direito e democracia revista de ciências jurídicas - … · número do décimo quarto volume da...

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COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas - ULBRA Vol. 14 – Nº 2 – Jul./Dez. 2013 ISSN 1518-1685 Presidente Adilson Ratund Vice-presidente Jair de Souza Junior Reitor Marcos Fernando Ziemer Pró-Reitor de Planejamento e Administração Romeu Forneck Pró-Reitor Acadêmico Ricardo Willy Rieth Pró-Reitor Adjunto de Ensino Presencial Pedro Antonio González Hernández Pró-Reitor Adjunto de Ensino a Distância Pedro Luiz Pinto da Cunha Pró-Reitor Adjunto de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação Erwin Francisco Tochtrop Júnior Pró-Reitor Adjunto de Extensão e Assuntos Comunitários Valter Kuchenbecker Capelão Geral Reverendo Lucas André Albrecht DIREITO E DEMOCRACIA Indexador: Latindex Editora Maria Aparecida Cardoso da Silveira Conselho Editorial Membros internacionais André-Jean Arnaud (Paris X-Nanterre) Etienne Picard (Université de Paris I/França) Fabio Saponaro (Unitelma Sapienza/Itália) Fernando dos Reis Condesso Giuseppe Tinelli (Università Roma Tre/Itália) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (University of Manitoba/Canadá) Jorge Bacelar Gouveia (Universidade de Nova Lisboa) Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura) Luigi Ferrajoli (Università Roma Tre/Itália) Raúl Cervini (Universidad de la Republica de Uruguay) Wanda Capeller (Toulouse/França) Membros nacionais externos Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Anderson Vichinkeski Teixeira (UNISINOS) Cláudio Brandão (UFPE) Cláudio Muradás Homercher (UniRitter) Eduardo Reale Ferrari (USP) Elaine Harzheim Macedo (PUCRS) Gerson Luiz Carlos Branco (PUCRS) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) Jayme Weingartner Neto (UNILASALLE) José Maria Rosa Tesheiner (PUCRS) Luís Afonso Heck (UFRGS) Miguel Reale Jr. (USP) Nereu José Giacomolli (PUCRS) Orides Mezzaroba (UFSC) Vladimir Passos de Freitas (UFPR) Membros nacionais internos Daniela de Oliveira Pires (ULBRA) Jorge Trindade (ULBRA) Luiz Gonzaga Silva Adolfo (ULBRA) Marco Felix Jobim (ULBRA) Wilson Antônio Steinmetz (ULBRA) EDITORA DA ULBRA Diretor: Astomiro Romais Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Endereço para permuta Universidade Luterana do Brasil Biblioteca Martinho Lutero - Setor de aquisição Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 05 92425-900 - Canoas/RS O conteúdo e estilo linguístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas / Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 2000- . v. ; 23 cm. Semestral. A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para Revista de Ciências Jurídicas. ISSN 1518-1685 1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I. Universidade Luterana do Brasil. CDU 34(05)

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COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO”

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas - ULBRA

Vol. 14 – Nº 2 – Jul./Dez. 2013ISSN 1518-1685

PresidenteAdilson Ratund

Vice-presidenteJair de Souza Junior

ReitorMarcos Fernando Ziemer

Pró-Reitor de Planejamento e AdministraçãoRomeu Forneck

Pró-Reitor AcadêmicoRicardo Willy Rieth

Pró-Reitor Adjunto de Ensino PresencialPedro Antonio González Hernández

Pró-Reitor Adjunto de Ensino a DistânciaPedro Luiz Pinto da Cunha

Pró-Reitor Adjunto de Pós-Graduação, Pesquisa e InovaçãoErwin Francisco Tochtrop Júnior

Pró-Reitor Adjunto de Extensão e Assuntos ComunitáriosValter Kuchenbecker

Capelão GeralReverendo Lucas André Albrecht

DIREITO E DEMOCRACIAIndexador: Latindex

EditoraMaria Aparecida Cardoso da Silveira

Conselho Editorial

Membros internacionaisAndré-Jean Arnaud (Paris X-Nanterre)

Etienne Picard (Université de Paris I/França)Fabio Saponaro (Unitelma Sapienza/Itália)

Fernando dos Reis CondessoGiuseppe Tinelli (Università Roma Tre/Itália)

Ielbo Marcus Lôbo de Souza (University of Manitoba/Canadá)Jorge Bacelar Gouveia (Universidade de Nova Lisboa)

Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura)Luigi Ferrajoli (Università Roma Tre/Itália)Raúl Cervini (Universidad de la Republica de Uruguay)Wanda Capeller (Toulouse/França)

Membros nacionais externosAldacy Rachid Coutinho (UFPR)Anderson Vichinkeski Teixeira (UNISINOS)Cláudio Brandão (UFPE)Cláudio Muradás Homercher (UniRitter)Eduardo Reale Ferrari (USP)Elaine Harzheim Macedo (PUCRS)Gerson Luiz Carlos Branco (PUCRS)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)Jayme Weingartner Neto (UNILASALLE)José Maria Rosa Tesheiner (PUCRS)Luís Afonso Heck (UFRGS)Miguel Reale Jr. (USP)Nereu José Giacomolli (PUCRS)Orides Mezzaroba (UFSC)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

Membros nacionais internosDaniela de Oliveira Pires (ULBRA)Jorge Trindade (ULBRA)Luiz Gonzaga Silva Adolfo (ULBRA)Marco Felix Jobim (ULBRA)Wilson Antônio Steinmetz (ULBRA)

EDITORA DA ULBRADiretor: Astomiro RomaisCoordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica FicanhaEditoração: Roseli MenzenE-mail: [email protected]

Solicita-se permuta. We request exchange.On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.

Endereço para permutaUniversidade Luterana do BrasilBiblioteca Martinho Lutero - Setor de aquisiçãoAv. Farroupilha, 8001 - Prédio 0592425-900 - Canoas/RS

O conteúdo e estilo linguístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados.

Citação parcial permitida, com referência à fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero

D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas / Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 2000- . v. ; 23 cm.

Semestral. A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para Revista de Ciências Jurídicas. ISSN 1518-1685

1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I. Universidade Luterana do Brasil. CDU 34(05)

Sumário3 Editorial

4 Princípio da soberania popular no contexto nacional: construção participativa de políticas públicas

Helen Cris Cosme de Carvalho

17 A hermenêutica total e a interpretação integradora como fator de democratização: um estudo do caso Ellwanger

Luciano Tonet

33 O direito do trabalho como expressão de direitos humanos fundamentais: a promoção da dignidade da pessoa humana via trabalho tutelado

Aline Carneiro Magalhães

54 A intrincada aplicação da regra da razoabilidade na teoria alexyana Virginia Junqueira Rugani Brandão

66 A hermenêutica sistêmico-construtiva do direito Andrey Felipe Lacerda

82 Da epistemologia à hermenêutica: compreendendo as ações afi rmativas Jahyra Helena P. dos Santos; Ivanna Pequeno dos Santos

96 A Justiça Restaurativa como forma alternativa – e efi caz – na resolução de confl itos no Brasil

Denise Tatiane Girardon dos Santos; Márcia Cristina de Oliveira

113 A imprescindibilidade do advogado exaltada na Constituição de 1988 Ana Jéssica Pereira Alves; Francisco Camilo de Amorim Melo; Nathália Nayara

Soares Fernandes; Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

123 O transconstitucionalismo como alternativa aos confl itos entre ordens jurídicas: novos aspectos

Aléssia Pâmela Bertulêza Santos

139 A possibilidade do controle de constitucionalidade de normas por vício de decoro parlamentar

Matheus Ferreira Marques

Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 2013 3

EditorialÉ com renovada satisfação que levamos ao público do meio jurídico o segundo

número do décimo quarto volume da revista Direito e Democracia, gerida pelo curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil (Canoas/RS).

Iniciamos com artigo de Helen Cris Cosme de Carvalho sobre o princípio da soberania popular. De Luciano Tonet recebemos estudo sobre o caso Ellwanger em perspectiva hermenêutica. Aline Carneiro Magalhães analisa o Direito do Trabalho como expressão de Direitos Humanos Fundamentais. Virginia Junqueira Rugani Brandão examina a regra da razoabilidade na teoria de Robert Alexy. Andrey Felipe Lacerda apresenta estudo sobre a hermenêutica sistêmico-construtiva do Direito. Jahyra Helena dos Santos e Ivanna Pequeno dos Santos analisam as ações afi rmativas em perspectiva hermenêutica. Denise Tatiane Girardon dos Santos e Márcia Cristina de Oliveira apresentam contribuição para o debate sobre a justiça restaurativa como forma alternativa de resolução de confl itos. Ana Jéssica Pereira Alves, Francisco Camilo de Amorim Melo, Nathália Nayara Soares Fernandes e Lígia Maria Silva Melo de Casimiro estudam a imprescindibilidade do advogado na Constituição de 1988. O transconstitucionalismo é objeto de estudo de Aléssia Pâmela Bertulêza Santos. Por fi m, Matheus Ferreira Marques analisa a possibilidade de controle de constitucionalidade de normas por vício de decoro parlamentar.

Agradecemos aos nossos autores pelas suas valorosas contribuições, sem as quais esta revista não seria uma realidade.

Reiteramos nossa satisfação em receber trabalhos de quem tiver interesse em vê-los publicados nesta revista.

Os artigos poderão ser remetidos para: [email protected]

Maria Aparecida Cardoso da SilveiraEditora

Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 20134Direito e Democracia v.14 n.2 p.4-16 jul./dez. 2013Canoas

Princípio da soberania popular no contexto nacional: construção participativa

de políticas públicasHelen Cris Cosme de Carvalho

RESUMOEste artigo tem por escopo refletir sobre a construção participada de políticas públicas como

um exercício da soberania popular no contexto nacional. Destarte, estabeleceu-se como objetivo central analisar a participação popular, princípio da democracia em um Estado Soberano, para assegurar a efetivação da soberania popular. Para alcançar tal objetivo, a pesquisa foi realizada através de um levantamento bibliográfico, estruturada em três momentos. Em primeiro lugar, buscou-se avaliar a relevância da participação popular no processo de elaboração das políticas públicas. Em um segundo momento, analisou-se a democracia participativa no Estado brasileiro. E, finalizando, propôs-se uma discussão sobre soberania popular como um princípio consagrado da democracia. Para equacionar tal estudo, a metodologia aplicada em seu decurso foram a lógica indutiva, as técnicas da categoria, do conceito operacional, do referente e do fichamento. Diante disso, pode-se observar que a população, no atual regime democrático, é consultada de forma mínima, praticamente nula, e resume-se ao voto nas eleições. A intenção é que se crie uma nova forma de pensamento e se exija maior utilização dos recursos previstos pela Constituição para que o povo seja mais atuante na arte de governar.

Palavras-chave: Políticas Públicas. Soberania Popular. Democracia Participativa.

Principle of popular sovereignty national context: Participatory construction of public politics

ABSTRACTThis article has the purpose to reflect on the participatory construction of public politics, as

an exercise of popular sovereignty in the national context. Thus, it was established aimed to analyze popular participation, the principle of democracy in a sovereign state to ensure the realization of popular sovereignty. To achieve this objective, the research was conducted through a literature review, structured in three stages. First, we sought to evaluate the importance of popular participation in the process of shaping public politics. In a second step, we analyzed the participatory democracy in the Brazilian state. And the ending, it was proposed a discussion of popular sovereignty as a principle enshrined democracy. To equate such study methodology was applied in its course inductive logic, the technical category, the operational concept, the referent and book report. Thus it can be seen that the population in the current democratic regime is consulted so minimal, almost zero, and boils down to vote in elections, the intention is that we create a new way of thinking and

Helen Cris Cosme de Carvalho é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e em Direito pelo Centro Universitário do Norte (UNINORTE), especialista em Metodologia do Ensino Superior pelo Centro Universitário do Norte (UNINORTE) e em Psicopedagogia Clínica e Institucional. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professora de Ensino Superior. E-mail: [email protected]

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requires greater use of the resources provided by the constitution to the people to be more active in the art of governing.

Keywords: Public Politics. Popular Sovereignty. Participatory Democracy.

1 INTRODUÇÃOO Brasil é um país consagrado pela desigualdade social e econômica, marcado por

uma cultura de privilégios e do favor que se assenta sobre a consciência dos direitos. É neste cenário que o envolvimento dos setores democráticos da sociedade, em especial as iniciativas sociais, vem, desde os enfrentamentos contra a ditadura militar e pela conquista de uma Constituição democrática, em 1988, convergindo para a elaboração de políticas públicas inclusivas que visem assegurar direitos universais, incluindo o direito da sociedade em exercer um controle público sobre as mesmas.

O Brasil compartilha com os outros países do Cone Sul uma herança colonial assinada pela dizimação dos povos indígenas, cultura de exploração, industrialização tardia, governos autoritários e por um processo tortuoso de construção vinculado aos desejos econômicos das metrópoles Portugal, Espanha, Inglaterra e, mais recentemente, os Estados Unidos, que polarizaram visivelmente as ações e decisões político-econômicas nestes países. A implantação do Estado nacional ocorreu em nações que se formaram a partir de sociedades indígenas, bem como povos africanos, amalgamados sob relações autocráticas e truculentas com povos europeus. Neste contexto se constituíram formas tradicionais e ocidentais de laços sociais e concepções sobre o sujeito, a sociedade e o poder que coexistem de forma complexa e paradoxal até os dias de hoje.

Com o surgimento da industrialização e da urbanização, evidencia-se uma pobreza urbana acompanhada de doenças, epidemias e violência. A fi lantropia, presente até o momento, de cunho religioso e o controle sobre esta camada caracterizam as políticas sociais voltadas, por exemplo, à saúde e aos chamados “menores de idade”. No início do século XX, o anarcossindicalismo e o ideário socialista signifi cam os movimentos sociais que desenvolvem formas de “auxílio mútuo” e, ainda, reivindicam maior proteção social por parte do Estado.

Proteção social que se desenvolve por meio da realização de políticas públicas, ou seja, princípios basilares de ação do poder público, regras e diretrizes para as relações entre poder público e povo, mediações entre atores da sociedade e do Estado. São, nesse caso, medidas explicitadas, sistematizadas ou elaboradas em documentos (leis, programas) que orientam ações que normalmente envolvem investimento de recursos públicos. Nem sempre, porém, há convergência entre as intervenções, declarações de vontade, necessidades e as ações desenvolvidas; não se podem desconsiderar, ainda, as “não ações”, as omissões, como formas de manifestação de políticas, visto representarem opções e orientações dos que ocupam cargos.

As políticas públicas representam, no seu processo de construção, implementação e, sobretudo, em seu produto, formas de exercício do poder político; representam a distribuição e a redistribuição de poder, a presença do confl ito social nos processos de

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decisão, a divisão de custos e benefícios sociais. Considerando o poder uma relação social que engloba múltiplos atores com projetos e interesses diferenciados e até contraditórios, fazem-se necessárias mediações sociais e institucionais para que se possa obter um mínimo de consenso e, assim, as políticas públicas possam ser instrumento legitimado da maioria e obter efi cácia.

Construir uma política pública consiste em defi nir objeto, sujeito ativo, momento adequado para elaboração, perspectivas a serem alcançadas e destinatários. São decisões relacionadas com o regime político em que se vive, com o grau de organização da sociedade e com a cultura político-econômica vigente. Nesse sentido, cabe diferenciar “Políticas Públicas” de “Políticas Governamentais”, nem sempre “políticas governamentais” são públicas, embora sejam estatais, para serem “públicas”, é indispensável considerar os destinatários, os resultados ou benefícios e se o seu processo de elaboração é submetido ao debate público.

2 RELEVÂNCIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO DE ELABORAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICASA elaboração, na esfera dos três poderes, de um conjunto harmônico de ações

coletivas que objetivem assegurar os direitos fundamentais, sobremaneira em nosso estudo, a participação do cidadão, ações estas que devem desconsiderar o apelo subjetivo de desejo social, para se consolidarem como um autêntico compromisso socioestatal. Como se percebe, persiste a afi rmação de que a esfera pública é uma rede de informações baseada na argumentação. O problema para o Estado Democrático de Direito dar-se-á quando a sociedade for sufocada por outros sujeitos do espaço público, aniquilando, assim, a participação popular na construção das ações e decisões políticas.

Esse modelo de planejamento atual busca inserir no processo de decisões públicas a sociedade, que abandona o rótulo de ‘clientela’, para ser considerada um personagem integrante do processo, participando, executando e fi scalizando as ações governamentais. Suscitar o planejamento participativo é refl etir sobre hábitos, práticas e dinâmicas tradicionais de decisões e planejamento em que as relações estabelecidas entre Estado e Sociedade se concretizavam de maneira verticalizada, de cima para baixo. Há, então, uma inversão na composição dessas relações, visto que, no planejamento participativo, teremos relações horizontalizadas, em que as defi nições serão o produto de um trabalho conjunto, obtido com a valiosa contribuição da sociedade.

Gandin (1994, p.28) salienta que o planejamento participativo deriva de uma leitura de mundo na qual se apresenta fundamental a ideia de que nossa realidade é injusta e de que tal injustiça se deve a não participação em todos os níveis e aspectos da atividade humana. A implementação da justiça social perpassa a participação ativa de todos no poder. Esta participação consiste não somente em contribuir com uma proposta conjecturada por algumas pessoas, e sim uma construção em conjunto com a participação

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de todos. Signifi ca também a participação no poder que é o domínio de recursos para realizar sua própria vida, não apenas individualmente, mas em equipe. O planejamento participativo é o modelo e a metodologia para que isso aconteça. Por isto, o planejamento participativo, como instrumento e método, isto é, enquanto processo técnico, possibilita espaços especiais para a questão política. Para que confi gure um processo efetivamente participativo, é essencial que a participação da sociedade ocorra em todos os momentos e níveis do processo, na idealização, na elaboração, na operacionalização e na avaliação, e não apenas na realização.

Buarque (1999, p.47) considera a participação popular como sendo um processo de tomadas de decisões com o engajamento dos atores sociais interessados e compromissados com o futuro da localidade – ressalta-se o ativo comprometimento da sociedade organizada com seus diversos interesses e aspirações de mundo. Consiste em instaurar e efetivar um processo de planejamento compartilhado quanto às ações desejáveis e necessárias, bem como adequadas ao desenvolvimento, envolvendo, assim, todos os segmentos da sociedade, desde o entendimento e o domínio da realidade até a defi nição e a execução das ações consideradas prioritárias.

A experiência do orçamento participativo, hoje desenvolvida em diversos municípios e estados brasileiros, consiste no início dessa prática, da participação do povo, em um processo extremamente organizado e orientado, da discussão, preparação e preparação do orçamento público, uma prática já sedimentada em diversos lugares do país, com forte infl uência, nesse sentido, quando aplicado, o orçamento participativo permite superar alguns resquícios da política elitista e ultrapassada, possibilita a transparência nos atos públicos, de modo que o orçamento participativo fi ca pactuado com a população, o que viabiliza o controle e a execução daquilo que foi anteriormente defi nido. Optar por tomadas de decisão é uma decisão que passa por uma visão de construção da democracia que deve ser colocada em prática até o último momento.

A participação popular na tomada de decisões políticas apresenta como objetivos principais democratizar a administração, fomentar a constituição cidadã, viabilizar transparência nos atos praticados pela administração pública, possibilitar o controle social e, consequentemente, promover a justiça social, analisando a distribuição de recursos.

A presença cada vez mais ativa da sociedade civil nas questões de interesse geral torna a publicização fundamental. As políticas públicas tratam de recursos públicos diretamente ou por meio de renúncia fi scal (isenções), ou de regular relações que envolvem interesses públicos. Elas se realizam num campo extremamente contraditório onde se entrecruzam interesses e visões de mundo confl itantes e onde os limites entre público e privado são de difícil demarcação. Daí a necessidade do debate público, da transparência, da sua elaboração em espaços públicos e não nos gabinetes governamentais.

Para a maioria dos analistas, só há mudanças no conteúdo e na metodologia das políticas públicas com mudanças nas elites políticas, na composição do poder político. É certo que mudanças mais substantivas só podem ocorrer quando efetivamente se muda a composição do poder, mas podem-se obter conquistas sociais através da mobilização

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social, da ação coletiva, sobretudo quando esta passa a ter um conteúdo de proposição, de debate público de alternativas e não de mera crítica. Para isso, é necessário que as proposições sejam legitimadas por um amplo consenso e que tenham uma abrangência maior que os interesses corporativos ou setoriais.

Essa é a realidade do atual processo social em que a sociedade, articulada em suas organizações representativas em espaços públicos, passa a exercer uma função política ampla de construir alternativas nos vários campos de atuação do Estado e de oferecê-las ao debate público, coparticipando, inclusive, na sua implementação e gestão.

Há, hoje, no país, uma série de experiências desenvolvidas por ONGs e organizações de base que podem servir de referência para a elaboração de propostas e alternativas de políticas públicas.

Múltiplos canais institucionais podem ser utilizados para esse debate, desde os Conselhos de Gestão até espaços autônomos já em funcionamento ou a serem criados em áreas específi cas. Devem-se também usar alguns mecanismos de natureza administrativa, judicial ou parlamentar, criados a partir da Constituição de 1988, para exercer, junto ao Estado, um papel mais ativo e propositivo, inclusive de controle e avaliação de ações negociadas.

3 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E O ESTADO BRASILEIROA democracia participativa não resulta simplesmente da combinação de democracia

representativa com a democracia semidireta, pois contém institutos de ambas e envolve outros elementos que são estranhos a estas. O princípio norteador da democracia participativa caracteriza-se pelo envolvimento direto e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo.

Os primeiros institutos da democracia participativa são instrumentos da democracia semidireta: plebiscito, referendo, iniciativa popular, ação popular, contudo, a forma de exercê-los se diferencia daquela.

Na obra de Bonavides (2003, p.34), a democracia é conceituada como aquela forma de exercício da função governativa em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte que o povo seja sempre o titular e o objeto, a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo do poder legítimo. O referido autor parte da concepção de democracia consagrada por Lincoln, como sendo um governo do povo, pelo povo e para o povo. Seguindo, ainda, a teoria de Bonavides,

A democracia nasceu com a participação dos governados no exercício do poder público, associado à categoria tradicional e clássica dos chamados direitos fundamentais de primeira geração, percorreu a seguir, o caminho da subjetividade,

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concretizando-se em esferas individualistas como direito de dimensão subjetiva, onde permanece, tendo por titular ou sujeito o indivíduo, a saber, o cidadão, o ente político. (2003, p.189)

Na democracia semidireta, está prevista a existência, em favor do povo, de um plebiscito ou um referendo; entretanto, nenhum deles acontecerá sem a convocação ou aprovação do Congresso Nacional. No mesmo sentido está a iniciativa popular dependente do processo legislativo, cujo projeto apresentado dependerá, além da aprovação de Câmara e Senado, da sanção presidencial. Tudo isso torna esses institutos meros instrumentos programáticos.

Na moderna democracia participativa, há de prevalecer a vontade popular. A forma conhecida por plebiscito, por exemplo, pode permitir ao povo escolher a conveniência e a oportunidade e, também, como o questionamento deve ser abordado. Em contraste com o uso geral, a Alemanha está muito próxima de uma democracia ideal, em que os referendos são proibidos, ou seja, o povo participa antes da tomada de decisão.

Todavia a democracia participativa que se incorpora ao Estado Social tende a adquirir nas Constituições do Estado de Direito uma dimensão principial e a trasladar-se da esfera programática, onde era idéia, para a esfera da positividade onde, por ser princípio, é norma de normas. (BONAVIDES, 2003, p.189)

A doutrina já prevê de forma veemente os “direitos de quarta dimensão”, ao defender momentos em que o povo seja chamado à tomada de decisões importantes do governo, pois os direitos vão sendo descobertos e formulados para, apenas posteriormente, serem efetivados. Com isso, criar-se-á um processo que estará em constante evolução, como oportunamente defi niu Bonavides (1993, p.67): se um conjunto de direitos se faz conhecido e reconhecido, abrem-se novas regiões da liberdade que devem ser exploradas e respeitadas.

Em meio a este cenário, vive-se uma nítida internacionalização política, advinda pela globalização econômica, e encontra asilo sob a égide da política desenvolvimentista, criando um espaço público transnacional. Isso causa, então, um considerável impacto nos direitos fundamentais, os quais correspondem à verdadeira institucionalização do Estado Social. Segundo o pensamento de Bonavides (1993, p.71), são direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Assim, a globalização dos direitos fundamentais consubstancia a universalização na seara institucional, enquanto reconhece a existência desses direitos.

A democracia participativa ou deliberativa é um modelo em que se pretende que existam mecanismos de controle efetivo da sociedade sob a administração da coisa pública, não restringindo o papel democrático apenas ao voto de dois em dois anos, mas também alargando a democracia para a esfera social. Esse regime da democracia vem defender que a legitimidade das decisões políticas se origina de processos de discussão

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que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade, vêm angariando espaço e é considerada como um modelo de justifi cação do exercício do poder político baseado no debate público entre cidadãos livres e em condições iguais de participação da autonomia e da justiça social confere um reordenamento na lógica de poder político tradicional. Constitui-se, portanto, em uma alternativa crítica às teorias realistas da democracia que, a exemplo do elitismo democrático, enfatizam o caráter privado e instrumental da política.

De acordo com Arlete Sampaio (2002, p.66),

Não podemos ver como antagônicas a democracia representativa e a participação direta da população; ao contrário, uma pode alimentar a outra e fazer com que construamos, todos juntos, uma sociedade muito mais cidadã, de fato, para intervir e participar nas questões que interessam a todo povo brasileiro.

Essa ideia ganha força a partir do momento em que se vislumbra a decadência da democracia representativa, que se confunde com o próprio sentido da palavra democracia, o “governo que emana do povo”, ao longo do tempo, satisfazendo-se em uma mera escolha de dirigentes, sem participação efetiva, direta e ativa da sociedade como um todo nas decisões políticas.

Embora se observe que existem várias acepções para o termo “povo”, ressalta-se a teoria de Friedrich Müller (2000, p.53) de povo como conceito de combate, enfrentamento que parte de toda uma evolução conceitual em torno de um povo atuante, âmbito global de atribuição de legitimidade e relevante destinatário da prestação civilizatória estatal.

Portanto, a noção de povo adotada por Bonavides (2003, p 62) longe está de ser aquela de caráter ideológico muitas vezes empregado, na qual o povo não passa de uma representação, um ícone, um mito, uma efígie, um simples recurso de retórica utilizado para legitimar o exercício autoritário e arbitrário do poder. Denota-se, então, que a noção de democracia está umbilicalmente ligada à ideia de soberania popular (fonte de todo e qualquer poder que legitima as autoridades e que se exercem nos limites pactuados no contrato social).

Filiando-se, ainda, à corrente de Bonavides (2000, p.57), a democracia surge como o mais valioso dos direitos fundamentais na medida em que incorpora os princípios da igualdade e da liberdade, abraçados ao dogma da justiça. E aqui não se trata, por óbvio, de uma concepção individualista dos direitos humanos que imperou no século XIX e que foi alvo de críticas por parte de Marx. Em verdade, situa o direito à democracia – ao lado do direito à informação e do direito ao pluralismo – como um direito fundamental de quarta dimensão.

Precedendo os direitos de quarta dimensão, existem os direitos fundamentais de primeira dimensão, direitos civis e políticos, os chamados “direitos da liberdade”

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ou “direitos individuais”, que têm por sujeito o indivíduo frente ao Estado; os de segunda dimensão ligados ao princípio da igualdade, envolvendo os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades, inseridos no constitucionalismo de diversos modelos de Estado social; de terceira dimensão os conhecidos direitos da fraternidade, não se restringindo apenas à proteção dos interesses de um único indivíduo, uma comunidade ou um determinado Estado, mas sim referenciando-se a temas referentes ao gênero humano mesmo, como: desenvolvimento, paz, meio ambiente, comunicação e patrimônio comum da humanidade.

Tem-se na evolução das dimensões de direitos fundamentais a própria defi nição do lema que embalou a Revolução Francesa: “liberdade, igualdade e fraternidade”. Os direitos fundamentais não caducam nem se substituem uns pelos outros, os quais nunca perdem sua efi cácia pelo decurso histórico, pondo-se, em verdade, como que numa pirâmide, cujo ápice é o direito à democracia.

Bonavides (2000, p.91) afi rma que

(...) a democracia, nos países subdesenvolvidos, requer duas condições básicas: primeiro uma fé pertinaz nos seus valores e, segundo, um contínuo exercício, coisas que têm faltado com frequência aos homens públicos e lideranças políticas, constituindo assim o círculo vicioso da aparente inviabilidade do regime democrático, oscilante entre os intervalos da liberdade e as irrupções do autoritarismo.

Deve-se atentar que, há tempos, identifi ca-se uma crise na atual democracia representativa brasileira, tal sistema, tem implicado uma ruptura entre Estado e sociedade, entre o cidadão e seu representante, entre os governantes e os governados, propõe-se, então, a implementação de uma verdadeira democracia participativa, cuja estrutura organizacional se assenta, dentre outros, no princípio da soberania popular, não há democracia sem participação (BONAVIDES, 2003, p.31).

A ruptura mencionada se opera na medida em que os processos eleitorais têm-se mostrado viciados – sendo caracterizados pela propaganda enganosa em veículos de comunicação – e em que as casas representativas do povo vêm adotando medidas em nítido confronto com os desígnios populares e com os próprios princípios da Constituição, enquanto a democracia participativa se concretiza por meio de mecanismos de exercício direto da vontade geral e democrática, vindo a restaurar e a ressignifi car a legitimidade do sistema.

Mesmo que a democracia participativa proposta por Bonavides preserve certos mecanismos representativos, assemelhando-se em termos com a democracia semidireta, possui uma relação a esta última uma imensurável diferença, seu centro de gravidade, sua mola principal, em todas as ocasiões decisivas, é a vontade do povo, é o povo soberano.

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Trata-se de uma democracia participativa na qual o essencial é que o povo disponha dos instrumentos de controle de sua participação política, sem o que tal democracia será tão ilusória como o são as democracias representativas dos países subdesenvolvidos, biombo atrás do qual se ocultam as mais opressivas ditaduras sociais de confi sco da liberdade humana.

Deste modo, na democracia participativa, o povo assume a atribuição de controlar todo o processo político, inclusive seu produto fi m, possuindo a iniciativa e a sanção de cada ato normativo de superior interesse público, pelo que se denota clara a identifi cação entre a democracia participativa e a democracia direta. É o povo, assim, assumindo instância suprema do processo político.

Neste contexto, o sistema representativo tem uma utilidade meramente coadjuvante, instrumental e subsidiária, submetendo-se à soberana decisão popular. Persistem em existir, portanto, as instâncias representativas, com o objetivo de que a máquina do poder e do governo não fi quem paralisadas; entretanto, tais instâncias têm caráter tão somente de segundo ou terceiro graus, vez que a instância de primeiro grau é o povo.

A democracia direta não quer dizer o povo todos os dias, todas as horas, todas as ocasiões, pessoalmente se reunindo ou sendo consultado para fazer leis, baixar decretos, expedir regulamentos, nomear, demitir, administrar ou exercitar toda aquela massa de poderes e funções sem as quais a máquina do poder e do governo fi ca paralisada ou atravancada. O que determina a democracia direta, com a verticalidade de sua penetração e a horizontalidade de sua expansão em todos os domínios e esferas da Sociedade, é fazer valer assim, sem contraste, uma cidadania hegemônica, virtualmente senhora de seus destinos e governativamente capacitada a chefi ar o Estado. (BONAVIDES, 2003, p.101)

Na idade da tecnologia globalizada, na era dos computadores, na geração da informática, da instantaneidade dos meios visuais e auditivos de comunicação, não é fantasia nem sonho antever o grande momento de libertação imanente com a instauração de um sistema de democracia direta. Ele consagrará a plenitude da legitimidade na expressão de nossa vontade política.

Obtém-se a democracia direta por meio de medidas de capacitação política do povo para efeito de sua intervenção imediata, efi caz e efi ciente, em termos de um razoável decisionismo de soberania. Destarte, são instrumentos institucionais para tornar tecnicamente efetiva a vontade soberana popular e as respectivas formas de consulta, a expressão da nova democracia: o plebiscito, o referendo a iniciativa, o veto, o direito de revogação, tanto a revogação do mandato individual do agente político como a revogação do mandato de uma assembleia, o que possibilitará que se destitua todo o parlamento infi el ou indiferente à outorga da confi ança popular.

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4 SOBERANIA POPULAR – PRINCÍPIO CONSAGRADO DA DEMOCRACIA

O conceito de soberania teve seu idealizador em Jean Bodin, francês que, em sua obra “Os Seis Livros da República” (1576), sustenta a tese de que a monarquia francesa é de origem hereditária, não estando o rei sujeito a condições postas pelo povo. Todo o poder do Estado pertence ao rei e não pode ser partilhado com mais ninguém (clero, nobreza ou povo). De acordo com Bodin (2011, p.97), soberania refere-se à entidade que não conhece superior na ordem externa nem igual na ordem interna.

Uma vez idealizado o termo soberania, alguns pensadores se posicionam e criam algumas teorias a respeito. Locke (2006, p.85) criticou a teoria do direito divino dos reis, formulada pelo fi lósofo Thomas Hobbes. Embora admitisse a supremacia do Estado, Locke dizia que este deve respeitar as leis natural e civil, delineando-se, a partir de então, um esboço do que viria a se tornar posteriormente a soberania popular.

Somente com Jean-Jacques Rousseau (1995, p.73) a soberania popular começa a se corporifi car e ganhar importância, visto que o mesmo transfere o conceito de soberania da pessoa do governante (como alcunhado inicialmente) para todo o povo (corpo político ou sociedade). Rousseau concebe a soberania como inalienável e indivisível, a qual deve ser exercida pela vontade geral (soberania popular).

A soberania é inalienável (...) só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a fi nalidade de sua instituição que é o bem comum. Pois, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou. É o que existe de comum nesses vários interesses que formam o vínculo social e, se não houvesse um ponto em que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, somente com base nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada. (ROUSSEAU, 1999, p.51)

A soberania popular é elemento indispensável à democracia. Ainda de acordo com o referido autor, o povo é soberano numa relação e sujeito noutra; mas na prática essas duas relações se confundem. É fácil para a autoridade oprimir o povo, como sujeito, a fi m de forçá-lo a manifestar, como soberano, a vontade que ela lhe prescreve.

A soberania é indivisível pela mesma razão porque é inalienável, pois a vontade ou é geral ou não o é; ou é a do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura e, quando muito, de um decreto. (ROUSSEAU, 1999, p.66)

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Segundo Tocqueville (2005, p.81) ao falar do princípio da soberania popular – o povo reina sobre o mundo político como Deus sobre o Universo. Ele é a causa e o fi m de todas as coisas. Tudo provém dele e tudo nele se absorve. Tal afi rmação se assenta no fato de que, no processo democrático norte-americano, o poder não se encontra fora do corpo social, atuando sobre ele e fazendo-o caminhar em certo sentido.

Em suma, pode-se dizer que o povo governa por si mesmo, estando a administração sujeita ao poder popular, do qual aquela emana. O princípio da soberania popular se manifesta tanto quando o povo, diretamente; faz as leis (a exemplo do que ocorria na sociedade ateniense), como também quando o povo elege aqueles que agem em seu nome e sob sua vigilância imediata.

Entretanto, Constant (2005, p.10) alerta para o erro cometido por Rousseau, que tornou o seu contrato social, tantas vezes invocado em favor da liberdade, o mais terrível auxiliar de todos os gêneros de despotismo.

A soberania do povo não é ilimitada; ela é circunscrita em limites que lhe traçam a justiça e os direitos dos indivíduos. A vontade de todo um povo não pode tornar justo o que é injusto. Os representantes de uma nação não têm o direito de fazer o que a própria nação não tem o direito de fazer. (CONSTANT, 2005, p.16)

Apoiado em Benjamin Constant (2005, p.9) afi rma-se que,

Nossa constituição atual reconhece formalmente o princípio da soberania do povo, isto é, a supremacia da vontade geral sobre a vontade particular. Esse princípio de fato, não pode ser contestado, se aplica a todas as instituições, numa sociedade fundada na soberania do povo, é certo que não cabe a nenhum indivíduo, a nenhuma classe, submeter o resto à sua vontade particular; mas é errado que a sociedade inteira possua sobre seus membros uma soberania sem limites.

A realização da soberania popular ocorre por meio da participação, é o exercício da cidadania, a expressão popular em suas diversas manifestações. Como princípio clássico da democracia, a soberania popular está consagrada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo primeiro e parágrafo único:

Art.1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

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III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição.

A soberania se compreende no exato conceito de Estado. Não há Estado perfeito sem soberania, daí a simples defi nição de Estado como organização da soberania. A soberania é uma autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder. Não são soberanos os estados-membros de uma federação; o próprio qualifi cativo de membro afasta a ideia de soberania.

Nesse sentido, no âmbito interno, a soberania estatal traduz a superioridade de suas diretrizes na organização da vida comunitária. A soberania se manifesta, principalmente, por intermédio da constituição de um sistema de normas jurídicas capaz de estabelecer as pautas fundamentais do comportamento humano.

5 CONSIDERAÇÕES FINAISNeste diapasão não se pode conceber a mera adoção de um sistema democrático

arcaico, devendo-se também dinamizar a democracia por meio dos mecanismos de participação popular – como visto, a participação do povo é o lado dinâmico da democracia, a vontade atuante que, difusa ou organizada, conduz, no pluralismo, o processo político à racionalização, produz o consenso e permite concretizar, com legitimidade, uma política de superação e pacifi cação de confl itos.

Da pregação a favor de uma democracia participativa, emerge a concepção de Estado democrático-participativo, dotado de efetiva legitimidade, pela qual o povo chegue ao poder, a sociedade à regeneração, e o Estado e a Nação estejam abraçados com a cidadania, a execução e a observância do contrato social. Tal Estado consagrará os desejados princípios da liberdade e da igualdade aspirados à luz da evolução dos direitos fundamentais. Diverso da apatia, o legítimo exercício da vontade do povo, aposto ao Estado fraco, emerge, com a democracia participativa, através de um Estado que é o próprio povo organizado e soberano. Portanto, ao adotar tal concepção de Estado, busca-se alcançar um passo para além da evolução dos direitos fundamentais, efetivando uma democracia completamente participativa.

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A hermenêutica total e a interpretação integradora como fator de democratização:

um estudo do caso Ellwanger Luciano Tonet

RESUMOAs rápidas alterações da ciência, tecnologia, em especial a biotecnologia, geram discussões

quanto a valores sociais antes indiscutíveis. É o caso do racismo contra os judeus, no qual a biotecnologia demonstra não existirem raças humanas, mas uma raça humana. Os juristas entendem, no entanto, que as diferenças são originadas de critérios político-sociais. Observa-se a imprescritibilidade dos crimes de discriminação contra os judeus, por serem considerados, de acordo com referidos critérios, uma raça. Diante da incapacidade das teorias clássicas da interpretação e da hermenêutica em resolver todas as demandas sociais, como a apresentada, há a necessidade de se integrar a interpretação a outras fontes externas ao direito, privilegiando o custo social e as decisões na busca da Justiça e da democratização, como estudado por Raimundo Bezerra Falcão, que expôs sobre a interpretação integradora e a hermenêutica total.

Palavras-chave: Interpretação integradora. Hermenêutica total. Racismo. Raça judia. Imprescritibilidade. Democratização.

The overall hermeneutics and the interpretation integrated with fator of democratization: A study from the case Ellwanger

ABSTRACTThe rapid changes in science, technology, especially biotechnology, generate discussions

about social values before indisputable. This is the case of racism against the Jews, in which the biotechnology, demonstrates there aren’t of human races, but one human race. Legal experts believe, however, that the differences are derived from social-political criteria. Note the imprescriptibility crimes of discrimination against Jews because they are considered according to mentioned criteria, a race. Given the inability of the classical theories of interpretation and hermeneutics to solve all social demands, as presented, there is the need to integrate the interpretation of other sources external to the law, privileging the social cost and the decisions on pursuit of justice and democratization, as studied by Raimundo Bezerra Falcão, who talked about the integrative interpretation and overall hermeneutics.

Keywords: Interpretation inclusive. Overall hermeneutics. Racism. Jewish race. Imprescriptibility. Democratization.

Luciano Tonet é Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – Unifor e Promotor de Justiça no Estado do Ceará. Possui graduação em bacharelado em direito pela Universidade Paranaense (1999), especialização em Direito Empresarial com ênfase em direito tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2004), em Direito Constitucional e Processual Constitucional pela Universidade Estadual do Ceará (2007) e em sistema jurídico e criminalidade pela Faculdade Metropolitana de Fortaleza.

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INTRODUÇÃOAs decisões do Supremo Tribunal Federal, a cada dia, vêm democratizando

a interpretação na busca da justiça. Para tanto, elegeu-se o estudo do “julgamento Ellwanger”, objetivando-se verifi car a fundamentação dos votos dos Ministros, em especial no que se refere à interpretação da norma e da hermenêutica adotada.

Inicia-se o presente trabalho com a apresentação do julgamento, observando-se o caminho hermenêutico que motivou a interpretação pelo Supremo Tribunal Federal. Em seguida, explica-se a hermenêutica constitucional e sua relação-fi m com a sociedade e com a Justiça, privilegiando a preservação do princípio da segurança jurídica.

Como objetivos gerais, analisa-se a hermenêutica e as interpretações mencionadas no julgamento do Habeas Corpus 82.424-2, do Supremo Tribunal Federal.

Como objetivos específi cos, ocupa-se da hermenêutica e das interpretações ventiladas no habeas corpus referido, buscando-se, especialmente, as que prevaleceram a fim de demonstrar que os conceitos clássicos transcendem, entrando em um modelo mais abrangente, que se pretende mais justo, no caso a hermenêutica total e a interpretação integradora.

Procurar-se-á responder: quais as características da interpretação e da hermenêutica adotada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do presente caso? Esta hermenêutica adotada adstringe-se ao sistema jurídico, em especial o constitucional? Por quê?

Ver-se-á pelos votos dos Ministros (especialmente pelo voto do Ministro Maurício Corrêa), uma interpretação integradora com os diversos ramos do conhecimento. Ademais, que o caos jurídico gerado quando os julgadores que não se atêm a uma hermenêutica constitucional que atenda aos anseios sociais, mas fecham-se na segurança jurídica utilizando das classifi cações clássicas, que não mais oferecem uma solução satisfatória e cujas decisões são prolatadas eivadas de injustiça.

A metodologia da pesquisa é bibliográfi ca e documental.

O CASO ELLWANGERO habeas corpus n.82.424-21 do Supremo Tribunal Federal – STF, de origem

do Rio Grande do Sul, fi cou conhecido como o caso Ellwanger, tendo como paciente Siegfried Ellwanger, um escritor e editor de livros, especializado na temática dos judeus e do antissemitismo.

1 O habeas corpus foi impetrado contra condenação do Superior Tribunal de Justiça, que confi rmou a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e que, por sua vez, havia reformado a sentença absolutória de primeiro grau. No pedido do paciente, por seus advogados, alega-se que as práticas discriminatórias constantes do art. 20, da Lei 7716/89 são diferentes do crime de racismo, cuja imprescritibilidade decorre da Constituição Federal , afi rmando que se o constituinte quisesse, a imprescritibilidade das demais condutas discriminatórias teria inserido no texto constitucional.

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Os fatos giraram em torno da tipicidade em escrever, editar, divulgar e comerciar livros fazendo apologia de ideias “preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica2 (Lei 7716/89, artigo 203, na redação dada pela Lei 8081/90), constituindo crime de racismo, sujeito às cláusulas de inafi ançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII), com as modifi cações sofridas em face da Lei 9459/974.

No julgamento foi afastada a argumentação do requerente de que judeu não é raça, de forma que seus atos não confi gurariam crime de racismo, mas de discriminação e, portanto, o crime seria prescritível. As fundamentações dos Ministros invocaram explicações científi cas, trazendo conceitos da biologia e da genética a fi m de demonstrar que não existiam diferenças entre os seres humanos, mas todos constituíam a raça humana.

A interpretação que prevaleceu na Corte Constitucional foi a de que a raça é determinada por um processo de conteúdo político-social, de onde resultam o racismo, a discriminação e o preconceito segregacionista, bem como, afastou a tese defensiva invocada pelo paciente.

Constou nos votos dos ministros referências a adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer formas de discriminações raciais. Conceituou-se a discriminação como a distinção entre pessoas, por restrições ou preferências oriundas de raça5, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas em superioridade de um povo sobre outro, como a xenofobia, “negrofobia”, “islamofobia” e o antissemitismo. Invocou-se a Constituição Brasileira para reconhecer os atos discriminatórios em virtude da raça como crimes imprescritíveis para que fi quem na memória e verberem o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática.

2 Os livros editados, distribuídos e vendidos pelo autor, tratavam-se de obras racistas e discriminatórias com conteúdo de incitação ao antissemitismo, incentivando e induzindo à discriminação racial e semeando nos leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica, conforme constou da denúncia. Foram apontadas as seguintes obras de sua autoria do autor: “Holocausto Judeu ou Alemão?” e “Nos bastidores da Mentira do Século.” Ainda, livros com a mesma temática e de autores nacionais e estrangeiros como: “O judeu internacional”, de Henry Ford; “A História Secreta do Brasil”, “Brasil Colônia de Banqueiros” e “Os Protocolos Sábios de Sião”, estes três de autoria de Gustavo Barroso; “Hitler – Culpado ou Inocente?”, de Sérgio Oliveira e “Os conquistadores do Mundo – os verdadeiros criminosos de guerra”, de Louis Marchalko.3 “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional. (Artigo incluído pela Lei nº 8.081, de 21.9.1990). Pena: reclusão de dois a cinco anos. § 1º Incorre na mesma pena quem fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fi ns de divulgação do nazismo. (Parágrafo incluído pela Lei nº 8.882, de 3.6.1994). § 2º Poderá o juiz determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Parágrafo renumerado pela Lei nº 8.882, de 3.6.1994). I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo; I – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas. § 3º Constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido. (Parágrafo renumerado pela Lei nº 8.882, de 3.6.1994)”.4 “Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97). Pena: reclusão de um a três anos e multa.5 No item 8 da ementa consta: “Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a defi nição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fi m de obter-se o real sentido e alcance da norma” (Habeas Corpus n.82.424-2, 2004, STF).

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Restaram ainda, consignadas diversas ponderações tratadas pelo direito alienígena, especialmente manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra, e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos, que consagraram entendimento de aplicação de sanção àquele que praticar ato que simbolize a prática de racismo. Também, que a edição e publicação de obras escritas veiculando ideias antissemitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial defi nida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos, como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualifi cação do povo judeu, equivale a racismo. Ressaltou-se o manifesto dolo do agente, que baseou seus livros nas premissas de que os judeus não só são uma raça, mas, um segmento racial atávico e geneticamente menor e pernicioso.

Constou da ementa e do acórdão no voto dos Ministros a ponderação dos princípios constitucionais. O princípio da liberdade de expressão, que embora seja uma garantia fundamental, não é absoluto, sujeitando-se a limites morais e jurídicos. As liberdades públicas se condicionam a todo o ordenamento jurídico, especialmente, ao previsto na Constituição Federal (art. 5o, § 2o, primeira parte)6. Não se consagra o direito a incitação ao racismo, não sendo salvaguarda de condutas ilícitas, prevalecendo os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. Desta forma, a prática do racismo por aviltar à dignidade da pessoa humana, não pode ser apagada da memória, motivo pelo qual o crime está qualifi cado com o “selo” da imprescritibilidade.

