direito agrÁrio

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A AUTONOMIA DO DIREITO AGRÁRIO BRASILEIRO. O ESTATUTO DA TERRA E A ESQUEMATIZAÇÃO DO NOVO RUMO JURÍDICO. A JUSTIÇA AGRÁRIA. 1. HISTÓRICO As origens do Direito Agrário remontam aos primórdios da civilização, quando os homens se organizaram em tribos, e surgiu a necessidade de disciplinar as relações humanas advindas com a disputa por alimentos. Alguns doutrinadores apontam o Código de Hamurabi (século XVII a. C.), do povo babilônico, como o primeiro Código Agrário da humanidade. O ordenamento jurídico agrário ganhou a sua sedimentação a partir da forma com que as terras foram distribuídas no processo de colonização. Segundo os historiadores, a origem do Direito Agrário brasileiro teve início com o TRATADO DE TORDESILHAS, assinado em 07 de junho de 1494, entre Portugal e Espanha. Esse documento revela importância na formação do sistema fundiário brasileiro, visto que Portugal

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Page 1: DIREITO AGRÁRIO

A AUTONOMIA DO DIREITO AGRÁRIO BRASILEIRO. O ESTATUTO DA TERRA E A ESQUEMATIZAÇÃO DO NOVO RUMO JURÍDICO. A

JUSTIÇA AGRÁRIA.

1. HISTÓRICO

As origens do Direito Agrário remontam aos primórdios da

civilização, quando os homens se organizaram em tribos, e surgiu a

necessidade de disciplinar as relações humanas advindas com a

disputa por alimentos.

Alguns doutrinadores apontam o Código de Hamurabi (século

XVII a. C.), do povo babilônico, como o primeiro Código Agrário da

humanidade.

O ordenamento jurídico agrário ganhou a sua sedimentação a

partir da forma com que as terras foram distribuídas no processo

de colonização.

Segundo os historiadores, a origem do Direito Agrário brasileiro

teve início com o TRATADO DE TORDESILHAS, assinado em 07 de

junho de 1494, entre Portugal e Espanha.

Esse documento revela importância na formação do sistema

fundiário brasileiro, visto que Portugal adquiriu, por ele, o domínio

(simbólico) das terras brasileiras.

A ocupação efetiva das terras, todavia, teria início somente por

volta de 1531, com Martim Afonso de Souza, a quem a Coroa

portuguesa incumbiu de distribuí-las, para colonizar o país descoberto.

O colonizador português valeu-se do instituto chamado

SESMARIAS que, em Portugal, havia sido adotado por cerca de dois

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séculos, com o objetivo de corrigir distorções no uso das terras rurais

daquele país, mediante a tomada de terras de quem não mais queria

explorá-las, entregando-as a quem quisesse fazer produzir.

A adoção desse instituto no território brasileiro, no processo de

colonização:

- falta de outro instrumento jurídico adequado;

- urgência no início do processo de ocupação da extensa área

descoberta.

O regime sesmarial adotado no Brasil, todavia, não teve o

caráter confiscatório que foi aplicado em Portugal, mas teve as

características de enfiteuse, concedendo terra aos sesmeiros,

passando-lhes o domínio útil.

A utilização do instituto das sesmarias no Brasil vigorou até

17 de julho de 1822, poucos meses antes da proclamação da

independência política do país.

O regime das sesmarias trouxe como benefícios: a colonização e

o povoamento do interior do país. E, como ponto negativo: a geração

de latifúndios e minifúndios.

2. DENOMINAÇÃO E CONCEITO

A denominação “Direito Agrário” não é pacífica entre os

estudiosos desse ramo, mas é a mais consagrada por refletir o

aspecto dinâmico do seu conteúdo, voltado para as relações jurídicas

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entre o homem e a terra, visando à produção de alimentos. Ao

contrário da denominação “Direito Rural”, que tem conotação estática.

Agrarius – significa campo.

