100, at 320. 138 Karin Rives, Guest Workers Note Progress, Raleigh News & Observer, Ago. 29, 2005, disponível em http://www.smfws.com/art82992005.htm.

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judiciais levantadas pelos migrantes contra NCGA139. O NCGA concordou em reconhecer a União dos Trabalhadores numa demonstração de apoio da maioria dos trabalhadores filiados na FLOC140. A FLOC conseguiu obter a necessária maioria de votos e negociou um acordo colectivo de trabalho com o NCGA. O contrato, que abrange mais de 5000 H-2A trabalhadores, não estabelece níveis de salários e de vantagens sociais, que são estabelecidas por lei no âmbito do programa H-2A.

No entanto, o cenário mudou drasticamente para os trabalhadores NCGA's. Eliminou a capacidade dos produtores de efectuarem "listas negras" dos trabalhadores que actuaram abertamente em defesa dos seus direitos, uma vez que agora os empregos de trabalho temporário legal NCGA seriam obrigatoriamente atribuídos a partir da antiguidade e dentro desta com prioridade aos filiados na União Sindical141. Criou-se a regra da "justa causa" tanto para despedir trabalhadores como para recusar voltar a empregá-los e estabeleceu-se um processo de reclamação à disposição exclusiva dos trabalhadores H-2A, no âmbito do contrato FLOC, e deu-se à FLOC o direito de fiscalizar o recrutamento no México142. Este contrato foi sujeito a emendas em 2008143.

                                                            139 Um grande incentivo para os produtores com a assinatura do acordo era criar um mecanismo que iria resolver litígios com os migrantes mais rapidamente, a um custo menor, e com menos conflitos. Entrevista a Brendan Greene, former FLOC Organizer e Cástulo Benavides, then-FLOC Organizer and current FLOC Dir. of Mexico Operations, em Monterrey, México. (Maio 22, 2006) 140 Teófilo Reyes, 8000 "Guest Workers" Join Farm Union in North Carolina, Lab. Notes, Outubro, 2004, disponível em http://www.labornotes.org/node/939. 141 Id.; Farm Labor Organizing Committee (FLOC), Resumen del Acuerdo: Contrato Laboral Entre FLOC y la NCGA 2004–2008 [Summary of the Agreement: Labor Contract Between FLOC and the NCGA 2004–2008] 7–11, 13–16, 28 (descrevendo a maioridade do sistema, a governança do sistema e a protecção contra o despedimento injustificado). 142 Veja-se nota supra 140, at 7-11, 28. 143 North Carolina Growers Association, Inc. and its Member Growers and Farm Labor Organizing Committee, Contract, Fev. 1, 2008-Dez. 31, 2008, disponível em http://www.ncgrowers.org/NCGA‐FLOC%20CBA%20(2.1.2008%20‐

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Importante, a Carolina do Norte é chamada um Estado de "Direito ao Trabalho", o que significa que os trabalhadores contratados pela NCGA não são obrigados a estarem inscritos nem a tornarem-se membros da NCGA. Isto aumenta a importância da FLOC no estabelecer de relações com os trabalhadores no seu país de origem e de prestação de serviços que ilustram as vantagens da filiação sindical. Para aumentar a sua capacidade de organizar os trabalhadores mexicanos H-2A, a FLOC abriu uma representação em Monterrey, no México, em Março de 2005144. A delegação da FLOC de Monterrey desempenha três funções importantes: fazer respeitar os direitos contratuais dos membros ainda no México, nomeadamente em matéria de antiguidade, para aqueles que ainda não foram chamados para o trabalho; lutar energicamente contra os empreiteiros exploradores e servir como sede no México para os sindicatos que se estejam ainda a organizar.

A organização FLOC utilizou várias abordagens para manter o contacto com os imigrantes nas suas comunidades de origem. Ao longo de um certo tempo, durante o inverno, os quadros da direcção da FLOC visitaram aldeias no México onde tinham a sua maior concentração de membros filiados, tiveram algumas reuniões para discutir as grandes questões que eram do interesses dos trabalhadores assim como as estratégias da União, para convocar encontros regionais para os membros de cada uma das aldeias se conhecerem uns aos outros, para receber formação adequada sobre a execução dos contratos e, ainda, para eleger os seus representantes locais. Mais recentemente, a direcção da FLOC sedeada no México procurou responder principalmente às solicitações dos trabalhadores para a sua colocação, para fazerem o processamento das queixas e outros serviços a partir da sua base em Monterrey e encontrarem-se também com grupos trabalhadores quando passam por Monterrey a caminho da Carolina do Norte. Na Primavera, como

                                                                                                                                   %2012.31.2008).doc; Comunicação Pessoal com Cástulo Benavides, Dir. of Mexico Operations, FLOC, Cidade do México, México (7 de Março, 2008). 144 U.S. Unions’ Mexico Office Will Aid Guest workers, 19 LAB. REL. WEEK (BNA) 424 (31 de Março, 2005).

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os emigrantes regressam à Carolina do Norte, estes são recebidos pelo pessoal da organização sindical FLOC, que recebem o pessoal do autocarro, quando chega da fronteira, assumem as tarefas de coordenação de reuniões da comissão de trabalhadores e se ocupam das suas reivindicações enquanto os trabalhadores estão nos campos145.

A FLOC, actualmente, está a procurar aumentar o âmbito da sua representação dos trabalhadores H-2A através de uma campanha contra a R. J. Reynolds Tobacco Company, da qual são fornecedores da maioria dos trabalhadores agrícolas na Carolina do Norte. Um objectivo fundamental da campanha é conseguir que a companhia e os seus produtores-fornecedores aceitem um acordo na base do qual a actual força de trabalho, que na sua maioria é ilegal, possa voltar a ser empregada como trabalhadores H-2A e que possam trabalhar na base de um contrato negociado com a FLOC, similar aos acordos com a NCGA146.

b. Trabalho doméstico: um país de origem cria uma base sindical num país de destino A grande maioria das mulheres migrantes são trabalhadoras domésticas e

estão entre as pessoas mais vulneráveis e isoladas de todos os migrantes147.

                                                            145 Entrevista a Brendan Greene e Cástulo Benavides, veja-se nota supra 138; Entrevista telefónica a Cástulo Benavides, Dir. of Mex. Operations, FLOC (19 de Agosto, 2008). 146 Entrevista telefónica com Cástulo Benavides, veja-se nota supra 144. 147 Human Rights Watch, Swept under the Rug: Abuses against Domestic Workers around the World 3 (2006), disponível em http://hrw.org/reports/2006/wrd0706/wrd0706web.pdf. Ressalto aqui os trabalhadores domésticos porque as organizações de trabalhadores domésticos com um carácter transnacional e uma ênfase na aplicação dos seus direitos começaram agora a surgir em todo o mundo. A indústria dos cuidados de saúde — incluindo enfermeiros qualificados e pessoal de saúde de menor qualificação — é uma indústria que também atrai um grande número de mulheres migrantes, embora o nível de organização dos trabalhadores transnacionais pareça ser menor nesse campo. As associações profissionais de enfermeiros são muitas, incluindo aquelas com ramos sindicais, tanto

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Poucas Federações sindicais se preocupam em estabelecer as suas petições, e enfrentam dificuldades especiais para fazer valer os seus direitos porque o seu local de trabalho é a casa do empregador.

Estão a surgir novos modelos de organização e de defesa para procurar responder às preocupações dos trabalhadores domésticos. Hong Kong, onde os trabalhadores domésticos têm um alto nível de organização, é agora uma sede de dez ou mais sindicatos de trabalhadores domésticos148. A Confederação dos Sindicatos do Comércio de Hong Kong, uma das Federações de Trabalhadores tem quatro sindicatos filiados de trabalhadores domésticos: dois representam os trabalhadores migrantes das Filipinas, um os trabalhadores migrantes da Indonésia e um outro é a representação local de mulheres chinesas149. Ao contrário dos sindicatos tradicionais, essas organizações não negociam acordos colectivos directamente com os empregadores. Em vez disso, garantem o direito à educação e organizam a formação, ajudam os trabalhadores cujos direitos foram violados e mobilizam os trabalhadores para pedir melhores políticas governamentais em relação às remunerações e ao tratamento dos trabalhadores domésticos. Além de um número invulgar de sindicatos de trabalhadores domésticos, Hong Kong também hospeda mais de 25 organizações não-governamentais que apoiam os trabalhadores domésticos migrantes nas suas necessidades150.

