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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva 1 DIREITO ADMINISTRATIVO I Professor Doutor Paulo Otero SECÇÃO 1 – PRESSUPOSTOS DE ESTUDO DO DIREITO ADMINISTRATIVO § 1 – Administrar, Administração e Direito Administrar A palavra administrar engloba em si três ideias-chave: o Acção – implica sempre agir; o Rumo – implica um agir que é sempre direccionado a um fim; o Subordinação – implica um agir, direccionado a um fim, que não goza nunca de autonomia primária na definição dos meios através dos quais age Num outro sentido, dizemos que administrar representa uma acção sempre inserida numa organização, que visa satisfazer um determinado fim relacionado com a prossecução de um determinado interesse. Administrar implica sempre a gestão de recursos, pelo que compreende: o Planear – fixar um plano no qual se integram propósitos, fins ou objectivos adequados; o Organizar – dispor os meios existentes da maneira mais adequada possível à prossecução do interesse em causa; o Conformar – intervir sobre a realidade existente, o que envolve dirigir e coordenar; o Controlar – fiscalizar o que foi feito; o Informar – comunicar a informação que é condição de sucesso das decisões tomadas. Podemos dizer que o agir administrativo é, sobretudo, delegado – acima de quem o pratica está o verdadeiro titular do interesses cuja gestão é levada a cabo. É, por isso, também um agir subordinado – subordinado à vontade desse mesmo titular. Dessa subordinação resulta a responsabilidade – a responsabilidade de quem gere perante o titular do interesse. Administração Privada x Administração Pública Administração pode tanto referir-se ao exercício de uma actividade administrar como aquele que exerce a acção – a estrutura decisória que exerce a actividade administrativa. A Administração pode ser privada – administração de interesses privados – ou pública – administração de interesses públicos. Através da administração privada gerem-se recursos tendentes à satisfação de interesses privados; através da administração pública prosseguem-se interesses públicos, identificando-se estes com fins baseados num título jurídico 1 do poder público, com o objectivo de satisfazer necessidades colectivas (noção de bem comum). 1 Este título jurídico pode ser, p.e., a Constituição, legislação ordinária, decisões judiciais, (...)

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

1

DIREITO ADMINISTRATIVO I Professor Doutor Paulo Otero

SECÇÃO 1 – PRESSUPOSTOS DE ESTUDO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

§ 1 – Administrar, Administração e Direito

Administrar A palavra administrar engloba em si três ideias-chave:

o Acção – implica sempre agir;

o Rumo – implica um agir que é sempre direccionado a um fim;

o Subordinação – implica um agir, direccionado a um fim, que não goza nunca de

autonomia primária na definição dos meios através dos quais age

Num outro sentido, dizemos que administrar representa uma acção sempre inserida

numa organização, que visa satisfazer um determinado fim relacionado com a

prossecução de um determinado interesse.

Administrar implica sempre a gestão de recursos, pelo que compreende:

o Planear – fixar um plano no qual se integram propósitos, fins ou objectivos

adequados;

o Organizar – dispor os meios existentes da maneira mais adequada possível à

prossecução do interesse em causa;

o Conformar – intervir sobre a realidade existente, o que envolve dirigir e

coordenar;

o Controlar – fiscalizar o que foi feito;

o Informar – comunicar a informação que é condição de sucesso das decisões

tomadas.

Podemos dizer que o agir administrativo é, sobretudo, delegado – acima de quem o

pratica está o verdadeiro titular do interesses cuja gestão é levada a cabo. É, por isso,

também um agir subordinado – subordinado à vontade desse mesmo titular. Dessa

subordinação resulta a responsabilidade – a responsabilidade de quem gere perante o

titular do interesse.

Administração Privada x Administração Pública Administração pode tanto referir-se ao exercício de uma actividade – administrar –

como aquele que exerce a acção – a estrutura decisória que exerce a actividade

administrativa.

A Administração pode ser privada – administração de interesses privados – ou pública

– administração de interesses públicos. Através da administração privada gerem-se

recursos tendentes à satisfação de interesses privados; através da administração

pública prosseguem-se interesses públicos, identificando-se estes com fins baseados

num título jurídico1 do poder público, com o objectivo de satisfazer necessidades

colectivas (noção de bem comum).

1 Este título jurídico pode ser, p.e., a Constituição, legislação ordinária, decisões judiciais, (...)

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O facto de a Administração Pública prosseguir interesses públicos não significa que estes

não possam também ser prosseguidos por entidades privadas. Nesses casos, estamos

perante o exercício privado de funções públicas (p.e. tribunais arbitrais). Pode ainda

verificar-se a existência de entidades privadas, que prosseguem interesses privados,

mas que são importantes o suficiente para que lhes seja reconhecido interesse público

(p.e. bombeiros voluntários). Esse interesse público é-lhes reconhecido pela ordem

jurídica.

Cabe, então, verificar o que realmente distingue a Administração privada da

Administração pública:

o Diferentes critérios teleológicos de actuação – a Administração Pública apenas

prossegue interesses públicos;

o Existência tendencial de dois ordenamentos distintos de regulação – a

Administração Privada rege-se com base no Direito Privado, enquanto que a

Administração Pública se rege, em regra, com base no Direito Administrativo;

o Sujeição a diferentes princípios jurídicos fundamentais – a Administração

Privada, regendo-se pelo Direito Privado, tem por base o princípio de liberdade,

ao passo que a Administração Pública se associa ao princípio de competência ou

legalidade;

o Resolução de litígios feita por via de regra, em tribunais distintos – a

Administração Privada submete-se ao agir dos tribunais comuns, enquanto a

Administração Pública se submete aos tribunais administrativos e fiscais.

o Desvalores jurídicos da actuação distintos – as accões da Administração Privada

estão, regra geral, sujeitas ao desvalor nulidade, ao contrário do agir

administrativo que, regra geral, está sujeito à mera anulabilidade.

Flexibilidade das fronteiras As fronteiras que separam a Administração privada da Administração Pública são

flexíveis. Esta realidade tem por base a possível existência de interesses migratórios de

necessidades colectivas – interesses que num momento são considerados interesses

públicos e, noutro, interesses privados (e vice-versa).

o Interesse privado torna-se interesse público – colectivização ou publicização.

Esta implica um alargamento da esfera pública de intervenção;

o Interesse público torna-se interesse privado – privatização ou reprivatização.

Podemos estar perante uma integral privatização ou apenas perante uma

delegação da gestão a entidades privadas, não havendo aqui transferência de

titularidade.

Estes interesses migratórios estão geralmente relacionados com questões políticas e

ideológicas. Pode ainda verificar-se a satisfação concorrencial de certos interesses, por

entidades públicas e por entidades privadas. São os casos, p.e. da saúde e da educação.

Como solução para evitar a migração de interesses podem ser criadas zonas de reserva

de iniciativa económica privada de exclusão da esfera pública (ideologia liberal), bem

como alargar as zonas de reserva da Administração Pública (ideologia colectivizadora).

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Direito Administrativo x Direito da Administração Pública Aparece no início do século XIII, no Direito Português, uma crescente preocupação em

regular os poderes e os termos de exercício de funções administrativas2. É nesta fase

que nasce em Portugal o Direito regulador da Administração Pública. O Direito

Administrativo nasce como sendo um direito estatutário, sendo que podemos dizer que

“o Direito Administrativo é tão velho quanto a existência do Estado”. Esta disciplina do

Direito encontrava-se, no entanto, subordinada ao ordenamento comum, tendo

sempre o Rei a última palavra.

Só no século XIX, como resultado da Revolução Francesa e consequente introdução do

princípio da separação de poderes, começa a ser desenvolvido um ordenamento

jurídico específico para regular a actividade administrativa – surge o Direito

Administrativo propriamente dito. Este vem reforçar os poderes da Administração

Pública, pondo-a numa situação de supremacia em relação aos particulares. Cria-se,

então, um direito tido como especial que existe em favor da Administração e que tem

origem jurisprudencial.

O contínuo aumento das limitações jurídicas impostas à Administração Pública fez com

que, nos anos 90, esta regressasse ao Direito Privado, numa tentativa de lhes tentar

fugir. Gerou-se, assim, uma Administração Pública fora do Direito Administrativo. Para

tentar combater esta questão, começou a limitar-se a actuação da Administração

Pública ao abrigo do Direito Privado, publicizando-a. Tal tem por base o facto de o

Direito Privado utilizado pela Administração Pública não o poder ser da mesma maneira

que é utilizado pelos particulares. É, sim, um Direito Privado Administrativizado, que

pode ter diferentes graus de administrativização. Cabe referir a existência de uma

reserva constitucional regulação da Administração Pública, que impede uma

privatização integral da Administração Pública e, assim, o desaparecimento do Direito

Administrativo. O aumento das limitações à Administração Pública é directamente

proporcional ao aumento das garantias dos cidadãos.

Com tudo isto e, sabendo que o Direito Administrativo não é o único Direito regulador

da Administração Pública, cabe perguntar: devemos falar em Direito Administrativo ou

em Direito da Administração Pública? Conclui-se que o silêncio da lei significa que é o

Direito Administrativo que rege a Administração Pública. Desta maneira, o Direito

Administrativo torna-se elemento identitário da Administração Pública de cada país.

Identidade da Administração Pública Por a Administração Pública não ser apenas regulada pelo Direito Administrativo e por

este não ser exclusivamente dedicado à Administração Pública, não podemos falar na

regulação da Administração Pública como matriz identitária do Direito Administrativo.

Podemos, assim, falar de cinco traços fundamentais do Direito Administrativo

o Atribuição de poderes de autoridade à Administração;

o Atribuição de posições de vantagem aos cidadãos perante a Administração;

o Sujeição de poderes de autoridade à legalidade e ao controlo judicial (“A

Administração está prisioneira da lei”)

2 Nesta altura estruturas integrantes da Administração régia

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o Posição de reforço que, em Portugal, o Governo tem na Administração;

o Influência francesa no Direito Administrativo português, hoje em dia temperada

com o Direito da União Europeia e o Direito alemão.

SECÇÃO 2 – PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS DO DISCURSO

JUSADMINISTRATIVO

§ 4 – Vocabulário da Administração Pública

Terminologia funcional O vocabulário da Administração Pública tem por base três conceitos centrais:

o Interesse público – fim último (dimensão teleológica) do agir administrativo;

o Vinculação – dever de respeitar parâmetros normativos de conduta;

o Responsabilidade – a Administração é uma actividade delegada, pelo que se

exige a necessidade de prestar contas/controlar os resultados.

Interesse público O interesse público está relacionado com o conceito de bem-comum, o qual se associa,

na Doutrina, à figura de São Tomás de Aquino – “o governante está sujeito ao bem-

comum, ao interesse público”. Representa, este, as necessidades colectivas que gozam

de projecção política. É o interesse comum a todos, não resultando assim da junção de

todos os interesses individuais ou da maioria dos interesses individuais coincidentes,

podendo colidir com os interesses individuais dos cidadãos3.

O conceito de interesse público tem em si uma dimensão social da dignidade humana,

pois que a prossecução do bem-comum não pode ser ilimitada – tem de se equilibrar

com base no princípio da proporcionalidade. Disso resulta que não há prossecução

legítima do bem-comum que envolva a violação da dignidade humana, impondo-se a

garantia de espaço para o desenvolvimento integral da personalidade e o respeito

pelos direitos fundamentais (art 18º, nº 1 CRP).

A prossecução do bem-comum aparece como critério de actuação dos governantes,

estando condicionado pela legalidade e pela ética (art 266º, nº1 CRP). A definição de

interesse público está, apesar disso, sujeita a questões ideológicas4. O interesse público

é o fundamento, o critério e o limite do agir da Administração, estando a sua definição

sempre relacionada com um título jurídico do poder público.

Ao prosseguir o interesse público, a Administração Pública está sempre sujeita à

necessidade de prosseguir o melhor interesse público – escolhendo os melhores meios

e os meios mais adequados. O interesse público tem ainda de ter em conta o princípio

de equidade intergecional – não é legítimo que as gerações presentes prejudiquem as

gerações futuras através, p.e., do esgotar dos recursos. Há hoje em dia várias

3Exemplo dos impostos – pagar impostos identifica-se com o bem-comum, mesmo sendo contra os interesses individuais dos cidadãos 4 Caso TAP, Governo de Passos Coelho/Governo António Costa

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configurações de interesse público, sendo que pode haver conflitualidade no que é a

definição de interesse público5:

o Interesse público de base territorial – necessidades da população de

determinada área do território (Administração das Regiões Autónomas, das

Autarquias locais, etc.);

o Interesse público de base associativa – necessidades colectivas expressas por

associações (Ordem dos Advogados, Ordem dos Economistas, etc.)

o Interesse público transnacional – necessidades existem na sociedade

internacional

o Interesse público institucional – necessidades são protagonizadas por

instituições (Universidade de Lisboa, p.e.)

Concluímos, com tudo isto, que o conceito de interesse público é um conceito vago e

indeterminado.

Vinculação A vinculação pressupõe que a Administração Pública se encontra subordinada a

parâmetros normativos de conduta, ou seja, a um conjunto de regras e princípios a

que deve obedecer. Está, portanto, vinculada ao princípio da juridicidade. Esta ideia de

vinculação da Administração Pública à legalidade remonta à Grécia Antiga, estando

depois presente na Idade Média, quando Marsílio de Pádua recupera o pensamento

aristotélicas de que é nas leis que se encontra o melhor governo. Na Grã-Bretanha surge

também cedo a ideia de submissão do poder ao Direito – rule of law – como

consequência da Revolução Gloriosa. Com o Iluminismo e com o Liberalismo, esta

subordinação é positivada em termos jurídicos. Durante o século XX, finalmente,

conclui-se que a vinculação da Administração Pública não lhe é só um limite, mas

também fundamento da acção - a lei é o fundamento, o critério e o limite do agir

administrativo.

Existem diferentes níveis de vinculação à juridicidade:

o Vinculação absoluta ou rígida – diz respeito a normas que são regras jurídicas,

aplicando-se assim a medida do “tudo ou nada”;

o Vinculação relativa ou flexível – diz respeito a normas que são princípios

jurídicos, existindo assim a necessidade de ponderação.

Existe, apesar de tudo isso, uma discricionariedade administrativa6 – possibilidade de a

Administração escolher uma solução entre as várias possíveis, dentro dos parâmetros

da normatividade. Há, portanto, um espaço de liberdade de decisão, mas sempre

condicionado pela normatividade. A Administração encontra-se sujeita ao princípio da

boa administração, pois que esta só pode prosseguir o interesse público com base

5 Há que ter em conta que a definição de interesse público não está exclusivamente entregue ao Estado, pelo que há, hoje em dia, várias maneiras de o prosseguir. 6 Prof. Rogério Soares – “a discricionariedade da Administração é como um cão aprisionado a uma corrente – ele pode ir até onde a corrente permite, mas não se pode dizer que seja livre”

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naquilo que é a melhor forma possível de o fazer. Está, assim, sujeita ao princípio da

eficiência.

A vinculação da Administração permite que sejam feitos dois juízos:

o Juízo de legalidade – visa avaliar a conformidade do agir administrativo com a

juridicidade;

o Juízo de mérito – visa avaliar a eficiência e a conveniência da conduta, utilizando

para isso critérios extrajurídicos. A falta de mérito leva a uma ilegalidade

indirecta, uma vez que é violado o princípio da boa administração.

O desrespeito pela vinculação da Administração pode levar a:

o Irregularidade – “manifestação da inversão do princípio da invalidade

decorrente do exercício de uma actividade administrativa contra legem”;

o Invalidade – pode ser originária/própria7 ou derivada/consequente/reflexa8

Inconstitucionalidade – desrespeito pela CRP;

Ilegalidade – desrespeito pela juridicidade ordinária;

Ilicitude – a conduta administrativa é intencionalmente contrária à

juridicidade.

Nem toda a ilegalidade leva à ilicitude, mas toda a ilicitude envolve a violação da

juridicidade. Pode, no entanto, haver ilegalidade por simples erro – falsa percepção da

realidade. Se, no entanto, a Administração persiste em manter a ilegalidade da sua

acção, o erro converte-se em ilicitude (a menos que o decisor continue em erro ou haja

uma norma lega expressa que imponha a conduta levada a cabo). O desvalor jurídico

geralmente aplicado à violação de normas de Direito Administrativo é a anulabilidade.

Ao agir contrário a normas de Direito Administrativo aplica-se, geralmente, a nulidade.

A melhor garantia de que a Administração respeita a lei é o controlo pelos tribunais. O

principal problema deste factor é o facto de ser a própria Administração a controlar a

força passível de ser aplicada em caso de desrespeito da Administração pela decisão

dos tribunais.

A administração pode estar vinculada a normas não-jurídicas, estando também

vinculada à factualidade (usos, precedente administrativo).

Responsabilidade A responsabilidade da Administração prende-se com a necessidade de esta prestar

contas pelas suas acções (responsabilidade por acção) ou omissões (responsabilidade

por omissão).

o Garante da subordinação da Administração ao Direito e à ética;

o Necessidade de responder perante o titular dos interesses a serem

administrados;

o Princípio republicano – modelo de subordinação às leis;

o Princípio democrático – a Administração é legitimada por uma maioria política.

7 A conduta administrativa é inválida, apesar de a norma que a fundamenta ser válida. 8 A conduta administrativa é válida, mas aplica uma norma que é invalida

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Esta exigência de responsabilidade remonta, também ela, à Grécia Antiga. A

responsabilidade pode ser política, contenciosa, civil (pode ser de natureza pessoal ou

institucional), criminal, disciplinar, financeira, internacional, etc. Pode, para além disso,

efectivar-se em diferentes cenários:

o Responsabilidade intra-administrativa – perante a própria Administração

Pública;

o Responsabilidade política concentrada – perante órgãos políticos;

o Responsabilidade judicial – perante os tribunais;

o Responsabilidade política difusa – perante o eleitorado ou a opinião pública.

§ 5 – Vocabulário do administrado Terminologia relacional

O vocabulário da Administração Pública – interesse público, vinculaçao e

responsabilidade – não deixa de ter efeitos junto dos particulares:

o Interesse público – a Administração Pública está ao serviço da satisfação das

necessidades dos particulares (noção de bem comum);

o Vinculação – cria uma zona de liberdade aos particulares, sendo passível de

servir de fonte de posições jurídicas dos particulares;

o Responsabilidade – reforça a posição política dos administrados como sujeitos

activos perante a Administraçao, sendo que em caso de danos gerados por

conduta administrativa, serve de fonte à responsabilidade civil do Estado.

São cada vez mais as vezes em que as normas de Direito Administrativo, não se limitando

a imposições à Administração, carregam posições jurídicas subjectivas dos

administrados – subjectivação das normas administrativas. Através destas, os mesmos

preceitos podem ser interpretados no sentido de deles serem retiradas posições de

vantagem dos particulares perante a Administraçao Pública – teoria da norma de

protecção – podendo levar-nos a:

o Posições jurídicas de defesa – fixam barreiras ao agir administrativo;

o Posições jurídicas de protecção – conferem aos particulares poder de exigir

determinadas acções positivas por parte da Administração.

O vocabulário associado à relação dos particulares para com a Administração Pública

assenta em três conceitos-chave:

o Relação jurídico-administrativa – vínculo entre a Administração Pública e os

particulares;

o Pretensão – conteúdo de um pedido formulado pelo particular à/contra a

Administração;

o Garantia – posições jurídicas de vantagem que o particular tem face à

Administração Pública.

Relação jurídico-administrativa A relação entre particulares e a Administração Pública pode ser de três tipos distintos:

o Relações gerais de poder – baseiam-se numa norma e traduzem uma situação

em que se encontram todas as pessoas no território de determinado Estado,

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dado que estas estão sujeitas à respectiva ordem jurídica. Há quatro diferentes

tipos:

Relações gerais de poder alicerçadas à Constituição;

Relações gerais de poder baseadas em acto legislativo;

Relações gerais de poder com origem num regulamento administrativo;

Relações gerais de poder resultantes de um contracto normativo

(contractos que envolvem a Administração e afectam terceiros).

o Relações especiais de poder9 – dá-se a aplicação a particulares de normas

distintas às que seriam geralmente aplicáveis aos cidadãos;

o Relações jurídico-administrativas stricto sensu – verificam-se entre a

Administração e uma ou várias pessoas determinada(s), pressupondo sempre a

determinação dos sujeitos.

Cabe referir que nem todas as relações de Direito Administrativo, ao contrário do que

alguns autores defendem, são jurídico-administrativas. Para fundamentar a sua

posição, o Professor Paulo Otero diz-nos que:

o Nem sempre a realidade administrativa pode equivaler a uma relação jurídica:

Há situações que não envolvem qualquer relação jurídica;

Há situações que atribuem posições jurídicas sem que isso signifique a

existência de um sujeito activo, ou seja, sem que se estabeleça uma

relação jurídica;

Nem sequer todas as situações obrigacionais implicam relações jurídicas

o Nem todas as situações jurídicas que envolvem particulares e a Administração

Pública levam a verdadeiras relações jurídico-administrativas em sentido

técnico:

Existem vínculos que se verificam entre sujeitos indeterminados ou

indetermináveis;

Existem situações que dizem respeito a direitos de soberania sobre

coisas, não havendo assim relações entre pessoas.

o A relação jurídica enquanto explicação do Direito Administrativo tem sido

abandonada pelo Direito Comum, mostrando-se desaconselhável:

Dogmaticamente – relação jurídico-administrativa não abrange todo o

universo administrativo, limitando-se às situações jurídicas relativas de

objecto limitado;

Cientificamente – insusceptível de conceptualizar todos os fenómenos

de forma satisfatória;

Pedagogicamente – envolve uma divisão da matéria em volta de quatro

elementos (objecto, sujeito, facto e garantia).