O habeas corpus (HC) foi denegado contra o voto do relator Ministro Moreira Alves, que concedia a ordem ao fundamento da inexistência da raça judia, consoante pedido da inicial. Os Ministros Carlos Aires Brito e Marco Aurélio Mello votaram concedendo a ordem, mas foram vencidos pelos demais, Maurício Correa, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Celso de Mello, Nelson Jobim e Gilmar Mendes.

O Ministro Moreira Alves relatou o habeas corpus e interpretou restritivamente a Lei n.o 7.716, de 5 de janeiro de 1989, declarando que as condutas tipifi cadas como de discriminação eram pertinentes à raça e à cor. Lembrou que a Lei n.o 8.081, de 21 de setembro de 1990, teria incluído a religião, etnia ou procedência nacional, por meio de comunicação social, ou por publicação de qualquer natureza. Também, que a Lei n.o 9.457, de 5 de maio de 1997, qualifi cou o crime de racismo, quando o meio utilizado fosse de comunicação social ou publicação, de qualquer natureza, arrematando que, a interpretação do texto constitucional deveria se dar sem extravasamentos.

O Relator fundamentou seu voto com a justifi cativa da Assembleia Constituinte quando da discussão do racismo, cuja previsão era da imprescritibilidade em relação aos negros. Citou que, atualmente, os antropólogos convergem para a conceituação de raça com fi nalidades políticas, como ocorreu com o nazismo, mas que muitos estudiosos judeus declaram não serem, os mesmos, uma raça. Assim, levando em conta os fatores

6 “§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

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biológicos, votou deferindo o habeas corpus e concedendo a ordem de extinção da punibilidade, pela prescrição dos crimes de discriminação.

O Ministro Maurício Correa questionou se o art. 5o, da Constituição Federal, no inciso que trata da imprescritibilidade do racismo, deveria ser interpretado semanticamente somente para raças, strictu sensu, ou se a análise deveria ser comparativa, visando uma interpretação teleológica e harmônica com a Carta Federal. Indagou qual seria a melhor exegese e se a antropologia estaria ultrapassada na divisão que faz das raças entre negros, brancos e amarelos. Em seu voto, fez referências ao projeto genoma e seu resultado, com a comprovação que do ponto de vista genético raças não existem, todos sendo igualmente diferentes. Por fi m, pontuou que a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens, sendo que disto resultou o preconceito racial.

O referido Ministro trouxe o conceito de etnologia, do dicionário Eletrônico Houaiss, que conceitua raça como a coletividade de indivíduos que se diferenciam por sua especifi cidade sociocultural, refl etida principalmente na língua, religião e costumes e dando como exemplo de grupo étnico a raça judia. Citou, também, Norberto Bobbio, in “Elogio da Serenidade”, para quem a Alemanha de Hitler foi um Estado racial, no mais pleno sentido da palavra, pois, a pureza da raça era objetivo do Estado. E afi rmou que o conceito antropológico atual para raça é político-social, conforme laudo de Sonia Blommfi eld Ramagem (Universidade de Brasília), juntado aos autos do habeas corpus. Somou a citação feita do Embaixador J. A. Lindgren Alves (ALVES, 2002, p.206-208), para quem raça é uma construção social e que quando se pretender atribuir caracteres inerentes, naturais e inescapáveis às diferenças físicas, psíquicas, linguísticas ou etnorreligiosas de qualquer população, haverá racismo.

Em matéria de tratados internacionais, mencionou a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de discriminação Racial de 1965, assinada pelo Brasil e ratifi cada sem reservas (Decreto 65810/69); O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966, que prevê a proibição legal de “apologia do ódio nacional, racial ou religioso, que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência e ratifi cado pelo Brasil (Decreto Legislativo 226, de 12/12/1991, promulgado em 06/12/1996, pelo Decreto 592); a Resolução 623, da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), de dezembro de 1998, que trata da cooperação com a Comissão de Direitos Humanos no exame de todas as formas contemporâneas de racismo, citando expressamente o antissemitismo e o item 58, da Declaração de Durban “o holocausto jamais deverá ser esquecido”. Quanto ao direito comparado, mencionou a França, Espanha, Portugal e o Parlamento Europeu.

Neste raciocínio, votou no sentido da interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugado com circunstâncias históricas, políticas e sociológicas, para que se localize o sentido da lei, aplicando-a. Lembrou Canotilho, para quem o racismo deve ser interpretado com o contexto histórico e que raça é uma realidade sociopolítica.

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O Ministro Gilmar Mendes asseverou que o racismo é um fenômeno social e histórico complexo, não podendo partir seu conceito jurídico do referencial de raça7. Mas, que racismo é um fenômeno pseudocientífi co notoriamente superado. Todavia, lembrou que as manifestações racistas não estão superadas, sendo entendidas como discriminação assentes em referências como a cor, a religião, aspectos étnicos e de nacionalidade. Baseou seu voto na colisão do direito fundamental da liberdade de expressão e de opinião com o da dignidade do povo judeu, tendo concluído que o princípio da proporcionalidade não foi violado com a prevalência da dignidade do povo judeu e condenação do paciente.

O Ministro Carlos Aires Brito acrescentou que se a tese do relator fosse reconhecida, o dispositivo constitucional que faz do racismo um crime, fi caria sem seu núcleo semântico e conteúdo signifi cante. Argumentou ser evidente o fato de não se poder dar a um dispositivo constitucional originário uma interpretação nulifi cadora da própria norma, pelo mesmo, vinculada. Afi rmou que o paciente ultrapassou as fronteiras da liberdade de manifestação de pensamento e invadiu o território proibido do racismo antijudaico, seja por escrever, reeditar livros ou expor à venda livros de outros autores que enveredaram pelo mesmo caminho. Explanou ostentarem os princípios constitucionais características da inter-referência, tanto por complementação (um princípio serve a outro) ou por oposição (um princípio se contrapõe ao outro) e, neste no ultimo caso, o magistrado não tem a chance de ajustamento ou compatibilização deôntica, assim, a opção é a de exclusão de um dos princípios.

O Ministro Carlos Aires Brito levantou como questão de ordem que o habeas corpus deveria ser conhecido de ofício para absolver o paciente por atipicidade de sua conduta, uma vez que não constava na denúncia que os atos praticados teriam ocorrido posteriormente a edição da Lei 8081/90, e afi rmou que não poderia a lei penal retroagir para alcançar o paciente. Mencionou o reconhecimento de ofício porque o pedido do paciente objetivava o reconhecimento da conduta como discriminação e não como racismo e que o pedido pleiteava a extinção da punibilidade pela prescrição e não a sua absolvição por atipicidade do fato.

O Ministro Marco Aurélio Mello abordou a colisão dos princípios da liberdade de expressão versus a proteção da dignidade do povo judeu e alertou que a intolerância conduz ao totalitarismo, tendo dito que o paciente exerceu seu direito de livre expressão e o fez como pesquisa científi ca: com método, objeto, hipótese e justifi cativa teórica, amparados em fotografi as, documentos e citações. O Ministro ressaltou que o fato de alguém escrever um livro e outros concordarem com suas ideias não resulta necessariamente em uma revolução, “mesmo porque o brasileiro médio, infelizmente,

7 A Ministra Ellen Gracie também citou Bobbio in “Elogio da Serenidade”, para defi nir o preconceito. Disse, ainda, que não há critérios científi cos para defi nir raças e que o racismo é revelado na percepção do outro como inferior, culminando no menosprezo e no desrespeito ao direito fundamental à igualdade. O Ministro Cezar Peluso citou o método exegético, consistindo este em retirar da Constituição, mediante raciocínio que guarda alguma afi nidade com a chamada “interpretação teleológica”, o conteúdo nuclear do conceito jurídico-penal de racismo, no seu confronto com a gravidade da norma constitucional e os bens e valores jurídicos por ela tutelados enquanto aos fatos especifi camente afi rmou que o impetrante se especializou em obras antissemitas.

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não tem o hábito de ler” e que a censura deve ser feita pela sociedade e não de forma ofi cial, em face do princípio democrático. Dessa forma, acompanhou o raciocínio do relator e interpretou restritivamente a Constituição em relação aos negros e não aos judeus, concedeu a ordem para assentar a inexistência de prática de racismo e concluiu pela incidência da prescrição da pretensão punitiva.

O Ministro Celso de Melo ressaltou a hostilidade extrema da Constituição a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir o legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de ideias e pensamentos, o que não constituiria um direito absoluto. Por esta razão, as publicações que extravasam os limites da indagação científi ca e da pesquisa histórica, degradando-a, estimulando a intolerância, não merecem proteção. Confi rmou seu voto, assim como Carlos Velloso, Gilmar Mendes e Nelson Jobim, no sentido de indeferir o habeas corpus. Com todos estes votos observa-se as diversas ponderações às técnicas de interpretação e a hermenêutica constitucional.

A HERMENÊUTICA TOTAL COMO MÉTODO INTERPRETATIVO ADOTADO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

No julgamento do caso Ellwanger, observa-se nos votos dos Ministros, referência à interpretação teleológica. Necessário, pois, algumas referências à hermenêutica e aos métodos interpretativos para se averiguar se este foi realmente o critério adotado pelo Tribunal8.

A necessidade de métodos de interpretação surgiu em face da própria vida cotidiana. Palmer (2011, p.91) ao tratar do projeto de Schleiermacher de uma hermêutica geral lembra citação do mesmo da necessidade de “construir uma hermenêutica geral como arte da compreensão”.

A hermenêutica universal é concebida, segundo Friedrich Daniel Ernst Schleirmacher (sec. XVIII) “como um procedimento universal que visa a interpretar qualquer tipo de texto, independente da ciência a que está adstrito seu conteúdo” (SCHLEIRMACHER apud MAZOTI, 2010, p.21).

A hermenêutica para Schleiermacher era a arte da compreensão, tendo entendido o processo de interpretação como uma reconstrução baseada em dois momentos: o gramatical e o psicológico. Neste último, voltou-se para a experimentação dos processos

8 Mazoti (2010, p.74) expôs: “Até os dias atuais, o método teleológico goza de bom prestígio dentre os magistrados que não se eximem de invocá-lo constantemente. A própria legislação moderna contemplou a utilização de tal recurso hermenêutico. Dentre nós, a Lei de Introdução ao Código Civil prevê em seu art. 5o que: [na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fi ns sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum].” Bonavides (2005, p.446) quando trata do histórico-teleológico pressupõe um raciocínio que, tendo colocado já a proposição normativa no conjunto da ordem jurídica em relação com outras normas, busca, lograr por essa via determinados fi ns de natureza integrativa, idôneos a esclarecer o sentido e alcance da regra.

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mentais do autor do texto (PALMER, 2011, p.94-95), o que fi cou conhecido como círculo hermenêutico.

As buscas pela melhor hermenêutica não cessaram, vieram a hermenêutica fi losófi ca, depois de algumas mudanças destacando-se diversos fi lósofos como Gadamer e Habermas, sendo que este último quando se referiu a hermenêutica universal afi rmou que esta seria possível se a linguagem fosse um espaço isento de dominação (PEREIRA, 2001, p.56).

Da análise de Tribe e Dorf (2007, p.25) à respeito da Constituição americana e de suas 26 emendas restou a conclusão de que a tentativa de uma hiperintegração da mesma seria uma falácia, porque nem tudo precisava ser reduzido a somente um tema e que contradições não poderiam deixar de existir.

Assim, aprofundou-se a discussão quanto à hermenêutica jurídica e, posteriormente e de forma mais específi ca, quanto à hermenêutica constitucional (BLEICHER, 2002; MAZOTI, 2010; PEREIRA, 2001).

Dentro da hermenêutica constitucional há um grande legado de Peter Häberle e a sua sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Häberle (1997, p.52) explana sobre os modelos de interpretação constitucional, expondo que estes se diferenciam de acordo com os atores envolvidos, tais como representantes de partidos majoritários ou da oposição e comissões parlamentares. Para Häberle (1997, p.51), citando Hesse Grundzüge, a teoria política constitucional busca a produção do consenso e a obtenção de uma unidade política – fi m do processo constitucional e do político –, mas isto não ocorre sem tensões, pois o “Direito Constitucional é direito de confl ito e compromisso”.

O discurso leva ao consenso e a hermenêutica ultrapassa o processo de tradução da realidade, com limitações de uma arte retórica9. Bleicher, contrariamente a esta posição, dizia que “o conhecimento hermenêutico estaria incompleto enquanto não incluísse uma refl exão sobre os limites da compreensão hermenêutica” (BLEICHER, 2002, p.268).

Avançando em um processo hermenêutico mais amplo Häberle (1997, p.53, 55) propõe a vinculação normativa das diferentes forças políticas, apresentando-lhes “bons métodos” de interpretação. Para o constitucionalista alemão o processo político deveria ser aberto, mas com vinculação normativa e responsabilidade da sociedade aberta dos intérpretes, sob pena de perda de autoridade.

O Supremo Tribunal Federal tem revisto as ideias tradicionais da hermenêutica e das técnicas de interpretação, não fi xando, nem se atendo a limites como o proposto por Häberle, mas, buscando a Justiça, como se tem visto do entendimento dos Ministros daquela Corte. Na análise do julgamento do caso Ellwanger, observa-se a prevalência da hermenêutica total, estudada por Raimundo Bezerra Falcão (2010) e interpretação

9 Uma hermenêutica que se debruça sobre os produtos culturais transmitidos e constituídos pela linguagem cotidiana.

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integradora10, não obstante alguns dos Ministros, como Maurício Correa, a tenha nomeado de teleológica, buscando uma técnica tradicional.

A interpretação das leis é a reconstrução dos seus próprios sentidos, clareando as obscuridades, sendo uma operação lógica e técnica que busca o signifi cado de determinada norma jurídica, cujo objeto é a norma contida nas leis, regulamentos e costumes (BONAVIDES, 2005, p.437).

Distingue Bonavides (2005) a interpretação de acordo com a classifi cação proveniente das fontes – autêntica (pelo legislador), judiciária ou jurisprudencial (pelos juízes), doutrinária (pelos juristas, mestres, doutores e teoristas do direito); quanto aos meios – gramatical, lógica e analógica; quanto aos resultados – declarativa, extensiva e restritiva. Apresenta, também, os métodos clássicos de interpretação como sendo o lógico-sistemático, histórico-teleológico e o voluntarista da Teoria Pura do Direito (BONAVIDES, 2005).

Quanto ao melhor processo interpretativo, Bonavides (2005, p.457) escreve que:

Após a ação renovadora dos juristas fi liados à escola alemã da livre aplicação do direito (“freie Rechstsfi ndung”), fez afi nal preponderante o método teleológico, por achar-se talvez mais perto da vida e apresentar-se mais consentâneo com as exigências de uma sociedade dinâmica e cambiante, qual a do século XX, animada de ideias e forças que, nos quadros da ordem jurídica, postulam a constante acomodação dos interesses sociais, sujeitos a um habitual estado de contestação e antagonismo.

10 Observamos esta forma de interpretar nas decisões mais polêmicas do Supremo Tribunal Federal, tal qual na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, que foi procedente quanto aos artigos 12, inciso I; 16; e 41 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). A maioria dos Ministros acompanharam o voto do relator Ministro Marco Aurélio no sentido da possibilidade do Ministério Público dar início a ação penal sem necessidade de representação da vítima. Ocorre que se observa na fundamentação dos votos dos srs. Ministros referência a dignidade humana (Rosa Weber, Luiz Fux), também referências a fragilidade da mulher, assistência à família pelo Estado (Dias Toffoli), que o Estado deve adentrar no recinto das quarto paredes quando houver violência (Carmem Lúcia), tendo a Ministra Carmem Lúcia feito constar: “A interpretação que agora se oferece para conformar a norma à Constituição me parece basear-se exatamente na proteção maior à mulher e na possibilidade, portanto, de se dar cobro à efetividade da obrigação do Estado de coibir qualquer violência doméstica. E isso que hoje se fala, com certo eufemismo e com certo cuidado, de que nós somos mais vulneráveis, não é bem assim. Na verdade, as mulheres não são vulneráveis, mas sim maltratadas, são mulheres sofridas”. O ministro Ricardo Lewandowski tratou do vício da vontade. O Ministro Gilmar Mendes, embora tenha entendido que atribuir o caráter de ação penal incondicionada poderia desagregar a família disse: “Mas como estamos aqui fi xando uma interpretação que, eventualmente, declarando (a norma) constitucional, poderemos rever, diante inclusive de fatos, vou acompanhar o relator”. Joaquim Barbosa tratou da vulnerabilidade da mulher. O Ministro Cezar Peluso, presidente e único voto divergente afi rmou que é “preciso respeitar o direito das mulheres que optam por não apresentar queixas contra seus companheiros quando sofrem algum tipo de agressão”. Podemos ainda citar ainda a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), visando a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipifi cada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram a ADPF improcedente. Portanto, julgou o Supremo Tribunal Federal não ser crime e estabeleceu critérios, ainda, na razão de decidir utilizou de diversos critérios na interpretação extrajurídicos, integrando a forma de interpretar com outros elementos. Observamos que a hermenêutica foi total, utilizou-se de todos os métodos possíveis de interpretação para justifi car o decisum, integrando diversas outras áreas do conhecimento humano, inclusive da moral e dos bons costumes.

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O entendimento do Ministro Maurício Correa, cujo voto foi acompanhado pelos demais Ministros que denegaram a ordem de habeas corpus, com um ou outro acréscimo, seguiu a lição acima mencionada.

O método teleológico11 adotado pelo Ministro Maurício Correa, consiste na interpretação de dispositivo legal, levando-se em conta as exigências econômicas e sociais que o legislador buscou atender, sendo preferido ao sentido literal ou gramatical, como claramente se observa no voto do relator Moreira Alves.

Não obstante se reconheça que a decisão do Ministro Maurício Correa passou por uma interpretação teleológica, verifi ca-se também que a interpretação foi além, podendo-se falar em interpretação integradora, como a estudada por Falcão (2010), que privilegia áreas distintas do conhecimento para formar a interpretação; indo além, inclusive, da segurança jurídica. Desta forma, este modo de interpretar, concretiza valores maiores de Justiça, em detrimento da segurança jurídica, acaso necessário. A interpretação integradora supera segundo Falcão (2010, p.222) a “teimosia da injustiça” dos demais métodos interpretativos, fundamentados na segurança jurídica.

Os fundamentos da decisão procuraram se basear no sentido da Lei Constitucional, passando por seu caráter sistêmico. Inclui tratados subscritos pelo Brasil e decisões de Cortes além-mar, com explanações e fundamentações em áreas do conhecimento como a genética, a antropologia, entre outras. A interpretação no julgado, em exame, integrou as áreas do conhecimento que o homem valorou.

A interpretação integradora é plena, pois integra as diversas áreas do conhecimento. É aquela que dá a linguagem as condições de aclarar as obscuridades da lei, de acordo com as necessidades humanas em cada momento histórico (FALCÃO, 2010). Por este motivo, é ao mesmo tempo lógica e axiológica. Assim, mantém a coerência das normas, porque está atenta aos valores para uma efetiva justiça social. A responsabilidade do intérprete perante a sociedade o faz buscar sentido além da norma-fato, numa percepção de sensibilidade com outros fatores e meios, que devem ser observados na interpretação e que estão claramente demonstrados no acórdão.

Pode-se dizer que a interpretação integradora procura alcançar o verdadeiro sentido da norma jurídica e do direito, sendo justa e legítima, o que Vasconcelos (2001, p.25-26) chama de tridimensionalidade axiológica do Direito. E é nesta legitimidade que se situa a compatibilização dos valores dos sistemas com os do grupo social que os mantém.12

11 Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, atualmente Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4657/42), art. 5º - “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fi ns sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”12 Com esta interpretação pode-se superar o pessimismo das palavras de Hannah Arendt (2010, p.25) no capítulo “refl exões sobre Lessing” e visualizar um ordenamento jurídico que atenda mais aos anseios sociais de todas as classes e raças “[…] A humanidade dos insultados e injuriados nunca sobreviveu ainda sequer um minuto à hora da libertação. Isso não quer dizer que ela seja insignifi cante, pois na verdade torna suportáveis o insulto e a injúria; mas sim que em termos políticos é absolutamente irrelevante”.

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A consciência crítica nos textos jurídicos deve acompanhar a forma de interpretar. Neste ponto, Vasconcelos (2001, p.117) expõe:

Cumpre afi rmar, de modo conclusivo, que o Direito, para realizar-se, não pode dispensar a participação da consciência crítica do ser humano, lugar e sede de sua moralidade. Todo aperfeiçoamento da vida jurídica só será consistente se submetido ao crivo desta instância de valor. É para ela que aponto o crescimento contínuo do homem, em busca de plenitude de seu ser. A velocidade deste processo de aperfeiçoamento sem dúvida importará o aumento do alcance da justiça e, consequentemente, a diminuição do emprego da força física nas relações entre os homens. Extinguirá, sem dúvida, este conceito bestializante de coação pelo qual o Direito é confundido com o exercício da força física, tão inepto quanto irreal. Mas, assim mesmo, tão ideologicamente atuante.

A hermenêutica busca tornar a interpretação útil aos fi ns a que se destina, de forma que quanto mais integral, mais total será a hermenêutica. Assim, a hermenêutica é total, segundo Falcão (2010, p.144), quando:

Contemplando todas as realidades signifi cantes e todas as situações de extração de sentido, em moldes que retire destes todas as utilidades que possa encerrar no tocante às aplicações a serem feitas com base no objeto interpretando. Realizada essa façanha contemplativa, estará ela apetrechada a estabelecer os regramentos inspiradores da boa interpretação, isto é, a interpretação integradora, que só o será se for integralmente realizada.

Frisa o referido autor que a “A verdadeira hermenêutica necessita de ser total [...] A fi m de que a interpretação possa realmente ser integradora”. Portanto, a hermenêutica total é formada por métodos não somente jurídicos, como o analisado nos votos e fundamentações dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, neste sentido Falcão (2010, p.258):

Em consequência, o espírito do ordenamento jurídico é mais importante para a captação de sentido, às vezes, do que a letra do objeto normativo. Aliás, com base nele, também é possível a Hermenêutica total oferecer ao intérprete grupos de “afi nidade”, numa espécie de classifi cação dos fatos que certamente o ajudaria a interpretar melhor, melhor ouvindo a fala do objeto, seja fático, seja normativo. Seriam grupos de “afi nidades”, não necessariamente fechados, é óbvio, compostos de matérias que pudessem ser interpretadas com maior ou menor sensibilidade para com o sistema, especialmente o social.

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Para uma interpretação integradora os sentidos são inesgotáveis. Contudo, não é óbice para uma hermenêutica total e, bem assim, a segurança não é o maior valor a ser alcançado, mas a Justiça. Isto não se dá com a interpretação pura, mas com a interpretação para aplicação, quase sempre feita pelos agentes do sistema.13

Para a existência da Hermenêutica total, há um requisito, qual seja: a Democracia deve ser seu primado (ALBUQUERQUE, 2005, p.662). Neste sentido, há exemplos negativos de construção da normatividade constitucional, baseados na reatividade materializada em normas provenientes do arbítrio de agentes públicos e/ou privados, com práticas exegéticas de manipulação ou cultivo de dubiedade e imprecisões na interpretação dos textos. No entanto, possui um lado positivo, o da criação de uma “Teoria da Constituição” e de uma “tecnologia constitucional” em pleno processo de formação (ALBUQUERQUE, 2005, p.663).

Com isto, tem-se uma necessidade de atender ao custo social, a democratização das interpretações, e que, por vezes, encontra obstáculos. Albuquerque (2005, p.664) oferece uma explicação para o Brasil, quando explana sobre a hermenêutica constitucional envolvida em questões da vida política democrática: “[…] no caso brasileiro ocorre em meio a interstícios autocráticos e impasses de distribuição de renda capazes de oferecer grande resistência a pressões por democratização”.

Portanto, a interpretação da Constituição fundada nas consequências sociais é inolvidável fator de democratização, como exposto por Falcão (2010), mas com certo risco como não poderia deixar de ser e exposto por Albuquerque (2005). Neste ponto também:

Trata-se de saber portanto em que medida a atualização democrática dos textos constitucionais possa ser exercida não somente como decorrente do exercício do poder técnico, mas como pedagogia democrática, envolvendo agentes delegados, cidadãos e membros avulsos de uma sociedade que reconhece, ao mesmo tempo, tanto a existência da importância das garantias dos direitos formais como o próprio direito inovador à diferença como igualdade importante – esta não mais vista como aberração ou distúrbio do consenso universal e portanto merecedora de ser “extinta”, mas como componente constitutivo do processo de “invenção democrática”. (ALBUQUERQUE, 2005, p.667)

13 Neste ponto é conveniente uma digressão anotando ensinamento de Falcão (2010, p.250), que demonstra métodos de escolha destes agentes do sistema: […] Não é na inexperiência, na superfi cialidade, no simples atendimento à aprovação em concurso, na conquista de cargos e posições, em que o prestígio pessoal ou os conchavos políticos e o jogo de interesses subalternos prevalecem, que nasce um intérprete aplicador ao nível de grandeza necessária a lidar com tantos e tamanhos bens e valores. Por esse motivo, a Hermenêutica total também deve ser uma espécie de conjunto de regras orientadoras do sentido das investiduras, atuando desde a feitura dos diplomas destinados a reger o acesso à suprema dignidade de aplicar as normas de conduta – nesse primeiro momento orientando a interpretação dos fatos e da pré-linguagem normativa – até o instante exato em que se estejam adotando as providências efetivas de seleção, acesso e investidura propriamente ditos dos intérpretes aplicadores, oportunidade em que a Hermenêutica procurará nortear a interpretação de requisitos, condições e títulos exigíveis daquelas pessoas que se aprestem a candidatar-se a funcionarem como intérpretes aplicadores.

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Por estes motivos que Albuquerque (2005, p.676) expõe que certas “resistências” sociais devem ser vistas pela hermenêutica como estímulos para a refl exão sobre novos mecanismos de expressão democrática da sociedade atual.

A posição do relator Ministro Moreira Alves em seu voto demonstra uma interpretação tendente a literalidade – muito próxima da interpretação gramatical. Por isto, os judeus não foram considerados uma raça, com comprovação biológica, consequentemente, não se podendo atribuir o crime de racismo ao paciente. Para os demais Ministros, com exceção de Carlos Brito e Marco Aurélio, o conceito de raça é político-social. O entendimento do relator, caso fosse o vencedor, teria esvaziado a norma constitucional, que admite o crime de racismo. A Constituição permite a existência de comportamentos sociais avessos à discriminação de pessoas em contraposição a vontade democrática consubstanciada em seu texto e nas suas normas.

Com esta decisão, o Supremo Tribunal Federal privilegiou os fatores reais de poder, qual seja a Justiça almejada pela sociedade, uma vez que se enquadra no senso comum do justo, superando uma fase positivista pura, que mais se preocupava com a forma que com o conteúdo. Para bem explicar este pensamento contido no voto vencido, pertinente os escritos de Albuquerque, para quem o pensamento hegemônico das faculdades demonstram que a modernidade e o neoliberalismo ignoram a dimensão política do direito e sua dialogicidade. A soberania é vista meramente como norma, sendo que os fatores reais, o povo que encarna a soberania, acaba por fi car fora das discussões (ALBUQUERQUE, 2001, p.19). Estas discussões políticas resultam da atividade de pensar dos homens que vivem em condições de liberdade (VASCONCELOS, 2003, p.47 e 80) como condição que ilumina a existência humana (ARENDT, 2011, p.405).

Albuquerque (2006, p.682), quando conclui seu trabalho Metódica Jurídica e Teoria Sistêmica: observando as virtualidades do Direito expõe:

Daí a linguagem “em si” difi cilmente possa servir para controlar o trabalho de interpretação, vez que não tem signifi cado independente. Não é cabível, portanto, falar de uma ontologia da comunicação jurídica, onde houvesse um sentido defi nitivo das normas a ser conhecido; nem tampouco, uma concepção metodológica capaz de apontar esse caminho – pois todos os signifi cados têm que se constituir no âmbito de processos sociais de vivência e ação. A possível congruência entre os aspectos “interno” e externo do sistema jurídico só é possível de ocorrer no âmbito dos processos sociais de atribuição normativa – e sem o apelo a normas jurídicas “preexistentes”.

A interpretação deve estar atenta aos fatos concretos e aos custos sociais das decisões, no entanto, deve o intérprete estar vigilante para não deixar que um fato se sobressaia tanto que apague os demais, consoante Falcão.14

14 “[…] A cientifi cidade é que importa. E, máxime as ciências sociais, não se podem tornar apenas quanto frênicas, na expressão de Gurvitch, ou se estiolar na infertilidade das inter-personal relations do behaviorismo norte-americano. Urge, desse modo, que não se deixe a ciência social mirrar na estreiteza da rigidez metodológica estanque, fazendo-a incapaz de captar a grandiosidade – e, desgraçadamente, às vezes, a pequenez – do homem e da sociedade” (FALCÃO, 1981, p.12).

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A interpretação, e a própria hermenêutica aplicada no campo jurídico, devem ter em suas razões de existir, a busca da Justiça, em todos os sistemas – jurídicos e sociais, vistos de forma integrada. Deve-se privilegiar a justiça frente ao princípio da segurança jurídica, por exemplo, quando o caso exigir. Interpreta-se, com vistas ao custo social, às consequências da decisão, o que não pode ser feito, obviamente, com os olhos voltados exclusivamente para o direito, para as leis, mas para além, para que se possa extrair e se reconstruir a verdadeira Justiça presente na norma.

CONCLUSÃOCom o julgamento do caso Ellwanger refl etiu-se a perspectiva interpretativa e

hermenêutica. O racismo contra o judeu foi analisado à luz da Constituição Federal, leis nacionais, tratados, documentos internacionais e o direito comparado. Restou demonstrado que raças humanas biologicamente diferentes não existem, todos os homens e mulheres fazem parte da mesma raça. No entanto, há diferenças determinadas por um processo político-social, explicando-se a possibilidade da tipifi cação de crimes de racismo, discriminação e segregacionismo.

No Brasil a gravidade que possui o racismo, engloba o antissemitismo, não obstante a norma constitucional ter sido forjada na ideia do racismo com relação ao negro. Assim, o racismo possui um conceito amplo, sendo considerado ofensa a qualquer raça e não apenas ao negro – preto e pardo.

Na decisão proferida no caso em comento, observou-se a tendência dos Ministros do Supremo Tribunal Federal de interpretar a norma constitucional considerando os tratados internacionais de que o Brasil é subscritor, considerando, também, em suas fundamentações as decisões do direito comparado dos Estados Unidos da América do Norte e da Inglaterra, da sistematicidade do ordenamento constitucional, do sopesamento dos princípios e da consequência da decisão para a sociedade, indicando uma interpretação integradora.

Assim, em face da torpeza do crime de racismo – da necessidade de um povo querer se sobrepor a outro – surge a necessidade de combater tal fato e marcá-lo com o grifo indelével da imprescritibilidade, para que o repúdio permaneça na memória das pessoas.

A interpretação prevalente neste julgado, embora nomeada pelos ministros de teleológica, pode-se classifi car como interpretação integradora, uma vez que buscou outros fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais, ponderando princípios, de forma a torna-se mais abrangente.

Com isto, entende-se que a hermenêutica foi total, utilizou a norma de base – conforme o princípio da moldagem da norma ao fato – , com o mínimo de estabilidade, mas com comunicabilidade de sentido. Como consequência a norma foi atualizada, evoluiu sem alteração do texto. A sociedade, em razão disso, não se sentiu refém da norma, freada

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por ela. O intérprete continua com importante função. Os destinatários da interpretação recebem e “incorporarão a justiça” (FALCÃO, 2010).

A interpretação e a própria hermenêutica aplicada no campo jurídico caminha para um novo tempo, no qual todo o sistema – jurídico e social – é visto de forma integral, não mais sedimentado, não mais em compartimentos estanques.

A hermenêutica segue por este caminho para atender aos anseios de Justiça, privilegiando-a à princípios antes vistos como verdadeiros dogmas, como o era o da segurança jurídica. Neste sentido, é necessário que fi que para trás os pressupostos da teoria pura do direito de Kelsen, pois supervalorizavam o princípio da segurança jurídica e a previsibilidade – formalismo normativo – sobrepondo-o aos valores do espírito humano – a liberdade e a justiça.

Neste novo caminho, interpreta-se com vistas ao custo social, às consequências da decisão, o que não pode ser feito, obviamente, com os olhos voltados exclusivamente para o direito, para as leis, mas, para além delas, e de onde muitas vezes se extrai a verdadeira norma jurídica, como no caso do julgamento analisado.

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O direito do trabalho como expressão de direitos humanos fundamentais:

a promoção da dignidade da pessoa humana via trabalho tutelado

Aline Carneiro Magalhães

RESUMOA sociedade, no decorrer da história, identificou um rol de direitos imprescindíveis à

manutenção digna do homem nas esferas individual e coletiva. A eles conferiu-se o nome de direitos humanos fundamentais, e para uma melhor compreensão foram divididos em dimensões, sendo possível identificar hoje cinco delas. O presente estudo pretende defender a ideia de que o trabalho, prestado com a observância o e gozo dos direitos trabalhistas, é instrumento de promoção da dignidade humana e, por consequência, dos direitos humanos fundamentais, sendo este ramo especial do direito, de caráter tuitivo, uma das expressões deste conjunto de direitos essenciais a todos os homens.

Palavras-chave: Direito do Trabalho. Direitos Humanos Fundamentais. Dignidade da Pessoa Humana.

Labor law as expression of fundamental human rights: The promotion of human dignity through labor ward

ABSTRACTThe society, throughout history, has identified a list of the dignified essential maintenance

man in the individual and collective spheres rights. As they gave the name of fundamental human rights and for a better understanding were divided into dimensions, being able to identify five of them today. This study aims to defend the idea that the work provided for the observance and enjoyment of labor rights is an instrument to promote human dignity, and consequently of fundamental human rights, and this particular branch of law, tuitivo character, one of expressions of this core set of rights to all men.

Keywords: Labour Law. Fundamental Human Rights. Human Dignity.

1 INTRODUÇÃOAnalisando a história, podemos observar que em determinados momentos um rol

de direitos foi alçado ao patamar de humanos fundamentais por serem imprescindíveis à vida do homem com dignidade, sem os quais ele acabaria perecendo.

Aline Carneiro Magalhães é Doutoranda e Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Linha de Pesquisa: Direito do Trabalho, modernidade e democracia. Professora do curso de Direito da Faculdade Governador Ozanam Coelho, Ubá-MG. Advogada.

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Esses direitos, classifi cados em dimensões para uma melhor compreensão do objeto da tutela, formam um conjunto interdependente, harmônico, que não pode ser suprimido ou renunciado.

A sua consagração está diretamente ligada à dignidade humana, ou seja, a existência com o gozo desses direitos essenciais é que ostenta tal qualidade.

Neste contexto, emerge o trabalho como algo indispensável para que o cidadão tenha condições de, de fato, estar inserido na vida em sociedade, ser reconhecido, valorizado e produtivo. O trabalho é essencial não apenas para a manutenção fi nanceira, mas para a realização pessoal, ocupando um papel central na vida em sociedade, porque é um dos fatores capazes de promover a dignidade do homem.

Entretanto, não é qualquer trabalho que cumpre com este desiderato, mas apenas aquele prestado à luz do Direito do Trabalho, ramo especial do direito formado por um conjunto de normas protetivas responsáveis pela humanização do sistema capitalista de produção.

Entende-se, pois, que o Direito do Trabalho é uma expressão dos direitos humanos fundamentais na medida em que qualifi ca o trabalho prestado e faz com que ele seja hábil a promover a dignidade humana.

Nesta ordem de ideias, no presente trabalho analisaremos, em primeiro lugar a origem e o desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais. No tópico seguinte, traremos o seu conceito e suas características. Em seguida, passaremos pelas cinco dimensões de direitos humanos fundamentais hoje identifi cados pela doutrina para, ao fi nal, demonstrarmos e concluirmos que o Direito do Trabalho é uma de suas expressões capaz de promover a dignidade humana e, por este motivo, deve ser preservado e defendido na sua essência.

2 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAISA doutrina não é unânime quanto ao surgimento dos direitos humanos, mas pode-se

atribuir ao reconhecimento da existência de uma igualdade entre os homens decorrente do simples fato de sua humanidade, da sua superioridade em relação aos outros seres e da sua racionalidade, como dados iniciais para a construção do seu conceito.

Este período, segundo Comparato (2001), é denominado de Axial e compreende os séculos 600 a 480 a.C. Para ele:

[...] é a partir do período axial que o ser humano passa a ser considerado, pela primeira vez na história, em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão, não obstante as múltiplas diferenças de sexo, raça, religião ou costumes sociais. Lançam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para a afi rmação de direitos universais, porque a ela inerentes. (COMPARATO, 2001, p.11)

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A justifi cativa destes direitos veio de diversos ramos do conhecimento, desde a religião até a fi losofi a.

Aquela justifi cava a existência de leis comuns que, independente de positivação, deveriam ser aplicadas a todos os homens, pelo fato de sua humanidade e da sua natureza comum, decorrente de um só Deus.1

Esta, a partir das ideias defendidas pelos sofi stas e estoicos,2 justifi cava a existência de um “direito natural anterior e superior às leis escritas” (MORAES, 1998, p.25). A perspectiva jusnaturalista trazia a ideia de direitos absolutos, imutáveis e inerentes aos seres humanos.

Dando um salto, já na Idade Média, Santo Tomás de Aquino (1226-1274) defendeu a ideia da existência de uma igualdade essencial da pessoa, independentemente do lugar que ela ocupa na sociedade, da sua cor ou religião, o que justifi cava a existência de direitos comuns a todos os homens.

Neste período foi elaborado o primeiro documento com referência a direitos e liberdades civis clássicos, que garantia a propriedade privada, o habeas corpus, a liberdade de locomoção e o devido processo legal.

A Magna Carta, pacto fi rmado em 1215 pelo rei João Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses, veio para assegurar a liberdade e limitar o poder do soberano, que deveria respeitar os direitos subjetivos dos governados. A despeito de garanti-los especialmente para o clero e a nobreza, excluindo grande parte da população do seu gozo, o documento representou importante embrião dos direitos humanos.

Para Comparato, “em que pese a sua forma de promessa unilateral, feita pelo rei, a Magna Carta constitui, na verdade, uma convenção passada entre o monarca e os barões feudais, pela qual se lhes reconheciam certos foros, isto é, privilégios especiais” (COMPARATO, 2001, p.75).

Ela previa como garantias a liberdade da Igreja, restrições tributárias, proporção entre delito e pena, previsão do devido processo legal, liberdade de locomoção e acesso à justiça.

Nas palavras de Sarlet, no período Renascentista Pico della Mirandola, com base no pensamento de Santo Tomás:

[...] advogou o ponto de vista de que a personalidade humana se caracteriza por ter um valor próprio, inato, expresso justamente na ideia de sua dignidade de ser

1 Entretanto, segundo Comparato (2001), esta igualdade universal dos homens prevaleceu no plano teórico na medida em que, na prática, continuava se admitindo a escravidão e a inferioridade da mulher, sendo reconhecida a igualdade dos homens em dignidade e direitos apenas na Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.2 Os sofi stas surgiram na Grécia antiga, sendo conhecidos pelo ensino da arte da retórica. Já os estoicos, segundo José Luiz Quadros Magalhães (2000, p.13), decorreram de uma escola fi losófi ca fundada pelo pensador de origem semita Zenon (350-250 a.C), que colocava o conceito de natureza no centro do sistema fi losófi co. Para eles, existe um Direito Natural comum que é baseado na razão e tem validade universal.

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humano, que nasce na qualidade de valor natural, inalienável e incondicionado, como cerne da personalidade do homem. (SARLET, 2009, p.38)

Segundo Magalhães (2000, p.20), enquanto na Idade Média o Direito Natural era visto como vinculado à vontade de Deus, a partir da escola de Direito Natural de Grotius, em 1625, ele passa a ser fruto da razão.

No século XVII as declarações de direitos inglesas, a exemplo do Bill of Rights de 1689, trazem um rol de direitos e liberdades para o povo, tais como a proibição de impostos sem autorização do Parlamento e de penas cruéis, o princípio da legalidade penal e o direito de petição, além de limitar os poderes do monarca. Sua marca maior foi o estabelecimento da divisão de poderes, que, em última análise, implicava a proteção dos direitos fundamentais ligados às liberdades. Nas palavras de Sarlet:

[...] as declarações inglesas do século XVII signifi caram a evolução das liberdades e privilégios estamentais medievais e corporativos para liberdades genéricas no plano do direito público, implicando expressiva ampliação, tanto no que diz com o conteúdo das liberdades reconhecidas, quanto no que toca à extensão da sua titularidade à totalidade dos cidadãos ingleses. (SARLET, 2009, p.43)

No século XVIII, Kant inclui entre os postulados sob imperativo categórico, que devem reger a conduta moral da pessoa, o de tratar o outro como fi m e não como meio:

A humanidade mesma é uma dignidade; porque o homem não pode ser utilizado por nenhum homem (nem por outros, nem sequer por si mesmo) meramente como meio, senão deve todo tempo, simultaneamente, ser tratado como fi m, e nisso está exatamente a sua dignidade (a personalidade), por meio da qual ele se eleva sobre todos os outros seres do mundo que não são homens e, todavia, podem ser utilizados sobre todas as coisas. (KANT apud COMPARATO, 2001, p.100)

Pela primeira vez, em 1776, “os direitos naturais do homem foram acolhidos e positivados como direitos fundamentais constitucionais” (SARLET, 2009, p.43) na Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, vinculando tanto a população quanto os poderes públicos. Segundo o seu artigo I:

Todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não

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podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança.

No mesmo ano, a Declaração de Independência dos Estados Unidos reafi rmou os direitos humanos daquela nação, em especial no que tange à limitação do poder estatal.

Mas foi na França que ocorreu a consagração normativa dos direitos fundamentais através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que possuía maior conteúdo democrático e social e colocou fi m ao absolutismo.3

Segundo Comparato (2001, p.48), “a mesma ideia de liberdade e igualdade dos seres humanos é reafi rmada e reforçada: os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.

A preocupação aqui era a defesa da burguesia contra os privilégios do clero e da nobreza, ou seja, através da limitação dos poderes destes, aquela nova classe buscava sua ascensão. A instituição de direitos individuais e a separação dos poderes foram os meios utilizados pelos proprietários ricos para alcançar seus objetivos, não em prol do povo, mas em benefício de si mesmos. Sobre o tema, assevera Sarlet, citando Perez Luño:

Tanto a declaração francesa quanto as americanas tinham como característica comum sua profunda inspiração jusnaturalista, reconhecendo ao ser humano direitos naturais, inalienáveis, invioláveis e imprescritíveis, direitos de todos os homens, e não apenas de uma casta ou estamento. (LUÑO apud SARLET, 2009, p.44)

E complementa Comparato:

As declarações de direitos norte-americanas, juntamente com a Declaração francesa de 1789, representaram a emancipação histórica do indivíduo perante os grupos sociais aos quais ele sempre se submeteu: a família, o clã, o estamento, as organizações religiosas. [...] Mas, em contrapartida, a perda da proteção familiar, estamental ou religiosa tornou o indivíduo muito mais vulnerável às vicissitudes da vida. A sociedade liberal ofereceu-lhe, em troca, a segurança da legalidade, com a garantia da igualdade de todos perante a lei. (COMPARATO, 2001, p.51)

3 Segundo José Afonso da Silva (1999, p.161), as fontes fi losófi cas e ideológicas das declarações de direitos americanas como da francesa são europeias, tendo os franceses, em 1789, tomado de empréstimo a técnica das declarações americanas, mas estas eram, a seu turno, senão o refl exo do pensamento político europeu e internacional do século XVIII – dessa corrente da fi losofi a humanitária cujo objetivo era a libertação do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal.

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Paralelamente, no campo econômico, há a ruptura do modelo de trabalho antigo ligado à servidão e às corporações de ofício através da Revolução Industrial que tem como fonte propulsora a existência de trabalho livre. Este novo homem que está em liberdade, agora também reconhecido como igual a seus pares, poderia pactuar a forma de alienação da sua força de trabalho sem intermédio estatal.

Este contexto traduzia o Estado liberal que, em suma, era marcado pela garantia das liberdades individuais, negação da intervenção do Estado na economia e demais relações privadas, grande acumulação fi nanceira por um pequeno grupo de pessoas e exclusão social da maioria.

Os longos anos marcados por este estado de coisas renderam, dentre outras consequências, um quadro de mazelas para a maioria da população e uma disparidade econômica muito grande, em que um pequeno número de pessoas detinha poder e dinheiro enquanto a maioria vivia em condições precárias. Nesta época vários movimentos sociais e de classe começam a surgir na busca por condições de vida mais dignas, em especial, aqueles ligados aos trabalhadores.

Começam a ser exigidas do Estado uma postura ativa e justiça social, caracterizadas por melhor distribuição de renda, assistência, acesso à saúde, educação, lazer, moradia, direitos trabalhistas e previdenciários, ou seja, toda uma gama de direitos sociais.

A necessidade de se acatar estas reivindicações foi corroborada com a 1ª Grande Guerra, a crise de 1929, as ameaças comunistas e socialistas incipientes e as greves. Todo o contexto demonstrava a importância de uma mudança no comportamento e nos valores.

Em resposta, ganharam força e relevância os direitos sociais, traduzidos especialmente nos citados direitos – educação, saúde, previdência, trabalho, moradia e lazer – e que, para sua efetivação, dependiam de uma postura ativa e garantidora do Estado.

Ao lado das liberdades individuais, passaram a fazer parte do rol de direitos humanos os direitos sociais, também denominados de direitos das igualdades, que visavam corrigir os erros do modelo anterior.

Entretanto, o reconhecimento universal dos direitos humanos e o seu aprofundamento só ocorreu após a 2ª Guerra Mundial, em que atrocidades foram cometidas pelo homem contra o seu semelhante, o que gerou um sentimento de mudança em escala global.

Também após o segundo grande confl ito armado, podemos ver a expansão e a consolidação do Estado de Bem Estar Social, especialmente em alguns países da Europa, que é caracterizado pela existência de políticas públicas – saúde, educação, habitação, previdência social – mas, também, como “uma maneira de organização da sociedade civil, em que dá prevalência às ideias de liberdade, democracia, valorização da pessoa humana e valorização do trabalho, especialmente o emprego” (DELGADO; PORTO, 2007, p.21).

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, marca uma nova fase, em que o ser humano e os direitos a ele inerentes ganham contorno e relevância internacionais.

Para Piovesan (2010, p.40), “ao consagrar direitos civis e políticos e direitos econômicos, socais e culturais, a Declaração imediatamente combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade”.

Paulatinamente, foi sendo formada a consciência acerca de outros direitos inerentes ao homem, que, por esta característica, deveriam constar no rol de direitos fundamentais, estando eles relacionados à qualidade de vida e à solidariedade entre os seres humanos, chamados direitos de solidariedade ou fraternidade. Assim esta completando o lema da Revolução Francesa: “liberdade, igualdade e fraternidade”.