                                                                                                                                   em países de origem como de destino. Mas, eu ainda não vi casos em termos de cidadania do trabalho móvel na área dos cuidados de saúde em que organizações sindicais procuraram desenvolver uma presença em ambos os países de origem e destino a fim de melhor organizar e servir os enfermeiros migrantes. 148 Entrevista com Elizabeth Tang, Chief Executive, H. K., Confederations of Trade Unions, in H. K. (Out. 21, 2008) 149 Id. 150 Michele Ford e Nicola Piper, Southern Sites of Female Agency: Informal Regimes and Female Migrant Labour Resistance in East and Southeast Asia 14 (City Univ. of H.K., Southeast Asia Research Ctr., Working Paper No. 82, 2006), disponível em http://www.cityu.edu.hk/searc/WP82_06_MFord&NPiper.pdf; Amy Sim, Organising Discontent: NGOs for Southeast Asian Migrant Workers in Hong Kong, 31 ASIAN J. SOC. SCI. 478, 487-88 (2003).

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Desde 2005, Hong Kong tem sido casa de uma experiência única para a cidadania de trabalho móvel. A Alliance for Progressive Labor (APL), uma federação laboral das Filipinas empenhada na unidade do movimento sindical, colocou dois dos seus organizadores em Hong Kong, para conseguir criar uma Federação Sindical de trabalhadores domésticos das Filipinas, numa base política, tanto para os migrantes em Hong Kong e para APL e Akbbayan, o partido local com qual está associado nas Filipinas151. Além de organizar as mulheres em Hong Kong, a APL continua a trabalhar com elas quando retornam ao seu país. Quando uma empregada doméstica das Filipinas deixa Hong Kong, após um litígio com seu empregador, por exemplo, a APL de Hong Kong contacta a sua delegação na região das Filipinas para onde ela vai voltar para que o pessoal de APL a possa ajudar a continuar o seu processo caso e continuar também a manter um relacionamento com ela152. Construir uma base de participação e filiação dos indivíduos provou ser um grande desafio por causa da alta taxa de rotatividade dos migrantes, do limitado tempo livre de que dispõem, e também por causa do medo. A adesão individual dos grupos tem variado amplamente, de menos de 50 a 200 membros que pagam taxas ao longo dos últimos três anos. Como uma abordagem complementar que lhe permitirá alcançar uma maior escala, a APL começou a filiar associações de migrantes filipinos existentes em Hong Kong, organizadas por migrantes com laços com determinadas regiões das Filipinas. Nove associações filiadas até à data, com um total de 600 membros. Eventualmente, a APL pretende alcançar a Hong Kong Asian Domestic Workers Union, incorporando não apenas APL-Hong Kong, mas também os trabalhadores domésticos indonésios, tailandeses e nepaleses. O APL conta com apoio pelo seu trabalho

                                                            151 A minha descrição do trabalho da APLem Hong Kong é baseado nas seguintes fontes: Entrevista a Elizabeth Tang, veja-se nota supra 147; Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32; Entrevista a Gigi Torres, Org, APL-Hong Kong, in H.K. (Out. 21, 2008); Mary Lou L. Alcid, NGO-Labor Union Cooperation in the Promotion of the Rights and Interests of Landbased Overseas Filipino Workers, 15 ASIAN & PAC. MIGRATION J. 335, 353-55 (2006). 152 Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150.

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nas duas organizações de Hong Kong: a Confederação dos Sindicatos de Hong Kong e a organização Asian Migrant Center, uma organização de defesa dos trabalhadores migrantes.

Em todo o mundo, as organizações de trabalhadores domésticos são frequentemente mais estruturados como organizações sem fins lucrativos do que como sindicatos, embora haja uma sobreposição considerável na combinação de serviços, educação, defesa do trabalhador e nas estratégias de mobilização usadas. As tentativas de organizar os trabalhadores domésticos representam uma resposta dinâmica e orgânica contra a exploração que ocorre na intersecção de género, da migração e da globalização. As suas análises e estratégias são exclusivamente adaptadas às experiências das mulheres migrantes, e criaram o que é provavelmente a mais rica variedade de redes transfronteiriças e de campanhas de todos os grupos de migrantes. Tal como APL-Hong Kong, muitas organizações de trabalhadores domésticos são membros de associações nacionais de trabalhadores domésticos, bem como de redes regionais como o Asian Domestic Networks e o Migrant Forum in Asian, que reúne organizações de trabalhadores domésticos de origem asiática e dos países de destino153. Através destas redes, as organizações de trabalhadores domésticos procuram aumentar a sensibilização, quer a nível internacional quer nacional, contra a exploração dos trabalhadores domésticos e pela necessidade de campanhas eficazes para a sua efectiva protecção154.

                                                            153 Para uma descrição da Asian Domestic Workers Network (ADWN), ver ADWN, An Asian Network on Local Adult Domestic Workers (disponível no autor); IUF, Respect and Rights for Domestic Workers, ADWN Profile, http://www.domesticworkerrights.org/?q=node/22. Para uma descrição do trabalho da Migrant Forum, ver Migrant Forum na Asia Home Page, http://www.mfasia.org/; Mary Lou Alcid, The Multilevel Approach to Promoting Asian Migrant Workers’ Rights: The MFA Experience, 42 International MIGRATION 169 (2004). 154 Ver Ford e Piper, veja-se nota supra 149, at 11-12.

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As actuais campanhas divulgam o tráfico e as práticas de recrutamento ilegal, apelam para o reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho e pressionam a OIT para desenvolver uma convenção sobre os direitos dos trabalhadores domésticos155.

C. Desafios e lições aprendidas

Como exemplos preferimos delinear os contornos de uma vasta gama de

casos sobre cidadania do trabalhador migrante que começou a emergir ao longo dos últimos anos em sectores com altos níveis de migração. O facto de que muitos sindicatos e outras organizações de trabalhadores terem chegado independentemente aos mesmos modelos afirma a necessidade orgânica de quanto são necessárias novas estruturas transnacionais na organização e na defesa para enfrentar as realidades da migração global de trabalho.

Ao mesmo tempo, é importante reiterar de como são recentes a maioria dos exemplos que aqui oferecemos. Na maioria dos casos, é ainda muito cedo para avaliar até mesmo os seus primeiros resultados, muito menos ainda para tirar conclusões acerca dos seus últimos sucessos ou insucessos. Tendo sublinhado os diferentes modelos e registado os seus primeiros passos em direcção à realização dos seus objectivos, em vez daquela avaliação queremos antes expor algumas reflexões preliminares sobre os obstáculos que estes grupos têm enfrentado até à data e os incentivos que os têm, apesar de tudo, levado a continuarem a colaboração transfronteiriça. Analiso então um conjunto de questões que estes modelos e práticas levantam no que diz respeito à Cidadania do trabalho transnacional. Concluo com algumas reflexões acerca dos próximos desafios. Preliminarmente tal como são, é minha esperança que

                                                            155 ADWN, veja-se nota supra 152; Migrant Forum in Asia Home Page, veja-se nota supra 152.

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estas observações serão úteis para os sindicatos ou para outras organizações da sociedade civil já envolvidas, ou considerando as experiencias em torno da Cidadania do Trabalho móvel, espera-se que sejam igualmente úteis para a última versão do regime da Cidadania do Trabalhador Transnacional.

1. Colaboração transfronteiriça: Obstáculos e incentivos

a. Obstáculos

i. Porque são os sindicatos relutantes em organizar os migrantes Os sindicatos dos países de origem e de destino podem, cada um deles,

hesitar em investir em termos de tempo, energia e dinheiro na organização dos trabalhadores migrantes, embora por diferentes razões156.

Os países de destino podem estar relutantes em iniciar campanhas com os trabalhadores migrantes porque estes vêem-nos mais como concorrentes do que como colegas de trabalho, e estão preocupados que os imigrantes lhes venham tirar os poucos postos de trabalho disponíveis e minar a unidade sindical e os seus níveis salariais157. Podem mesmo pressionar os governos a

                                                            156 Para um exemplo histórico fascinante fascinante das diferentes perspectivas dos sindicatos dos países de origem e de destino sobre a migração, ver Harvey A. Levenstein, The AFL and Mexican Immigration in the 1920s: An Experiment in Labor Diplomacy, 48 HISP. AM. HIST. REV. 206 (1968) (Levenstein descreve as rondas de negociação entre a AFL e o sindicato mexicano CROM nos anos 1920s sobre o acordo sobre a migração que nunca se chegou a realizar. A AFL pretendia que a CROM solicitasse ao governo mexicano para restringir a emigração, enquanto a CROM pretendia que a AFL criasse "cartões internacionais de sindicatos" que garantissem aos membros dos sindicatos mexicanos "direitos plenos no país de destino, caso ele tenha atravessado a fronteira". Id at 213.) Agradeço a Janice Fine ter-me alertado para este artigo. 157 Para uma análise às atitudes dos sindicatos relativamente aos imigrantes nos EUA, ver Gordon, veja-se nota supra 6, at 531-45; Janice Fine & Daniel Tichenor, A Movement Wrestling: American Labor’s Enduring Struggle with Immigration, 1866-2007 (a publicar).