Todas as relações jurídicas são compostas por situações jurídicas, sendo que a sua

concretização envolve procedimento administrativo.

Estruturalmente, as relações jurídico-administrativas podem ser simples – compostas

por um único elemento – ou complexas – pluralidade de elementos.

9 P.e. a partir do momento em que um particular se inscreve na FDL passa a estar sujeito a uma regulação especial, que não vincula todos os particulares (regulamentos de avaliação, p.e.)

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Sendo as relações administrativas, por natureza, plurissubjectivas, estas podem

configurar-se de seguinte maneira:

o Relações envolvendo pluralidade de partes que prosseguem interesses distintos:

Pluralidade bipolar ou bilateral – apenas estão envolvidos dois núcleos

de interesses;

Pluralidade multilateral ou multipolar – há mais de duas partes na

defesa de vários núcleos de interesses.

o Relações que envolvem uma pluralidade autónoma de pessoas integrantes de

uma parte, sendo que todas elas prosseguem o mesmo interesse;

o Relações que envolvem a contitularidade de situações jurídicas entre várias

pessoas que constituem uma única parte.

Nem todas as relações jurídicas têm por base o exercício de poderes de autoridade por

parte da Administração Pública junto dos particulares. Podem verificar-se, assim, três

situações:

o Relações que envolvem o exercício de poderes de autoridade;

o Relações que envolvem uma relação de paridade entre a Administração Pública

e os particulares;

o Relações que envolvem a subordinação da Administração Pública face aos

particulares.

As relações jurídicas que envolvem a Administração Pública podem relacionar-se com a

ordem jurídica da seguinte maneira:

o Existem relações jurídicas baseadas num título válido – aqueles que permitem

aos sujeitos ir às últimas consequências na reivindicação do conteúdo. Pode ter

por base um acto unilateral (acto administrativo) ou bilateral (contracto

administrativo);

o Existem relações jurídicas baseadas num título inválido – aquelas que podem a

qualquer momento ser postas em causa. A invalidade pode levar à anulabilidade

ou à nulidade/inexistência;

o Existem relações jurídicas que não têm por base qualquer título.

No que toca à sua projecção temporal, as relações jurídico-administrativas podem ser

instantâneas ou continuadas.

Pretensão Representa um acto de vontade através do qual se solicita ou exige qualquer coisa,

neste caso, à Administração Pública. A pretensão envolve sempre a exigência de uma

prestação. Essa pode ser:

o De facere – exige-se a prática de uma acção ou de uma omissão;

o De dare – exige-se a entrega de uma coisa;

o De pati – exige-se o tolerar a conduta de um particular.

No que toca ao objecto da pretensão:

o Pretensão primária – visa obter uma primeira decisão sobre determinada

matéria;

o Pretensão secundária – visa obter uma reapreciação de determinada decisão

previamente tomada.

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A pretensão formulada nunca significa uma decisão favorável, apesar de essa

expectativa estar sempre presente. Está também envolvido o direito a obter uma

resposta sobre o pedido formulado – princípio da decisão.

As pretensões envolvem uma vertente:

o Processual – pretende-se que a Administração aprecie o que foi pedido, sendo

que a lei pode para isso criar exigências para que a Administração Pública tenha

total conhecimento das circunstâncias. Está aqui presente uma decisão não

sobre a questão material, mas sim sobre a questão processual (Direito adjectivo);

o Material – pretende-se que a Administração se pronuncie acerca de uma

regulação material (Direito substantivo). Pode estar a Administração perante:

Norma impositória – decisor encontra-se sujeito a decidir

favoravelmente a pretensão;

Norma proibitiva – decisor está vinculado a decidir desfavoravelmente a

pretensão formulada;

Norma permissiva – decisor tem o poder discricionário de decidir

favorável ou desfavoravelmente a pretensão formulada.

As pretensões podem ser:

o Dirigidas à Administração Pública

o Dirigidas aos tribunais contra a Administração

Exigem o princípio da separação de poderes e o princípio da legitimidade democrática

que só se vá a tribunal ante uma recusa expressa ou tácita da Administração Pública,

pois que a Administração é o destinatário precedente e preferencial das pretensões dos

particulares. Excepciona-se a situação em que a Administração já prejudicou antes os

interesses ou os direitos legalmente protegidos dos particulares. A partir do momento

em que o tribunal intervém, termina o poder de decisão da Administração. Há,

portanto, uma preclusão da competência decisória da Administração.

Aos tribunais associa-se o princípio do dispositivo – regra tendencial de

correspondência entre o requerido e o pronunciado; à Administração Pública associa-

se o princípio do inquisitório – a decisão final pode englobar uma coisa diferente ou

mais ampla do que o que foi pedido. Se a decisão favorável resultar da actividade do

tribunal, esta mostra-se irrevogável. Se, por contrário, esta decisão advir da

Administração Pública, então esta pode ser posta em causa a qualquer momento.

As pretensões traduzem a expressão de direitos fundamentais, pois que o simples

formular de uma pretensão mostra-se o exercício de um direito subjectivo. As

pretensões contra a Administração Pública levam sempre a acções, providências

cautelares ou recursos de decisões judiciais. Estas não visam apenas a defesa dos

interesses dos particulares, mas também o proteger da juridicidade, sendo sempre

passíveis de recurso para outros tribunais – princípio do duplo grau de jurisdição.

Garantias As garantias representam posições jurídicas de vantagem que o particular tem face à

Administração.

As garantias podem ter por objecto não só a protecção dos interesses dos particulares,

mas também a defesa da legalidade perante acções/omissões da Administração

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Pública. Estas podem assumir uma postura preventiva – evitar a adopção de uma

conduta ilegal ou inconveniente – bem como uma postura repressiva – apagar os efeitos

dessa conduta, agora já consumada.

As garantias fazem dos particulares protagonistas perante a Administração, mas não os

torna “polícias” do agir administrativo – os particulares não são obrigados a denunciar

a ilegalidade ou inconveniência deste agir. É garantido a todos os particulares o direito

à não-autoincriminação10. O Professor Paulo Otero refere-se a esse direito como sendo

um direito fundamental.

Quanto à sua tipologia, as garantias podem ser:

o Garantias políticas – advêm do texto constitucional, expressando uma dimensão

política de controlo administrativo:

Direito de sufrágio – permite a legitimação dos titulares das principais

estruturas decisórias da Administração;

Direito de participação na vida política – permite aos cidadãos

intervirem na vida política, podendo exigir ser esclarecidos e informados;

Iniciativa popular – confere aos cidadãos a possibilidade de desencadear

junto da Administração Pública iniciativas legislativas e de referendo;

Direito de petição – faculdade de dirigir pedidos a todas as estruturas

políticas;

Direito de resistência – possibilidade de não acatar ordens que ofendem

os direitos, as liberdades e as garantias dos particulares.

o Garantias administrativas ou graciosas11 - meios que estão ao dispor dos

particulares para controlar ou fiscalizar a conduta da Administração Pública:

Garantias petitórias –

Garantias impugnatórias – pressupõem uma prévia decisão da

Administração, permitindo colocá-la em causa através da solicitação da

sua modificação (pretensão secundária);

Queixa do Provedor de Justiça – queixa que pode ter por objecto uma

acção ou omissão da Administração Pública e que vincula o Provedor de

Justiça a averiguar a situação.

o Garantias judiciais – podem efectivar-se em tribunais administrativos e judiciais,

bem como em tribunais arbitrais:

Acções que visam a resolução definitiva do litígio

Acções que visam uma tutela provisória ou cautelar

Acções relacionadas com a execução de sentença

o Garantias internacionais e europeias – advêm do facto de a Administração ter

também a seu cargo a prossecução de interesses transnacionais, estando

Portugal inserido numa estrutura supranacional. São principais fontes de

garantias internacionais a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a Carta

dos Direitos Fundamentais da União Europeia:

10 Fifth Amendment – EUA – ninguém pode ser obrigado ou coagido a contar algo que pode ser prejudicial para si mesmo – direito ao silêncio 11 Têm por base um acto de vontade soberana

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Garantias substantivas

Garantias procedimentais – garantia de um processo equitativo, como

previsto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem;

Garantias contenciosas – permitem aos particulares aceder ao Tribunal

Europeu dos Direitos do Homem, ao Tribunal de Justiça da UE e aos

tribunais do Estado;

Garantias administrativas – garantia de um direito de petição junto das

instituições internacionais, bem como a criação de um Provedor de

Justiça Europeu;

Garantias políticas – expressão da cidadania europeia, p.e. direito de

participação na vida democrática da UE.

SECÇÃO 3 – PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DO DIREITO

ADMINISTRATIVO NO SÉCULO XXI

§ 6 – Revolução Administrativa Desmoronar das grandes certezas administrativas

A História mostra-nos que continua a ser no Estado que reside a melhor garantia de

liberdade. Essa liberdade encontra-se em constante equilíbrio com a autoridade, sendo

essa a base da regulação jurídica da Administração Pública – é necessário limitar a

liberdade individual pela autoridade ao serviço do bem comum o suficiente para que se

garanta a liberdade de todos, a prossecução do interesse público e para que a própria

autoridade seja legitimada. Esta é a essência constitucional do Direito Administrativo.

Nas últimas décadas, no entanto, houve uma modificação no binómio

liberdade/autoridade, o que despoletou uma verdadeira revolução administrativa: a

Administração Pública deixou de ser serva da lei, passando a ser serva de interesses

(nem sempre públicos) e ficando assim subordinada a partidos políticos ou grupos de

interesses. Deu-se uma debilitação na vinculação da Administração Publícia à

juridicidade, baseada na maior utilização de conceitos indeterminados (que levam a um

sistema mais aberto e ao maior destaque da Administração enquanto intérprete dos

enunciados) e na maior importância dada aos princípios em detrimento das regras.

Desaparece a ideia de que a lei é a expressão da vontade geral e que essa atinge o seu

expoente máximo no Parlamento. Esta crise da representação política parlamentar leva

à crise da legitimação democrática da lei e, em conjunto, estas levam ao reforço do

poder do governo – este ganha uma maior legitimidade democrática, tornando-se as

eleições parlamentares autênticas “eleições para Primeiro-Ministro”. O Governo torna-

se, assim, o órgão de topo da Administração Pública.

Diz o Professor Paulo Otero que se assiste hoje a uma desvalorização do papel do

Estado:

o A internacionalização, europeização e globalização do Estado leva a que este

seja, por vezes, controlado por um ordenamento supranacional que lhe retira

poder decisório – gera-se uma Administração Pública aberta, internacionalizada

e europeizada;

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o O Estado fragmenta-se de forma interna, devido a uma crescente

conflitualidade intra-administrativa: verifica-se que há hoje várias

Administrações Públicas dentro do território do Estado, bem como o

desenvolvimento de uma pluralidade de micro ordenamentos jurídico-

administrativos;

o É reduzida a esfera de poderes de autoridade do Estado, perdendo este parte

da sua força e agindo agora quase como se de um particular se tratasse.

Todos estes factores levaram a que, no início do século XXI, a limitação do agir

administrativo se tenha tornado uma questão recorrente, dado o cenário de

desagregação financeira e funcional do Estado.

Roptura do modelo transnacional – principais momentos É já neste século XXI que se dá a verdadeira revolução administrativa.

Existem três momentos marcantes para a revolução administrativa em análise. O

primeiro dele é o ataque terrorista que atingiu os Estados Unidos a 11 de Setembro de

2001. Este ataque veio valorizar as ideias de Hobbes quanto à necessidade de valorizar

a segurança: a liberdade é posta para segundo plano, sendo a segurança uma obsessão

tanto política como administrativa. Vive-se agora segundo o princípio “tudo pela

segurança, nada pela segurança”. Para além disso, o combate ao terrorismo traz uma

inversão da presunção da inocência, sendo agora este combate uma verdadeira “razão

de Estado”.

O segundo momento-chave da revolução administrativa foi a crise financeira que teve

início em 2008 e cujos efeitos ainda hoje nos são presentes. Esta crise levou a um

repensar da noção de bem comum e do papel do Estado, sendo que o domínio de uma

concepção neoliberal pode levar a que tenhamos uma Administração Pública inimiga

dos direitos sociais, dado os seus custos financeiros.

Por fim, temos o agravamento da situação de perda de soberania por parte do Estado,

com os casos de programas de ajuda financeira internacional, em que a decisão política

central deixa de ser do Estado, passando a ser de estruturas que lhe são externas. Isto

leva a que as decisões basilares sejam apenas executadas pela Administração Pública,

enquanto as decisões em si mesmas são tomadas por alguém sem legitimidade

democrática para tal. A revolução administrativa é, no limite, a origem da crise do

Estado administrativo e este processo de revolução da Administração está ainda em

curso.

Processo de revolução administrativa em curso O 11 de Setembro levou a que vivêssemos com uma constante postura preventiva para

com um qualquer “inimigo”, num suposto estado de risco constante. Esta realidade

confere à Administração Pública um papel central no combate ao terrorismo e à

criminalidade organizada. A democracia chega inclusive a ser posta em causa, dado o

extremo a que se leva a prossecução da segurança e sendo cada vez mais necessário

reafirmar a ideia de que os fins nem sempre justificam os meios e de que nem todas as

maneiras de obter segurança são admissíveis. A crise financeira de 2008, por sua vez,

trouxe um retrocesso do Estado social, o que leva à necessidade de repensar as áreas

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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de actuação administrativa. Os vários cortes financeiros levam a uma roptura

constitucional, sendo o essencial cada vez mais definido fora das instâncias

constitucionais e, até, das instâncias nacionais.

A natureza compromissória da Constituição leva a que qualquer questão administrativa

rapidamente se torne numa questão constitucional, causando uma conflitualidade na

acção administrativa. A Administração, com isto, passou a ser constantemente

questionada acerca do seu agir. A crescente informatização da Administração leva ao

aumento do risco e do perigo da intervenção administrativa na vida privada dos

particulares, estando constantemente em causa o equilíbrio entre a publicidade e o

interesse à confidencialidade.

Sustentabilidade – condicionante ou pressuposto da revolução? Existem vários modelos de intervenção administrativa:

o Administração conservadora – postura em que o presente surge condicionado

pelo passado, sendo a reforma das instituições feita com base num princípio de

continuidade ou referência às gerações passadas;

o Administração predadora – postura em que o presente consome o futuro,

utilizando de forma egoísta os recursos presentes, à custa de recursos

económicos futuros. Há uma total indiferença perante das gerações que estão

por vir;

o Administração sustentável – postura em que há uma preocupação com as

gerações futuras, sendo que as gerações presentes consomem sem hipotecar o

futuro das gerações futuras.

A ideia de desenvolvimento sustentável não trata só de uma dimensão ambiental,

envolvendo sim uma pluralidade de vertentes que contribuem para o processo

revolucionário que esta em curso:

o Domínio ecológico – implica um aproveitamento racional dos recursos naturais;

o Domínio social – impede o abuso do modelo do Estado social, o que leva a que

a realização dos direitos sociais das gerações presentes nunca possa deixar de

produzir projecção intergeracional;

o Domínio económico-financeiro – implica uma ponderação dentro do que é a

estabilidade de preços, emprego, crescimento económico e equilíbrio de contas

externas (...). Implica um princípio de equidade intergeracional.

o Domínio demográfico – coloca-se ao nível do excesso mundial de população e

ao nível do envelhecimento populacional europeu.

A sustentabilidade é, ela própria, um pressuposto da Constituição, uma vez que esta

não pode ficar indiferente perante a necessidade de salvaguardar o futuro das gerações

que estão por vir. Tudo isto exige, necessariamente, um reajustamento do papel do

Estado e do modo de satisfação das necessidades colectivas por parte da

Administração Pública. É preciso manter um constante equilíbrio entre a

sustentabilidade e a solidariedade, sem deixar de garantir uma existência condigna e a

verificação do princípio da dignidade humana.

Há que ter em conta uma certa inaptidão da democracia no que toca a esta necessidade

de sustentabilidade, pois que “a democracia custa a adaptar-se a problemas

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intemporais”: os governos têm curta duração, enquanto a responsabilidade política

resultante da sustentabilidade só se pode efectuar a longo prazo. Para além disso, os

interesses das gerações futuras não têm representação política, sendo essa exclusiva

das gerações presentes.

Revolução em estado de emergência financeira permanente? Enquanto os factores referentes à crise de segurança levam a que se fale de um estado

de emergência permanente, a verdade é que a crise financeira que atravessamos nos

aponta para um estado de emergência económico-financeiro. Este conceito foi

primeiramente referido pelo Tribunal Constitucional, representando uma “conjuntura

de absoluta excepcionalidade, do ponto de vista de gestão financeira dos recursos

públicos”. Não é, apesar disso, uma realidade reconhecida pela Lei Fundamental. Situa-

se, ainda assim, num intermédio entre os estados de excepção e o estado de

necessidade administrativo, sendo a expressão de uma legalidade alternativa, não

positivada. Este estado de emergência torna ou pode tornar lícito aquilo que a ordem

jurídico-positiva teria, normalmente, como ilícito, mostrando-nos que a Constituição

não passa, por vezes, de um papel que sucumbe perante a “Constituição real”.

A constante necessidade de evitar uma situação de bancarrota influencia certas

medidas decisórias e a sua conformidade com a Constituição:

o A necessidade de evitar um dano superior ao que resulta do incumprimento das

normas jurídicas positivadas, leva a que, em nome de um interesse público de

excepcional relevo, se crie uma normatividade que se legitima na sua própria

excepcionalidade;

o Apesar de se manter o respeito pela dignidade humana e pelos parâmetros de

proporcionalidade, igualdade, universalidade e justiça, há uma flexibilização da

rigidez da Constituição, sendo esta desvalorizada – crise da Constituição;

o Esta necessidade surge como uma verdadeira “válvula de segurança”, gerando

uma legalidade alternativa que se esconde por detrás de todos os

ordenamentos jurídicos.

Este estado de emergência económico-financeiro é agravado pela sua permanência,

mostrando-se passível de levar à mais violenta revolução administrativa junto dos

cidadãos. Gera-se a necessidade de:

o Adoptar medidas de retrocesso social, diminuindo o nível de bem-estar já

alcançado;

o Ponderar a redução de remunerações resultantes da prestação de trabalhos

públicos;

o Repensar montantes a pagar pelo Estado no âmbito de indemnizações

contractuais, havendo uma redistribuição do risco;

o Entrar num cenário de carga fiscal expropriativa;

o Produzir um asfixiamento dos serviços públicos, havendo uma concentração de

poder decisório no Ministro das Finanças.

Tem-se como mais grave o facto de este estado ser constante, dado que após passar o

momento em que se tenta evitar a bancarrota, passa a tentar-se evitar uma nova

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situação de eminência de bancarrota, pelo que a revolução administrativa levará a uma

revolução constitucional.

O principal desafio metodológico prende-se, hoje, com o facto de a crise constitucional

e a crise do Estado serem também a crise do Direito Administrativo – o Direito

Constitucional muda, mas não pode o Direito Administrativo deixar também de

mudar.

§ 7 – Imperialismo administrativo Conceito e ilustração

A verdade é que nada escapa à influência ou ao propósito de influência do Direito

Administrativo – nem mesmo a Constituição. Tal acontece porque a efectividade da

Constituição apenas ocorre através a Administração Pública:

o É através dos meios financeiros proporcionados à Administração Pública que o

modelo de Estado de bem-estar se torna eficaz;

o A materialização dos direitos fundamentais envolve o conferir à Administração

um protagonismo que a torna a condicionante do sucesso ou fracasso da ordem

constitucional.

O cerne da reforma do Estado, então, concretiza-se a nível administrativo.

Imperialismo e terminologia administratia O Direito Administrativo e o Direito Privado são sectores do ordenamento jurídico,

integrantes do mesmo sistema jurídico. Deve, assim, existir uma certa uniformidade

terminológica. No entanto, essa muitas vezes não passa de um desejo – a diversidade

terminológica é desde logo visível quando um termo jurídico expressa realidades

distintas em Direito Administrativo e em outros ramos da ciência jurídica.

A diversidade terminológica, a pouca sedimentação e a plasticidade de certos conceitos

em Direito Administrativo têm levado a que se verifique uma intervenção legislativa

que multiplica definições de conceitos administrativos. A articulação entre conceitos

legais e doutrinas tem especial importância quando tais conceitos têm uma natureza

pré-constitucional, sendo tomados como pressuposto por normas constitucionais, p.e.,

conceito de “regulamento” ou “acto administrativo”.