Todo este contexto nos demonstra a dimensão histórica dos direitos humanos, na medida em que eles representam os anseios da sociedade4 em determinado momento do tempo a partir do desenvolvimento social, econômico e político das pessoas.

Além de produto histórico, pode-se perceber um cunho axiológico acerca dos direitos humanos, sendo aqueles valores que os homens consideram mais importantes, relevantes e imprescindíveis para a manutenção de uma vida minimamente digna e uma convivência harmônica. “Os direitos humanos foram identifi cados como os valores mais importantes da convivência humana, aqueles sem os quais as sociedades acabam perecendo, fatalmente, por um processo irreversível de desagregação” (COMPARATO, 2001, p.26).

O rol de direitos aqui elencados, essenciais ao ser humano, apresenta uma relação de dependência entre si, sendo um necessário para a efetivação do outro, formando, assim, um todo harmônico, unitário, indivisível e que, por representar aquilo que é essencial para o ser humano, não pode ser renunciado, suprimido ou diminuído.

3 NOMENCLATURA, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAISUm dos primeiros pontos que chama a atenção acerca do estudo dos direitos

humanos é a diversidade terminológica e conceitual.

Sob o primeiro aspecto, podemos identifi car uma gama de expressões utilizadas para identifi car tais direitos, bem como uma ausência de consenso acerca da nomenclatura utilizada para identifi car sua categoria.

Estes direitos podem ser denominados de direitos humanos, direitos fundamentais, direitos humanos fundamentais, direitos do homem, direitos e liberdades constitucionais, direitos fundamentais do homem e direitos naturais.

4 Cumpre ressaltar que há na doutrina entendimento de que os direitos humanos fundamentais são uma construção da sociedade ocidental. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/spol/pdf/ReisMulticulturalismo.pdf. Acesso em: 10/01/2014.

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As quatro últimas nomenclaturas se mostram superadas, segundo a doutrina,5 sendo, muitas vezes, utilizadas as três primeiras como sinônimas.6 Parte dos estudiosos, entretanto, costuma fazer uma diferenciação entre direitos humanos, que seriam aqueles consagrados em âmbito internacional, e direitos fundamentais, que seriam os direitos positivados no âmbito interno, por meio das Constituições. Neste sentido assevera Sarlet:

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). (SARLET, 2009, p.29)

O mesmo autor aduz que, nos dias atuais, no que diz respeito ao conteúdo das declarações internacionais e dos textos constitucionais, está ocorrendo um processo de aproximação e harmonização, na medida em que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que a sucederam.

No que tange à nomenclatura das categorias de direitos humanos, há o uso do termo dimensão, geração, família ou grupo.

Um primeiro ponto que deve ser suscitado, antes de se escolher uma das denominações, é o caráter cumulativo e de complementaridade dos direitos humanos, na medida em que eles se entrelaçam e formam um todo unitário e harmônico.

Assim, deve-se optar por denominações que corroborem com esta ideia, excluindo aquelas que levem a crer que uma categoria tenha sido superada pela outra. Neste sentido, afi rma Sarlet (2009, p.45) que “o uso da expressão gerações pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra”.

Neste contexto, quer parecer que a expressão dimensão se coaduna melhor com a ideia de interdependência dos direitos humanos fundamentais, motivo pelo qual foi aqui adotada.

No que tange à conceituação, Moraes, citando Nascimento, assevera que “não é fácil a defi nição de direitos humanos [...] qualquer tentativa pode signifi car resultado

5 José Afonso da Silva (1999, p.180) explica o motivo pelo qual algumas das expressões comumente utilizadas não o devem ser. Ele adota a expressão direitos fundamentais do homem ou direitos humanos fundamentais.6 Neste sentido José Luiz Quadros Magalhães (2000, p.5).

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insatisfatório e não traduzir para o leitor, à exatidão, a especifi cidade de conteúdo e a abrangência” (NASCIMENTO apud MORAES, 1998, p.40). Para Silva (1999, p.179) “a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no evolver histórico difi culta defi nir-lhes um conceito sintético e preciso.”

Segundo Moraes, os direitos humanos fundamentais são:

[...] o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por fi nalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser defi nido como direitos humanos fundamentais. (MORAES, 1998, p.39)

Já para Silva:

No qualifi cativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. (SILVA, 1999, p.182)

No que tange às características dos direitos humanos fundamentais, Moraes (1998, p.41) assevera que são (i) imprescritíveis, não se perdendo pelo decurso do prazo; (ii) inalienáveis, não sendo possível transferi-los a título oneroso ou gratuito; (iii) irrenunciáveis, dele não se tendo a faculdade de abrir mão; (iv) invioláveis, não podendo ser desrespeitados, sob pena de responsabilização; (v) universais, abrangendo todos os indivíduos, sem qualquer restrição; (vi) efetivos, ou seja, o Poder Público deve atuar no sentido de garantir a sua efetivação; (vii) interdependentes, estando os direitos e as garantias fundamentais ligadas; e, (viii) complementares, devendo ser interpretados de forma conjunta.

A este rol, acrescente-se a irreversibilidade citada por Comparato (2001, p.64), por não ser possível revogar leis internas ou denunciar tratados que versem sobre direitos humanos e a historicidade citada por Martins (2008, p.61), na medida em que eles foram sendo estabelecidos no curso do tempo.

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4 OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS SOB O PRISMA DAS DIMENSÕES

4.1 Direitos humanos fundamentais de primeira dimensãoA partir do momento em que a burguesia começa a criticar o modelo monárquico e

feudal vigente pugnando pela diminuição do poder do soberano e sua divisão com outros membros da sociedade, esta classe começa a reivindicar e ganhar espaço e, supostamente em nome do povo, luta pela superação do modelo político e econômico e por direitos.

Estes direitos tinham cunho eminentemente individualista e estavam ligados a todas as formas de liberdade, que poderiam ser exercidas por qualquer um: de expressão, de produzir, de trabalhar, de possuir, de ir e vir. O novo período, denominado liberalismo – ligado às revoluções francesa e industrial –, se caracterizava pela ausência de intervenção estatal na sociedade, que passava a ter a garantia legal de inúmeros direitos individuais. A sociedade liberal ofereceu ao povo “a segurança da legalidade, com a garantia da igualdade de todos perante a lei” (COMPARATO, 2001, p.51).

O Estado devia privar-se de intervir no exercício destes direitos individuais, limitando-se a evitar que fossem desrespeitados e a punir aqueles que os violassem. A liberdade era o melhor meio de a classe emergente concretizar os seus interesses, podendo se desenvolver e legitimar sem qualquer restrição. Quanto menor a atuação estatal, maior a esfera de liberdade do indivíduo, que poderia fazer ou deixar de fazer o que desejasse.

E, a partir do momento em que as pessoas não dispunham mais da proteção do monarca ou do Estado, seu amparo era encontrado na lei. As normas passavam a regular a vida das pessoas, instituindo direitos individuais e patrimoniais.

Estas liberdades foram reconhecidas e consagradas como essenciais ao ser humano, imprescindíveis para sua vida, motivo pelo qual o rol de direitos que as expressavam foram denominados de direitos humanos de primeira dimensão. Eram “poderes de agir reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica a todos os seres humanos” (FERREIRA FILHO, 2009, p.28).

Segundo Ledur (1998, p.30), os direitos fundamentais clássicos são direitos de liberdade, por traduzirem um espaço privado vital não sujeito à violação pelo Estado, que expressa a ideia de autonomia do indivíduo frente a ele. Esta autonomia também signifi ca que a pessoa passa a ser responsável pela sua vida, subsistência, presente e futuro, não havendo espaço para paternalismos.

Entretanto, com o passar do tempo, percebeu-se que o avanço do liberalismo econômico e político, individualismo e abstenção estatal comprometeram a questão social, pois, enquanto uma minoria gozava da riqueza oriunda da propriedade dos meios de produção, das invenções tecnológicas, das novas formas de produção, a maioria da população vivia em condições precárias, com privações em todos os sentidos. A igualdade meramente formal e a liberdade de ser, ter, poder e fazer geraram deletérias consequências.

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Segundo Bonavides:

Aquela liberdade conduzia, com efeito, a graves e irreprimíveis situações de arbítrio. Expunha, no domínio Econômico, os fracos à sanha dos poderosos. O triste capítulo da primeira fase da Revolução Industrial, de que foi palco o Ocidente, evidencia, com a liberdade do contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração econômica, a que nem a servidão medieval se poderia, com justiça, equiparar. (BONAVIDES, 2001, p.59)

Neste contexto, o trabalho, ou melhor, o trabalhador, era visto como mercadoria, sujeito à lei da oferta e da procura, submetido a condições de trabalho degradantes e a salários que mal lhe permitia alimentar, tudo sem qualquer amparo do Estado.

Tal situação foi gerando uma insatisfação e uma revolta crescentes nos obreiros que começaram a se unir na luta por melhores condições de trabalho. Paralelamente havia a disseminação de ideias socialistas e comunistas, o que fomentava os questionamentos acerca do sistema vigente. “Tal situação era uma ameaça gravíssima à estabilidade das instituições liberais, portanto, à continuidade do processo de desenvolvimento econômico. Urgia superá-la, e isto suscitou uma batalha intelectual e política” (FERREIRA FILHO, 2009, p.43). Segundo Magalhães:

Este individualismo dos séculos XVII e XVIII corporifi cados no Estado Liberal, e a atitude de omissão do Estado frente aos problemas sociais e econômicos vão conduzir os homens a um capitalismo desumano e escravizador. O século XIX vai conhecer desajustamentos e misérias sociais que a revolução industrial vai agravar e que o Liberalismo vai deixar alastrar em proporções crescentes e fascista a liberal-democracia se viu encurralada. O Estado não mais podia continuar se omitindo perante os problemas sociais e econômicos. (MAGALHÃES, 2000, p.29)

Tal quadro foi agravado pela Primeira Grande Guerra, “refl exo de todas as tensões sociais internas causadas pela incontrolável miséria em vários países europeus” (MAGALHÃES, 2000, p.30). Neste momento, concluiu-se que a liberdade existente, meramente formal, servia para encobrir uma realidade de desigualdades e exclusões. Deste quadro, resultou a preocupação com a questão social que ganhava relevo e importância a nível constitucional e internacional.

4.2 Direitos humanos fundamentais de segunda dimensãoOs efeitos gerados pelo liberalismo fi zeram com que o Estado deixasse a postura

negativa, para assumir um papel de mitigador dos confl itos sociais, promotor de políticas públicas, justiça social e paz econômica, pois “de nada adiantava as constituições e a lei

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reconhecerem liberdades a todos se a maioria não dispunha de condições materiais para exercê-las” (SILVA, 1999, p.163).

A Constituição do México de 1917 é a primeira Lei Fundamental a se preocupar com os problemas sociais, estabelecendo a igualdade substancial, normas trabalhistas e abolindo o caráter absoluto da propriedade privada. Em 1919, na Alemanha, a Constituição de Weimar trilhou o mesmo caminho, sendo fortemente marcada pela questão social.

Estava, assim, estabelecido um novo modelo, seguido por diversos outros países, que consagrava um novo rol de direitos, igualmente imprescindíveis para a existência e manutenção de uma vida digna, que foram denominados de direitos humanos de segunda dimensão.

Assim como os direitos individuais, os direitos sociais dizem respeito ao indivíduo, mas não são poderes de agir e sim de exigir, ou seja, exigir do Estado uma conduta positiva em prol do ser humano, pois os direitos a educação, saúde, previdência, trabalho, lazer só se realizam por meio de programas de ação do governo.

Os direitos de segunda dimensão também foram chamados de direitos de igualdade, na medida em que passou a ser responsabilidade do Estado corrigir as desigualdades sociais fáticas, por meio de políticas públicas, garantindo a todos os meios para uma vida digna.

A propriedade agora, para ser legítima, precisa submeter-se a uma função social; a liberdade contratual é mitigada por normas que delineiam o contorno do pacto; a liberdade de expressão pressupõe uma formação intelectual decorrente do acesso à educação; a lei, em alguns casos, confere tratamento desigual para igualar, no plano jurídico, as desigualdades existentes no plano fático; o Estado está presente na velhice das pessoas por meio da previdência; na falta de emprego, ele garante um seguro que permita a manutenção do obreiro até que se recoloque no mercado de trabalho. E assim, os cidadãos podem alcançar um padrão de vida melhor.

Vê-se que é a partir da fruição dos direitos de segunda dimensão que é possível efetivar os direitos da primeira, ou seja, é o acesso à educação, saúde, direitos trabalhistas e previdenciários e lazer que permite que a pessoa se desenvolva e possa criar uma consciência crítica e usufruir das liberdades decorrentes da primeira dimensão. Na mesma linha assevera Ledur:

Os direitos sociais surgiram para conferir vitalidade aos direitos de primeira geração. Pode-se perquirir, por exemplo, acerca da utilidade de alguém possuir o direito de expressão se não reúne condições, oriundas do acesso à educação básica, para se expressar, e vice-versa. Vê-se que as duas categorias de direitos formam vias de mão dupla. Conclui-se que a efetividade de uns e outros exige atuação complementar e não excludente. (LEDUR, 1998, p.163)

Neste período, os direitos humanos começam a se internacionalizar, em especial com a criação da OIT – Organização Internacional do Trabalho –, em 1919, pessoa jurídica

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de Direito Internacional Público, de caráter permanente, responsável pela proteção do trabalhador em nível mundial mediante o estabelecimento de um padrão digno e humano de trabalho. Segundo Ferreira Filho (2009), os direitos sociais7 foram consagrados em 1919 e reiterados após a 2ª Guerra Mundial, mas seu coroamento se deu com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em que direitos fundamentais de primeira – liberdades – e os de segunda dimensão – os direitos sociais – passaram a conviver lado a lado, de maneira harmônica e interdependente.

Com a internacionalização dos direitos humanos de primeira e segunda dimensões, em face do contexto pós-guerra e da maior ligação entre as Nações, começa a se desenvolver a necessidade da estipulação de um novo rol de direitos essenciais ao homem, relacionados aos povos e à humanidade, baseados na noção de solidariedade e fraternidade.

4.3 Direitos humanos fundamentais de terceira dimensãoSensibilizadas pelas atrocidades ocorridas no segundo confl ito mundial e pelas

injustiças decorrentes dos regimes totalitários, as Nações viram a necessidade do estabelecimento de direitos humanos de caráter coletivo e supranacional, marcados pelo signo da solidariedade entre os povos.

Os seres humanos, inseridos em uma coletividade, passam a ter o direito à proteção de bens essenciais à manutenção da vida em sociedade em âmbito regional e mundial, a exemplo do meio ambiente, da paz e do desenvolvimento. Segundo Ferreira Filho:

O reconhecimento dos direitos sociais não pôs termo à ampliação do campo dos direitos fundamentais. Na verdade, a consciência de novos desafi os, não mais à vida e à liberdade, mas especialmente à qualidade de vida e à solidariedade entre os seres humanos de todas as raças ou nações, redundou no surgimento de uma nova geração – a terceira – dos direitos fundamentais. (FERREIRA FILHO, 2009, p.57)

Os direitos de terceira dimensão estão relacionados à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade, à comunicação e à autodeterminação dos povos. Tem por fi nalidade precípua o bem-estar dos grupos e baseia-se na ideia de solidariedade.

A titularidade destes direitos é difusa, dizendo respeito a toda a coletividade e não a uma pessoa individualmente considerada, devendo ser respeitados pelos Estados, tanto em relação a seus pares quanto em relação ao seu povo.

7 Segundo José Luiz Quadros Magalhães (2000, p.31), “o Direito do Trabalho é o Direito Social por excelência.”

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Ao contrário do que acontece com os direitos de primeira e segunda dimensões, segundo Sarlet (2009, p.49) a maioria destes novos direitos carece de reconhecimento na seara constitucional, estando em fase de consagração no âmbito do direito internacional, por meio de tratados e outros documentos transnacionais.

A responsabilidade dos países no que tange à sua efetivação extrapola as barreiras nacionais e ganha relevo internacional.

4.4 Direitos humanos fundamentais de quarta e quinta dimensões Não há consenso acerca da existência de direitos de quarta e quinta dimensões,

mas, partindo-se do pressuposto de que os direitos humanos têm cunho histórico, em determinado momento a sociedade mundial pode considerar certos bens e valores tão importantes e essenciais à vida humana, individual e coletiva, que mereçam ser alçados ao patamar de direitos humanos fundamentais.

Segundo Sarlet (2009, p.53), “as diversas dimensões que marcam a evolução do processo de reconhecimento e afi rmação dos direitos fundamentais revelam que estes constituem categoria materialmente aberta e mutável”, assim, mostra-se plenamente possível o reconhecimento de novas dimensões de direitos humanos, desde que eles sejam essenciais à vida e ao desenvolvimento do homem.

Nas palavras de Bonavides (2010, p.569), “a globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta dimensão, que, aliás, correspondem à derradeira fase de institucionalização do Estado social” e dizem respeito às bases jurídicas e ao contorno de direitos relacionados a tecnologia e genética.

Neste rol de direitos, para Lenza (2013), incluem-se os direitos à democracia (direta), informação e pluralismo.

Em 1997, foi adotada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos em que os países signatários se comprometeram a buscar uma conciliação entre o avanço da tecnologia e os direitos do homem8.

Já os direitos humanos de quinta geração, defendida sua existência por alguns autores a exemplo de Bonavides (2010), diriam respeito à paz. Esta deveria ser tratada como um direito autônomo em uma geração específi ca em face da violência em grande escala, terrorismo e ameaças de guerra que assolam a humanidade. A sua inserção em uma dimensão autônoma representaria a importância que o tema pressupõe.

8 Dados disponíveis em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_19/IIIPAG3_19_1.htm. Acesso em: 14/02/2014. E em: http://www.theoria.com.br/edicao0310/a_teoria_geracional_dos_direitos_do_homem.pdf#sthash.ZroIELmt.dpuf. Acesso em: 14/02/2014.

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5 O DIREITO DO TRABALHO COMO EXPRESSÃO DE DIREITOS HUMANOSEm face das atrocidades cometidas contra o homem, em especial decorrentes das

grandes guerras, viu-se a necessidade de se reconhecer a dignidade humana como um valor e princípio fundamental.

Este valor foi consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, documento que reconheceu a dignidade humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. No plano constitucional, a Alemanha, em 1949, foi a primeira a reconhecer a dignidade da pessoa como núcleo dos direitos fundamentais do cidadão.9

A Constituição brasileira de 1998 deixou claro ser a dignidade humana o princípio e o fi m maior de todo o ordenamento jurídico, mas, em 1946, o texto da Norma Fundamental10 já fazia referência à dignidade, que estava diretamente vinculada ao trabalho. Segundo Ledur, “a primeira forma de referência à dignidade humana em texto constitucional brasileiro ocorreu de forma associada ao trabalho” (1998, p.24).

Segundo Maria Celina Bodin de Moraes (2006, p.118), a dignidade humana é o supraprincípio que confere unidade axiológica à ordem jurídica e deve ser aplicado na recriação dos institutos jurídicos: “será ‘desumano’, isto é, contrário à dignidade humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o sujeito de direitos) à condição de objeto”. Desse modo é que, fazendo opção axiológica pela dignidade da pessoa humana, a CR/88 enuncia a predominância das situações jurídicas existenciais sobre as patrimoniais:

(...) o atual ordenamento jurídico, em vigor desde a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, garante tutela especial e privilegiada a toda e qualquer pessoa humana, em suas relações extrapatrimoniais, ao estabelecer como princípio fundamental, ao lado da soberania e da cidadania, a dignidade humana. Como regra geral daí decorrente, pode-se dizer que, em todas as relações privadas nas quais venha a ocorrer um confl ito entre uma situação jurídica subjetiva existencial e uma situação jurídica patrimonial, a primeira deverá prevalecer, obedecidos, dessa forma, os princípios constitucionais que estabelecem a dignidade da pessoa humana como valor cardeal do sistema. (MORAES, 2006, p.145)

Nesta ordem de ideias, mostra-se a dignidade humana como centro dos direitos humanos fundamentais que encontra no trabalho um dos meios de sua concretização.

Entretanto, não é qualquer trabalho que confere dignidade à pessoa, mas sim aquele exercido nos moldes da legislação especial que tem por fi nalidade a melhoria das condições de vida e da pactuação da força de trabalho e a inserção socioeconômica de

9 Neste sentido assevera Ledur (1998, p.85).10 Art. 145 – CR/46: A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano. Parágrafo único – A todos é assegurado trabalho que possibilite existência digna. O trabalho é obrigação social.

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parte signifi cativa da população que carece de riqueza material acumulada e que, por este motivo, vive do seu próprio trabalho.11

O Direito do Trabalho é o ramo do Direito que tem como objeto central a promoção da dignidade do trabalhador, através de normas que possibilitem a melhoria das condições de trabalho e confi ram um “patamar civilizatório mínimo”12 aos obreiros. É ele também o responsável pela distribuição mais equânime dos proventos decorrentes dos avanços tecnológicos e do capitalismo.

Ainda, o Direito do Trabalho permite que o trabalho exercido proporcione condições melhores de vida e desenvolvimento para o ser humano, promovendo a sua dignidade, sendo, assim, uma das maiores expressões dos direitos humanos fundamentais por qualifi car a prestação de serviços.

Nesta ordem de ideias podemos concluir que os direitos humanos fundamentais, o princípio da dignidade da pessoa humana, o Direito do Trabalho e o trabalho mostram-se interligados.

A partir do momento em que a dignidade da pessoa humana se torna o eixo central dos direitos humanos, mostra-se o Direito do Trabalho13 como um dos melhores instrumentos para sua promoção.

É por meio do trabalho prestado com respeito ao Direito do Trabalho que a maioria das pessoas destituídas de riqueza tem a oportunidade de, além de garantir o sustento próprio e o de sua família, melhorar a sua condição de vida. É através dele que se pode prover uma educação e saúde de melhor qualidade, adquirir bens de consumo, ocupar um espaço socialmente reconhecido, realizar projetos e, consequentemente, desfrutar de um padrão de vida digno e humano.

O Direito do Trabalho humaniza o capitalismo sem peias e permite a inserção do indivíduo na sociedade mediante a partilha de ganhos decorrentes deste sistema. Segundo Delgado:

Esse padrão básico de dignidade social, econômica e profi ssional é, na sociedade capitalista, conferido, classicamente, à maioria das pessoas pelo Direito do Trabalho. A história do capitalismo ocidental demonstra que não se criou ainda neste sistema de desigualdade melhor padrão de inserção da grande massa dos indivíduos no mercado econômico senão por meio da norma justrabalhista, do Direito do Trabalho. (DELGADO, 2004a, p.375)

11 Além desta função, Maurício Godinho Delgado (2009) assevera que o Direito do Trabalho tem caráter progressista, modernizante e político conservador. 12 Expressão cunhada por Maurício Godinho Delgado (2009).13 Segundo Ledur (1998, p.149), “as mudanças econômicas vêm expondo à mais absoluta insegurança aqueles que necessitam de trabalho. Diante desse quadro, impõe-se ao Direito que sinalize quais as opções que o legislador e o administrador devem assumir para a afi rmação dos direitos fundamentais sociais. Ou isso se dá com a garantia de proteção a quem precisa trabalhar para prover a sua existência, ou então o Direito será identifi cado com fórmulas vazias, como mero servo dos benefi ciários da concentração da riqueza e poder.”

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Complementa o autor dizendo que por meio deste rol de normas tuitivas é possível se fazer justiça social e distribuição de renda:

[...] é pela norma jurídica trabalhista, interventora no contrato de emprego, que a sociedade capitalista, estruturalmente desigual, consegue realizar certo padrão genérico de justiça social, distribuindo a um número signifi cativo de indivíduos (os empregados), em alguma medida, ganhos do sistema econômico. (DELGADO, 2007, p.122)

De acordo com Ledur, “o direito a um posto de trabalho, com remuneração condigna, constitui condição sine qua non para que a imensa maioria dos indivíduos possa exercer o direito fundamental que está no princípio de todos, o direito à própria vida” (1998, p.167), e, acrescente-se, um posto de trabalho onde há a fruição de Direitos Trabalhistas, que cerca o trabalhador de normas que lhe permite viver dignamente.

O mesmo autor assevera que “[...] somente na medida em que as pessoas puderem prover dignamente a seu sustento e ao de sua família, estarão aptas a infl uírem decisivamente na conformação do seu espaço vital” (1998, p.96), o que nos faz concluir que o exercício dos direitos fundamentais depende da existência de uma vida digna, que é alcançada por meio do trabalho resguardado pelo Direito Laboral.

Neste contexto, podemos afirmar que “a existência digna está intimamente relacionada ao princípio da valorização do trabalho humano. Assim, a dignidade da pessoa humana é inalcançável quando o trabalho humano não merecer a valorização adequada” (LEDUR, 1998, p.95), e esta valorização, reitere-se, é alcançada por meio do cumprimento e aprimoramento das normas trabalhistas. Nas lições de Delgado:

O emprego, regulado e protegido por normas jurídicas, desponta, desse modo, como o principal veículo de inserção do trabalhador na arena socioeconômica capitalista, visando a propiciar-lhe um patamar consistente de afi rmação individual, familiar, social, econômica e, até mesmo, ética. (DELGADO, 2004b, p.36)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 23, preceitua que “toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana”, e, esta remuneração é alcançada via Direito do Trabalho, que protege e visa à melhoria das condições sociais do trabalhador e lhe confere um rol de direitos construídos a partir do princípio da proteção.14

14 Informa o princípio da proteção que o direito do trabalho estrutura em seu interior, “com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossufi ciente da relação empregatícia – o obreiro, visando retifi car (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho” (DELGADO, 2009, p.107).

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Afi rma Ledur (1998, p.91) que “o Direito é uma ciência normativa e social. Deve, em consequência, recolher na realidade normativa a fonte inspiradora para dar à dignidade da pessoa humana o conteúdo reclamado”, assim, o Direito do Trabalho infere da realidade o importante papel que o trabalho exerce na sociedade e se ocupa de protegê-lo, promovendo a dignidade da pessoa humana e, por consequência, os direitos humanos.15

Analisando o passado, que em muitos aspectos se repete no presente, podemos observar a exploração, a miséria e a exclusão decorrentes de um contexto em que se busca repelir a lei trabalhista. A ausência de lei, a fl exibilização, a desregulamentação, a primazia da autonomia da vontade entre partes desiguais, todos estes fatores geram deletérios efeitos na sociedade,16 pois, o trabalho e o Direito do Trabalho deixam de cumprir com o seu papel de promotores da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos fundamentais.

Já dizia o Abade Francês Henri Dominique Lacordaire (1802-1861), que “entre o forte e o fraco, entre o rico e pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta”,17 ou seja, o Direito do Trabalho, sempre pautado no princípio da proteção, que é o pilar sobre o qual ele se estrutura e desenvolve, é imprescindível para a existência de uma vida digna com o gozo dos direitos humanos fundamentais.

Assevera Magalhães (2000, p.15) que “muitas características da sociedade romana estão ainda presentes entre nós, mais notadamente a existência de valores que colocam o patrimônio privado em escala valorativa maior do que a própria vida humana”. Neste sentido pode-se observar uma retomada na contemporaneidade da prevalência do individualismo, materialismo e da busca incessante pelo lucro em detrimento das questões sociais. O neoliberalismo corporifi ca esta realidade e já mostra as mazelas decorrentes de crises, desemprego em massa e pressões fi nanceiras mundiais.

Para humanizar este sistema capitalista de produção, o cumprimento das leis trabalhistas aparece como uma máxima, pois, como se buscou demonstrar, é o Direito do Trabalho que qualifi ca a realização do labor como um dos melhores instrumento de realização da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos fundamentais.

15 O mesmo autor, com base na doutrina de Alexy, assevera que a dignidade não é garantida quando a pessoa é humilhada, discriminada, perseguida, desprezada ou encontra-se desempregada. A partir da ideia aqui defendida, pode-se acrescentar que também há ofensa à dignidade da pessoa humana quando os direitos trabalhistas não são cumpridos. É possível visualizar na seara laboral um baixo índice de cumprimento voluntário das normas trabalhistas, fato que pode ser atribuído a diversos fatores. Uma das formas de se alterar a realidade é através do Processo, pois, quanto mais célere e efi caz for a prestação jurisdicional, menos interessante será para o empregador deixar para pagar as verbas judicialmente. Neste contexto, as tutelas de urgência, evidência e metaindividual, se mostram úteis a esta fi nalidade. 16 Cumpre salientar que fora dos moldes do Direito do Trabalho, o poder aquisitivo dos trabalhadores e a arrecadação tributária diminuem o que é prejudicial ao próprio sistema. Maurício Godinho (2009) afi rma que o Direito do Trabalho tem uma função política conservadora, na medida em que esse ramo jurídico especializado confere legitimidade política e cultural à relação de produção básica da sociedade contemporânea.17 Disponível em: http://portal2.trtrio.gov.br:7777/pls/portal/docs/PAGE/GRPPORTALTRT/PAGINAPRINCIPAL/JURISPRUDENCIA_NOVA/REVISTAS%20TRT-RJ/049/15_REVTRT49_WEB_RENATO%20ABREU.PDF. Acesso em: 15/02/2014.

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O caráter tuitivo do Direito do Trabalho, a sua capacidade de distribuir renda, sua feição de ação afi rmativa e todos os benefícios decorrentes de um trabalho prestado sob o seu manto podem gerar uma sociedade mais justa, humana e solidária.

Segundo Comparato (2001, p.57), deve haver uma “consciência ética coletiva, a convicção, longa e largamente estabelecida na comunidade, de que a dignidade da condição humana exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstância”, e a dignidade humana, como valor supremo, deve ser respeitada e concretizada via Direito do Trabalho.

6 CONCLUSÃOAo longo da história da humanidade, podemos observar a consagração de um

rol de direitos essenciais para que o homem, individual ou coletivamente considerado, tenha uma vida digna.

Os referidos direitos foram denominados de direitos humanos fundamentais exatamente porque imprescindíveis à vida, manutenção e ao relacionamento da pessoa humana.

Para sua melhor compreensão, foram classifi cados em gerações, sendo três as clássicas: primeira – direitos individuais; segunda – direitos sociais; e terceira – direitos coletivos de fraternidade.

A importância destes direitos é tão grande que eles estão consagrados em textos internacionais, o que justifi ca a nomenclatura humanos, e nas constituições de diversos países, donde decorre a terminologia fundamentais.

Por meio do seu gozo, busca-se o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da pessoa humana, sem os quais ela não vive com dignidade, se realiza e não tem condições de se afi rmar dentro da sociedade.

Neste contexto emerge o trabalho como instrumento de acesso do obreiro a uma vida melhor e, por consequência, digna. Entretanto, não é qualquer labor que é capaz de conferir dignidade ao ser humano, mas apenas aquele prestado com observância das normas trabalhistas.

O Direito do Trabalho é uma das maiores expressões dos direitos humanos fundamentais na medida em que humaniza o capitalismo sem peias, proporcionando a divisão dos ganhos decorrentes deste sistema com aqueles que são destituídos de riqueza e dependem da sua capacidade física e intelectual para sobreviver.

Este ramo especial do direito é responsável por distribuir renda e possibilitar ao trabalhador gozar de uma vida mais digna na medida em que, por meio do trabalho, prestado sob o manto protetivo das normas trabalhistas, o obreiro passa a ter uma melhor remuneração, sua vida, saúde e integridade são protegidas, ele possui condições de se inserir no mercado de consumo e custear uma educação, moradia e saúde de melhor qualidade.

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A dignidade humana e a melhoria da condição de vida do obreiro são concretizadas através de um trabalho prestado à luz do Direito do Trabalho.

Conclui-se, pois, pela necessidade de manutenção e defesa deste ramo do direito composto de normas tuitivas que visa retifi car (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio fático existente na relação entre empregado e empregador, por ser ele uma expressão dos direitos humanos com capacidade de conferir uma vida digna ao ser humano.

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A intrincada aplicação da regra da razoabilidade na teoria alexyana

Virginia Junqueira Rugani Brandão

RESUMOA cultura jurídica brasileira se apraz na distinção entre princípios e regras em função do

grau da norma. Assim, todas as normas consideradas fundamentais ao sistema jurídico serão consideradas princípios. Logo, a razoabilidade é utilizada pela doutrina jurídica como princípio. Resta saber se, à luz das principais teorias estrangeiras e nacionais essa norma é regra ou princípio e com qual natureza o Supremo Tribunal Federal aplica essa norma e se o faz de forma coerente. Para tanto, estudaram-se as teorias de Robert Alexy e Geraldo Ataliba, confrontando-as com as decisões tomadas pelo STF. Assim, concluiu-se que, conforme a teoria que analisa a estrutura da norma quando da aplicação, a razoabilidade é regra e o STF comete um equívoco na medida em que utiliza a nomenclatura de princípio, mas aplica a razoabilidade segundo o critério de subsunção, próprio das regras.

Palavras-chave: Razoabilidade. Princípios. Regras. Supremo Tribunal Federal.

The troubled application of the rule of reasonableness in Alexy’s theory

ABSTRACTThe Brazilian legal culture prefers a distinction between rules and principles based on degree.

Therefore, the law considered fundamental to the judicial system will be designed as principle. Reasonableness is also used as a principle. The main goal is to know, based at the most known theories – national and aliens – if the reasonableness is a rule or a principle and which of those the Brazilian Supreme Court enforces and if it does coherently. In order to understand that, the article studied the theories of Robert Alexy and Geraldo Ataliba, comparing them with decisions taken by the Supreme Court. The conclusion was that the reasonableness is a rule, based at the theory that analyses the structure of the law at the application moment. Also, the Brazilian Supreme Court makes a mistake when uses the terminology “principle”, but applies as a rule following the subsumption.

Keywords: Reasonableness. Principles. Rules. Brazilian Supreme Court.

1 INTRODUÇÃOA razoabilidade é comumente empregada no Brasil como princípio inerente ao

próprio sistema normativo democrático que viabiliza a preservação dos Direitos e Garantias Fundamentais. Aplicada em todos os ramos do Direito, a razoabilidade signifi ca

Virginia Junqueira Rugani Brandão é Mestranda em Direito Público pela PUC Minas. Pesquisadora/extensionista do Núcleo Jurídico de Políticas Públicas – NUJUP. Assessora Jurídica da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana de Minas Gerais – SEDRU.

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a busca por uma compreensão lógica do ordenamento jurídico, visando a adequação entre meio e fi nalidade de determinada conduta. Conforme Alexandre de Moraes:

O princípio da razoabilidade utiliza-se do meio-termo aristotélico, que, conforme Kelsen, é norma de justiça, ou seja: Como norma referida ao modo de tratar os homens, surge também o preceito geral do comedimento, a ideia de que a conduta reta consiste em não exagerar para um de mais nem para um de menos, em manter, portanto, o áureo meio-termo. (MORAES, 2009, p.878)

Contudo, é possível que se considere a razoabilidade como regra, ao entendê-la não como um princípio ponderável em si, mas como uma técnica ou um critério utilizado na interpretação e aplicação do Direito, e é exatamente essa questão que se pretende levantar com este artigo.

Com efeito, a cultura brasileira tem o hábito de transformar normas consideradas de grande relevância em princípios, ocasionando uma verdadeira banalização de princípios (SILVA, 2003). Isso difi culta o trabalho hermenêutico de interpretação e aplicação do Direito, haja vista que a norma da razoabilidade é utilizada para interpretar outras normas, funcionando como base argumentativa de decisões judiciais. Um forte exemplo desse mau uso é o recorrente sincretismo metodológico presente em algumas doutrinas e fundamentações jurídicas.

Assim, pretende-se elucidar a natureza da razoabilidade a partir de teorias nacionais e estrangeiras que abarcam o tema, apontando para o cuidado que o jurista deve ter em não misturar teorias incompatíveis ao aplicar essa norma.

Em última análise, este estudo objetiva não esgotar o tema, haja vista que são inúmeras as teorias acerca da diferenciação entre regras e princípios, mas apenas instigar a discussão sobre a natureza da razoabilidade, gerando um incômodo acadêmico em contrapartida à excessiva comodidade em relação ao tratamento dessa norma como princípio.

2 O QUE É RAZOABILIDADE?A razoabilidade é um termo aberto que revela diversos sentidos. Pode-se dizer que

razoabilidade signifi ca a racionalidade possível do direito, impregnada de critérios de valorização decorrentes da experiência humana individual ou coletiva, frequentemente associada ao senso comum. Ou, ainda, a razoabilidade pode ser confundida com ponderação ou proporcionalidade estrita. Outros a entendem como um sentido genérico de proibição da arbitrariedade, aplicado como critério de apuração do respeito à igualdade ou ao devido processo legal (SAMPAIO, 2013, p.457).

O Supremo Tribunal Federal utiliza a razoabilidade com três diferentes sentidos, identifi cados a partir de sua jurisprudência: proporcionalidade (instrumentalidade),

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coerência e correspondência com a realidade, correspondência com o que é razoável (SAMPAIO, 2013, p.458).

O constitucionalista brasileiro Celso Antônio Bandeira de Mello identifica a razoabilidade como princípio, e assim o define sob o enfoque do Direito Administrativo:

Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das fi nalidades que presidiram a outorga da competência exercida. (…) Com efeito, o fato de a lei conferir ao administrador certa liberdade (margem de discrição) signifi ca que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade de situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas. (...) Em outras palavras: ninguém poderia aceitar como critério exegético de uma lei que esta sufrague as providências insensatas que o administrador queira tomar; é dizer, que avalize previamente as condutas desarrazoadas, pois isto corresponderia irrogar dislates à própria regra de Direito. (MELLO, 2002, p.91)

No mesmo sentido, o autor Alexandre de Morais define como princípio da razoabilidade, “aquele que exige proporcionalidade, justiça e adequação entre os meios utilizados pelo Poder Público, no exercício de suas competências, e os fi ns por ela almejados, levando-se em conta critérios racionais e coerentes” (MORAIS, 2009, p.879).

A Promotora de Justiça do Estado da Bahia, Rita Tourinho (2009), entende por razoabilidade administrativa, a legitimidade de exercício de um poder que se comporta razoavelmente. Segundo ela, não basta o cumprimento da lei no seu aspecto formal, mas é necessário que se observe o aspecto de substancialidade da lei, para que exista uma perfeita adequação entre a previsão legal e o que é realizado para a sua aplicação. Assim, agir razoavelmente é fazê-lo com coerência, conforme previsão legal e sem fugir à fi nalidade imposta (interesse público), de forma que o agente público não pode permitir que suas convicções, seus preconceitos e outros fatores de ordem pessoal infl uenciem seu julgamento na prática do ato administrativo.

Em sua “Teoria dos Princípios”, Humberto Ávila (2007, p.151-160) atribui três acepções à razoabilidade, conforme o sentido atribuído ao uso da norma: equidade, ao harmonizar a norma geral com o caso individual; a congruência, ao exigir a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação; e a equivalência, no momento onde houver uma equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

Há de se atentar para o fato de que uma parte relevante da doutrina brasileira entende que razoabilidade e proporcionalidade são sinônimos.1 Outra parte entende

1 Como o doutrinador Pedro Lenza (2009).

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que razoabilidade é gênero, sendo a proporcionalidade uma de suas vertentes,2 e ainda, uma terceira linha, segundo a qual a proporcionalidade seria mais ampla que a razoabilidade.3

Este trabalho fi lia-se ao último entendimento, do qual perfi lha Virgilio da Silva. Para o autor, a regra da proporcionalidade diferencia-se da razoabilidade não só pela sua origem, mas também pela sua estrutura. A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e tem ela uma estrutura racionalmente defi nida, com subelementos independentes – a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito – que são aplicados em uma ordem pré-defi nida, diferentemente da razoabilidade, cuja origem é inglesa (SILVA, 2002).

Silva cita Luis Roberto Barroso, afi rmando que a exigência de razoabilidade traduz-se na exigência de compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fi ns visados, bem como a aferição da legitimidade dos fi ns. A primeira exigência é chamada de razoabilidade interna, e a segunda, de razoabilidade externa. Logo, o conceito de razoabilidade, na forma como exposto, corresponde apenas à primeira das três sub-regras da proporcionalidade, isto é, apenas à exigência de adequação. A regra da proporcionalidade é, portanto, mais ampla do que a regra da razoabilidade, pois não se esgota no exame da compatibilidade entre meios e fi ns (SILVA, 2002, p.33).

Nesse diapasão, considerando um breve conceito de norma jurídica usualmente aceito como estrutura do Direito na qual estão gravados preceitos que compõem a Ordem Jurídica visando organizar a sociedade e o Estado em busca da justiça e do bem comum, poder-se ia considerar a razoabilidade como norma jurídica implícita.4

Diz-se implícita por não encontrar seu fundamento em um dispositivo legal do direito positivo, mas por decorrer logicamente da estrutura das normas compatibilizadas com as diretrizes constitucionais.

Resta saber se tal norma teria natureza de princípio ou regra e quais as implicações disso para o direito brasileiro.

3 A RAZOABILIDADE SOB ENFOQUE DAS TEORIAS QUE DIFERENCIAM PRINCÍPIOS E REGRASA tentativa de distinguir normas entre princípios e regras não é recente. Contudo,

o assunto ganhou a relevância a partir da abordagem de autores estrangeiros como o professor alemão Robert Alexy, que estuda a estrutura qualitativa das normas.

2 A exemplo, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2011)3 Como Helenilson Cunha Pontes (2000) e Virgilio Afonso da Silva (2002).4 Em sentido contrário José Afonso da Silva (2002, p.693) afi rma estar o princípio da “proporcionalidade razoável” consagrado enquanto princípio constitucional geral e explícito de tributação, traduzido na norma que impede a tributação com efeitos de confi sco (artigo 150, IV).

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Lado outro, imprescindível mencionar a literatura jurídica nacional sobre o tema, que tradicionalmente distingue a natureza das normas a partir do grau de abstração, generalidade ou fundamentalidade das mesmas. Neste sentido, o capítulo abordará a teoria de Geraldo Ataliba como representante da teoria tradicional brasileira.

3.1 A teoria de Geraldo AtalibaNas obras escritas pelo doutrinador brasileiro, não é difícil perceber a distinção

entre princípios e regras segundo o grau de relevância e até hierarquia dos mesmos. Fortemente infl uenciado pelo espírito libertador face à ditadura militar, Ataliba discorre sobre princípios com facilidade, compreendendo-os como normas integradoras do sistema constitucional, verdadeiras linhas mestras do sistema jurídico que apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (ATALIBA, 1985, p.6).

Assim, seja em nível constitucional ou infraconstitucional, há uma ordem hierárquica que “faz com que as regras tenham sua interpretação e efi cácia condicionada pelos princípios” (ATALIBA, 1985, p.6).

O autor não chega a considerar eventuais confl itos, colisões ou antinomias, haja vista que considera o sistema jurídico sempre em prefeita harmonia com a Constituição Federal, especialmente ao princípio constitucional da república. Assim, as divergências são apenas aparentes:

Se, em dada situação, surge aparência de divergência entre uma regra e um princípio – antes de qualquer outra coisa – o intérprete deve dar à regra interpretação harmoniosa e coerente com as exigências do princípio. O que se não consente, é que seja, por qualquer forma, negado, diminuído, contrariado ou esvaziado por força de simples regra. (ATALIBA, 1985, p.12)

Junto com o autor em estudo, a ideia de princípios como normas mais fundamentais do sistema e regras como concretização dos princípios é compartilhada por Eros Grau, Celso Antonio Bandeira Mello, José Afonso da Silva, dentre outros (SILVA, 2003).

Nesse diapasão, na visão da doutrina tradicional brasileira, a razoabilidade é um princípio, diante da sua importância e exigência para coerência do ordenamento jurídico.

3.2 A teoria de Robert AlexySegundo o autor alemão, “a distinção entre regras e princípios é a base da

teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2008, p.85).

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A tese correta a realizar tal distinção seria aquela que sustenta que entre princípios e regras não existe apenas uma diferença gradual, mas uma diferença qualitativa. Toda norma ou é uma regra ou um princípio.

Assim, as regras são comandos defi nitivos, que são sempre satisfeitos ou não. Se uma regra vale, deve-se fazer exatamente aquilo que ela exige: nem mais, nem menos. Regras contêm determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível.

Segundo Alexy, “um confl ito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz em uma das regras uma cláusula de exceção que elimine o confl ito ou se pelo menos, uma das regras for declarada inválida” (ALEXY, 2008, p.92).

Na teoria de Alexy, as regras têm caráter defi nitivo prima facie, já que nem todas as regras de exceção são defi nidas a priori, mas é possível que se estabeleçam a partir de um confl ito, com base em um princípio por trás da regra que a sustente, e a partir da superação do princípio formal do ordenamento jurídico. Deve-se atentar, no entanto, que tais casos apresentam-se como excepcionais.

Para exemplifi car uma norma com qualidade de regra, na nota de rodapé n. 25 da obra “Teoria dos Direito Fundamentais”, Alexy utiliza o § 5º, 1, do Código de Trânsito alemão, segundo o qual ultrapassagens são possíveis pela esquerda ou pela direita. No entanto, o autor ressalta que a característica de poder ser ou não ser cumprida não se limita, contudo, a esse tipo de regras, pois existem ainda regras que exigem que um determinado grau de cuidado seja satisfeito:

Ela não depende do fato de que a ação obrigatória (proibida, permitida) somente pode ser realizada ou não realizada. Mesmo as regras que prescrevem ações que podem ser realizadas em diferentes graus podem ter aquela qualidade. Isso ocorre também quando um determinado grau da ação ou do comportamento é obrigatório (proibido ou permitido). Um exemplo são as prescrições que se referem a condutas imprudentes. O que se exige não é um grau máximo de cuidado, mas um determinado grau de cuidado, dependendo do ramo do direito que se trate. Embora seja possível que surjam dúvidas, em casos individuais, sobre qual é o grau de cuidado exigível, isso é algo possível na aplicação de qualquer norma e não representa nenhuma peculiaridade. Para o esclarecimento dessas dúvidas exige-se exatamente que se decida se o grau de cuidado exigido pelo dispositivo foi satisfeito ou não. Esse questionamento é típico das regras. (ALEXY, 2008, p.91)

Lado outro, os princípios são mandados de otimização, pois ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Assim, os princípios podem ser satisfeitos em graus variados. Quando colidem, a solução está no sopesamento dos princípios para que se possa chegar a um resultado ótimo a depender das variáveis do caso concreto. Exemplos seriam o princípio da liberdade de expressão e do direito à vida.

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Desta feita, a razoabilidade é regra, pois não há como ser aplicada em meio termo ou seja, não produz efeitos em variadas medidas. Ao contrário, é aplicada de forma constante por subsunção.

Esse foi o raciocínio utilizado por Virgilio da Silva em seu trabalho sobre a teoria de Robert Alexy, denominado “O proporcional e o razoável”, no qual ele chega a conclusão de que, segundo o teórico alemão, a razoabilidade é uma sub-regra da regra de proporcionalidade (SILVA, 2002, p.33).

