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Direito, Bioética e (Bio)Tecnociências: a emergência de um novo paradigma científico para as pesquisas jurídicas sobre novas (bio)tecnologias Adilson Cunha Silva SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 As crises do paradigma científico hegemônico do direito e a busca de sua superação; 3 A ambivalência das tecnociências e os reflexos na construção do conhecimento do direito; 4 A contribuição da bioética na construção de um conhecimento complexo do Direito; 5 A transdisciplinaridade como um novo parâmetro teórico- epistemológico para as pesquisas jurídicas sobre as novas (bio)tecnologias; 6 Conclusão; Referências. RESUMO O presente trabalho tem como objetivo apresentar as crises do paradigma científico hegemônico do Direito, como sinais da necessidade de sua superação a ser viabilizada por pressupostos epistemológicos/metodológicos pós-modernos, que possibilitarão uma nova relação teórico-prática entre o Direito, a Tecnociência e a Bioética, abrindo caminho para a construção de um novo paradigma científico do Direito, pautado em uma abordagem transdisciplinar e numa epistemologia plural. Para tanto, será demonstrada a atual necessidade de mudança da metodologia utilizada por grande parte dos pesquisadores jurídicos que se mantêm fieis ao paradigma científico hegemônico que se encontra em crise. Diante disto, serão apresentadas algumas possibilidades de superação do modelo de Ciência Jurídica hegemônica, o qual ainda hoje é utilizado no estudo de novos fenômenos jurídicos como os que decorrem da relação entre Direito e os produtos oriundos da biotecnociência. Conjugado a isto, serão trazidas as contribuições de novos campos do conhecimento e a necessidade de novas perspectivas de estudo que possibilitem a quebra do absolutismo dogmático que ainda impera nas pesquisas jurídicas. PALAVRAS CHAVES: Epistemologia Jurícica. (Bio)Tecnociência. Bioética. Transdisciplinaridade. Epistemologia Plural. ABSTRACT This work intends to analyze how paradigmatic crisis in Law studies can be seen as signs of a forthcoming and needed paradigmatic shift, based on post-modern methodological and epistemological premises which will build a new relation among Law, Technoscience and Bioethics, constructing a whole new scientific paradigm for Law studies, with a transdisciplinary approach and a plural Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA, Especialista em Direito Civil e em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito UFBA, Mestrando em Direito Privado e Econômico pela Universidade Federal da Bahia UFBA e Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Tocantins.

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Direito, Bioética e (Bio)Tecnociências: a emergência de um novo paradigma

científico para as pesquisas jurídicas sobre novas (bio)tecnologias

Adilson Cunha Silva

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 As crises do paradigma científico hegemônico do direito e a busca de sua superação; 3 A

ambivalência das tecnociências e os reflexos na construção do conhecimento do direito; 4 A contribuição da bioética na

construção de um conhecimento complexo do Direito; 5 A transdisciplinaridade como um novo parâmetro teórico-

epistemológico para as pesquisas jurídicas sobre as novas (bio)tecnologias; 6 Conclusão; Referências.

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar as crises do paradigma científico

hegemônico do Direito, como sinais da necessidade de sua superação a ser viabilizada por

pressupostos epistemológicos/metodológicos pós-modernos, que possibilitarão uma nova

relação teórico-prática entre o Direito, a Tecnociência e a Bioética, abrindo caminho para a

construção de um novo paradigma científico do Direito, pautado em uma abordagem

transdisciplinar e numa epistemologia plural. Para tanto, será demonstrada a atual necessidade

de mudança da metodologia utilizada por grande parte dos pesquisadores jurídicos que se

mantêm fieis ao paradigma científico hegemônico que se encontra em crise. Diante disto,

serão apresentadas algumas possibilidades de superação do modelo de Ciência Jurídica

hegemônica, o qual ainda hoje é utilizado no estudo de novos fenômenos jurídicos como os

que decorrem da relação entre Direito e os produtos oriundos da biotecnociência. Conjugado a

isto, serão trazidas as contribuições de novos campos do conhecimento e a necessidade de

novas perspectivas de estudo que possibilitem a quebra do absolutismo dogmático que ainda

impera nas pesquisas jurídicas.

PALAVRAS CHAVES: Epistemologia Jurícica. (Bio)Tecnociência. Bioética.

Transdisciplinaridade. Epistemologia Plural.

ABSTRACT

This work intends to analyze how paradigmatic crisis in Law studies can be seen as signs of a

forthcoming and needed paradigmatic shift, based on post-modern methodological and

epistemological premises which will build a new relation among Law, Technoscience and

Bioethics, constructing a whole new scientific paradigm for Law studies, with a

transdisciplinary approach and a plural

Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA, Especialista em Direito Civil e em Direito do

Estado pela Fundação Faculdade de Direito – UFBA, Mestrando em Direito Privado e Econômico pela

Universidade Federal da Bahia – UFBA e Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Tocantins.

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epistemology. Therefore will be demonstrated, the current need of change of the methodology

used by the majority juridical researchers that maintain entrust to the hegemonic paradigm

scientific that is in crisis. After this, some possibilities to surpass the model of hegemonic

Science Juridical will be presented, that still today are used in the study of new juridical

phenomena as the ones that elapse of the relationship between Law and the products that

come from of the biotechnoscience. Conjugated this, will be brought the contributions of new

fields of the knowledge and the need of new study perspectives that make possible the rupture

of the dogmatic absolutism that still reigns in the juridical researches.

KEYWORDS: Epistemology of Law; (Bio)Technoscience; Bioethics; Trasdisciplinarity;

Plural Epistemology.

1 INTRODUÇÃO

O desenvolvimento tecnológico/biotecnológico, as novas formas de saberes/poderes, a

construção e o exercício da biopolítica e do biopoder são alguns dos diversos fatores que

aprofundaram a crise do paradigma científico hegemônico/dominante. Conjuntamente com

isso, vemos, também, o surgimento de novos campos de conhecimento e a

desconstrução/reconstrução dos já existentes, que passaram a servir de instrumentos para a

elaboração de uma nova consciência coletiva, um novo senso comum emancipador, justo,

bioético, político e socialmente ético.

Assim, neste momento de crise, conhecido como pós-moderno, a humanidade se encontra

diante de uma série de possíveis e aparentes incompatibilidades que podem, ou não, existir

entre uma nova disciplina, no presente caso a Bioética, e uma clássica Ciência, como a do

Direito, pautada em fundamentos do pensamento moderno.

Logo, quando estas incompatibilidades ocorrem, por motivos como o da pesquisa do mesmo

objeto material e a partir de novos fenômenos essencialmente complexos, acabam por colocar

em questão os pressupostos epistemológicos das Ciências fundadas no pensamento moderno.

Diante dos encontros e desencontros dos novos e velhos campos de conhecimento, as

incompatibilidades podem transitar da aparência para a existência a depender do trânsito, da

abertura e da possibilidade de relação entre os pressupostos epistemológicos dos campos de

conhecimento em interação.

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Em decorrência deste fato, entre outros, procurar-se-á, inicialmente, apresentar o quadro de

crise do paradigma científico hegemônico do Direito, a partir, principalmente, dos seus

aspectos teóricos e metodológicos. Depois, serão apresentadas as transformações que

possibilitaram a superação paradigmática e a articulação epistemológica/metodológica, entre

o Direito e a Bioética para a produção de um novo modelo de abordagem nas pesquisas que

envolvam questões ligadas à Tecnociências/Biotecnociências.

Em seguida, serão feitas algumas considerações sobre o caráter ambivalente das

Tecnociências/Biotecnociências, apontando alguns dos seus reflexos no processo de pesquisa

jurídica, que as tenham como objeto de estudo.

Também será demonstrado como o conhecimento bioético vem contribuindo para que o

Direito transponha as barreiras disciplinares que engessam e limitam a sua atuação.

Por fim, demonstrar-se-á como os parâmetros epistemológicos da transdisciplinaridade

contribuem na análise bioético-jurídica ou jurídico-bioética dos fenômenos produzidos pelas

Tecnociências/Biotecnociências, bem como se dá a superação dos limites impostos pelo

paradigma científico hegemônico do Direito, abrindo caminho para uma nova perspectiva

paradigmática complexa e global do conhecimento jurídico.

2 AS CRISES DO PARADIGMA CIENTÍFICO HEGEMÔNICO DO DIREITO E A

BUSCA DE SUA SUPERAÇÃO

A modernidade deu início ao fenômeno da cientificidade como requisito de reconhecimento

de validade de qualquer conhecimento que pretendesse se colocar numa posição hegemônica.