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excluírem os migrantes do país em vez de os organizar ou de responder ao apelo de salário igual para todos os trabalhadores (um dogma central, por exemplo, da campanha de direitos dos migrantes BWI's), citando o menor nível de formação dos migrantes como uma razão para que estes não estejam qualificados ou elegíveis para aderirem ao sindicato e à sua escala de salários158. E, ainda, pelo lado dos países de destino, a resistência sindical à imigração é complexa e pode coexistir mesmo com um empenhamento profundo para alcançar a solidariedade entre os trabalhadores159. Nos Estados Unidos, como em vários dos outros países de destino, o universo dos trabalhadores que os sindicatos têm visto mais como potenciais membros, em vez de concorrentes, tem crescido lentamente ao longo do tempo, muitas vezes depois de um esforço para barrar um dado grupo de trabalhadores ter falhado e a sua presença contínua no mercado de trabalho ameaçar dramaticamente os esforços organizativos. Em termos pragmáticos, a relutância dos sindicatos e respectivas federações no país de destino parece estar mais provavelmente voltada para organizar os imigrantes quando estão convencidos de que se não o fizerem perderão a sua posição no referido sector, ou que a organização dos recém-chegados é a única maneira de evitarem vir a ser desfeitos pela concorrência que estes vêm fazer.

Nos países de origem os sindicatos têm um conjunto diferente de preocupações. Eles podem entender a insistência de um sindicato do país de destino sobre um nível elevado de direitos para os trabalhadores migrantes como uma posição de proteccionismo. Mais ainda, os direitos dos migrantes a saírem podem ser muito baixos no país de origem segundo a lista de prioridades dos seus sindicatos. Um certo número de dirigentes sindicais nos países de origem que entrevistei fizeram-me notar que os seus membros vêem

                                                            158 Entrevista telefónica with Jin Sook Lee, veja-se nota supra 117. 159 Gordon, veja-se nota supra 6, at 515-24. Brian Burgoon, Janice Fine, Wade Jacoby e Daniel Tichenor desenvolvem este argumento no próximo artigo, Towards a New Understanding of Immigration and American Unionism: Conflict, Policy Activism and Union Density (disponível no autor).

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os migrantes como estando relativamente bem160. Os seus dirigentes têm como preocupação principal não aqueles que optam por sair, mas com aqueles que ficaram para trás. Dados os recursos extremamente limitados e as difíceis batalhas para sobreviverem no seu país, os sindicatos do país de origem podem, portanto, estar relutantes em estender o seu trabalho ao exterior, a menos que sintam potenciais retornos concretos.

Mesmo os sindicatos e federações dos países de destino e de origem que estão inclinados a considerar a organização de migrantes enfrentam obstáculos práticos para iniciar um trabalho de colaboração transfronteiriça. Um sindicato de um país de destino que note um acréscimo no seu sector, por exemplo, de trabalhadores do Bangladesh, pode saber pouco ou mesmo nada sobre o movimento operário no Bangladesh, e sentir-se mal equipado para procurar ou estabelecer contactos com potenciais parceiros. O mesmo é verdade para um sindicato do país de origem que reconhece que os seus membros estão a iniciar o caminho para um novo destino. O custo do trabalho transfronteiriço assim como a dificuldade de se comunicar dadas as barreiras linguísticas e culturais podem inibir ainda mais esta colaboração.

ii. Os desafios que se encontraram nos projectos já em curso

Uma vez que os sindicatos dos países de origem e de destino se

empenham em trabalhar em conjunto, enfrentam a seguir uma nova série de desafios.

Talvez não seja de espantar que muitos dos obstáculos que se encontraram nestes projectos estão relacionados com a dificuldade de

                                                            160 Entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32; Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150; Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32; Entrevista telefónica a Jin Sook Lee, veja-se nota supra 117. Para uma descrição do mesmo fenómeno no contexto do movimento operário mexicano, ver Julie Watts, Mexico-U.S. Migration and Labor Unions: Obstacles to Building Cross-Border Solidarity 3-4 (Univ. of Cal., San Diego, Ctr. for Comparative Immigration Studies, Working Paper No. 79, 2003), disponível em http://www.ccis-ucsd.org/publications/wrkg79.pdf.

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organizar o trabalho de migrantes temporários mais do que com os problemas da colaboração transfronteiriça. Os migrantes presentes com um visto de trabalho temporário reconhecem que a sua capacidade para permanecer no país depende da manutenção de um bom relacionamento com o seu empregador. Eles também têm constantemente presente o carácter temporário da sua estada, o que lhes dá pouco incentivo para desenvolver ligações com as instituições de países de destino. Os imigrantes sem documentos vivem com uma incerteza ainda maior: tanto podem ser capazes de permanecer durante anos como podem ser deportados no dia seguinte. O impacto desta realidade foi dolorosamente evidente na Coreia, onde o governo tem repetidamente deportado os líderes sindicais do Sindicato dos Trabalhadores Migrantes em aparente retaliação pelo seu trabalho e da sua organização161. Mas isto repete-se noutros países, noutros lugares, desde a Malásia (onde os empregadores na indústria da madeira usam os vistos de curta duração para o trabalho para se assegurarem de que os migrantes, quando organizados, sejam rapidamente substituídos)162, até Hong Kong (onde os trabalhadores domésticos desaparecem de APL-Hong Kong durante a noite quando são despedidos, os seus contratos terminam ou saem para casar ou para procurar uma outra oportunidade) 163.

Muitos migrantes vivem e trabalham na propriedade dos seus empregadores e podem assumir um trabalho extra nos dias de folga, se é que os têm, limitando-se assim ainda mais a sua liberdade de participar na organização sindical. Finalmente, as necessidades financeiras dos trabalhadores migrantes são enormes e o que pode parecer como baixos salários aos trabalhadores nativos, pode, a eles migrantes, parecer como algo

                                                            161 Public Statement, Amnesty Int’l, Republic of Korea (South Korea): Government Must Respect the Right to Freedom of Association of All Migrant Workers (12 de Setembro, 2008), disponível em http://www.amnesty.org/en/library/asset/ASA25/009/2008/en/bf0aa668-80cd-11dd-8e5e-43ea85d15a69/asa250092008en.pdf. 162 Entrevista a Mohd. Khalid B. Atan, veja-se nota supra 121. 163 Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150.

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muito mais desejável quando essas remunerações forem enviadas para a família que está à espera, no país de origem, desse dinheiro. Todos estes factores são factores que limitam o tempo que os migrantes têm para se dedicar à defesa dos seus direitos, é o incentivo para viverem para si mesmos ou para delegar os seus interesses nos outros, e todos estes factores limitam também a probabilidade de que permanecerão empenhados num esforço de organização ao longo de um período substancial de tempo164. Os líderes que entrevistei colocaram a questão de estarem de modo provisório, da sua vulnerabilidade, das suas necessidades financeiras e o medo, como sendo as questões que estão no topo de sua lista de obstáculos para que se possa ter sucesso na organização dos trabalhadores165.

O financiamento é outro obstáculo e bastante significativo. Na perspectiva do país de origem, em especial, o valor de referência para o trabalho nos países de destino pode ser um valor espantoso. Como Joshua Marta de APL sublinhou, colocar um organizador em Hong-Kong custa à APL quatro vezes mais do que custaria um organizador adicional a trabalhar nas Filipinas166. Com excepção da ILMA, cujos imigrantes participantes são obrigados a contribuir para os encargos nos termos dos seus acordos colectivos de trabalho, muitos desses esforços não estão ainda a conseguir uma recolha sistemática de fundos a receber dos migrantes167. Como resultado, a maioria dos esforços para a colaboração são financiados através de doações de fundações e Organizações Sindicais de Apoio e Solidariedade e, em menor

                                                            164 Jennifer Gordon e R.A. Lenhardt, Rethinking Work and Citizenship, 55 UCLA L. REV. 1161, 1213-15 (2008). 165 Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150; Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32; Entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32; Entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32; Entrevista a Mohd. Khalid B. Atan, veja-se nota supra 121. 166 Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32. 167 Quando um trabalhador H-2A escolhe aderir à FLOC, esta cobra quotas a esse trabalhador. Mas, como a Carolina do Norte é um estado de "direito para trabalhar", os "guest workers" não têm de pagar as quotas para terem os benefícios do acordo com a NCGA.

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escala, pelas contribuições dos sindicatos do país de destino e GUFs (Global Union Federations) 168. Mesmo com apoio externo, estas colaborações são do ponto de vista financeiro seriamente insuficientes. A maioria dos organizadores dos sindicatos dos países de origem e de destino a trabalharem em colaboração uns com os outros não podem dar-se ao luxo de se encontrarem frente a frente, excepto quando é em articulação com as conferências organizado pelas GUFs ou outras instituições como a OIT. Na medida em que cada vez há mais imigrantes a beneficiarem da cidadania através de negociação colectiva da cidadania do trabalho móvel, o aumento da colecta de contribuições e de donativos deve permitir que haja mais fontes sustentáveis de apoio financeiro.

b. Incentivos para iniciar e continuar a colaboração transfronteiriça Dados os consideráveis obstáculos o que é que leva os parceiros dos

sindicatos, a que me refiro aqui, a assumirem e a manterem os seus esforços pela cidadania do trabalho móvel com os parceiros de outros países?