Com efeito, na nota de rodapé n. 84 da obra “Teoria dos Direito Fundamentais”, consta o seguinte apontamento em que Alexy afi rma que os subelementos da proporcionalidade devem ser classifi cados como regras e cita como entendimento semelhante a posição de Haverkate, segundo a qual a forma de aplicação da proporcionalidade e de suas sub-regras é a subsunção:

A máxima da proporcionalidade é com frequência denominada “princípio da proporcionalidade”. Nesse caso, no entanto, não se trata de um princípio no sentido aqui empregado. A adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito não são sopesadas contra algo. Não se pode dizer que elas as vezes tenham precedência, e as vezes não. O que se indaga é, na verdade, é se as máximas parciais foram satisfeitas ou não, e sua não satisfação tem como consequência uma ilegalidade. As três máximas parciais devem ser, portanto, consideradas como regras. (ALEXY, 2008, p.117)

O Professor Marcelo Lima Guerra também compartilha do entendimento acima esposado, observando que a opção pela terminologia “princípio” refl ete a intenção do intérprete em caracterizar as prescrições referidas por aquela expressão como disposições fundamentais do sistema, ressaltando assim o seu caráter vinculativo e não meramente hermenêutico. Trata-se, no entanto, de uma imprecisão terminológica, ou mesmo uma impropriedade conceitual, considerando um contexto em que se adota a distinção entre regras e princípios, atribuindo a cada um desses termos o sentido que lhes dá Robert Alexy. É que sendo adotado o conceito de princípio sugerido pelo fi lósofo alemão, não se pode enquadrar como tal, isto é, como mandado de otimização, as prescrições que integram a regra da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Tais prescrições, ainda que sirvam como critérios orientadores da aplicação de princípios, são corretamente classifi cadas por Alexy como regras, justamente porque se aplicam mediante subsunção (GUERRA, 2003).

A razoabilidade atua como instrumento para determinar que as circunstâncias de fato devam ser consideradas com a presunção de estarem dentro da normalidade, assim, essa norma atua na interpretação dos fatos descritos em regras jurídicas, sendo aplicada de forma constante. Desta forma, uma interpretação diversa das circunstâncias de fato levaria à restrição de algum princípio constitucional.

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Portanto, a regra da razoabilidade, para Alexy, seria usada na maximização dos mandados de otimização, isto é, seria a maneira de se aplicar o dever de otimização ao caso concreto que deve compatibilizar meios e fi ns, e ser coerente com o sistema jurídico.

Percebe-se assim, que muito do que as classifi cações tradicionais chamam de princípio deveria ser, na forma de distinção de Alexy, chamado de regra (SILVA, 2003, p.613).

4 O SINCRETISMO METODOLÓGICO NO ÂMBITO DO STFO Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele

compete, precipuamente, a guarda da Constituição.

A partir do século XXI, o STF assumiu uma posição mais ativa nos quadros dos poderes e do próprio judiciário, abandonando o órgão politicamente morto de outrora. Essa fase “ativista” trouxe refl exos para os métodos de trabalho interpretativo e para sua autocompreensão como Corte Constitucional. Nesse sentido, destaca-se a autorreferência nos votos dos ministros salientando o papel central do Tribunal na promoção da Constituição, apresentando argumentos que se propõem a ser, se não vinculantes, pelo menos utilizados como referências em futuros julgamentos (SAMPAIO, 2013).

Considerando o acima exposto, espera-se que a hermenêutica utilizada na argumentação pelos Ministros seja coerente, não apenas do ponto de vista lógico-dedutivo, mas também sob a visão metodológica. No entanto, no concernente às teorias de regras e princípios aplicadas à norma da razoabilidade, foram identifi cadas metodologias contraditórias contidas em decisões julgadas pelo Tribunal Pleno.

A razoabilidade é frequentemente utilizada pelos julgadores como ponto chave do argumento que irá sustentar a fundamentação da decisão. Há de se remarcar que, não raramente, a invocação da razoabilidade é um mero recurso a um topos de caráter retórico, o que propicia uma aplicação descuidada da norma quanto a sua caracterização em princípio ou regra. Muitas vezes, no corpo da decisão judicial a razoabilidade é acompanhada da terminologia “princípio” e, no entanto, verifi ca-se que seu emprego tem funcionalidade própria de regra, de acordo com a estrutura proposta por Alexy, conforme a subsunção da norma ao caso concreto ou não.

Nos Mandados de Segurança n. 28.594 e 28.603, julgados em outubro de 2011, por exemplo, o princípio da razoabilidade é citado várias vezes durante o acórdão pelos Ministros Carmem Lúcia, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, com o intuito de justifi car ou criticar determinados pontos do mérito, que girou em torno da desclassifi cação dos candidatos com nota inferior a 77 pontos nas provas objetivas do Concurso Público de Provas e Títulos para Provimento de Cargos de Juiz de Direito Substituto do Estado de Minas Gerais.

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Conforme o Ministro Luiz Fux:

À Comissão do Concurso, norteada pelo princípio da razoabilidade, somente caberia tomar a decisão que efetivamente tomou: manter a nota de corte anterior e a precoce lista de aprovados, acrescentando os benefi ciados pelo resultado do julgamento dos recursos. Qualquer outra decisão importaria em prejuízo à legítima expectativa dos candidatos que constavam da primeira lista de aprovados.

Segundo Lewandowski:

O terceiro princípio implícito na Constituição é o princípio da razoabilidade. Não me parece que, a essa altura, seria válido, adequado, legítimo, anularmos o concurso, ou parte dele, ou não permitir que aqueles excluídos pudessem ocupar as respectivas vagas, porquanto foram aprovados. As vagas existem e creio que já estamos diante de uma situação já consolidada (...) E ainda sobraram vagas. Creio que o princípio da razoabilidade se impõe com toda contundência na solução dessa controvérsia.

Em um exame detido, percebe-se que os Ministros utilizam-se da técnica da subsunção e não a otimização para chegar a uma conclusão. Ou seja, a desclassifi cação dos candidatos foi razoável ou não, os meios utilizados são coerentes e adequados ao sistema jurídico ou não. A despeito de denominarem a razoabilidade como princípio, não se percebe qualquer maleabilidade na aplicação em graus dessa norma, no sentido de ser mais ou menos razoável. Não há variados graus de razoabilidade, mas, dentro de uma circunstância fática, determinada ação é adequada aos fi ns que se destina e ao ordenamento ou não.

Da mesma forma, na ADIN 3324 sobre o art. 1º da Lei 9536/97 que trata sobre a transferência de alunos entre escolas privadas e públicas, julgada em dezembro de 2004:

Para Sepúlveda Pertence, “a solução para privilegiar um determinado grupo social deveria ter razoabilidade tal que não ofendesse o princípio da proporcionalidade. (...) Por isso votei dentro do princípio da razoabilidade e proporcionalidade”.

Percebe-se o mesmo padrão na ADIN n. 3112 sobre o Estatuto do Desarmamento, julgada em maio de 2007. Nos termos de Lewandowsky:

As agremiações partidárias requerentes entendem desatendido o princípio da razoabilidade e vulnerado o devido processo legal. (...) Alega-se que o art. 28 vulnera o princípio da razoabilidade, porquanto fi xou idade mínima para a aquisição

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de arma de fogo em 25 anos de idade. Não reconheço qualquer ofensa ao referido princípio pois, alem de ser lícito à lei ordinária prever a idade mínima para a pratica de determinados atos, a norma impugnada, ao meu ver, tem por escopo evitar que sejam adquiridas armas de fogo por pessoas menos amadurecidas psicologica mente ou que se mostrem, do ponto de vista estatístico, mais vulneráveis ao seu potencial ofensivo.

Aliás, a própria doutrina alexyana é utilizada de forma expressa e equivocada no corpo da mesma decisão, como se nota no voto de Gilmar Mendes:

Em outros termos, se a atividade legislativa de defi nição de tipos e cominação de penas constitui uma intervenção de alta intensidade em direitos fundamentais, a fi scalização jurisdicional da adequação constitucional dessa atividade deve ser tanto mais exigente e rigorosa por parte do órgão que tem em seu encargo o controle da constitucionalidade das leis. Esse entendimento pode ser traduzido segundo o postulado do princípio da proporcionalidade em sentido estrito, o qual, como ensina Alexy: pode ser formulado como uma lei de ponderação cuja formula mais simples voltada para os direitos fundamentais diz: quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos justifi cadores dessa intervenção.

Com efeito, conforme entendimento de Virgilio da Silva (2003, p.4), “mesmo quando se diz adotar a concepção de Alexy, ninguém ousa deixar esses “mandamentos fundamentais” de fora das classifi cações dos princípios para incluí-los na categoria de regras”. Assim, cometem sincretismo metodológico na medida em que misturam as teorias de Geraldo Ataliba e Robert Alexy, despreocupadamente.

A título de explicação, segundo Virgilio da Silva (2003, p.625), o sincretismo metodológico consiste na adoção de teorias incompatíveis, como se compatíveis fossem, presente em algumas doutrinas e fundamentações jurídicas de decisões judiciais.

5 CONCLUSÃOAnte o exposto, verifi ca-se que, a depender da teoria a ser aplicada, a razoabilidade

pode ser princípio ou regra.

Segundo a teoria alexyana, a razoabilidade seria regra, pois não há como ser aplicada em meio termo, ou seja, não produz efeitos em variadas medidas. Ao contrário, é aplicada de forma constante por subsunção.

Já a tradição brasileira, consiste em entender como princípios as normas de caráter abstrato e de cunho fundamental ao sistema jurídico. Assim, a norma em estudo é comumente utilizada como princípio pela doutrina pátria.

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Talvez seja essa a razão do Supremo Tribunal Federal recorrentemente denomina a razoabilidade de princípio constitucional implícito ao utilizá-la na fundamentação das decisões. No entanto, a suprema corte usa essa terminologia por comodidade, pois a aplica com estrutura de regra, nos moldes alexyanos. Ou seja, como uma norma a ser subsumida pelo caso concreto ou não, sem variações ou otimizações. E ainda, na mesma fundamentação do acórdão, faz uso expresso da doutrina alexyana. Assim, comete sincretismo metodológico na medida em que mistura as teorias de Geraldo Ataliba e Robert Alexy.

Tal equívoco é percebido mais facilmente nos seguintes acórdãos, todos julgados pelo Tribunal Pleno: MS 28594/DF, Relatora Min. Carmen Lúcia, julgamento em 06/10/2011; MS 28603/DF, Relatora Min. Carmen Lúcia, julgamento em 06/10/2011; ADI 3112/DF, Relator Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 02/05/2007; ADI 3324/DF, Relator Min. Marco Aurélio, julgamento em 16/12/2004.

Conforme a visão de Virgílio Afonso da Silva, não há classifi cação certa ou errada, mas apenas classifi cações metodologicamente coerentes. Não obstante, a distinção de grau entre princípios e regras não parece satisfatória, porque não analisa a estrutura qualitativa no momento da aplicação do Direito, que é o momento mais relevante na vida de uma norma.

Ademais, o hábito dos juristas brasileiros de transformar normas consideradas de grande relevância em princípios facilita a banalização dos princípios, considerados enquanto tais apenas pela citada característica, o que difi culta o trabalho hermenêutico de interpretação e aplicação do Direito.

De toda forma, é a maneira como a norma é aplicada e não sua nomenclatura que efetivamente infl uenciará na caracterização da teoria utilizada. Desta feita, é de se exigir uma aplicação coerente da teoria de regras e princípios pelo Supremo Tribunal Federal, órgão esse que pretende se erigir como principal norteador do trabalho interpretativo constitucional.

As classificações devem ser metodologicamente sólidas para não cair em contradição, assim, ao usar critérios estabelecidos por Robert Alexy é preciso cuidado ao se fazer uma tipologia de princípios.

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A hermenêutica sistêmico-construtiva do direito

Andrey Felipe Lacerda

RESUMOO presente trabalho tem por escopo analisar as mudanças ocorridas no sistema jurídico em

relação à complexidade gerada pelo ambiente social, propondo uma metodologia interpretativa capaz de dar respostas mais coerentes aos problemas hodiernos, sempre à luz de um constitucionalismo normativo, inclusivo e transformador do status quo.

Palavras-chave: Hermenêutica. Direitos humanos. Constitucionalização.

The systemic-constructive hermeneutics

ABSTRACTThe present work has the scope to analyze the changes in the legal system in relation to the

complexity generated by the social environment, proposing an interpretative methodology that is able to give coherent answers to modern-day problems, always from the perspective of a normative constitutionalism, inclusive and transformative of the status quo.

Keywords: Hermeneutics. Human rights. Constitutionalization.

1 INTRODUÇÃOConsiderando o processo de evolução social pautado no constante ganho de

complexidade, pretende-se analisar as grandes transformações ocorridas nos modelos sociais que resultaram na fragmentação de uma eticidade universal e na expansão exacerbada de uma racionalidade instrumental.

Nessa linha, o estudo se volta para a compreensão de um novo modelo de Estado constituído no período do 2º pós-guerra, em nível global e durante o período de redemocratização do Brasil, em nível local, com a promulgação da Constituição da República de 1988. Destarte, pretende-se demonstrar que a estruturação da ordem jurídica passa a se ancorar nas determinações e nos valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e nas prescrições dos direitos fundamentais, o que implica a reorientação de todo o sistema jurídico.

Destarte, no decorrer deste trabalho, pretende-se demonstrar a insufi ciência do método de subsunção do fato à norma, considerando tanto a complexidade social quanto os dilemas morais postos ao intérprete. Nesse contexto, ganha relevo o controle incidental

Andrey Felipe Lacerda é Especialista em Direitos Fundamentais pelo Ius Gentium Conimbrigae – IGC – da Faculdade de Direito de Coimbra (Portugal). Mestrando em Direito pelo PPGD/PUCRS. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

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da constitucionalidade e a atividade interpretativa dos juristas numa hermenêutica sistêmico-constritiva do direito.

2 A SOCIEDADE MULTICÊNTRICA E OS DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO Com o aumento da complexidade da sociedade contemporânea proporcionado pelos

avanços científi cos e pelo ingresso de novos grupos e atores sociais no discurso jurídico, a sociologia do direito constatou que o modelo liberal, no qual se embasava o exercício do Poder Judiciário, entrou defi nitivamente em crise, determinando uma nova visão a respeito da legitimação clássica para atuação dos juízes.

Essa nova hermenêutica jurídica começou a transformar paulatinamente a aplicação do direito, propondo uma nova visão contemporânea do processo,1 segundo a qual o espaço do Poder Judiciário é uma reprodução do atual cenário político-social brasileiro, marcado não só pelas demandas individuais, como também pelas ações coletivas dos vários atores sociais.

Assim, questões como: meio ambiente seguro e sadio, relações consumeiristas, democracia, liberdade de informação, liberdade de expressão, biossegurança, tecnologia da informação, proteção de dados, pluralismo, discriminação, liberdade religiosa, orçamento público, políticas públicas, aborto, liberdade sexual, dentre outras, passaram a permear o dia a dia do Poder Judiciário, levando os tribunais a decidir sobre questões éticas, morais, econômicas, científi cas e políticas.

Para Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2010, p.59):

Afi nal, hoje, o Estado cresceu para além de sua função garantidora e repressiva, aparecendo muito mais com produtor de serviços de consumo social, regulamentador da economia e produtor de mercadorias. Com isso, foi sendo montado um complexo instrumento jurídico que lhe permitiu, de um lado, organizar sua própria máquina assistencial, de serviços e de produção e, de outro, criar um imenso sistema de estímulos e subsídios. Ou seja, o Estado, hoje, se substitui, ainda que parcialmente, ao mercado na coordenação de economia, tornando-se o centro de distribuição da renda, ao determinar preços, ao taxar, ao criar impostos, ao fi xar índices salariais etc. De outro lado, a própria sociedade alterou-se, em sua complexidade, com o

1 Nesse sentido, Peter Häberle formula sua teoria de Constituição como processo público. Assim, A Constituição será o resultado, sempre temporário e historicamente condicionado, de um processo de interpretação conduzido à luz da publicidade. Sua compreensão deve ser pluralística normativo-processual, destinada ao maior número de intérpretes possível, com o objetivo de preencher o conteúdo semântico da “Ordem Quadro da República” (HÄBERLE, 2002) Verifi ca-se também a concepção de um processo sincrético, voltado para uma tutela justa, adequada e efetiva, apta a tutelar os direitos fundamentais. O apego ao formalismo foi deixado de lado e o juiz deve construir a norma a partir da realidade fática, dos direitos em confl ito, utilizando-se do balizamento conferido pelos postulados da proporcionalidade, concordância prática e equidade, entendidos como manifestação do susbstantive due process of law (MARINONI, 2006) .

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aparecimento de fenômenos novos, como organismos internacionais, empresas multinacionais, fantásticos sistemas de comunicação etc.

O direito até então compreendido pelo seu determinismo e completude, acostumado a dar soluções prontas contidas em seus códigos e conceitos, se depara com o Caos. Hoje o sistema jurídico é acionado para dar respostas aos mais variados problemas sociais, que vão desde matérias de extrema expertise e racionalidade técnica, a dilemas morais.

O problema da complexidade e da falta de respostas prontas é abordado por Ricardo Aronne (2006, p.24) ao tratar de complexidade e caos no discurso jurídico:

Complexidade que faz com que os operadores tenham de conhecer minúcias de áreas inesperadas do conhecimento, em função do conteúdo dos processos, não obstante e até mesmo em razão do comparecimento de peritos e assistentes técnicos especializados, em apoio aos mesmos. A palavra fi nal, sobre a sanidade ou paternidade de alguém, pode não vir de um médico nem de um geneticista. Pode vir de um juiz. Pode contrariar integralmente a conclusão de um laudo. Seu preço? Um bom fundamento. Razão. Racionalidade. Seu meio? Sistema e discurso. Remédios? Recursos. Trajetória? Caótica. Medo? Indeterminação. Instabilidade. Alguém gostaria que fosse diferente? A História responde.

Não obstante, o Direito pode ser chamado a responder se o plano de orçamento da União Federal está adequado. A responder se a técnica empregada por um neurocirurgião ao proceder a uma intervenção, foi a mais adequada ou não. Até mesmo se um indivíduo é ou não um bom pai, merecedor da guarda de seus fi lhos. Se o projeto de um veículo foi corretamente desenvolvido ou não e, se não bastasse, se os responsáveis pela empresa tinham ou não consciência disso antes do lançamento do produto no mercado! Observe-se que todas as questões apontadas são, ao menos em tese, cotidianas do operador do Direito. E sempre têm de ser respondidas. Certo ou não, o non liquet, não é possível ao Direito. Pode-se-lhe perguntar da razoabilidade do que evoco. E ele terá de responder. Conforme sua inafastabilidade (art. 5º, XXXV, CF/88), Medo? Vertigem? Não. Caos.

Nesse fl anco, pretende-se analisar a sociedade e o direito pelas lentes de um paradigma sistêmico, que nos permite compreender a complexidade e as mudanças ocorridas na história, as quais se projetam no direito de forma tão intensa que por vezes chegam a ofuscar a visão do jurista.

Para Luhmann o elemento que distingue a sociedade dos outros sistemas (biológico, psíquico, cibernético) é a comunicação, compreendida como qualquer ato de comunicar (gestos, sinais, símbolos, desenhos, linguagem, escrita etc..) que emite uma mensagem sujeita à compreensão. Distinguir signifi ca indicar, pois no momento em que indicamos alguma coisa, estamos diferenciando-a de outras. Ao indicar um sistema, ele se diferencia

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do entorno, transformando todos os outros subsistemas em ambiente. Trata-se de uma teoria que trabalha com a diferença entre sistema e ambiente, essa diferença se dá conforme a perspectiva do sistema indicado. A sociedade contemporânea (pós-moderna), por exemplo, é composta por diversos subsistemas sociais (jurídico, econômico, político, artístico, moral..) que formam o ambiente uns dos outros. Ao indicar um sistema (jurídico, por exemplo) ele se diferencia dos demais (econômico, político, artístico, moral...) que passam a funcionar como o seu ambiente. No ambiente, o fl uxo comunicativo é desordenado e extremamente rico em possibilidades, possibilitando diversas compreensões de uma mesma mensagem, o que difi culta a condensação de sentido.

No paradigma sistêmico a sociedade é compreendida como um grande e complexo ambiente comunicativo, sendo impossível observar e descrever o todo a partir de um único ponto de vista privilegiado. Os sistemas comunicativos funcionam de forma autônoma, sendo assim, não se submetem às verdades e certezas estranhas a sua linguagem, pois cada um deles tem sua função e racionalidade própria, características que possibilitam a evolução e rearticulação necessária para que possam responder às pressões exercidas pelo ambiente. Porém, deve-se ressaltar que este funcionamento não se dá de foram autárquica, isso quer dizer que sua estrutura operativa é fechada, mas que existem pontos de contato onde há uma abertura cognitiva que permite a entrada (input) de um tipo de comunicação estranha a sua racionalidade intrínseca, que será procedimentalizada no seu interior e posteriormente devolvida ao ambiente de forma mais concreta e objetiva (output). Este é o objetivo da teoria, que se volta para a redução da complexidade da comunicação.

Outra proposta sistêmica com a qual também trabalhamos é a de Jürgen Habermas, que traz o conceito adicional de “mundo da vida”, em que impera a “ação comunicativa”. Assim, a sociedade também é compreendida como fl uxo de comunicação, mas, sob a perspectiva habermasiana, esse fl uxo ocorre tanto nos sistemas sociais quanto no mundo da vida. Os sistemas são formados por racionalidades instrumentais (“racionalidade-com-respeito-a-fi ns”), isto é, são esferas de comunicação técnico-científi cas orientadas para a busca do êxito, distinguindo-se em dois subtipos: (i) Ação instrumental, que diz respeito à utilização de objetos para a satisfação de interesses e necessidades humanas, baseada em regras técnicas, sendo defi nida como um tipo de comportamento dirigido a alcançar determinados fi ns por meio do uso de objetos; (ii) Ação estratégica, que ocorre quando há aplicação da racionalidade instrumental às relações interpessoais, implica a escolha racional de uma linguagem para infl uenciar um adversário ou para satisfazer interesses pessoais ou institucionais. No agir estratégico não há alteridade,2 ou seja, o outro não se

2 Alteridade (ou outridade) é a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende do outro. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais afi rmam, a existência do “eu-individual” só é permitida mediante um contato com o outro (que, em uma visão expandida, se torna o Outro – a própria sociedade diferente do indivíduo).Relação de sociabilidade e diferença entre o indivíduo em conjunto e unidade, onde os dois sentidos interdependem na lógica de que para individualizar é necessário um coletivo. Dessa forma eu apenas existo a partir do outro, da visão do outro, o que me permite também compreender o mundo a partir de um olhar diferenciado, partindo tanto do diferente quanto de mim mesmo, sensibilizado que estou pela experiência do contato.Segundo a enciclopédia Larousse (1998), alteridade é um “Estado, qualidade daquilo que é outro, distinto (antônimo de Identidade). Conceito da fi losofi a e psicologia: relação de oposição entre o sujeito pensante (o eu) e o objeto pensado (o não eu)”.

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apresenta ao agente estratégico como sujeito, mas como objeto, meio para a consecução de seus objetivos egocêntricos ou institucionais.

O mundo da vida é um sistema comunicativo diferente, pois nele não impera a “racionalidade-com-respeito-a-fi ns” e sim o “agir comunicativo”, que é voltado para o entendimento intersubjetivo. Isto é, uma forma de discurso onde cada um expressa suas concepções e percepções da cultura, da sociedade e de sua própria personalidade, sem a pretensão de universalidade, voltando-se ao entendimento mútuo, à integração social, à produção da solidariedade sob o aspecto da coordenação da ação e à formação da identidade a partir da relação com o outro. Em suma, é uma forma de interação centrada na alteridade, que visa contrastar diferentes percepções e visões de mundo e permite uma postura crítica na concepção semântica, de signifi cações e conteúdos em torno de valores morais e padrões éticos, permitindo o contato entre a tradição e a inovação cultural.

De acordo com o modelo sociológico descritivo de Luhmann, a sociedade evolui na medida em que suas interações comunicativas se tornam mais complexas, surgindo a necessidade do sistema social alterar seus próprios elementos para se adequar às práticas inovadoras, até então improváveis no seio social. Com o ganho de complexidade das interações sociais, as dúvidas quanto ao comportamento esperado se multiplicam, pois o padrão de conduta expectável passa a admitir outros tipos de comportamento, os quais não eram esperados.

A função dos sistemas sociais é justamente reduzir esta complexidade, proporcionada pelo aumento de possibilidades comportamentais que poderiam se realizar, e, considerando também, que cada comportamento poderia ocorrer de forma diferente3. O comportamento desviante, compreendido como prática inovadora seria, portanto, o elemento precursor da evolução4 social.

Porém, em sociedades segmentárias (pré-modernas) não havia possibilidade para se selecionar o comportamento inesperado, de modo a contrastá-lo com o paradigma

A “noção de outro ressalta que a diferença constitui a vida social, à medida que esta se efetiva através das dinâmicas das relações sociais. Assim sendo, a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e confl ito” disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alteridade acessado em: 16.11.2013.3 Esse é o fenômeno da dupla contingência. Ilustrativamente, podemos imaginar a situação em que um professor, durante sua explanação olha para o seu relógio (ato de comunicar) alguns alunos poderiam compreender esta mensagem da seguinte forma: “O professor não vê a hora de ir embora”, outros poderiam interpretar: “Mas que professor cuidadoso, está planejando o tempo de seu argumento.” Essa contingência, é de mão dupla, pois o professor também tem dúvidas quanto ao que os alunos estão entendo.4 Teorias de evolução trabalham em geral com os conceitos de variação, seleção e reestabilização. O contorno que separa um conceito do outro é o acaso. É o acaso – a negação da causalidade – que defi ne se variações levam a uma seleção negativa ou positiva de uma novidade. Dessa forma, é impossível saber previamente se a reestabilização de um sistema após uma seleção positiva ou negativa irá ou não ocorrer. Seleção não garante bons resultados. A teoria de evolução não é uma teoria do progresso, nem de intervenção, e não há como fazer prognósticos. Evolução de sistemas autopoiéticos signifi ca que qualquer mudança nas estruturas do sistema tem que acontecer em consequência de operações internas do sistema. Isso modifi ca a antiga visão da evolução, fundada na ideia de que sistemas se adaptam ao seu meio. Pelo contrário, o sistema tem que ser adaptado para poder evoluir. O meio somente tem a capacidade de perturbar o sistema que, conforme suas estruturas, percebe essa perturbação e modifi ca dentro da sua própria autopoiesis as suas estruturas. Que essa modifi cação aconteça não é uma necessidade, mas sim uma possibilidade. A seleção das variações geradas em consequência de uma perturbação externa somente terá como resultado uma nova reestabilização do sistema se as novidades puderem ser incorporadas dentro da lógica estrutural e interna do sistema.

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vigente, e, num segundo momento, reintegrá-lo as práticas sociais, tornando as interações comunicativas mais ricas em possibilidades, na medida em que este “comportamento novo” fosse reintegrado às estruturas preexistentes, forçando-as a se rearticular de forma harmônica.

Nas sociedades arcaicas, comunicações inesperadas eram exceções que colocavam em risco a própria estrutura social. O desvio era algo estranho à comunidade, nesse contexto a interação ritualística tem um papel relevante, pois as expectativas eram condensadas através da repetição de praticas que refl etem e modelam os comportamentos cotidianos esperados como evidentes. Nesse modelo, a comunicação se dava precipuamente por meio de interação entre presentes (não havia escrita), o que tornava ínfi ma a probabilidade de um desvio. O baixo grau de variação comportamental e a falta de meios de comunicação (escrita, pintura, livros impressos etc.) favoreciam a reprodução da sociedade de acordo com a tradição, havia, portanto, baixa complexidade, uma vez que não se gerava dúvida quanto ao comportamento do outro e a comunicação era precária, impossibilitando o contraste com outras culturas e paradigmas.

O direito afi rmava-se, em caso de desapontamento das expectativas, por meio da autotutela da vítima ou de seu respectivo clã. Havia uma resposta imediata à ofensa, sendo inconcebível, àquela época, a presença de um procedimento de aplicação normativo-jurídica. O que também favorecia a reprodução do modelo de interações tradicional, pois o comportamento desviante era imediatamente contido. Destarte, inexistia qualquer diferença entre moral, poder, direito, costumes e convencionalismo social. Esse modelo estrutural impedia a variação do comportamento improvável, impossibilitando a seleção de novas condutas aptas a reorientar a prática social.

O direito das culturas pré-modernas (sociedade medieval) consagrou a institucionalização de procedimentos de aplicação jurídica, estabelecendo, portanto, uma diferenciação hierárquica da sociedade, uma vez que a dominação política encontrava-se no topo, pertencendo exclusivamente à camada superior. Verifi cou-se então o ganho de complexidade deste modelo de sociedade, pois o comportamento desviante era avaliado como algo interno à sociedade, a ser tratado por procedimentos jurídicos fundados em representações morais (e, ao mesmo tempo religiosas), validas para todas as esferas da sociedade.

Nesse modelo já se percebe uma evolução, no sentido de ganho de complexidade e formação de novas estruturas, pois tanto a aplicação quanto a execução do direito passaram foram delegadas a um terceiro, com fundamento em normas e valores abstratos, materializados através de um procedimento jurídico. Entretanto, essas as normas e princípios abstratos, de acordo com os quais a atividade aplicadora do juiz se orientava, eram compreendidos como imutáveis, pois o direito era concebido como algo verdadeiro e incontestável. Mesmo com a criação de procedimentos jurídicos, constata-se que, naquela época, as questões jurídicas estavam intimamente vinculadas aos rituais divinatórios5,

5 Isto é, rituais de adivinhações, esforço de predizer coisas distantes no tempo e no espaço, especialmente o resultado incerto das atividades humanas.

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tornado o comportamento desviante algo repudiado tanto pela moral divina, quanto pelo direito, o que tornava extremamente difícil a seleção do comportamento inovador, capaz de mudar paradigmas e concepções de mundo, resultando na estagnação evolutiva da sociedade.

Na transição das culturas pré-modernas para a sociedade moderna, a concepção jusnaturalista desempenhou importante papel evolutivo, no sentido da positivação do direito. A dicotomia entre natural e positivo implicou a delimitação da esfera do direito invariável e do direito variável. Porém, conforme a concepção jusnaturalista, o mutável permanecia subordinado ao imutável.6 A pretensão de validade da decisão legiferante, proferida pelo monarca, expressava-se através da invocação dos princípios jusnaturais e sua autoridade fundava-se na concepção mística de que ele era o representante de Deus na terra. Nesse contexto, o valor moral e ético presente nas normas jurídicas garantiam efetividade máxima ao direito posto, regulando todo o comportamento social. Ainda não se verifi cava a autonomia do direito, que permanecia conectado às construções morais estabelecidas pelas estruturas dominantes da sociedade.

Durante a era pré-moderna o direito, a moral, as concepções do “bom” e do “correto”, assim como os demais valores positivos que orientavam a sociedade fundiam-se com a religião e com o poder, formando um amálgama holístico que proporcionava a estabilidade das estruturas de dominação da sociedade, gerando expectativas de comportamento que se adequassem ao modelo estrutural. Desta forma também se impedia o comportamento desviante, compreendido como algo interno à sociedade, a ser tratado por procedimentos de aplicação jurídica fundados em representações morais e, ao mesmo tempo, religiosas válidas para todas as esferas da sociedade.

A sociedade não era funcionalmente diferenciada, sua estrutura era bipolarizada (diferenciação hierárquica). O “polo de cima”, era composto pelo amálgama da estrutura política de dominação, reproduzido, simultaneamente, com base na diferença entre poder superior e inferior, na semântica moral, constituída com base na distinção (moral) entre o bem e o mal, e também na diferença (religiosa) entre divino e profano.

Esse amálgama prevalecia sobre todas as outras esferas de comunicação da sociedade, que assim permaneciam indiferenciadas, determinadas de fora para dentro. A semântica do bem, apontava, sobretudo, para a parte superior da estrutura de dominação social (política) ocupada pela nobreza, já a semântica do mal referia-se, especialmente, ao polo inferior, expressando-se na plebe. Os “de baixo” só praticam o bem, isto é, condutas avaliadas positivamente pela sociedade, quando atuassem de acordo com os modelos comportamentais que lhes fossem determinados pelos “de cima”, estes, por sua vez, só cometeriam o mal, ou seja, condutas reprovadas pela sociedade se agissem conforme os padrões daqueles. Assim, funcionava a eticidade7 universal que conferia validade a toadas as esferas do agir e do vivenciar, proporcionando estabilidade e segurança para a dominação dos estamentos inferiores.

6 O direito positivo só era válido enquanto se conforma ao direito natural inalterável.7 O termo eticidade é utilizado no signifi cado de moral compartilhada por determinado grupo.

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Destarte, segundo o modelo pré-moderno, as demais esferas de comunicação da sociedade – ciência, arte, direito, economia etc. – estariam subordinadas a esse centro justifi cador, composto por moral impregnada pela religião e dominação política. A arte, o saber, o direito e a economia estavam semanticamente subordinados à diferença entre o bem e o mal, assim como orientados pelos critérios do poder superior ou inferior. Assim sendo, a diferença entre licitude e ilicitude – direito/não direito – não se distinguia nitidamente da diferença entre bem e mal, ao revés confundiam-se. O seu lado positivo conectava-se com a superioridade na dominação e o seu lado negativo, com a inferioridade. O mesmo acontecia com as diferenças “ter/não ter” (economia), “verdadeiro/falso” (ciência) e “belo/feio” (arte).

Após o triunfo dos ideais iluministas (que fomentaram o surgimento das mais diversas racionalidades, em oposição às justifi cações religiosas de compreensão do mundo) e dos movimentos liberais burgueses (os quais derrubaram a concepção de poder teocrático dos soberanos), verifi cou-se o rompimento deste amálgama holístico8 e a consequente fragmentação da sociedade, que passou a ser destituída de um núcleo duro conceitual, que funcionasse como eixo de calibração ético, fi losófi co, religioso, etc. Segundo Marcelo Neves (2009, p.24) a sociedade tornara-se “multicêntrica”:

O incremento da complexidade social levou ao impasse da formação social diferenciada hierarquicamente da pré-modernidade, fazendo emergir a pretensão crescente de autonomia das esferas de comunicação, em termos de sistemas diferenciados funcionalmente na sociedade moderna. Há não só um desintricamento de lei, poder e saber, nem apenas a obtenção da liberdade religiosa e econômica pelo homem, mas um amplo processo de diferenciação sistêmico-funcional.Mediante esse processo, a sociedade torna-se ‘multicêntrica’ ou ‘policontextual’. Isso signifi ca, em primeiro lugar, que a diferença entre sistema e ambiente, desenvolve-se em diversos âmbitos de comunicação, de tal maneira que se afi rmam distintas pretensões contrapostas de autonomia sistêmica. E, em segundo lugar, na medida em que toda diferença se torna ‘centro do mundo’, a policontextualidade implica uma pluralidade de autodescrições da sociedade, levando à formação de diversas racionalidades parciais confl itantes. Falta, então, uma diferença última, suprema, que possa impor-se contra todas as outras diferenças. Ou seja, não há um centro da sociedade que possa ter uma posição privilegiada para sua observação e descrição; não há um sistema ou mecanismo social a partir do qual todos os outros possam ser compreendidos.

A modernidade é marcada pela razão difusa, ou seja, não há um centro da sociedade que possa ter uma posição privilegiada para sua observação e descrição, cada esfera de comunicação torna-se “centro do mundo”. Essa concepção permitiu toda a evolução

8 A diferenciação funcional em face do amálgama holístico – centro moral justifi cador das condutas positivas da sociedade, formado pela política e moral religiosa no topo da pirâmide – ocorre inicialmente no âmbito da economia (a efi ciência lucrativa distingue-se do bem e do politicamente correto) assim como na ciência (já que a busca incessante pela verdade não encontrava mais limites na moral religiosa) e na arte (o “belo” ou esteticamente apropriado não necessariamente se relaciona com a bondade moral-religiosa).

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técnico-científi ca da sociedade, uma vez que a ciência não encontrava limites naquele amálgama holístico (direito-moral-ética-religião). Assim tanto as ciências exatas, quanto a arte, a economia e o direito desenvolveram seus métodos e verdades próprios, permitindo a evolução técnico-científi ca que legou o progresso à humanidade. Porém, segundo Habermas, esse encantamento com a ciência permitiu uma hipertrofi a da razão instrumental em detrimento do agir comunicativo.

Destarte, sob os olhares do paradigma moderno, o mundo do “dever-ser” permanece trancafi ado numa linguagem jurídica subjugado ao sistema político-econômico e os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade aprisionados num discurso fi losófi co ou político. Essa cisão entre valores e direito foi utilizada por Kelsen para a construção de um sistema normativo puro, dotado de cientifi cidade, uma vez que possibilitava a previsibilidade e a certeza de que as decisões políticas do ente soberano fossem obedecidas. Questões como legitimidade e compatibilidade com a Constituição eram decididas pela verifi cação formal de competência para edição de atos normativos, bem como pela observância do correto procedimento.

Essa autonomia entre os subsistemas sociais fomentada pela racionalidade difusa permitiu, gradativamente, a imposição do poder mais efi caz e o isolamento dos valores em seu próprio universo, o que permitiu a ascensão de regimes totalitaristas como o comunismo, fascismo e o nazismo, na medida em que este poder tem a possibilidade de corromper o funcionamento autônomo dos demais subsistemas.

As correntes da metodologia jurídica da modernidade, fundadas na razão instrumental, composta pelo escalonamento de regras como fator de coordenação da atividade de proteção do direito e determinante do conteúdo da sua juridicidade, ignoram a própria essência do direito, reduzindo-o à lei positiva. Valores jurídicos (justiça, bem comum, liberdade, segurança) não conseguem ser mais do que construções formais, vazias de signifi cado. Isso implica, em ultima instância, a crise de efi cácia social de alguns direitos (efetividade), uma vez que normas plenamente efi cazes, isto é, aptas a produzir efeitos terminam por não produzir efeito algum em determinados setores da sociedade.

Somente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 as fronteiras entre os valores e o mundo do “dever-ser” começam a se entrelaçar, com a inserção de valores em documentos essencialmente jurídicos, como a Declaração e suas respectivas Convenções e Protocolos, a Comunidade Internacional ciente das atrocidades cometidas pelos regimes totalitários e da exclusão social gerada pelos arquétipos da modernidade, optou por editar uma nova programação para o sistema jurídico em nível global, forçando as ordens constitucionais a se readequarem segundo os seus princípios e propósitos na busca da promoção e respeito da dignidade da pessoa humana.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948

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Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,

Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,

Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafi rmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

A Assembleia Geral proclama

A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. (Grifo nosso)9

Sob essa ótica, verifi camos que atualmente existe uma conexão entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e nossa ordem Constitucional, em virtude dos seguintes dispositivos: (i) Art. 4º, II – que estabelece a prevalência dos direitos humanos no âmbito das relações internacionais; (ii) Art. 5º,§ 2º que diz expressamente que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes

9 Declaração Universal dos Direitos Humanos disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm acessado em 16.11.2013.

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do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, os quais formam um “bloco de constitucionalidade” para além do texto da Constituição, signifi cando que no controle de constitucionalidade, essencial para a construção da norma no novo paradigma, os tratados de direitos humanos são diretamente aplicáveis por força do art. 5º, § 1º, bem como pelo compromisso assumido pelo Brasil de não invocar o seu direito interno para deixar de aplicar pactos internacionais (art. 27, Convenção de Viena Sobre o Direito dos tratados); (iii) Art. 5º, § 3º – que, segundo a melhor doutrina,10 impede a denúncia no âmbito internacional, dos tratados ratifi cados com quorum equivalente aos de emenda constitucional.

Nesse sentido, sábia é a lição de Flávia Piovesan (2011, p.92):

Ao romper com a sistemática das Cartas anteriores, a Constituição de 1988, ineditamente, consagra o primado do respeito aos direitos humanos, como paradigma propugnado para a ordem institucional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica interna ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos. A prevalência dos direitos humanos, como princípio a reger o Brasil no âmbito internacional, não implica apenas o engajamento do País no processo de elaboração de normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas sim a busca da plena integração entre tais regras na ordem jurídica interna brasileira. [...] Ao prescrever que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais” a contrario sensu, a Carta de 1988 está a incluir, no catálogo de direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Esse processo de inclusão implica a incorporação pelo Texto Constitucional de tais direitos (...)

Ademais, verifi camos também uma conexão em nível substancial, proporcionada pela construção de uma gramática jurídica comum, isto é, pela uniformização do sentido de conceitos jurídicos em nível transnacional, que independe do poder central dos Estados. Sob essa perspectiva, além dos tratados, costumes, convenções e protocolos, existe um conteúdo normativo que emerge em virtude da participação de novos atores sociais, fomentada pela tecnologia da informação e pelos novos meios de comunicação entre ausentes. O processo envolve a ampliação de visões convergentes de justiça, a multiplicação de normas similares em diferentes ordens jurídicas e a aproximação entre os intérpretes do direito.

10 Cf. TRINDADE, Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Ed. 12. São Paulo: Saraiva, 2011. p.92. e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. São Paulo: RT, 2012.

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Nessa linha, Marcelo Dias Varela (2013, p.166) esclarece que:

O direito se internacionaliza a partir da uniformização de categorias jurídicas entre os subsistemas internacionais e entre os direitos nacionais. Expressões que antes tinham múltiplos signifi cados ou não eram objeto de tratamento jurídico passam a ter um tratamento uniforme. O primeiro passo para um diálogo é conhecer o signifi cado das expressões utilizadas pelos demais interlocutores, o que se pode realizar no mundo jurídico com o aprofundamento do direito comparado, processo pelo qual se aprende o conteúdo normativo em outros territórios, ou pela construção de novos conceitos, comum a vários territórios, típicos do processo de interação.

Com efeito, verifi camos pelo preâmbulo do texto constitucional que a sociedade brasileira assumiu um compromisso transformador “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.

Em decorrência dessa escolha o poder constituinte originário de 1988, erigiu um novo modelo institucional: O Estado Social e Democrático de Direito que vincula todos os seus cidadãos, instituições e agentes, públicos ou privados na consecução de objetivos fundamentais: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

3 A HERMENÊUTICA SISTÊMICO-CONSTRUTIVADestarte, diante da complexidade social, bem como da opção pela normatividade

dos valores, verifi ca-se a necessidade de uma hermenêutica construtiva que consiga ressignifi car conceitos como: propriedade, contrato, interesse público, crime, capacidade contributiva, isonomia, devido processo legal, desenvolvimento, meio ambiente sadio etc. à luz dos valores contidos na Constituição e nas declarações e tratados de direitos humanos, aplicando-os a uma relação de fato que perturba o sistema jurídico, para então determinar qual a consequência jurídica que deverá ocorrer.

Entendemos que sob o novo paradigma do constitucionalismo normativo, a lógica dos conceitos se inverte. Não levamos a norma aos conceitos, a norma é o produto fi nal da hermenêutica, os conceitos devem ser ressignifi cados à luz dos valores substanciais da Constituição da República: dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, fraternidade, solidariedade etc. Os quais ganham sentido através da perturbação externa de outros subsistemas sociais (política, moral, religião, economia..) e do mundo da vida, onde impera a ação comunicativa construída intersubjetivamente. Dessa forma o sistema jurídico é cognitivamente aberto às

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valorações externas, mas operacionalmente fechado, uma vez que utiliza métodos, procedimentos e racionalidade específi ca.

Assim, fi ca evidente que a lógica subsuntiva do fato à norma é insufi ciente para tratar das questões que exigem uma resposta do sistema jurídico, mas, de outro giro, também é preciso descobrir novos métodos para dar segurança e estabilidade ao sistema jurídico, evitando o decisionismo antidemocrático. O cidadão e os demais operadores do direito precisam saber qual caminho o intérprete seguirá, para que possam fazer suas projeções e concluir qual a possível consequência jurídica.

Assim, compreendendo a hermenêutica como trajetória, partimos dos fatos que geram expectativas de comportamento, as quais, caso não se ajustem à frustração, buscam ser estabilizadas pelo sistema jurídico. Essas expectativas são levadas aos conceitos substancializados e posteriormente ao ápice do sistema: a Constituição11. Após ganharem o sentido jurídico, essas expectativas dessem, passando por princípios mais concretos e por vezes colidentes, como o da autonomia privada, liberdades econômicas, liberdades de expressão, privacidade, segurança etc. Depois, após maior concretude, descem pelas leis complementares, ordinárias, passando pelos diplomas codifi cados até reencontrarem o plano da relação fática inicial. Após esta escala piramidal, que envolve uma via ascendente (do concreto para o abstrato) e outra descendente (do abstrato para o concreto) chega-se a norma individual para o caso. Dentro desta pirâmide se faz o controle incidental da constitucionalidade, que envolve a análise das possibilidades fáticas: custo da pretensão, limites orçamentários, formas mais ou menos efetivas de garantir a pretensão e, a dialética dos conceitos: afastando sentidos que não estão de acordo com a substância do sistema como um todo, encontrando-se novos signifi cados e novas perspectivas para os valores constitucionais, encontra-se, assim, o verdadeiro Direito, rico e disperso em sua complexidade.

Exemplifi cando grafi camente:

CONSTITUIÇÃO E TRATADOS DE D.H.

DIREITO

CONCEITOS

FATOS

LC, Leis Ordinárias, Codifi cação

NORMA INDIVIDUAL

11 No ápice do sistema também se encontram os tratados de direitos humanos, por disposição do art. 5º, §2º da CRFB,

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Desta forma, o direito se abre para os outsiders,12 tanto o proprietário quanto o sem-terra ou sem teto recebem proteção jurídica, o direito fundamental à moradia, o direito humano ao desenvolvimento, a função social da propriedade, o estatuto da cidade e os meios de desapropriação por interesse social ou para reforma agrária aliados aos institutos de usucapião garantem outra dimensão protetiva no sistema. A validade de um contrato não se sujeita exclusivamente ao dogma do pacta sunt servanda que se aproveita da ignorância da parte mais fraca e utiliza entrelinhas e cláusulas leoninas para garantir privilégios ao detentor do poder econômico, os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, permitem a revisão contratual por onerosidade excessiva e, até mesmo, a declaração de nulidade do contrato.

No direito administrativo, o próprio conceito de interesse público deve ser relido à luz dos objetivos fundamentais da república, do direito humano ao desenvolvimento, do direito fundamental à moradia, à educação etc. Destarte, torna-se ilegítimo qualquer ato administrativo que sob o manto daquele conceito se desvirtue desses valores. No processo civil, o conceito de devido processo legal se volta para a instrumentalidade das formas, permite certa fl exibilidade entre segurança e celeridade, a depender do objeto da causa, adaptando-se o procedimento as exigências de fato (ex. tutela antecipada, cautelar, remoção do ilícito, etc.). Já no que concerne ao direito ambiental, verifi ca-se que o art. 225 da CRFB cc art.5º, §2º permite uma constante renovação do conceito “meio ambiente ecologicamente equilibrado” que ganha sentido através das descobertas científi cas e tratados internacionais, as quais se substancializam nos princípios da precaução e prevenção. No âmbito criminal, verifi ca-se que com a construção de uma tipicidade conglobante (formal e material), avalia-se a efetiva lesão a um bem juridicamente tutelado, afastando a consequência jurídica em crimes de bagatela e, de outro lado, torna o direito penal sensível às pressões do ambiente social no que diz respeito aos crimes contra a Administração Pública, ao vedar a aplicação do princípio da insignifi cância.

Esse preenchimento do sentido normativo do sistema jurídico se dá conforme as pressões exercidas pelo ambiente (formado pelos outros subsistemas sociais: economia, religião, ciência, biologia e pelo “mundo da vida”) Se, por exemplo, o sistema econômico não se adéqua conforme a valoração mais intensa dos princípios sociais colidentes provocará maiores perturbações no sistema jurídico (por meio dos princípios que garantem valores liberais, como a livre iniciativa, por exemplo) a fi m de estabilizar suas expectativas em termos normativos.