Para tanto, vários teóricos1, dos mais diversos ramos do conhecimento, iniciaram uma

1 Entre os diversos teóricos da modernidade que contribuíram para a construção dos pressupostos

epistemológicos do pensamento científico, estão: René Descartes (1996) com a sua obra, Discurso do Método,

na qual estabelece como método o raciocínio dedutivo e delineia limites às elucubrações do espírito, na busca de

um método universal para o estabelecimento de uma verdade científica; Bacon (1984), em Novum Organum ou

Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza, apresenta a necessidade de estabelecer uma nova

relação com o desenvolvimento do conhecimento que partirá de um raciocínio indutivo. Além desses, muitos

outros teóricos colaboraram com o desenvolvimento de um arcabouço epistemológico, delimitador das formas e

modos de construção do conhecimento a ser legitimado e validado no âmbito acadêmico, os nomes supra citados

são meramente exemplificativos e a eles poderiam se unir: Vico, Spinoza, Leibniz, Jeremy Bentham, etc.

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verdadeira cruzada para estabelecer métodos válidos, que se conciliassem com os

pressupostos de sistematização do conhecimento a ser considerado científico.

Aliado à cruzada de transformação do conhecimento humanista e universal, em um

conhecimento sistematizado e especializado, encontram-se as transformações sociais e

políticas que, com a ascensão da burguesia, possibilitaram o surgimento de correntes

filosóficas que legitimaram os pressupostos teóricos e metodológicos do conhecimento

qualificado de científico.

A preponderância de um dos pilares do pensamento moderno, o mercado, sobre os demais, o

Estado e a comunidade, se manifestou em todo o percurso do desenvolvimento científico,

pautado no paradigma hegemônico, caracterizado pela alta dicotomização do conhecimento,

como a clássica oposição existente entre Ciências Naturais e Ciências Humanas2, e pela alta

especialização disciplinar em cada um dos macro-campos de conhecimento.

Diante disto, no decorrer do século XIX, foi marcante a preponderância epistemológica das

Ciências Naturais sobre as Ciências Humanas, dando ensejo ao estabelecimento de uma

condição de marginalidade e subalternidade das Ciências Humanas, que passaram a buscar

uma adequação ao modelo epistemológico hegemonicamente estabelecido.

O fenômeno da cientificidade do conhecimento se deu de maneira mais concentrada nas

Ciências da Natureza e nas Exatas, o que acabou por elevá-las à condição de modelos

hegemônicos de conhecimento científico, pois se lastreavam numa teoria consistente,

desenvolvida a partir de métodos pré-estabelecidos e, devidamente, reconhecidos como

válidos. Entre os pressupostos estabelecidos se encontravam: a absolutização da racionalidade

e a sistematização específica de um conhecimento, com leis estabelecidas, ou seja,

dogmatizadas, a partir de uma descrição determinista, que possibilitasse a sua reversão no

2Aqui iremos utilizar a clássica divisão dos campos científicos: Ciências Naturais, que no decorrer dos séculos

XIX e XX, se fragmentou e deu origem a novas departamentalizações, que passaram a ser conhecidas como

Ciências da Vida, Ciências Duras ou Rígidas, mas que não deixaram de ser conhecidas como especificações de

um Campo mais Genérico do conhecimento que é a das Ciências Naturais.

Com as Ciências Humanas não foi diferente, numa tentativa desenfreada de se colocar em um patamar de

igualdade com as Ciências Naturais e suas derivações, acabou sendo, também, departamentalizada, constituindo

hoje uma série de derivações: Ciências Sociais, Letras e Artes, Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Humanas

em sentido stricto.

Além da departamentalização dos dois macro-campos do conhecimento científico, os campos intermediários

também foram divididos e especificaram, ainda mais, o conhecimento, colocando-o numa situação de

fragmentaridade e especificidade disciplinar, tendente a uma utilização pontual, pautada em um método

específico, não interativo, universalizante, sistemático e fechado em si.

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tempo, na qual tanto o futuro quanto o passado acabavam por desempenhar o mesmo papel

(PRIGOGINE, 2002).

A imposição de tais pressupostos às Ciências Sociais se deu de forma mais intensa a partir do

século XIX, principalmente, com o advento do pensamento positivista, dando corpo a uma

série de dilemas existenciais no plano de ser ou não científico o conhecimento das Ciências

Sociais e Humanas. Daí em diante, iniciou-se um processo de adequação das Ciências Sociais

e Humanas à epistemologia3 utilizada pelas Ciências Naturais, para que, com isso, estes

conhecimentos pudessem ser qualificados e validados de científico.

Entre as Ciências Sociais, que urgiam pelo reconhecimento do status de Ciência, se

encontrava o Direito, que se apropriou da epistemologia produzida pelo pensamento

positivista e deu à sua teoria uma nova configuração sistemática, fechada, na qual as soluções

das suas lacunas e dos seus “aparentes” conflitos seriam resolvidos e harmonizados, tornando,

com isso, viável o seu desenvolvimento e a sua validação enquanto Ciência.

Outros requisitos acabaram por se impor, diante dos questionamentos à epistemologia

desenvolvida pelo pensamento positivista, como aquela viável à construção da Ciência do

Direito, modificando-o e prolongando a manutenção do arcabouço epistemológico positivista,

rejuvenescendo-o e adequando-o às novas demandas de normalização social a partir do

instrumental jurídico.

Tais tentativas reforçaram a rigidez estabelecida pela epistemologia do Direito, pautada no

pensamento positivista e no paradigma estabelecido pelas Ciências Naturais, engessando e

dogmatizando o conhecimento jurídico de tal maneira que a percepção do seu distanciamento

com a realidade social e da existência de crises endógenas e exógenas, ou seja, de crescimento

3 A Epistemologia é utilizada aqui como o campo do saber filosófico que se ocupa das ciências, enquanto

conhecimentos desenvolvidos por uma corrente filosófica a partir de um determinado raciocínio, se pretendendo

válido e verdadeiro diante dos demais. Como bem coloca A. L. Machado Neto (1970, p.13): “Por certo que

ciência alguma, pois não há uma só delas que se ocupe de ciências. Tal seria algo bem próximo de um círculo

vicioso, ao menos econômico, ou melhor vital. E se não há qualquer ciência que de ciência se ocupe, deve haver

um outro campo do saber que trate, especialmente, do assunto, que verse esse conturbado tema da ciência e das

ciências.

E esse campo de saber existe. Só que não é científico, é filosófico. Seu nome deixa bem claro o mister de que se

ocupa: epistemologia, isto é: teoria (logos), da ciência (episteme). Outros – que talvez menos a paixão da

evidência que o gosto malicioso do secreto – preferem designá-lo por outros nomes que deixam menos patente o

seu objetivo teórico. Lógica material ou especial, metodologia, são as expressões então preferidas. Preferimos,

porém, a designação de epistemologia (que muitos utilizam, sem razão, para designar a gnosiologia ou noética,

ou teoria geral do conhecimento), para designar essa teoria especial do conhecimento científico.

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e degenerescência (KUHN, 2006), não eram mais percebidas e, muito menos, resolvidas pelos

seus teóricos.

A adequação do Direito aos pressupostos epistemológicos das Ciências Naturais possibilitou a

qualificação do seu conhecimento como científico nos moldes do pensamento moderno. No

entanto, a mesma adequação que lhe deu a qualidade de Ciência trouxe uma série de

questionamentos que demonstravam a necessidade do Direito de rever os seus pressupostos

teóricos e redefinir as suas bases epistemológicas.

Consoante a isso, o paradigma científico hegemônico do Direito tem como base

epistemológica o pensamento filosófico positivista, que desde o seu surgimento recebe

críticas de teóricos que concebiam e concebem o Direito enquanto Ciência a partir de outras

correntes filosóficas.

Logo, desde o início da sua concepção no campo do conhecimento científico, o Direito sofre

crises de crescimento, que, por não terem sido solucionadas de maneira satisfatória, acabaram

dando origem às atuais crises de degenerescência.4

A complexidade no processo que deu ensejo ao surgimento das crises de crescimento e

degenerescência é visibilizada a partir das sucessivas lacunas não solucionadas no plano

disciplinar. Estas, por sua vez, se irradiam, pois, por se tratar de uma ciência sistêmica,

devidamente ordenada. O Direito ao estabelecer as conexões disciplinares acabou

colaborando com a influência de pressupostos epistemológicos específicos de uma

determinada disciplina em outra, contribuindo com a proliferação de lacunas e de

Assim, podemos concluir, todo conhecimento científico inicia-se após um momento prévio de inequívoca

especulação filosófica sobre a problemática dos pressupostos desse conhecimento científico – a teoria da ciência

ou epistemologia”.