A questão terminológica tem ainda maior importância quando temos em consideração

um contexto administrativo globalizado, internacionalizado e europeizado:

o Uma mesma realidade judicial pode desempenhar diferentes funções,

consoante o contexto;

o A necessidade de articulação entre a terminologia interna e “externa” relativas

à mesma realidade, leva ao impedimento, sempre que possível, de dualidade

terminológica.

Adiciona-se a tudo isto o passar do tempo, que leva à desactualização, modificação e

substituição de conceitos, p.e.:

o Desactualização do conceito “administrado”, relativamente ao termo

“particular”;

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o Modificação da expressão legal “recurso contencioso” para “acção

administrativa de impugnação”;

o Substituição do conceito “legislação” por “regulação”.

Imperialismo e identidade cultural administrativa O imperialismo administrativo tem sempre de ser articulado com a preocupação da

defesa da identidade cultural do Estado, pois que o sistema administrativo constitui um

elemento identitário do sistema jurídico de cada Estado, integrando o património

cultural da nação.

Aparecendo o sistema administrativo como realidade pré-constitucional, integra

elementos consuetudinários e legais que servem de pressuposto a normas

constitucionais, mostrando que nem tudo o que é fundamental se encontra explanado

na Constituição.

O primeiro factor de identidade cultural administrativa é a língua, enquanto forma de

expressão e elemento de unidade comunicacional de ideias, tradições e sentimentos de

um povo. Isto implica que:

A língua é o primeiro elemento da cidadania de um povo, bem como um elemento

aglutinador de diferentes cidadanias;

O uso da língua portuguesa pode levar à proibição, a nível constitucional, de certas

condutas:

o Publicação no jornal oficial de actos jurídicos nacionais em língua estrangeira ou,

se estrangeira, sem tradução;

o Realização de reuniões de órgãos colegiais públicos em língua estrangeira;

o Direcção ou correspondência dos particulares para com entidades públicas em

língua estrangeira;

o Atribuição de relevância jurídica decisória a documentos obrigatoriamente

fornecidos em língua estrangeira;

o Leccionação de aulas em estabelecimentos públicos em língua estrangeira;

o Uso, por parte de titulares de órgãos públicos nacionais, de língua estrangeira

em cerimónias realizadas em território nacional.

O segundo factor de identidade cultural administrativa prende-se com a defesa dos

traços identificativos do sistema administrativo, o que significa, por exemplo:

o Que o Direito existe ao serviço da justiça e não a justiça ao serviço da legalidade

jurídico-positiva;

o O estatuto do Direito Administrativo como ordenamento jurídico a favor da

Administração Pública;

o A consagração legal de um espaço de discricionariedade decisória a favor da

Administração Pública;

o A consagração de uma Administração Pública que assume uma feição prestadora

de bens e serviços que visem atingir o bem-estar social;

o A prevalência do ordenamento jurídico do Estado face aos entes públicos

infraestaduais;

o A centralidade do Governo como órgão superior da Administração Pública;

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o Que Lisboa é a capital política e administrativa, sendo sede da Administração

central do Estado;

o A submissão da Administração Pública ao poder dos tribunais

A defesa da identidade cultural administrativa de um país é também tarefa dos tribunais

e da doutrina.

O recurso ao direito estrangeiro não pode nunca conduzir a uma colonização científica

– um país que não sabe preservar a sua identidade cultural é um país que não merece o

respeito internacional.

PARTE 1 – FUNDAMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CAPÍTULO 1º - BASES JURÍDICAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

SECÇÃO 1 – INSTRUMENTOS CONCEPTUAIS DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA

§ 8 – Administração Pública – ideias nucleares Polissemia do conceito de Administração Pública

O conceito de Administração Pública mostra ser polissémico, sendo dele possível

extrair três sentidos:

o Administração Pública como actividade (a);

o Administração Pública como organização (b);

o Administração Pública como poder ou autoridade (c).

(a) Primeiro que tudo, a Administração Pública é uma acção humana, que se traduz na

gestão de recursos com o objectivo de satisfazer necessidades colectivas, de modo a

prosseguir o interesse público. Os interesses públicos geridos pela Adminstração têm

como titulares a colectividade.

A actividade levada a cabo pela Administração Pública é, juridicamente, a função

administrativa. A actividade administrativa encontra-se subordinada à vontade do

titular da soberania, o que leva a uma prevalência da vontade constituinte e da

vontade legislativa sobre a Administração Pública – esta encontra-se vinculada a

respeitar a Constituição. Esta subordinação leva não só a que o agir administrativo seja

legitimada pela vontade geral, mas também a que o povo se torne, para além de

legislador, destinatário das prescrições da lei e da actividade administrativa. A

obediência da Administração Pública à lei pressupõe a existência de mecanismos de

controlo dessas exigências de conformidade.

(b) De seguida, a Administração Pública aparece como a protagonista da actividade

administrativa – aparece como administrador – sendo agora analisada num sentido

subjectivo ou orgânico. Esta pode abranger:

o Estruturas decisórias de matriz pública – exercício público de funções públicas,

que pode ou não envolver o exercício de poderes de autoridade;

o Estruturas decisórias de matriz privada – podem ser criadas por entidades

públicas, originando uma Administração Pública sob forma jurídica privada;

podem ser de raiz privada, exercendo apesar disso funções públicas. Há, neste

caso, um exercício privado de funções administrativas.

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(c) A Administração Pública goza de meios de autoridade que lhe permitem definir

unilateralmente o Direito aplicável às situações concretas – autotutela declarativa –

bem como recorrer à força para impor a sua vontade – autotutela executiva.

Plasticidade das necessidades a cargo da Administração Pública A flexibilidade da fronteira que separa as necessidades colectivas satisfeitas pela

Administração Pública e as que estão sujeitas a formas de administração privada gera

alguns efeitos na Administração Pública:

o Crescente dependência política da Administração Pública – a noção de bem

comum é influenciada pelo decisor político;

o Possibilidade de a Constituição se tornar uma fonte reveladora de um conceito

material de função administrativa;

o Aumento do espaço de necessidades colectivas a cargo da Administração

Pública;

o Aumento das necessidades colectivas a cargo da Administração, que desloca o

centro decisório de um órgão parlamentar para um órgão governativo;

o Repensar das tarefas a cargo da função administrativa

Cabe referir que necessidades relacionadas com a defesa nacional, a segurança do

Estado e a administração interna, a administração da justiça e a administração eleitoral

não pode nunca deixar de ser satisfeitas pela Administração Pública.

Multiplicidade de tarefas da Administração Pública A Administração Pública tem como principais tarefas:

o Recolha e tratamento de informação – a informação tem cada vez mais um

papel central, sendo hoje em dia sinónimo de poder efectivo de decisão. A

informação predetermina o resultado decisório das estruturas administrativas e,

no caso da Administração Pública, esta revela um claro papel de vantagem face

ao parlamento e aos tribunais. Essa vantagem é ainda ampliada pela reserva

constitucional de iniciativa legislativa da proposta de lei do orçamento do

Estado.

o Previsão e antecipação de riscos – nas últimas décadas, assistimos a uma

evolução da “sociedade técnica de massas” para uma “sociedade de risco”, na

qual a Administração Pública se mostra permeável à prevenção e minimização

dos riscos públicos. A sociedade moderna vive constantemente preocupada com

áreas como a segurança, o ambiente ou, em geral, com a sustentabilidade.

Desta maneira, cabe à Administração prevenir os riscos tanto das gerações

presentes como das gerações futuras, o que faz através da informação e da

influência na conduta dos cidadãos. Esta função implica o trabalho com

previsões e hipóteses, sem que haja realidades factuais certas.

o Regulação ordenadora – a Administração Pública tem uma tarefa decisória, que

se baseia em situações da vida social e se traduz na regulação dessas situações

(regulação primária) ou de anteriores decisões jurídicas que versam sobre tais

situações (regulação secundária). A Administração resolve situações concretas

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através da aplicação de critérios de decisão, elabora normas e prepara decisões

do poder político, do poder legislativo e até do poder judicial.

o Execução de anteriores decisões – de acordo com uma visão clássica, a

Administração Pública configurava-se como expressão executiva da vontade do

legislador. Importa, no entanto, ter presente que hoje a Administração pode

executar directamente a Constituição, actos de Direito Internacional ou da UE,

bem como do poder político e do poder judicial (para além da execução da lei).

Esta realidade confere à Administração Pública um papel activo no processo

interpretativo, na concretização de conceitos indeterminados e até na

integração de lacunas. Esta actividade pode não só ser feita através da

emanação de actos jurídicos, mas também através da prestação de bens e

serviços tendentes à satisfação das necessidades colectivas.

o Controlo da actuação – a Administração Pública fiscaliza a sua própria conduta,

a conduta de privados que exercem funções pública e ainda da conduta de

particulares que, sem exercerem funções públicas, desenvolvem actividades do

sector privado ou do sector cooperativo e social com utilidade pública.

Função administrativa e Administração Pública A função administrativa é criada e moldada pela Lei Fundamental, encontrando nela

uma legitimação de autoridade paralela à função legislativa e à função judicial.

Existe uma chamada reserva de administração – é um espaço próprio e exclusivo de

intervenção da Administração, excluindo-se o legislador e os tribunais. A jurisprudência

do Tribunal Constitucional confere ao poder legislativo a possibilidade de planificar e

racionalizar a actividade administrativa, definindo a partir daí o espaço que fica à

liberdade de critério dos órgãos ou agentes administrativos. Apesar disso, o princípio da

separação de poderes não pode deixar de limitar também a AR face ao Governo. O

poder legislativo tem de respeitar um espaço de intervenção autónoma da

Administração Pública.

O exercício da função administrativa é associado, por força do princípio da separação

de poderes, à Administração Pública. No entanto, isso não exclui a possibilidade de,

atendendo ao princípio da subsidiariedade, haver exercício privado de funções

públicas. Para além disso, a Administração Pública não se associa apenas à actividade

administrativa, mas também ao exercício da função técnica e política.

A plasticidade das necessidades colectivas a cargo da Administração Pública leva ao

surgimento de dois fenómenos:

o Diferentes níveis ou graus de intervenção decisória das várias funções jurídicas

do Estado – uma mesma matéria pode ser objecto de uma primeira intervenção,

de natureza legislativa, seguida de uma intervenção administrativa e, em caso de

litígio, uma intervenção judicial;

o Alargamento das fronteiras entre administrar, legislar e julgar – temos matérias

reservadas à esfera do poder legislativo (reserva de lei), à esfera do poder

administrativo (reserva de administração) e à esfera do poder judicial (reserva

de tribunais). Para além dessas, temos as chamadas “zonas cinzentas” de

fronteira entre administrar e legislar ou administrar e julgar.

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A fronteira entre a função administrativa e a função política nem sempre é clara, pois

que existem matérias de natureza política que envolvem o exercício de uma actividade

administrativa, tal como existem matérias de natureza administrativa que ensolvem

opções políticas.

Cabe então perceber como se pode definir a função administrativa. Diz o Professor

Paulo Otero que esta se pode definir com recurso a quatro principais traços:

o É função administrativa tudo o que, revestindo natureza pública, não seja nem

legislar, nem julgar, nem fazer política soberana. Significa isto que a função

administrativa assume uma formulação residual;

o As necessidades colectivas cuja satisfação é entregue à Administração Pública

têm sempre, como fundamento, um acto jurídico-público, visando a prossecução

do bem-estar. Nesta ideia de bem-estar inclui-se todo o que permite dignificar a

pessoa humana (justiça, segurança e liberdade);

o A função administrativa implica a realização de cinco tarefas fundamentais:

ordenação da vida social, garantia da ordem e segurança pública, realização de

prestações sociais, obtenção de recursos financeiros e gestão de meios humanos

e materiais;

o A função administrativa implica sempre uma acção prática, não se aceitando um

Estado que não desenvolva diariamente esta actividade.

Função administrativa e poder administrativo É através do poder administrativo que ficamos a saber quais são os meios que a

Administração Pública utiliza para alcançar os objectivos que definem a função

administrativa – o poder administrativo está, por isso, ao serviço da função

administrativa. A Administração Pública goza de uma autoridade decisória

constitucionalmente fundada e legitimada de forma paralela à AR (poder legislativo)

ou aos Tribunais (poder judicial). Dito isto, o princípio da separação de poderes reserva

ao poder administrativo um espaço de intervenção decisória.

A subordinação da Administração Pública à lei não é suficiente para fazer do poder

administrativo a vertente executiva da vontade política da lei, dado que a Constituição

não exclui que o poder administrativo possa ir para lá da lei – exercício da função

administrativa praeter legem. Para além disso, as opções políticas expressas na lei são

condicionadas pela intervenção técnica e procedimental da Administração na

preparação dos diplomas legislativos, o que faz com que antes de estar o poder

administrativo subordinado à lei, está este subordinado à Administração Pública.

O facto de as decisões dos tribunais prevalecerem sobre as decisões administrativas,

não pode levar a que haja uma dupla administração pelo poder judicial – a margem

deixada à Administração Pública e que lhe permite a realização de juízos de mérito está

imune a uma intervenção judicial cassatória ou substitutiva. Há, portanto, um espaço

autónomo de decisão do poder administrativo.

Esta autonomia do poder administrativo manifesta-se através de três vertentes:

o Os actos produzidos pelo poder administrativo não dependem, para produzir

efeitos, de intervenção judicial. Para além disso, a invalidade desses actos não

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impede a sua eficácia obrigatória e o dever de obediência por parte dos

destinatários;

o Os meios de acção do poder administrativo conseguem produzir efeitos sem

depender dos seus destinatários;

o O poder administrativo tem uma esfera discricionária de decisão exclusiva, que

lhe permite escolher o melhores meios e soluções para a prossecução do

interesse público.

O poder administrativo consegue servir-se da colaboração, cooperação e da

concertação no seu relacionamento com terceiros, mostrando ter por base uma

filosofia de consenso.

Normas de competência e organização interna do poder

administrativo

As normas de competência são aquelas que definem o alcance, o sentido e os limites

do poder administrativo, não só nas suas relações com os restantes poderes, mas

também na sua organização interna. É através destas que se definem os termos nos

quais se prossegue o interesse público e se estabelecem as condições para a tomada

de decisões que habilitam.

Seguindo a perspectiva de Kelsen, a norma que habilita o funcionamento de outra

norma é uma norma superior. Desta maneira, as normas de competência são normas

superiores – são superiores a todas as decisões que resultam do poder que elas

conferem.

Existem três tipos de normas de competência:

o Normas que conferem competência – regras ou princípios que atribuem

poderes de intervenção e decisão à Administração Pública;

o Normas que disciplinam o exercício da competência – regras e princípios que

regulam a maneira como os poderes conferidos à Administração Pública se

expressam em termos práticos;

o Normas que regulam as normas de competência – são normas sobre normas,

pois que disciplinam as próprias normas de competência.

Normas que conferem competência Podem dividir-se em quatro níveis configuradores:

o Normas de tarefas ou incumbências políticas – são normas que definem a

fronteira entre os poderes públicos e a esfera da sociedade civil, verificando-se

que o ultrapassar da Administração Pública para o hemisfério privado representa

uma violação da reserva de sociedade civil;

o Normas de divisão ou separação de funções – têm por base o princípio da

separação de poderes, sendo a sua violação equivalente a usurpação de poderes

(inconstitucionalidade orgânica).

o Normas de atribuições – são normas que distribuem os diferentes interesses

públicos pelas pessoas colectivas públicas que integram a Administração. A

violação destas normas conduz a incompetência absoluta.

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o Normas de competência stricto sensu – são normas de competência que se

integram numa pessoa colectiva, sendo que estas conferem competências aos

órgãos da pessoa colectiva. A sua violação leva a uma incompetência relativa.

Podem ser:

Normas de competência potestativa – conferem poderes para a

Administração Pública introduzir, unilateral e automaticamente,

alterações na ordem jurídica;

Normas de competência não potestativa – outorgam poderes cujas

alterações na ordem jurídica não dependem apenas da Administração

Pública, mas também a cooperação de outros sujeitos.

Normas que disciplinam o exercício da competência Comportam cinco subtipos:

o Normas que fixam os princípios gerais a que obedece o exercício da

competência da Administração Pública

Princípio da legalidade da competência – a competência das estruturas

administrativas resulta da CRP, da lei e de princípios gerais de Direito;

Princípio da irrenunciabilidade da competência – os poderes conferidos

não podem ser renunciados;

Princípio da inalienabilidade da competência – os poderes não podem

também ser objecto de negócio jurídico, não podendo assim ser

transferidos a terceiros;

Princípio da inconsumibilidade da competência – poderes não

desaparecem após o seu exercício pelo respectivo titular;

Princípio do respeito pela delimitação material (distribuição de poderes

em função das matérias), territorial (competência pode também ser

distribuída em função do território), hierárquica (existem normas que

definem o que pertence aos órgãos subalternos e aquilo que é a

intervenção dos superiores hierárquicos) e temporal (as normas que

estabelecem o momento temporal do exercício da competência estão

sujeitas a dois princípios: a competência exerce-se em relação ao

presente, excepto em caso de retroactividade; o exercício da

competência relativo a momentos futuros pode gerar incompetência em

razão do tempo).

o Normas que fixam pressupostos ao exercício das competências – são normas

que estabelecem requisitos na previsão da norma para que a competência possa

ser exercida. Não verificados esses pressupostos ou havendo uma violação do

mesmo, estamos perante uma decisão ferida de erro sobre os pressupostos ou

incompetência;

o Normas que determinam os fins do exercício da competência – fazem

corresponder a motivação determinante das decisões ao fim que levou a conferir

essa competência ao respectivo decisor. A sua violação conduz a desvio de

poder;

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o Normas que estabelecem limites materiais ao exercício da competência – são

normas que impõem condições quanto ao objecto da decisão a adoptar no

âmbito da competência em causa. A sua violação leva a decisões feridas de

violação de lei;

o Normas que prescrevem o procedimento e a forma de exercício da

competência – são normas cuja violação leva a vício de forma.

Normas que regulam as normas de competência São normas sobre a normação. Englobam:

o Normas que regulam a produção de normas de competência;

o Normas que disciplinam as relações entre as várias fontes reveladoras de noras

de competência;

o Normas que resolvem conflitos12 de normas de competência

o Normas que definem critérios de interpretação de normas de competência;

o Normas que incidem sobre a integração de lacunas de normas de competência.

Formas e meios da actividade administrativa

Ao exercer as suas funções, a Administração Pública recorre a formas jurídicas e a

formas não jurídicas de actividade.

As formas jurídicas seguem as seguintes ideias-base:

o A definição de situações jurídicas pode fazer-se através do Direito Público

(formas de actividade jurídica pública) ou através do Direito Privado (formas de

actividade jurídica privada). Pode ainda ser feita por acção ou por omissão

administrativa, de forma unilateral ou bilateral;

o Em Direito Público, a definição unilateral de situações jurídicas pode ser geral ou

abstrata, individual ou concreta;

o As situações jurídicas podem ter incidência substantiva, processual ou

procedimental;

o A invalidade da definição jurídica proveniente da Administração Pública não

impede a sua produção de efeitos;

As formas não jurídicas dizem-nos que várias são as tarefas administrativas que se

baseiam na transformação material da realidade – actos materiais – na definição de

linhas políticas do agir administrativo – actos políticos da Administração – ou ainda no

desenvolvimento de condutas informais, num agir praeter legem – actuação informal.

O exercício da actividade administrativa implica sempre a mobilização de meios, que

podem ser: meios humanos, meios materiais, meios organizativos e meios privados.

Durante os últimos anos, assistimos a acentuadas alterações na configuração dos meios

da actividade administrativa, o que se deve a factores como:

o Aproximação dos vínculos laborais públicos ao regime dos trabalhadores sujeitos

ao contracto individual de trabalho que vigora no Direito Privado, que levanta

questões de compatibilidade com a reserva constitucional de funções públicas;

12 Estes conflitos podem ser materiais, temporais ou espaciais.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o Alienação do património imobiliário público, que pode revelar-se

comprometedora do cenário global de exercício da acção administrativa;

o Aumento das necessidades financeiras resultantes da satisfação de “níveis

demagógicos” de bem-estar social, o que põe em causa a sustentabilidade do

Estado, devido a défices orçamentais excessivos e ao endividamento;

o Recurso contractual a meios privados, o que leva a uma redução da intervenção

directa do Estado com um aumento excessivo dos custos financeiros;

o Privatização dos serviços públicos, levando a zonas de Administração Pública

mínima.

Assistimos a um modelo de Administração Pública “não oficial”, que tenta substituir a

Administração Pública oficial.

§ 9 – Tipologia da Administração Pública Concluiu-se já que, nos dias de hoje, não existe apenas uma Administração Pública,

mas várias. Essa variedade pode confirmar-se através da tipologia, que nos mostra a

diversidade e complementaridade de configurações que a Administração pode assumir.