Nesse ponto, se destaca a tarefa do intérprete, pois é ele quem defi ne qual será o sentido prevalecente. Neste novo paradigma o intérprete deve ser como Hermes que ciente da sua responsabilidade, calça suas sandálias aladas e traz para o cidadão a melhor síntese por meio do direito, buscando a paz e a harmonia, mas também conduzindo as almas podres para o reino de Hades. A teoria sistêmica nos mostra como os sistemas sociais funcionam e demonstram a função quase que divina dos direitos fundamentais, pois em tempos de moralidade difusa, a fundamentação última do comportamento social é dada pelo respeito e promoção deles.

12 Expressão utilizada por Ricardo Aronne para defi nir os excluídos da proteção jusprivatista.

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Destarte, fi ca claro que a culpa das mazelas sociais não é do sistema, mas do intérprete, o fundamento do sistema é o intérprete, o abismo é o intérprete. Não precisamos mudar o sistema, mas o seu mensageiro. Como dizia Pontes de Miranda: “O que é preciso é que os princípios estejam nos espíritos e na vida. Nem basta que haja livros nas bibliotecas, nem que se tracem belos programas. Levados aos espíritos, deles descem à vida (MIRANDA, 1892).

4 CONCLUSÃOA partir das premissas estabelecidas de uma sociedade hipercomplexa e da

normatividade dos valores e princípios fundamentais, pode-se concluir que o método subsuntivo não responde mais às exigências do sistema jurídico. Destarte, cumpre a doutrina desenvolver uma nova metodologia que consiga lidar com esta nova complexidade, considerando sempre o homem na sua existencialidade, avaliando o contexto social e observando as construções de outras áreas do conhecimento. Em pleno século XXI não é possível extrair respostas apenas pelos textos e conceitos jurídicos pré-moldados, não faz sentido, não é coerente.

Ademais, concluímos que não basta compreendermos o sistema se não mudarmos os seus intérpretes, a efi cácia e a efetividade da Constituição dependem de intérpretes conscientes, isto é, daqueles que se deparam com a angústia e passam a compreender seu deveres para com o cidadão e a Constituição.

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Da epistemologia à hermenêutica: compreendendo as ações afi rmativas

Jahyra Helena P. dos SantosIvanna Pequeno dos Santos

RESUMOAs políticas de cotas, sejam elas em decorrência de cor, sexo ou deficiência, são objeto

de debates sociais e jurídicos. As ações afirmativas utilizadas com a pretensão de diminuir as desigualdades e favorecer grupos historicamente segregados são chamadas de discriminação às avessas. O princípio da igualdade é objeto de questionamento, seja por aqueles que se manifestam favoravelmente ou contra tais políticas. Mostra-se, assim, relevante compreender a hermenêutica aplicada e, para isto, são abordados os vários métodos de interpretação que podem ser empregados para acolhimento de mencionada política pública. Inicia-se com o conceito de epistemologia, que já estabelece a ciência do direito como passível de refutações. Percebe-se que a linguagem expressa o conhecimento sobre determinado assunto, e este conhecimento embasará a interpretação e aplicação do Direito. Registram-se os métodos de interpretação de Alexy, Ávila, Friedrich Müller, bem como o entendimento de Dworkin sobre a justiça das cotas. Conclui-se com o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a destinação de cotas no ensino superior.

Palavras-chave: Epistemologia. Hermenêutica. Igualdade. Ações afirmativas.

Epistemology of hermeneutics: Understanding affirmative action

ABSTRACT Quota policy whether because of color, sex or disability are subject to social and legal

debates. Affirmative actions are used with the intention to reduce inequalities and promote historically segregated groups are called reverse discrimination. The principle of equality is subject to questioning, either by those who manifest favor or against such policies. It is shown, therefore, important to understand hermeneutics applied, and it examines the various methods of interpretation that can be used to host the mentioned public politics. It begins with the concept of epistemology, which has already established the science of law and subject to refutation, one realizes that the language expresses knowledge about a subject and this knowledge will stress out the interpretation and application of law. Join the methods of interpreting Alexy Avila, Friedrich Muller and understanding Dworkin about the justice of the quota. It concludes with the understanding of the Supreme Court on the allocation of quotas in higher education.

Keywords: Epistemology. Hermeneutics. Equality. Affirmative Action.

Jahyra Helena P. dos Santos é professora da Universidade Regional do Cariri-URCA, mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.Ivanna Pequeno dos Santos é professora da Universidade Regional do Cariri-URCA, mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

Direito e Democracia v.14 n.2 p.82-95 jul./dez. 2013Canoas

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1 INTRODUÇÃOA Constituição pátria de 1988 trouxe uma proposta de objetivos a serem alcançados

pelo Estado Democrático de Direito. Dentre estes, encontram-se os princípios que foram consagrados historicamente e que carecem de concretização, visto que se irradiam para as diversas leis infraconstitucionais, servindo de parâmetro para situações práticas, quando da aplicação da hermenêutica.

O texto constitucional é fruto de uma sociedade pluralista, abriga, portanto, uma variedade de ideias e interesses contrapostos. Esta característica também se manifesta nos seus intérpretes, pessoas com compreensões diversas, que tentam esclarecer, estabelecer ou delimitar o signifi cado de algum dispositivo.

Este artigo propõe-se a fazer uma análise da discussão da política de cotas, sua interpretação e posterior aplicação. Neste intuito, inicia-se com a compreensão do que é ciência, pontuando a importância da imaginação, entendida como refl exão sobre algum assunto, e o acreditar no que se investigam partes desta sucessão de fazer e refazer construir e desconstruir determinado conceito. O Direito, como ciência, não pode fi car alijado do processo de refutações, não deve consistir numa simples signifi cação de palavras.

Para a compreensão do acolhimento das ações afi rmativas, discorre-se sobre o princípio constitucional da igualdade, em torno do qual orbitam os debates das políticas públicas, registrando a sua presença nos diversos textos constitucionais.

Estudam-se alguns instrumentos que são usados pelos intérpretes para a concretização das Ações Afi rmativas, como a distinção entre regras e princípios e o seu alcance, observando-se o entendimento de Alexy (2008) e Ávila (2012), e as considerações de Dworkin (2005) sobre a justiça de tais medidas, para concluir-se com a concretização de Friedrich Muller (2005).

As políticas de cotas signifi cam um importante passo em direção à desobstaculização de práticas discriminatórias, alcançando pessoas que, por serem de determinada cor, sexo ou portadoras de alguma limitação física, foram impossibilitadas de ter acesso à educação ou ao trabalho.

Cumpre lembrar que são usadas em diversos países, que as justifi cam como medidas de reparação para as classes historicamente discriminadas. A sua fi nalidade é a aplicação de uma justiça distributiva, são objeto de debates sociais e jurídicos.

No Brasil, a política de cotas para negros, na Universidade de Brasília, foi discutida em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADP 186, interposta pelo partido Democratas – DEM. O Supremo Tribunal Federal entendeu tratar-se de medida de reparação, de inserção dos historicamente discriminados, e teria uma função pedagógica, ao ensinar, aos que discriminam, a dividirem espaços com indivíduos de cor, gênero, condição social diversa, bem como em relação aos discriminados, ao possibilitar enxergar pessoas com sua mesma cor, sexo ou limitação ocupando um ambiente que antes não lhes eram permitidos.

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2 DA EPISTEMOLOGIA À HERMENÊUTICA DO DIREITOInicia-se este trabalho com a abordagem da epistemologia porque não se faz

a hermenêutica sem um conhecimento prévio de algum assunto. Segundo Ludwig Wittgenstein que os limites da linguagem do indivíduo signifi cam os limites do seu mundo. Assim, o processo de conhecimento antecede a interpretação.

A palavra epistemologia, de origem grega, é composta de duas partes. Epistéme, signifi cando ciência, verdade, e logos, estudo, discurso. Unindo-as, ter-se-á o estudo da ciência.

Este artigo contextualiza, inicialmente, o Direito como uma ciência social, que carece da pluralidade de pessoas para que possa se desenvolver. Esta, como as demais ciências, usa a investigação para obter o conhecimento sobre determinado objeto.

Recorda-se que o saber pode se manifestar de várias formas, científi co, vulgar ou fi losófi co. Faz parte da vivência do homem a investigação dos elementos que o cercam.

Com a função de explicar o objeto pesquisado surgem as teorias, que o fazem ora baseadas no sujeito, ora no objeto. O empirismo credita ao objeto, do qual sairia o vetor epistemológico, chegando até ao sujeito, ente racional. O momento do conhecimento se concretizaria no contato do sujeito com o objeto. O racionalismo atribui ao sujeito o fundamento do conhecer. A razão forneceria os elementos que deságuam no conhecimento. As críticas a estas teorias resultam na epistemologia dialética, que põe a ênfase na relação concreta do ato de conhecer, quando da sua elaboração. Marques Neto (2001, p.94) afi rma:

O que caracteriza a ciência é muito mais o enfoque teórico sob o qual cada uma procura explicar a realidade, do que os objetos concretos de que se ocupam, ou mesmo os métodos que empregam. De fato, cada disciplina científi ca estuda uma realidade a partir de um referencial teórico que permite ao pesquisador construir não apenas seu método de trabalho, más também o próprio objeto a ser investigado.

Denota-se a importância de posições e contraposições, dependendo do enfoque teórico sobre a realidade investigada, para se construir a ciência. Alguns elementos como a imaginação e a crença contribuem para esta conclusão.

Na elaboração do conhecimento, toma-se como origem, principalmente do conhecimento científi co, a imaginação. O pesquisador refl ete sobre determinados fatos, discernindo sobre as possibilidades destes se relacionarem com o seu trabalho, a imaginação tem o papel de impulsionar a pesquisa. Juntamente na edifi cação deste processo, faz-se presente a crença, sendo primordial para o pesquisador, acreditar no objeto de sua busca, para retirá-lo do potencial ao concreto.

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O conhecimento científi co, no entendimento de Popper (1975), manifesta-se como algo distinto do conhecimento comum, rompendo, inclusive, com o substrato deste. Constrói-se, cientifi camente, um dado, com o autoquestionamento, refutações e retifi cações. A ciência é construída na falsifi cabilidade.

No que pertine às ciências sociais, estas percorreram um longo caminho até obterem credibilidade em relação às suas construções teóricas e metodológicas. Suscitava-se que o seu objeto de estudo se concentrava na sociedade, objeto cambiante, o que difi cultava a pesquisa. E dentro destas ciências que se coloca o Direito.

O Direito é ciência que carece do social para se desenvolver. Não se faz necessário regulamentar condutas, se não existe pluralidade de pessoas, com interesses distintos. Em nenhuma situação poder-se-á estudar o Direito subtraindo a sociabilidade do homem.

Dentre as acepções da palavra Direito, percebe-se que ele pode ser estudado como ciência, a epistemologia, ou como norma, e ainda como justo. Buscam, porém, todas as acepções da palavra que o Direito seja aplicado da melhor e maior forma possível, seja regulando as relações sociais, seja concretizando a justiça.

Percebe-se, porém, que, muitas vezes, a compreensão do Direito requer uma interpretação, a procura do alcance do enunciado, para uma efetiva aplicação. Este papel é desenvolvido pela hermenêutica, palavra derivada do grego hermeneuein, que Streck (2007) defi ne como a busca de tradução de algo que não é compreensível, para uma linguagem acessível. Palmer (1969, p.24) assim dispõe: “... as várias formas da palavra sugerem o processo de trazer uma situação ou uma coisa, da inteligibilidade a compreensão”.

Estes conceitos remetem ao papel que o intérprete deve desempenhar, Grau (2005, p.82) aborda essa função:

[...] a atividade do interprete – quer julgando, quer cientista – não consiste em meramente descrever o signifi cado previamente existente dos dispositivos. Sua atividade consiste em construir esses signifi cados. Em razão disso, também não é plausível aceitar a ideia de que a aplicação do Direito envolve uma atividade de subsunção entre conceitos prontos antes mesmo desse processo de aplicação.

A atividade do intérprete, nesta construção de signifi cados, pode se desenvolver baseada em alguns elementos fornecidos pela hermenêutica. No estudo em questão, que compreende as ações afi rmativas, observa-se o aporte fornecido pelas regras e princípios, que dão fundamento à sua utilização.

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3 REGRAS E PRINCÍPIOSA distinção entre regras e princípios, no entender de Alexy (2008, p.91-92) pode

ser assim percebido:

Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, más também das possibilidades jurídicas. Já as regras são normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível.

Percebe-se o alcance que deve ser dado a cada uma das normas constitucionais. Os princípios podem ser satisfeitos em graus variados, e as regras ou se aplicam ou não se aplicam.

O autor ainda chama a atenção para o caráter prima facie das regras e princípios. Por exigirem que algo seja realizado na maior medida possível, os princípios não teriam um mandamento defi nitivo, mas prima facie. Inversamente, as regras exigem o cumprimento de seus enunciados, a sua prescrição.

Cumpre lembrar que, historicamente, existem princípios já consagrados que foram acolhidos pela Constituição Federal de 1988, e que, juntamente com as regras, representam as normas constitucionais. No entanto, a previsão constitucional não signifi ca a pronta concretização do enunciado, faz-se necessária uma ação do Estado para aplicação dos princípios. É isso que se observa em relação ao princípio da igualdade, que dá sustentáculo à implantação de políticas afi rmativas. Barroso (2011, p.05) contextualiza, historicamente, a força dos princípios na Constituição.

A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de refl exões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a defi nição das relações entre valores, princípios e regras, aspecto da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edifi cada sob o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação do Direito e da ética.

O autor defende que os princípios e regras são integrantes da nova hermenêutica e serviriam de fórmulas, no intuito de compreender o desejo da Constituição. Os

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métodos gramaticais, históricos, sistemáticos e teleológicos não seriam descartados, apenas acrescidos por outros elementos.

Neste diapasão, o caráter aberto do texto constitucional não mais comportaria uma hermenêutica tradicional, os princípios demarcam seu espaço, quando da procura do sentido da norma. Peter Haberle (1997, p.13) assim dispõe:

Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos ‘vinculados às corporações’ e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nelas envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.

Nota-se que foram modifi cados os elementos que levam ao conhecimento da norma, bem como os intérpretes do texto constitucional; este papel se estendeu a outros participantes ou formadores da sociedade.

Ávila (2013) aborda os postulados, que são condições essenciais para apreciação de determinado objeto, e que teriam um funcionamento diverso dos princípios e das regras. Os princípios têm caráter fi nalístico, com aspiração de complementar algo. As regras têm o desejo de decisão, são descritivas. Em relação à aplicação dos postulados, assim se posiciona no que pertine à igualdade (2013, p.204): “O postulado da igualdade estrutura a aplicação do Direito quando há relação entre dois sujeitos em função de elementos (critério de diferenciação e fi nalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fi m.)”.

Analisados esses conceitos distintivos entre regras e princípios, faz-se uma contextualização da igualdade e sua elevação a princípio constitucional. Porém, para se chegar ao princípio da igualdade, parte-se da dignidade da pessoa humana, seguindo assim a metodologia de Carmem Lúcia Antunes, no seu voto, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186, em que se discutiu a política de cotas para negros na Universidade de Brasília.

3.1 Princípio da dignidade da pessoa humanaOs fundamentos deste princípio estão no ideário cristão e no pensamento clássico.

O pensamento cristão coloca o homem como a imagem e semelhança de Deus; no pensamento clássico é a racionalidade que caracteriza o homem. Estes elementos ou elevam o homem, quando o colocam como imagem e semelhança de Deus, daí ser

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passível de dignidade, ou o trazem para terreno bem fi rme, quando lhe atribuem a razão como elemento singular entre as demais espécies.

Cumpre lembrar que este valor precede o Estado e o Direito, e tem a pessoa como destinatário e objeto. Ganha positividade com a atual signifi cação, em decorrência do nazismo na Segunda Guerra Mundial. Encontrando espaço nas diversas ordens constitucionais.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 reconhece este princípio como fundamental. Toda interpretação a ser feita deve tê-lo como parâmetro, em decorrência de sua posição no texto constitucional. Servirá como luzeiro para subsunção e integração da norma. Rocha (1999, p.03) assim pontua:

A justiça humana, aquela que se manifesta no sistema de Direito e por ele se dá a concretude, emana e se fundamenta na dignidade da pessoa humana. Essa não se funda naquela, antes é dela fundante. Dignidade é o pressuposto da ideia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente a vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal.

Trata-se de princípio intransmissível, indisponível e absoluto. Mesmo que a pessoa não tenha consciência de sua vida, quer por problemas psíquicos, quer físicos, é portadora de dignidade. A dignidade não se encontra apenas onde é reconhecido e assegurado pelo Direito, mas por ser um valor que o antecede.

Este princípio tem forte ligação com a igualdade, porém Rocha (1999, p.06) esclarece o campo de cada um deles:

Tem-se acentuado que a dignidade da pessoa humana irmana-se e, eventualmente até se confunde com a igualdade jurídica. Se é da humanidade que emerge o fundamento daquele princípio é na humanidade igual de todas as pessoas que se põe a base desse último princípio. Dito de outra forma, a humanidade que é idêntica em berço (o qual pode ser, contudo, dessemelhante) não altera a igualdade da pessoa, o que a sepultura testemunhal igual em qualquer canto do mundo. Mas conquanto seja exato que a igualdade funda-se na dignidade que a humanidade da pessoa assegura, não parece correto pensar-se haver confusão de princípios, pois aquele é mais amplo em seu conteúdo e em sua efi cácia como fundamento do Direito. Aliás, a dignidade da pessoa humana é fundamento do princípio da igualdade jurídica sem que haja absorção de um pelo outro.

Percebe-se que o intérprete deve trabalhar com a ideia de que todos têm igual dignidade, valor amplo, que impede a existência de preconceitos que agridam uns em detrimento de outros.

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3.2 Princípio da igualdadePodem ser abordados três momentos deste princípio. A primeira ideia era a

desigualdade; posteriormente igualdade de todos perante a lei. Esta seria aplicada, igualmente, a todos os integrantes de uma camada social, e, por momento fi nal do princípio, a observância das desigualdades. Do momento inicial, transcreve-se o entendimento de Rocha (1996, p.89):

A sociedade cunhou-se ao influxo de desigualdades artificiais, fundadas especialmente, nas distinções entre ricos e pobres, sendo patenteada e expressa a diferença e a discriminação. Prevaleceram, então, as timocracias, os regimes despóticos, assegurando-se privilégios e sedimentando-se as diferenças, especifi cadas em lei. As relações de igualdade eram parcas e as leis não as revelavam, nem resolviam as desigualdades.

Torna-se nítida a diferença entre os possuidores de riquezas e os desprovidos dela, não havia necessidade de igualar essas pessoas que pertenciam a patamares diferentes em decorrência de sua riqueza.

Na Idade Média, regida por uma sociedade feudal, os servos e senhores tinham seus lugares bem estabelecidos, os que possuíam terra eram senhores e os que nela trabalhavam eram servos.

A emergência da Idade Moderna traz o foco para as cidades. A riqueza gira em torno do comércio e surge a burguesia, reivindicando uma igualdade de tratamento. Assim, observa-se a igualdade perante a lei, igualdade formal, sem olhar as desigualdades reais.

Neste viés, as Constituições que surgem no século XVIII contêm, em seu bojo, o princípio da igualdade. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, expressa que os homens nascem e mantêm-se livres em direitos, preceito que é um dos fundamentos do Estado Moderno. As Constituições brasileiras não podiam fi car neutras em relação aos acontecimentos mundiais. No que pertine aos valores de igualdade, eles foram acolhidos nas várias constituições que o país possuiu, porém, com uma feição diversa da que é reconhecida hoje.

3.2.1 O princípio da igualdade nas constituições brasileirasMesmo vigendo em uma sociedade escravocrata, a igualdade se manifesta na

Constituição de 1824, pontuado, pelo contrassenso, já que, ao mesmo tempo em que apregoava a igualdade, preservava a propriedade sobre os escravos, que eram vistos como coisas e não pessoas, os quais tinham valor comercial e pertenciam aos senhores.

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Em 1891, na primeira Constituição da República, foram abolidos alguns privilégios das classes superiores, o que não impediu que, de fato, estas continuassem a se sobrepor às demais.

As desigualdades, em decorrência do nascimento, sexo, raça, classe ou ideias políticas, são recriminadas em 1934. Com isto, garante-se o voto feminino. Em 1937, a inovação ocorre através da Consolidação das Leis do Trabalho, proibindo as diferenças salariais entre pessoas de sexos diferentes, nacionalidade ou idade.

A Constituição de 1946 proíbe a propaganda com conotação de preconceitos de raça ou classe. Não se percebe inovação em 1964, quanto ao princípio da igualdade, porém, em 1967, tem-se a constitucionalização do preconceito de raça. Posteriormente, o Brasil ratifi ca documento, fruto da Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de racismo.

A Constituição atual já traz, em seu preâmbulo, o princípio da igualdade como valor supremo “...de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social...”. Bem como, em seu art. 3º, pontua, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a promoção do bem comum e o alcance deste, sem qualquer tipo de discriminação, inciso IV, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outra forma de discriminação.” Este dispositivo constitucional traz a base das Ações Afi rmativas, exigindo uma conduta ativa do Estado e da sociedade.

Afi rma Mello (2012, p.23), confi gurar-se uma ação afi rmativa, em razão da: “[...] percepção de que o único modo de se corrigir as desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual”.

Percebe-se que a garantia de igualdade foi pontuada em todas as Constituições, porém elas carecem de elementos que concretizem este direito assegurado em vários documentos. Ao Estado, cabe assumir o papel ativo, de movimento, para averiguar as desigualdades práticas e criar instrumentos de equiparação de oportunidades, na busca da justiça social.

Piovesan (1996, p.30) chama a atenção para a individualização do sujeito na sociedade, manifestando suas necessidades, aptidões:

[...] do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especifi cidades e particularidades. Daí apontar-se não mais ao indivíduo genérica e abstratamente considerado, mas ao indivíduo especifi cado, considerando-se categorizações relativas ao gênero, idade, etnia, raça, etc.

Denota-se a necessidade do homem de ter seus direitos não só previstos em dispositivos legais, mas aplicados, observando-se as especifi cidades de cada categoria. É a busca da igualdade material.

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Rocha (1996) lembra que, até a década de sessenta, os países não atentaram para a necessidade dessa equiparação. Embora estivesse presente o respeito à dignidade da pessoa humana, o negro, o pobre, os marginalizados pela preferência sexual, religião, não tinham acesso a iguais oportunidades.

Um dos instrumentos de atenção às minorias são as ações afi rmativas, que surgem na sociedade americana, voltadas para a situação dos negros. Posteriormente, elas se estenderam às demais minorias.

Cumpre lembrar que as ações colocam o Estado em movimento, a igualdade se manifesta como política pública a ser implantada, visando a combater a discriminação e objetivando transformações na sociedade com a aceitação da diversidade.

4 AÇÕES AFIRMATIVASTermo originário do Direito americano, onde, na década de sessenta, discutia-se

a implementação da igual oportunidade para todos. A questão da segregação racial se manifestou, acentuadamente, neste país, e os movimentos eclodiram na busca de mecanismos de atenção para os negros. Foi neste cenário que surgiram as ações afi rmativas, exigindo do Estado ações para melhoria da vida de parcela da sociedade.

Vários outros países seguiram este modelo, sendo as ações chamadas, na Europa, de ação ou discriminação positiva. No ano de 1982, estas ações foram inseridas no Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades da Economia Europeia. Elas se manifestaram como ações voluntárias, de caráter obrigatório ou estratégia mista; programas governamentais ou privados; leis e orientações a partir de decisões jurídicas ou agências de fomento e regulação.

No Brasil, podem ser encontrados os sistemas de cotas, que determinam um percentual a ser ocupado por grupo específi co, como a cota para negros nas universidades, o percentual para mulheres nos partidos políticos, o percentual para defi cientes nos concursos públicos, instrumentalizando a inserção destas minorias no mercado de trabalho, ensino superior ou representação política. Gomes (2002, p.09) assim defi ne as ações afi rmativas:

[...] conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por defi ciência física e de origem, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal da efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e emprego.

Nota-se que estas medidas procuram infundir, na sociedade, transformações de ordem pedagógica, desmistifi cando ideias de superioridade de raça ou sexo. A

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discriminação será, paulatinamente, modifi cada, quando grupos minoritários conseguirem ocupar seu espaço nos vários setores da sociedade.

A justifi cação destas medidas foi bastante discutida nas Cortes americanas, e objeto de estudo de alguns fi lósofos, dentre estes, Ronald Dworkin, que pontua a justiça destas medidas.

4.1 Ronald DworkinNos debates sociais e jurídicos, ponderou-se que as cotas seriam privilégios,

discriminação ao avesso, que um grupo seria benefi ciado em detrimento de outro, sem a observância ao mérito individual.

Dworkin (2000) abordou o caso Bakker, emblemático nas Cortes americanas. A questão envolvia as cotas, nas universidades, para negros, e sua aplicação suscitou debates sobre a constitucionalidade e a justiça de tais medidas.

Bakker questionou, nas Cortes americanas, as medidas tomadas pela Faculdade de Medicina da Califórnia, que destinava um percentual de suas vagas para minorias com difi culdades econômicas e educacionais. Seus defensores discorreram sobre a inconstitucionalidade das ações afi rmativas, pois violariam os direitos individuais daqueles que não conseguiam as vagas na universidade.

Dworkin (2005), abordando a questão do mérito, afi rmara que ninguém pode ser prejudicado pelas ações de terceiros, no entanto, contrapõe-se na situação, um objetivo social desejável, o maior acesso de pessoas negras às instituições de ensino. Sobre o princípio da igualdade (2005, p.1), quando discorre sobre as ações afi rmativas, assim se manifesta: “a consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política.” Em seguida, questiona se “[...] a igualdade e não apenas uma atenuação da desigualdade deve ser meta legítima da comunidade.” Desenvolve, portanto o autor, as ações afi rmativas como possibilidade de correção das injustiças sociais.

O ponto comum entre a teoria de igualdade de Dworkin e as ações afi rmativas é o argumento acerca da justiça destas, visto que um dos seus objetivos principais é a construção de uma sociedade mais justa, que represente, efi cazmente, os seus membros. Pretende-se, com estas ações, a concretização da justiça.

Neste diapasão o intérprete, segundo o entendimento de Müller, deve desempenhar um papel, quando da decisão, de acolhimento de comentários, manuais didáticos, precedentes do direito comparado, para que a norma possa ser concretizada.

5 CONCRETIZAÇÃO DE FRIEDRICH MÜLLERMüller usa como argumento de interpretação a concretização das normas através

da Teoria Estruturante do Direito. Afi rma que a concretização tem como propósito deixar

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em destaque a normatividade do caso concreto, sobressaindo-se esta por meio do texto e da norma. Müller (2005, p.39) sobre o assunto, discorre:

Essa propriedade do direito, de ter sido elaborado na forma escrita, lavrado e publicado segundo um determinado procedimento ordenado por outras normas, não é idêntica a sua qualidade de norma. Muito pelo contrário, ela é conexa a imperativos do Estado de Direito e da democracia, característicos do Estado constitucional burguês da modernidade. Mesmo onde o direito positivo dessa espécie predominar, existe praeter constitutionem um direito constitucional consuetudinário com plena qualidade de norma. Além disso, mesmo no âmbito do direito vigente, a normatividade que se manifesta nas decisões práticas não está orientada linguisticamente apenas pelo texto da norma jurídica concretizada. A decisão é elaborada com a ajuda de materiais legais, de manuais didáticas, de comentários e estudos monográfi cas, de precedentes e do Direito comparado, quer dizer com a ajuda de numerosos textos que não são idênticos, mas transcendem o teor literal da norma.

Percebe-se a conceituação diversa de normatividade, norma e texto da norma. A norma difere de seu conteúdo literal, o texto da norma seria o ápice deste processo, o início da concretização. A decisão judicial deve ser norteada com a cooperação de outros elementos, diversos, e que ultrapasse o teor literal da norma.

Ele não se desfaz dos elementos gramaticais, históricos, teleológicos, nem dos princípios da interpretação, conforme a constituição. Agrega à unidade elementos do âmbito da norma, dogmáticos, elementos da teoria, da técnica de solução, de política do Direito e política constitucional. Haveria um papel de complemento desempenhado por esses elementos.

A realidade tem importância na concretização, embora sempre vinculada aos programas normativos. Possuindo o Direito um caráter dinâmico, a ordem jurídica e a realidade devem estar em constante interação.

6 CONCLUSÃOO Direito, como ciência social, tem como objeto de sua aplicação os fatos, as

necessidades que permeiam as relações humanas. Neste contexto, percebem-se diversos grupos sociais subalternizados que procuram seu espaço social. Torna-se, portanto, necessário, fomentar práticas sociais includentes.

As políticas afi rmativas se apresentam, neste sentido, como instrumento de aplicação da justiça aos historicamente discriminados. No entanto, estas ações são objeto de vários questionamentos sociais e jurídicos.

O intérprete teve um papel primordial quando da discussão destas medidas. O princípio da igualdade serviu de parâmetro para as decisões. Os métodos de interpretação

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visam contribuir para uma maior intelecção sobre determinado assunto, e, em relação às ações afi rmativas, identifi cam-se alguns destes métodos.

O papel dos princípios, no texto normativo, e como este é compreendido por alguns intérpretes; a existência de uma sociedade aberta, com participantes do processo social, como formadores da sociedade e; a concretização do disposto no texto constitucional foi o que se fomentou no artigo.

O que é identifi cado como justo, num ambiente plural de indivíduos, pode ser de extrema complexidade. E o intérprete, buscando uma hermenêutica agregadora e atenta à realidade social e às normas abrigadas no ordenamento jurídico brasileiro, entendeu pela constitucionalidade de tais medidas, quando em discussão a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

A proposta destas políticas de atenção aos historicamente discriminados pode ser identifi cada nas cotas para mulheres nos partidos políticos, nas vagas para defi cientes nos concursos públicos, bem como nas cotas sociais e para negros no ensino superior. Não são elas defi nitivas, a sua existência tem um caráter inclusivo; cumprida a sua proposta, não se carece mais da sua existência. A certeza de cumprimento de sua proposta só poderá ser percebida após alguns anos, se puderem ser identifi cadas as pessoas a quem foram direcionadas as ações ocupando os mais diversos espaços na sociedade.

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A Justiça Restaurativa como forma alternativa – e efi caz – na resolução

de confl itos no BrasilDenise Tatiane Girardon dos Santos

Márcia Cristina de Oliveira

RESUMOO presente trabalho tem como tema a Justiça Restaurativa como forma de restauração dos

conflitos, tanto entre partes como sociais. Para tanto, inicialmente serão abordadas questões de ordem histórica, e as previsões constitucionais que permitem a instauração da Justiça Restaurativa no Brasil, calcada nos princípios da dignidade da pessoa humana e no acesso à justiça, bem como tratar-se-á das formas alternativas de resolução de conflitos, apontando o fato de que a Justiça Restaurativa tende a promover a democracia participativa nos sistemas jurídicos brasileiros, evidenciando a área de Justiça Criminal, já que os mecanismos utilizados para a composição do dano envolvem, diretamente, a vítima, o infrator e a comunidade. O essa forma de tratativa conflitual supera o modelo retributivo retira a importância do monopólio estatal, pois valoriza as partes envolvidas, de modo que a Justiça Restaurativa é uma proposta de aplicação da justiça, na qual se busca o atendimento das necessidades da vítima, ao mesmo tempo em que o agressor é convocado a participar do processo de reparação do dano, visando a um processo produtivo e de reintegração à sociedade, em lugar da simples pena punitiva. Logo, procurar-se-á demonstrar, a partir dessas premissas, a importância da Justiça Restaurativa para a resolução dos conflitos no Brasil e, consequentemente, para a pacificação social e para o exercício da cidadania.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Resolução de conflitos. Cidadania.

Restorative justice as an alternative way – and effective – in conflict resolution in Brazil

ABSTRACTPresent work has as its theme, restorative justice as a way of restoring the conflict, both

between parties and social. For this purpose, initially, will address issues of historical, and constitutional provisions that allow the introduction of Restorative Justice in Brazil, based on the principles of human dignity and access to justice. As well, it will treat the alternative forms of conflict resolution, pointing to the fact that restorative justice tends to promote participatory democracy in the Brazilian legal system, showing the area of Criminal Justice, since the mechanisms

Denise Tatiane Girardon dos Santos é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Mestranda no Curso de Mestrado em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí); vinculação à Linha de Pesquisa “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”; bolsista integral do Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Especializanda no Curso de Educação Ambiental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]árcia Cristina de Oliveira é mestranda no Curso de Mestrado em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Advogada. E-mail: [email protected]

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used for the composition damage directly involve the victim, offender and community. The form of this conflictual dealings outweighs the retributive model, removes the importance of the state monopoly, values for the parties involved, so that Restorative Justice is a proposed application of justice, which seeks to meet the needs of the victim, the same time that the offender is asked to participate in the repair of the damage process, aiming at a production process and reintegration into society, rather than simply punitive penalty. Therefore, efforts will be made to demonstrate, from these premises, the importance of Restorative Justice for the resolution of conflicts in Brazil and thus for social peace and the exercise of citizenship.

Keywords: Restorative Justice. Conflict resolution. Citizenship.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAISO presente estudo aborda as formas de se buscar a solução dos confl itos de forma

alternativa ao modelo jurisdicional tradicional. Considerando a crescente judicialização das relações, na contemporaneidade, resta evidente que as relações humanas estão abaladas, e que o enfrentamento dessas questões de litígio deve ser analisado em sua complexidade, para se viabilizar uma resolução que seja duradoura. Logo, ante a constatação de que o sistema clássico é inoperante quanto às problemáticas que lhe são postas, a sociedade demanda pela implantação de um sistema fl exível, que ajuste as condutas humanas de uma forma qualitativa, não, apenas, quantitativa, favorecendo respostas satisfativas à sociedade em confl ito.

Dessa feita, a Justiça Restaurativa se apresenta como um sistema que permite arrostar o confl ito, a situação de enfrentamento hostil, a partir de regras harmônicas de convivência, com foco na diminuição da criminalidade e na superação de questões problemáticas, às quais o sistema de justiça tradicional já não consegue solucionar. No sistema de justiça, as práticas restaurativas buscam a educação a partir do confl ito, conscientizando os envolvidos a entenderem as causas deste, para que, em situações semelhantes, tenham condições de adotarem uma postura positiva.

Com o oferecimento de regramentos comunitários, a Justiça Restaurativa cria e fortalece, ou, ainda, restabelece os laços entre os indivíduos a partir da escuta, da valorização da convivência pacífi ca, do respeito, da tolerância, do consenso possível e voluntário das partes que, conjunta e ativamente à comunidade onde estão insertas, buscam construir soluções para os traumas e perdas causados pelo evento danoso. Assim, o processo de reparação, de forma conjunta, visa a encontrar a solução para as implicações futuras e um resultado reparador que culmina na compensação e na paz, com a reparação dos danos e os prejuízos evitados.

Ainda que no Brasil não haja regulamentação legal específi ca, voltada para a Justiça Restaurativa, a Constituição Federal permite que esse sistema alternativo exista, legitimamente, a fi m de perseguir o acesso à justiça, qualitativamente, em respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais e humanos, assegurados a todos. Logo, consoante será discorrido abaixo, verifi car-se-ão os principais requisitos e as técnicas necessárias para a implantação, com sucesso, das práticas da Justiça Restaurativa que, em comparação com o sistema jurídico (penal, principalmente) tradicional, destacam-se pela

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preocupação com as relações futuras, a fi m de evitar que novos fatos confl itivos sejam gerados, favorecendo a convivência, o respeito mútuos e o exercício da cidadania.

2 A JUSTIÇA RESTAURATIVA: ASPECTOS HISTÓRICOS, JURÍDICOS E SOCIAISA prática da Justiça Restaurativa, apesar de recente aplicação no Brasil, possui

origens antigas, com aproveitamentos em várias sociedades e nações, sempre, com o fi m precípuo de resolver questões confl ituosas e assegurar a convivência pacífi ca e social comunitária. Atualmente, diante da crescente judicialização das relações sociais, tem se apresentando como um método efi caz, assegurando o acesso equitativo ao Poder Judiciário, o trato essencial do confl ito, a atenção à vítima e ao agressor e a busca da melhor resolução, com fi ns na justa reparação, no trato igualitário e digno e na manutenção da situação de paz.

O intento, a forma de mediar confl itos teve origem na China, com Confúcio, que procurava o meio mais adequado para resolver os confl itos com os quais se deparava. Tal prática perdurou em várias culturas – mormente de cunho religioso –, além do Confucionismo, no Judaísmo, no Islamismo, no Cristianismo, no Hinduísmo e no Budismo (CAETANO, 2002). Contudo, a forma como essa prática se apresenta, contemporaneamente, é diversa dos modelos anteriormente praticados, até mesmo diante da evolução cultural, política e social humana.

Muitas formas de resolução de confl itos podem ser conceituadas como Justiça Restaurativa, uma vez que oriundas de várias culturas, diversos povos antigos, e, por conta dessas múltiplas origens, Zehr (2008, p.256-257) destaca que não se trata de “uma simples recriação do passado, mas sim da adaptação de alguns valores básicos, princípios e abordagens dessas tradições, combinadas com a moderna realidade e sensibilidade quanto aos direitos humanos”.

Na atualidade, citam-se exemplos mais fortemente aplicados nos Estados Unidos da América, na década de 1970, tendo sido a mediação incorporada ao sistema legal. Após se revelar uma prática promissora, passou a ser praticada na Inglaterra, mas, nesse caso, a partir de advogados não vinculados ao aparelho legal (OLIVEIRA JÚNIOR, 2000).

A denominação de “justiça restaurativa” foi dada por Albert Eglash, em 1977, quanto escreveu o texto “Beyond Restitution: Creative Restitution”, onde tratava sobre o assunto de forma a destacar a positividade de sua aplicação (ROLIM, 2007). Essa expressão manteve-se no Brasil, ainda que, em tradução literal da Língua Inglesa, signifi que “justiça restauradora” (PINTO, 2007). Não obstante, há outras denominações, utilizadas como sinônimos, como Justiça Transformadora, Relacional, Recuperativa ou Participativa (JACCOUD, 2005).

Quanto ao Brasil, a primeira forma de Justiça Restaurativa prevista surgiu nas Ordenações Filipinas, sendo regulamentada na Constituição Federal de 1824, que

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reconheceu a possibilidade de o juiz buscar a conciliação entre as partes litigantes para a resolução dos pleitos. A última ratio – o Poder Judiciário –, até meados do século passado, manteve-se como, realmente, o espaço para a solução de confl itos avultados, tendo uma capacidade de resposta satisfatória. Entretanto, nas últimas décadas, instaurou-se um número de litigiosidades nunca visto, com um crescimento geométrico de demandas judiciais, muitas singelas, mas que atarefam a máquina judicial de tal forma que José Renato Nalini (2008, p.107) chegou a classifi car como “demandismo”.

A castiça crise no sistema judiciário impacta, muitas vezes, o próprio direito de acesso à justiça – entendida como o acesso a um Poder Judiciário que adote uma resolução para a demanda, apresentada de forma justa e em um tempo razoável –, ou, então, mina a justiça em si (CAPPELLETTI, 1988). Um dos motivos é a processualística burocratizada, a alta sistematização e a tecnicidade exacerbada que impedem que se analisem questões preliminares, como a necessidade de se assegurar a igualdade e a diferença entre as partes, garantindo um processo justo e que, realmente, resolva com satisfação, ao menos, a questão que é depositada em juízo (MARILLAC, 2009).

Nesse ponto, a Justiça Restaurativa tem, na Carta Federativa de 1988, como seus princípios, dentre outros, o direito fundamental ao acesso, formal e material, à justiça, consubstanciando-se, aquele, como a possibilidade de acionar o Poder Judiciário por intermédio de uma ação judicial; este, como o acesso ao Poder Judiciário para se atingir a justiça, de forma igualitária e verdadeira. Todavia, é de se destacar que o ingresso material na justiça pode ser atingido por outros meios que não o convencional, onde se insere a Justiça Restaurativa como forma de resolver as litigiosidades, seja por meio da negociação, da conciliação, da arbitragem ou da mediação (CAPPELLETTI; BRYANT, 1988).

Essa ideia de acesso formal e material à justiça – e consequente igualdade formal e material – adveio por conta da litigiosidade crescente no Brasil – e no mundo – e da necessidade de se buscarem formas alternativas de solução dos litígios, haja vista que o modelo tradicional se demonstrou insufi ciente. A processualística civil brasileira passou a ser justada para democratizar o acesso à justiça, momento em que a Justiça Restaurativa adquiriu maior relevância, uma vez que se apresentou como um método alternativo efi ciente (CAPPELLETTI, 1989).

Contudo, o procedimento da Justiça Restaurativa não possui, ainda, previsão expressa e formal em lei. Mesmo assim, a partir da Carta Magna de 1988, algumas normas, como a Lei nº. 9.099/1995, que cria e regulamenta os Juizados Especiais Cível e Criminal, o Estatuto da Criança e do Adolescente ou, ainda, o Estatuto do idoso, fazem menção e recomendam o procedimento restaurativo (BRASIL, 2013).

Uma das principais constatações, que servem de supedâneo para a justifi cativa dos meios alternativos de resolução de confl itos é que a forma clássica de acionar o Poder Judiciário não garante que o fi m seja atingido, ou seja, não é requisito que assegure que o direito à justiça será efetivado, de modo que a busca da máquina judicial não deve ser, apenas, possibilitar o acesso dos cidadãos aos seus serviços, mas, acima de tudo, garantir que os direitos sejam afi ançados (CALMON DE PASSOS, 1999).

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Ainda que o princípio do devido processo legal deva ser respeitado, até mesmo para que a legitimidade e a legalidade sejam observados, essa premissa deve ir além, atendendo, além da parte formal, a material, que é o tratamento igualitário daqueles que demandam, em todos os sentidos possíveis. E essa cautela – de igualar os litigantes – deve ser percebida pelo magistrado, sempre na procura pela igualdade material, pois, consoante Boaventura de Sousa Santos (1995, p.34) alerta, as diferenças devem ser mitigadas em prol da igualdade, e a distinção é necessária quando a igualdade descaracteriza.

Por esse motivo que é imprescindível que a igualdade, a paridade harmônica e mútua possam ser verifi cadas em todo o decorrer do processo judicial, viabilizando que este manifeste uma justiça equânime (ROCHA, 1995). Logo, passaram a ser mais latentes as singularidades verifi cadas na forma tradicional e na alternativa de resolução de confl itos, pois, enquanto aquele visa a, principalmente, aplicar o direito, resolvendo-o nos moldes estritamente legais, sem a preocupação precípua com o fi m legítimo da demanda, esta procura decidir e extirpar, defi nitivamente, a situação que está gerando a confl ituosidade, a partir de uma análise mais ampla e social dos fatos (GOMMA, 1996).

A Justiça Restaurativa, em especial com destaque à mediação, dedica-se a estudar o(s) motivo(s) pelo(s) qual(is) o(s) confl ito(s) se forma(m), adentrando no contexto, na realidade social das pessoas, de modo transdisciplinar, focando no principal objetivo que é a recuperação e a permanência da paz. Ainda que, na atualidade, e pela nova concepção contemporânea de Justiça Restaurativa, haja discussões acerca das formas como suas práticas devem ser conduzidas, com a observância da processualística, é indubitável que ela se apresenta como uma forma de se resolverem questões confl ituosas com efi ciência, aliviando o Poder Judiciário do número cada vez mais expressivo de demandas (CAETANO, 2002).

Justamente, por se tratar de um método em construção, até mesmo sua defi nição é discutida. Entretanto, é pacífi co o entendimento de que a Justiça Restaurativa tem o condão de enfrentar, de forma diferenciada – e mais positiva – as confl ituosidades, baseada na participação da sociedade local, no comprometimento e na sensação de encontro com a justiça, mas de um modo compartilhado, acessado por todos. Paul Mccold e Ted Wachtel (2003, p.01) assim defi nem tal método:

La justicia restaurativa es una nueva manera de considerar a la justicia penal la cual se concentra en reparar el daño causado a las personas y a las relaciones más que en castigar a los delincuentes. La justicia restaurativa surgió en la década de los años 70 como una forma de mediación entre víctimas y delincuentes y en la década de los años 90 amplió su alcance para incluir también a las comunidades de apoyo, con la participación de familiares y amigos de las víctimas y los delincuentes en procedimientos de colaboración denominados “reuniones de restauración” y “círculos.” Este nuevo enfoque en el proceso de subsanación para las personas afectadas por un delito y la obtención de control personal asociado parece tener un gran potencial para optimizar la cohesión social en nuestras sociedades cada vez más indiferentes. La justicia restaurativa y sus prácticas emergentes constituyen una nueva y promisoria área de estudio para las ciencias sociales.

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Diante da constatação de que os delitos geram danos, estes, necessariamente, devem ser reparados, e a Justiça Restaurativa permite que, de forma coletiva, seja encontrada – e posta em prática – a mais acertada forma de reformar o dano, a sua não repetição e o sentimento de justiça para as partes, rebentando em práticas salutares de convivência. Assim, a inovação que a Justiça Restaurativa ensarta a sociabilidade maior entre as partes confl itantes, com foco na assunção de um compromisso com o reparo ao dano, atentando também à vítima, aos familiares de ambas as partes e toda a comunidade (SCURO, 1999).

Internacionalmente, a Justiça Restaurativa é reconhecida como um método efi caz para se resolver questões confl ituosas, tendo a Organização das Nações Unidas validado e recomendado para a aplicação em todos os países, por intermédio da edição dos Princípios Básicos sobre Justiça Restaurativa, proclamados na Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de 13 de Agosto de 2002. Destaca-se a conceituação para três expressões, intimamente, vinculadas aos princípios da Justiça Restaurativa, que são: programa restaurativo (qualquer programa que faça uso de processos restaurativos em prol de resultados restaurativos), processo restaurativo (participação coletiva e ativa da vítima, do infrator e da comunidade, além de um facilitador. Abrange a mediação, a conciliação, as audiências e os círculos de sentença) e o resultado restaurativo (o acordo obtido por meio de um processo restaurativo, que implica em responsabilidades e programas que visem a suprir necessidades individuais e coletivas das partes, com foco na reintegração dos envolvidos) (ONU, 2002).

Quanto à natureza jurídica na Justiça Restaurativa, tomando como base a mediação, é um instituto de Direito Material, eis que concreto, palpável, podendo ser posto em prática sem que haja uma norma instituidora e regulamentadora específi ca (CACHAPUZ, 2003). Também, é contratual, eis que é calcada no comprometimento das partes, que instauram, modifi cam ou extinguem direitos, desde que lícitos, uma vez que seu fi m é a resolução dos confl itos e uma melhor relação social (WARAT, S/D).

A Justiça Restaurativa, pela sua fi nalidade de solução de litígios, tem seu fi m máximo no acesso à justiça, esta que resta valorizada, democratizada. O confl ito passa a ser tido como algo natural, existente nas relações humanas, mas passível de ser evitado mediante a adoção de atitudes que aprimoram e possibilitam uma convivência harmônica e, assim, ele é mais bem percebido, tratado e resolvido pelas vontades comuns que convirjam para a tolerância (MORAIS, 1999). É por isso que a mediação proporciona o resgate participativo da comunidade, a comunicação, a responsabilidade, a alteração de atitudes e comportamentos, de modo cônscio, incentivando a comunicação e a solidariedade social.