4 As crises de crescimento [...] têm lugar ao nível da matriz disciplinar de um dado ramo da ciência, isto é,

revelam-se na insatisfação perante métodos ou conceitos básicos até então usados sem qualquer contestação na

disciplina, insatisfação que, aliás, decorre da existência, ainda que por vezes apenas pressentida, de alternativas

viáveis. [...] As crises de degenerescência são crises do paradigma, crises que atravessam todas as disciplinas,

ainda que de modo desigual, e que as atravessam a um nível mais profundo. Significam o pôr em causa a própria

forma de inteligibilidade do real que um dado paradigma proporciona e não apenas os instrumentos

metodológicos e conceituais que lhe dão acesso. Nestas crises, que são de ocorrência rara, a reflexão

epistemológica é a consciência teórica da precariedade das construções assentes no paradigma em crise e, por

isso, tende a ser enviesada no sentido de considerar o conhecimento científico como uma prática de saber entre

outras, e não necessariamente a melhor. Nestes termos a crítica epistemológica elaborada nos períodos de crise

de degenerescência não pode deixar de ser também uma crítica da epistemologia elaborada nos períodos de crise

de crescimento. (SOUSA, 2000, p.17-18).

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questionamentos teóricos e metodológicos, que embasam, não apenas as disciplinas, mas

também o paradigma científico.

Diante do surgimento das crises de degenerescência, os questionamentos sobre a viabilidade e

a validade do paradigma científico hegemônico do Direito se impõem, tornando necessário

des-pensar e re-pensar a epistemológica da Ciência do Direito. A partir deste exercício

epistemológico vislumbrar-se-á o surgimento de um novo paradigma científico do Direito,

que co-existirá com o hegemônico, até que o supere e se estabilize como seu sucessor.

É claro que, antes de parar para des-pensar e re-pensar a epistemologia da Ciência do Direito,

deve-se rever todo o processo de consolidação desta Ciência, que se pautou em um

positivismo tardio, quando não mais cabiam absolutizações e dogmatizações teóricas, que só

cristalizaram ainda mais o pensamento jurídico, distanciando-o da existência real da

sociedade.

O desenvolvimento do paradigma científico hegemônico do Direito, epistemologicamente

pautado no pensamento positivista, teve na Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen (1998), a

sistematização mais acabada, do ponto de vista teórico-metodológico, ao buscar reconhecer e

procurar resolver as diversas crises de crescimento, colaborando com a consolidação dos

pressupostos epistemológicos da Ciência do Direito nos moldes do pensamento moderno.

O pensamento kelseniano influenciou diversos juristas no entre guerras, que mesmo tecendo

críticas pontuais, acabavam por se render à concepção de Ciência do Direito desse teórico. O

positivismo jurídico chegou ao seu ápice com a obra o Conceito de Direito, de H. L. A. Hart

(2001), que ao apresentar a teoria do direito como um sistema auto-referencial de regras,

elevou ao ponto máximo.

Concomitante ao apogeu dos pressupostos epistemológicos do Direito, embasados no

pensamento positivista, surgiram diversos pensadores5 do Direito que questionavam e, ainda,

questionam tal supremacia. Estes estabeleceram os seus fundamentos em correntes filosóficas

que ampliaram e continuam a ampliar as dimensões da percepção da realidade, dando uma

nova configuração aos pressupostos epistemológicos do Direito.

5 Podemos mencionar a título exemplificativo os seguintes pensadores do Direito, que questionaram os

fundamentos epistemológicos da Ciência do Direito e apresentaram elementos que comprovam a existência de

crises de degenerescência do paradigma científico hegemônico do Direito: Carlos Cóssio, Ronald Dworkin,

Orlando Gomes, Duncan Kennedy, Roberto Mangabeira Unger, Patrícia Williams, Catherine MacKinnon,

Andrea Dworkin, Robin West, Stanley Fish, entre outros.

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Contemporâneo de Hart, Orlando Gomes (1955), em A Crise do Direito, demonstra como,

diante de tantas alterações sociais, econômicas e culturais, o paradigma científico hegemônico

do Direito, não dava mais conta da enorme dinamicidade das relações sociais, e qual era o

comportamento dos juristas diante da constatação da insuficiência do modelo jurídico

hegemônico para a resolução dos novos problemas/demandas sociais.

Os jovens que hoje se iniciam nos segredos do Direito são solicitados por fôrças que

atuam em sentido contrário. Em seu espírito, êsse conflito de tendências repercute

em cheio, provocando hesitações e criando insatisfações. Os juristas, atados a

concepções modeladas em situações existenciais que estão sendo profundamente

alteradas, continuam a abordar as grandes questões jurídicas sob uma perspectiva

que lhes não permite encará-las em tôdas as suas faces. Quando, por vêzes, se dilata

o campo visual, para logo retiram o olhar, desencantado ou amedrontado.6 (GOMES,

1955, p.6)

Diante disto, torna-se perceptível que a atuação das forças conservadoras na manutenção do

paradigma científico hegemônico do Direito se fez e ainda se faz presente, amedrontando os

juristas vinculados àquela concepção, seja por uma questão de formação acadêmica, seja por

uma convicção filosófica, o que acaba por deformar, consequentemente, o olhar dos jovens

juristas em formação.

Mesmo conscientes da atuação de forças conservadoras e dos perigos presentes na excessiva

dogmatização do conhecimento jurídico, o positivismo jurídico sobreviveu e demonstrou que

as críticas feitas a seu respeito, até aquele momento, ou seja, o Pós Segunda-Guerra, não

tinham força suficiente para que os velhos e, sobretudo, os novos juristas rompessem com os

clássicos pressupostos científicos do Direito, fundados no pensamento e na forma de fazer

ciência da modernidade.

Nenhum dêsses remédios heróicos, destinados a reanimar a ordem jurídica [clássica]

consegue deter ou paralisar o processo de sua decomposição. As acomodações, as

transigências e transfusões não removem a sua intolerância para absorver os fatos

novos e canalizar as novas tendências. (GOMES, 1955, p.10).

6 Mantida a ortografia original.

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A inevitabilidade do questionamento e do aprofundamento das críticas à epistemologia

hegemônica do Direito colaborou para que se chegasse ao atual estado de ruína dos

pressupostos fundantes da Ciência do Direito e, também, para a constituição de um novo

paradigma científico que solucionasse os problemas em aberto, que não foram resolvidos

outrora.

Um dos principais problemas a ser resolvido situa-se no plano da dogmatização do

conhecimento jurídico. As Ciências Modernas, inclusive o Direito, validaram o seu

conhecimento a partir do status de dogma dos seus pressupostos teóricos ao constituírem leis

gerais e/ou específicas que regiam determinado fenômeno natural, social, econômico ou

jurídico. Estas leis, por sua vez, possibilitavam certezas que poderiam ser verificadas a

qualquer momento, pois se projetavam para o futuro a partir da utilização dos fundamentos

epistemológicos utilizados na construção daquele corpo teórico.

No caso específico do Direito é possível verificar que a matriz filosófica positivista, ao dar as

devidas conformações à epistemologia do Direito, procura afastar qualquer questionamento

aos seus dogmas, até nos momentos nos quais se tornam evidentes as contradições do sistema.

Assim, no Direito, como em outras Ciências Sociais, a necessidade de desdogmatização se

impõe como parte do processo de desconstrução dos fundamentos epistemológicos oriundos

da modernidade, que teve no positivismo lógico a sua forma mais bem acabada de conceber a

verdade científica.

O positivismo lógico representa, assim, o apogeu da dogmatização da ciência, isto é,

de uma concepção de ciência que vê nesta o aparelho privilegiado da representação

do mundo, sem outros fundamentos que não as proposições básicas sobre a

coincidência entre a linguagem unívoca da ciência e a experiência ou observação

imediatas, sem outros limites que não os que resultam do estágio do

desenvolvimento dos instrumentos experimentais ou lógico-dedutivos. [...].

Mas, curiosamente, o apogeu da dogmatização da ciência significa também o início

do seu declínio e, portanto, o início de um movimento de desdogmatização da

ciência que não cessou de se ampliar e aprofundar até os nossos dias. (SANTOS,

2000a, p.22-23)

Logo, as crises de degenerescência remetem a Ciência do Direito a um caminho sem volta, no

qual a complexidade dos questionamentos ao paradigma científico hegemônico, que partem

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de paradigmas emergentes, fazem ruir as suas bases, tornando a sua sobrevivência mais

difícil, estabelecendo uma nova realidade, que não cabe na sua moldura, rompendo-a para

além dos seus limites epistemológicos, ou seja, dos seus pressupostos de validade.

A crise do paradigma dominante é o resultado interactivo de uma pluralidade de

condições. Distingo entre condições sociais e condições teóricas. [...] A primeira

observação, que não é tão trivial quanto parece, é que a identificação dos limites, das

insuficiências estruturais do paradigma científico moderno, é o resultado do grande

avanço no conhecimento que ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento

permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda. (SANTOS, 2000b, p.68).

Assim, o surgimento de novos fenômenos sociais, com repercussão no mundo jurídico e as

novas disciplinas, não só aquelas oriundas do campo de saber especificamente jurídico, mas,

principalmente, aquelas que surgiram como produto de uma nova forma de fazer

conhecimento científico, sinalizaram à Ciência do Direito a necessidade de repensar e

resignificar alguns de seus conceitos.