Direito regulador e tipos de Administração Pública o Administração de Direito Público/Administração de Direito Privado – a

Administração de Direito Público é passível de exercer poderes de autoridade,

pautando o seu agir pela aplicação de normas de Direito Administrativo e/ou outros

ramos de Direito Público; a Administração de Direito Privado é disciplinada pelo

Direito Privado, não podendo exercer poderes de autoridade;

o Administração vinculada/Administraçao discricionária – a Administração vinculada

não goza de grande autonomia, encontrando-se sem margem criativa ou liberdade

de escolha de pressupostos, soluções ou efeitos; a Administração discricionária, por

contrário, goza de autonomia dentro dos limites da normatividade, sendo a vontade

administrativa meio para completar os espaços deixados abertos pela lei;

o Administração fundada na CRP/Administração fundada na legalidade – a

Administração fundada na Constituição é aquela que encontra a habilitação do seu

agir na própria Lei Fundamental, como acontece no art 18º, nº 1 CRP em relação à

vinculação administrativa à aplicabilidade directa de certas normas referentes a

direitos fundamentais; a Administração fundada na legalidade encontra no

ordenamento infraconstitucional o seu fundamento. Existem dois tipos de

Administração subordinada à lei:

Administração fundada na legalidade externa – é disciplinada pela

normatividade que regula as relações entre os administrados e a

Administração Pública;

Administração fundada na legalidade interna – associa-se a uma

normatividade criada e aplicada a nível intra-administrativo, podendo

assumir carácter contra legem em relação à legalidade externa (art 112º, nº

5 a contrario CRP)

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o Administração de excepção/Administração de normalidade – a Administração de

excepção desenvolve a sua actividade em cenários de estado de sítio, de emergência

ou de necessidade administrativa, representando a prossecução de interesses em

circunstâncias extraordinárias; a Administração de normalidade não pressupõe

cenários extraordinários, representando a legalidade habitual.

o Administração formal/Administração informal – a Administração formal é

expressão do positivismo-legalista, na medida em que se move dentro do quadro

definido pela legalidade jurídico-positiva (a sua conduta tem um sentido secundo

legem); a Administração informal é a que se desenvolve à margem do estabelecido

pelas normas jurídicas, afastando-se da legalidade formal e agindo praeter legem

o Administração oficial/Administração não oficial – a Administração oficial tenta

aproximar-se ao modelo publicado no jornal oficial, sendo predominantemente

heteroconfigurada; a Administração não oficial funciona paralelamente, traduzindo

a permeabilidade administrativa a processos informais.

Estrutura do substracto organizativo e tipos de Administração

Pública o Governo – figura máxima do poder executivo, representa o órgão máximo da

Administração Pública. Assume diversas responsabilidades políticas junto do

Parlamento e da opinião pública:

Indirizzo político, que lhe permite manter a unidade de condução política do

Estado e o habilita a praticar actos de alta administração;

Actos de alta administração do Governo, que envolvem sempre a

intervenção do Primeiro-Ministro e que podem ser envolver a deliberação do

Conselho de Ministros ou a intervenção posterior do Presidente da

República;

Há que ter em conta que nem toda a actividade do Governo representa actos

de alta administração, sendo apesar disso o Governo o órgão de soberania

no exercício de qualquer competência.

o Administração territorial/Administração associativa/Administração institucional –

a Administração territorial visa dar expressão aos interesses de um agregado

populacional que existe num determinado território nacional (Administração do

Estado), regional (Administração das Regiões Autónomas) e local (Administração

autárquica); a Administração associativa procura satisfazer interesses públicos,

segundo a configuração conferida por lei (aqui se inserem as associações públicas);

a Administração institucional consubstancia-se numa instituição sem base territorial

ou associativa, que pode ser um serviço, um património, um estabelecimento ou

uma estrutura empresarial, a quem a ordem jurídica confere a prossecução de

interesses públicos específicos (institutos públicos);

o Administração central/Administração periférica – a Administração central diz-se

central quando se verifica a prossecução de interesses respeitantes a todo o

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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território nacional; a Administração periférica actua apenas numa zona delimitada

do território, podendo fazê-lo em termos internos13 ou externos14;

o Administração geral/Administração corporativa – a Administração geral prossegue

interesses comuns a toda a colectividade ou à maioria dos seus membros; a

Administração corporativa prossegue interesses públicos relativos a um grupo

específico de pessoas;

o Administração dependente/Administração independente – a Administração

dependente exerce a sua competência estando sujeita a vinculações intra-

administrativas; a Administração independente, as estruturas administrativas

exercem os seus poderes sem estarem sujeitas a mecanismos intra-administrativos,

estando apenas vinculados à legalidade externa;

o Administração do Estado/Administração infraestadual/Administração

supraestadual – a Administração do Estado prossegue os “altos interesses colectivos

e permanentes”. Sendo dotada de legitimidade democrática e responsável

politicamente, está encarregue de exercer funções de soberania; a Administração

infraestadual é responsável pela prossecução de interesses públicos resultantes dos

interesses gerais da colectividade a cargo do Estado, estando subordinada à vontade

constitucional ou legislativa do Estado e sujeita à vontade administrativa; a

Administração supraestadual é a que é passível de exercer funções de subordinação,

coordenação ou cooperação relativamente a cada Estado;

o Administração sob forma pública/Administração sob forma privada – a

Administração sob forma pública é a que se associa à prossecução de interesses

públicos por estruturas com personalidade jurídica de Direito Público; a

Administração sob forma privada é a que se associa à prossecução de interesses

públicos levada a cabo por entidades dotadas de personalidade jurídica de Direito

Privado.

Actividade desenvolvida e tipos de Administração Pública o Administração substantiva/Administração processual – a Administração

substantiva é a que regula directamente situações jurídicas da vida social, definindo

posições jurídicas dos administradores perante a Administração ou vice-versa; a

Administração processual unifica a actividade desenvolvida pelas estruturas

administrativas e/ou seus mandatários como partes litigantes em processos

judiciais, implicando uma conduta processual expressa em dois momentos:

Definição de uma estratégia processual;

Prática de actos processuais

o Administração neutral/Administração intervencionista – a Administração neutral é

a que garante a liberdade, a segurança e a propriedade, abstendo-se da realidade

social e económica e não intervindo, assim, na procura do bem-estar social; a

Administração intervencionista associa-se a um Estado com preocupações sociais,

13 p.e comando distrital da PSP 14 p.e. embaixadas de Portugal no estrangeiro

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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implicando a sua intervenção na esfera económica e social para garantir a prestação

de serviços básicos à colectividade. Esta pode:

Excluir qualquer concorrência de iniciativa privada – modelo de matriz

autoritária;

Fazer-se em concorrência com a iniciativa económica privada, aplicando um

modelo de economia mista – contexto de dignificação das condições de vida

da pessoa humana.

o Administração produtora/Administração reguladora – a Administração produtor é

a Administração intervencionista do Estado social; a Administração reguladora é

aquela que o neoliberalismo veio revelar, visando esta disciplinar o funcionamento

dos mercados. Esta não deixa de ser intervencionista, apenas intervém de maneira

distinta:

Define as condições de acesso e permanência no mercado;

Corrige as deficiências do mercado;

Arbitra os conflitos entre diferentes interesses dos agentes intervenientes no

mercado.

o Administração burocrática/Administração empresarial – a Administração

burocrática visa o desenvolvimento de uma actividade administrativa sem carácter

lucrativo, integrando o sector público da Administração; a Administração

empresarial produz bens ou presta serviços que coloca no mercado, inserindo-se no

sector público empresarial;

o Administração de sacrifícios/Administração de prestação – a Administração de

sacrifícios limita a liberdade e/ou a propriedade dos destinatários das suas decisões,

por via de actos impositivos ou obrigatórios; a Administração de prestação envolve

a produção de bens e a prestação de serviços para a satisfação das necessidades

sociais;

o Administração de ordenação/Administração de infraestruturas – a Administração

de ordenação mostra-se mais relevante após o 11 de Setembro dada a necessidade

de prever os riscos e o perigo, actuando através do condicionar da acção dos

particulares em nome da segurança; a Administração de infraestruturas desenvolve

uma actuação conformadora, recorrendo à planificação e alicerçada num programa

de políticas públicas no sector administrativo. A crise de 2008 veio diminuir a

Administração de infraestruturas;

o Administração de estratégica/Administração de transformação – a Administração

de estratégica desenvolve um indirizzo político do exercício da função

administrativa; a Administração de transformação é a que materializa o plano

idealizado pela Administração de estratégica;

o Administração visível/Administração invisível – a Administração visível é a que se

pauta pelos princípios de transparência e do arquivo aberto, tornando públicas as

regras definidoras da sua orgânica; a Administração invisível, por contrário, é a que

se mostra dominada pelo secretismo, tendo crescido após o 11 de Setembro;

o Administração militar/Administração civil – a Administração militar é a que se

encontra a cargo das forças armadas, tendo como principal missão a defesa nacional

contra ameaças externas e prosseguindo interesses como garantir a soberania do

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Estado, a independência nacional e assegurar a liberdade e a segurança da

população; a Administração civil é toda a restante Administração Pública.

Procedimento adoptado e tipos de Administração Pública o Administração unilateral/Administração bilateral – a Administração unilateral não

aceita o concurso de vontades alheias na formação da decisão, sendo esta definida

independentemente do acordo de terceiros (podem ser soluções gerais e abstractas

– regulamentos; soluções individuais e concretas – actos administrativos; ou

posições jurídicas processuais – actos processuais da Administração Pública); a

Administração bilateral aceita a participação de terceiros, funcionando através de

contractos, pactos, convénios, acordos ou convenções entre a Adminstração e

particulares ou entre duas entidades administrativas;

o Administração impositiva/Administração concertada – a Administração impositiva

baseia-se na imposição unilateral de condutas, não havendo espaço à participação

dos cidadãos; a Administração concertada, por contrário, valoriza a participação dos

interessados na fase que antecede a tomada de decisões administrativas, havendo

a procura por um consenso;

o Administração de subordinação/Administração paritária – a Administração de

subordinação centra-se na ideia de sujeição, de onde o decisor tem o poder

unilateral de exigir certa conduta do administrado; a Administração paritária assenta

na ideia de paridade ou igualdade jurídica, em que o cidadão e o Estado se

encontram igualmente subordinados ao Direito;

o Administração executiva/Administração judiciária – a Administração executiva tem

a faculdade de, caso haja incumprimento, recorrer à execução coactiva sem a

necessidade de intervenção judicial; a Administração judiciária compreende as

situações envolvendo a Administração Pública em que a lei devolve para o poder

judicial a respetiva definição, o que acontece quando a Administração Pública não

goza de autotutela declarativa ou não possui privilégio de autotutela executiva;

o Administração electrónica/Administração tradicional – a Administração electrónica

faz do computador um meio de trabalho e justifica a impessoalidade pela eficiência;

a Adminstração tradicional continua a usar o papel como principal instrumento;

o Administração transparente/Administração opaca – a Administração transparente

revela abertura e a aproximação das estruturas administrativas à sociedade; a

Administração opaca assenta num modelo fechado e sigiloso, que impõe uma

distância de autoridade entre os seus titulares e os particulares, tidos como meros

súbditos.

Efeitos produzidos e tipos de Administração Pública o Administração de assistência/Administração agressiva – a Administração de

assistência confere aos destinatários posições jurídicas activas, ampliando as já

existentes ou removendo restrições e limitações; a Administração agressiva, por

contrário, envolve sacrifícios ou efeitos desfavoráveis aos destinatários, revogando,

diminuindo ou amputando posições jurídicas activas;

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o Administração constitutiva/Administração declarativa – a Administração

constitutiva exerce a sua função através da introdução de alterações na ordem

jurídica, independentemente de o seu sentido genérico ser favorável ou

desfavorável (na perspectiva do destinatário); a Administração declarativa introduz

alterações na ordem jurídica, limitando-se a comunicar o conhecimento de uma

realidade;

o Adminsitração decisória/Administração consultiva – a Administração decisória

desenvolve uma actividade com objectivo de resolver os problemas que lhe são

colocados; a Administração consultiva visa esclarecer, aconselhar e ajudar a tomada

de decisões normativas ou individuais;

o Administração preventiva/Administração repressiva – a Administração preventiva

age com o intuito de evitar a produção de certos eventos, combatendo as suas

causas ou reduzindo os riscos da sua ocorrência; a Administração repressiva age com

o objectivo de minorar, impedir a continuação ou eliminar os efeitos de algo que já

ocorreu;

o Administração interna/Administração externa – a Administração interna

desenvolve uma actividade cujos efeitos se esgotam dentro da própria

Administração, ou porque se produzem apenas dentro da pessoa jurídica que os

emitiu (Administração interna intrassubjectiva) ou porque se produzem em relação

a entidades integrantes da Administração pública diferentes daquela que os gerou

(Administração interna intersubjectiva); a Administração externa centra-se no

exercício de uma actividade geradora de efeitos com impacto na esfera jurídica dos

administrados;

o Administração nacional/Administração transnacional – a Administração nacional

actua sobre situações jurídicas dotadas de uma eficácia que fica pelo território

nacional, podendo prosseguir interesses públicos do Estado português

(Administração nacional de interesses nacionais) ou interesses públicos definidos

por entidades internacionais (Administração nacional de interesses internacionais);

a Administração transnacional actua sobre situações jurídico-administrativas que

atravessam fronteiras de um ou mais Estados. A Administração Pública portuguesa,

tal como as dos restantes estados, pode funcionar como Administração

transnacional.

§ 10 – Posições jurídicas dos particulares face à Adminstração Quadro geral de referência

Se temos situações jurídicas que envolvem a Administração, então estamos perante

situações jurídico-administrativas. As posições jurídico-administrativas podem referir-

se a dois tipos de sujeitos: entidades integrantes da Administração Pública – posições

jurídicas da Administração Pública – ou particulares que se relacionam com a

Administração Pública – posições jurídicas dos administrados ou posições jurídicas

subjectivas dos particulares.

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Sendo sempre uma norma jurídica o fundamento das posições jurídico-administrativas,

os administrados podem ser investidos nas suas posições através de duas vias:

o Por via directa das normas jurídicas, sem necessidade de intervenção de

qualquer outra estrutura decisória – situações jurídicas gerais de concretização

“ope legis”;

o Por via de normas de competência que habilitem a Administração Pública a

proceder à sua criação – situações jurídicas individuais de concretização

administrativa.

No que toca ao conteúdo das posições jurídicas, estas podem ser activas – situações de

vantagem (pressupõem poderes) – ou passivas – situações de desvantagem

(pressupõem deveres). Uma norma que constituía situações jurídicas activas pode, ao

mesmo tempo, constituir variadas situações jurídicas passivas e vice-versa.

Posições jurídicas activas Estas não são uniformes, pois que nem todas as situações de vantagem têm a mesma

intensidade. Existem dois tipos de situações jurídicas activas:

o Direitos subjectivos (que conferem maior protecção jurídica ao administrado);

o Interesses legalmente protegidos – todas as posições jurídicas de vantagem que

não são direitos subjectivos. Destes deriva que a Administração é obriga a tomar

em consideração a posição de vantagem do administrado e que o administrado

pode recorrer a meios judiciais se não vir a sua pretensão satisfeita.

Estas posições jurídicas – quer direitos subjectivos quer interesses legalmente

protegidos – são sempre tidas como complexas, podendo dividir-se em duas posições

jurídicas activas “menores”: o poder – disponibilidade de meios para se alcançar

determinado fim – e a faculdade – conjunto de poderes unificado numa designação

comum.

Classificação de direitos subjectivos Relativamente à estrutura da reação subjacente e da oponibilidade do direito, os

direitos subjectivos podem ser:

o Direitos absolutos – têm garantia erga omnes;

o Direitos relativos – têm garantia era singulum

Podemos ainda distinguir duas modalidades de direitos subjectivos:

o Direitos potestativos – direitos que conferem ao administrado a possibilidade

de alterar unilateralmente a esfera jurídica de outro, independentemente da

vontade do mesmo;

o Direitos comuns – não permitem ao seu titular essa alteração na ordem jurídica.

Uma outra classificação tem por base o objecto dos direitos:

o Direitos patrimoniais – aqueles que são passíveis de avaliação pecuniária;

o Direitos não patrimoniais – aqueles que não são passíveis de avaliação

pecuniária.

Com base na natureza do acto jurídico que cria e regula os direitos subjectivos, podemos

ter:

o Direitos privados – criados por actos jurídicos de Direito privado;

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o Direitos públicos – criados por actos jurídicos de Direito público. Estes podem

impor uma acção a favor do particular à Administração Pública ou podem impor

à Administração uma conduta omissiva em relação ao particular.

Atendendo ao seu objecto no relacionamento com a conduta administrativa, temos:

o Direitos substantivos – particular goza à luz do Direito regulador da conduta

administrativa (traduzem-se em actos de satisfação das pretensões);

o Direitos procedimentais – são conferidos aos particulares no âmbito das

sucessivas fases de transmissão decisória do procedimento interno da AP;

o Direitos processuais – posições jurídicas tituladas por particulares e cujo

exercício é feito junto dos tribunais contra a Administração;

o Direitos fundamentais – direitos reconhecidos e garantidos pela Constituição:

Direitos, liberdades e garantias;

Direitos sociais.

o Direitos subjectivos stricto sensu – direitos provenientes de normas sem valor

constitucional;

o Direitos perfeitos – posições conferidas em sentido pleno;

o Direitos imperfeitos – posições enfraquecidas, sujeitas a intervenções

administrativas prevenientes.

Classificação dos interesses legalmente protegidos Atentando à titularidade dos interesses legalmente protegidos, dividimo-los em:

o Interesses individuais – que podem emergir de actos que visam proteger

interesses de determinadas pessoas (interesses legítimos ou directamente

protegidos) ou de actos que só indirectamente visam a protecção de interesses

individuais (interesses reflexamente protegidos);

o Interesses difusos – são passíveis de satisfação colectiva através de bens

indivisíveis e insusceptíveis de apropriação individual.

Tendo em conta a dinâmica evolutiva da normatividade consagradora de interesses

legalmente protegidos, distinguimos:

o Normas que criam originariamente esses interesses;

o Normas que convertem interesses de facto em interesses legalmente

protegidos;

o Normas que protegem interesses que podem evoluir para interesses legalmente

protegidos;

o Normas que permite a conversão de direitos subjectivos em meros interesses

legalmente protegidos.

Relativamente ao objecto dos interesses legalmente protegidos:

o Interesses opositivos – surge diante de normas que conferem poderes à

Administração cujo exercício produz efeitos restritivos na esfera dos

particulares;

o Interesses pretensivos – resultam de normas que envolvem poderes através dos

quais o administrado recebe uma vantagem, determinado a existência de um

interesse em que o poder venha a ser exercido pela Administração.

Tendo em conta o fim subjacente à instituição normativa, separamos:

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o Interesses de legalidade – conferem ao titular poder de exigir o cumprimento

pela Administração Pública da normatividade vinculativa;

o Interesses de mérito – envolvem a sintonia entre o interesse individual e o

interesse colectivo

Por fim, dividem-se os interesses legalmente protegidos com base na tutela que estes

recebem da ordem jurídica:

o Interesses perfeitos – têm tutela judicial;

o Interesses imperfeitos – não têm tutela judicial

Posições jurídicas passivas Podem ser privadas – criadas e reguladas por actos jurídicos de Direito privado – ou

públicas – criadas e reguladas por actos de Direito público. Podem ser:

o Deveres – implicam a obrigação de realizar ou suportar determinada conduta,

dividindo-se em deveres fundamentais (resultam da Constituição) e deveres não

fundamentais (não resultam de normas constitucionais);

o Sujeições – vinculam alguém a suportar as alterações na sua esfera jurídica

resultantes do exercício de direitos potestativos. Podem ser situações gerais de

sujeição (vinculam a generalidade da população) ou situações especiais de

sujeição (vinculam um núcleo determinado de destinatários);

o Ónus – estabelecem um determinado encargo como meio para obter uma

posição e vantagem, em proveito do interesse próprio do sujeito. O seu

incumprimento não gera qualquer ilicitude, mas impede a obtenção de uma

vantagem.

§ 11 – Administração Pública Pré-Liberal Preliminares

A existência de um poder político envolve sempre o surgir de uma estrutura

administrativa que prepare e execute as decisões que esse poder toma, funcionando

assim desd’o Antigo Egipto.

No Império Romano, verificou-se já a existência de uma Administração militar e de

uma Administração civil, tendo ainda surgido a Administração municipal. É neste

momento que se começa a assistir a um aumento da complexidade da Administração

Pública.

No que toca ao caso português, começando com a fundação da nacionalidade e

chegando até à Revolução Liberal de 1820, podemos identificar três tipos de

Administração:

o XII – XIV Administração medieval-corporativa

o XV – XVII Administração renascentista-barroca

o XVIII – XIX Administração iluminista-absolutista

Cumpre assinalar que cada um destes períodos herda coisas do período anterior.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

34

Administração medieval-corporativa Desde cedo que se verifica em Portugal uma centralização do poder na figura do Rei,

cujo Direito mostra prevalecer. O Direito do Rei é o Direito do Estado, tendo sido D.