Dessa feita, a Justiça Restaurativa possui supedâneo jurídico e ético para ser posta em prática como uma forma de resolução de confl itos alternativa ao método tradicional, possibilitando aos seus usuários a certeza de um acesso à justiça com dignidade, que atenta para o enfrentamento profundo das problemáticas e, assim, assegura uma verdadeira solução para a questão enfrentada. Ainda que não regulamentada,

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especifi camente, no Brasil, já existem Diplomas Legais que incentivam a sua prática, além de estar amparada pelas premissas constitucionais, mormente, pela garantia de assegurar os direitos fundamentais.

3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA À JUSTIÇA RETRIBUTIVA MEDIANTE A PRÁTICA DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVADiante da ideia de que a Justiça Restaurativa se apresenta como um instrumento

de resolução ampla dos confl itos, uma vez que abarca não só, e estritamente, o caso em concreto e dá uma solução jurídica ao fato, sem a preocupação que ele prosseguirá sob outro enfoque, como ocorre na Justiça Tradicional, pode-se aproveitá-la, até mesmo, como um impulsionador de relações sociais mais salutares. Contudo, ainda vigem questionamentos pertinentes como: o que é um confl ito? Por que é necessário resolvê-lo? Ou, por que é mister, muitas vezes, a presença de um terceiro para que os confl itantes cheguem a um acordo, ou para que o confl ito chegue ao fi m?

Diante das várias acepções e formas de apresentação, não é tarefa simples defi nir o que é confl ito, porém, a ideia a qual se remete, primeiramente, é de choque, de contradição. Conceituando a palavra confl ito, poder-se-ia dizer que é “um enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesma espécie que manifestam, uns a respeito dos outros, uma intenção hostil” (MORAIS; SPENGLER, 2012, p.45).

Sabe-se que, ao tomar o monopólio da violência para si, o Estado volta seus olhos para a vítima e não para o autor, de modo que se faz necessário que àquela seja oportunizada a condição para que o sentimento de vingança se concretize, sem, contudo, desconsiderar que a característica mais importante do ato jurisdicional é o desinteresse do juiz, ou seja, é sua postura alheia ao litígio enquanto parte interessada, de modo que o Estado, portanto, deve ser imparcial nessa função.

Entretanto, como referido, o Sistema Judiciário conta com outras formas legais, embora não jurisdicionais, de tratar os confl itos, que, da mesma forma, se atribui legalidade na voz de um conciliador, de um mediador ou de um facilitador, estes que auxiliam os confl itantes em determinadas questões. Sistema esse que, com base no Direito Fraterno, é centrado na criação das regras de compartilhamento e de convivência, signifi cando mais responsabilidade ao cidadão por suas próprias decisões.

A Justiça Restaurativa, nesse ínterim, reconhece que a criminalidade faz aumentar os prejuízos às pessoas e às comunidades e, por isso, insiste na sua reparação, atividade exercida, diretamente, pelas vítimas, pelos infratores, pela comunidade afetada, que, em resposta ao delito, participam, ativamente, do processo da reparação. No sistema de justiça, as práticas restaurativas buscam educar a partir do confl ito, conscientizando os envolvidos a entenderem as causas que culminaram na subversão, para que, em situações semelhantes, tenham condições de agirem diferentemente (PINTO, 2008).

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Diante da ausência do Estado, ou da difi culdade de aplicabilidade do direito ofi cial, observa-se o aumento da organização e da aplicação de regras criadas pelos cidadãos, objetivando o tratamento de confl itos. Essas regras comunitárias são despidas de ofi cialidade, porém, reconhecidas por uma determinada coletividade. Assim, diversamente, dos modos clássicos de tratar os confl itos, a Justiça Restaurativa vai além, pois atenta para o que o evento danoso pode trazer de consequências – negativas – para a sociedade onde ele foi praticado; ou seja, para o futuro. É por isso que todos os envolvidos, conjuntamente, devem restaurar o dano causado com base na cooperação, na oportunidade de reparação, da assunção de obrigações e responsabilidades, e, por fi m, no resultado positivo.

Um procedimento alicerçado no consenso, na participação, na coletividade, na busca de soluções adequadas à solução efetiva do litígio, exige a voluntariedade para poder se instaurar, pelo que os sujeitos centrais devem submeter-se ao método, estritamente, voluntário, com uma parcela de informalidade, abdicando da solenidade peculiar do Poder Judiciário. A partir da aceitação da Justiça Restaurativa, surgem várias técnicas possíveis, como a mediação, a conciliação e a transação a fi m de se obter um resultado com a restauração da questão posta em xeque, atendendo o fi m social, tratando o trauma causado pelo delito e promovendo a aproximação dos envolvidos de modo profícuo (PINTO, 2005).

A Justiça Restaurativa instrumentaliza seus usuários a buscarem uma mudança prosaica em suas relações, mormente, entre o ofensor e a vítima, uma vez que, inicialmente, permitindo que as razões, pelas quais o evento danoso, não harmônico, ocorreu, sejam expostas, facilita que as causas sejam conhecidas e analisadas, coletiva e humanamente. Após as razões serem expostas, as responsabilidades podem ser distribuídas de acordo com os atos praticados, e a assunção desses encargos desabrolham na conscientização pelos danos e na necessidade de se reparar a vítima (ISOLDI; PENIDO, 2006).

Os autores ainda destacam que, comunitariamente, avulta-se o fato de que as partes envolvidas criam algum laço de convivência, eis que a estigma de agressor é mitigada a partir do momento da conscientização, da responsabilização e da reparação. Essas atitudes refl etem na vítima, que passa a ter o sentimento de reparação de fato e, assim, transpassa o período de crise envolvendo-se, novamente, com a comunidade à qual pertence. Isso, igualmente, é possível de ocorrer com o agressor, na medida em que a sociedade reconhece que ele buscou reformar uma atitude reprovável, sendo visto dessa forma pelas pessoas, levando a sociedade local adquire maior união, facilitando a participação de todos.

É pelos motivos relacionados que a composição pode ser considerada como um instrumento original, inovador, uma vez que considera inéditas formas de resolução dos confl itos que atentam para atos ordenados, cronológica e logicamente, na busca pela superação da situação geradora do dano de forma legítima. Fundada na conformidade, no envolvimento social, externamente, à solenidade do Poder Judiciário, contando

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com mediadores/facilitadores, com técnicas para se atingir a restauração, a reinserção dos envolvidos à comunidade, a Justiça Restaurativa se revela como meio pelo qual a democracia participativa encontra um lugar, representando o empoderamento da sociedade local, transformando a vingança em restabelecimento do equilíbrio social (BERISTAIN, 2000).

Esse é um dos motivos pelos quais a Justiça Restaurativa, por intermédio da mediação comunitária, cria e fortalece, ou, ainda, restabelece os laços entre os indivíduos, pois procura valorizar a convivência pacífi ca, o respeito, a tolerância, o treinamento adequado dos problemas que, no âmbito da comunidade, perturbam a paz. Enquanto política pública, deve ser vista como uma forma de tratamento de confl itos, muito mais e além do que uma alternativa de desafogar o judiciário. Nesse sentido:

A mediação comunitária trabalha com a lógica de um mediador independente, membro desta mesma comunidade, que pretende levar aos demais moradores o sentimento de inclusão social. Essa inclusão social dos indivíduos formadores da comunidade pode ser concretizada mediante a autonomização e a responsabilização por suas escolhas e por suas decisões, seja no concernente a confl itos verídicos/experienciados ou a confl itos latentes. Assim, criam-se vínculos, fortalecendo o sentimento de cidadania e de participação da vida social da comunidade (SPENGLER, 2012, p.200).

A Justiça Restaurativa, portanto, baseia-se no consenso possível e, estritamente, voluntário entre vítima, infrator e em, certas vezes, envolve a comunidade afetada pelo crime, que conjunta e, ativamente, buscam construir soluções para os traumas e perdas causados por ele. Assim, é possível destacar as necessidades da vítima, do agressor e da comunidade, favorecendo a interação social e a correção de muitas situações, diante da reafi rmação das responsabilidades.

Não obstante, verifi ca-se que a Justiça Restaurativa, por signifi car um meio de acesso à justiça e por resolver situações tratadas pelo Direito Penal, inclusive, evita, ou minimiza a marginalização de pessoas em situação de vulnerabilidade (AGUADO, 1997), pois possibilita tanto o senso de responsabilidade quanto a reinserção social do ofensor, impedindo que ele seja submetido ao sistema penal, que, como mencionado acima, visa à punição, foca o evento passado e, sabidamente, é opressor e repressor, ao invés de facilitar a meditação sobre as consequências do ato e favorecer a busca pela reversão da situação confl ituosa (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004).

É nesse sentido que a relação entre o dano causado, as necessidades a serem supridas, as responsabilidades a serem assumidas e a obtenção de respostas formam uma estrutura sólida para o grupo, defi nido por Mccold e Wachtel (2003) como as partes interessadas (as afetadas, diretamente, pelo delito). A possibilidade de contato, de afeto, relaciona todos os envolvidos, favorecendo a implicação mais fi rme, benefi ciando que as partes, denominadas pelos autores como “interesadas

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secundarias” (quais sejam, “aquellas personas que viven cerca o a aquellas que pertenecen a organizaciones educativas, religiosas, sociales o comerciales cuya área de responsabilidad o participación abarca el lugar o las personas afectadas por el incidente” (op. cit., p.2), igualmente, possam participar e usufruir das vantagens da Justiça Restaurativa.

Ou seja, todos, de alguma forma, se relacionam com o fato, facilitando a obtenção de uma resposta reformadora a partir da expressão dos sentimentos e da participação nas decisões, inclusive, dos ofensores, pois estes “dañan sus relaciones con sus propias comunidades de apoyo traicionando la confi anza. Para recobrar esa confi anza, necesitan obtener control personal para asumir la responsabilidade por el delito cometido” (op. cit., p.2).

Logo, a Justiça Restaurativa reconhece que a criminalidade faz aumentar os prejuízos às pessoas e às comunidades e, por isso, insiste na sua reparação, atividade exercida, diretamente, pelas vítimas, ofensores e comunidade afetada, que, em resposta ao delito, participam, ativamente, do processo da reparação, que consiste em, de forma conjunta, encontrar a solução para as implicações futuras e um resultado reparador, que culmina na compensação e na paz. A Justiça Restaurativa importa-se mais com a reparação dos danos e dos prejuízos evitados do que com a importância da sanção, uma vez que as formas de resolver os confl itos, usualmente, utilizadas, acabam por retroalimentar o ciclo de violência, ao invés de dar uma resposta efetiva às comunidades afetadas (SPENGLER; LUCAS, 2011).

É por isso que a aproximação da vítima e do agressor convém, não somente, para atingir a compensação do dano, mas, também, para que a relação seja restaurada, ou construída, sem que haja necessidade de jurisdicionalização do caso. Ainda, entende-se que o ciclo de violência só é rompido quando a justiça se apresenta mais educativa, e a educação, mais justa, haja vista que a criminalidade e a violência, contemporaneamente, são vistas como fenômenos complexos, que exigem respostas diferentes, criativas, mais adequadas que o Direito Penal retributivo.

Diante dessas perspectivas inovadoras e acolhedoras, verifi ca-se que a Justiça Restaurativa se revela um método que considera o ser humano, uma vez que incentiva a participação, o respeito, a responsabilidade, a conscientização, a escuta do outro, com efeitos que visam a resultados salutares, positivos, otimizados, tendo plenas condições de ser uma auspiciosa e sólida alternativa para o sistema jurídico brasileiro, eis que favorece todo o conjunto de pessoas ao qual atinge.

4 A POSSIBILIDADE DA EFETIVIDADE NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS POR INTERMÉDIO DA JUSTIÇA RESTAURATIVASopesando para a necessidade em se buscar e efetivar alternativas para a resolução

dos confl itos, de modo ótimo, prudente que se analisem as formas de repressão à

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criminalidade em voga, estas que foram classifi cadas de acordo com suas principais características, consoante Molina e Gomes (1997).

A primeira é o chamado modelo dissuasório, que eleva a pretensão punitiva do Estado, com órgãos persecutórios repressivos e intimidadores, buscando a punição efetiva como desestímulo da prática delitiva, ignorando o impacto psicológico da aplicação da pena, em detrimento à prevenção e à própria vítima, que é secundarizada frente à afronta ao Estado. A segunda, o modelo ressocializador, que visa à reabilitação por meio da aplicação da pena, mas se preocupa com a minoração dos efeitos nefastos desta sobre o ofensor, intervindo de forma positiva. Em terceiro, cita-se o modelo integrador, uma combinação dos interesses e perspectivas do conjunto de pessoas abarcadas, tendo, como foco, a pacifi cação social, restaurando o dano causado e impingindo, ao agressor, uma atitude positiva.

A confrontação das partes é mediada com observância dos direitos fundamentais, humanizando as relações estremecidas, abrandando as implicações do dano, tudo por meio de uma decisão negociada. Este modelo, também chamado de Justiça Restaurativa, destaca-se por aplicar soluções que o próprio Estado não aproveita, que se preocupam com o bem-estar social, a extirpação da vitimização secundária perante a avocação de responsabilidade do ofensor e o envolvimento de toda a sociedade em um futuro com perspectiva otimista.

Ante de tais análises, resta evidente que a Justiça Restaurativa, dos modelos evidenciados, é o que tende a promover a democracia participativa na área de Justiça Criminal, já que os mecanismos utilizados para a composição do dano envolvem, diretamente, a vítima, o infrator e a comunidade. O confl ito supera o modelo retributivo, retira a importância do monopólio estatal, pois valoriza as partes envolvidas com as funções de refl exão para a busca da sua melhor resolução nos vários segmentos sociais, sendo elas titulares da situação (SPENGLER, 2012).

Enquanto que no processo penal judicial e retributivo a vítima tem nenhuma, ou pouquíssima, consideração – pois a “vítima” é o Estado, de modo que a represália deve ser levada a efeito para atendê-lo – na Justiça Restaurativa ela conta com participação efetiva, pois, com voz ativa, participa e tem controle de todo o processo; da mesma forma, o infrator tem a oportunidade de dialogar, diretamente, com a paciente e com a comunidade, não apenas por intermédio de seu advogado, mas sensibilizado com o resultado, conjuntamente, contribui para a decisão penalizadora (MORAIS; SPENGLER, 2012).

Hannah Arendt (2012, p.615) fornece uma interpretação prodigiosa sobre as leis ao se referir à sua interpretação do totalitarismo, classifi cando-as como leis de movimento e, nesse sentido, considera que

A Natureza ou a Divindade, como fonte de autoridade para as leis positivas, eram tidas como permanentes e eternas; as leis positivas eram inconstantes e mudavam segundo as circunstâncias, mas possuíam uma permanência relativa em comparação

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com as ações dos homens, que mudavam muito mais depressa; e derivavam essa permanência da presença eterna da sua fonte de autoridade. As leis positivas, portanto, destinam-se primariamente a funcionar como elementos estabilizadores para os movimentos do homem, que são eternamente mutáveis.

A autora expõe a discrepância que existe entre a determinação de normas escritas, impostas, vigentes, e os relacionamentos humanos, instáveis, naturais, relativos, demonstração que, trazida para o assunto em liça, molda-se à perspectiva de um funcionamento magnânimo da Justiça Restaurativa, ainda que não moldada nem termos legais, evidenciando que, ainda que não seja, de forma engessada, regulamentada, direcionada pelo Estado, pode ter um aproveitamento diferencial, ainda (e, principalmente, porque é) conduzida pelas próprias partes, na busca de uma melhor convivência.

É justamente por esse motivo que se deve evitar a confusão aparente da recomendação como ordem, pois a aceitação das partes é imprescindível para a alternativa restaurativa, que não pode ser imposta. Além do mais, todos os direitos e garantias constitucionais devem ser, rigorosamente, observados, pois, ainda que não seja, explicitamente, regulamentada, a Justiça Restaurativa, assim como todo o arcabouço legislativo, deve atentar para os princípios constitucionais basilares que norteiam toda a normativa brasileira.

Dessa feita, algumas ponderações devem ser observadas e levadas em consideração pelos operadores jurídicos brasileiros, dentre eles, como já foi referido, que o procedimento restaurativo não está, expressamente, previsto em lei. Portanto, a aceitação, do método reparador não deve ser impositivo, mas, sim, aceito pelas partes, diante do princípio da voluntariedade e da pretensão de se chegar a uma composição positiva. Outro fator importante é que as partes devem estar cientes, informadas, com clareza, de que se trata de um procedimento alternativo e que podem, a qualquer tempo, livremente, desistir da escolha; todavia, ao iniciar-se e durante todo o procedimento restaurativo, deverão ser, rigidamente, observados todos os direitos e garantias fundamentais para ambas as partes.

Todo procedimento restaurativo baseia-se em um processo de comunicação. Tratando-se de vítimas, é preciso analisar algumas particularidades, uma vez que o relato do delito é sempre traumatizante, compreendendo aspectos individuais e coletivos, sendo identifi cáveis duas fases distintas: a construção das lembranças e a verbalização. A construção das lembranças visa a resgatar dados para elaborar a história, enquanto que a verbalização é o ato pelo qual a lembrança se materializa por meio de palavras, renovando no sujeito a tensão da outra etapa. O processo de escuta equivale em transformar o interrogatório em diálogo contemplando o respeito, as pausas, a escuta ativa e serena, de forma a evitar a revitimização (SPENGLER, 2012).

A Justiça Restaurativa e os outros métodos alternativos de resolução de confl itos não podem descuidar da preparação dos operadores na questão vitimológica, e, ao mesmo tempo, centrar em um modelo que contemple a vítima como protagonista e não mera expectadora, favorecendo a reparação do dano sem que esteja ausente, também, a

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comunidade, devendo os encontros entre vítima e agressor ser realizados em um espaço participativo, autêntico e livre do fenômeno da revitimização. Assim é aconselhável que a equipe interdisciplinar decida sobre a conveniência de se consultar primeiro o acusado ou a vítima, principalmente, levando em conta o risco da revitimização. É por esse motivo que, preferencialmente, usa-se consultar primeiro o acusado, para depois a vítima. Essas nuances, que devem ser, sutilmente, percebidas, são bastante valiosas para se atingir a solução dos confl itos de forma alternativa ao Poder Judiciário (LUCAS; SPENGLER, 2011).

No sistema judicial tradicional atual, o infrator é condenado após responder a um processo que não lhe oferece oportunidades de entendimento, o que se torna um fator negativo, denunciado pela desvalorizada autoestima da pessoa julgada, e, após, o encarceramento, nas condições viabilizadas pelo Estado, sendo evidente a conclusão de que todas as pessoas atingidas pelo confl ito/dano são vítimas do sistema, e acabam por se unir aos seus iguais, perpetuando o ciclo de violência. A vítima, por sua vez, não encontra espaço no processo penal, pois não é ouvida, não é amparada na superação do trauma, de modo que esta, sem apoio, quanto muito, consegue abrandar, fazer esquecer.

Vários são os programas restaurativos existentes, e eles podem ser aplicados a qualquer tipo de confl ito, seja familiar, escolar, comunitário, econômico, ambiental, trabalhista, e, inclusive, no sistema de justiça, como nos confl itos em cárceres. No modelo restaurativo, evidenciam-se quatro formas que conduzem à Justiça Restaurativa, que são (1) a pré-acusação (que pode ser o encaminhamento do caso pela polícia, pelo juiz ou pelo Ministério Público, após o recebimento Denúncia), (2) a pós-acusação e a pré-instrução (encaminhamento após o oferecimento da denúncia), (3) a pré-sentença (encaminhamento pelo juiz, após, encerrada a instrução, para aplicação de pena alternativa) e (4) a pós-sentença (encaminhamento pelo Tribunal, durante a fase de execução) (SICA, 2007).

Essas formas de aplicação da Justiça Restaurativa encontram albergue na questão criminal, principalmente, por diferenciarem-se do modelo retributivo, que tem fundamento na pena, mormente, na privação da liberdade, aplicada sempre que o indivíduo contrariar o direito, uma vez que a pena, para o Direito Penal, em sentido amplo, é o castigo estabelecido pela lei quando não cumprida a regra ou o dever a que se está obrigado. A pena, como consequência da prática de um delito, atua como um castigo merecido com a intenção de se afastar a prática de novos delitos; legitima-se a retribuição do mal do crime pelo mal da pena (BITENCOURT, 2002).

A doutrina penal reconhece Kant como referência sobre a fundamentação do modelo retributivo, pois ele entendia que, durante a punição, o indivíduo deveria responder somente à sua conduta, assegurando-se a sua dignidade (ROXIN, 1986). Nesse passo, Kant considerava que o direito era o conjunto de condições sob as quais era possível que o arbítrio de um se harmonizasse com o de outro, ante a lei universal da liberdade; contudo, esta se expressa formalmente, como uma máxima moral e legal. Portanto, o caráter retributivo da pena está expresso no pensamento de Kant, que a fundamenta na ordem ética (KANT, 2004).

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Contudo, Ferrajoli (2002) leciona que o dano, buscado pelas penas irrogadas para punir os delitos passados e prevenir aqueles futuros, se não é capaz de reparar nem compensar o dano causado por aqueles, como pretendem as doutrinas retributivas, de outro lado, tampouco é comparável ao dano desses, por hipótese, prevenido por elas. Ao contrário, o dano dos delitos evitado pelas penas e o dano das penas para prevenir os delitos são comensuráveis, respectivamente, somente aos danos dos maiores delitos e das maiores penas, os quais, sem o direito penal, teriam lugar. Isso signifi ca que, para que um sistema penal possa dizer-se justifi cado, é mister que se avalie a sua funcionalidade, confrontando, entre si, entidades homogêneas, e fugindo, assim à objeção Kantiana, mesmo em relação a um outro tipo de objetivo, não menos importante do que a prevenção dos delitos, qual seja, a prevenção das punições excessivas e incontroladas.

Diante dessas considerações, resta clarividente que a Justiça Restaurativa é, em comparação com o sistema penal tradicional, uma forma que trata, com sagacidade e extensão, a questão problemática geradora da animosidade, eis que, além de promover a análise do confl ito, fazendo com que, necessariamente, as partes envolvidas analisem a si próprias, com as suas e as perspectivas dos outros, que lhe são postas. Portanto, a subjetividade densa, em todo o decorrer do processo, oferece uma refl exão sobre as relações humanas, as relações de poder, e, ainda que sejam distintos os sentimentos, faz com que estes se tornem recíprocos e compartilhados.

Michael Foucault (2002) defende a criação de uma instituição detentora do poder, alocada acima das partes, como um terceiro, para decidir e indicar o que é justo – podendo ser considerado tal órgão o Poder Judiciário brasileiro –; contudo, esse órgão supino não permite que as partes interessadas participem, ativamente, da resolução de seus próprios confl itos, negando-lhes autonomia e responsabilidade pela prevenção de muitos atos reprováveis, que podem ser lesivos para outras pessoas.

Logo, a Justiça Restaurativa, ao ir além desse terceiro que decide, permite, fomenta e necessita que as partes envolvidas em um confl ito dialoguem, exponham suas razões, considerem o outro como sujeito de direitos, e, ao analisarem, cooperativamente, os fatos postos, adotem uma decisão que os vinculem não, exclusivamente, para uma situação isolada, mas para um fato em voga, para o qual se busca uma solução e uma reparação, e todos os demais futuros, ajustando a conduta dos participantes. Assim, o princípio de universalização kantiano, ao invés de se apresentar nas instituições jurídicas, surge na sociedade, no consenso, na transação.

Portanto, diante dos pontos destacados, verifi ca-se que a Justiça Restaurativa tem o condão de permitir às partes envolvidas e à comunidade onde elas estão inseridas a cooperação, a mutualidade, a conversação, o reconhecimento, a conscientização, a responsabilização, e, consequentemente, uma estabilidade social. A resolução dos confl itos, existentes na comunidade, sendo solucionados por ela própria, é, perfeitamente, viável, e se materializa na Justiça Restaurativa, mormente, em época de decrescente judicialização das relações e do demandismo, eis que, uma vez instaurado o diálogo e as práticas sociais saudáveis, os futuros confl itos, por certo, são mitigados, assegurando às pessoas constância e harmônica no trato com o seu próximo.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAISO sistema de justiça tradicional usa, primariamente, a punição para prevenir o

dano e a execução da punição para mudar o comportamento danoso; utiliza o poder do Estado sobre os indivíduos para responderem aos crimes e, dessa forma, manter a sociedade segura: ou seja, delega-se para o Estado e o sistema penal situações às quais a sociedade não obtém resolução.

Nesse passo, pensar, discutir, analisar, implementar a Justiça Restaurativa é repensar o caminho trilhado até então. É discutir a própria efi cácia do sistema punitivo para fi ns de combate da criminalidade e, ao mesmo tempo, é buscar alternativas na forma de pensar e agir que, efetivamente, possam resolver o problema da violência, sem retroalimentá-la, o que passa, necessariamente, pela busca da compreensão, pelo atendimento das necessidades, pela oportunidade e pela responsabilização consciente.

Logo, o modelo de política restaurativa se expressa por outro prisma, qual seja, na relação indivíduo e da sociedade, pois se valora o que será considerado justo pelos envolvidos numa situação de confl ito. Ainda, o objetivo do procedimento restaurativo é que o ofensor, após ouvir a vítima, perceba que, apesar de possuir motivos, não detinha o direito de adotar alguma atitude, promover alguma ação que, potencialmente, violasse o direito de uma terceira pessoa e, dessa forma, reconhecer o erro e trilhar um caminho diverso, o da responsabilidade e reparação.

A partir da proposta apresentada pela Justiça Restaurativa, que abrange todas as pessoas relacionadas, de alguma forma, com o evento danoso, evidencia-se que esse instrumento valora os danos reparados e os prejuízos evitados, em detrimento à pena pessoal, prevista no Diploma Penal. Enfi m, a Justiça Restaurativa propõe que se trate o crime e a violência de maneira diferente da que, tradicionalmente, se adotou, ou seja, que se abdique da busca pela culpa e pelo castigo, com imposição de penas severas, e se passe a perseguir uma justiça baseada no diálogo, na inclusão com responsabilidade social. Luis Alberto Warat (2001) afi rma que

A nova visão da outridade tem que nos levar a entender que é impossível ascender ao outro a partir do saber, ou da intencionalidade. Nossa relação com o outro unicamente pode ter como ponto de partida a responsabilidade, que é algo inclusive anterior à nossa liberdade, à nossa autonomia. Não podemos realizar nossa autonomia sem pressupormos como anterioridade a responsabilidade para com o outro.

Portanto, as práticas restaurativas, calcadas no coletivismo, na cooperação, na chamada para si de responsabilidades mútuas, por certo, possibilitam uma comunhão agregadora – inclusive, da vítima e do ofensor – na sociedade local, favorecendo o diálogo e fortalecendo a dignidade e a cidadania.

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Sendo assim, a Justiça Restaurativa vai além da punição, promovendo o reconhecimento de si e do outro, pois o agressor é sujeito e deve responsabilizar-se pelas consequências gravosas de seus atos. Acaso o castigo não é capaz de modifi car condutas, ressarcir danos, ou restaurar relacionamentos, a Justiça Restaurativa pretende confi rmar que as comunidades são capazes de, em cooperação, encontrarem a solução para os seus litígios, suas problemáticas, com a correção diária e local de seus desacertos.

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A imprescindibilidade do advogado exaltada na Constituição de 1988

Ana Jéssica Pereira Alves

Francisco Camilo de Amorim MeloNathália Nayara Soares Fernandes

Lígia Maria Silva Melo de Casimiro

RESUMOO presente artigo tem por escopo dissertar acerca da tão grande e inestimável positivação da

figura do advogado na Carta Magna de 1988, sendo tal fato considerado como de extrema relevância e indispensabilidade, visto que é a única profissão privada regulamentada na Constituição, e em vista disso merece enorme respaldo. À luz de tal anseio, o presente trabalho tem por finalidade apresentar essa profissão, bem como mostrar suas origens e desenvolvimento entrelaçando-os através dos aspectos históricos que permeiam os diversos atos originários dessa atividade, buscando também apresentá-la segundo sua normatização no texto Constitucional e também segundo as novas perspectivas que a profissão apresenta na atualidade. Nesse sentido, um fator que reforça a relevância desse estudo mostra-se na importância do advogado no cenário jurídico brasileiro, sua atuação e desempenho na busca por uma ordem jurídica justa; cabendo, como segundo fator relevante para a elaboração desse estudo, o fato da sua exaltação na Constituição de 1988.

Palavras-chave: Advogado. Constituição. Independência funcional. Função essencial à justiça.

The indispensability lawyer exalted in Constitution of 1988

ABSTRACTThe theme of this article is to expound on the scope so great and priceless positivization the

figure of the lawyer in the 1988 Constitution, this fact being considered as extremely important and indispensable, since it is the only private profession regulated in the Constitution and in view of this deserves widespread support. In light of this longing, this paper aims to present the profession, as well as showing its origins and development through the intertwining of historical factors that underlie the various acts originating this profession, also seeking to present it according to its regulation in the Constitutional text and also according to the new perspectives that this profession has currently. In this sense, a factor that reinforces the relevance of this study shows is the importance of the lawyer in the Brazilian legal scenario its activities and performance in the search for a just legal system; assuming as the second important factor for the development of this study, the fact of their exaltation in the 1988 Constitution.

Keywords: Lawyer. Constitution. Functional independence. Essential function to justice.

Ana Jéssica Pereira Alves é acadêmica de Direito – Universidade Regional do Cariri URCA. E-mail:[email protected] Camilo de Amorim Melo é acadêmico de Direito – Universidade Regional do Cariri URCA.Nathália Nayara Soares Fernandes é acadêmica de Direito – Universidade Regional do Cariri URCA.Lígia Maria Silva Melo de Casimiro é professora de Graduação e Pós-Graduação em Direito – Universidade Regional do Cariri URCA.

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1 INTRODUÇÃODiante das transformações sociais e de uma sociedade que se tem mostrado

altamente litigante, imprescindível e de extrema necessidade se faz a atuação do advogado, visto ser ele quem detém a capacidade postulatória, ou seja, a capacidade de pedir ou exigir a prestação jurisdicional do Estado em favor de seu cliente. Além disso, é o advogado quem presta assessoria e/ou consultoria jurídica; é ele quem defende os interesses das partes em juízo ou fora dele, sendo indispensável à administração da justiça, exercendo assim, uma função social. O advogado, como qualquer outro profi ssional, deve agir dentro das normas atinentes a sua atividade profi ssional para que não crie um risco não permitido, e não lhe seja imputado qualquer resultado penal típico.

A liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profi ssão é garantida na Constituição, precisamente no art. 5º, inciso XIII, “atendidas as qualifi cações profi ssionais que a lei estabelecer”. Com amparo constitucional proveniente dessa norma o legislador pode e deve, e o fez muito bem no âmbito do Estatuto da Advocacia e da OAB, defi nir requisitos e condições (qualifi cações) razoáveis para o exercício de profi ssões. Para exercer essa nobre função, é sabido que, além de ser bacharel em direito, o indivíduo deve ser aprovado no exame da OAB e que esteja inscrito no quadro de advogados dessa instituição.

Diante disso, percebe-se sua importância na sociedade e no mundo jurídico, uma vez que é considerado como prestador de serviço público, sendo indispensável ao acesso à ordem jurídica justa, de forma que seus atos constituem um múnus público, contribuindo, dessa forma, para a administração da justiça e na concretização do direito.

2 ASPECTOS HISTÓRICOS E VOCÁBULOHistoricamente a advocacia tem origem remota fi gurando como uma das profi ssões

mais antigas do mundo, sendo complicado precisar com exatidão em que momento se originou, não havendo dessa forma, informações totalmente precisas sobre o primeiro registro dessa profi ssão na história da humanidade, suspeitando-se que sua origem ocorreu na Suméria, como afi rma Lobo:

A advocacia, como defesa de pessoas, direitos, bens e interesses teria nascido no terceiro milênio antes de Cristo, na Suméria, se forem considerados apenas dados históricos mais remotos, conhecidos e comprovados. Assim se tem conhecimento que a prática da advocacia era efetiva. (LOBO, 2002, p.3)

Apesar dessa incerteza, pode-se afi rmar que a advocacia foi, durante um longo tempo, exercida pelo espírito de solidariedade, tendo como ponto primordial a

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necessidade de defender aqueles que eram constantemente vítimas de injustiças por serem hipossufi cientes e, dessa forma, tinham seus direitos desprezados, surgindo assim cidadãos inconformados com tal situação e que passaram a exercer gratuitamente a defesa daqueles mais fracos.

Não obstante toda essa controvérsia, a Grécia é considerada como o berço da advocacia. Isso porque, depois de muitas transformações, o povo é que passou a escolher um orador para fazer a acusação ou defesa do acusado, sendo a partir desse momento que a advocacia surge como profi ssão propriamente dita, aparecendo as fi guras de grandes oradores como Aristides, Antifon, Demóstenes, Lisias, Péricles, entre outros, que se destacaram pela grande oratória e persuasão que possuíam. Sendo nesse período o símbolo da justiça representado pela deusa dikê, tendo na mão direita uma espada e na mão esquerda a balança de dois pratos, signifi cando que o justo é visto quando os dois pratos estiverem ao mesmo nível.

Roma por sua vez, depois de constantes mudanças teve uma classe de profi ssionais especialistas em defesa, podendo agora serem formalmente chamados de advogados, originando a defesa através de forma escrita e não mais verbal, havendo também um parecer jurídico culminando pois, na formação do processo. Apesar disso, somente com Justiniano é que foi constituída a primeira ordem de advogados, sendo imprescindível que o advogado tivesse registro no foro para poder atuar. É importante salientar que em Roma o símbolo da justiça é representado pela deusa Iustitia, onde esta aparece de pé e com os olhos vendados segurando uma balança e uma espada, representando que somente haveria justiça quando fosse realizado o direito.

Foi a partir desses povos – gregos e romanos – que a advocacia se originou e desenvolveu, evoluindo ao longo dos séculos e que por infl uência romana permanecem alguns aspectos muito semelhantes aos dos dias atuais.

No Brasil, a advocacia apareceu com as Ordenações Filipinas durante o período colonial e determinava que, para se tornar advogado, o indivíduo deveria ter uma formação de oito anos de curso jurídico, restringindo essa profi ssão somente à corte, pois o curso era efetuado somente em Coimbra – Portugal. Porém, em 24 de julho de 1713 foi expedido um alvará régio, que concedia o exercício da advocacia a quem fosse pessoa idônea e que não pudesse ir a Coimbra, multiplicando assim, os profi ssionais advocatícios para além da corte, vigorando tal alvará até a regulamentação do Estatuto da Advocacia, sendo que, em 18 de novembro de 1930 com o decreto n° 19.408 é que foi criada a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde agora, para exercer a profi ssão o indivíduo deverá cursar direito, curso este que tem duração de cinco anos, devendo também ter aprovação no exame da OAB.

Quanto ao termo “advogado”, este provém etimologicamente do latim “ad vocatus”, ou seja, aquele que é chamado para perto. Melhor dizendo: é aquele que é chamado em defesa de alguém, buscando alcançar justiça, intercedendo em juízo por outro que teve seus direitos violados; assim, é chamado por uma das partes para auxiliá-lo em sua defesa.

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3 A FUNÇÃO DO ADVOGADOO trabalho do advogado não se resume apenas nas lutas para garantir os direitos

dos particulares que lhe confi aram esta função, mas vai muito além dessa perspectiva, pois seu principal papel é fazer acontecer a justiça social. Essencial se faz recordar, conforme exorta a Constituição Federal, a imprescindibilidade do advogado, do ato de advogar, para o Estado democrático de direito. Neste sentido lembramos as citações de Hermann Assis Baeta (p.295): “o advogado é, antes de tudo, um cidadão que não fi ca à margem, acima ou abaixo da conceituação destinada ao ser político... o cidadão-advogado”.

O advogado, mesmo sendo um cidadão como os demais, possui uma participação essencial na concretização da democracia, em virtude de sua formação acadêmica e vasta experiência na proteção dos direito fundamentais, o que o capacita a discernir de maneira mais produtiva na luta em busca da justiça e da democracia. O advogado:

[...] para João Monteiro é o jurisconsulto que aconselha as partes litigantes, esclarece os juízes e dirige a causa, alegando, de fato e direito, o que convenha aos interesses do constituinte. Já para Teixeira de Freitas advogado é a pessoa do juízo que, por seus conhecimentos de jurisprudência, instrui e patrocina seus constituintes. (SODRÉ, 1975, apud AMARAL, 1985, p.V)

A fi gura do advogado está intrinsecamente ligada à estrutura judicial. Ele é o elo entre a parte que busca o êxito da prestação jurisdicional almejada e o Juiz, representante do Estado. O Advogado é a parte especializada em facilitar a comunicação em juízo, apontar as injustiças, orientar e repassar ao seu cliente as melhores opções, interceder e defende-lo com os melhores argumentos. Por essas e outras razões, é imprescindível à concretização da justiça, conforme se retira do texto de Piero Calamandrei (apud PORTO, 2008):

Na sempre crescente complicação da vida jurídica moderna, na aspereza dos formalismos processuais que parecem aos profanos misteriosas tricas, o advogado é um precioso colaborador do juiz, porque trabalha em seu lugar para recolher os materiais do litígio, traduzindo, em linguagem técnica, as fragmentárias e desligadas afi rmações da parte, tirando delas a ossatura do caso jurídico para apresentá-la ao juiz em forma clara e precisa e nos moldes processualmente corretos; e daí, graças a esse advogado paciente que, no recolhimento do seu gabinete, desbasta, interpreta, escolhe e ordena os elementos informes proporcionados pelo cliente, o juiz chega a fi car em condições de ver, de um golpe, sem perda de tempo, o ponto vital da controvérsia que é chamado a decidir.

Dessa forma, faz-se mister a refl exão sobre a real função da advocacia, aquela sonhada e transcrita na Carta Magna. De caráter humanista, e não apenas fi nanceiro;

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marcada pela solidariedade, e não com víeis de oportunismo e insensibilidade, conforme dita a cultura brasileira. Mas que se possa capacitar o profi ssional do direito no intuito que ele mesmo descubra o sentido social de sua atuação.

4 A NECESSIDADE DA ADVOCACIASe nas sociedades mais remotas apreciava-se o fato de se ter alguém que lhe

apoiasse, lhe defendesse nos problemas advindos da convivência com a coletividade, atualmente essa necessidade é ainda maior, devido a complexidade das relações humanas e do nível de civilização a que chegamos, que exige diariamente associações, contratos, obrigações, e nesse ambiente entra o profi ssional do direito, atuando como “decifrador” do emaranhado legislativo, como conselheiro e defensor dos direitos.

Só o advogado detém a capacidade postulatória, ou seja, ele é o único capaz de postular os interesses das pessoas em juízo ou fora dele, além de prestar assessoria e consultoria, dedicando-se à manutenção dos direitos de seu cliente.

Por sua vez, o cliente deposita na fi gura do advogado toda sua confi ança e esperança no sucesso da causa. Relatando todo o acontecido que lhe afl ige, na expectativa de ser compreendido e que seja encontrada uma solução que lhe devolva a tranquilidade. Enquanto o advogado se comporta não só como um mero ouvinte, mas também como um conselheiro, psicólogo, amigo e principalmente protetor. Tendo que desenvolver habilidades que não lhe são repassadas na graduação, mas que ele deve aprender com as experiências de cada caso.

Além das funções já citadas, outra atividade digna de comento e que vem sendo alvo de discussão entre doutrinadores, professores e estudantes, é a de negociador. O advogado, na atualidade, preocupa-se em encontrar uma solução para a avença e executá-la antes mesmo de levar o caso a juízo. Economizando tempo, dinheiro, e satisfazendo a pretensão de seu cliente de maneira produtiva e oportuna. Para isso, ele precisa não apenas conhecer a legislação e doutrina jurídica, mas também outras disciplinas, como psicologia, economia, informática, antropologia, etc.

No entanto, não é somente na área privada que o advogado se faz importante, ele contribui de forma fundamental na formação da sociedade enquanto descomplica o universo jurídico para seu cliente e luta pela preservação do direito à liberdade de expressão, à propriedade, liberdade na forma de construção das relações familiares, no modo de atuação do mercado econômico e até mesmo na atuação do Estado.

Portanto, o advogado é a peça essencial na construção da sociedade atual e no seu regular desempenho, pois dele depende vivermos uma sociedade justa, plural e democrática. Conforme ressalta Fabiana Cristina Severi (2005):

Daí exigir-se uma advocacia ativista, comprometida com a busca de uma sociedade mais justa, humana e solidária, contando, para isso com instrumentos processuais

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mais efi cientes, hábeis e efi cazes, que priorizam o social. É necessário implantar a ideia de uma advocacia de inspiração antipositivista e antiformalista, capaz de promover um acesso aberto e amplo à justiça.

5 DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS SOBRE A FUNÇÃO DO ADVOGADO, SENSO COMUM E NOVAS PERSPECTIVAS O advogado é o administrador da justiça, sua importância é expressamente

prevista na Constituição, como uma função que busca o equilíbrio social, a defesa dos interesses individuais e das minorias sociais, fazendo uso da lei e todos os meios e técnicas de convencimento.

O trabalho do advogado é essencialmente técnico, mas o domínio da oratória e multidisciplinariedade de conhecimento são essenciais para um profi ssional que queira destaque no mercado de trabalho, diante dessas peculiaridades aqueles mais entendidos do direito são também os mais requisitados para postularem na Justiça.

Durante o regime militar os brasileiros tiveram cassados os direitos políticos, durante esse período o Brasil vivia em um verdadeiro golpe contra os direitos humanos, através da perseguição e tortura de cidadãos que fossem contrários ao regime. Nesse momento ditatorial advogados postularam em defesa do povo, pois bem souberam os ditadores, reais ou potenciais, que os advogados sempre estiveram do lado contrário de onde se situa o autoritarismo e a injustiça.

Dura realidade, na qual os advogados são agredidos pelos que pretendem subverter a ordem contra a qual se insurgem. De todas as formas, ou são o alicerce ou são o levedo. E em ambas as hipóteses pagam uma contribuição histórica ao sarcasmo de todas as épocas, origens e direções. (PAIVA, 2001)

O advogado passa desse modo a conquistar mais confi ança da sociedade brasileira, que em momentos de censura viram na fi gura do advogado um representante da justiça, livre das infl uências do regime, porque só na fi gura do advogado a sociedade brasileira pôde adquirir uma segurança jurídica, inclusive tendo sido muitos deles perseguidos e torturados. Lentamente no decorrer dos fatos modifi cou-se essa idiossincrasia pelos advogados. “No Brasil verifi ca-se que o advogado não adquiriu o status de indispensável à administração da Justiça, e apenas, tão somente, após a promulgação da Carta Magna de 1988” (PAIVA, 2001).

Nesse sentido assim foi disposto o art. 133 da Constituição Federal: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profi ssão, nos limites da lei.” A partir desta norma constitucional o povo brasileiro inova com a exigência de uma mudança comportamental exigida dos

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profi ssionais da advocacia. Em seus diversos artigos que protegem os direitos humanos e sociais, trazendo em seu texto um perfi l de cidadania, o povo brasileiro inova com uma Carta Política efetivamente democrática e protetora das liberdades individuais, tendo refl exos imediatos nos tribunais e no mundo acadêmico. Estreia desse modo, através da Magna Carta uma ordem jurídica teleológica, programática, que tem suas fi nalidades e, portanto, não pode admitir sejam elas abandonadas por aqueles que exercem o Direito. Admitindo-se que o acesso a justiça em todas as suas modalidades é elemento essencial às sociedades democráticas.

Os avanços sociais foram exigindo um perfi l de advogado mais amigo, conhecedor dos aspectos jurídicos e com capacidade de transformá-los, transmitindo aos seus clientes maior confi ança e respeito. O domínio da língua e a capacidade de persuasão despontam nesse novo contexto. Impulsionados pelo avanço nas ciências e tecnologias, os litígios também tomam novas formas.

Bastante generosa na garantia de direitos difusos, coletivos e individuais, não apenas em seu expresso reconhecimento, mas, também, na previsão de mecanismos aptos a permitir que efetivamente os seus titulares pudessem acessá-los, a Magna Carta estabeleceu um extenso rol de atores com atribuições para a defesa de tais direitos elencando dentre as funções essenciais à justiça, a Advocacia e a Advocacia Pública, que atuam no âmbito judicial necessitando ampliar ainda mais a sua participação social e suas atividades.

No campo do acesso à justiça, há ainda que enfrentar uma outra questão que no Brasil tem um perfi l especial, as custas judiciais. No âmbito da justiça estadual, não só as custas judiciais variam muito de estado para estado, como não parece haver um critério racional que justifi que essa disparidade. (SANTOS, 2011)

Para concretizar as normas e princípios do art. 133 da Constituição, o Estatuto da advocacia, instituído pela Lei nº 8.906 de 4 de julho de 1994, dispõe sobre os direitos e deveres dos advogados, como também defi ne as características essenciais da advocacia, quais sejam: A indispensabilidade que decorre da importância do advogado para ordem pública e relevante interesse social, e como instrumento de garantia da efetivação da cidadania. Em relação a essa indispensabilidade, apropriada é a lição de Paulo Luiz Neto Lôbo (2002, p.29), “O princípio da indispensabilidade não foi posto na Constituição como favor corporativo aos advogados ou para reserva de mercado profi ssional. (...) É garantia da parte e não do profi ssional”.

A inviolabilidade, pela qual o advogado se torna inatacável e incensurável por seus atos e palavras quando do exercício da função, salvo os casos de infração disciplinar e os limites da responsabilidade. A função social, a qual é realizada pelo advogado quando concretiza a aplicação do direito e obtém as prestações jurisdicionais, participando desta forma, da construção da justiça social. A independência, o advogado deve ser independente até de seu cliente, utilizando-se da ética da parcialidade, uma vez que a conduta do advogado conduz à formação do senso que envolve toda a classe.

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Diante da enorme mudança constitucional em relação ao advogado, surgem ainda novos desafi os na regulação da atividade, estando em discussão na OAB e entre os doutrinadores a prática da advocacia pro bono, exercida por muitos advogados, caracterizada por suas práticas solidárias e de interesse público, seria uma ferramenta importante e necessária para ampliar o acesso à Justiça

A advocacia popular acaba por subverter os pressupostos de imparcialidade, neutralidade e despolitização das profi ssões judiciais apostando na aproximação, autonomização, organização e mobilização política dos movimentos sociais e organizações populares. Trata-se de um circuito de aprendizagem recíproca em que a mobilização do direito atua a serviço da transformação social e a mobilização social transforma os pressupostos de atuação da prática jurídica. (SANTOS, 2011)

Também tem causado debate entre a comunidade acadêmica a constitucionalidade do exame de Ordem como requisito para o exercício das funções advocatícias. Por outro lado, a existência do exame para o exercício da advocacia e a ausência de verifi cação similar para outras carreiras não invalida juridicamente (ou politicamente) o instituto. O caminho mais adequado para a sociedade brasileira é justamente estender a aprovação em exames correlatos como requisitos para o exercício de outras profi ssões socialmente relevantes.