Concomitante a isso, o aprofundamento das revoluções tecnocientíficas/biotecnocientíficas

acabaram estabelecendo novas possibilidades de existência e construção do conhecimento

científico, ao romper com as barreiras da disciplinaridade, possibilitando o estabelecimento de

novas possibilidades de conexões com outras ciências. Isto se deu, principalmente, por meio

do diálogo com correntes filosóficas distintas das que fundam o paradigma científico

hegemônico, materializando o trânsito do discurso de disciplinas e Ciências, outrora

incomunicáveis, adaptando-as às novas demandas sociais, culturais, econômicas, políticas e

jurídicas hodiernas.

A consciência da transitoriedade do conhecimento e da relativização dos dogmas científicos

fez com que tradicionais formas de se descrever o Direito perdessem o sentido. Uma delas é a

clássica concepção da não antecipação do Direito aos fatos sociais.

O Direito, devido à reiterada afirmação da sua posição quanto à atuação normativa, foi

ficando para trás, perdendo as marcas dos passos dados por outras ciências e disciplinas, tanto

as que surgiam quanto as que se modificavam e se adaptavam à nova realidade.

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Tal fato impossibilitou a resignificação de determinados conceitos, colaborando com a

ampliação da crise em andamento, bem como, com o aparecimento de novos institutos que se

mostravam incompatíveis com os pressupostos epistemológicos do Direito, como bem

demonstra Fachin ao afirmar que:

A clara evidência da crise é o reconhecimento de que se operam relações no plano

da dobra do direito, ou seja, no não-direito. Fatos acabam se impondo perante o

Direito. Não é o Estado que regula todas as condutas, nem tampouco produz todas as

normas nas quais aquelas vão se subsumir. Há condutas que desenvolvem

comportamentos não adredemente regulados, e, ainda, aquelas que se chocam com

uma regulação anterior. Esses comportamentos impõem uma transformação do

regulamento anterior, uma nova regulamentação, nem sempre apenas adequação de

significados. Às vezes, há ruptura substancial dos padrões e não tão-só

“resignificações”. (FACHIN, 2003, p.224).7

Diante desse conturbado e complexo contexto de rupturas epistemológicas não resta outra

coisa aos pesquisadores dos fenômenos jurídicos senão ampliarem os seus horizontes

epistemológicos, rompendo com os pressupostos positivistas, de forma a ultrapassar a barreira

da unidisciplinaridade, da unidade epistemológica/metodológica e da concepção clássica de

sistema que se apresenta fechada, prontificando-se a resolver as lacunas que porventura

apareçam diante do pesquisador da Ciência do Direito.

A superação do paradigma científico hegemônico do Direito não se dará pela escolha e uso de

novos teóricos e teorias, mas a partir da compreensão da complexidade do processo de

construção do conhecimento, que tem como agentes de transformação paradigmática os

sujeitos sociais e os pesquisadores, pois estão numa posição ambivalente e devem se colocar

7 Temos aqui um encontro de olhares sobre o fenômeno jurídico, Luiz Edson Fachin (2003), quase que meio

século depois, ratifica o que já era dito por Orlando Gomes (1955, p.10-11), quando afirma: “Quebram-se, [...]

estrondosamente, a unidade e a uniformidade da produção de normas jurídicas, dantes monopolizada pelo

Estado, e por êle efetuada, exclusivamente, em sua fábrica de legiferar, sob o contrôle de operários escolhidos

por sufrágio universal. Êsse monismo jurídico, conservado enquanto perdurou a estabilidade social, esfrangalha-

se à medida que interêsses antagônicos adquirem substancialidade bastante para se jurisformizarem. Mas, como

não podem penetrar na arena onde se elabora o direito oficial, adquirem teor jurídico, à sua margem [...]. Diante

dessa produtividade marginal, o Estado passa a absorver, por condensação, fatos normativos que não elaborou.

Obrigado, todavia, [pois, ainda, está preso ao paradigma jurídico hegemônico de produção de normas jurídicas],

para não quebrar o padrão, verifica que o seu poder de absorção é limitado em face da qualidade de quase tôda a

produção espontânea, forcejando, então, por alterá-la para um ajustamento ou uma adaptação, não raro

incomportáveis.”

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epistemologicamente de maneira clara, estabelecendo o lugar teórico-epistemológico8 de

onde partirá uma nova percepção e compreensão do conhecimento jurídico, consciente da sua

interação com o fenômeno social e jurídico a ser observado.

A opção pela epistemologia concebida na pós-modernidade é apresentada aqui como o meio

viável à superação da crise de degenerescência presente na Ciência do Direito. Porém, não se

deve perder de vista que o atual processo de revolução científica, no qual o Direito se

encontra, tem um efeito transformador e se constitui como pré-condição para o surgimento de

novas teorias (KUHN, 2006, p.107).

A transição epistemológica e paradigmática não desloca instantaneamente o teórico de um

paradigma para outro, mas o leva gradualmente, a partir de uma nova compreensão dos

pressupostos epistemológicos, a analisar criticamente os fundamentos do paradigma no qual

se encontra, apresentando as justificativas que o levaram à mudança de posição,

consequentemente, de paradigma.

Com o desenvolvimento científico, os pressupostos de cientificidade, outrora dogmatizados

pelas Ciências Naturais e, também, pelas Ciências Sociais e Humanas, apresentaram limites,

estagnando o avanço científico, levando muitos cientistas das Ciências Naturais a

questionarem e a romperem com o paradigma científico hegemônico.

Daí que, novamente, os cientistas das Ciências Naturais acabaram por avançar e abrir

caminhos para os cientistas sociais. O diálogo e a interação entre as Ciências Sociais,

Naturais, Humanas e a Filosofia, abriram novos horizontes, rompendo as barreiras das

clássicas dicotomias: sujeito/objeto, natureza/cultura, natural/artificial, orgânico/inorgânico,

espírito/material, observador/observado, animal/pessoa, subjetivo/objetivo (SANTOS,

2000b).

Os mitos da neutralidade e das leis que dissipavam o caos do saber científico, também, caíram

por terra, possibilitando novas saídas para os recém criados problemas decorrentes das novas

tecnologias.

Diante de tudo isso, as velhas categorias científicas começaram a não fazer mais sentido,

dando lugar às novas formas de saber. Não mais pautadas na especialidade fechada, mas, em

8 Ao tornar claro o lugar teórico da onde parte, ao desenvolver a sua pesquisa, o pesquisador possibilita a

identificação dos pressupostos epistemológicos utilizados, dando maior credibilidade e validade ao trabalho

desenvolvido.

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um conhecimento pluralizado, dinâmico, interativo, que se conecta com outros saberes, antes

tão distantes como as ditas Ciências Naturais, mas, hoje, presentes na construção de novos

conceitos e institutos jurídicos.

A transformação da natureza num artefacto global, graças à imprudente produção-

tecnológica, e a crítica epistemológica do etnocentrismo e androcentrismo da ciência

moderna, convergem na conclusão de que a natureza é a segunda natureza da

sociedade e que, inversamente, não há uma natureza humana porque toda a natureza

é humana. Assim sendo, todo o conhecimento científico-natural é científico-social.

Este passo epistemológico é um dos mais decisivos na transição paradigmática que

estamos a atravessar. É também um passo particularmente difícil. (SANTOS, 2000b,

p.89)

A dificuldade do passo a ser dado se encontra nas rupturas necessárias à transformação de um

determinado saber em conhecimento científico prudente, prático e sensocomunizado.

Boaventura de Sousa Santos (2000a) nos apresenta a dupla ruptura que poderá estabelecer a

ponte para um novo conhecimento científico, possibilitando a constituição do conhecimento

científico, estabelecendo a diferenciação e o distanciamento deste com o senso comum,

legando a este último um lugar marginal, tornando necessário uma nova ruptura que

transformará o senso comum a partir do conhecimento científico, dando origem a um senso

comum esclarecido e a uma ciência prudente (SANTOS, 2000a, p.41).

A dupla ruptura epistemológica é o modo operatório da hermenêutica da

epistemologia. Desconstrói a ciência, inserindo-a numa totalidade que a transcende.

Uma desconstrução que não é ingênua nem indiscriminada porque se orienta para

garantir a emancipação e a criatividade da existência individual e social, valores que

só a ciência pode realizar, mas que não pode realizar enquanto ciência. (SANTOS,

2000a, p.42)

Assim, a partir de uma hermenêutica crítica, voltada para o desnivelamento dos discursos

elitistas do Direito, poder-se-á dar uma nova feição ao conhecimento jurídico, aonde o

pragmatismo do Direito se imporá, efetivando preceitos que, até agora, cumpriram a sua

função estética, mas não possibilitaram o pleno desenvolvimento e o esclarecimento daqueles

para os quais foram produzidos.