Alguns dos diversos CONCEITOS encontrados na doutrina:

- “Conjunto de normas reguladoras dos direitos e obrigações

concernentes às pessoas e aos bens rurais” (Joaquim Luís Osório);

- “Conjunto de normas e princípios que, visando a imprimir função

social à terra, regulam relações afeitas à sua pertença e uso, e

disciplinam a prática das explorações agrárias e da conservação dos

recursos naturais.” (Raymundo Laranjeira).

3. AUTONOMIA (INSTITUCIONALIZAÇÃO) DO DIREITO AGRÁRIO

BRASILEIRO. O ESTATUTO DA TERRA E A ESQUEMATIZAÇÃO

DO NOVO RUMO JURÍDICO.

Somente em 18 de setembro de 1850, foi baixada a primeira lei

sobre terras, a Lei n. 601 (Lei de Terras), considerada um marco

histórico na legislação agrária brasileira.

O período de 17 de julho de 1822 a 18 de setembro de 1850 (o fim

das sesmarias até a edição da Lei sobre terras) ficou conhecido como

período extralegal ou das posses (ausência de leis que

disciplinassem a aquisição de terras) – caracterizado pela ocupação

desordenada do vasto território, em que imperou o apossamento

indiscriminado de áreas, grandes e pequenas, sem quaisquer

obstáculos legais.

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A Lei de Terras propiciou:

a) conversão das situações de fato para o mundo jurídico;

b) a criação do instituto das terras devolutas (terras

desocupadas, sem dono, não possuídas – Clóvis Bevilácqua).

A finalidade dessa lei era a de definir o que se encontrava na

propriedade ou na posse dos particulares e, mediante exclusão,

determinar o que era de domínio público.

A despeito das virtudes da Lei de Terras, o problema relacionado

com a distribuição de terras em nosso País ainda persiste nos dias

atuais, o que é identificado em duas situações:

- de um lado, a concentração de extensas áreas improdutivas

em mãos de poucos, em forma de latifúndios;

- e, de outro, a grande quantidade de minifúndios.

A Constituição de 1891 – transferiu as terras devolutas para os

Estados.

A Constituição Federal de 1934, por sua vez, sedimentou idéias

agraristas defendidas por respeitosa doutrina.

- Criou o usucapião pro-labore, hoje chamado de agrário, e

contemplou normas sobre colonização e dimensionou a proteção

aos silvícolas e ao trabalhador rural.

A partir de 1934, surgiram diversas leis de grande alcance

social que se incorporaram ao contexto do Direito Agrário.

Advoga-se que foi a Constituição de 1946 que se impregnou de

avanços mais significativos na direção da institucionalização do

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nascente Direito Agrário. Ampliou o seu raio de abrangência, criando

a desapropriação por interesse social que, mais tarde, viria a ser

adaptada para fins de reforma agrária.

Foi na Declaração dos Direitos do Homem, com a Revolução

Francesa, que surgiu o princípio da desapropriação por utilidade

pública, inserta na Constituição de 1791 e no Código de

Napoleão."

Mas foi a EC nº 10, de 10 de novembro de 1964 que teve o

mérito de institucionalizar o Direito Agrário em nosso País,

ampliando a competência legislativa da União para legislar sobre

DIREITO AGRÁRIO, desvinculando este, sob o aspecto formal, mas

não hermenêutico (infelizmente) do direito civil e das correntes

civilistas.

Tal competência, atualmente, está prevista no art. 22, inc. I, da

Constituição Federal.

Outro importante passo dado para a efetiva

institucionalização do Direito Agrário foi a edição, dias depois, do

Estatuto da Terra, consubstanciado na Lei nº 4.504 , de 30 de

novembro de 1964.

Assim, o nascimento do Direito Agrário, no Brasil, teve dois

marcos históricos:

a) Lei de Terras de 1850; e

b) a Emenda Constitucional nº 10/64 e, com ela, o Estatuto da

Terra (considerado o verdadeiro Código Agrário).