Para muitos sindicatos e federações empenhados nas colaborações transfronteiras, os empenhamentos de cariz ideológico — incluindo a solidariedade total são um importante factor inicial. Chang-geun Lee, o director internacional de KCTU por exemplo, descreve os acordos feitos por KCTU, com um número de sindicatos do país de origem em questões de migração, como parte integrante de um compromisso mais amplo de KCTU na construção de uma forte aliança de sindicatos democráticos em toda a Ásia169.                                                             168 As Trade Union Solidarity Support Organizations (TUSSOs) são fundações geridas por sindicatos americanos que canalizam fundos do governo dos EUA assim como dos próprios sindicatos americanos para projectos de solidariedade nos países em desenvolvimento. Os Projectos Asiáticos I são maioritariamente financiados pela TUSSOs. Entrevista a Jin Sook Lee, veja-se nota supra 104. 169 Entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32.

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Para a APL, nas Filipinas, a organização dos trabalhadores migrantes, foi uma consequência do reconhecimento por parte da Aliança do impacto da globalização sobre os trabalhadores filipinos, e do seu empenhamento num "sindicalismo de movimento social", sendo ambas as causas que o levariam a ver os imigrantes como trabalhadores filipinos, ao invés de os considerarem como estranhos ao movimento dos trabalhadores filipinos170. Por seu turno, GEFONT, no Nepal, vê o trabalho com os imigrantes como parte dos seus esforços para construir um movimento sindical forte, independente e democrático naquele país171.

Os factores pragmáticos complementam os factores de matriz ideológica. Para os sindicatos do país de destino, o reconhecimento da dificuldade em organizar os trabalhadores migrantes leva-os a procurar parceiros nos países de origem como uma forma de superar as barreiras de comunicação e de confiança. Os líderes dos sindicatos representativos da Coreia, da Malásia e Hong Kong como países de destino que entrevistei, por exemplo, basearam-se nos seus sindicatos parceiros das Filipinas e Nepal para alcançar os trabalhadores migrantes antes de estes saírem dos seus respectivos países para lhes fornecer know-how sobre os seus direitos materiais e para a recolha de informações de contacto para o sindicato do país de destino e, para se reunir com os grupos de migrantes no exterior de modo a incentivá-los a tornarem-se membros do sindicato no país de destino172. Onde o corpo de dirigentes dos sindicatos ou alguns dos seus membros estiveram nos países de destino, como aconteceu com APL-Hong Kong e com o acordo entre a Malásia e o, Nepal que colocaram um organizador do Nepal nas fábricas de madeira da Malásia, este benefício foi intensificado.

                                                            170 Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32; Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150. 171 Entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32. 172 Entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32; Entrevista a Mohd. Khalid B. Atan, veja-se nota supra 121; Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32; Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150.

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Os sindicatos nos países de origem têm as suas razões práticas para procurarem parceiros nos países de destino. No caso do protocolo ILMA a cidadania do trabalhador móvel leva à entrega de postos de trabalho e de vistos para os membros sindicais dos países de origem, o que constitui um poderoso incentivo para a colaboração. No caso mais comum, em que membros do sindicato não receberam os benefícios da imigração como função da sua participação, os sindicatos do país de origem vêem o trabalho com os migrantes nos países de destino como uma oportunidade para construírem a sua credibilidade e criar ligações ao sindicato entre os entre os migrantes antes de poderem provavelmente regressar a casa173. Josué Mata, Secretário-Geral da APL, nota explicitamente como uma agenda política nacional em que se estimula o envolvimento da APL's em Hong Kong. "Queremos construir uma base política dos migrantes", observa ele, "porque acreditamos que os imigrantes podem ser uma fonte de poder político autónomo, nas Filipinas"174.

Uma vez as parcerias em andamento, os sindicatos dos países de destino e de origem começaram por ver, acima de tudo, as vantagens que obtinham através da procura de respostas a estes mesmos desafios. Primeiro e sobretudo, estas colaborações permitiram aos parceiros criar estruturas e organizar programas de defesa e de apoio que reflectia a realidade bilateral da vida dos trabalhadores migrantes. Por exemplo, os esforços desenvolvidos em colaboração permitiam aos sindicatos ajudar os trabalhadores migrantes a prosseguirem os processos judiciais contra os empregadores e angariadores que de outra forma teriam sido abandonados quando os migrantes retornassem a casa (no caso de uma reclamação contra um empregador realizada por um

                                                            173 Entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32; Interview with Josua Mata, veja-se nota supra 32; Entrevista telefónica a Jin Sook Lee, veja-se nota supra 117. 174 Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32. Especialmente agora que os imigrantes podem votar a partir dos seus países, a APL acredita que a independência dos migrantes, os seus rendimentos e níveis de ensino relativamente elevados, e a sua exposição ao funcionamento do governo democrático os torna eleitoralmente importantes e que vão exigir mais do governo filipino e que — por causa de seu número e do valor das suas remessas – são susceptíveis de serem ouvidos.

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sindicato do país de destino) ou seria retirada lá fora (no caso de uma reclamação contra um angariador iniciada por um sindicato no país de origem), uma vez que os parceiros podem confiar uns nos outros e facilitarem o contacto com os migrantes, onde quer que eles estejam175. Este tipo de colaboração também ampliou o impacte dos esforços de cada participante para moldar a política governamental. Em vários casos, os parceiros sindicais criaram uma pressão simultânea nos países de origem e de destino para tratar de abusos de recrutamento e de falhas nos sistemas governamentais de apoios aos migrantes ou expressaram pedidos bilaterais para se melhorar a protecção dos direitos concedidos através de um acordo entre dois governos176. Mais directamente, várias das parcerias resultaram em aumentos notáveis na filiação sindical de migrantes, como aconteceu com o trabalho desenvolvido pelos sindicatos nepaleses na Malásia e em Hong Kong.

Uma característica recorrente das parcerias transfronteiriças é a presença de uma entidade coordenadora, seja ela uma Global Union Federation, como BWI, ou uma organização separada como ILMA. Estes organismos de coordenação desempenharam funções essenciais para ajudar os parceiros entre si e a facilitarem a comunicação entre distâncias geográficas, culturais e linguísticas abissais. Foram estes organismos que trouxeram os parceiros para as conferências internacionais e para os encontros regionais, onde se poderiam melhor avaliar o seu trabalho, aprender sobre outras iniciativas e sobre os diversos planos para o futuro, desde a assistência técnica permanente para

                                                            175 Entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32; Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150. Num princípio similar, duas organizações de advogados fundadas há poucos anos na América do Norte — Centro de los Derechos del Migrante, em Zaratecas, México, e a Global Workers Justice Alliance, em Nova Iorque — ajudam os trabalhadores migrantes e os seus advogados na defesa destes e nos seus processos judiciais como quando os trabalhadores se deslocam entre os países de origem e destino. Página electrónica do Centro de los Derechos del Migrante website, http://www.cdmigrante.org; Centro de los Derechos del Migrante; Página electronic do Global Workers Justice Alliance Home Page, http://www.globalworkers.org/. 176 Entrevista a Umesh Upadhyaya, veja-se nota supra 32; Entrevista a Chang-geun Lee, veja-se nota supra 32; Entrevista a Josua Mata, veja-se nota supra 32.

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ajudar a superar as barreiras existentes nas diversas colaborações ou para desenvolver novas estratégias e para servirem de mediadoras entre as diversas uniões sindicais dos países de origem e de destino quando estas tinham preocupações e objectivos diferentes177. Os organismos de coordenação também concederam financiamentos para o trabalho de colaboração e dirigiram os esforços para expandir os modelos e práticas de sucesso para os novos países.

2. Para uma melhor compreensão do trabalho a fazer sobre a Cidadania do Trabalhador Transnacional

Devido à forma como inicialmente arrancou e se desenvolveu este

trabalho admito que devemos responder a algumas das questões mais críticas que a estes foram postas. Até à data, nenhuma organização sindical tem mais que uns poucos milhares de membros migrantes como filiados e a maioria tem apenas algumas centenas. O seu impacto sobre as condições de trabalho também tem sido modesto. Para se ter sucesso, um regime como o de Cidadania do Trabalhador Transnacional acabará por ter a necessidade de abranger um grande número de trabalhadores, com incentivos que garantam a participação de governos, empresas e dos próprios migrantes. Com o tempo, será a cidadania do trabalho móvel que permanecerá como sendo o campo de pequenas experiências, ou será que algumas poderão crescer a uma escala tal que adquiram um efeito significativo sobre o mercado de trabalho? Quais as

                                                            177 Outro exemplo de uma entidade emergente de coordenação é o recém-lançado Binacional Labor Justice Initiative, co-dirigido pelo Centro de los Derechos del Migrante e pelo ProDESC, uma organização de direitos humanos baseado na Cidade do México. A iniciativa reúne advogados especialistas na área do Direito do Trabalho e colaboradores dos Estados Unidos e México, em campanhas para reforçar os direitos dos migrantes e de fortalecer a organização e estratégias de aplicação da legislação de ambos os lados da fronteira. Entrevista a Alejandra Ancheita, Executive Dir., El Proyecto de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (ProDESC), Cidade do México, México, (4 de Março, 2008); Binational Labor Justice Initiative Profile, disponível em http://www.cdmigrante.org/Binational%20Flyer%20english.PDF.