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Diante disto, percebe-se que, mais do que nunca, a linguagem, enquanto instrumento de

saber/poder deve ser analisada decodificada, esclarecida, suprimindo as certezas cristalizadas

pelos dogmas e restabelecendo o caos, que traz consigo as probabilidades e a irreversibilidade

(PRIGOGINE, 2002, p.11).

O caos não instaura a desordem, como queriam os modernos, mas nos abre a possibilidade de

soluções mais fluídicas, bem como nos apresenta situações irreversíveis. A reversibilidade

constatada a partir de determinada lei social ou natural, perdeu espaço para o atual estágio de

instabilidade das relações sociais e da existência de tudo que material e imaterialmente existe.

Hodiernamente, o Direito tem que lidar com situações que ultrapassam a materialidade, o

espaço-tempo, a existência e a não-existência, tem que estar não mais a um passo atrás, mas a

vários passos a frente da conformação e consolidação de determinado fato social.

Tudo isso se impõe à Ciência do Direito, pois o real ganhou o espaço do virtual e este se

tornou real, a partir de um poderoso aparato tecnológico e tecnocientífico, que ao

proporcionar uma série de benefícios a quem pode pagar, ampliou as contingências e os riscos

a serem repartidos e socializados entre os que se beneficiam com o desenvolvimento

tecnológico.

Neste contexto complexo de encontros e desencontros de conhecimentos, a interconexão de

saberes e o rompimento dos limites disciplinares possibilitam a superação do paradigma

científico hegemônico do Direito, que se dará a partir de uma hermenêutica crítica que

conecta o passado com o presente e projeta o conhecimento produzido a partir desta fusão de

horizontes para o futuro.

Com isso, a conduta a ser regulamentada passa a ter sentido, independente da sua existência

presente, mas que por uma probabilidade de existência gerará novas instabilidades sociais,

novos riscos e danos irreversíveis ao legado cultural do passado, à sociedade presente e às

condições materiais e imateriais viáveis de vida para as gerações futuras.

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3 A AMBIVALÊNCIA DAS (BIO)TECNOCIÊNCIAS E OS REFLEXOS NA

CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO DO DIREITO

A ficção da rigidez das fronteiras disciplinares e das desconexões existentes entre as diversas

disciplinas e ciências se evidencia quando se tenta contrapor ciência e tecnologia às suas

repercussões na sociedade e no Ambiente9. Isto se dá, principalmente, quando, a partir de um

exercício hermenêutico, procura-se compreendê-las em um processo complexo de construção

e transformação do conhecimento científico, aonde estes, tidos antes como antagônicos,

convergem a um ponto comum, produzindo uma nova forma de saber científico, híbrido e

complexo.

As (Bio)Tecnociências se constituem em uma nova forma de conhecimento, tendo como

principal característica a sua natureza híbrida e complexa, que faz confluir para si uma série

de saberes disciplinares e científicos, com o objetivo de desenvolver novas tecnologias. Estas,

por sua vez, têm fomentado novas pesquisas, em um processo incessante de

complementaridade instrumental, ampliando as possibilidades das práticas científicas, que se

realizam da forma mais precisa e perfeita possíveis.

Diante do afã desenvolvimentista das (Bio)Tecnociências algumas situações acabam se

apresentando, desvelando a sua ambivalência, projetando e materializando os efeitos

benéficos e maléficos que delas decorrem e repercutem nas relações jurídicas, políticas,

sociais e culturais.

As tecnociências têm, de fato, proporcionado inequívoca melhora nas nossas

condições de vida ao prolongar a longevidade ou a expectativa de vida, ao

aperfeiçoar a qualidade de vida de um número cada vez maior de indivíduos, e ao

modificar as relações humanas. Por outro lado, são tributárias de um aumento

crescente de graves problemas e sérios riscos, tanto para a saúde dos indivíduos

quanto para o meio ambiente do planeta. E, sobretudo, o que é mais danoso para a

humanidade, as tecnociências têm provocado um indecente processo de exclusão de

uma parte considerável da humanidade para a qual tais inovações tecnocientíficas

não são acessíveis por seu alto custo financeiro. (ZUBEN, 2006, p.41).

9 O termo Ambiente, aqui utilizado, é tomado na sua concepção conceitual ampla, que abrange o meio ambiente

natural, artificial, real, virtual, pois todos interagem, possibilitando uma existência plural, dinâmica e mutacional

dos sujeitos que neles transitam.

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O refugo produzido pelas (Bio)Tecnociências não se constitui apenas de artefatos

descartáveis, mas também de seres humanos e inumanos que são considerados desnecessários,

pois se tornam refugos orgânicos, desprovidos de direitos, gerando questionamentos morais e

éticos que, para alguns tem como objetivo obstaculizar o desenvolvimento de novas

tecnologias.

Estas, por sua vez, além de servirem às novas operacionalizações teórico-tecnológicas, irão se

reverter em novos produtos de consumo àqueles que se constituem em sujeitos de direito, e

que, cada vez mais, tornam-se dependentes das novas tecnologias.

Não bastasse o alto grau de dependência tecnológica, há, ainda, todo um processo de

despersonalização e homogeneização das relações estabelecidas entre os sujeitos e destes com

o Ambiente ao seu redor, esvaziando-os de valores morais, éticos e estéticos, pois a ausência

de autoconhecimento os tornam desprovidos de consciência existencial e, consequentemente,

co-existencial.

Consoante à minimização dos valores que outrora fortaleciam as relações sociais, a vida

ganha uma nova dimensão valorativa e se torna uma mercadoria suprema. Ao ser

mercantilizada, a vida tornou-se uma mercadoria extremamente lucrativa, movimentando

fundos de ações a partir de empresas multinacionais que investem em pesquisas ligadas à

Tecnociências/Biotecnociências.

Concomitante a isso, os pesquisadores e os seus financiadores, ao desenvolverem novas

tecnologias interferentes em organismos vivos, procuram preservar seus inventos a partir de

um aparato jurídico, que, por não estar adequado à realidade complexa do discurso científico

pós-moderno, produz mecanismos e práticas discursivas contraditórias, que no plano fático

acabam ampliando o status de irresponsabilidade do modelo de sociedade que surgiu da

Sociedade Tecnológica, denominada por Ulrich Beck (1998) de Sociedade de Risco.

Neste momento, a produção do conhecimento jurídico deve ser revista e estimulada a buscar

novos parâmetros e pressupostos epistemológicos, que possibilitem uma compreensão global

dos fenômenos a serem disciplinados pelo Direito.

Para isso, é necessária a convergência de diversos conhecimentos, que deverão ser

interpretados por meio de uma hermenêutica crítica e consciente, não mais pautada em

pressupostos positivistas homogeneizantes, mas, fundada na alteridade dos grupos sociais e

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das comunidades que a compõem; na diversidade Ambiental e na necessidade de sua

preservação, conciliando pesquisa científica a valores morais, que mesmo sendo mutáveis

devem ser observados; e a preceitos éticos que estabeleçam limites e responsabilidades, a fim

de minimizar os riscos e eliminar as possíveis situações de irresponsabilidade.

Para a construção de um conhecimento jurídico complexo, o pesquisador deverá ultrapassar as

barreiras impostas pelo paradigma científico da modernidade e se apropriar do instrumental

epistemológico colocado a sua disposição pela produção epistemológica pós-moderna. O

pesquisador, no entanto, deve conhecer os pressupostos epistemológicos pós-modernos, que

se distinguem do conhecimento moderno, pois, diferentemente deste:

O conhecimento pós-moderno, sendo total, não é determinístico, sendo local, não é

descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições

de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo

local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de

uma pluralidade metodológica. [...] Numa fase de revolução científica como a que

atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão

metodológica. [...] (SANTOS, 2006, p. 77-78).

Assim, a retomada das leis do caos, que se opõem à descrição determinista e à certeza de

reversibilidade das clássicas leis da natureza, torna possível ao pesquisador do Direito tratar

as Tecnociências/Biotecnociências com um novo olhar e uma nova concepção de objeto

formal e material.

No momento que o pesquisador define as Tecnociências/Biotecnociências como o seu objeto

material de pesquisa, surge um problema que se situa na interação entre o objeto material e o

pesquisador, pois, este deverá ter a exata medida da interferência do objeto material nas

conclusões obtidas.

Esta interferência se dá, principalmente, no plano da dependência. Mas esta muitas vezes não

se materializa no momento da pesquisa, ela se projeta para o futuro. Logo a análise jurídica do

objeto material, Tecnociências/Biotecnociências, deve se dar a partir de um plano formal

complexo e não puramente jurídico.

Isto possibilitará a construção de sistemas jurídicos abertos, que ao regulamentar e disciplinar

a produção, o uso dos produtos, os espaços e outros aspectos das pesquisas no âmbito das

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Tecnociências/Biotecnociências, se comunique com o que ainda não existe, mas

provavelmente existirá.