Afonso II o principal impulsionador da figura do Estado e, assim, da Administração

Pública estadual. A Administração régia era forçada a conviver com a Administração

senhorial, a Administração concelhia e ainda com a Administração eclesiástica, sendo

que cada uma delas reivindicava para si áreas que poderiam ser concorrenciais de

intervenção.

A Administração régia comportava dois níveis de estruturas decisórias:

o Estruturas e instâncias superiores – todos os servidores régios que tinham

contacto directo com o próprio Rei (aquilo que hoje temos como Administração

central do Estado);

o Estruturas e instâncias intermédias – todos os serviços que não tinham ligação

directa com o Rei, nem exerciam jurisdição de âmbito nacional (aquilo que hoje

temos como Administração periférica do Estado).

O objectivo de proteger interesses de certos grupos profissionais levou a uma

crescente corporativização da sociedade, havendo uma pluralidade de mesteres

organizados e reguladores do exercício de certas profissões. A Administração mostra-se

acentuadamente interventiva, tendo até uma feição dirigista, intervindo

essencialmente: no acesso à titularidade de bens de produção; na produção e circulação

de bens; nos preços e na qualidade de bens e serviços; na moeda e nas actividades

profissionais económicas. O Rei, apesar de estar acima da lei positiva, encontra-se

sempre subordinado à lei natural.

Com a Idade Média, faz-se a distinção entre lei e privilégio:

o Lei – expressão de generalidade e igualdade, que não pode ser usada para

beneficiar particulares;

o Privilégio – comando do poder com carácter individual e concreto

O Rei só pode agora lesar direitos validamente adquiridos se houver para isso justa

causa (uma causa de utilidade pública), fazendo surgir na esfera do lesado o direito a

ser indemnizado. A defesa da liberdade individual, a partir da segunda metade do

século XIII, passa a estar consagrada no ordenamento jurídico português, contrapondo-

se à arbitrariedade e à ilegalidade

Administração renascentista-barroca Também aqui os governantes se encontram vinculados à prossecução do bem comum,

não podendo agir em benefício próprio. Esta Administração assenta nos princípios de

que o reino não existe para o monarca, mas o contrário; que os poderes do rei não são

direitos seus, mas sim direitos da comunidade e que o reino é um representante,

pertencendo o seu agir à pessoa de que faz parte.

Com a expansão portuguesa iniciada em 1415, dá-se uma alteração na Administração:

é agora necessário administrar novos territórios, o que leva à diversificação de

estruturas administrativas de âmbito nacional, metropolitano e colonial. A distância a

que se encontravam alguns destes territórios fez com que fosse atribuída a privados a

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

35

competência para o exercício de funções públicas de natureza administrativa. O rei

continua a ser o titular supremo da jurisdição, tendo em si todos os poderes.

Informalmente surge uma administração honorária, que leva à patrimonialização e

privatização dos ofícios públicos – a titularidade de um ofício público passa a ser uma

posição de vantagem, representando um direito real ou subjectivo, o que limita a

intervenção do rei sobre os ofícios públicos.

A justiça, que já na administração medieval-corporativa era tida como o fim último da

actuação do poder, continua a ser o foco principal. A sua prossecução, no entanto, faz-

se sem qualquer noção de separação de poderes, alargando-se as tarefas do Estado e

enraizando-se a ideia de que a Administração deve tomar postura activa na sociedade.

A chegada do século XVI traz consigo o nascer do princípio da legalidade da

competência dos ofícios públicos. A primeira metade deste século fica marcada pelo

aparecimento da expressão “razão de Estado” – esfera de intervenção do Estado,

dotada de uma força decisória prevalecente a quaisquer preocupações éticas, naturais

ou religiosas. O privilégio torna-se uma excepção, sendo passível de ser revogado em

caso de ilegalidade ou contrariedade com a utilidade pública. Ainda no século XVI gera-

se a teoria do “Estado de Direito, peninsular e renascentista”, que assenta:

o Na supremacia do Direito relativamente aos governantes;

o Na aceitação da existência de direitos básicos que limitam a esfera política;

o No princípio do que viria a ser o controlo da Administração por parte dos

tribunais.

A intervenção do monarca sobre situações jurídicas privadas é agora limitada,

vigorando o princípio de imodificabilidade dos direitos adquiridos. Nasce a chamada

teoria dos dois corpos do rei, em que a sua figura enquanto monarca é separada da sua

figura enquanto particular.

Administração iluminista-absolutista Nesta, o poder do monarca encontra legitmação nele próprio, não lhe sendo impostos

quaisquer limites jurídico-positivos. Este absolutismo tem natureza teocrática,

remontando a Deus o fundamento do poder real. Vive-se uma monarquia pura, sem

que haja soberania popular.

Por consequência de uma tradição legislativa anterior e do pensamento de autores

como Bodin ou Hobbes, o Rei absoluto é superior à lei que ele próprio cria, não estando

assim a ela vinculado. Apesar de se consolidar uma política administrativa

centralizadora, não se consegue eliminar as estruturas administrativas locais de

natureza colonial ou municipal, continuando a patrimonialização dos ofícios públicos.

Essa patrimonialização é combatida através da legislação josefina – os ofícios de justiça

e fazenda são bens da coroa, criados e exercidos em função da sua utilidade pública e

não de qualquer interesse particular do seu titular, devendo ser pessoalmente servidos

pelos respectivos titulares.

Esta Administração baseia-se nas seguintes condições:

o O poder é fundado e legitimado tradicionalmente, não estando limitado por

normas jurídico-positivas;

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

36

o A Administração é dominada por serviçais do rei, não sendo os funcionários

recrutados com base nas suas qualificações profissionais;

o Predomínio de uma concepção patrimonial de cargos públicos, não sendo

comum que o titular do cargo seja aquele que de facto exerce os poderes;

o Inexistência de salários fixos, podendo este não ser sequer pago em dinheiro;

o A Administração não está sujeita a regras legais específicas (arbitrariedade em

detrimento da discricionariedade).

A noção de política ganha um especial significado durante o Estado Absoluto: passa a

compreender medidas sobre a economia, a saúde, a alimentação, a educação, (...) – o

Estado prossegue a segurança, o bem-estar e a regulação económica. O mercantilismo

leva à criação de empresas pelo Estado, estando subjacente a figura do rei como um

pai, que age para proporcionar felicidade aos seus vassalos. Durante a segunda metade

do século XVIII, desenvolve-se uma concepção de monarca que prossegue o bem

comum através da Administração: o rei torna-se o decisor, arbitrariamente, daquilo que

convém ao bem público do Estado.

A concepção jurisdicionalista de poder levar ao exercício de tarefas jurisdicionais e

administrativas pelo mesmo órgão e à aplicação de regras procedimentais da actividade

jurisdicional ao exercício da actividade administrativa.

Em Portugal, está presente a ideia de que o rei deve sempre respeitar os contractos

onerosos celebrados com particulares.

§ 12 – Administração liberal Inovações revolucionárias

A Revolução Liberal de 1820, a aprovação das bases da Constituição em 1821 e do texto

constituinte em 1822, levaram a uma revolução administrativa que se baseia em cinco

princípios jurídicos:

o Separação de poderes – mecanismo limitativo do poder, que leva à

impossibilidade de os tribunais tomarem decisões administrativas e de ser o

monarca a elaborar as leis e a resolver conflitos;

o Supremacia da lei – a lei é a vontade da sociedade e essa é expressa pelo

parlamento, estando-lhe a Administração subordinada;

o Igualdade de todos perante a lei – dá-se a abolição de todos os privilégios

baseados no nascimento, não sendo tidos em conta critérios arbitrários

relacionados com o destinatário;

o Tutela de direitos fundamentais dos cidadãos – verifica-se o reconhecimento e

a garantia de direitos fundamentais;

o Abstencionismo do Estado – a garantia de liberdade implica um Estado mínimo,

não intervencionista. O seu poder limita-se à garantia da segurança de pessoas

e bens e da justiça.

A concentração de poderes no Rei é afastada pela separação de poderes; a supremacia

da vontade do Rei passa a supremacia da lei; o sistema de privilégios é eliminado por

força da igualdade de todos perante a lei; a tutela de direitos fundamentais traz consigo

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

37

uma extensa redacção de direitos fundamentais dos cidadãos perante o poder; o

Estado intervencionista dá lugar ao Estado abstencionista.

Continuidades pré-revolucionárias O liberalismo europeu oitocentista tem como bases filosóficas ideologias muito

anteriores:

o Ideologia britânica – sobreposição de instituições;

o Ideologia francesa – roturas institucionais, associadas a movimentos

revolucionários.

Em Portugal, por força das invasões francesas, o sistema administrativo esteve durante

todo o século XIX sob influência francesa. Isso levou à prevalência de modelos

centralizadores, valorizadores do papel administrativo, que acabam por ser ideias de

Antigo Regime adaptadas de maneira a passarem por conquistas revolucionárias: a

centralização administrativa, tal como a tutela administrativa, não são mais que

instituições do Antigo Regime. Surge, supostamente com base no princípio da

separação de poderes, a ideia de que julgar a Administração ainda é administrar e, por

isso, deve ser feito por parte da própria Administração e não dos tribunais – a

Administração consegue assim fugir ao controlo dos tribunais, que eram vistos como

entraves ao processo revolucionário. À autotutela declarativa da Administração, junta-

se uma autotutela executiva.

Verifica-se, na prática, que apesar de vigorar o princípio da separação de poderes, o

poder executivo nunca foi totalmente alheio à feitura das leis que regulavam o agir

administrativo.

Contraditória génese do Direito Administrativo revolucionário A ideia de que deveria ser a própria Administração a julgar o seu agir levou a que a

Administração começasse a fugir ao Direito comum, por sentir que este não lhe garantia

suficiente mobilidade. A Administração começa assim a criar ela própria o seu

ordenamento jurídico, nascendo o Direito Administrativo. O Direito Administrativo

francês não é resultado da lei ou da vontade geral expressa pelo parlamento, mas sim

da própria actividade administrativa. Os últimos 200 anos têm, por causa disto, sido

assentes na luta contra esta tendência de fuga da Administração Pública ao Direito.

Mito revolucionário liberal A revolução liberal conduz a um aumento do poder administrativo que se mostra mais

acentuado do que era na altura do Estado absoluto: as decisões administrativas são

julgadas pela própria Administração e verifica-se a aproximação entre o Estado liberal

e o Estado pré-liberal15.

Em Portugal:

o A separação de poderes levou à concentração no poder executivo da

competência para administrar e para julgar essa administração;

15 Renovação administrativa pré-liberal

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

38

o A supremacia da lei baseia-se na expressão de uma vontade à qual o poder

executivo não era completamente alheio;

o A igualdade de todos perante a lei não impede o aparecimento do Direito

Administrativo;

o A tutela dos direitos fundamentais dos administrados era uma ilusão, dado o

afastamento dos tribunais do controlo da actividade administrativa;

o Em Portugal, o abstencionismo nunca foi completo.

Da legitimação administrativa tradicional à legitimação legal-

constitucional do aparelho administrativo A grande inovação que a Revolução Liberal trouxe foi a rotura com todo o aparelho

administrativo fundado numa legitimação tradicional, que opera numa relegitimação

administrativa:

o O poder político é agora fundado na Constituição;

o A lei, expressão da vontade geral, é uma manifestação da razão mediatizada

pela actividade parlamentar

o A Administração existe para aplicar a lei, o que significa dar voz à razão e à

vontade geral;

o O poder legislativo é superior ao poder executivo.

Apesar de tudo, o aparelho administrativo liberal vai adquirindo traços de

racionalidade e legalidade:

o Funcionários das estruturas administrativas encontram-se organizados

hierarquicamente;

o O recrutamento e a selecção do pessoal da Administração Pública é feito com

base no princípio da igualdade de todos perante a lei;

o O funcionário insere-se numa carreira administrativa, remunerada e passível de

promoção;

o O funcionário não exerce os seus poderes como se tivesse um direito de

propriedade sobre eles – estes são poderes funcionais, repartidos entre os

diferentes órgãos.

o O funcionário exerce pessoalmente o seu cargo, não podendo declinar o

exercício da competência;

o A actividade jurídica desenvolve-se sob forma escrita, estando sujeito a

controlo judicial.

§ 13 – Administração Pós-Liberal Administração do Estado intervencionista

A Constituição de 1933 vem trazer um modelo de Estado corporativo, com uma clara

postura intervencionista em termos económicos, sociais e culturais. Este modelo,

apesar de todas as diferenças em termos circunstanciais, foi continuado com a

Constituição de 1976, primeiro através da formulação socialista-marxista e, depois,

através do Estado de Direito democrático.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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O Estado intervencionista tornou-se produtor de bens e serviços, dando possibilidade

aos particulares de reclamarem prestações públicas e novas pretensões – o

intervencionismo levou ao Estado solidarista. Este modelo de Administração Pública

assenta nas seguintes características:

o Ampliação das necessidades colectivas cuja satisfação está a cargo da

Administração;

o Subjectivação de tarefas fundamentais a cargo da Administração Pública;

o Transformação dos administrados em utentes de serviços e consumidores de

prestações sociais fornecidas pelo Estado, degradando o seu estatuto de

cidadãos;

o Crescimento de uma estrutura organizativa e funcional da Administração

Pública, que visa responder ao aumento de tarefas;

o Reforço do poder administrativo em relação aos restantes poderes do Estado;

o Criação de reservas de administração ou sectores de monopólio administrativo,

sendo estes espaços de intervenção exclusiva da Administração Pública;

o Protagonismo acrescido do executivo e da sua normatividade na regulação da

acção administrativa;

o Domínio da acção administrativas por burocratas, numa crescente

indiferenciação da vertente política;

o Aumento dos custos financeiros de funcionamento e de prestação de serviços e

bens pela Administração.

Administração do Estado Novo

A Administração do Estado Novo é a que resulta da Constituição de 1933, assentando

então nas seguintes ideias:

o Reforço da Administração do Estado, sendo do Estado o direito e a obrigação de

coordenar e regular superiormente a vida económica e social;

o Sujeição da actividade dos corpos administrativos das autarquias locais a

intervenção do Governo;

o Aperfeiçoamento da Administração ultramarina, primeiro à luz de uma

concepção imperial, depois de uma concepção política de assimilação e, por fim,

por propósitos autonómicos;

o Integração dos organismos corporativos no âmbito de uma Administração

corporativa;

o Reconhecimento da relevância administrativa de empresas de interesse

colectivo e das concessões

Vivíamos sob um modelo político que não dava aos administrados muitas garantias,

surgindo até a própria ideia de Estado de Direito democrático questionada nas palavras

de Marcello Caetano. A Administração é de índole autoritária, e fazia dos tribunais

instrumentos de garantia da fiscalização do cumprimento da legalidade pela própria

Administração. Disto resultava que a execução pela Administração das decisões dos

tribunais fosse o momento chave para a existência de um Estado de Direito.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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A Administração do Estado de Direito democrático

A Constituição de 1976 vem instituir um Estado de Direito democrático, que assenta

em três realidades – Estado social, Estado de Direito material e Estado democrático. O

modelo administrativo que lhe subjaz tem as seguintes características:

o Administração organiza-se, funciona e relaciona-se de perto com a CRP – temos

uma Administração amiga da Constituição;

o Administração com preocupações sociais, observando-se a existência de uma

cláusula constitucional de bem-estar;

o Administração vinculada ao Direito, ideia a que se associa o princípio da

juridicidade;

o Administração politicamente democrática, em que as normas são expressão da

vontade geral e sendo os governantes legitimados perante a colectividade

A Administração Pública está sujeita a controlo político parlamentar e ao controlo

jurídico dos tribunais, sendo obrigada a efectivar as decisões por eles tomadas. Resulta

da CRP um modelo organizativo baseado na “unidade no pluralismo” – a unidade é

assegurada pela Administração do Estado e o pluralismo é assegurado pelas

Administrações infraestaduais:

o O Estado está vinculado a implementar um vasto elenco de tarefas

fundamentais e incumbências prioritárias no âmbito económico, social, cultural

e ambiental;

o O Governo goza do estatuto de órgão superior da Administração Pública e de

uma ampla competência administrativa e legislativa;

o A pluralidade de Administrações Públicas infraestaduais é garantida pela CRP

a vários níveis, p.e. com a criação de duas Regiões Autónomas ou com o

reconhecimento de um “poder local”, entregue às autarquias.

Pressupostos de uma Administração neoliberal?

Os antecedentes de uma concepção neoliberal de Administração Pública resumem-se

em:

o Crise do hiperintervencionismo do Estado – desd’os anos 70 do século XX que

se dá destaque ao mercado, em detrimento do Estado;

o Privatização de tarefas e serviços públicos – reduzindo a intervenção

administrativa do Estado, o que levou à desregulação de matérias por via pública

e gerou fenómenos de autorregulação, levando à intervenção de entidades

privadas na esfera da Administração Pública;

o Redução da função pública e reconfiguração do aparelho administrativo do

Estado – redimensionamento da Administração dependente do executivo,

levando à criação de autoridades administrativas independentes e que se

desenvolvem geralmente à margem da legitimidade democrática directa;

o Substituição dos clássicos instrumentos de coação e comando – preferindo-se

uma metodologia informal, própria de modelos de acção jurídico-privados;

o Introdução da temática da boa governação administrativa – exigências de

eficiência de gestão e controlo do modelo organizativo e do procedimento

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

41

decisório da Administração, que se reconduz à ideia de sistema de governo da

Administração Pública;

o Compulsão pela modificação e pela inovação – ainda que sem objectivos

definidos de bem comum, mas sim com a preocupação pelo destaque na

comunidade social.

O Estado, que reduz o seu papel de prestador de serviços e produtor de bens, assume

agora uma função reguladora, no âmbito da qual controla as prestações fornecidas

pelo sector privado, assegurando o acesso da população a um mínimo das mesmas.

Este, no entanto, não substitui totalmente o Estado social e de serviço público – há, pois,

uma convivência entre ambos.

Desd’os anos 80 do século XX que o Estado tem vindo a sofrer variadas alterações, das

quais se destacam a privatização de serviços e de interesses essenciais, a integração

supranacional de Estados no âmbito europeu (com desvalor para a soberania dos

mesmos), a internacionalização e globalização da economia levando os Estados a lutar

pelos mercados internacionais, (...).

SECÇÃO 3 – CONCEPÇÕES POLÍTICO-FILOSÓFICAS SOBRE A

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

§ 15 – Personalismo e Administração Pública A prossecução do interesse público pode ser feita a com base em três concepções:

o Concepção de matriz totalitária – prevalência absoluta da prossecução do

interesse público, pondo em causa quaisquer posições jurídicas subjectivas;

o Concepção compromissória – harmonização entre a prossecução do interesse

público e o respeito pelos direitos dos administrados;

o Concepção personalista – prevalência absoluta do núcleo essencial da dignidade

da pessoa humana sobre qualquer prossecução do interesse público.

SECÇÃO 4 – CONSTITUIÇÃO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

§ 16 – Constituição Administrativa Conceito, função e tipologia

Qualquer texto constitucional contém disposições acerca da Administração Pública e

da sua relação com os cidadãos. Estas disposições constituem aquilo a que chamamos

Constituição Administrativa, que se torna a principal fonte de subordinação da

Administração ao princípio da constitucionalidade.

A Constituição Administrativa:

o Revela as bases estruturais do ordenamento que regula a Administração

Pública;

o Fundamenta as garantias dos cidadãos face à Administração Pública e os

mecanismos de fiscalização da actividade administrativa;

o Permite recortar um sector do Direito Administrativo a que chamamos Direito

Administrativo constitucionalizado. A constitucionalização da Administração

Pública leva-nos à subordinação da política e da Administração Pública ao Direito

(Constitucional).

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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Toda a regulação da Administração Pública, incluindo a que provém do Direito

Internacional, tem de respeitar a Constituição Administrativa. Esta pode assumir uma

dimensão formal – escrita – falando-se assim em Constituição Administrativa oficial, à

que se opõe a Constituição Administrativa não oficial, que se baseia em normas não

escritas, que assumem carácter complementar.

No que toca à natureza do fundamento das suas normas, podemos ter dois tipos de

Constituição Administrativa:

o Constituição administrativa formal – engloba todos os preceitos da Constituição

política formal que dizem respeito à Administração Pública e às suas relações

com os cidadãos;

o Constituição administrativa material – inclui não só os preceitos constitucionais,

mas também fontes infraconstitucionais que ganhem natureza constitucional

devido à sua essencialidade estruturante. Não se esgota, por isso, na

Constituição formal.

Podemos ainda falar numa Constituição Administrativa transnacional, que existe

devido à relevância que o Direito Internacional tem no nosso ordenamento. A

Constituição Administrativa pode conflituar com esta Constituição Administrativa

transnacional.

Constituição administrativa e Constituição política

A Constituição administrativa formal integra-se na Constituição política, sendo assim

por ela condicionada – a Constituição política dita a Constituição administrativa.

Pode dizer-se que as mudanças constitucionais são sempre mais rápidas que as

mudanças administrativas, sabendo-se que a efectividade de muitas normas

constitucionais dependa da actuação da Administração Pública, assim como os grandes

problemas da Administração Pública são também problemas constitucionais. Temos, na

prática, uma Constituição refém da Administração Pública.