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abordagens que se irão mostrar como as de mais sucesso na descoberta de pontos para alavancar que levem os empregadores e as nações a participarem nos esforços para melhorar as condições de trabalho, permitindo aos trabalhadores que se organizem como um verdadeiro poder no mundo da mobilidade transnacional? É demasiado cedo para o dizer.

No entanto, e com o reconhecimento de que muito do que eu possa dizer a este nível é necessariamente pura especulação, existem já alguns exemplos nos quais estas práticas já aparecem a dar-nos algumas ideias sobre a evolução futura do regime da Cidadania do Trabalho Transnacional. Pessoalmente, agrupo as minhas análises em duas categorias: primeiro, aproveito a experiência de FLOC e de ILMA, os dois exemplos em que os sindicatos de trabalhadores trabalham em conjunto com os empregadores para facilitar o acesso à obtenção de vistos de curta duração (um elemento-chave da proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional), para analisar as complicações que podem acontecer quando uma organização de trabalhadores desempenha esta função, e para explorar as razões pelas quais os empregadores podem achar conveniente trabalhar com uma união sindical no sentido da cidadania do trabalhador móvel. Em segundo lugar, evidencio as questões de inclusão no regime de Cidadania do Trabalhador Transnacional, procurando-se uma abordagem à ideia de cidadania do trabalhador móvel que abranja uma ampla gama de trabalhadores, e isto pode ser diversificado na forma e na estratégia, e a estar-se aberto a trabalhar conjuntamente com opiniões diferentes sobre as suas questões centrais.

a. Quando as organizações dos trabalhadores são um canal para obter vistos e empregos Os estudos de casos são divididos entre os esforços que ligam os

representantes sindicais à obtenção de vistos de trabalhador temporário e aqueles que o não são. Pessoalmente muitos dos casos que aqui considero não estão envolvidos no processo de atribuição de vistos. As duas grandes

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excepções são o Protocolo ILMA e FLOC. Devido ao seu envolvimento activo com os programas de migração temporária, as experiências desses grupos são de especial interesse para a proposta Cidadania do Trabalhador Transnacional. Estar em condições de oferecer (ou de facilitar o acesso), como um valioso benefício para a imigração tem vantagens óbvias para os sindicatos participantes. Mas também há desvantagens num sistema que coloca os sindicatos em posição de ajudar os imigrantes a conseguem empregos e vistos nos países de destino. As complicações encontradas por ILMA e FLOC sugerem que um regime como o de Cidadania do Trabalhador Transnacional teria de ser concebido com um cuidado muito especial para evitar uma mudança no papel do sindicato, ou seja, de representante dos trabalhadores para passar a ter a função de recrutamento de migrantes e também na expectativa das preocupações sobre o retrocesso a partir dos angariadores existentes e da corrupção. Além disso, devido a que ILMA e FLOC, ambas e por necessidade, têm trabalhado em estreita colaboração com os empregadores, a sua experiência oferece a oportunidade de se poder reflectir sobre o que o regime de Cidadania do Trabalhador Transnacional pode oferecer a partir da perspectiva das empresas.

i. Sindicatos e recrutamento de trabalhadores

Quando um sindicato se torna um canal para a obtenção de um visto ou

de um emprego está então a mudar a sua função face ao trabalhador e ao empregador. Nalguns sectores na América do Norte, nomeadamente na construção, os sindicatos têm uma longa fila de espera em termos de empregos em que os empregadores mudaram as suas preferências para trabalhadores qualificados. Mas as pretensões da FLOC e de ILMA é ir para além de um modelo caracterizado por um amplo espaço de contratação "global". Eles estão a tornar mais fácil o acesso dos trabalhadores migrantes ao status de imigração legal, bem como ao emprego. Porque, como sindicato, também está numa boa posição para colocar os imigrantes em contacto com os empregadores e vice-

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versa, dadas as barreiras da língua, da distância, dos sistemas de comunicação bastante rudimentares em comunidades longínquas, estes tornam-se, de alguma maneira, intermediários no processo de recrutamento de trabalhadores. Se é assim ou não que os sindicatos se vêem a si próprios, há um perigo de que alguns trabalhadores venham a ver o sindicato, nas palavras de um antigo organizador da FLOC, "como uma engrenagem no sistema de recrutamento"178.

Este novo papel pode criar tensão com a ideia de que um sindicato de trabalhadores tem como finalidade a defesa dos trabalhadores. Se numa campanha de um sindicato por melhores salários e condições de trabalho se exigir a tomada de uma posição contrária à dos empregadores, isto pode ser visto como um conflito com a sua capacidade de continuar a proporcionar o acesso ao emprego para os seus membros filados, migrantes, uma capacidade que exige relações de cooperação com os empregadores. Para ajudar a gerir este conflito, uma organização de trabalhadores nesta situação pode querer considerar a criação de uma entidade independente que gere o enquadramento do regime de cidadania do trabalhador móvel. Isso é essencialmente o que os sindicatos que participam no projecto ILMA têm feito, eles mantêm a sua identidade e as suas alianças, mas estão envolvidos em a ILMA com a finalidade de facilitar a migração de membros filiados no sindicato para trabalhos de duração temporária.

Quanto mais próximo estiver um sindicato do papel de angariador, também mais atenção deve ser dada ao perigo de corrupção. Quando se tem o controlo das organizações dos trabalhadores, ou mesmo se influenciar o acesso a vistos, a sua equipa terá inevitavelmente de enfrentar as tentações do suborno e do lucro pessoal, vindo de ofertas paralelas que há já muito tempo prejudicavam o sector de recrutamento de pessoal. O projecto-piloto do Protocolo ILMA encontrou estes perigos quase imediatamente, quando um representante do sindicato canadiano de Alberta co-optou uma contrapartida

                                                            178 Entrevistas com Brendan Greene e Cástulo Benavides, veja-se nota supra 138.

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sindical no Brasil e iniciou o seu próprio negócio de recrutamento, usando as listas confidenciais a que tinha tido acesso através da sua posição no sindicato179. A direcção de ILMA foi capaz de superar esse obstáculo e ir para um projecto-piloto bem sucedido, mas isto ilustra bem o facto de que num eventual regime de Cidadania do Trabalhador Transnacional, as organizações de trabalhadores teriam que exercer uma vigilância enorme (e teria de ser objecto de um acompanhamento contínuo no exterior) para assegurar que os seus processos de recrutamento permanecem abertos e justos. Da mesma maneira, deve haver um grande cuidado em assegurar que aplicação do regime Cidadania do Trabalhador Transnacional não se torne numa maneira de reforçar o poder dos sindicatos corruptos e antidemocráticos, sobretudo nos regimes corporativos.

O retrocesso a partir das empresas actuais de recrutamento de trabalhadores é uma grande preocupação quando os sindicatos são vistos como concorrentes com as firmas estabelecidas. As empresas que recrutam trabalhadores podem ganhar vastas somas de dinheiro no seu papel de intermediários no processo de migração180. Um quadro de cidadania do trabalhador móvel que diminui o poder e o rendimento dos angariadores existentes, como tais enquadramentos inevitavelmente o farão, quando se preencherem os lugares disponíveis através da antiguidade (como acontece com FLOC) ou através da filiação sindical (como acontece com o Protocolo ILMA), em vez de ser através de uma combinação de pagamentos oficiais e de subornos a uma terceira contrapartida, encontrará provavelmente uma forte reacção negativa. A organização FLOC, por exemplo, tem enfrentado repetidas ameaças de angariadores de trabalho estabelecidos no terreno, e atribui-se-lhes a trágica tortura e o assassinato em 2007 do seu organizador Santiago Rafael

                                                            179 Affidavits of Valter Souza, President, and Derlí Santúrio dos Santos, Admin. Dir., Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de Porto Alegre (STICC) (Abril 9, 2008). 180 SOUTHERN POVERTY LAW CTR., veja-se nota supra 11, Pt. 3, at 9-14.