No plano hermenêutico, os discursos utilitaristas das Tecnociências/Biotecnociências devem

se conciliar com os discursos éticos e estéticos de outras disciplinas, como a Bioética,

conectando-se com uma nova modalidade de discurso jurídico, que a partir da pluralidade

epistemológica, desconstrói os discursos unidisciplinares e suas “verdades absolutas”,

possibilitando a relativização da verdade científica, abrindo-se para a possibilidade de

existência/construção de verdades.

Aqui ganham sentido os pressupostos epistemológicos/metodológicos apresentados por

Feyerabend (2007) e Boaventura de Sousa Santos (2006), quando nos remete à pluralidade

epistemológica e a possibilidade de abordagens complexas que se configuram em objetos

formais de pesquisa, aonde a dimensão epistemológica poderá transitar entre diversos níveis

de abordagens, indo da unidisciplinaridade à transdisciplinaridade.

O caráter híbrido das Tecnociências/Biotecnociências nos remete a uma realidade complexa

que demanda uma epistemologia complexa, na qual a linguagem científica deve transitar entre

pólos científicos distintos, produzindo uma compreensão do conhecimento das diversas

ciências e se transforma em senso comum esclarecido, efetivando, de maneira mais

igualitária, mais benefícios do que malefícios.

Os diversos reflexos e os efeitos produzidos pelas Tecnociências/Biotecnociências na

produção do conhecimento jurídico transportam o pesquisador do Direito à racionalidade

dialógica que possibilita a aproximação entre a teoria e a prática (ZUBEN, 2006).

Não se deve olvidar que, não só as Tecnociências/Biotecnociências de maneira direta

influenciam nas mudanças epistemológicas do Direito, mas, também as alterações sociais,

decorrentes das intervenções tecnológicas e biotecnológicas, convergem à construção do

conhecimento jurídico modificando-o e levando-o a uma nova compreensão da realidade, da

sua natureza e do sentido da sua existência.

Tudo isso, além de produzir e aprofundar as crises epistemológicas do Direito, provoca uma

outra crise, que, também, terá repercussão na construção do conhecimento jurídico, é a crise

pela qual o pesquisador do direito passará, no plano individual e subjetivo e que afetará

diretamente a sua produção científica.

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Ultrapassadas as fases de inconsciência e obscurantismos do pesquisador, ao resolver as suas

crises pessoais relacionadas ao seu objeto de estudo, reconhecer-se-á o estágio de preparo

necessário para que este possa realizar a sua pesquisa.

No caso específico do Direito, percebe-se que o empreendimento a ser realizado,

principalmente quando tem como objeto material de pesquisa as

Tecnociências/Biotecnociências, deverá se pautar não só na pluralidade epistemológica, mas

também na diversidade de linguagem, que, consequentemente, converter-se-á em uma

pluralidade de textos.

A pluralidade textual, no presente contexto, transcende à forma escrita e se corporifica nos

discursos desenvolvidos no plano epistemológico e pragmático, que vão de simples textos

escritos às expressões faciais de um determinado sujeito ao se colocar diante de um sistema de

comunicação, ou de um sistema de vigilância holográfico, dando ensejo a um exercício

hermenêutico complexo, consciente e crítico.

A tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na

coisa em questão, e já se encontra sempre co-determinada por esta. Assim, o

empreendimento hermenêutico ganha um solo firme sob seus pés. Aquele que quer

compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas próprias opiniões

prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e conseqüente

possível - até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a suposta

compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a

deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada

hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do

texto. (GADAMER, 2005, p.358)

O reconhecimento e a compreensão da linguagem utilizada pelas

Tecnociências/Biotecnociências possibilitam o diálogo entre estas e o pesquisador, para que,

com isso, ele possa estabelecer uma posição prévia sobre aquele enigmático e, muitas vezes,

indecifrável saber.

Para que ocorra a decodificação do saber tecnocientífico/biotecnocientífico, há uma

necessidade de traduzi-lo e isto se dá por meio dos diversos caminhos que o exercício de

construção inter-multi-transdisciplinar dispõem, estabelecendo um lugar de fala, ou seja, um

ponto prévio de partida, aonde os pressupostos epistemológicos prévios possam ser

identificados, bem como o objeto a ser estudado esteja, ao menos, pré-concebido.

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Diante disto, tem razão Gadamer quando afirma que:

Uma compreensão guiada por uma consciência metodológica procurará não

simplesmente realizar suas antecipações, mas, antes, torná-las conscientes para

poder controlá-las e ganhar assim uma compreensão correta a partir das próprias

coisas. É isso o que Heidegger quer dizer quando exige que se "assegure" o tema

científico na elaboração de posição prévia, visão prévia e concepção prévia, a partir

das coisas, elas mesmas. (GADAMER, 2005, p.359).

Diversos aspectos das Tecnociências/Biotecnociências influenciam na construção do

conhecimento científico jurídico. Porém, nenhum deles dá ensejo a tantos questionamentos

como a sua ambivalência. Levando o pesquisador do Direito a encruzilhadas epistemológicas,

que a simples abordagem jurídica se mostra incapaz de mostrar-lhe o norte a ser seguido.

Assim, diante do perigo da desorientação, há uma necessidade de composição e construção de

uma abordagem complexa, que dê uma nova configuração ao objeto formal da pesquisa

jurídica que envolva Tecnociências/Biotecnociências e que sirva ao pesquisador de bússola, o

que tem sido feito pela Bioética.

À composição da nova abordagem serão trazidos os preceitos epistemológicos da Bioética, na

sua forma mais ampla, indicando um dos caminhos a serem seguidos no desenvolvimento de

pesquisas acerca das Tecnociências/Biotecnociências realizadas no âmbito da Ciência do

Direito.

4 A CONTRIBUIÇÃO DA BIOÉTICA NA CONSTRUÇÃO DE UM

CONHECIMENTO COMPLEXO DO DIREITO

A tensão social, política, econômica e cultural, das décadas de 1960 e 1970, contribuíram para

o surgimento de uma série de movimentos sociais que reivindicavam soluções para as

incertezas que se instauravam, ou se aprofundavam em diversos planos: econômico, cultural,

social, político, entre outros.

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Diante de tantas incertezas, entre os diversos movimentos sociais encontram-se aqueles

preocupados com a preservação do Meio Ambiente e, principalmente, com a preservação da

vida humana.

Estas preocupações motivaram teóricos de diversos campos do conhecimento a buscarem

soluções viáveis aos problemas que se estabeleciam, principalmente, no campo da moral, da

ética geral e da ética aplicada.

Um desses teóricos foi Van Rensselaer Potter, que, na década de 1970, desenvolveu uma nova

perspectiva ética, ampla e global, tendo como objeto, na sua forma mais dinâmica e

abrangente, a vida.

O fundador da Bioética, Van Rensselaer Potter10

, como nos demonstra Jorge José Ferrer e

Juan Carlos Alvarez (2005, p. 60), foi o primeiro a usar o termo Bioética em um artigo,

Bioethics: The Science of Survival, publicado na revista Zygon 5 (1970).

No ano seguinte, em janeiro de 1971, publicou o primeiro livro que trazia no título a palavra

Bioethics: Bridge to the Future.

Em 1988, lançou um outro livro, Global Bioethics, retomando a sua primeira concepção do

que seria a Bioética, uma ética da vida nas suas diversas formas, ampliando, alargando e

aprofundando nesse segundo momento o conceito e o campo de estudo que foi estabelecido

por ele na década de 1970.

A idéia original de uma bioética – propugnada, como se sabe, por V. R. Potter –

promoveu a necessidade de um pensamento científico de novo tipo, profundamente

moral, como solução para “o aumento exponencial do conhecimento sem um

aumento da sabedoria necessária para controlá-lo” [...], circunstância arriscada para

o desenvolvimento ulterior da espécie homo sapiens. Desse modo, a bioética

“ponte”, “global” e/ou “profunda” – como foi sucessivamente (com um “giro” final

na direção do termo “global”) denominada pelo seu precursor – é vista como a

aplanadora de um caminho que incorpore os valores ao conhecimento científico

articulando o conhecimento natural e a moral humana, as ciências naturais e as

ciências sociais, acabando com a pretensa “neutralidade” axiológica da ciência

preconizada pelo positivismo. (SOTOLONGO, 2006, p.102-103)

10

Van Rensselaer Potter nasceu em agosto de 1911 e faleceu em setembro de 2001, era doutor em Bioquímica,

professor e pesquisador na área de Oncologia, do McArdle Laboratory for Cancer Research da Universidade de

Wisconsin-Madison, EEUU.

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Potter, ao constatar o distanciamento, num plano macrocósmico, das práticas científicas da

moral e da ética, situação que se refletia e ainda se reflete nas relações individuais, procurou

romper com a forma de fazer ciência pautada no pensamento moderno, especializante,

fragmentário, dicotômico e unidisciplinar, numa tentativa de transformação das relações

sociais numa perspectiva mais ampla, para além da produção científica. Visando, pois, uma

transformação mais profunda, ao modificar valores e práticas sociais nos mais diversos níveis

da sociedade, do privado ao público, do individual ao coletivo.