Assim vemos o entendimento majoritário que defende a manutenção do requisito, entendendo ser o mesmo constitucional e necessário ao interesse público, levam-se, na devida conta, os riscos e problemas que o desempenho inefi ciente de certas ofícios podem trazer para o cidadão e a sociedade como um todo:

A capacitação é indispensável para a adequada defesa do cidadão. Daí decorre a importância da manutenção do Exame de Ordem como critério de seleção dos que possuem o mínimo de conhecimento jurídico para bem orientar e defender os direitos e interesses dos cidadãos. Não podemos condenar as pessoas, especialmente a população mais carente, a um profi ssional sem preparo sufi ciente para exercer o papel de garantidor da cidadania. (COÊLHO, 2013)

Registre-se, ademais, que o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade e em sessão plenária realizada em 2011, já reconheceu a constitucionalidade do exame de ordem, segundo extrai da ementa do Recurso Extraordinário nº 603.583: “O Exame de Ordem, inicialmente previsto no artigo 48, inciso III, da Lei nº 4.215/63 e hoje no artigo 84 da Lei nº 8.906/94, no que a atuação profi ssional repercute no campo de interesse de terceiros, mostra-se consentâneo com a Constituição Federal, que remete às qualifi cações previstas em lei”.

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6 CONCLUSÃOO acesso à justiça é um pressuposto básico quando se visa assegurar o pleno

exercício da cidadania. Na esfera judiciária, essa cidadania se concretiza principalmente com o respeito e a plena realização do contraditório e ampla defesa, assim como através do devido processo legal.

No entanto, deixar exclusivamente às partes os cuidados com esses direitos geraria injustiças, tendo em vista as desigualdades econômicas, sociais e politicas que assolam nossa sociedade. Basta imaginar a hipótese em que um empresário alfabetizado e conhecedor das leis propusesse uma ação contra um agricultor analfabeto. Todos os que detivessem um ínfi mo ou mesmo nenhum conhecimento sobre leis iriam padecer, pois mesmo gozando do devido processo legal, ampla defesa e contraditório não saberiam como utilizá-los.

E é nesse panorama que a figura do advogado ganha destaque e merecida importância. Ele é a medida que busca igualar os lados do processo, atenuando as desigualdades implícitas e explicitas, facilitando a comunicação entre cliente e juiz, aconselhando sobre os métodos mais produtivos, aliviando as preocupações do cliente que não encontrava mais solução para seu caso.

Diante dessa perspectiva, o legislador, não só constitucional, mas também infraconstitucional, sabiamente cuidaram de confi ar ao profi ssional devidamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil o ônus de exercer com exclusividade a competência de dirigir-se a juízo e postular direitos. Conforme esculpido no Artigo 133 da Carta Magna, fazendo emergir uma garantia fundamental: a imprescindibilidade do Advogado. Portanto, à lei caberá regulamentar a atividade do advogado, sendo-lhe proibido facultar a presença do mesmo, o que estaria negando a sua natureza de função essencial à justiça. Pois como é sabido, essencial signifi ca necessário, crucial, indispensável.

Sendo assim, é notória a indispensabilidade do advogado dentro da estrutura judicial como colaborador na busca da justiça. Assim todos os parâmetros protetivos mínimos afetos a dignidade humana devem ser acolhidos e concretizados, através da prática da responsabilidade social no Direito e implementação do acesso integral à Justiça onde atua esse notável profi ssional.

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O transconstitucionalismo como alternativa aos confl itos entre ordens jurídicas:

novos aspectos

Aléssia Pâmela Bertulêza Santos

RESUMOO presente artigo esboça uma análise da teoria transconstitucionalista, desenvolvida pelo

professor da Universidade de Brasília, Marcelo Neves. Em um primeiro momento, chama-se a atenção para as alterações decorrentes do exaurimento do processo de globalização dos Estados-nacionais e a para a imbricação ocorrida entre os ordenamentos desses Estados, constatando-se a inevitabilidade da ocorrência de conflitos entre tais ordens. Assim, o transconstitucionalismo, enquanto proposta de superação dos conflitos entre ordens normativas distintas por meio do estabelecimento de pontes de transição desprovidas de hierarquia, passa a ser analisado através da apresentação de algumas situações onde a sua aplicação se revelou satisfatória. Nessa senda, foram verificados alguns traços da teoria em destaque que não foram mencionados pelo seu autor, como o caráter contínuo do diálogo proposto e a carência metodológica da referida teoria, o que acaba colocando em risco a aplicabilidade do transconstitucionalismo.

Palavras-chave: Transconstitucionalismo. Metodologia. Direito Internacional.

The transconstitucionalism as a alternative to conflict between legal orders: New aspects

ABSTRACTThis article outlines an analysis of transconstitutionalist theory, developed by Marcelo

Neves, University of Brasilia’ teacher. Firstly, is called attention to the changes resulting from the globalization of the national States and the imbrication occurred between the laws systems of these states, we noted the occurrence of the inevitability of conflict between such orders. Thus, the Transconstitutionalism as a proposal for overcoming the conflicts between different normative orders through the construction of transition’s bridging devoid of hierarchy, can be analyzed by presenting some situations where its application has proved satisfactory. In this vein, some of the traits highlighted in theory, not mentioned by the author, as the continuous nature of the proposed dialogue and the methodological deficiency of this theory, which ultimately endangering the applicability of Transconstitutionalism.

Keywords: Transconstitutionalism. Methodology. International Law.

Aléssia Pâmela Bertulêza Santos é graduada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Membro do Grupo de Estudos em Relações Internacionais e Direitos Humanos (GERIDH/UEFS).

Direito e Democracia v.14 n.2 p.123-138 jul./dez. 2013Canoas

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAISA compreensão da existência de confl itos entre ordens jurídicas perpassa pelo

reconhecimento da insufi ciência da ordem estatal para enfrentar as questões que são postas no cenário da sociedade mundial pós-globalização.

A sociedade atual, pós-globalizada,1 difere daquela que emergiu na Era da Globalização. Esta última foi marcada pelo rompimento das fronteiras nas relações internacionais com a intensifi cação do fl uxo de intercâmbio cultural, econômico, tecnológico entre os mais extremos pontos do globo terrestre. A primeira, por sua vez, vai além da mera troca, permitindo aos sujeitos vivenciarem a construção conjunta desses elementos.

Mas, se essas novas relações trouxeram consequências para os diversos campos de atuação estatal, não faria sentido imaginar que o sistema jurídico não seria afetado. Afi nal, o Direito pouco ou nada mais é que um instrumento que refl ete os anseios sociais ao tempo em que pretende limitar a busca pela sua satisfação inconsequente.

Essa aproximação dos Estados acarretou o surgimento de situações limites entre dois ou mais ordenamentos jurídicos, sejam eles estatais, internacionais ou supranacionais, e revelou a insufi ciência das Constituições estatais para resolver problemas que ultrapassam os limites das suas fronteiras.

Diante desse cenário, inúmeras propostas surgiram como alternativas para solucionar o impasse entre ordens jurídicas confl itantes. No presente trabalho, busca-se analisar o transconstitucionalismo proposto pelo professor da Universidade de Brasília, Marcelo Neves.

Após uma breve discussão do conceito de transconstitucionalismo de acordo com o seu idealizador, passa-se à análise de diversas situações em que o transconstitucionalismo foi aplicável e, no momento seguinte, analisa-se a teoria chamando a atenção para alguns aspectos não mencionados pelo seu autor, como a concepção do diálogo transconstitucional como um fazer contínuo e não um fato isolado, visando contribuir para o desenvolvimento da teoria e possível alcance de uma solução para o confl ito entre ordens jurídicas.

2 A INSUFICIÊNCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E O TRANSCONSTITUCIONALISMOPartindo da ideia segundo a qual a Constituição moderna se sustenta em dois

pilares básicos, a saber, os direitos fundamentais e a limitação e o controle jurídico-positivo do poder, faz sentido afi rmar que os casos sobre direitos humanos levados

1 Quando se fala em pós-globalização, aqui, não se pretende adentrar a discussão sobre os rumos supostamente tomados pela globalização, se houve o seu avanço ou a sua superação por qualquer fenômeno de abrangência mundial (ALVES, 2009). Neste trabalho, a expressão pós-globalização é empregada com o intuito singelo de fazer menção à sociedade posterior ao boom globalizante ocorrido na década de 90 quando houve o estreitamento das relações entre os Estados.

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à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a maioria dos que são submetidos à instância internacional, tratam, em essência, de matéria de índole constitucional. Entretanto, as semelhanças existentes não permitem falar em identidade.

Os parâmetros utilizados no âmbito interno e no âmbito internacional são distintos, razão pela qual um mesmo caso pode ser analisado pela Corte Constitucional de um Estado e pela Corte Interamericana sem que se confi gure a ocorrência da quarta instância.2 Todavia, os resultados dessa dupla análise, ainda que tenham tomado por base parâmetros distintos, podem revelar-se confl itantes.

Nesse caso, a ocorrência de confl itos entre uma decisão proferida por uma Corte internacional (como é o caso da Corte Interamericana) e outra emanada da Corte Constitucional nacional3 provocaria incertezas quanto à efetividade da primeira e incredulidade quanto à justiça da segunda. Afi nal, embora oriundas de ordens jurídicas distintas, as duas convergem para o mesmo ponto: a tutela jurídica de direitos cujo zelo o Estado se responsabilizou a guardar, seja ao promulgar uma lei, seja ao ratifi car um tratado, comprometendo-se internacionalmente.

Esse problema ganha repercussão diante da proliferação de organismos internacionais dotados de poder decisório e da complexificação das relações desenvolvidas no âmbito constitucional. Segundo Marcelo Neves,

A emergência de ordens jurídicas internacionais, transnacionais e supranacionais, em formas distintas do direito internacional público clássico, é um fato incontestável que vem chamando a atenção e tornando-se cada vez mais objeto do interesse de estudos não apenas de juristas, mas também de economistas e cientistas sociais em geral.

Ao se debruçar sobre essa nova realidade marcada pela emergência de redes privadas e quase públicas que passaram a conviver lado a lado com as instituições governamentais, o jurista alemão Gunther Teubner concluiu que a globalização provocou a ruptura dos laços “do direito ao discurso político democraticamente legitimado no Estado Nacional” (TEUBNER apud NEVES, 2009, p.33). Segundo Teubner, com isso a política teria sido nitidamente superada por outros sistemas, revelando-se imponível a desvinculação do direito da política democrática no âmbito estatal.

2 De acordo com tal princípio, embora só possam ser acionados após o esgotamento dos meios internos – devido ao seu caráter subsidiário, os organismos internacionais não podem desempenhar as funções de um órgão Recursal, não lhes cabendo, portanto, revisar nem reformar as decisões proferidas pelas instâncias domésticas.3 A problemática do confl ito entre decisões emanadas de ordens jurídicas distintas não se restringe a casos de divergências entre a Suprema Corte de um país e a Corte Interamericana, podendo envolver o Estado outros organismos internacionais, Estados entre si e até mesmo somente organizações internacionais, o que será explicado em momento adiante. No entanto, é interessante destacar que a menção constante e quase exclusiva à Corte Interamericana decorre de uma opção metodológica de delimitação do objeto de estudo.

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Nessa situação, Teubner propõe o modelo de “Constituições civis globais”, baseado na ideia que o surgimento de ordens jurídicas plurais teria proporcionado a emancipação do direito em relação ao Estado nacional.

Importante salientar que esta “teoria pluralista do direito mundial sem Estado” a que Teubner se refere adota um conceito de Constituição mais amplo do que aquele dominante, pois nesta última concepção a Constituição se restringe a “um tipo específi co de vínculo entre apenas dois sistemas específi cos, a política e o direito” (NEVES, 2009, p.34), como entendeu Niklas Luhman em suas obras.

Ao analisar essa construção, Marcelo Neves, que é um seguidor das ideias de Luhmann, discorda de Teubner por considerar que o Estado

[...] É um foco fundamental da reprodução da nova ordem normativa mundial e a distinção entre redes governamentais, privadas ou quase públicas não é tão clara nem nítidas as suas fronteiras, havendo um verdadeiro entrelaçamento de ordens que dá origem ao transconstitucionalismo. (NEVES, 2009, pp.36-37)

Para Neves, a ideia de uma República mundial federal e subsidiária ou de uma estatalidade mundial superior a estatalidade continental e nacional carece de elementos empíricos que viabilizem a sua concretização diante das assimetrias da sociedade mundial.

Nesse contexto, o autor apresenta o transconstitucionalismo, teoria por ele desenvolvida, como uma alternativa aos confl itos. Consoante será explicado adiante, essa teoria propõe um entrelaçamento de ordens jurídicas confl itantes a fi m de chegar-se a uma solução sem que haja sobreposições entre elas e com o respeito à força de cada uma, num verdadeiro diálogo entre ordens jurídicas.

Se alguém tentar chegar a uma defi nição de transconstitucionalismo partindo apenas da decomposição da palavra certamente terá problemas. Embora a noção de constitucionalismo possa ser encontrada em qualquer manual de Direito Constitucional, o prefi xo trans possui um signifi cado dúbio, uma vez que, segundo o Dicionário Houaiss, tanto pode signifi car “depois” quanto “através de”.

Desse modo, diante da aparente complexidade do tema, colaciona-se o conceito simplifi cado da expressão, dado pelo autor durante entrevista concedida ao sítio Consultor Jurídico

Em poucas palavras, o transconstitucionalismo é o entrelaçamento de ordens jurídicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional. Ou seja, problemas de direitos fundamentais e limitação de poder que são discutidos ao mesmo tempo por tribunais de ordens diversas. (CONSULTOR JURÍDICO, 12 de julho de 2009)

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Com base nisso, é possível afi rmar que o transconstitucionalismo é um fenômeno bem mais frequente do que pode parecer à primeira vista, uma vez que os direitos fundamentais constitucionais comumente coincidem com os direitos humanos internacionalmente tutelados. Ademais, no âmbito dos Tribunais Internacionais a limitação do poder costuma surgir como uma necessidade diretamente associada à contenção de violações de direitos.

Insta salientar que o transconstitucionalismo proposto por Neves não pode ser confundido com a noção de Interconstitucionalismo desenvolvida por José Joaquim Gomes Canotilho, apesar de os dois autores tratarem de confl itos que envolvem normas constitucionais.

O traço distintivo entre as mencionadas teorias está situado no objeto, pois enquanto a doutrina de Canotilho trata do confl ito entre Constituições no sentido estrito, ou seja, aquelas emanadas de uma sociedade constitucionalizada, o transconstitucionalismo é mais abrangente podendo envolver o confl ito entre ordens jurídicas constitucionais e anticonstitucionais.4

3 EXEMPLOS DE APLICAÇÃO DO TRANSCONSTITUCIONALISMOConforme afi rmado, a ideia de um diálogo entre ordens jurídicas, que constitui

a essência do transconstitucionalismo, não se restringe ao âmbito das relações entre o direito estatal e o direito internacional público, podendo envolver ordens diversas. O confl ito que dá ensejo à sua aplicação pode ocorrer entre ordens jurídicas estatais, entre direito supranacional e internacional, direito supranacional e estatal, entre ordens jurídicas estatais e ordens locais extraestatais e entre direito internacional e direito estatal.

A rigor, nos casos em que mais de uma ordem é invocada para solucionar um mesmo problema não cabe falar-se em “redes verticais”, pois isso desaguaria na ideia de uma relação hierárquica entre as ordens envolvidas, hipótese que é rechaçada pelo idealizador do transconstitucionalismo (NEVES, 2009, p.132).

3.1 Relações entre ordens estataisO transconstitucionalismo entre ordens estatais ocorre quando um assunto é

comum a dois Estados distintos e cada um possui o seu modo próprio de regulamentá-lo. Em seu livro, Marcelo Neves afi rma que é possível identifi car um verdadeiro “transjudicialismo” em razão da cada vez mais frequente invocação por parte das

4 Com base na concepção de assuntos constitucionais são aqueles que tratam sobre a proteção aos direitos fundamentais e a limitação e controle do poder político. Chega-se à conclusão de que ordens jurídicas anticonstitucionais são aquelas que não observam a garantia dos direitos fundamentais e/ou não possuem mecanismos efetivos de controle do poder (NEVES, 2009, p.XXII).

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Cortes Constitucionais das decisões proferidas pelas Cortes de outros Estados como fundamento das suas próprias decisões.

No Brasil, é possível identifi carmos esse tipo de manifestação em votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Cada vez mais, os membros da Suprema Corte recorrem ao direito estrangeiro para fundamentar os seus respectivos entendimentos, em especial, aqueles que representam uma guinada jurisprudencial.

Nesse sentido, vale mencionar o voto do Ministro Gilmar Mendes na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, em que se pleiteava a atribuição de interpretação conforme a Constituição do art. 1.723 da Lei 10.406/2002 (Código Civil).

Na ocasião, o Ministro colacionou o entendimento da Corte Costituzionale italiana sobre a viabilidade de decisões interpretativas com efeitos modifi cativos ou corretivos da norma, como aquela que o STF estava prestes a proferir, diante de situações onde a declaração de inconstitucionalidade total ou a opção pelo mero não conhecimento da ação podem trazer consequências drásticas para a segurança jurídica e o interesse social.

No mesmo julgamento, o Ministro recorreu também ao direito alemão, por vislumbrar no direito que do indivíduo ao autodesenvolvimento (Selbstentfaltungsrecht), previsto na Lei Fundamental de Bohn, o embrião da espécie de direitos que se discutia no caso sub judice.

3.2 Relação entre direito estatal e direito supranacionalEntendendo a supranacionalidade como o atributo daquelas organizações que em seu

tratado fundador tem prevista a criação de órgãos com funções legislativas, administrativas e julgadoras com vasta competência material e cujos atos são dotados de força vinculante capaz de se sobrepor aos atos emanados diretamente dos Estados-membros, chega-se à conclusão que a única organização supranacional hoje existente é a União Europeia.

Deste modo, falar sobre transconstitucionalismo entre ordem jurídica estatal e supranacional coincide com a análise das relações estabelecidas entre a União Europeia e os seus Estados-membros, especialmente no que diz respeito às decisões proferidas pelas Cortes estatais e aquelas prolatadas pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (STELZER, 1998, p.65).5

Importante destacar, com relação à ONU que, não obstante a sua competência para a elaboração de tratados sobre praticamente todos os assuntos, a sua autonomia

5 Ademais, o caráter de ordem jurídica independente da União Europeia se evidencia também pela sua condição de membro pleno da Organização Mundial do Comércio, em que negocia em nome de todos os Estados-membros (sendo que todos eles também são membros da OMC por direito próprio) e da recém-conquistada permissão para que os seus representantes “apresentem e promovam as posições da UE nas Nações Unidas de forma atempada e efi ciente através de um conjunto de modalidades que concedem à delegação da UE o direito de fazer intervenções, bem como o direito de resposta, e a capacidade de apresentar propostas e alterações orais” (Jornal da União Europeia).

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em relação aos seus Estados-membros e o seu poder sancionatório, não cabe falar em caráter supranacional para essa organização, uma vez que carece aos seus atos e decisões força vinculante capaz de sobrepor-se à vontade dos Estados-membros. Nesse ponto, embora o art. 2º, §7º da Carta da ONU traga a possibilidade de intervenção no Estado-membro, não dá para confundir a excepcionalidade dessa mitigação com a verdadeira transferência de parcela da soberania dos Estados-membros para a União Europeia e que permite a essa operar “por cima das unidades que a compõe, na qualidade de titular absoluta”.

3.3 Relações entre direito supranacional e direito internacionalO desenvolvimento do transconstitucionalismo entre o direito supranacional e

o direito internacional deu-se em razão da abertura das Constituições estaduais para outras dimensões jurídicas. Embora os sujeitos primários das relações supranacionais e internacionais sejam os Estados, o direito daí emanado não se confunde com o direito estatal, pois às organizações supranacionais e internacionais cabe a regulamentação de matérias eminentemente constitucionais na esfera além-Estados.

Nesse aspecto, merece destaque o relacionamento mantido entre o Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a União Europeia. A União Europeia não é membro do sistema europeu de direitos humanos e, conforme a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, “constitui uma entidade autônoma, dotada de direitos soberanos e de uma ordem jurídica independente dos Estados-Membros” (BORCHARDT, 2011, p.34) que se impõe tanto aos Estados-membros como aos seus respectivos cidadãos, sendo o núcleo do Direito Comunitário europeu.

Todavia, a Corte Europeia de Direitos Humanos tem reiterado o entendimento pelo reconhecimento da sua própria competência para controlar atos e normas emanados da UE, desenvolvendo uma intensa relação transconstitucional com o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.

Quando há casos no TJCE que são regulados paralelamente por normas da União Europeia, o TEDH os tem examinado, procurando conciliar as perspectivas e evitar confl itos: por um lado, em algumas ocasiões, o tribunal tem renunciado à sua própria linha de argumentação para seguir a orientação do TJCE; por outro, em certas oportunidades, o TEDH não tem seguido o precedente do TJCE. (NEVES, 2009, pp.230-231)

Nesse caso, está confi gurado o pleno exercício do diálogo transconstitucional entre uma ordem jurídica internacional (representada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos) e uma ordem jurídica supranacional (nesse caso, a União Europeia) marcado pela ausência de imposição de uma ordem como correta e pela recíproca disposição de aprendizado e intercâmbio.

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3.4 Relação entre direito estatal e ordens locais extraestataisA presença de ordens locais extraestatais pode ser constatada quando dentro de

um Estado encontram-se grupos nativos, desprovidos de personalidade jurídica coletiva, que possuem formas próprias de agir e regras costumeiras que aparentemente colidem com o que se encontra previsto no texto constitucional do Estado, violando até mesmo direitos humanos.

A construção de um diálogo nesse caso se revela indispensável, pois a outra alternativa seria a outorga unilateral de direitos por parte do Estado, o que representaria uma negação da outra ordem. Apesar de parecer um contrassenso, o estabelecimento dessa conversação entre uma ordem constitucional e uma que se encontra claramente às margens dos ditames constitucionais revela o objetivo central do transconstitucionalismo, qual seja, desenvolver “a dimensão normativa da sociedade mundial do presente”. Não podendo, portanto, excluir institutos alternativos que contribuam para o desenvolvimento deste “diálogo construtivo”.

Na América latina é muito frequente a ocorrência de problemas jurídicos decorrentes das difi culdades de entrelaçamento entre ordens constitucionais dos Estados e ordens normativas nativas, sobretudo no que tange ao modo de proteção dos direitos humanos.

Diante desse cenário, alguns Estados buscaram enfrentar através do “modelo de integração constitucional da pluralidade resultante das particularidades normativas das comunidades indígenas”. Nessa esteira, ganha relevância a Constituição boliviana aprovada em 2007 que estabelece em seu artigo 1º a construção de um Estado unitário social de Direito Plurinacional,6 reconhecendo que o domínio dos povos indígenas sobre os seus territórios ancestrais datam do período pré-colonial, garante-lhes a autodeterminação que abrange o direito a autonomia, ao autogoverno, a cultura própria e ao reconhecimento de suas instituições.

Assim, verifi ca-se que a Constituição boliviana reconhece aos povos indígenas daquele território atributos semelhantes aqueles outorgados pela Constituição brasileira aos seus estados federados, ou seja, autonomia, autogoverno e autoadministração, o que demonstra o respeito conferido à independência dessas ordens locais extraestatais.

3.5 Relação entre direito estatal e direito internacional públicoO transconstitucionalismo no âmbito das relações entre o direito estatal e o direito

internacional se afi gura como uma necessidade em face da constante emergência de situações jurídicas que dizem respeito, simultaneamente, as duas ordens. O crescente surgimento desse tipo de caso traz à tona a insufi ciência das Constituições estatais e do

6 Artigo 1º da Constituição política do Estado boliviano: “Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, autonómico y descentralizado, independiente, soberano, democrático e intercultural. Se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y linguístico, dentro del proceso integrador del país”.

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aparato estatal nela baseado para tratar de assuntos cujo interesse extrapola os limites do território do Estado.

Por outro lado, revela também a carência da ordem internacional da força institucional inerente aos instrumentos constitucionais. É bem verdade que os organismos internacionais, como a ONU, possuem mecanismos legítimos de intervenção em seus Estados-membros para executar medidas coercitivas impostas àquele Estado pela Organização, bem como é verdade também que nos dias atuais nenhum Estado pode se eximir de obrigações internacionalmente assumidas com base apenas no princípio da autodeterminação/não intervenção e da igualdade soberana.

Ora, embora sejam juridicamente possíveis, medidas interventivas correntes põem em risco a legitimidade da ordem internacional. Nessas hipóteses, o ideal é estabelecer um elo entre direito internacional público e direito interno de modo a permitir o intercâmbio entre as ordens normativas, uma vez que os Tribunais internacionais cada vez mais tratam de assuntos constitucionais (direitos fundamentais e limitações ao poder) em uma dimensão que não pode ser alcançada pelos Estados.

O Estado Argentino é um exemplo da prática transconstitucional entre direito estatal e ordem jurídica internacional. Desde 1995, a Corte Suprema de Justicia de la Nación (CSJN), Tribunal superior daquele país, tem adotado o entendimento segundo o qual as decisões proferidas pela Corte Interamericana inclusive aquelas proferidas em casos nos quais o Estado argentino não seja parte, devem servir como guia para interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Consagrando esse entendimento, em 2005 a CSJN declarou a inconstitucionalidade das Leis de “obediencia debida y punto fi nal”, abrindo caminho para o julgamento e possível condenação dos agentes estatais que praticaram atos de tortura e desaparecimento forçado durante a ditadura militar que usurpou os poderes do Estado entre 24 de março de 1976 e 10 de dezembro de 1983.

A decisão da CSJN que declarou a inconstitucionalidade das referidas leis representou uma virada na sua jurisprudência e teve como fundamento a sentença proferida pela CorteIDH que condenou o Estado peruano no caso Barrios Altos vs. Peru, onde fi cou assentado que

Esta Corte considera que son inadmisibles las disposiciones de amnistía, las disposiciones de prescripción y el establecimiento de excluyentes de responsabilidad que pretendan impedir la investigación y sanción de los responsables de las violaciones graves de los derechos humanos tales como la tortura, las ejecuciones sumarias, extralegales o arbitrarias y las desapariciones forzadas, todas ellas prohibidas por contravenir derechos inderogables reconocidos por el Derecho Internacional de los Derechos Humanos7. (CORTE IDH. Caso Barrios Altos vs. Peru. Sentença de 14 de março de 2001, parágrafo 41.)

7 “Esta Corte considera que são inadmissíveis as previsões legais sobre anistia, prescrição e excludentes de responsabilidade estabelecidos com o objetivo de impedir a investigação e punição por graves violações dos direitos humanos tais como a prática de tortura, execuções sumárias, ilegais ou arbitrárias e desaparecimentos forçados, todas devidamente proibidas por contrariarem direitos irrevogáveis protegidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Tradução nossa.

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A CSJN se manifestou a respeito dessa jurisprudência da Corte IDH no acórdão que declarou a inconstitucionalidade das Leis argentinas 23.492/86 e 23.521/87, respectivamente, “Lei do Ponto Final” e “Lei da Obediência Devida”.

Esta jurisprudencia es – sin duda – aplicable al caso de las leyes que anula la ley 25.779 y, conforme a ella, es claro que la efi cacia de éstas sería considerada un ilícito internacional. Cualquiera sea la opinión que se sostenga respecto de las leyes de marras, la efi cacia de las leyes 23.492 y 23.521 haría incurrir a la República Argentina en un injusto internacional que sería sancionado por la Corte Interamericana de Derechos Humanos, conforme al criterio fi rmemente asentado respecto del Perú, caso en el que este país, después de serias resistencias, debió allanarse. (CORTE SUPREMA DE JUSTICIA DE LA NACIÓN. Caso Simón, Julio Héctor y otros. Sentença de 14 de junho de 2005, p.97)

De acordo com aquilo o que já foi exposto sobre o transconstitucionalismo, se poderia afi rmar que a situação narrada constitui um exemplo típico de sua aplicação. No entanto, é necessário tomar cuidado. A proposta de Marcelo Neves é de construção de um diálogo entre as ordens distintas pautado, sobretudo, na reciprocidade.

O caso argentino, se bem analisado, pode gerar dúvidas se não estar-se-ia diante de um posicionamento que guarda identidade com o monismo internacionalista já que a linha entre o transconstitucionalismo e o monismo, em qualquer das suas vertentes, parece ser bastante tênue8.

Assim, não se pode negar o reconhecimento da razão que assiste aqueles que acreditam estar vivenciando um processo de constitucionalização do Direito Internacional Público. Esse processo, que é consequência do fortalecimento alcançado pela ordem internacional das últimas décadas, equivaleria ao inverso do que ocorreu em 1948, com a criação da ONU e a codifi cação internacional de inúmeros direitos humanos, até então protegidos apenas no âmbito doméstico.

Adotando-se esse entendimento, em face das lacunas deixadas pelo transconstitucionalismo – que serão expostas em momento posterior –, se pode afi rmar que se no século XX fi cou comprovada a insufi ciência das ordens normativas domésticas para tratar de determinados temas que repercutiam além das fronteiras estatais, o século XXI será marcado como a era da internalização do Direito Internacional. Esse processo, aparentemente inverso, é devido à constatação da impossibilidade de criar uma entidade de âmbito mundial com estrutura similar aos Estados, inclusive no que se refere ao monopólio da força.

8 Apesar de muito já ter sido dito sobre a ausência de hierarquia entre as ordens normativas no plano do transconstitucionalismo, na prática é difícil não tentar enquadrar a decisão que resulta desse diálogo em um dos lados da conhecida dicotomia do relacionamento entre direito internacional público e direito estatal: monismo estatal/monismo internacionalista.

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Nesse sentido é a lição de Antonio Cassesse:

É um conhecimento comum que o direito internacional só pode ser implementado pelos órgãos estatais. Para ser mais específi co: a maioria das regras internacionais é dirigida aos protagonistas.da comunidade internacional, isto é, aos Estados, e só pode ser posta em operação se os sistemas jurídicos domésticos dos Estados estiverem prontos para implementá-las. (CASSESSE, 1981, p.331)

Embora possa parecer estranho à primeira vista, essa hipótese já pode ser averiguada nos estados europeus, pois a União Europeia que possui âmbito de atuação muito mais restrito do que a Organização das Nações Unidas vê as suas decisões gozarem de mais efetividade do que qualquer outra organização internacional.9

No intuito de analisar com maior profundidade a presença do transconstitucionalismo entre direito estatal e direito internacional público, que constitui o objeto central deste trabalho, adiante serão analisados casos recentes de confl ito entre essas ordens.

4 O CASO DO URUGUAI – UM BOM EXEMPLO DE DIÁLOGO TRANSCONSTITUCIONAL Um episódio recente que pode ser apresentado como exemplo de sucesso na

adoção de práticas transconstitucionalistas é a conduta assumida pelo Estado uruguaio ante a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gelman vs. Uruguai.

A denúncia apresentada à Comissão Interamericana em 2006, relatava o desaparecimento forçado de María Claudia García Iruretagoyena Gelman no ano de 1976, após ter sido detida em Buenos Aires, Argentina, enquanto já se encontrava em avançado estágio gestacional, sendo posteriormente levada para o Uruguai onde deu à luz sua fi lha que foi entregue a uma família uruguaia.

A Comissão averiguou que todos esses fatos ocorreram no contexto da Operação Condor e até aquele momento não havia notícias sobre o paradeiro de María Claudia nem acerca das circunstâncias em que se deu o desaparecimento dela. Ademais, o Estado não levou a cabo uma investigação sobre os fatos narrados em razão do obstáculo legal representado pela Lei nº. 15.848 de 1986, conhecida como Ley de Caducidad.

A referida Lei previa a perda do direito de exercício da pretensão punitiva por parte do Estado em relação aos delitos praticados durante o período da ditadura civil-militar

9 Embora não se tenha notícia de nenhum estudo comparativo do grau de cumprimento das decisões e recomendações da União Europeia e de outros organismos internacionais, essa afi rmação é dita como verdadeira com base nas informações vinculadas nos meios de comunicação a respeito das relações estabelecidas entre a UE e os seus membros, bem como no princípio do efeito direto (ou aplicabilidade direta) consagrado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.

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por militares e funcionários a estes equiparados desde que animados por motivação política ou em razão no exercício das suas funções.

Além disso, o artigo 3º estabelecia que no caso de ser apresentado ao Judiciário denúncia relacionada a prática de crimes pelos agentes estatais mencionados durante o período abrangido pela Lei 15.848, o juiz responsável deveria encaminhar a petição ao Poder Executivo para que este decidisse acerca da sua admissibilidade, determinando se os fatos narrados estavam ou não dentre aqueles benefi ciados pela Lei.

Desde a sua aprovação a Ley de Caducidad dividiu opiniões e provocou mobilizações sociais. Em 16 de abril 1989, foi realizado um referendo onde por 55.9% dos cidadãos (o que corresponde a 1.082.454 votos) optaram pela manutenção da Lei (BURIANO, 2011), contra 41,3% que votou pela derrogação do diploma (799.109 votos).

No ano de 2009, após a Suprema Corte de Justicia declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º., 3º. e 4º. da Lei nº. 15.848, foi realizado um novo referendo. Todavia, mais uma vez, a maioria dos votos válidos convergiram no sentido da manutenção da Lei. Esse resultado foi crucial para a decisão da Comissão Interamericana de submeter o caso à Corte IDH, em janeiro de 2010.

Sobre a Lei nº. 15.848, a Corte se manifestou nos seguintes termos:

Dada su manifiesta incompatibilidad con la Convención Americana, las disposiciones de la Ley de Caducidad que impiden la investigación y sanción de graves violaciones de derechos humanos carecen de efectos y, en consecuencia, no pueden seguir representando un obstáculo para la investigación de los hechos del presente caso y la identifi cación y el castigo de los responsables, ni pueden tener igual o similar impacto respecto de otros casos de graves violaciones de derechos humanos consagrados en la Convención Americana que puedan haber ocurrido en el Uruguay.10 (CORTE IDH. Caso Gelman vs. Uruguay, Sentença de 24 de fevereiro de 2011, parágrafo 231)

Reiterando a sua farta jurisprudência acerca das leis de anistias que impedem o julgamento dos crimes ocorridos durante os regimes ditatoriais que tiveram espaço na América Latina, em fevereiro de 2011 a Corte proferiu sentença condenando o Estado uruguaio e determinando a adoção de algumas medidas, dentre elas: levar a cabo dentro de um prazo razoável as investigações sobre os fatos do caso permitindo que os familiares acompanhem todo o processo e impedir que a Ley de Caducidad ou qualquer outro qualquer outra medida excludente de responsabilidade seja aplicada.

10 “Diante da sua clara incompatibilidade com a Convenção Americana, os dispositivos da Ley de Caducidad que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos e, consequentemente, não podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos referentes ao presente caso nem para a identifi cação e a punição dos responsáveis, bem como não podem gerar esse mesmo efeito sobre outros casos de graves violações dos direitos humanos consagrados na Convenção que possam ter ocorrido no Uruguai”. Tradução nossa.

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Após a publicação da sentença, houve uma intensa movimentação interna por parte dos cidadãos que buscavam a revogação dos atos administrativos do Poder Executivo

que enquadravam a sua pretensão judicial de ver investigados fatos ocorridos durante o regime ditatorial na impunibilidade trazida pela Ley de Caducidad.11

Foi nesse contexto que em 27 de outubro de 2011 a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou, por 50 votos a 40, a revogação da Lei nº. 15.848, mediante a aprovação da Lei nº. 18.831 que restabeleceu o poder punitivo do Estado em relação aos delitos cometidos até 1º de março de 1985 que até então estavam resguardados pelo artigo 1º da Lei nº. 15.848, de 1986.

Além disso, a referida lei tornou sem efeito os prazos processuais ou prescricionais que tivessem transcorrido até o momento da sua promulgação (art. 2º) e atribuiu status de crime de lesa humanidade com caráter retroativo aos delitos tutelados pela norma revogada, acatando assim a decisão da Corte Interamericana que determinou a remoção de todos os obstáculos para a investigação e sanção dos agentes envolvidos na prática de crimes durante a vigência do regime de exceção.

Poder-se-ia, então, afi rmar que o Uruguai logrou êxito no desenvolvimento de um diálogo transconstitucional com a ordem internacional representada pela Corte IDH, mediante a construção de uma “ponte de transição” que permitiu a superação da desconexão inicial.

5 A CONTINUIDADE COMO UMA NECESSIDADE DO DIÁLOGO TRANSCONSTITUCIONALO estudo do caso uruguaio possibilitou a identifi cação de uma característica que

aparenta ser indispensável ao sucesso da prática transconstitucionalista, mas que não foi expressamente abordada pelo idealizador da teoria.

Desde o início deste ano a imprensa uruguaia vinculava notícias sobre uma possível declaração de inconstitucionalidade da Lei nº. 18.831 por parte da Suprema Corte de Justicia (SCJ)12, o que veio a ser confi rmado em 22 de fevereiro no julgamento de um caso concreto e desde então tem provocado muito debate.

Por ter sido realizada no bojo de um caso concreto, grande parte dos constitucionalistas uruguaios tem manifestado o entendimento de que a decisão não deve ser considerada um retrocesso, uma vez que a declaração incidental de inconstitucionalidade não impede que a lei continue operando os seus efeitos (GALERMO, 2013). D’outra banda, aqueles que criticam a decisão enxergam que ao afastar a incidência do artigo 1º, que reconhece a

11 Diante desse cenário, o Poder Executivo publicou a resolução CM/323 revogando as “razões de legitimidade” de todos os atos administrativos editados por governos anteriores sob o amparo da Lei nº. 15.848. Cf. Caducidad: SCJ comunicó a jueces decreto de revocación. Disponível em: <http://www.lr21.com.uy/politica/463594-caducidad-scj-comunico-a-jueces-decreto-de-revocacion>. Acesso em 24 nov. 2013.12 Cf. Hay mayoría en la Suprema Corte contra la Ley interpretativa de la Caducidad. Disponível em: <http://www.elobservador.com.uy/noticia/243638/hay-mayoria-en-la-suprema-corte-contra-la-ley-interpretativa-de-la-caducidad/>. Acesso em 24 nov. 2013.

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retroatividade da lei, a SCJ criou um precedente arriscado, pois fez surgir a possibilidade de outras condenações serem desfeitas com base no argumento da segurança jurídica.

Como desde a antiguidade Aristóteles já pregava que a Justiça não está em nenhum dos dois lados, mas sim no meio-termo é necessário afastar-se dessa discussão polarizada sobre os possíveis rumos que serão tomados pela jurisprudência da SCJ para extrair algo útil da situação.

Como já foi exposto neste trabalho, a ideia de transconstitucionalismo consiste basicamente em uma tentativa de superar confl itos que surgem na relação entre ordens jurídicas distintas ao tratarem de um mesmo tema através do estabelecimento de um diálogo pautado pela reciprocidade entre as ordens envolvidas visando a construção de uma solução transversal.

Longe de ser boa ou má, a recente decisão da Suprema Corte uruguaia faz emergir outro aspecto do transconstitucionalismo: a necessidade de permanência do diálogo entre ordens, visando manter acesa a chama da reciprocidade, pois o silêncio seria um convite à sobreposição de uma ordem em detrimento de outra.

Engana-se quem acredita que o diálogo entre as ordens jurídicas deve ser estabelecido no calor do momento e encerrado logo após os ânimos se acalmarem. A decisão da Corte uruguaia revela que, mais do que uma técnica de solução de confl itos, o transconstitucionalismo tende a se consagrar como um objetivo a ser constantemente buscado pelas ordens jurídicas. Se não for desse modo, se for encarado como um evento em vez de um processo o transconstitucionalismo está condenado a ser apenas uma nova forma de designar o já ultrapassado monismo (seja na modalidade nacional ou internacionalista).

6 CONCLUSÃO – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A CARÊNCIA METODOLÓGICA DO TRANSCONSTITUCIONALISMOO transconstitucionalismo propõe um diálogo entre as ordens normativas

confl itantes, a fi m de se chegar a uma solução que não implique a negação de nenhuma das ordens envolvidas. Cabe, portanto, ao intérprete construir “pontes de transição” entre as ordens normativas confl itantes.

Não obstante a identifi cação da sua aplicação satisfatória em inúmeras situações de confl ito ocorridos nos mais distintos pontos do globo, o transconstitucionalismo possui algumas lacunas.

Embora nos pareça claro que essa teoria constitui a resposta a tanto tempo procurada para o estabelecimento do elo entre ordens jurídicas confl itantes, o transconstitucionalismo não traz em sua construção a previsão de uma metodologia ou de algum instrumento que viabilize a sua aplicação. Assim, quando as ordens envolvidas se mantiverem silentes, parece-nos que o diálogo transconstitucional resta impossibilitado.

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O transconstitucionalismo propõe o estabelecimento de um diálogo entre ordens jurídicas confl itantes, mas não indica nenhum um meio de iniciá-lo e os exemplos que confi rmam a sua validade longe de trazerem algo novo apenas revelam a existência de uma mentalidade jurídica aberta a outras ordens. Sendo assim, é difícil não imaginarmos que talvez estejamos diante apenas de uma nova nomenclatura para os raros casos bem sucedidos de relacionamento entre ordens distintas e não necessariamente de uma nova tendência, tampouco da tão esperada solução.

Conclui-se, portanto, pela necessidade de desenvolvimento de estudos mais aprofundados sobre o tema a fi m de encontrar uma saída para o problema da falta de metodologia do transconstitucionalismo.

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Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 2013 139

A possibilidade do controle de constitucionalidade de normas por vício

de decoro parlamentarMatheus Ferreira Marques

RESUMOA separação de poderes é fundamental para a o Estado e não pode existir somente no plano

teórico. A aplicação do direito demanda que os poderes judiciário, legislativo e administrativo coexistam harmonicamente, devendo cada poder atuar nos âmbitos de suas funções. Tão importante quando a separação de poderes, para a manutenção do Estado, é a probidade dos parlamentares, pois uma atuação antiética destes tende a uma descrença no Parlamento e a uma descrença nas leis. Na Ação Penal 470, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, foram julgados membros do Congresso Nacional em razão de alegada compra de votos para a promulgação de textos normativos. Elaborou-se, então, a tese de que as normas votadas por parlamentares cujos votos são viciados são passíveis de controle de constitucionalidade pelo poder judiciário. Tal ideia foi corroborada por um magistrado de Belo Horizonte e o Supremo Tribunal Federal foi instado a se pronunciar acerca do tema em Ações que aguardam julgamento. O presente artigo visa analisar a possibilidade jurídica do controle de constitucionalidade por vício de decoro parlamentar.

Palavras-chave: Controle de constitucionalidade. Decoro parlamentar. Separação de poderes.

The possibility of judicial review of acts in case of parliamentary propriety’s blemish

ABSTRACTThe separation of powers is fundamental for the State and cannot exist in theory only.

The application of the Law demands that the judiciary, legislative and administrative powers coexist in harmony and act in each areas of their own functions. As important as the separation of powers, for the maintenance of the State, is the integrity of parliamentarians because when they act unethically, it tends to a Parliament and laws disbelief. In Criminal Case 470, pending before the Supremo Tribunal Federal, members of the Congress were judged because their votes were supposedly bought by one Party. The thesis that the acts voted by parliamentarians whose votes were blemished are able to judicial review by the Judiciary power was then drawn up. This idea was supported by a judge of Belo Horizonte and the Supremo Tribunal Federal was asked to judge the theme. This article aims to examine the possibility of judicial review of acts in case of parliamentary propriety’s blemish.

Keywords: Judicial review. Parliamentary propriety. Separation of powers.

Matheus Ferreira Marques é formado em Direito com ênfase em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Direito e Democracia v.14 n.2 p.139-162 jul./dez. 2013Canoas

Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 2013140

1 INTRODUÇÃOA separação de funções num Estado é crucial para a boa harmonização deste e

há muito avizinha a mente humana. Já na Grécia Antiga, intrigava os fi lósofos Platão e Aristóteles, que buscavam compreender referido conceito para o bem das chamadas “pólis” (as cidades da Grécia Antiga). Para os gregos, era clara a noção de que, para o bom funcionamento da comunidade, onde quer que houvesse poder, deveria haver separação de funções. Juntas, estas funções atingiriam o fi m da coexistência entre os homens. Acerca deste tema, o ilustre constitucionalista José Afonso da Silva (2010, p.109) discorreu que

O princípio da separação de poderes já se encontra sugerido em Aristóteles, John Locke e Rousseau, que também conceberam uma doutrina da separação de poderes, que, afi nal, em termos diversos, veio a ser defi nida e divulgada por Montesquieu. Teve objetivação positiva nas Constituições das ex-colônias inglesas da América [...]. Tornou-se, com a Revolução Francesa, um dogma constitucional [...] (SILVA, 2010)

Solidifi cada a ideia de que era preciso separar poderes funcionais, surgiram, ao longo do tempo, ideias acerca de “como se daria esta separação, quais seriam e que atribuições teriam cada esfera de poder” (COUCEIRO, 2011).

Ao longo da história, John Locke e Montesquieu buscaram aperfeiçoar o tema ora em comento, e chegou-se à “teoria tripartite” da separação dos poderes funcionais, presente na Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Alexandre de Moraes (2008, p.402), em sua obra “Direito Constitucional”, tece um breve compêndio histórico acerca da chamada “teoria tripartite”:

A divisão segundo o critério funcional é a célebre “separação de Poderes”, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada, posteriormente por John Locke, no Segundo tratado do governo civil, que também reconheceu três funções distintas [...]. E, fi nalmente, consagrada na obra de Montesquieu O espírito das leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º da nossa Constituição Federal. (MORAES, 2008)

Com efeito, e como muito bem aponta Alexandre de Moraes, a chamada “teoria tripartite” da separação dos poderes está consubstanciada na Constituição Federal pátria, em seu artigo 2º. Este preceitua que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o judiciário” (BRASIL, 1988).

Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 2013 141

Fato é, contudo, que indigitado texto normativo não preleciona somente os três poderes funcionais que houve por bem o legislador atrelar à União Federal – quais sejam, o Legislativo, Executivo e Judiciário. Contém, em verdade, outra ideia basilar ao Estado: a independência harmônica dos poderes já divididos.

Tamanha é a relevância da referida independência harmônica que o supracitado José Afonso da Silva (2010, p.109) rejeita o termo “separação de poderes” e prefere seja o conceito chamado de “colaboração de poderes”. Aduz o cultuado doutrinador que

Hoje, o princípio [da separação de poderes] não confi gura mais aquela rigidez de outrora. A ampliação das atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação de poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e destes com o judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em colaboração de poderes [...] (SILVA, 2010)

Alexandre de Moraes (2008, p.406), por sua vez, converge com José Afonso da Silva e discorre acerca de uma fl exibilização da tripartição dos poderes, que enseja o chamado “sistema de freios e contrapesos”. O doutrinador comenta que

[...] o Direito Constitucional contemporâneo, apesar de permanecer na tradicional linha da ideia de Tripartição de Poderes, já entende que esta fórmula, se interpretada com rigidez, tornou-se inadequada para um Estado que assumiu a missão de fornecer a todo o seu povo o bem-estar, devendo, pois, separar as funções estatais, dentro de um mecanismo de controles recíprocos, denominado “freios e contrapesos” (checks and balances). (MORAES, 2008)

José Afonso (2010, p.110) busca elucidar os termos “independência” e “harmonia”, afi rmando que é a harmonia entre os poderes que caracteriza o “mecanismo de freios e contrapesos”, conceito tão caro à ciência política. Comenta o doutrinador, no intuito de exemplifi car suas ideias, que

[...] os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não signifi ca nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verifi cação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (SILVA, 2010)

É dedutível que a manutenção da harmonia e independência entre poderes não ocorre tão facilmente em Estados complexos e de povo tão plural, como é o Brasil, em que interesses difusos e obscuros por vezes circundam os atos de poder. É preciso

Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 2013142

que o Direito dite a forma pela qual se darão “harmonia” e “independência” e que, diuturnamente, seja chamado a pacifi car eventuais controvérsias havidas nesta seara, de modo com que atinja seu fi m máximo: a paz social.