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pela sua contribuição na intervenção do sindicato nos processos de recrutamento existentes181.

ii. Que problemas resolve a Cidadania do Trabalhador Móvel aos empregadores

Sob os actuais regimes de migração de modo a oferecer vistos as

organizações FLOC e ILMA deviam trabalhar activamente com os empregadores. O inverso não é verdadeiro: os empregadores podem empregar trabalhadores, sem qualquer obrigação de trabalhar em colaboração com os sindicatos. A participação voluntária das empresas de construção em que há sindicato próprio no Protocolo ILMA e da Associação dos Construtores da Carolina do Norte na organização FLOC de contratos H-2A oferece a oportunidade de considerar porque é que um esquema transfronteiriço de migração envolvendo sindicatos pode ser afirmativo de interesse para os empregadores.

Gostaria de reflectir e de me questionar sobre que tipo de factores está a funcionar neste caso (e continuarão a ser salientes no regime de Cidadania do Trabalhador Transnacional) 182. Primeiro, os empregadores provavelmente vêem a colaboração com o sindicato como um objectivo para a cidadania do trabalhador móvel como sendo esta desejável, se eles têm problemas em conseguir uma dada oferta de trabalho adequada através de canais normais. A escassez de soldadores qualificados, na América do Norte, no caso ILMA, e a crescente dificuldade que os construtores enfrentam para empregarem

                                                            181 Farm labor Organization Committee, AFL-CIO, Santiago Rafael Cruz 1977-2007, http://www.floc.com.Santiago.htm. 182 Para efeitos do presente relatório, o meu objectivo principal era o de entrevistar pessoas que estavam a organizar os migrantes nos esforços de cidadania dos trabalhadores móveis. Entrevistas no futuro com os empregadores aqui participantes irão permitir-me fazer afirmações menos especulativas sobre os seus interesses e motivações.

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trabalhadores sem documentos, ilegais,183 em FLOC, faz com que as novas propostas feitas por estas organizações para facilitar o fluxo de trabalhadores em condições justas sejam mais apelativas para os empregadores do que de outra forma teriam sido. Num sentido ainda aqui relacionado, na medida em que um quadro de cidadania do trabalhador móvel assegura aos empregadores que os trabalhadores que eles contratam terão a necessária formação e experiência, este regime é mais susceptível de lhes ser atraente. Isto é particularmente evidente nos sectores de alto valor acrescentado, de elevados níveis de exigência profissional, e isto é um papel que o Protocolo ILMA espera satisfazer a nível transnacional com a realização do que os sindicatos têm vindo a fazer a nível nacional. Mas a organização FLOC verificou também que os produtores avaliam o seu papel como um canal para obter uma força de trabalho confiável e com experiência em particulares tarefas na agricultura184.

As condições pré-existentes no mercado de trabalho são apenas parte da história. As organizações também podem exercer uma pressão que, por sua vez, se transforme num acordo que garanta a paz laboral mais atraente para os empregadores. No caso do FLOC, por exemplo, o boicote organizado pelo sindicato foi o impulso para a Associação dos Produtores da Carolina do Norte reconhecerem o sindicato e negociarem um contrato que abrangesse também os trabalhadores migrantes legais de trabalho temporário.

                                                            183 Essas dificuldades foram atribuídas, nos primeiros anos do programa, para o facto de que os trabalhadores sem documentos terem outras opções de emprego mais atraentes do que as oferecidas pelo NCGA. Isso foi particularmente verdade em indústrias como a do tabaco, onde há períodos de trabalho intenso combinado com períodos em que apenas uma pequena quantidade de trabalho precisa ser feito. Os empregadores tiveram dificuldade em manter um nível estável de trabalho porque os trabalhadores sem documentos abandonavam estes locais durante os períodos em que era necessário pouco trabalho. Entrevista a Brendan Greene e Cástulo Benavides, veja-se nota supra 138. Nos anos posteriores, os produtores também enfrentaram riscos crescentes associados à contratação de trabalhadores sem documentos, à medida que o Governo intensificou as suas inspecções e a aplicação de sanções aos empregadores. Entrevista telefónica a Cástulo Benavides, veja-se nota supra 144. 184 Entrevista a Cástulo Benavides, veja-se nota supra 144.

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Finalmente, a colaboração com o sindicato para contratar trabalhadores legalmente autorizados é uma maneira para os empregadores evitarem ser processados sob as leis de imigração. De acordo com o leque de competências, e particularmente como a aplicação de sanções aplicáveis aos empregadores tem vindo a aumentar e faz com que o emprego de trabalhadores indocumentados seja uma estratégia mais arriscada, os empregadores podem ver a cidadania do trabalhador móvel como um porto seguro do ponto de vista da responsabilidade. No quadro de um regime Cidadania do Trabalhador Transnacional que seria acompanhada por intensificação da aplicação do salário mínimo e de outras protecções de trabalho, os empregadores podem ver um valor similar em estreitarem a colaboração com as organizações de trabalhadores para garantir que eles estejam em conformidade com a lei.

b. Para uma forma inclusiva de Cidadania do Trabalhador Transnacional As dimensões de género e de raça da migração global do trabalho são

inevitáveis. Os trabalhadores migrantes de baixos salários são predominantemente pessoas de cor, e cada vez mais, do sexo feminino. Enquanto o movimento das pessoas mais pobres, pessoas de pele mais escura, para as terras mais ricas dos brancos é uma velha história185, a feminizarão do fluxo de migrantes é um fenómeno relativamente novo. Em muitos países de origem, as mulheres trabalhadoras são a maioria no fluxo dos migrantes. 186 Em ambos os tipos de países, de origem e de destino, as mulheres, os trabalhadores de cor e os trabalhadores não sindicalizados, têm menor probabilidade de estar formalmente organizados ou representados. São, portanto, menos propensos a ter uma voz, quando novos quadros de cidadania                                                             185 Não é, porém, a única história. Por exemplo, a migração entre os países africanos e os países de Leste para os países da Europa Ocidental é caracterizada por diferenças de rendimento e etnia, mas não necessariamente raça. 186 Por exemplo, estima-se que 76% dos migrantes legais indonésios sejam mulheres, assim como 69% dos migrantes do Sri Lanka e 70% dos migrantes filipinos. Human Rights Watch, Help Wanted, veja-se nota supra 20, at 9 e n.4.

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móvel de trabalho são desenvolvidos. Os regimes de cidadania do trabalhador móvel que não fazem um esforço consciente para incluir as mulheres trabalhadoras, os trabalhadores de cor assim como trabalhadores não sindicalizados ao mesmo nível que os trabalhadores sindicalizados, correm o risco de reforçar os padrões históricos da exclusão. Se o regime Cidadania do Trabalhador Transnacional pretende ser bem sucedido em atingir o seu objectivo de melhorar as condições de trabalho para todos os trabalhadores em cada sector, seja qual for sua raça, origem nacional ou sexo, então deve ser concebido desde o início para ser o mais abrangente possível. Esta inclusão deve ser reflectida não só na faixa de trabalhadores que têm acesso à sindicalização, mas sim no papel que os imigrantes actualmente desempenham na concepção, na defesa dos direitos e na avaliação das metas das organizações a que pertencem187. Por outras palavras, uma verdadeira e inclusiva Cidadania do Trabalhador Transnacional seria também uma sociedade verdadeiramente participativa.

i. Diversidade na forma de organização, na estratégia e nos padrões

Várias coisas fluem de um acordo para a inclusão máxima. Um deles é o

reconhecimento de que se o regime Cidadania do Trabalhador Transnacional tem como objectivo abranger um vasto leque de trabalhadores, ele também terá de ser aberto a uma variedade de organizações de trabalhadores. Para defender os direitos nos seus locais de trabalho, os migrantes e os seus defensores podem precisar de levar a cabo a criação de novas instituições, como é evidenciado pelo aparecimento de um novo conjunto de organizações nacionais citadas e como, pensamos nós, o crescimento dos centros dos trabalhadores migrantes nos Estados Unidos nas últimas duas décadas o

                                                            187 Para uma descrição de uma organização de trabalhadores imigrantes "estruturada para maximizar a participação da base para o topo, ver Jennifer Gordon, Suburban Sweatshops, cap. 2-3 (2005).

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mostram bastante bem188. As novas e híbridas formas das organizações que os trabalhadores imigrantes desenvolvem terão de ser bem-vindas e postas ao lado dos sindicatos em pleno regime de Cidadania do Trabalho Transnacional. A diversidade das formas organizacionais inevitavelmente será acompanhada por uma diversidade de estratégias, como as variadas estruturas que os actuais esforços de cidadania móvel de trabalho têm vindo a desenvolver para ilustrar as suas iniciativas. Cada grupo irá abordar a defesa dos direitos dos migrantes de forma a fazer sentido dada a sua situação política e económica, as suas tradições de organização e o mercado de trabalho em que operam, em vez de serem a réplica de um modelo projectado no exterior.