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Não se discute mais que o Direito Agrário goza de autonomia, nos

mais diferentes países, sob os aspectos legislativo, científico,

didático e jurisdicional. No Brasil, essa autonomia revela-se apenas

quanto aos aspectos legislativo, científico e didático.

Autonomia legislativa – EC nº 10/64 à CF/1946.

Autonomia científica – identificada na existência de princípios e

normas próprias, com objeto e conteúdo particularizado. Estatuto da

Terra (Código Agrário, com princípios, conteúdo e objeto do Direito

Agrário).

Autonomia didática – constitui uma realidade de maior evidência,

com a disseminação do ensino e da pesquisa desse novo ramo da

ciência jurídica.

Autonomia jurisdicional – não existe ainda, no Brasil,

JUSTIÇA AGRÁRIA, especializada em dirimir conflitos oriundos das

atividades agrárias e das relações que dela emergem, proprietários e

movimentos populares dos chamados sem-terra.

OBJETO do Direito Agrário – para OCTÁVIO MELLO

ALVARENGA, “resulta de toda ação humana orientada no sentido

da produção, contando com a participação ativa da natureza, sem

descurar da conservação das fontes produtivas naturais.”

Mas, a doutrina tem firmado posicionamento no sentido de admitir

que o elemento constitutivo essencial do direito agrário é a

ATIVIDADE AGRÁRIA – “resultado da atuação humana sobre a

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natureza, em participação funcional, condicionante do processo

produtivo.” (Emílio Maya)

As atividades agrárias são classificadas da seguinte forma:

a) explorações rurais típicas – lavoura (temporária ou

permanente), pecuária (pequeno, médio e grande porte),

extrativismo animal (caça e pesca) e vegetal (castanha,

açaí, babaçu etc.) e a hortigranjearia (hortaliças, frutas,

verduras, ovos etc.);

b) exploração rural atípica – agroindústria;

c) atividade complementar da exploração rural –

transporte e comercialização dos produtos.

PRINCÍPIOS do Direito Agrário:

a) O monopólio legislativo é da União (art. 22, I, da CF);

b) A utilização da terra se sobrepõe à titulação dominial;

c) Função social da propriedade (arts. 5º, XXIII, 170, III, 184 e

186 da CR);

d) O Direito Agrário é dicotômico, pois compreende política de

reforma (reforma agrária) e a chamada política agrícola

(política de desenvolvimento rural) – art. 187, § 2º, da CR;

e) Reformulação da estrutura fundiária de forma constante;

f) Prevalência do interesse público sobre o individual;

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g) Proteção à propriedade familiar, à pequena e à média

propriedade (insuscetíveis de desapropriação pra fins de

reforma agrária);

h) Fortalecimento do espírito comunitário, através de

cooperativas e associações;

i) Dimensionamento eficaz das áreas exploráveis;

j) Proteção da propriedade consorcial indígena;

k) A proteção ao trabalhador rural;

l) Conservação e preservação dos recursos naturais e a

proteção do meio-ambiente;

m) Fortalecimento da empresa agrária;

n) Combate ao latifúndio, ao minifúndio, ao êxodo rural, à

exploração predatória e aos mercenários da terra.

O Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002) parece ter absorvido

alguns dos princípios do Direito Agrário, como, por exemplo, o da

função social da propriedade, que merece nosso destaque.

O instituto da desapropriação agrária , principal instrumento

para a realização de reforma agrária, tem no princípio da função

social da propriedade, sua principal inspiração e a sua própria razão

de ser, inserto em constituições modernas, em especial, na mexicana

(1917) e na de Weimar (1919).

A função social da propriedade apareceu, literalmente, pela

primeira vez na história constitucional pátria na Carta de 1967, como

um dos princípios da ordem econômica e social:

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“Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a

justiça social, com base nos seguintes princípios:

(...)