Assim, uma vez claras as ideias de que a separação de poderes funcionais é basilar; de que na República Federativa do Brasil não há independência entre os três poderes existentes e de que a Legislação propõe um sistema normativo de “freios e contrapesos” para que eles bem coexistam, mister se faz um estudo acerca de certas incumbências constitucionais delegadas à Câmara dos Deputados Federais e ao Supremo Tribunal Federal – estes, órgãos máximos dos poderes Legislativo e Judiciário, no âmbito federal.

2 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Ao Supremo Tribunal Federal, Corte Suprema da República Federativa do Brasil

composta por um colegiado de onze magistrados, compete as atribuições contidas nos artigos 102 e 103 da Constituição Federal.

Em específi co, o artigo 102, inciso I, alínea “a” discorre ser atribuição da Corte processar e julgar, por via ordinária, “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal” (BRASIL, 1988); a alínea “p” do mesmo inciso e artigo reza caber à Corte o julgamento de “pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade” (BRASIL, 1988). O inciso III deste artigo imputa à Corte Constitucional o poder-dever de

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal [...]

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal (BRASIL, 1988)

Não obstante, o parágrafo primeiro do artigo em comento preceitua que “a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei” (BRASIL, 1988).

Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 2013 143

Em verdade, os textos legais acima expostos tratam do que os operadores do Direito batizaram de “Controle de Constitucionalidade”: mecanismo pelo qual a Corte Guardiã da Constituição Federal busca preservar a coesão do ordenamento jurídico, extirpando dele compêndios normativos eivados de inconstitucionalidade e nele mantendo normas cujo teor se apresenta conforme a Constituição. Com efeito, discorre Alexandre de Moraes (2008, p.551) que

A função precípua do Supremo Tribunal Federal é de Corte de Constitucionalidade, com a fi nalidade de realizar o controle concentrado de constitucionalidade no Direito Brasileiro, ou seja, somente ao Supremo Tribunal Federal compete processar e julgar as ações diretas de inconstitucionalidade, genéricas ou interventivas, as ações de inconstitucionalidade por omissão e as ações declaratórias de constitucionalidade, com o intuito de garantir a prevalência das normas constitucionais no ordenamento jurídico. (MORAES, 2008)

Gilmar Ferreira Mendes, magistrado do Supremo Tribunal Federal, em sua obra “Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional” (1999, p.296) tece relevantes comentários acerca do tema, principalmente no que tange à relação entre a atividade legislativa e ao expediente julgador (exercidos, respectivamente, cumpre suscitar, pelos poderes legislativo e judiciário – representados, no âmbito federal, pelo Supremo Tribunal e Congresso Nacional, respectivamente). Sem embargos, afi rma o Ministro que

A atividade legislativa há de ser exercida em conformidade com as normas constitucionais [...]. Isso signifi ca que a ordem jurídica não tolera contradições entre normas jurídicas [...].

Nem sempre se logra observar esses limites normativos com o necessário rigor. Fatores políticos, razões econômico-financeiras ou de outra índole acabam prevalecendo no processo legislativo, dando azo à aprovação de leis manifestamente inconstitucionais ou de regulamentos fl agrantemente ilegais (MENDES, 1999)

Os escritos de Mendes merecem destaque não só por sua clareza, mas também por suscitar um tema de importância salutar ao Estado de Direito: a inferência do Poder Judiciário na atividade legislativa.

3 AS FUNÇÕES DO CONGRESSO NACIONAL E O DECORO PARLAMENTARO expediente legislativo deve ser cumprido com responsabilidade. Tal poder,

no âmbito federal, é exercido preferencialmente pelo Congresso Nacional. Diz-se

Direito e Democracia, v.14, n.2, jul./dez. 2013144

“preferencialmente” pois sabe-se que, muito embora cumpra ao Congresso Nacional legislar, não se pode olvidar dos mecanismos existentes no ordenamento que concedem ao Poder Executivo o condão da legislatura e há quem afi rme, inclusive, que também a Corte Suprema legisla quando edita suas Súmulas Vinculantes. Tergiversações à parte, como bem aponta José Afonso da Silva (2010, p.509)

A função legislativa de competência da União é exercida pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, integrados respectivamente por Deputados e Senadores (SILVA, 2010)

O legislador constitucional tratou de positivar a incumbência legislativa do Congresso Nacional no “caput” do artigo 44 da Constituição Federal. Estabeleceu, ainda, o legislador, um sistema legal voltado ao decoro parlamentar, composto pelos artigos 53, 54, 55 e 56 da Carta Magna. Tais normas se prestam, em verdade, a tratar das prerrogativas e proibições concernentes aos parlamentares, chegando a enumerar as hipóteses de perda de mandado parlamentar.

Com efeito, é de extrema relevância o decoro parlamentar para o bom funcionamento do Estado democrático. Estudiosos têm, com frequência, se voltado ao tema no intuito de pesquisar a possível infl uência que a falta do decoro exerce sobre as instituições democráticas. Alessandro de Oliveira Soares, estudioso do tema e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo, em sua dissertação “Do processo de cassação de mandato parlamentar por quebra de decoro” (2011) comenta que

A qualidade das instituições democráticas vincula-se diretamente à qualidade dos membros que as compõem, conclusão esta inevitável, já que as instituições não são seres em si com capacidade volitiva, mas têm sua atuação e funcionalidade determinada pelos agentes, seres humanos, os quais lhe dão vida concreta no campo estatal. Quando se fala sobre a qualidade dos agentes políticos ou públicos em geral, tal questão não se refere apenas a uma competência de caráter técnico, embora esse último aspecto seja de fundamental importância, mas trata-se também do preenchimento de requisitos de caráter moral demandados pelos destinatários do poder.

De fato, a luta pela moralidade do poder político constitui um retrato síntese do desenvolvimento do Estado moderno. [...] (SOARES, 2011)

De acordo com Soares (2011), a atuação ética do homem público não se presta somente a obedecer normas que recomendem uma atuação proba ou que imputem penalidades àqueles que ajam improbamente. Em verdade, uma conduta de moral exemplar transcenderia à mera obediência de um sistema constitucional voltado ao decoro parlamentar, conforme o sistema pátrio acima esmiuçado, e isto porque “os

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cidadãos requerem de seus governantes condutas moralmente aceitáveis e condizentes com os bens que têm a zelar. A realidade é, antes de tudo, impregnada de valores” (SOARES, 2011).

Em verdade, para o autor, o decoro dos agentes públicos (e nestes incluem-se os parlamentares) chega a ultrapassar a crença que têm os cidadãos em seus governantes, atingindo um fi m crucial: a existência do Estado. Soares (2011) discorre que “de maneira geral, a moral dos agentes públicos é uma demanda concreta inequívoca do poder estatal e que diz respeito à perspectiva de sua própria manutenção como poder legítimo” (SOARES, 2011).

Ainda discorrendo acerca do decoro parlamentar, Soares (2011) leva seu estudo a um assunto nobilíssimo: a inferência do vício do decoro parlamentar no conteúdo legislativo. Atesta a crise do parlamento brasileiro, no que tange à moral dos parlamentares pátrios, afi rmando que

[é] interessante observar que, nesse contexto de crise institucional, fala-se também em “crise da lei”, isto é, do próprio produto típico dos parlamentos. As leis atualmente teriam se expandido e multiplicado de tal forma e com tamanha velocidade a ponto de transformarem o mundo jurídico em uma babel instável e insegura, contradizendo a previsibilidade e a segurança que deveriam ser resultantes da aplicação do direito positivo. (SOARES, 2011)

É certo que o tão citado “decoro parlamentar” atrela-se aos conceitos de “ética” e “moral”, estudados pela fi losofi a. Em síntese, no âmbito parlamentar, agir “com decoro” signifi ca atuar com probidade e honestidade, cumprindo suas funções democráticas no intuito de servir ao Estado. Agir de forma ética e calcada por preceitos morais. Em sua obra “Curso de Ética Jurídica” (2013, p.28), o jurista Eduardo Carlos Bianca Bittar discorre acerca da importância da prática ética, sobretudo no que tange à ética voltada à coisa pública. Afi rma o autor que

A ética como prática consiste na atuação concreta e conjugada da vontade e da razão, de cuja interação se extraem resultados que se corporifi cam por diversas formas.

[...]

Então, a prática ética deve representar a conjugação de atitudes permanentes de vida, em que se construam, interior e exteriormente, atitudes gerenciadas pela razão e administradas perante os sentidos e os apetites. Assim, fala-se do bom governo da coisa pública quando não somente de intenções se constrói o espaço público. Diz-se que a prática de condução das políticas públicas é ética se se realizaram atitudes positivas e reais em prol da coisa pública. Também se fala em bom proceder quando se constata não somente uma mínima intenção de não lesar, mas sim um esforço efetivo no sentido de conter toda e qualquer conduta capaz de suscitar a mínima lesão ao patrimônio espiritual, material, intelectual e afetivo de outrem.

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Esta é a outra faceta da ética; trata-se do conteúdo efetivo da ética como ocorrência individual e social. (BITTAR, 2013)

Assim, a manutenção do “decoro parlamentar”, no sentido de atuação parlamentar voltada à Ética mostra-se imprescindível à preservação do Congresso Nacional como instituição estatal e, por conseguinte, à harmonia de vida em sociedade, posto que as instituições são indissociáveis da harmonia social, como bem explica o Professor Fábio Nadal em sua obra “A Constituição como mito” (2006, pp.26-27):

As instituições, criação do intelecto humano baseada nas experiências hauridas no meio ambiente, são marcadas pela sua grande variabilidade.

[...]

As instituições [...] permitem que as relações intersubjetivas desenvolvam-se num contexto de ordem, direção e estabilidade, bem como impõem aos atores da “vida social” a realização de determinados papéis [...], orientados por determinados programas.

[...]

A ausência das instituições (“colapso institucional”), eliminaria a possibilidade de sociabilidade e remeteria os seres humanos à desorientação, à anomia, à crise de identidade, à “desrealização”. Isto porque a intersubjetividade pressupõe a sociabilidade (ordem social). (NADAL, 2006)

Ante a tal “crise da lei” decorrente da “crise institucional” existente no Parlamento Pátrio e ante ao total descaso perpetrado em face da “coisa pública” observado no país, chega-se à questão-mote do presente trabalho: poder-se-ia controlar a constitucionalidade de Leis sob a alegação de que estas padecem de vício de decoro parlamentar?

4 A HIPÓTESE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE POR VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAR E A AÇÃO PENAL 470Referido tema foi proposto pelo autor Pedro Lenza em sua obra “Direito

Constitucional Esquematizado” (2011, pp.234-5). Nesta, o autor comenta tal hipótese de controle de constitucionalidade e a defende, nos seguintes termos:

Como se sabe e se publicou em jornais, revistas etc., muito se falou em esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para se votar de acordo com o governo ou em certo sentido.

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[...]

O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada a existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade.

Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, § 1º, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos defi nidos do regime interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas” (LENZA, 2011)

Conforme se infere, o esquematizador de Direito Constitucional defende a ideia de haver um controle de constitucionalidade em razão de carência de decoro parlamentar. Restringe o tema, contudo, à possibilidade de controle de emendas constitucionais. De acordo com Lenza, tal expediente jurídico seria embasado pelo artigo 55, §1º, da Constituição Federal. O autor cita, ainda, um “esquema de compra de votos, denominado mensalão”, no intuito de exemplifi car seu conceito.

O referido “esquema de compra de votos” trata-se, em verdade, da Ação Penal 470, ajuizada em 2007 junto ao Supremo Tribunal Federal. Esta culminou no “julgamento mais longo, mais polêmico e mais televisionado da história da Justiça” (PINHEIRO, 2013). Em Acórdão publicado no ano de 2012, afi rmou a Corte que

O extenso material probatório, sobretudo quando apreciado de forma contextualizada, demonstrou a existência de uma associação estável e organizada, cujos membros agiam com divisão de tarefas, visando à prática de delitos, como crimes contra a administração pública e o sistema fi nanceiro nacional, além de lavagem de dinheiro.

Essa associação estável – que atuou do fi nal de 2002 e início de 2003 a junho de 2005, quando os fatos vieram à tona – era dividida em núcleos específi cos, cada um colaborando com o todo criminoso, os quais foram denominados pela acusação de (1) núcleo político; (2) núcleo operacional, publicitário ou Marcos Valério; e (3) núcleo fi nanceiro ou banco Rural.

[...]

Restou comprovado o pagamento de vantagem indevida ao então Presidente da Câmara dos Deputados, por parte dos sócios da agência de publicidade que, poucos dias depois, viria a ser contratada pelo órgão público presidido pelo agente público corrompido (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 470, Relator: Ministro Joaquim Barbosa, 2012)

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5 OS JULGADOS ACERCA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE POR VÍCIO DE DECORO PARLAMENTAREmbora se trate de ideia nova, a Jurisprudência pátria já enfrentou a hipótese de

inconstitucionalidade ora em comento. Em decisão pioneira proveniente da 1ª Vara da Fazenda e Autarquias de Belo Horizonte/MG, oriunda do processo de número 1295935-40.2012.8.13.0024, o Magistrado Geraldo Claret de Arantes prolatou sentença na qual julga a constitucionalidade da Emenda Constitucional número 41 de 2003, que visou reformar o sistema previdenciário dos servidores públicos do país e, sabe-se, foi votada pelo Congresso Nacional no período em que ocorreram os fatos criminosos julgados na Ação Penal 470. Na referida decisão, aduz o Magistrado que

[...] foi lançado ao espectro dos holofotes o questionamento acerca da validade da votação da Emenda Constitucional 41 de 2003, que ensejou a malfadada “Reforma da Previdência”.

O Ministro relator da referida Ação Penal 470, Joaquim Barbosa, em voto histórico, sustentou com veemência que houve compra de apoio político e de votos no Congresso Nacional entre 2003 e 2004, num esquema organizado pelo PT para ampliar a base de apoio ao governo da época, no parlamento nacional.

Nesse diapasão, consignou o eminente ministro que a votação da Emenda 41 de 2003 foi fruto da aprovação dos parlamentares que se venderam, culminando na redução de direitos previdenciários de servidores e a privatização de parte do sistema público de seguridade.

A tese do eminente Ministro Joaquim Barbosa foi seguida pela maioria dos demais Ministros do E. STF, ou seja, de que a EC 41/2003 foi fruto não da vontade popular representada pelos parlamentares, mas da compra de tais votos, mediante pagamento em dinheiro para a aprovação no parlamento da referida emenda constitucional que, por sua vez, destrói o sistema de garantias fundamentais do estado democrático de direito.

Pela via se consequência, a jurisdição emanada do Ministro Joaquim Barbosa e demais ministros, por maioria, declaram que o pagamento em dinheiro resultou na aprovação da EC 41/2003, a maculando de forma irreversível, tornando-a inválida ex tunc, ante o vício de decoro.

Neste prisma, não sobejam dúvidas de que a atividade constituinte derivada padece de vício de decoro parlamentar, revestindo a emenda em exame da inconstitucionalidade absoluta (Belo Horizonte, 1ª Vara da Fazenda e Autarquias. Mandado de Segurança nº 1295935-40.2012.8.13.0024, Geraldo Claret de Arantes, 2012)

O julgado merece realce, pois, como se infere, nele o Magistrado cunha verdadeira construção jurídica para embasar o controle de constitucionalidade almejado. Alguns argumentos aventados merecem maior destaque.

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Primeiramente, é imperioso notar que o julgador toma como indubitável a compra de votos havida no esquema que ensejou a Ação Penal 470. É certo, contudo, que à época da elaboração da sentença acima colacionada, a comentada Ação Penal ainda não havia transitado em julgado. Sem prejuízo das provas havidas no bojo do processo e do julgamento feito pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal no ano de 2012, afi rmar indubitavelmente a existência de corrupção parlamentar, sobretudo para o fi m de contestar a validade de compêndios normativos, consubstancia-se em expediente inconstitucional, e, por conseguinte, indesejado.

Isto porque, primeiramente, fere o princípio constitucional da presunção de inocência, presente no artigo 5º, LVII, da Carta Magna. Não obstante as provas do crime já terem sido corroboradas em julgamento, é certo à época da decisão aqui comentada a Ação Penal 470 ainda tramitava perante o Supremo Tribunal Federal, não tendo transitado em julgado qualquer Acórdão oriundo desta.

Com efeito, essa parece ser a visão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que houve por bem reformar a sentença prolatada. Em seu voto, afi rma a Desembargadora Sandra Fonseca, relatora da Apelação Cível de número 1.0024.12.129593-5/001 que

[...] o fato de o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal nº. 470/MG, ter condenado Parlamentares em razão do apurado esquema de compra de votos no Congresso Nacional, por si só, não é sufi ciente a respaldar a conclusão de que a EC 41/03 é inconstitucional.

Isso porque do julgado proferido pela Suprema Corte não se pode inferir o liame absoluto entre a conduta criminosa declarada e a aprovação da mencionada Emenda Constitucional, cujo feito sequer transitou em julgado.

É dizer, inexiste fundamento fático ou jurídico que autorize reconhecer que a alteração constitucional se fez vigente em razão tão só do estabelecimento de meios de captação de apoio político junto ao Congresso Nacional, mormente a se considerar que houve condenação de pequeno número de Parlamentares, de maneira que não há justifi cativa bastante para, desse fato, declarar que o processo de aprovação da Emenda foi conspurcado, restando incólume a debatida Emenda Constitucional. (Minas Gerais, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 1.0024.12.129593-5/001, Relatora: Desembargadora Sandra Fonseca, 2013)

Imperioso notar que, além de corroborar a ideia de que a inexistência do trânsito em julgado obsta a declaração de inconstitucionalidade, a Desembargadora traz à tona outro argumento crucial: a impossibilidade de se estabelecer vínculo entre a “conduta criminosa” apurada e a aprovação da Emenda Constitucional guerreada. Inobstante a reforma da sentença proveniente de Belo Horizonte, outro excerto desta merece destaque:

No caso em espeque trata-se do chamado “vício de decoro parlamentar”, vedado expressamente no art. 55, §1º da CF, in verbis:

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“Art. 55.

§ 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos defi nidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.”

A inconstitucionalidade advinda do vício de decoro resulta diretamente da mácula que teria envolvido o voto que constitui, em suma, o sagrado valor de representação popular conferida pelo povo que se faz assim representar pelo parlamentar corrompido, ferindo o que consta do artigo 1º, inciso I da Constituição Federal, que estabelece como pilar do Estado Democrático de Direito a soberania popular, neste caso, violada dramaticamente pela venda de votos no parlamento que a representaria.

[...]

A Resolução 20/1993, o Código de Ética e Decoro Parlamentar estabelece as regras do decoro parlamentar, especialmente em seus artigos 4º, inciso III e 5º, incisos II e III, o que é exatamente o caso dos autos, ou seja, o recebimento de dinheiro por parlamentares em troca da violação da soberania popular, alterando a livre consciência de votos.

[...]

Assim, dado o múnus fi scalizador desse juízo monocrático, o controle difuso da constitucionalidade da Emenda Constitucional 41/03 é plenamente cabível em face do nosso ordenamento jurídico.

O Poder Judiciário tem competência para a apreciação acerca da higidez no processo legislativo, tanto no que tange à ilegalidade quanto à inconstitucionalidade dos procedimentos referentes àquele, não se cogitando qualquer violação ao princípio da harmonia entre os Poderes (Belo Horizonte, 1ª Vara da Fazenda e Autarquias. Mandado de Segurança nº 1295935-40.2012.8.13.0024, Geraldo Claret de Arantes, 2012)

É notável o verdadeiro embaraço estabelecido pelo Magistrado no que tange à competência do Poder Judiciário de exercer controle sobre o processo legislativo. Muito embora o Magistrado afi rme estar exercendo controle sobre os “esquemas rituais” inerentes a este, análise mais apurada de suas razões indicam que, em verdade, seu julgamento ultrapassa a mera análise ritual e tende, em verdade, a uma análise acerca do comportamento ético dos parlamentares envolvidos na votação.

Embora o decoro parlamentar seja desejado para o bom funcionamento do Estado e para que se atinja o ideal da representatividade, o Poder Judiciário não deve imiscuir-se em julgamentos éticos, posto que tal tarefa cabe aos representantes do Poder Legislativo. Referida atividade mostra-se indesejável, uma vez que viola o princípio constitucional da harmonia dos poderes funcionais, ao contrário do que deseja fazer crer o Magistrado.

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O fato de o juiz ter tecido julgamento acerca de ética parlamentar é ainda corroborado pelo supedâneo do julgado acima apresentado, qual seja, a Resolução 20/1993 que insere ao ordenamento jurídico o “Código de Ética e Decoro Parlamentar” do Senado Federal.

6 AS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE 4885 E 4889Além da sentença prolatada no Mandado de Segurança de número 1295935-

40.2012.8.13.0024, proveniente de Belo Horizonte, merecem estudo mais duas peças jurídicas: as petições iniciais referentes à Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4885 e de número 4889, ambas ajuizadas junto ao Supremo Tribunal Federal no intuito de ver reconhecida a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional de número 41, do ano de 2003 – que, conforme frisado, ensejou a “reforma da previdência”. Assim como a sentença comentada, as duas Petições têm fulcro no vício de decoro parlamentar.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade de Número 4889 foi ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em dezembro de 2012. Nesta, o Partido sustenta que a citada Emenda foi votada e aprovada em mácula aos princípios constitucionais de moralidade e representatividade popular. Aduz o Autor, na Petição, que

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal nº 470 condenou por corrupção passiva, dentre os vários acusados, os seguintes deputados federais:

1. Roberto Jefferson Monteiro Francisco PTB/RJ

2. Romeu Ferreira de Queiroz PTB/MG

3. José Rodrigues Borba PMDB/PR

4. Valdemar Costa Neto PL/SP

5. Carlos Alberto Rodrigues Pinto PL/RJ

6. Pedro da Silva Corrêa de Oliveira Andrade Neto PP/PE

7. Pedro Henry Neto PP/MT

No referido julgamento, restou assentado por essa egrégia Corte, que houve um esquema criminoso de compra de apoio político para o Governo no Congresso, tendo sido comprovado o recebimento pelos deputados federais (à época) acima arrolados, de valores para que pudessem votar de acordo com a orientação do governo.

Por sua vez, fi cou provado que esse esquema de compra de apoio político para o Governo no Congresso ocorreu na mesma época da votação da PEC 40/2003, de autoria do Poder Executivo, que foi transformada na Emenda Constitucional 41/2003.

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Dessa forma, ao condenar os deputados federais pelo crime tipifi cado no art. 317 do código penal, essa suprema Corte reconheceu que os votos dos referidos deputados estavam maculados e, efetivamente, não representavam, naquele momento, a vontade popular, mas sim a sua própria vontade, num claro abuso de poder, por desvio de fi nalidade (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4889, Relatora Ministra Carmen Lúcia, 2012)

Da mesma forma que o fez o Magistrado de primeira instância, verifi ca-se, pelos argumentos aventados, que o Autor da ADI-4889 reveste de coisa julgada a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da Ação Penal 470 – que, como sabido, não havia transitado em julgado à época da publicação da sentença comentada e nem tampouco à época do ajuizamento da Ação.

Não obstante, o autor da ADI vai além: busca construir uma hipótese de inconstitucionalidade oriunda da suposta “compra de votos” havida, o que, por subversão das funções parlamentares, feriria o princípio constitucional da representação democrática. Argumenta que

[...] há de se destacar que, além de venderem seus votos, alguns dos deputados condenados eram, à época, líderes das bancadas dos partidos políticos e de blocos partidários e, ao orientarem as suas bancadas pelo voto SIM à PEC 40/2003 [Projeto que culminou a EC 41/2003], conseguiram obter dos deputados liderados um total de 108 votos pela aprovação da referida PEC, sem os quais, a matéria não seria aprovada.

[...]

Assim, os 108 votos obtidos dos partidos cujos líderes foram condenados por corrupção passiva na Ação Penal nº 470, por terem recebido dinheiro em troca de votar a favor dos interesses do Governo, se revelaram essenciais para a aprovação da PEC nº 40/2003, no primeiro turno de votação.

[...]

Pode uma norma ser considerada constitucional quando a Suprema Corte reconheceu que Líderes de bancadas, que representaram 108 votos, receberam dinheiro para aprovar uma Emenda Constitucional? (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4889, Relatora Ministra Carmen Lúcia, 2012)

O tal “princípio constitucional da representatividade popular” invocado está consubstanciado no parágrafo único do artigo primeiro da Constituição Federal pátria. Este preleciona que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988) e, com efeito, embasa todo o sistema parlamentar de votação indireta vigorante no país.

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Isto posto, infere o autor que

Está-se diante de uma conduta que comprovadamente afrontou o princípio da representação popular, na forma do quanto arguido. O vício de vontade dos parlamentares, para além de contaminar o de outros parlamentares, que seguiram a orientação do seu partido, num total de 108 votos, contaminou o próprio processo legislativo, que, não pode prevalecer face à patente inconstitucionalidade que o inquina (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4889, Relatora Ministra Carmen Lúcia, 2012)

Visando elaborar sua tese, o demandante destaca, então, a importância de uma incólume atividade parlamentar, que deve ser revestida de ética e probidade. Expõe que

A atividade parlamentar somente pode ser exercida conforme padrões de comportamento objetivo e reconhecidos e esperados pela sociedade.

[...]

Signifi ca dizer que a atuação parlamentar, mesmo na fi nalística atividade de deliberar sobre legislação, possui limites estabelecidos pelo corpo social e traduzidos na Constituição Federal como valores e princípios. A conduta exigida do homem parlamentar e do próprio Parlamento, jamais será absolutamente livre e desconectada de valores comuns da boa-fé, da moralidade, da ética, da honestidade e da justiça.

[...]

Diferentemente do que se possa imaginar, dado inclusive as gravíssimas conclusões do julgamento da AP 470, constitucionalmente existe um padrão ético, de confi ança e de lealdade nos comportamentos e nas atividades fi nais do Parlamento brasileiro.

[...]

A boa-fé, valor jurídico fundamental que regra a conduta do homem público e do Parlamento, fi xa que as ações devem pautar-se conforme o comportamento previsto no ordenamento.

[...]

A Emenda Constitucional nº 41/2003 fora editada com severa infração a regras procedimentais que conformam o processo legislativo – corrupção dos votos dos parlamentares – e, portanto, está desarmônica ao conteúdo da Constituição Federal. (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade número 4889, Relatora Ministra Carmen Lúcia, 2012)

Notável que a argumentação jurídica proposta não foge ao outrora aventado na sentença de Belo Horizonte. Muito embora se cite mácula ao processo legislativo, o que,

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a princípio, seria passível de controle perante o Supremo, o cerne do argumento é claro: um emaranhado de fatos de cunho político e tangentes à matéria de interesse do Poder Legislativo, que nada têm a ver com as atuações julgadoras da Suprema Corte. Com efeito, é engenhosa e até louvável a tese jurídica elaborada: a compra de votos julgada pela Ação Penal 470 demonstraria mácula à representatividade como um todo.

A subversão da representatividade popular por compra de votos é, de fato, execrável e tende à descrença no Parlamento e no Estado de Direito, mas crer que o foro competente para tal discussão é o Supremo Tribunal Federal, nos termos apresentados, é forçoso e incapaz de resistir a uma análise mais apurada, pois, consigne-se, deseja-se levar à Suprema Corte desavenças de faceta política, dirimíveis no próprio Parlamento.

Por sua vez, a Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4885 foi ajuizada junto ao Supremo Tribunal Federal pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, também no intuito de pleitear o reconhecimento de nulidade da Emenda Constitucional de número 41 de 2003. Alegam, dentre outras razões, e assim como faz o Autor da ADI 4889, ter havido violação aos princípios da soberania popular (do qual decorre o princípio da representatividade) e moralidade. Discorrem as Autoras, acerca da suposta mácula ao princípio da soberania popular que

[...] tornou-se público e notório, a partir do julgamento da AP n. 470, realizado por esse eg. STF, que o processo legislativo da PEC 40/2003 que resultou na promulgação da EC n. 41/2003, decorreu de ato criminoso (corrupção) perpetrado por integrantes do Poder Executivo em face de membros do Poder Legislativo, sem o qual não teria sido possível aprovar a Reforma da Previdência [...].

Para as associações autoras, o vício ocorrido no processo legislativo é de tal gravidade que não há como aceitar a validade das normas.

[...] se o processo legislativo não decorreu do livre convencimento dos membros do parlamento, mas sim do interesse de terceiros que os convenceram a votar de determinada forma por meio de ato criminoso, mostra-se possível apontar a violação, no processo legislativo, de alguns princípios constitucionais que constituem cláusula pétrea.

[...]

A norma constitucional impugnada, que deveria ter sido produzida pelos “representantes eleitos” foi, em verdade, produzida pelos “corruptores ativos” dos “representantes do povo” e igualmente “por eles aprovada” – os integrantes do Poder Executivo –, na medida em que os “representantes do povo” aprovaram o projeto de emenda constitucional, mediante pagamento em pecúnia, apenas para atender a vontade do corruptor ativo (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4885, Relator Ministro Marco Aurélio, 2012)

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Acerca da suposta violação ao princípio da moralidade administrativa, aduzem as Autoras que

[...] no caso sob exame, já há o reconhecimento do desvio de fi nalidade da conduta dos membros do parlamento no processo legislativo, na medida em que essa eg. Corte considerou que a Reforma da Previdência n. 2 somente restou vitoriosa no Parlamento em razão da “corrupção” perpetrada pelos integrantes do Poder Executivo (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4885, Relator Ministro Marco Aurélio, 2012)

Novamente, o que se enxerga é uma tentativa de levar à Suprema Corte questões que não lhe cabem: julgamentos políticos e apreciação de condutas éticas.

A ideia de que o julgamento proveniente de Belo Horizonte e aquele pleiteado pelos Autores das Ações Diretas foge à competência do Supremo Tribunal Federal é defendida por parecer da Advocacia do Senado Federal, em cumprimento à solicitação feita pela Corte no intuito de instruir a ADI nº 4889. Aduz o Presidente do Congresso Nacional, por intermédio de seus procuradores, que

Preliminarmente, cabe destacar que há óbice processual intransponível ao seguimento da presente ação.

A pretensão do requerente é de controle jurisdicional da atuação parlamentar relativamente à formulação e promulgação da sobredita emenda, pela superveniência do julgamento da ação penal nº 470 pelo STF, sob o fundamento de vício do voto parlamentar.

Porém, eventual vício do voto parlamentar é matéria interna corporis, imune à sindicância judicial.

[...]

[...] o Judiciário não tem competência para declarar a quebra de decoro parlamentar ou sindicar sobre a vontade do parlamentar ao proferir o voto. Ainda que se desse guarida à tese do requerente, a nulidade dos atos parlamentares praticados deveria ser precedida necessariamente pela declaração da quebra de decoro pela Casa respectiva, o que não ocorreu (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4885, Relator Ministro Marco Aurélio, 2012)

A argumentação proposta pela Presidência do Congresso Nacional merece destaque por sua lucidez, na medida em que tece clara separação entre as matérias apreciáveis pelo Poder Judiciário e àquelas analisáveis pelo próprio Parlamento, de natureza “interna corporis”. Com efeito, o discurso em estudo elucida fato relevante para a compreensão da causa: as questões de decoro parlamentar devem ser dirimidas pelos próprios

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parlamentares, conforme preceitua a Constituição Federal no compêndio normativo relativo à perda de mandato de deputado federal ou senador. Neste diapasão, suscita a Presidência do Congresso Nacional que

A reversão de quaisquer das decisões tomadas pelo Parlamento sob eventual vício de qualquer natureza exigiria a deliberação do próprio Parlamento em sentido contrário.

[...]

[...] a matéria invocada na inicial não é capaz de elidir a presunção de constitucionalidade da norma aprovada pelo Congresso Nacional, no exercício de sua atividade típica, em atenção ao mandato conferido pelo povo.

Cabe destacar que a Constituição Federal estabelece a perda do mandato parlamentar por quebra de decoro, mas não impõe como sua consequência a invalidade dos atos praticados no exercício do mandato (art. 55, II, § 2º) (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4885, Relator Ministro Marco Aurélio, 2012)

7 OS CONSELHOS DE ÉTICA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS FEDERAIS E DO SENADO FEDERALSem dúvidas, ambas as Câmaras Legislativas do Congresso Nacional possuem

estruturas próprias que visam apreciar o comportamento de seus membros e preservar a ética e o decoro que devem pautar suas ações. Tanto a Câmara dos Deputados Federais e o Senado Federal possuem seus respectivos Códigos de Ética e Decoro Parlamentar e Conselhos de Ética. Análise do conteúdo normativo de tais Códigos sustenta sobremaneira o argumento de que cabe aos próprios parlamentares o controle de seus atos. Assim, os artigos 22 e 23 da Resolução nº 20 de 1993, que instituiu o “Código de Ética e Decoro Parlamentar” elucidam a competência e a composição do Conselho do Senado:

Art. 22. Compete ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar zelar pela observância dos preceitos deste Código e do Regimento Interno, atuando no sentido da preservação da dignidade do mandato parlamentar no Senado Federal.

Art. 23. O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar será constituído por quinze membros titulares e igual número de suplentes, eleitos para mandato de dois anos, observado, quanto possível, o princípio da proporcionalidade partidária e o rodízio entre Partidos Políticos ou Blocos Parlamentares não representados, devendo suas decisões ser tomadas ostensivamente.

§ 1º Os líderes partidários submeterão à Mesa os nomes dos Senadores que pretenderem indicar para integrar o Conselho, na medida das vagas que couberem ao respectivo partido (BRASIL, 1993)

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Por sua vez, os artigos 6 e 7 a Resolução nº 25 de 2001, que estabeleceu o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados tratam de competência e composição do Conselho da Câmara dos Deputados:

Art. 6º Compete ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados:

I – zelar pela observância dos preceitos deste Código, atuando no sentido da preservação da dignidade do mandato parlamentar na Câmara dos Deputados;

II – processar os acusados [...]

III – instaurar o processo disciplinar e proceder a todos os atos necessários à sua instrução [...]

[...]

Art. 7º O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar compõe-se de 21 (vinte e um) membros titulares e igual número de suplentes, todos com mandato de dois anos, com exercício até a posse dos novos integrantes, salvo na última sessão legislativa da legislatura, cujo encerramento fará cessar os mandatos no Conselho (BRASIL, 2001)

A crise ética que contamina o Parlamento, abordada por Alessandro de Oliveira Soares, não pode servir de pretexto para que se ignore a existência de tais Conselhos de Ética e, então, se requeira à Suprema Corte a punição de possíveis corruptos. Pelo contrário: a autotutela dos atos parlamentares é crucial ao bom funcionamento do Congresso Nacional, condizente com o modelo pluripartidário do Parlamento e é, ademais, constitucional.

Haja vista o texto normativo do artigo 55, §2º da Constituição Federal preceituar que “nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa” (BRASIL, 1988), tratando-se tais incisos de hipóteses de perda de mandado de Deputado Federal ou Senador, mostra-se patente a escolha do legislador constitucional de conceder aos parlamentares o poder-dever de autotutela. Por lógica inversa, então, construções jurídicas que busquem usurpar tal função parlamentar e concedê-la a outro feixe de poder devem ser julgadas inconstitucionais.

8 O MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO POR FERNANDO COLLORA tese aqui guerreada encontra guarida noutro processo de destaque ocorrido

no País: o impeachment do Presidente Fernando Affonso Collor de Melo. No intuito

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de afastar seu “impedimento”, Fernando Collor impetrou junto ao Pretório Excelso o Mandado de Segurança de número 21.564, de cujo julgamento podem ser aproveitadas valiosas lições de Direito. À época, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se pronunciar acerca de suas atribuições no processo de “impeachment”. Buscou-se afastar, na decisão proferida pelo Colegiado, a competência do Judiciário para julgar questões de cunho político e asseverou-se a importância da separação de poderes.

Em específi co, o voto do Ministro Paulo Brossard, que à época compunha a Corte e integrou o julgamento, merece estudo. Afi rma o Ministro que

Estou convencido de que o STF não deve interferir em assuntos da competência privativa do Congresso Nacional, agora da Câmara, depois do Senado, da mesma forma que ao Congresso não cabe introduzir-se nas decisões do Supremo, nem mesmo na ordem de seus trabalhos. Cada poder tem sua área própria de atuação, da qual decorre a regra segunda a qual a ele, e só a ele, compete dispor. Tenho sacrilégio e interferência do Poder Judiciário na intimidade de outro Poder, para dizer o que ele pode e como pode obrar (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 21.564, Relator Ministro Octavio Gallotti, 1992)

O Ministro Ilmar Galvão, à época componente da Corte, no mesmo Acórdão proferiu voto em que corrobora a posição de Brossard:

O Supremo Tribunal Federal já afi rmou sua competência para conhecer de lesões a direito, partidas do Poder Legislativo, por qualquer de suas Casas, não apenas em função de ofensa direta à Constituição, mas também à lei e a seus próprios regimentos.

[...]

O que é defeso ao Poder Judiciário – nunca é demais repetir – não apenas no que concerne ao Poder Legislativo, mas, de igual modo, na esfera dos demais Poderes, é imiscuir-se nas questões de mérito, de conveniência, de oportunidade, de fundo, sobre as quais tenham eles competência para pronunciar-se, acerca das quais tenham plena autonomia de ação (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 21.564, Relator Ministro Octavio Gallotti, 1992)

Desenvolve-se como patente a ideia de que as construções jurídicas estabelecidas com o fi m de forçar o Supremo Tribunal Federal a julgar questões de ordem de moral parlamentar padecem de inconstitucionalidade. Em específi co, aquelas que se baseiam na Ação Penal 470 desrespeitam o princípio constitucional da presunção de inocência na medida em que negligenciam o trânsito em julgado ainda não havido. Perfazem-se como inconstitucional, outrossim, por subverter o princípio da independência harmônica entre os poderes funcionais, posto que buscam conferir ao Poder Judiciário função que

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não é a sua, qual seja, a de afastar a constitucionalidade de conteúdo legislativo em razão de suposto vício ético neste contido.

Não cumpre ao Poder Judiciário tecer julgamentos éticos acerca dos motivos que ensejaram o parlamentar a legislar deste ou daquele jeito. O texto constitucional, em sua prolixidade, não abarca referida hipótese de interferência de poderes e por mais ultrapassados que sejam os ideais positivistas que creem num direito que tem início e fi m na norma posta, desejar tal atuação do Supremo Tribunal Federal não signifi ca procedimento hermenêutico válido. Pelo contrário, enseja insegurança jurídica.

Ainda no tangente às indesejáveis interferências de poderes funcionais um no outro, Brossard assevera que

[...] as instituições humanas, por mais aperfeiçoadas que sejam, apresentam fi ssuras pelas quais pode infi ltrar-se o erro, o abuso, a injustiça, até a violência; por mais sábio que seja o legislador, sempre alguma coisa escapa por entre os seus dedos; e não se imagine que o Judiciário possa dominar, corrigir e salvar a realidade inteira. Aliás, ele correria o risco de substituir o Congresso, decidindo em seu lugar, ou de procrastinar, tolher ou adiar medidas inerentes ao seu poder, por ele recebido da Constituição para desempenhar atribuições privativas (Brasil, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 21.564, Relator Ministro Octavio Gallotti, 1992)

9 CONCLUSÃOVive-se, no país, uma crise institucional parlamentar de cunho moral, há muito já

abordada por reportagens jornalísticas e, recentemente, escancarada pela Ação Penal 470. É comum, em tempos de crise, que, no intuito de acalmar anseios diversos e preservar preceitos caros às sociedades democráticas, queiram se valer de respostas práticas para resolver questões complexas.

Cabe ao Direito, contudo, nestes tempos difíceis, a árdua tarefa de administrar as questões complexas sempre se voltando à Justiça, mesmo que isso soe, a olhares menos atentos, como injusto e, por isso, indesejado.

Desejar que o Supremo Tribunal Federal resolva as falhas éticas encontradas no Congresso Nacional parece, à primeira vista, uma solução plausível e justa para um problema que incomoda, diuturnamente, as mentes mais politizadas. Um olhar mais atento à questão leva-nos a concluir, contudo, que o ordenamento pátrio e, mais que isso, todo o sistema jurídico vigente, não abarca tal possibilidade.

Em verdade, tão errôneo quanto agir em desacordo com preceitos de ética parlamentar é crer que cumpre ao poder judiciário tecer qualquer julgamento a respeito, quando o próprio Parlamento dispõe de um sistema legal que lhe concede o poder-dever de julgar seus próprios pares.

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O que se deseja, nas peças jurídicas analisadas, é a criação de hipótese de controle de constitucionalidade que o sistema jurídico de controle não dispõe. Na medida em que Constituições Federais prolixas se dignam a exaurir certos temas, como ocorre no Brasil, não cabe ao aplicador do direito constitucional elaborar institutos legais à seu bel-prazer, sob pena de que incorra em insegurança jurídica.

É o caso do controle de constitucionalidade: a Constituição Federal de 1988 elenca todas as hipóteses de controle de constitucionalidade existentes no ordenamento pátrio, e se o legislador constituinte desejasse abraçar a hipótese de controle de constitucionalidade por vício de decoro parlamentar, assim teria o feito expressamente, não cabendo aos juristas tal criação.

Desta feita, conclui-se que o ordenamento brasileiro não abarca a hipótese de controle de constitucionalidade por vício de decoro parlamentar, cumprindo aos magistrados do país, caso se deparem com a questão por via difusa ou concentrada, abraçar o princípio da separação de poderes e atestar que julgamentos éticos devem ser realizados pelo Poder Legislativo, não devendo o Poder Judiciário tecer qualquer julgamento acerca do mérito da questão.

Espera-se, por conseguinte, que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade já propostas, reitere a posição outrora defendida pelos Ministros Ilmar Galvão e Paulo Brossard no julgamento do Mandado de Segurança impetrado por Fernando Collor de Melo, afastando da Suprema Corte o poder de tecer julgamentos políticos e reafi rmando que este tema deve ser tratado pelo Congresso Nacional.

REFERÊNCIASBITTAR, E. C. B. Curso de Ética Jurídica – Ética Geral e Profissional. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 576p. COUCEIRO, J. C. Separação dos poderes em corrente tripartite. 2011. Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,separacao-dos-poderes-em-corrente-tripartite,33624.html. Acesso em 17/08/2013.LENZA, P. Direito Constitucional Esquematizado. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 1196p. MENDES, G. F. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2.ed. São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. 518p. MORAES, A. Direito Constitucional. 23.ed., São Paulo: Atlas, 2008. 900p. NADAL, F. A Constituição como mito: o mito como discurso legitimador da Constituição. São Paulo: Método, 2006. 144p. PINHEIRO, D. Enfim, terminou. 2013. Disponível em http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-76/despedida/enfim-terminou. Acesso em 10/09/2013.SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo. 33.ed. São Paulo: Malheiros, 2010. 926p.

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SOARES, A. de O. Do processo de cassação de mandato parlamentar por quebra de decoro. São Paulo, SP, Tese de Mestrado. Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2134/tde-15032013-083010/publico/Dissertacao_parcial_Alessandro_de_Oliveira_Soares.pdf. Acesso em 10/09/2013.

Legislação consultadaBRASIL. Constituição. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 17/08/2013.BRASIL. Resolução nº 20 do Senado Federal. 1993. Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/conselho/atribuicoes.asp?s=CEDP. Acesso em 16/11/2013.BRASIL. Resolução nº 25 da Câmara dos Deputados Federais. 2001. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/int/rescad/2001/resolucaodacamaradosdeputados-25-10-outubro-2001-320496-normaatualizada-pl.html. Acesso em 16/11/2013.

Julgados consultadosBELO HORIZONTE, 1ª Vara de Fazenda e Autarquias. Mandado de Segurança nº 1295935-40.2012.8.13.0024. Impetrante: Roberta Vieira Saraiva, Impetrados: Diretor do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais e outros. Juiz Geraldo Claret de Arantes. Belo Horizonte, MG, 5 de outubro de 2012. Disponível em http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/58408/compra+de+votos+no+mensalao+anula+efeito+da+reforma+previdenciaria+decide+juiz+de+mg.shtml. Acesso em 08/10/2013, 14:32.BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4885. Requerentes: Associação dos Magistrados Brasileiros e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Intimados: Presidente da República e Congresso Nacional. Brasília, DF, 28 de novembro de 2012. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4338884. Acesso em 16/11/13.BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4889. Requerente: Partido Socialismo e Liberdade. Intimado: Congresso Nacional. Brasília, DF, 11 de dezembro de 2012. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4345096. Acesso em 16/11/2013.BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 470. Autor: Ministério Público Federal. Réus: José Dirceu de Oliveira e Silva, José Genoíno Neto, Delúbio Soares de Castro, Sílvio José Pereira, Marcos Valério Fernandes de Souza, Ramon Hollerbach Cardoso, Cristiano de Mello Paz, Rogério Lanza Tolentino, Simone Reis Lobo de Vasconcelos, Geiza Dias dos Santos, Kátia Rabello, José Roberto Salgado, Vinícius Samarane, Ayanna Tenório Tôrres de Jesus, João Paulo Cunha, Luiz Gushiken, Henrique Pizzolato, Pedro da Silva Corrêa de Oliveira Andrade Neto, José Mohamed Janene, Pedro Henry Neto, João Cláudio de Carvalho Genu, Enivaldo Quadrado, Breno Fischberg, Carlos Alberto

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Quaglia, Valdemar Costa Neto, Jacinto de Souza Lamas, Carlos Alberto Rodrigues Pinto, Roberto Jefferson Monteiro Francisco, Emerson Eloy Palmieri, Romeu Ferreira Queiroz, José Rodrigues Borba, Paulo Roberto Galvão da Rocha, Anita Leocádia Pereira da Costa, Luiz Carlos da Silva, João Magno de Moura, Anderson Adauto Pereira, José Luiz Alves, José Eduardo Cavalcanti de Mendonça, Zilmar Fernandes Silveira. Brasília, DF, 17 de dezembro de 2012. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Disponível em ftp://ftp.stf.jus.br/ap470/InteiroTeor_AP470.pdf. Acesso em 16/11/13. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 21564. Impetrante: Fernando Affonso Collor de Mello. Impetrado: Presidente da Câmara dos Deputados. Brasília, DF 23 de Setembro de 1992. Relator: Ministro Octavio Galloti. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1546718. Acesso em 16/11/2013.MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 1.0024.12.129593-5/001. Apelante: Diretor do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais. Apelada: Roberta Vieira Saraiva. Belo Horizonte, MG, 18 de Junho de 2013. Relatora: Desembargadora Sandra Fonseca. Disponível em http://www8.tjmg.jus.br/themis/baixaDocumento.do?numeroVerificador=100241212959350012013563029. Acesso em 16/11/13.