Uma outra dimensão da diversidade com que um regime de uma inclusiva cidadania do Trabalhador Transnacional terá de lidar é com uma diversidade de objectivos de fundo. Um exemplo diz respeito, por exemplo, às normas laborais. A maioria dos exemplos que descrevo envolve dois conjuntos de regulamentação em simultâneo: eles procuram quer aprofundar quer fazer aplicar os direitos de todos os migrantes estabelecidos por lei (isto é, o mínimo ao qual os migrantes são autorizados em virtude da regulação interna ou de acordos internacionais), e exigir um maior nível de normas negociadas para um mais pequeno grupo de imigrantes que podem ser incorporadas em acordos colectivos. Nos sectores de actividade, sejam os de salários mais elevados ou sejam os de salários mais baixos, que eu saiba, no entanto, os grupos concentram-se exclusivamente num ou noutro. O Protocolo ILMA, a servir os trabalhadores especializados só funciona no âmbito dos acordos colectivos que garantem salários substancialmente superiores ao mínimo legal. Isto pode ser assim com o trabalho de soldadura no Canadá por causa da natureza altamente especializada do trabalho, por causa de uma longa história de sindicalização, e uma escassez de trabalhadores nativos sindicalizados o que gera altos níveis de poder de negociação. O esforço de organização dos trabalhadores domésticos,

                                                            188 Sobre Centros de Trabalhadores, ver Janice Fine, Worker Centers: Organizing Communities at the Edge of the Dream (2006).

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pelo contrário, nem sequer conseguiu negociar colectivamente, seja o que for189. Em vez disso, concentraram-se exclusivamente na aplicação de normas salariais definidas por lei e sobre o alargamento dessas normas através de intervenções de políticas públicas. Essa estratégia reflecte os níveis muito baixos de sindicalização do trabalho doméstico, a dispersão dos trabalhadores por residências individuais ao invés de locais de trabalho formais e devido também ao facto de a maioria dos trabalhadores domésticos serem mulheres, com estatutos de imigração ténues e com muito fraco nível de negociação190.

Em cada um destes casos, as organizações de trabalhadores analisaram as suas circunstâncias e decidiram sobre os níveis dos direitos a que achavam poder aspirar. Mas consensos sobre a estrutura dos direitos fundamentais numa largamente inclusiva cidadania do trabalhador móvel podem ser mais difíceis de alcançar por razões que passamos, a seguir, a explicar.

ii. O Desafio da Inclusão: Diferentes perspectivas sobre direitos

Uma abordagem inclusiva tem uma adesão intuitiva. Entre outros desafios, que a inclusão engloba e levanta, está, contudo, o facto de que quanto mais vasto for o conjunto de trabalhadores de regime Cidadania do Trabalhador Transnacional mais provavelmente os seus participantes terão diferentes perspectivas sobre as normas substantivas.

                                                            189 No entanto, os exemplos dos trabalhadores domésticos em Hong Kong têm mostrado que medidas de política pública e contratos não são necessariamente mutuamente exclusivas. Porque o governo de Hong Kong criou um modelo de contrato que se aplica a todos os trabalhadores migrantes nacionais, as organizações nacionais de trabalhadores exercem uma pressão pública para colectivamente se mudarem os termos dos contratos privados. Entrevista a Elizabeth Tang, veja-se nota supra 147; Entrevista a Gigi Torres, veja-se nota supra 150. 190 Embora a FLOC, que representa os trabalhadores agrícolas de baixos salários, negociar colectivamente, o seu acordo com a Associação dos Produtores de Carolina do Norte não aborda os salários (que são definidas por lei para os "guest workers"), centrando-se em vez disso nas questões de antiguidade, na segurança, e no processo de representação sindical.

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Estes conflitos são comuns entre empregadores e sindicatos, em cenários de migrantes não mediatizados ou arbitrados por regimes de cidadania do trabalhador móvel. Actualmente nos Estados Unidos há sindicatos estão envolvidos em disputas com as empresas sobre se os migrantes "destacados" para um emprego (por exemplo, quando uma empresa de construção da Letónia ganha um contrato de trabalho na Suécia e traz os trabalhadores da Letónia para fazer o trabalho na Suécia) deverão ser pagos de acordo o sistema de normas mínimas ou de acordo com os padrões mais elevados do sector, ou ainda através da negociação191.

Que os empregadores e os sindicatos discordem quando ao nível apropriado de direitos não é de surpreender. Mas quando o quadro de cidadania de trabalhador móvel abrange os sindicatos de ambos os países, de destino e de origem, o conflito sobre padrões pode também surgir aqui. Os trabalhadores migrantes e os seus sindicatos ou organizações podem estar dispostos a aceitar salários fixos num nível mais baixo do que os trabalhadores nativos, não só porque o dinheiro que ganham vai bem para mais longe, para as suas economias nacionais mas também porque os migrantes temem que podem perder a sua capacidade de competir por empregos se o mínimo é definido substancialmente acima da taxa que recebem actualmente. Esta

                                                            191 O litígio relativo à interpretação do destacamento de trabalhadores da UE (Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho 96/71/CE, JO 1997 (L 18) 1), que mandata os trabalhadores destacados para exigirem ou uma casa ou os padrões mínimos de trabalho do país de destino, o que for mais vantajoso. Mas o que constitui o "mínimo"? Numa série de casos recentes, os sindicatos nos países de destino da UE têm tentado usar a ameaça de greves e outras formas de acção colectiva para exigir dos empregadores que utilizam trabalho destacado para cumprir os acordos salariais estabelecidos nas negociações colectivas do contracto de trabalho no país de destino, ao invés dos baixos ou não existentes mínimos nacionais. Em 2007 e 2008, nos casos Viking, Laval, e Rüffert, o Tribunal Europeu de Justiça considerou que cada uma dessas tentativas violavam a liberdade de estabelecimento da UE das empresas que procuram operar para lá das suas fronteiras, embora por razões diferentes. Case C-438/05, Int’l Transp. Workers’ Fed’n v. Viking Line ABP, 2007 ECJ (Dez. 11, 2007); Case C-341/05, Laval un Partneri Ltd. V. Svenska Byggnadsarbetaref rbundet, 2007 ECJ (Dez. 18, 2007); Case C-346/06 Dirk Rüffert v. Land Niedersachsen 2008 ECJ (Abr. 3, 2008).

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questão surgiu em Hong Kong, onde a Confederação dos Sindicatos de Hong Kong (HKCTU), com 180.000 membros através das suas 87 federações filiadas e sindicatos192, conta entre os seus membros quatro sindicatos de trabalhadores migrantes (três para os trabalhadores domésticos e um do sector dos trabalhadores da construção), bem como inúmeros sindicatos que são predominantemente nativos ou que têm uma mistura de filiados nacionais e estrangeiros. Ao longo dos últimos anos, como HKCTU liderou uma bem sucedida luta para estabelecer um salário mínimo para Hong Kong, houve uma dissidência tranquila, de pelo menos um dos sindicatos de trabalhadores domésticos, como resultado do medo que os seus membros já não pudessem ser capazes de obter emprego no âmbito da proposta de maior nível salarial193.

As GUF’s (Federações Sindicais Globais) que devem conciliar os pontos de vista dos seus filiados por todo o mundo, os sindicatos, e as federações de trabalhadores nacionais tais como HKCTU, que conta com sindicatos de migrantes de dimensão significativa entre os seus filiados, têm um papel particularmente importante a desempenhar na resolução de conflitos como estes. O HKCTU continua a trabalhar para obter um compromisso na situação destacada acima, mas está firmemente empenhado na ideia de que deve haver um conjunto de normas quanto ao salário mínimo para todos os trabalhadores em Hong Kong, e no entanto deixou a porta aberta a um conjunto de normas inferiores para todos os migrantes194. Este princípio da igualdade de tratamento para todos os trabalhadores é também a força motivadora por trás de campanhas BWI e das suas colaborações. Nesta abordagem pode ser encontrado um contraste interessante no trabalho do International Transport Workers Federation: a Federação Sindical Mundial, que representa desde há longa data os marinheiros num mercado global do trabalho. Abaixo descrevo o perfil de três níveis de compromisso a que a Federação chegou dolorosamente e ao longo de muitos anos.                                                             192 Página electrónica da HKCTU, http://wwwhkctu.hk/english/. 193 Entrevista a Elizabeth Tang, veja-se nota supra 147. 194 Id.