Interpretar a Constituição administrativa implica sempre olharmos para a Constituição

política e para a Constituição económica:

o Uma Constituição que imponha um regime autoritário leva a uma

Administração também ela autoritária; uma Constituição que consagre um

regime pluralista e democrático levará a uma Administração pluralista e

democrática;

o Uma Constituição que consagre poucos direitos fundamentais leva a uma

limitação dos direitos dos administrados; uma Constituição dita garantística,

favorece o reconhecimento dos direitos fundamentais dos cidadãos na sua

relação com a Administração;

o Uma Constituição económica de direcção central gera uma Administração

Pública de ampla dimensão material e organizativa; uma Constituição que fale

de uma economia de mercado, leva a uma Administração mais racionalizada

(subsidiariedade do Estado).

Na prática, a Constituição administrativa nem sempre goza de uma efectividade

reguladora da Administração Púbica. Sabemos ainda que o fundamento das normas

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reguladoras da Administração Pública não tem de ser a Constituição formal, podendo

ser normas de Direito Internacional ou de Direito da UE.

Condicionantes políticas do modelo de Administração Pública

A dependência da Constituição administrativa formal face à Constituição política em

que se inclui, mostra-se através de quatro referências:

o Modelo político-constitucional do Estado – modelo pluralista/modelo não

pluralista – um modelo pluralista conduz à garantia dos direitos fundamentais, à

eleição dos principais titulares do poder político através do sufrágio universal em

eleições periódicas, ao reconhecimento da importância dos partidos políticos, à

hierarquização das normas jurídicas e ao controlo jurisdicional da actividade do

poder público. Por força dos arts 1º e 2º CRP, Portugal insere-se no âmbito de

um modelo de Estado pluralista;

o Forma de Estado – Estado unitário/Estado composto – um Estado unitário

conduz à simplificação das estruturas orgânicas administrativas; um Estado

composto duplica essas estruturas, sendo mais complexa. Portugal é um Estado

unitário descentralizado, sendo ainda membro da União Europeia. Isto faz com

que, na prática, a complexidade da Administração se aproxime mais do que seria

expectável num Estado composto

o Sistema económico – sistema de mercado/modelo de direcção central – com

uma economia de mercado, a Administração Pública é menor, pois que parte do

que seriam funções suas passam para a esfera de iniciativa privada; em sistemas

de direcção central, por contrário, o protagonismo do Estado leva a que a

Administração tenha de produzir mais bens e serviços, ficando-lhe entregue uma

actividade empresarial. Portugal está associado a uma economia mista, o que

leva a uma Administração maior do que a que normalmente se verifica em casos

de economia de mercado;

o Sistema político-governativo – sistema presidencial/sistema parlamentar – o

presidencialismo tende a concentrar sobre o Presidente o protagonismo político

da actividade administrativa, falando-se numa Administração do presidente; o

parlamentarismo dissolve essa responsabilidade individual, levando-nos a falar

de Administração do Governo. Em Portugal, o Professor Paulo Otero defende a

existência de um presidencialismo de primeiro-ministro, com uma diminuição da

responsabilidade parlamentar em caso de governos maioritários.

Conflitualidade administrativa constitucional A natureza compromissória da Constituição de 1976 e a sua abertura interpretativa

levam a que se procure sempre encontrar na Constituição o fundamento da tutela e

garantia de bens, interesses e valores junto da Administração. Isto leva a que haja um

elevado risco de conflitualidade internormativa.

Dá-se por vezes o caso de o legislador remeter para a Administração Pública

ponderações de natureza constitucional, tornando-se a Administração a primeira

instância de resolução de conflitos constitucionais. Seguem-se-lhe os tribunais, como

segunda instância, dado que é inevitável que haja particulares insatisfeitos com as

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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decisões administrativas. Estas questões chegam por vezes ao Tribunal Constitucional,

pelo que este se tornou a última instância de resolução tais controvérsias. Falamos, por

isto, numa administrativização da jurisdição constitucional.

§ 17 – Ordem axiológica constitucional e Administração Pública Princípios fundamentais conformadores do sistema político

O facto de a CRP adoptar um modelo de Estado de direitos humanos – baseado na

dignidade da pessoa humana – justifica todas as instituições, com o objectivo de

atingir uma sociedade mais justa e solidária. Assiste-se a uma concepção personalista

de Administração Pública, sendo que esta nunca deixa de estar subordinada ao

princípio da dignidade humana (art 1º CRP), ideia que subjaz à própria ideia do bem

comum. O princípio da dignidade da pessoa humana assenta na igualdade, na

fraternidade e na liberdade.

A Constituição administrativa leva à subordinação da Administração Pública a quatro

princípios fundamentais:

o Princípio da democracia humana;

o Princípio do Estado de Direito democrático;

o Princípio da soberania internacionalizada e europeizada;

o Princípio da unidade descentralizada.

Princípio da democracia humana Assente na “trilogia democrática”: igualdade, liberdade e fraternidade. Implica um

modelo de sociedade política ao serviço da pessoa humana, o que envolve diversos

pressupostos:

o A liberdade, a justiça e a solidariedade são valores nucleares da actuação da

Administração;

o A Administração Pública é uma estrutura ao serviço da comunidade;

o Os direitos fundamentais decorrem da natureza humana, devendo sempre ser

respeitados, protegidos e implementados pela Administração Pública;

o A Administração está vinculada ao dever de eliminar todos os obstáculos à

efectividade da dignidade humana;

o Respeito pela inviolabilidade da vida humana, pelo livre desenvolvimento da

personalidade e por um postulado geral de solidariedade.

Baseia-se, no fundo, na ideia de que “o Estado e A Sociedade são por causa do Homem

e não o Homem por causa deles”.

Princípios do Estado de Direito democrático Engloba, de acordo com o art 2º da Constituição, quatro vertentes:

o Princípio da separação de poderes – integra-se na CRP com a revisão de 1997,

vinculando o legislador a confiar na Administração Pública o núcleo da função

administrativa. Impõe uma reserva constitucional de Administração Pública, não

podendo por isso, sob pena de inconstitucionalidade orgânica, os tribunais e o

legislador exercer esta função. Em sentido oposto, nunca pode a Administração

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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invadir o núcleo das demais competências, não podendo assim violar a reserva

de lei nem a reserva de jurisdição, sob pena de nulidade das decisões.

o Princípio pluralista – tem ainda por base a dignidade humana, expressando a

ideia de uma Administração não totalitária, aberta, reconhecendo e valorizando

as diferenças e a participação. A Administração Pública plural implica um modelo

de sociedade livre, tolerante e respeitador da diversidade; a existência de várias

Administrações, prosseguidoras de diferentes fins; uma pluralidade de

estruturas orgânicas dentro de cada Administração Pública; diversas formas de

legitimação democrática: por via das normas legislativas que a Administração

produz, por existirem órgãos administrativos cujos titulares são designados por

via de eleição ou por existirem mecanismos de participação dos interessados,

reforçando a democracia representativa.

o Princípio da juridicidade – implica a subordinação da Administração Pública a

toda a juridicidade, num plano heterovinculativo: a Administração está vinculada

ao Direito independentemente da sua vontade e mesmo contra sua vontade.

Esta vinculação determina que a violação de tais parâmetros de conduta leva a

uma actuação administrativa inválida, devendo sempre existir mecanismos de

controlo que garantam a reposição da juridicidade. Essa reposição assenta na

obrigatoriedade de a Administração respeitar a decisão judicial, sendo obrigada

por isso dar-lhe efectividade.

o Princípio do bem-estar – é o objectivo da actuação da Administração Pública,

impondo-se-lhe por base da cláusula constitucional de bem-estar ou de Estado

social. Os privados, subsidiariamente, também devem ser chamados a colaborar.

Juridicamente, a Administração desenvolve, em relação ao poder legislativo, um

papel subsidiário na implementação das imposições constitucionais de bem-

estar. A Administração goza de uma posição nuclear na satisfação concrecta e

efectiva de cláusulas de bem-estar, estando por esta via sujeita ao princípio da

eficiência e ao princípio da necessidade.

Princípio da soberania internacionalizada e europeizada Assistimos hoje a uma internacionalização e europeização da Administração Pública

nacional. Esta manifesta-se a partir:

o Da cooperação internacional, que se torna um pressuposto para o êxito das

medidas propostas , envolvendo uma pluralidade de Estados;

o Inerente e progressiva sujeição da Administração Pública a normas de Direito

Internacional geral ou comum, a normas internacionais convencionais e ainda

a normas de Direito da União Europeia – alargam-se as fontes da juridicidade

vinculativa do agir administrativo nacional

o Transferência de matérias da esfera decisória nacional para o domínio

internacional, deixando o Estado de ter competência decisória primária em

vários aspectos nucleares;

o Necessidade de partilha e articulação entre a Administração nacional, as

Administrações de tais entidades e, ainda, as Administrações de outros Estados.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o O controlo da actuação da Administração nacional deixa de ser feito apenas

pelos tribunais nacionais, sendo também feito por entidades fiscalizadoras

externas ao Estado.

Tudo isto torna-se mais acentuado se o Estado estiver subordinado a um plano de ajuda

externa – “o autogoverno democrático foi substituído pelo heterogoverno dos

credores”.

Princípio da unidade descentralizada

§ 18– Princípios gerais da Administração Pública - introdução Generalidades

A Constituição de 1976 compreende vários princípios gerais que se referem à

Administração Pública:

o Princípios gerais da Administração em sentido orgânico ou subjectivo – são os

princípios que regem a organização administrativa;

o Princípios gerais da Administração em sentido material ou substantivo – são os

princípios que regem a actividade administrativa.

Estes podem mostrar-se de forma expressa, implícita ou a partir da extracção de um

ou vários preceitos constitucionais. Estes princípios são, em primeira instância,

comandos constitucionais dirigidos ao legislador. Nos espaços de reserva

constitucional e de reserva legal de Administração, há sempre uma vinculação das

estruturas administrativas aos princípios organizativos e aos princípios do agir

administrativo. Estes podem servir de parâmetros normativos de fiscalização da

constitucionalidade das soluções legislativas e administrativas referentes à organização

e à actividade da Administração.

Princípios gerais da organização administrativa

A organização administrativa portuguesa pauta-se pelos seguintes princípios gerais:

o Princípio da subsidiariedade – tem subjacente o princípio de que tudo aquilo

que puder ser feito pelas estruturas mais próximas não o deverá ser pelas

estruturas mais distantes. A sua operatividade permite-lhe a definição de um

modelo de repartição de áreas de decisão, permitindo o reforço da intervenção

decisória das estruturas mais distantes ou de nível mais elevado.

o Princípio da descentralização – efectiva-se entre pessoas colectivas, dizendo-

nos que o exercício das funções do Estado deve estar repartido por uma

pluralidade de entidades, levando ao descongestionamento de poderes.

Exceptuando a função jurisdicional, todas as demais funções não são exercidas

exclusivamente pelo Estado, mas antes partilhadas entre ele e uma pluralidade

de outras pessoas colectivas. Leva-nos, assim, a uma divisão da função política,

legislativa e administrativa entre o Estado e diversas entidades;

o Princípio da desconcentração – efectiva-se entre órgãos de uma mesma pessoa

colectiva, baseando-se na repartição de poderes por entre os mesmos. Esta

desconcentração só pode, no entanto, começar após o fim dos poderes

resultantes da Constituição, o que dá ao Governo uma posição privilegiada: a

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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desconcentração da competência do Governo só começa quando acabam os

poderes que lhe foram conferidos pela CRP;

o Princípio da unidade – é o princípio limitador da descentralização e da

desconcentração, porque condiciona o pluralismo decorrente do fenómeno de

descongestionamento de poderes administrativos. Confere ao Governo a

possibilidade de exercer um poder de intervenção intra-administrativa sobre

quase todas as esferas decisórias do poder do Estado. Este princípio não é

exclusivo do Estado, podendo servir de modelo organizativo de qualquer

entidade pública e do seu relacionamento com outras entidades.

o Princípio da participação dos interessados na gestão da Administração – serve

como reforço da democraticidade do modelo organizativo da Administração

Pública, estando p.e patente na existência de alunos nos órgãos da faculdade

(ultrapassa por isso a mera eleição de titulares de órgãos). Este princípio permite

a criação de novas estruturas orgânicas aptas a conferir expressão participativa

aos interessados, a organização dos interesses em formas de autoadministração

de base territorial ou socioprofissional e a adaptação das estruturas orgânicas já

existentes a mecanismos de participação dos interessados. O princípio da

participação dos interessados na gestão da Administração implica

responsabilização, sendo a responsabilidade tanto maior quanto mais activa for

essa participação, estando presente no art 267º, nº1 CRP.

o Princípio da aproximação dos serviços às populações – a CRP, no seu artigo

267º, nº 1, exige que a Administração esteja estruturada de modo a que quem

decide esteja próximo dos problemas. Como limites a este princípio tem a

imparcialidade e a utilização da informática nas decisões administrativas.

o Princípio da desburocratização – está patente no art 267º, nº 1 CRP, implicando

a simplificação da Administraçao e do seu relacionamento com os particulares.

Comporta, diz o Professor, uma componente política, dizendo que o centro da

decisão se deve localizar em estruturas dotadas de legitimidade democrática e

não num aparelho de burocratas. Também nas palavras do Professor Paulo

Otero, este princípio “tem-se vindo a afirmar, mas ainda com árias onde não é

muito visível”.

Princípios gerais da actividade administrativa

Estes são princípios que devem reger o modo como a Administração Pública

desenvolve a sua função administrativa. O art 266º CRP comporta:

o Princípio da juridicidade – a Administração age com fundamento no direito

(independentemente da sua fonte), nunca o podendo violar. Disto resulta que o

silêncio da norma significa para a Administração uma proibição, ficando esta

vinculada a nada fazer. Este princípio, diz a Doutora Joana Loureiro, é uma

construção doutrinária;

o Princípio da prossecução do interesse público – a Administração Pública nunca

deixa de estar ao serviço da comunidade e dos seus interesses, não podendo

assim motivar-se por interesses privados. Esta visa a defesa, a garantia e a

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promoção do bem comum, implicando sempre o respeito pela dignidade da

pessoa humana;

o Respeito pelas posições jurídicas activas dos cidadãos (pelos direitos ou

interesses dos particulares) – a Administração Pública deve sempre optar pela

solução que evite lesar ou que menor dano provoque aos seus direitos e

interesses. Em caso de ilegalidade da conduta, gera-se um sacrifício individual

em benefício da colectividade, que abre espaço a indemnização pelos danos

sofridos;

o Princípio da igualdade – implica que a Administração Pública trate todos com

base nos mesmos critérios. Esta igualdade tem de ser não só formal, mas

também material, decorrendo não só do art 266º, mas também do art 13º CRP.

Cabe salientar que esta não exclui uma desigualdade de tratamento, pois que

nada é mais injusto que tratar como igual aquilo que é desigual.

o Princípio da proporcionalidade – tem subjacente a ideia de justiça distributiva,

que remonta a Aristóteles. Este implica a proibição do excesso ou necessidade,

nunca legitimando a imposição de sacrifícios ou lesões pessoais ou patrimoniais,

exigindo a adequação das soluções às situações e ainda exigindo razoabilidade.

Há quem defenda, com base em jurisprudência do TC, uma quarta vertente deste

princípio: o princípio da protecção insuficiente, que requer um nível mais

exigente de protecção jurídica de certa realidade, defendendo que protecção

insuficiente leva à ilegalidade da decisão.

o Princípio da justiça – exige que seja dado a cada um aquilo que lhe é devido,

sendo este o fundamento, o critério e o limite do poder. Procura a equidade do

caso concreto, tendo implicações não só em termos materiais, mas também em

termos procedimentais, projectando-se sobre a maneira como se decide.

o Princípio da imparcialidade – a Administração deve assumir uma posição de

isenção em relação ao que decide e aos respectivos destinatários. Tem

subjacente a ideia de justiça, excluindo situações de favorecimento ou

desfavorecimento por conflito entre os interesses envolvidos. Este princípio

comporta: a neutralidade administrativa face a quaisquer interesses alheios ao

interesse público e a determinação de certos parâmetros racionais, objectivos,

lógicos e transparentes de decisão;

o Princípio da boa-fé – vincula não só a relação Administração-particulares, mas

também a relação particulares-Administração, exigindo-lhes exactidão. Este

princípio apela a uma dimensão ética, honesta e leal do agir administrativo,

comportando diversas manifestações vinculativas:

Respeito pelas promessas feitas;

Proibição de abuso de direito;

Interdição de comportamentos contraditórios;

Relevância da culpa in contrahendo.

§ 19– Princípios garantísticos face à Administração Explicação prévia

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

49

A Administração Pública encontra-se subordinada a determinados princípios

fundamentais conformadores do sistema político. Estes princípios mostram ser

importantes garantias dos cidadãos perante a Administração Pública, resultando da

sua vinculação à juridicidade.

Estão na Constituição autonomizados um conjunto de princípios garantísticos, que

ampliam a vinculação da Administração Pública. Este conjunto de princípios pode ser

dividido em cinco principais categorias:

o Princípios operativos da unidade do sistema jurídico;

o Princípios de acesso à Administração Pública;

o Princípio do procedimento administrativo;

o Princípios de controlo da Administração Pública;

o Princípio de incidência intra-administrativa.

Princípios operativos da unidade do sistema jurídico

O sistema jurídico exige unidade, sendo certo que a Administração Pública se encontra

sempre vinculada ao Direito (princípio da juridicidade). Estes princípios operativos da

unidade do sistema jurídico dividem-se em:

o Princípio da supremacia da CRP – advém desde logo da rigidez que subjaz ao

processo de alteração da Lei Fundamental, exigindo este princípio a

conformidade de todos os actos administrativos à Constituição, bem como a

existência de um mecanismo jurisdicional de fiscalização da constitucionalidade

das normas jurídicas. Este princípio comporta em si três limites: em caso de

contradição entre a lei e a CRP, deve a Administração aplicar a lei; em caso de

ausência de lei, nem sempre a Administração poderá actuar directamente

fundada na CRP; em caso de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a

CRP habilita que actos inconstitucionais continuem a produzir efeitos ou que os

efeitos já reduzidos sejam ressalvados;

o Princípio da reserva de lei – cria um espaço de actuação exclusiva do poder

legislativo. São reserva de lei todas as matérias entregues à AR, ao Governo ou

às ALR. Fora destas, a reserva de lei só existe nos casos expressamente presentes

na CRP. A reserva de lei tem diferentes graus de intensidade, existindo sempre

espaços a favor da Administração Pública;

o Princípio da precedência de lei – implica que o agir administrativo se funde

sempre num prévio acto legislativo, sendo assim insuficiente a simples previsão

constitucional para que esse agir se mostre habilitado. Este princípio tem quatro

limites: normas constitucionais que habilitem o exercício de uma actividade

administrativa directamente fundada na CRP; as normas de DIP e de DUE que

podem servir imediatamente de fundamento do agir administrativo, as normas

consuetudinárias que servem de fundamento à actuação administrativa e a

possibilidade de a Administração ser chamada a integrar lacunas por recurso.

o Princípio da preferência de lei – a lei goza de uma força jurídica especial, sendo

que um acto de nível inferior nunca a pode contrariar sob pena de invalidade do

mesmo (força de lei formal negativa). Este princípio conhece limites: decorrentes

da prevalência das decisões judiciais, de uma inversão do princípio de invalidade

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

50

e da existência de habilitações jurídico-positivas de actuação administrativa

contra legem;

o Princípio da reserva de juiz – representa o conjunto de matérias que integram a

esfera de decisão exclusiva do poder judicial. Implica a delimitação de fronteiras

e o facto de a violação das mesmas levar a uma inconstitucionalidade orgânica;

o Princípio da prevalência das decisões judiciais – as decisões dos tribunais gozam

de primado face às decisões de quaisquer outras autoridades (art 205º, nº 2

CRP). Este princípio é apenas limitado pelas leis de revisão constitucional que

afectem as normas aplicadas pelas decisões judiciais (exige-se que estas tenham

um conteúdo mais favorável e incidam sobre matéria sancionatória).