Essa compreensão da bioética implicou não apenas uma reflexão moral de novo

cunho mas também uma reflexão de novo tipo sobre o objeto da ciência e da

produção de conhecimentos científicos, na qual a moral e os valores não se oponham

à objetividade do saber. Não basta almejar novas “quotas de saber” desprovidas de

sentido social e humano – deve-se – também almejar incorporar-lhes, até onde

permitamos limites já mencionados de nosso conhecimento, o sentido de “para quê”

serão usadas e com que propósito. Isso é expresso por Edgar Morin – neste caso

partindo do ponto de vista “da complexidade” – como “uma-ciência-com-

consciência”. (SOTOLONGO, 2006, p.102-103).

Era, portanto, uma ciência responsável, com consciência, a almejada por Potter. A partir da

qual fosse possível conciliar desenvolvimento científico, moral e ético, a fim de preservar a

vida em toda a sua extensão.

A amplitude do pensamento de Potter, no entanto, não era compatível com o contexto da

Guerra Fria e a necessidade de desenvolvimento bélico, da indústria do petróleo, das

pesquisas em biotecnologia, entre outras, tão caras aos Estados Unidos e às Universidades

Norte Americanas, que dependiam de financiamentos públicos, e, principalmente, privados

para desenvolver estas pesquisas.

Assim, o desinteresse pela bioética potteriana, no primeiro momento, abriu caminho para o

desenvolvimento de uma corrente mais restrita, preocupada com os aspectos e as situações

emergentes no âmbito da saúde humana. Esta corrente foi liderada por André Hellegers11

,

11

(FERRER; ÁLVAREZ, 2005, p. 60) “[...] André Hellegers, obstetra holandês e pesquisador polivalente,

transferido para os Estados Unidos, primeiro para a Universidade de Johns Hopkins, em Baltimore, e depois, a

partir de 1967, para Georgetown, [desenvolveu a vertente da bioética médica, dando uma maior visibilidade ao

termo e vinculando-o de maneira definitiva com as questões biomédicas].”

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O certo é que a disciplina que vai nascer em Washington [liderada por Hellegers] é

muito diferente da que originalmente propusera o pesquisador de Madison [Van

Rensselaer Potter]. Não menos certo é que o legado de Hellegers predominará no

desenvolvimento futuro da nova disciplina. (FERRER; ÁLVAREZ, 2005, p. 61)

No entanto, mesmo reconhecendo que o maior desenvolvimento da Bioética se deu no âmbito

da Microbioética, ou seja, das questões biomédicas lideradas por Hellegers e, posteriormente,

por Beauchamp e Childress, entre outros, o que interessa aqui é a concepção de Bioética

Global, desenvolvida por Potter.

Esta constitui o campo geral da disciplina Bioética, que acaba por agregar ramificações

específicas, que estão em permanente estado de interação entre si e com outros campos do

conhecimento, são elas: Macrobioética, Microbioética, Metabioética e as Biotecnociências.

As ramificações específicas da Bioética acabam por se relacionar, num plano endógeno, umas

com as outras, e se transportam, no plano exógeno, para outras áreas do conhecimento, pois o

seu desenvolvimento está necessariamente vinculado com outras disciplinas.

Para alguns, mais do que uma disciplina, a bioética é um território, um terreno de

confronto de saberes sobre problemas surgidos do progresso das ciências

biomédicas, das ciências da vida e, em geral, das ciências humanas [...]. Esta

complexidade cultural e científica confere ao estatuto epistemológico da bioética

uma conotação multidisciplinar, que envolve numerosos problemas filosóficos,

biológicos, médicos, jurídicos, sociológicos, genéticos, ecológicos, zoológicos,

teológicos, psicológicos. (BELLINO, 1997, p. 33-34)

Neste primeiro plano epistemológico, fica caracterizada a diferenciação entre a Bioética,

como uma nova forma de se conceber e se desenvolver conhecimento científico, e as ciências

construídas e pautadas nos pressupostos do pensamento moderno, como o Direito.

O caráter da multidisciplinaridade da Bioética se constitui em uma das possibilidades de

interação com outras disciplinas ou ciências, em constituição ou já consolidadas. Há, ainda,

outras possibilidades de relações disciplinares, que transcendem a multidisciplinaridade, como

nos demonstra Bellino (1997) ao tratar das características da Bioética.

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24

Estabelecido o objeto material e formal da Bioética não podemos perder de vista os três níveis

de problemas, que são fundamentais ao estudo da Bioética: problemas metafísicos, problemas

empíricos e valorativos, como bem salienta Bellino (1997).

A relação entre os três níveis problemáticos deve ser pensada não na ótica da

unificação reducionista, mas na elaboração de distinções para unificar, ou melhor, na

lógica da complexidade. A bioética não pode deixar de ser complexa porque se

constitui como discurso e como prática convergente que tem de conectar esses três

níveis problemáticos e manter unidos planos diferentes sem que um absorva o outro

e a pluralidade degenere em indiferença. (BELLINO, 1997, p. 36)

A conexão dos três níveis problemáticos se dá a partir de um processo dialógico complexo12

,

que não se detenha em um método fixo, rígido e pautado em uma única espécie de

abordagem/raciocínio.

Muitas são, portanto, as saídas metodológicas para não incorrer na limitação reducionista,

típica do pensamento moderno. Mas, para encontrá-las é necessária uma maior liberdade no

plano metodológico, como nos demonstra Paul Feyerabend (2007, p. 42-46) ao afirmar:

Está, claro, então, que a idéia de um método fixo ou de uma teoria fixa da

racionalidade baseia-se em uma concepção demasiado ingênua do homem e de suas

circunstâncias. [...]

[Logo, um] cientista que deseja maximizar o conteúdo empírico das concepções que

sustenta e compreende-las tão claramente quanto lhe seja possível deve, portanto,

introduzir outras concepções, ou seja, precisa adotar uma metodologia pluralista.13

(FEYERABEND, 2007, p. 42-46)

A análise metodológica de Feyerabend, ao salientar a necessidade do encontro e da interação

entre conhecimentos distintos para a constituição de um conhecimento específico através de

uma metodologia pluralista, encontra-se plenamente de acordo com a perspectiva

metodológica desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos (2006, p.77-78).

12

A complexidade dialógica, que trazemos aqui, tem como fundamento o pensamento de Edgar Morin, que

estabelece dois princípios, o dialógico e o de recursão, que se constituem em pressupostos essenciais da

inteligibilidade da complexidade. A análise que Edgar Morin (2005) faz da ética se pauta, justamente, na sua

teoria da complexidade, sem a qual alguns aspectos teóricos acabam não sendo desvelados. 13

Grifo do autor.

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A Bioética encontra-se, portanto, no rol das disciplinas pós-modernas, pois as suas

características metodológicas e epistemológicas não estão pautadas de maneira fixa em

pressupostos do racionalismo moderno.

A utilização de múltiplas metodologias proporciona à Bioética uma maior complexidade,

através da qual as possibilidades de análise do objeto material a ser pesquisado, ou seja, a

vida, se transforma em conhecimento e autoconhecimento, rompendo com o clássico

pressuposto dicotômico sujeito/objeto das ciências modernas.

A partir daí, vemos surgir uma nova forma de pensar e de des-pensar o conhecimento

científico estabelecido, tornando possível a desconstrução, a reconstrução e a construção de

novas formas de saber, que se traduzem em novas mentalidades e práticas sociais (SANTOS,

2006).

Assim o pesquisador do Direito, ao compreender as diversas repercussões que as

Tecnociências/Biotecnociências podem causar ao Ambiente e à vida, complexizam a

abordagem, no plano formal, constituindo uma abordagem bioético-jurídica ou jurídico-

bioética, definindo, com isso, o seu lugar de partida, o seu standpoint epistemológico.

A partir deste ponto, a percepção do pesquisador deverá ser estendida e ampliada, rompendo

com a simplificação dicotômica, estabelecida e legada pela razão moderna, simplificadora,

generalizante e homogeneizadora, transcendendo para um novo modelo de razão, aberta e

complexa, como bem coloca Morin ao lecionar que:

A razão fechada era simplificadora. Não podia enfrentar a complexidade da relação

sujeito-objeto, ordem-desordem. A razão complexa pode reconhecer essas relações

fundamentais. Pode reconhecer a si mesma uma zona obscura, irracionalizável e

incerta. A razão não é todalmente racionalizável...

A razão complexa já não concebe em oposição absoluta, mas em oposição relativa,

isto é, também em complementaridade, em comunicação, em trocas, os termos até

ali antinômicos: inteligência e afetividade; razão e desrazão. Homo já não é apenas

sapiens, mas sapiens/demens. (MORIN, 2005, p.168).