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Federação dos Trabalhadores dos Transportes Internacionais: "A Campanha do

Pavilhão de Conveniência"

Desde 1948, que os armadores têm podido contratar trabalhadores de qualquer

país que queiram escolher. A Federação dos Trabalhadores dos Transportes

Internacionais com a sua campanha “pavilhão de conveniência” procurou contestar a

capacidade das companhias de navegação se poderem aproveitar pagando salários mais

baixos aos marinheiros provenientes de países menos desenvolvidos. A Federação não

se opõe à prática aberta de contratação, mas em vez disso defende que as empresas

devem respeitar os níveis salariais aprovados pela Fair Practices Committee, qualquer

que seja o país de origem dos marítimos a bordo. Como com todos os seus esforços

para estabelecer uma base global sobre os salários, a Federação teve de encontrar uma

forma de ligação entre as perspectivas muito diferentes dos sindicatos filiados que

deferiam consoante estes eram de países de elevado ou de baixo rendimento. Os três

níveis salariais que Fair Practices Committee estabeleceu variam de acordo com o

segmento do mercado no qual a empresa opera, uma abordagem que tem levado a

Federação a permitir as diferenças salariais que se revelaram fundamentais para "o

delicado consenso inter-sindical que mantém com que a campanha seja feita em

conjunto"195. Ao nível mais baixo, onde a empresa opera, em que o navio e a tripulação

são todos do mesmo país em desenvolvimento, os sindicatos estão autorizados a

negociar salários que podem ser consideravelmente inferiores aos padrões

internacionais que a Federação tem definido para os outros segmentos do mercado do

trabalho196. Este acordo tem mantido os sindicatos dos países em desenvolvimento

                                                            195 Nathan Lillie, A Global Union For Global Workers: Collective Bargaining And Regulatory Politics In Maritime Shipping 4 (2006). Para uma descrição da Campanha dos Pavilhões de Conveniência, ver id. 3-4 e cap. 3. 196 Para outros apelos para criar normas que reflictam sensibilidade para com os actores menos favorecidos no sistema económico, em vez de os deslocar, ver Jane E. Larson, Negotiating Informality Within Formality: Land and Housing in the Texas Colonias, em Law And Globalization From Below: Towards a Cosmopolitan Legality 140

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dentro da Federação, em vez de os empurrar para fora, onde teriam um incentivo para

minar os salários negociados pelos sindicatos marítimos de países desenvolvidos em

navios que contratam o seu pessoal a nível internacional197.

Em virtude das suas alianças, tanto com os trabalhadores migrantes como

com os trabalhadores nativos, as Federações Sindicais Globais tais como BWI e Seafarers são forçadas a trabalhar com diferentes perspectivas, as do país de origem e as do de destino e para negociar linhas de trabalho que tomem em consideração os dois conjuntos de interesses. Isso não quer dizer que as Federações Sindicais Globais representem os interesses de todos os trabalhadores. Embora possam colaborar com as organizações não-governamentais, as federações sindicais mais globais não têm nenhum mecanismo formal para a inclusão, nas suas próprias deliberações, da perspectiva dos trabalhadores não organizados. No entanto, os processos que têm desenvolvido para tomarem em consideração a ampla gama de perspectivas defendidas pelas suas organizações membros ilustram os tipos de negociação e de concertação que será essencial para o sucesso final do regime Cidadania do Trabalhador Transnacional.

CONCLUSÃO No contexto da migração de trabalho a nível global que hoje se verifica,

será um tremendo avanço conseguir que aos trabalhadores migrantes sejam garantidos uniformemente os mesmos direitos que são garantidos às suas contrapartes nacionais. Mesmo assim, uma coisa é garantir os direitos no papel                                                                                                                                    (Boaventura de Sousa Santos e César A. Rodríguez-Garavito eds., 2005) (apelando para uma regulamentação informal e flexível local, sensível às necessidades dos trabalhadores pobres); Saskia Sassen, Globalization And Its Discontents 166 (1998) (apelando para sistemas flexíveis de regulação económica para apoiar o crescimento de pequenas empresas, actualmente situadas na economia subterrânea). 197 LILLIE, veja-se nota supra 131.

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e outra é dar aos trabalhadores migrantes o poder, as ferramentas e os suportes para que sejam na realidade aplicados. O regime Cidadania do Trabalhador Transnacional começa com a necessidade fundamental da igualdade de direitos e então pergunta-se, o que é necessário mais para tornar os imigrantes verdadeiros cidadãos trabalhadores? Defendo que ligar o direito de migrar para trabalhar à filiação e à participação em organizações de trabalhadores das nações de origem e de destino e exigir aos migrantes que denunciem as violações de trabalho com o apoio destas mesmas organizações, será percorrer um longo caminho para o estabelecimento de uma base de condições de trabalho justas.

Os casos que aqui descrevi neste relatório sugerem a possibilidade de uma nova abordagem para o tratamento das questões das migrações laborais, ao colocar os direitos dos trabalhadores e a capacidade de os aplicar no centro das políticas a realizar em de serem colocados na periferia. As iniciativas delineadas têm muitas lições a dar sobre as possibilidades de futuras aplicações e podem fornecer a base para objectivos a alcançar ainda muito maiores. Ao mesmo tempo, demonstram muitos dos desafios que devem ser superados antes que seja imaginável atingir-se uma forma mais completa do regime Cidadania do Trabalhador Transnacional.

Algumas reflexões finais. Primeiro, é importante notar que todos os exemplos que destaco permanecem estruturados em torno dos tradicionais programas nacionais de trabalho temporário legal, em que a obtenção dos vistos amarra o trabalhador migrante ao empregador e a um dado trabalho. Como foi exposto nas páginas iniciais deste trabalho, essa ligação é um terreno fértil para a exploração dos imigrantes, o que é atenuado, mas não eliminado pelo importante papel que os sindicatos estão a desempenhar nessa tarefa. A versão completa do regime Cidadania do Trabalhador Transnacional teria que romper com essas amarras, libertando os trabalhadores para poderem mudar de emprego e de empregador à vontade. Em segundo lugar, esses exemplos deixam bem claro que, dada a diversidade dos trabalhadores migrantes e as diferenças entre os contextos de que migram, não é possível criar um regime

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Cidadania do Trabalhador Transnacional que se aplique de igual modo para todos. Cada conjunto de colaborações precisa ser feito individualmente trabalhado para poder reflectir a estrutura e as características dos sectores a partir dos quais emergem, as leis e os sistemas políticos das nações onde se localizam assim como as histórias originais, as organizações, os líderes e as ideologias na participação nas organizações sindicais e da sociedade civil. Qualquer que seja a forma que os esforços individuais assumam, no entanto, será sempre essencial um órgão de coordenação central para as colocar num plano de conjunto, para facilitar a negociação de acordos entre elas, para facilitar os canais de financiamento e de outras fontes de apoio e ainda para apoiar e acompanhar o seu trabalho. Uma série de instituições existentes, incluindo as Federações Sindicais e a OIT, bem poderiam desempenhar esse papel, mas também é importante considerar a possibilidade de criação de novas entidades para o efeito.

Em terceiro lugar, no seu conjunto, os exemplos reforçam a necessidade de se procurarem alternativas para a protecção dos trabalhadores imigrantes que combinem estratégias ao nível das bases e ao nível de topo. O facto de que apenas muitos poucos dos acordos governamentais recentes tenham disposições de protecção aos trabalhadores migrantes, e que as disposições existentes raramente são aplicadas, ilustra bem que conseguir que conseguir que os governos dos países de origem e de destino se sentem à mesa das negociações é apenas metade da batalha. Os acordos resultantes provavelmente não favorecem os interesses dos migrantes na ausência de pressão sustentada e até mesmo os melhores acordos carecem de financiamento, de formação e de continuado apoio institucional públicos e privado para realizar esses seus objectivos. O empenho, desde as bases ao topo, criado pelas organizações de migrantes e os sindicatos, é essencial para garantir que as preocupações dos imigrantes sejam levadas a sério e que os direitos postos no papel (se legislado ou negociado) sistematicamente traduzam os direitos na realidade.

Finalmente, o trabalho que tem estado a ser realizado não deixa dúvida de que o regime Cidadania do Trabalhador Transnacional vai exigir um

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verdadeiro bi ou multilateralismo, ambos em relação aos governos e às organizações da sociedade civil, e a criação de entidades de coordenação para pôr as partes à mesa das negociações, para as ajudar então a negociar sobre as suas diferenças e apoiar e acompanhar o seu trabalho. Para melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores nativos e também as dos trabalhadores imigrantes, os governos e as organizações de trabalhadores terão de se envolver uns com os outros, para construir uma visão partilhada sobre o trabalho decente e sobre um programa comum para fazer do trabalho digno, do trabalho decente, uma realidade. O regime Cidadania do Trabalhador Transnacional é um primeiro passo para esse objectivo distante, mas essencial.

Traduzido de Jennifer Gordon, “Towards Transnational Labor Citizenship: Restructuring Labor Migration to Reinforce Workers’ Rights. A Preliminary Report on Emerging Experiments”, Fordham Law School, Janeiro, 2009. Disponível em http//www.floc.com/documents/Restructuring%20Labor%20Migration.pdf.  

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Com o apoio das instituições:

- Reitoria da Universidade de Coimbra

- Teatro Académico de Gil Vicente

- Caixa Geral dos Depósitos

- Fundação para a Ciência e Tecnologia

AGRADECIMENTOS:

António Gama

Rui Calvinho

Atalanta Filmes

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

2009/2010

A ECONOMIA GLOBAL E OS MUROS DA REPARTIÇÃO DO RENDIMENTO

Textos seleccionados, organizados e traduzidos por:

Júlio Mota, Luís Peres Lopes e Margarida Antunes

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