III - função social da propriedade.”

O Direito Agrário Brasileiro, tendo como lei básica o Estatuto da

Terra, encontra seu embasamento na função social da propriedade,

doutrina que tem sua gênese na sociologia.

Essa doutrina da "função social da propriedade" não tem outro fim

senão o de dar sentido mais amplo ao conceito econômico de

propriedade, encarando-a como uma riqueza que se destina à

produção de bens que satisfaçam as necessidades sociais.

AUGUSTO COMTE e LEÓN DUGUIT foram alguns dos principais

filósofos e doutrinadores a sustentar a função social da propriedade.

Na atual Constituição, a Política Agrícola e Fundiária e a

Reforma Agrária são temas inseridos no Título VII - Da Ordem

Econômica e Financeira, a partir do art. 184.

A Lei nº 8.629/93 regulamenta os arts. 184 a 186 da CF/88.

4. A JUSTIÇA AGRÁRIA

Conceito – instrumento de correção das distorções do sistema

fundiário brasileiro, desde a época colonial, buscando a inserção do

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homem do campo no contexto social e econômico deste país-

continente, propiciando-lhe o exercício pleno da cidadania.

O Estatuto da Terra, consubstanciado na Lei 4.504, de 30 de

novembro de 1964, caminha para 45 anos, e ainda estamos discutindo

reforma agrária e reclamando política agrícola.

O Brasil democratizou-se, pelo menos formalmente, e não

conseguiu eliminar as distorções e as desigualdades social,

notadamente no campo.

O êxodo rural continua e as cidades incham, aumentando os

problemas urbanos.

Enquanto isso, os conflitos se multiplicam, gerando a violência

incontrolável, causando mortes de trabalhadores rurais sem terra, de

fazendeiros, de advogados, de sacerdotes até, numa guerra fratricida

inconcebível num país de dimensão continental.

O único artigo constitucional dispondo sobre a jurisdição agrária é

o 126, que foi alterado pela EC nº 45/2004:

“Art. 126. Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de

Justiça designará juízes de entrância especial, com

competência exclusiva para questões agrárias.

Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente

prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do

litígio.”

“Não é possível imaginar que num país deste tamanho, com a

quantidade de terra que tem, precise ter ocupação com violência

contra quem quer que seja. Nós precisamos fazer uma reforma agrária

tranqüila e pacífica” (Prof. Benedito Marques, UFG).

Page 11: DIREITO AGRÁRIO

É consensual o entendimento de que a reforma agrária em nosso País

depende, fundamentalmente, da vontade política dos governantes,

que se disponham a empregar os instrumentos legais editados.

A implantação da Justiça Agrária em nosso País é uma necessidade

imperiosa, em face dos continuados conflitos em que se envolvem os

que têm e os que não têm terra, além dos que reclamam uma política

mais eficaz.

“O juiz não é, e nem pode ser, um aplicador cego de uma disposição

legal estanque, compartimental. O juiz é antes de tudo, exegeta. Não

do sentido literal de um dispositivo de uma lei, ou do seu contexto,

mas o intérprete do que quer significar um dispositivo legal, diante de

todo o ordenamento jurídico em vigor, num dado momento e numa

dada situação conjuntural e estrutural de um país, em face da

evolução dinâmica das relações culturais sócio-econômicas e

políticas”. (Fernando Mendonça, magistrado maranhense).

- MST E REFORMA AGRÁRIA

- O ACESSO À TERRA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

(CONDIÇÃO DE CIDADANIA, DE DIGNIDADE DA PESSOA

HUMANA, DIREITO À ALIMENTAÇÃO E MORADIA)

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DA POLÍTICA AGRÍCOLA E FUNDIÁRIA E DA REFORMA AGRÁRIA

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

§ 1º - As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.

§ 2º - O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.

§ 3º - Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.

§ 4º - O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.

§ 5º - São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.

Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;

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II - a propriedade produtiva.

Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.