A abordagem composta e complexa unindo os conhecimentos jurídicos, agora desmistificados

e desconstruídos pelo pensamento pós-moderno, com o conhecimento da Bioética, tornará

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possível ao pesquisador do Direito ir além das antigas fronteiras que mistificavam certos

limites e que o impediam ir adiante.

É nesse contexto de desconstrução, reconstrução, resignificação que a Ciência do Direito

poderá estudar os novos fenômenos que se originaram das Tecnociências/Biotecnociências,

criadoras de novos conceitos e novas formas de percepções dos seres vivos, que se situam

para além do tempo e do espaço humano, numa ligação entre a imortalidade e a virtualidade,

que redefinem a antiga compreensão de existência (SIBILIA, 2002).

As novas possibilidades epistemológicas para as pesquisas jurídicas possibilitarão a superação

da preponderância dogmática, redefinindo o conhecimento jurídico; tornando-o mais

filosófico e aberto à acelerada dinâmica mutante das Tecnociências/Biotecnociências, pois

estas interferirão de forma, cada vez mais, intensa nas relações sociais, no Ambiente, na vida

e na existência de tudo e todos que se conectam na complexa teia da vida.

5 A TRANSDISCIPLINARIDADE COMO UM NOVO PARÂMETRO TEÓRICO-

EPISTEMOLÓGICO PARA AS PESQUISAS JURÍDICAS SOBRE AS NOVAS

(BIO)TECNOLOGIAS

A partir da ligação do Direito com a Bioética, constituindo uma nova forma de abordagem,

composta e complexa, passamos a perceber outras limitações que se apresentam quando

campos de conhecimentos distintos conectam-se.

As novas conexões disciplinares evidenciam situações que possibilitam o uso de diversos

parâmetros ou abordagens teórico-epistemológicas mais ou menos amplas, transitando da

unisciplinaridade à transdisciplinaridade, que ampliam ou restringem a análise do

pesquisador, revelando, sobretudo, as suas intenções discursivas.

Antes de entrar nas questões específicas da transdisciplinaridade, torna-se necessário

apresentar aspectos que distinguem a multidisciplinaridade da interdisciplinaridade, e destas

da transdisciplinaridade.

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Para isso, utilizar-se-á Bioética como exemplo de disciplina que parte de um estatuto

epistemológico originariamente multidisciplinar e que, a depender da complexidade relacional

do seu objeto material com outros objetos, transita da inter à transdisciplinaridade.

A incorporação de estudos interdisciplinares e transdisciplinares ampliam o campo e a forma

de atuação da Bioética, pois, em não encontrando solução a partir de uma determinada forma

de estudo, será possível a sua busca a partir de uma outra forma de estudo mais dinâmica e

mais abrangente.

É claro que a multidisciplinaridade faz parte, originariamente, do estatuto epistemológico da

Bioética. No entanto, não deve se perder de vista que o seu desenvolvimento faz com que

também seja utilizada a interdisciplinaridade, ampliando a simples análise de um mesmo

objeto, pertencente a uma determinada disciplina, por outras ciências (GARRAFA, 2006).

Com a interdisciplinaridade há uma troca de metodologias, para o tratamento do objeto

material a ser pesquisado.

Esta troca de metodologias, mesmo ampliando o olhar do pesquisador, se restringe aos

campos e aos instrumentos das disciplinas em interação com a metodologia utilizada,

complexizando de maneira limitada a abordagem a ser utilizada na análise do objeto em

estudo.

Já a transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está

ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer

disciplina [...] Seu objetivo é a compreensão da realidade, para a qual um dos

imperativos é a unidade do conhecimento. (GARRAFA, 2006, p.75)

Ademais, é bom não se esquecer, que não só multidisciplinaridade, mas, também, a inter e a

transdisciplinaridade da Bioética estão genéticamente vinculadas ao paradigma científico

emergente. Mas isto não afasta alguns pressupostos basilares que devem estabelecer de

maneira clara a distinção epistemológica entre o objeto material e o formal que a caracterizam

como uma nova disciplina epistemologicamente definida.

Consoante a isso, há a possibilidade de se fazer a seguinte distinção: a Bioética tem como

objeto material a vida, no seu sentido mais amplo e, do ponto de vista formal, dá um

tratamento epistemológico ao seu objeto material, que é a vida, lato sensu, a partir de uma

abordagem ética (BELLINO, 1997, 34).

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[Assim] o estabelecimento de uma espécie de cartografia da transdisciplinaridade

impõe um repensar do sujeito e do objeto, bem como da metodologia da

investigação científica, voltada para esses estatutos jurídicos fundamentais. Caso

logrado êxito, ter-se-á chegado ao final com um resultado realmente significativo,

que é o de ter desenvolvido uma metodologia de investigação transdisciplinar, a

partir de um referencial específico que retorne à característica “universal”.

(FACHIN, 2003, p.254)

É nesse contexto, portanto, que o Direito e a Bioética se encontram para produzir um novo

saber, que denominamos bioético-jurídico. Este se construirá a partir da convergência

centrípeta de múltiplos saberes, dando origem a um novo saber específico, o saber que busca a

concretização, no plano da realidade social, da dinâmica entre discurso e prática, dando

origem, enfim, a uma nova prática14

no âmbito da produção e uso responsável da

biotecnologia.

Vemos, com isso, uma interação muito mais ampla do que a proposta por Manuel Atienza

(1999) quando propõe juridificar a Bioética. A construção de uma nova abordagem,

caracterizada pela transdisciplinaridade, abrange não só o objeto formal, mas também o

material, tanto da Bioética quanto do Direito, fundando a abordagem bioético-jurídica que

procura compreender as questões persistentes e emergentes ligadas às práticas sociais

relacionadas à preservação da vida.

Enfim, a proposta de transdisciplinaridade é a de complexizar a construção do conhecimento

jurídico, bioeticizando o Direito e juridificando a Bioética. Para que, a partir desse encontro

de horizontes, haja possibilidade de se desenvolver práticas sociais éticas e novas normas de

conduta preocupadas com a preservação da vida, conciliando o bem-estar decorrente das

Tecnociências/Biotecnociências com preservação da vida, sob a proteção do Direito,

[...] produzindo uma expansão na consciência histórica e uma explicitação dos

princípios morais e dos valores fundamentais. Considere-se o valor da vida, que se

estendeu da vida humana pessoal à animal, vegetal, cósmica, tornando a ética cada

vez mais “biocêntrica”, em sintonia também com a nova visão da natureza, não mais

reduzida a res extensa, mas entendida como um processo dinâmico e criativo, do

qual o homem é sujeito e objeto ao mesmo tempo. (BELLINO, 1997, p.71).

14

A nova prática seria uma prática eticamente preocupada com a vida, nas suas várias dimensões, baseada em

um juízo de ponderação e razoabilidade, tendo em vista a diversidade social, econômica, política, cultural,

ambiental, etc.

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6 CONCLUSÕES

O aprofundamento das crises de crescimento e degenerescência do paradigma científico

hegemônico do Direito, no atual contexto de desenvolvimento

Tecnocientífico/Biotecnocientífico, levou o pesquisador do Direito a buscar soluções aos

obstáculos decorrentes dos pressupostos científicos da modernidade, que o possibilitasse

transpor os limites epistemológicos do paradigma científico hegemônico do Direito.

Entre as diversas possibilidades apresentadas, serão ratificadas aqui as que viabilizarão a

superação das crises do paradigma científico hegemônico do Direito e que, diante do atual

contexto científico, visam a uma nova configuração epistemológica para a construção de um

novo paradigma científico do Direito:

a) Desdogmatizar o conhecimento jurídico abrindo-o a múltiplas possibilidades

epistemológicas/metodológicas, complexizando o processo de construção e análise do

conhecimento jurídico;

b) Aproximar a linguagem da Ciência do Direito com a do objeto em estudo, ou seja, a das

Tecnociências/Biotecnociências, a partir de um processo hermenêutico crítico que possibilite

a tradução das linguagens e concretize a fusão dos horizontes dos distintos conhecimentos;

c) Promover, por meio da dupla ruptura epistemológica, a compreensão do conhecimento

produzido, senso-comunizando-o, possibilitando, com isso, uma transformação do

conhecimento tido como senso comum, a fim de torná-lo esclarecido e consciente;

d) Complexizar a produção do conhecimento através da construção de abordagens compostas

por diversos eixos teóricos, como por exemplo, no caso específico das pesquisas jurídicas

sobre Tecnociências/Biotecnociências, que partiriam de uma abordagem bioético-jurídica,

aberta a outros pressupostos epistemológicos auxiliares;

e) Redimensionar o parâmetro epistemológico, tornando-o plural e transdisciplinar, levando a

produção do conhecimento científico jurídico para além das fronteiras da unidisciplinaridade

jurídica, produzindo, assim, uma nova possibilidade de resolução dos problemas que surgem

do desenvolvimento das Tecnociências/Biotecnociências.

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