Princípios de acesso à Administração Pública

O acesso de alguém à Administração Pública não pode ser visto como um privilégio,

uma graça ou uma honra, mas sim como um direito fundamental de todos. É um

princípio de natureza garantística que assume diversas vertentes:

o Princípio da universalidade de acesso prestacional aos serviços administrativos

– alguns destes serviços, como a segurança social ou o sistema nacional de

saúde, são imperativos constitucionais expressos. Não é exigido, no entanto, que

estes serviços administrativos implementem a sua actividade em exclusivo,

podendo assim haver iniciativa económica privada e iniciativa cooperativa. A

impossibilidade de criar uma reserva de acesso prestacional a estes serviços

advém da concepção personalista de Administração Pública. Tal não exclui a

possibilidade de se fixarem taxas de utilização que respeitem regras de justiça

social diferenciadora no seu pagamento;

o Princípio da liberdade de acesso à função pública e a cargos públicos

administrativos – o acesso à função pública encontra-se aberto a todos os

cidadãos, sendo um direito subjectivo que se consubstancia em três regras

fundamentais: igualdade, liberdade e regra de concurso.

o Princípio da liberdade de petição – confere aos administrados a faculdade de

formularem pedidos à Administração Pública. Há, por força do art 52º, nº 1 CRP,

diversas modalidades:

Representação – implica uma chamada de atenção para a validade,

conveniência ou oportunidade do conteúdo de uma decisão

administrativa, retardando a sua execução;

Queixa – denúncia de uma situação à Administração Pública, que apela a

uma investigação;

Reclamação – impugnação de uma decisão administrativa junto do seu

próprio autor;

Recurso – impugnação de uma decisão administrativa junto de

autoridades da Administração Pública superiores ao autor da decisão;

Petição stricto sensu – pedido formulado a uma autoridade

administrativa no sentido de ser tomada determinada providência.

o Princípio do arquivo aberto – art 268º, nº 2 CRP, implica o acesso aos arquivos

e registos administrativos (salvaguardando as situações de segurança interna e

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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externa do Estado, o segredo de investigação criminal e a intimidade das

pessoas). É o direito de acesso à informação, servindo de reforço à transparência

das instituições públicas.

Princípios do procedimento administrativo

São princípios que garantem a legalidade do modo como se chega à decisão,

desdobrando-se estes em cinco vertentes:

o Princípio da decisão – obriga a Administração Pública a decidir as pretensões

que lhe sejam formuladas pelos cidadãos (art 52º, nº 1 CRP). Isto implica o dever

de analisar estas pretensões e de que a Administração se pronuncie sobre as

mesmas.

o Princípio da informação – releva do direito fundamental de os cidadãos serem

informados pela Administração sobre a acção estatal. Implica o direito de

esclarecimento sobre os actos praticados pelas entidades administrativas, o

direito à informação sobre a gestão dos assuntos públicos, o direito à publicidade

concursal, à informação sobre o andamento de processos em relação aos

interessados, a conhecer as decisões finais sobre os procedimentos, (…)

o Princípio da fundamentação – a Administração Pública está vinculada a

fundamentar as decisões que toma;

o Princípio da notificação – é conferido pela Constituição o direito a que todos os

cidadãos sejam notificados pela Administração dos actos que afectam direitos

ou interesses legalmente protegidos. Perante uma notificação insuficiente ou

ausente, o acto é inoponível ao interessado; perante a deficiência da notificação,

geram-se efeitos contenciosos ao nível das garantias dos particulares;

o Princípio da participação – é o direito reconhecido a cada cidadão de ter

intervenção na formação das decisões que lhes digam respeito, resultado do art

267º, nº 5 CRP.

Princípios de controlo da Administração Pública

São mecanismos de fiscalização da Administração Pública, que exercem esta função

garantística:

o Princípio da tutela jurisdicional efectiva – é uma manifestação do direito geral

de acesso aos tribunais, definindo que todas as dúvidas sobre a legalidade da

conduta da Administração são passíveis de avaliação judicial. Este princípio

encontra-se no art 268º, nº 4 CRP;

o Princípio da responsabilidade civil da Administração Pública - visa o ressarcir

de danos ou prejuízos gerados por condutas da Administração Pública na esfera

jurídica do cidadão. Cria-se assim a obrigação de indemnizar o lesado. Esta

responsabilidade civil pode ter origem num facto lícito, num facto ilícito ou no

risco.

o Princípio da intervenção moderadora do Provedor de Justiça – o Provedor de

Justiça é titular de um poder moderador que o torna habilitado a receber queixas

pela conduta da Administração Pública, permitindo-se assim a defesa de

posições jurídicas ou da legalidade.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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o Princípio da responsabilidade política da Administração Pública – efectiva-se

na responsabilidade do órgão executivo perante a AR e no controlo que a opinião

pública exerce (através da comunicação social, p.e.)

o Princípio do controlo administrativo – a Administração Pública é a primeira

instância de controlo da sua mesma conduta: cada órgão tem o dever de

fiscalizar a legalidade o mérito da sua conduta (princípio do autocontrolo

administrativo) e existem órgãos administrativos cuja posição de supremacia

permite que exerçam poderes intra-administrativos de controlo ou fiscalização

sobre a actuação da Administração Pública (princípio de heterocontrolo

administrativo)

o Princípio do respeito pelos mecanismos internacionais e europeus de garantia

– implica a vinculação a respeitar normas definidoras das garantias dos cidadãos

no seu relacionamento com a Administração, a vinculação às decisões das

instâncias internacionais e europeias que controlam o cumprimento do Estado e

a vinculação a dar execução às decisões judiciais do TIDH ou do TJUE.

Princípios de incidência intra-administrativa

As garantias dos cidadãos são completadas com a institucionalização de mecanismos

garantísticos de certas instituições administrativas face à liberdade do legislador.

Estabelecem-se assim um conjunto de garantias de incidência intra-administrativa. Estes

princípios garantísticos asseguram-se através do reconhecimento de direitos

fundamentais e da criação de garantias institucionais.

o Princípio do reconhecimento da titularidade de direitos fundamentais pelas

entidades públicas – não se pode negar a titularidade de direitos fundamentais16

por entidades públicas, oponíveis ao Estado e a outras entidades.

o Princípios da salvaguarda da garantia institucionais de natureza

administrativas – passa pela criação de garantias institucionais de natureza

administrativa. Falamos, p.e., da autonomia regional e da autonomia local.

o Princípio da configuração de certos poderes administrativos como direitos

fundamentais – a Constituição configura como direitos fundamentais poderes

que reconhece a entidades públicas (como o previsto no art 76º, nº 2 CRP

relativamente a autonomia universitária).

CAPÍTULO 2º - IDENTIDADE ESTRUTURANTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

SECÇÃO 1 – TRAÇOS MATERIAIS DA ADMINISTRAÇAÕ PÚBLICA

CONTEMPORÂNEA

§ 20 – Personalização: AP personalizada Génese histórica da personalização

A ideia moderna de personalidade jurídica aplicada a estruturas públicas resulta do

pensamento de Hobbes, que definiu o Estado como uma pessoa que tem como titular

o soberano (seja ele monarca ou uma assembleia). Resulta da Administração

16 P.e. direito de propriedade privada ou direito à impugnação de actos administrativos lesivos da sua esfera jurídica

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

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renascentista-barroca e da teoria dos dois corpos do rei a raiz da personalização ao nível

do Direito público. Mais tarde, a doutrina acaba por criar ao lado do Estado uma pessoa

colectiva de Direito privado – o fisco.

Em Portugal, foi no século XIX que surgiu a ideia de personalidade ligada à

Administração Pública.

Personalidade pública e subordinação ao Direito É a Rocha Saraiva que se deve a ideia de que a teoria da personalidade jurídica plicada

ao Estado submete o poder político ao Direito. Esta construção permite:

o Delimitação de áreas de interesses públicos cuja prossecução é colocada a cargo

de cada entidade;

o Criação de uma esfera própria de actuação e de imputação de efeitos;

o Existência de normas jurídicas habilitadoras e reguladoras da acção de cada

entidade;

o Sujeição a obrigações decorrentes de posições jurídicas activas

Esta subordinação pode ser feita perante o Direito público ou perante o Direito

privado. Tal fez com que, ao lado da Administração Pública sob forma pública, tenha

nascido uma Administração Pública sob forma privada, o que levanta grandes

problemas de articulação aplicativa entre estes dois ramos.

A existência de interesses públicos transnacionais cuja prossecução se encontra a cargo

do estado faz com que os actos produzidos por entidades públicas estrangeiras possam

produzir efeitos em Portugal. É necessário reter o art 33º CC, que determina que as

pessoas colectivas privadas estrangeiras podem desenvolver uma actividade com

relevância administrativa e parcialmente regulada por Direito estrangeiro.

Personalização e pluralismo intra-administrativo A personalização da Administraçao revela um pluralismo intra-administrativo: a cada

entidade pública deve corresponder a prossecução de fins de interesse público

próprios, evitando-se que duas entidades desenvolvam interesses sobrepostos. As

atribuições a cargo destas entidades podem levar ao reconhecimento de uma

capacidade jurídica de Direito público e de Direito privado, podendo a prossecução dos

interesses ser levada a cabo por entidades “satélite” de Direito privado – Administração

Pública sob forma privada.

A natureza híbrida de algumas entidades integrantes da Administração leva a que possa

haver uma dualidade de mecanismos judiciais de fiscalização: tribunais administrativos

e respectiva lei processual / tribunais judiciais e Código de Processo Civil. Tal questão

levanta também problemas ao nível de responsabilidade civil, pois que sendo cada

pessoa colectiva um centro de imputação de efeitos jurídicos, é o seu património que

responde pelos danos causados pela respectiva conduta. Isto faz com que se crie um

processo de desresponsabilização patrimonial de entidades públicas, acabando por

ocorrer a criação de entidades “satélites” para fugir a esta responsabilidade – fala-se em

desvio de poder e consequente invalidade do acto de criação.

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54

§ 21 – Complexificação: Administração gestora de conflitos Multilateralidade administrativa

O desenvolvimento da actividade administrativa foi, originalmente, construído de

forma simples: há uma actividade que relaciona uma entidade administrativa com

outros sujeitos determinados, criando-se posições jurídicas dentro de uma relação

bipolar com efeitos inter partes; há uma outra actividade que relaciona uma entidade

administrativa com uma pluralidade indeterminada de sujeitos, situados numa relação

geral ou especial de poder, criando posições jurídicas com eficácia erga omnes.

Ao longo do tempo, foi surgindo uma pluralidade conflitual de interesses distintos, que

determinou uma Administração multilateral e gestora de conflitos. Complexificaram-

se as relações dentro da própria Administração e entre esta e os cidadãos. Neste

segundo plano gerou-se uma progressiva conflitualidade entre diferentes interesses

privados. Geram-se relações jurídicas poligonais, que podem ser:

o Relações poligonais substantivas

o Relações poligonais procedimentais

o Relações poligonais processuais

A multilateralidade administrativa expressa a diversidade de interesses públicos.

Complexificação administrativa e relações intersubjectivas A pluralidade de pessoas colectivas integrantes da Administração Pública faz com que

haja uma diversidade de relações internas: temos relações internas de natureza

intersubjetiva, que envolvem duas ou mais pessoas colectivas. Estas relações podem

gerar conflitualidade entre diferentes pessoas colectivas. Os conflitos em causa podem

ser positivos ou negativos de atribuições. Para resolver esses conflitos, foram

instaurados mecanismos de intervenção unificadora destes interesses. A juridificação

do relacionamento intersubjetivo na Administração Pública leva a que certos poderes

sejam reconhecidos como direitos sobre outras pessoas colectivas.

Gerou-se uma complexificação crescente, gerada por relações intersubjetivas externas

(Administração da EU, Administração dos vários Estados estrangeiros no âmbito de

relações administrativas, entre outras).

Complexificação administrativa e relações intrassubjectivas Verifica-se hoje que, dentro de cada entidade pública administrativa, se desenvolveram

relações jurídicas dotadas de natureza intrassubjectiva. Estas dividem-se em três tipos:

o Relações interorgânicas – são relações que se estabelecem entre diferentes

órgãos de uma mesma pessoa colectiva integrante da Administração Pública.

Estas relações exigem a necessidade de normas de competência, através das

quais se define o espaço de actuação de cada órgão e se possibilita a

coordenação da acção. Existem ainda relações interorgânicas de supremacia,

que envolvem o exercício de poderes de direcção entre diferentes órgãos da

mesma pessoa colectiva. Chega inclusive a ser possível o surgimento de normas

que permitam a certos órgãos desencadear acções judiciais contra actos

praticados por outros órgãos da mesma pessoa colectiva.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

55

o Relações intraorgânicas – englobam situações jurídicas que ocorrem no interior

de um órgão de uma mesma pessoa colectiva. Estas relações mostram-se de

forma mais clara nos órgãos colegiais da Administração Pública.

o Relações laborais – os órgãos das pessoas colectivas carecem de titulares para

que se possa expressar a sua vontade. Estes titulares vão exercer esta função a

nível profissional, passando a ser trabalhadores da Administração Pública. Estas

relações laborais envolvem os indivíduos que integram as diversas estruturas

administrativas. Lato sensu, são as relações laborais referentes à função pública.

Complexificação e conflitualidade jurídico-privada A relação dos particulares com a Administração Pública também revela

conflitualidade. Em primeira linha, falamos em conflitos entre a configuração do

interesse público prosseguido pela AP e os interesses privados entre si conciliáveis e

unificados. Estes próprios interesses privados também podem ter, em si mesmos,

conflitos – interesses privados entre si inconciliáveis e autónomos. Podem ser conflitos

no âmbito da actuação administrativa geral e abstracta ou no âmbito da actuação

administrativa individual e concreta, onde se verifica uma relação administrativa

multipolar ou poligonal.

No último caso, estamos perante um “triângulo jurídico” composto pela administração

decisória, o destinatário da decisão e um ou mais terceiros. Esta relação trilateral

assume várias particularidades:

Deparamo-nos com conflitos entre interesses privados que podem assumir duas

configurações:

o Interesses privados heterogéneos em colisão

o Interesses privados homogéneos em colisão

Estes conflitos entre cidadãos implicam sempre a Administração Pública como

mediadora, podendo essa função desempenhar-se através de interesses multipolares

de neutralização (visam neutralizar uma anterior decisão administrativa lesiva dos seus

interesses) ou interesses multipolares de constituição (visam a emissão de uma decisão

administrativa que satisfaça os seus interesses). Se ainda na fase preparatória da decisão

se verificar a existência de um contrainteressado privado, então a Adminsitração deverá

fazer o possível para harmonizar ou ponderar a sua situação. Se, por contrário, esse

contrainteressado apenas se revelar após a decisão, então tal pode vir a viciar a decisão.

Esta ponderação de interesses é normalmente controlada a nível judicial.

A complexificação aqui explanada pode assumir maior intensidade se falarmos em

interesses de tutela constitucional. Pode ainda acontecer que questionem decisões

internas junto de instâncias internacionais.

§ 22 – Ponderação: Administração Pública de balanceamento Pressupostos – normatividade e conflitualidade

A ponderação é um método que estabelece um enunciado racional de preferência,

afastando a radicalidade de um “tudo ou nada”. Esta faz-se através do contrapesar do

peso relativo de realidades jurídicas conflituais. Também é chamado de ponderação o

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

56

resultado que advém da aplicação desse método. Esta técnica tornou-se, ao longo do

tempo, uma técnica decisória comum às diversas áreas do ordenamento, pelo que

também a Administração a utiliza.

A expansão de um sistema constitucional principalista levou à substituição de um

“Direito de regras” por um “Direito de princípios”. Os princípios, estabelecendo

orientações gerais, necessitam sempre de concretização. Para além disso, podem dois

princípios conflituantes ser ambos aplicados, se feita uma ponderação acerca da

medida de aplicação de cada um deles. A esta realidade associam-se conceitos vagos e

indeterminados, cláusulas gerais e enumerações exemplificativas e poderes

discricionários de decisão.

Esta metodologia ponderativa leva à existência de uma margem de livre decisão, que

assenta em várias causas: a conflitualidade decorrente da natureza compromissória da

CRP e da sua abertura interpretativa faz com que a Administração Pública recorra à

ponderação para solucionar estes conflitos; também a natureza poligonal das relações

jurídico-administrativas que se estabelecem existem ponderação por parte da AP, que

é chamada a resolver estes conflitos. Pretende atingir-se a paz jurídica.

Objecto da ponderação – bens, interesses e valores A ponderação tem por objecto o balanceamento de bens, interesses e valores:

o Ponderação de bens – podemos definir bem como “tudo o que permite ao

homem alcançar um fim”, pelo que este conceito se mostra consideravelmente

amplo. É certo que a protecção jurídica confere aos diferentes bens não é toda

igual: destacam-se desde logo os bens protegidos pela Constituição e, dentro

destes, podemos distinguir os que são protegidos de forma expressa e os que o

são de forma implícita.

o Ponderação de interesses – o interesse é tido como a “relação entre um sujeito

e um determinado bem”, sendo que podemos distinguir entre interesses que a

ordem jurídica configura como direitos subjectivos – falamos em direitos

fundamentais – e interesses que a ordem jurídica, apesar de proteger, não

reconduz a direitos subjectivos – falamos em interesses tutelados

constitucionalmente. Podemos ter conflitos entre o interesse público e

interesses jurídicos privados e podemos ter conflitos entre interesses públicos

protagonizados por diferentes entidades da Adminstração Pública.

o Ponderação de valores – os valores são critérios de avaliação de bens ou de

condutas, através dos quais se faz uma avaliação axiológica de bondade,

superioridade ou quantificação. Estes podem ou não ter consagração

constitucional, sendo passíveis de ordenação hierárquica.

Cabe salientar a importância do princípio da dignidade humana. O seu núcleo é

indisponível, pelo que prevalece sempre numa ponderação face ao interesse público.

Esta pode apenas ser limitada se em conflito estiver uma pretensão também ela assente

na dignidade humana de outro cidadão, definindo-se que ambos têm de ser protegidos

de igual maneira.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

57

Cenários de ponderação e separação de poderes A ponderação administrativa pode ocorrer em dois cenários distintos:

o Podemos estar perante uma ponderação abstracta, em que se alcança uma

fórmula normativa que permite a resolução de conflitos de bens, interesses e

valores. Esta é geralmente feita por via regulamentar e nunca pode levar a uma

aplicação subsuntiva aos casos concretos;

o Podemos estar perante uma ponderação no caso concreto, em que se decide

qual o bem, interesse ou valor que, naquele caso, deve prevalecer.

Há uma preferência pela ponderação feita pela lei. Existem, inclusive, casos de colisão

entre bens, interesses e valores cuja ponderação a Constituição reservou para si. Nos

restantes casos de colisão, há uma exigência de reserva de lei que exclui a ponderação

feita por parte da Administração Pública. Relativamente à ponderação concretca (ou

ad hoc), verifica-se que quase toda a actividade da Administração Pública passa, hoje

em dia, por ela. Cabe dizer que a atribuição de discricionariedade à Administração

reforça o apelo à ponderação.

Os tribunais assumem uma função repressiva, acessória e a posteriori. Estes controlam

o procedimento de ponderação e o respectivo resultado. Invalidada judicialmente uma

ponderação, o tribunal pode predeterminar a ponderação administrativa. Não poderá

nunca substituir aquela que foi invalidada por uma sua.

Fases procedimentais da ponderação A ponderação é um processo racional, que obedece assim a fases de um determinado

processo – o processo ponderativo:

o Identificação das realidades em colisão – pode nesta fase contar-se com a

participação dos interessados, na ajuda na identificação dos interesses que

temos de ter em conta. A errada identificação destes interesses conduzirá à

invalidade da ponderação;

o Atribuição do peso a cada uma das realidades em conflito – cabe proceder à

definição da importância de cada bem, interesse e valor que está em causa. Esta

fase é marcada por uma argumentação racional, que permite comparar e avaliar

cada uma das realidades em colisão. Este é sempre um procedimento aberto;

o Decisão sobre a prevalência entre as realidades em colisão – é a fase do

processo na qual o decisor já está preparado para resolver o conflito. Se

estiverem em causa bens, interesses e valores tidos como de igual importância,

então pode obter-se a sua concordância, conferindo a ambos operatividade

(nada impede, ainda assim, que o decisor opte pela predominância de um em

detrimento do outro). Se houver bens, interesses e valores tidos como

hierarquicamente superiores em detrimento dos restantes, então dá-se a

prevalência desses mesmos, tendo sempre em conta o princípio da

proporcionalidade e as circunstâncias concretas.

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2º ano, Turma A Patrícia Carneiro da Silva

58

Efeitos de ponderação administrativa

Há autores que defendem que a ponderação aumenta o risco de incerteza e

insegurança do agir administrativo face aos cidadãos, dado que torna as suas decisões

imprevisíveis. Outros, dizem que a ponderação gera uma redução o papel garantístico

da lei, desvalorizando-se a sua força normativa. Há ainda autores que falam da ideia de

a ponderação redefinir o papel do princípio da separação de poderes, debilitando o

papel do legislador e dando prevalência à Administração Pública.

Não existem, apesar de tudo isso, dúvidas de que uma Administração Pública de

balanceamento implica um sistema predominantemente aberto. Confere-se, a partir

daqui, protagonismo à Administração na realização do Direito. A protecção dos

cidadãos é agora exclusiva dos tribunais, não tendo a lei um papel nessa função. Por

fim, este modelo alimenta os conflitos socais e jurídicos, pois que quem fica descontente

com a ponderação feita pela Administração vai provavelmente abrir litígio judicial.

§ 23 – Especialização: Administração Pública técnico-científica Valorização das estruturas tecno-burocráticas

As tarefas a cargo do Estado exigem uma Administração Pública especializada. Esta

especialização leva a um deslocar do centro decisório para as estruturas tecno-

burocratas, debilitando a legitimação política da decisão administrativa. As exigências

de tecnicidade limitam ou condicionam a dimensão político-democrática da decisão

administrativa. São estas estruturas compostas por técnicos, sem legitimidade político-

democrática, que possuem as soluções possíveis – são elas que podem tomar a decisão.

Num diferente contexto de especialização da actividade administrativa, verifica-se a

necessidade de utilizar a ciência e a técnica para a tomada de certo tipo de decisões,

estando isso relacionado com o facto de os juristas não se mostrarem os mais

qualificados para as tomar. Estas decisões não estão sujeitas às regras da democracia,

pois que o avanço da ciência não depende de decisões obtidas através de eleições e

votações.

Esta especialização associa-se essencialmente à Administração educativa, à

Administração da saúde, à Administração económico-financeira e à Administração do

ambiente.

O poder técnico-científico A subordinação da política à técnica e à ciência traduz a existência de uma

Administração alicerçada num poder técnico-científico. Estas transformaram-se em

fontes legitimadoras das instituições e das operações políticas. A política converte-se

num simples processo de resolução de questões técnicas.

A existência de decisões administrativas fundadas em critérios técnico-científicos

mostra-se passível de expressar três diferentes realidades organizativas: há decisões

preparadas por estruturas administrativas, ficando a resolução final remetida para um

órgão dotado de legitimidade político-democrática; há decisões que são imediatamente

adoptadas por órgãos exclusivamente compostos por titulares dotados de um saber

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técnico-científico e há, por fim, decisões administrativas que se encontram sujeitas à

intervenção participativa de órgãos consultivos compostos por peritos técnico-

científicos.

Este poder técnico-científico é imune à fiscalização política e só muito

circunscritamente controlável pelos tribunais. É na intervenção do legislador que reside

o principal mecanismo de conformação político-democrática do poder técnico-científico

da Adminstração Pública.

Instrumentos técnico-científicos de poder Existem três principais instrumentos de afirmação das decisões administrativas com

uma elevada componente técnico-científica:

o Reserva de formulação da normatividade – faz-se apelo a critérios extrajurídicos

que são depois acolhidos por normas jurídicas e que passam, assim, a ter um

valor vinculativo para o agir administrativo. Esta realidade é uma fonte de poder

para os responsáveis por tais áreas, podendo significar: uma reserva de decisão

sobre a aprovação de critérios normativos, significando isso uma total

capacidade de fixação de normatividade técnico-científica; uma simples

capacidade par apresentar uma proposta, exigindo-se a um outro órgão a

decisão final. Em qualquer dos casos, exige-se uma norma jurídica habilitante

(fonte de validade da competência e da legitimação democrática deste poder.

o Monopólio interpretativo e aplicativo da normatividade – só os especialistas

dos respectivos ramos são competentes para interpretar e aplicar os conceitos

técnico-científicos utilizados nas normas. Fixada a norma, não existe qualquer

liberdade de escolha – é imperativa a utilização dos parâmetros normativos

fixados. Também aqui o poder destes técnicos é insusceptível de controlo

judicial, salvo em caso de um erro suficientemente grave.

o Exclusivo de decisão concreta avaliativa – há uma reserva total a favor dos

técnicos e cientistas.

§ 24 – Privatização: uma Administração Pública privatizada Polissemia do conceito

A privatização da Administração Pública tem gerado uma verdadeira crise de

identidade institucional: esta aparece cada vez mais aliada a uma política privatizadora,

que se funda num contexto de racionalização financeira do Estado e de necessidade de

equilibrar as conas públicas.

Privatizar é tornar privado algo que antes não o era, é remeter para o Direito Privado.

Esta política privatizadora reforça o papel das entidades integrantes do sector privado

ou do seu Direito na respectiva actuação sobre certas áreas, matérias ou bens até

então de intervenção pública. Apesar de tudo, o Estado nunca fica desvinculado da sua

responsabilidade institucional como garante, regulador e polícia das realidades

jurídicas privatizadas.

O conceito de privatização engloba vários sentidos:

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PRIVATIZAÇÃO DA REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA DA SOCIEDADE

Associa-se a uma manifestação do princípio da subsidiariedade do Estado. É um

processo através do qual uma entidade pública reduz a sua intervenção reguladora,

transferindo essa função para uma sociedade civil, que passa a poder criar normas

jurídicas reguladoras da respectiva actividade. Gera-se um fenómeno de desregulação

– a privatização dá-se através do desaparecimento da regulação pública – ou de

autorregulação – não só desaparece a regulação pública como é criada uma nova pelos

respectivos interessados. Esta autorregulação pode ser: privada independente de

qualquer intervenção pública; privada objecto de uma intervenção pública; proveniente

de entidades públicas infraestaduais.

PRIVATIZAÇÃO DO DIREITO REGULADOR DA ADMINISTRAÇÃO

Dá-se uma verdadeira fuga para o Direito privado, passando a ser este aquele que

regula as relações laborais intra-administrativas. Os últimos anos têm sido marcados

pela consciencialização de que é necessário impor limites a este fenómeno, chegando-

se até a observar um retorno ao Direito público. Este Direito privado aplicado pela

Administração Pública, cabe referir, é sempre um Direito privado como que

administrativizado.

PRIVATIZAÇÃO DAS FORMAS ORGANIZATIVAS DA ADMINISTRAÇÃO

Existem cada vez mais pessoas colectivas de Direito privado que são criadas por

entidades de Direito público e instrumentalizadas à prossecução de fins

primariamente públicos – há uma privatização das formas organizativas da

Administração Pública. Esta privatização pode envolver a criação ex novo de pessoas

colectivas de Direito privado por entidades públicas ou pode simplesmente

compreender a conversão de formas de organização das antigas entidades públicas.

Fala-se, no segundo caso, numa mera privatização formal, associada ao surgimento de

pessoas colectivas em cascata, cujo progenitor comum é uma pessoa colectiva pública.

Este processo de privatização faz com que a Administração se aproveite de formas

organizativas típicas de Direito privado – Direito Comercial – para criar novas entidades

e confiar-lhes tarefas que as instrumentaliza aos fins de interesse público subjacentes à

entidade pública que está na sua génese. Há uma Administração indirecta privada, que

leva a uma verdadeira revolução organizativa: o exercício de sectores da actividade

administrativa é confiado a entidades de tipo societário que tornam impossível

esconder que o exercício da actividade administrativa não é dominado exclusivamente

por entidades públicas. Para além disso, o próprio conceito de personalidade jurídica

de Direito público se encontra desvalorizado, sendo que nem todas as pessoas

colectivas públicas exercem poderes de autoridade. Deixou de haver uma total

subordinação ao Direito Administrativo, pois que as pessoas colectivas privadas estão

sujeitas ao Direito Privado. O próprio Direito Privado foi afectado por esta

transferência, falando-se na proliferação de sociedades legais (criadas por lei), cujo

regime derroga o Código das Sociedades Comerciais.

Esta privatização não significa, no entanto, uma transferência do bem de produção das

entidades para o sector privado – este continua a integrar a esfera pública.

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PRIVATIZAÇÃO DA GESTÃO OU EXPLORAÇÃO DE TAREFAS ADMINISTRATIVAS

Este modelo de privatização traduz-se na possibilidade de conferir a pessoas privadas

a gestão ou exploração de tarefas administrativas concretas ou de serviços

administrativos na sua globalidade. Verifica-se, neste caso, o contrário do que acontece

na privatização de formas organizativas da Administração Pública – aqui há uma

transferência para entidades privadas de funções que até à altura estava a cargo de

entidades públicas. Na privatização das formas de organização da Administração, nada

se transfere para fora do sector público.

Esta privatização comporta uma elevada precariedade por existir sempre uma pessoa

colectiva pública que mantém a responsabilidade pelo seu funcionamento nas mãos

de entidades privadas. Os últimos anos são marcados pela limitação desta privatização,

que se continuar de forma ilimitada levará à limitação do espaço material de actividade

da Administração e acabará por reduzir o campo de operatividade do Direito

Administrativo.

PRIVATIZAÇÃO DO ACESSO A UMA ACTIVIDADE ECONÓMICA

Verifica-se, nestes casos, a abertura à iniciativa económica privada de um ou mais

sectores básicos da economia até então abrangidos por um regime de monopólio do

sector público. Esta privatização vem reduzir o peso da intervenção pública no acesso a

estes sectores de actividade económica, revelando uma postura limitativa da

intervenção do Estado e mais associado a uma economia de mercado baseada na livre

concorrência.

PRIVATIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL DE EMPRESAS PÚBLICAS

Está em causa a abertura a entidades privadas do capital social de sociedades cuja

titularidade do capital pertence na totalidade ou em parte a entidades públicas. Esta

privatização do capital social pode envolver duas hipóteses:

o Simples privatização de uma parte do minoritária do capital, continuando assim

a entidade pública a deter a maioria do respectivo;

o Privatização da maioria ou da totalidade do capital social, passando o controlo

da sociedade a estar a cargo da entidade privada – há um verdadeiro fenómeno

de privatização.

Esta privatização exige que o adquirente do capital não seja uma sociedade de capitais

públicos ou de capitais mistos maioritariamente titulados por entidades públicas, pois

que nesse caso apenas teríamos uma transferência de capitais entre entidades

integrantes do sector público – seria uma falsa privatização. Se aquisição do capital

aberto à privatização for feita por entidades públicas sujeitas a gestão privada,

assistimos à simples transferência de bens do sector público sob forma privada para o

sector privado publicizado – há uma privatização debilitada ou enfraquecida.

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PRIVATIZAÇÃO DOS CRITÉRIOS SUBSTANTEIVOS DE DECISÃO ADMINISTRATIVA

Pode dizer-se que “apesar de o corpo da entidade se integrar na Adminstração Pública,

a sua alma se encontra no sector privado”. A prossecução do interesse público por

entidades integrantes da Adminstração, sujeitas ao Direito público, passa a ficar

condicionada pela força dos instrumentos do mercado. Esta privatização implica

sempre a precedência de lei, sob pena de invalidade da privatização.

PRIVATIZAÇÃO DO CONTROLO DA ADMINISTRAÇÃO

Implica:

o Privatização das entidades encarregues do controlo – implica o recurso a

empresas privadas para exercerem serviços de auditoria, consultadoria e

avaliação das estruturas do sector público empresarial, administrativo e até do

Tribunal de Contas.

o Privatização dos mecanismos de controlo – apela a uma utilização de novos

critérios fiscalizadores, havendo uma aproximação aos mecanismos de controlo

da gestão das empresas do sector privado. O Estado é um agente económico que

actua em mercado e que, por isso, está sujeito ao escrutínio público. Exige-se

uma actuação óptima, vinculada ao princípio da boa administração.

O controlo das decisões administrativas pode levar a três principais soluções: utilização

da metodologia de controlo das empresas privadas, transformação das prestações

administrativas em produtos e dos administrados em clientes e, por fim, a definição de

objectivos das políticas públicas a implementar pela Administração Pública.

A privatização do controlo da Administração nunca se mostra politicamente neutra.

§ 25 – Informatização: Administração Pública electrónica Transformação da Administração

O crescente desenvolvimento tecnológico levou à transformação das modernas

sociedades. Cresce a utilização de computadores, a democratização do computador

pessoal, a conexão à internet e a utilização das redes sociais. Há uma desmaterialização

da informação e uma simplificação da linguagem escrita, que introduz inevitáveis efeitos

na Administração Pública. Criam-se novos mecanismos e institutos jurídicos, havendo

uma informatização da Administração Pública.

As principais manifestações desta informatização relacionam-se, em primeira linha,

com um “computador-arquivo”, que passa a ser um “computador-funcionário”. A

armazenagem, gestão e utilização de informação é feita por computadores, sendo o

acesso dos cidadãos à Administração feito pelos cidadãos por via da internet e estando

nela publicitados os boletins oficiais de legislação. Também são muitas as vezes que as

decisões administrativas são comunicadas via e-mail. A presença física é substituída

por videoconferência.

Temos agora uma Administração aberta 24 horas por dia, rapidez no acesso à

informação, supressão das distâncias territoriais, uniformidade na decisão

administrativa e a redução significativa dos custos.

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Riscos e desvantagens A informatização da Administração traz desvantagens: os cidadãos deixam de

encontrar um rosto para o seu contacto com a Administração, gera-se uma desconfiança

geral dos cidadãos perante tecnologias que não dominam, à qual se associa o facto de

nem todos terem acesso aos mesmos meios tecnológicos. A redução de custos, na

realidade, é apenas aparente: é exigido um elevado investimento em equipamentos

tecnológicos.

Assinala-se ainda um problema de compatibilidade de programas, que dificulta a

comunicação: no interior das várias Administrações, entre a Administração nacional e a

da UE ou dos restantes Estados-membros e entre todas estas e os cidadãos. É essencial

a estandardização de equipamentos e aplicações informáticas, o que exige cooperação

interadministrativa.

Os riscos de uma Administração informatizada englobam o facto de haver muitos

dados, quer privados quer públicos, serem passíveis de acesso público.

Vinculação da informatização administrativa - limites Há uma progressiva afirmação do direito de todos os cidadãos à autodeterminação

informacional – art 35º, nº 1 CRP. Este garante o seu estatuto como cidadãos e não

como mero objecto de informações. Engloba em si um conjunto de direitos:

o Direito de acesso a todos os dados informatizados que lhes sejam respeitantes;

o Direito a exigir a retificação e actualização dos dados;

o Direito a conhecer a finalidade a que se destinem os dados informatizados;

o Direito ao esclarecimento acerca da natureza da recolha dos dados;

o Direito a consentir a recolha de certos dados pessoais para efeitos específicos;

o Direito à salvaguarda da confidencialidade dos dados pessoais.

É inválida a actuação administrativa fundada em dados informacionais recolhidos de

forma ilícita ou ilegal.

SECÇÃO 2 – DESTERRITORIALIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO

§ 26 – Administração descentrada do Estado Globalização administrativa

A Administração Pública foi desde sempre tida como uma realidade territorial,

expressão de um poder do Estado. No entanto, este modelo de Administração fechada

e territorializada não se coaduna com as exigências da vida contemporânea. Estas

envolvem a abertura das fronteiras e dos espaços económicos, o desenvolvimento do

comércio internacional e a aceleração do movimento de circulação de pessoas. O

crescente processo de mundialização faz com que o Estado se mostre incapaz de

garantir por si só a segurança e a satisfação das necessidades colectivas. Geram-se

mecanismos de cooperação, que envolvem a troca de informações e a coordenação de

procedimentos. Este fenómeno de internacionalização também afecta a Administração

Pública.

A Administração Pública nacional é obrigada a aplicar e reconhecer actos jurídicos

estrangeiros. Há uma irreversível quebra do princípio da territorialidade, prosseguindo

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a Administração nacional, também, interesses transnacionais. Há um reforço do

pluralismo da Administração Pública e um acentuar do protagonismo do Governo, por

força do aumento da negociação de convenções internacionais reguladoras de

interesses transnacionais. Estes interesses transnacionais passam pela tutela e garantia

dos direitos humanos, pela dimensão independente das economias, pela tentativa de

fazer face a problemas comuns no domínio da segurança e da defesa. Passam também

pelas necessidades de tráfego de pessoas e de mercadorias. Tudo isto levou à criação

de um espaço jurídico global.

A Administração Pública territorializada é incompatível com a concepção personalista

de Administração: se o eixo da via administrativa se encontra na pessoa humana, não

pode o Estado ser a centralidade dessa Administração. Para além disso, são as pessoas

que marcam os pressupostos da actividade administrativa, não o território. A crescente

desterritorialização da actividade administrativa leva à criação de um Direito

Administrativo Internacional.

Espaços administrativos comuns A mudança da Constituição implica a mudança da Administração. Os espaços

administrativos comuns, envolvendo as administrações de vários Estados, são zonas de

convergência de exercício partilhado da função administrativa – há uma comunhão de

interesses transnacionais. Estes espaços levam à existência de administrações públicas

pluriestaduais, à abertura das administrações ao exterior, à proximidade de

administrações públicas e dos respectivos ordenamentos reguladores, bem como ao

desenvolvimento de uma interculturalidade administrativa.

Verifica-se uma erosão do Estado e uma inevitável internacionalização da

Administração Pública.

Erosão do Estado Temos, hoje, um Estado mais débil e limitado em termos materiais e internacionais.

Para esta, encontram-se diversas explicações:

o Desenvolvimento de normas de Direito Internacional, por força de mais

convenções internacionais, limitando a liberdade do legislador;

o Redução das matérias integrantes do domínio reservado aos Estados;

o Perda consentida de soberania a favor de estruturas supranacionais;

o Autonomia de certas instituições internacionais face aos Estados que as criaram;

o Proliferação de interesses públicos transnacionais;

o Desregulação, que gera uma renúncia do Estado ao exercício de uma actividade

de ordenação da vida económica e social;

o Subsidiariedade da regulação do Estado;

o Privatização e tecnicidade;

o Sujeição do Estado a um regime de protetorado internacional;

o Concepções políticas e económicas neoliberais;

A ideia de que estamos perante um cenário de morte do Estado é, diz o Professor,

exagerada.

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§ 27 – Administração Pública sem Estado Administração Pública e organizações internacionais

Desde o século XIX que os Estados compreendem que existem matérias de natureza

administrativa relativamente às quais não podia haver uma regulação unilateral por

cada um deles – dessa realidade surgem as uniões administrativas internacionais e o

Direito Internacional Administrativo. Estas uniões eram coligações internacionais de

uma pluralidade de Administrações nacionais.

No século XX, dá-se o aprofundamento das estruturas internacionais encarregues da

gestão e prossecução de interesses públicos transnacionais, começando a surgir as

organizações internacionais. As suas estruturas administrativas obedecem a

determinados factores:

o Está sujeita ao controlo dos órgãos constitucionais da organização;

o Os funcionários desempenham as suas funções com independência face ao

governo a que pertencem;

o São titulares de um poder de auto-organização interna, que não carece de

positivação;

o Não possuem receitas próprias.

Administração Pública e União Europeia A União Europeia, inicialmente constituída por três organizações internacionais de

natureza supranacional, configura-se como uma associação de Estados atípica. Os

Estados europeus delegaram a favor da UE matérias que até então estavam

exclusivamente nas mãos do Estado. Isto podia ser feito através da entrega exclusiva à

UE desses poderes, através da partilha entre os Estados-membros e a UE ou ainda

através de atribuições de coordenação, apoio ou complemente entre a UE e os Estados-

membros. Para além disso, permitiram a criação de diversas estruturas subjectivas e

orgânicas, levando a um crescente processo de burocratização, ao qual se associa uma

verdadeira função pública da União Europeia.

A União Europeia transformou-se numa comunidade administrativa, tendo expressão

numa Administração Pública sem Estado que se sobrepõe às Administrações dos

Estados-membros. Verifica-se uma influência recíproca entre a Administração da União

Europeia e as várias administrações dos Estados-membros, que se funda em três

momentos evolutivos:

o Influência da organização e funcionamento das Administrações Públicas dos

Estados;

o Desenvolvimento autónomo da Administração Pública comunitária;

o Influência da Administração da União Europeia e do seu ordenamento junto dos

Estados-membros.

A UE representa um encontro de diferentes culturas administrativas.

Europeização das administrações públicas nacionais A influência da Administração Pública da União Europeia sobre as Administrações

Públicas nacionais de cada Estado-membro encontra diferentes ilustrações:

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o Execução administrativa do Direito da UE, transformando-se as administrações

dos Estados-membros em Administração indirecta da União;

o Necessidade de articulação directa entre as Administrações dos diferentes

Estados;

o Transferência de poderes decisórios para a esfera da UE, o que implica:

Reduzir as atribuições decisórias exclusivas dos Estados-membros;

Precludir parte da liberdade decisória dos Estados-membros, sendo

limitada a margem de discricionariedade de cada um

Exigência, por parte do Direito da UE, de respeito pelo quadro vinculativo

da própria União;

Função paramétrica dos actos administrativos, no âmbito da actuação

administrativa dos Estados-membros;

Harmonia entre a legislação dos Estados-membros, o que leva à eficácia

transnacional de actos administrativos e à redução das diferenças

processuais entre estas Administrações Públicas.

Chega já a falar-se numa federação administrativa europeia.

Administração Pública por organizações não-governamentais As organizações não-governamentais são pessoas colectivas sem fins lucrativos,

criadas por iniciativa privada ou público-privada, possuidoras de personalidade jurídica

privada – são pessoas colectivas de Direito privado que prosseguem propósitos

transnacionais.

A relação entre as organizações não-governamentais e a Administração Pública

resume-se ao problema de tentar aqui recortar um fenómeno de Administração sem

Estado: as organizações não-governamentais traduzem uma forma de privatização das

relações internacionais – são sujeitos privados que agem em termos transnacionais.

As organizações internacionais encontram-se investidas de uma missão de interesse

público, o que leva a dois inevitáveis efeitos: elas acabam capturadas pelos interesses

públicos transnacionais que prosseguem e intensificam-se os laços de colaboração entre

as organizações não-governamentais e as administrações públicas do Estados e/ou das

organizações internacionais.

Falamos de uma forma de administração sem Estado que tem a particularidade de ser

desenvolvida por entidades privadas de âmbito internacional.