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    escultura de Maquiavel em mrmore, , autoria LorenzoBartolini, presente na aeria degli ffiziem Florena.

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    Diogo Pires Aurlio p. -

    RAZO E DESRAZO EM POLTICA: SOBRE A

    ALEGADA CINCIA POLTICA DE MAQUIAVEL

    Diogo Pires Aurlio

    Professor, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal

    [email protected]

    Maquiavel geralmente considerado um precursor, seno mes-

    mo o criador, da cincia poltica. Tal interpretao v na obra do Flo-

    rentino uma sistematizao da racionalidade intrnseca ao huma-

    na. Com tonalidades distintas, podemos v-la em autores to diferentes

    como Hegel, Meinecke ou Leo Strauss, que atribuem a Maquiavel a

    intuio do estado como princpio subjacente autonomia do poltico

    e ao realismo. Estar, no entanto, esse princpio realmente presente na

    obra de Maquiavel? O presente texto questiona semelhante hiptese,

    sustentando, ao invs, que o Florentino pertence a um universo de pen-

    samento onde o moderno conceito de estado se encontra ausente. Pelo

    contrrio, a mistura de razo e desrazo, que inerente ao poltica,

    mas que o postulado fundador da cincia poltica dos modernos o

    mito do estado, como lhe chama Cassirer vir ocultar, ainda se encon-

    tra a descoberto.

    - acontecimentos, cincia, estado, incerteza, ao, fortu-

    na, virtude

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    Uma parte significativa das interpretaes de Maquiavel no s-

    culo , porventura as de maior divulgao e renome, considera o autor

    d OPrncipeo fundador da cincia poltica. Os argumentos invocadosem abono desta tese so, quase sempre, os mesmos. Em primeiro lugar,

    Maquiavel recusa a tradicional subordinao da poltica religio e

    moral. Em segundo lugar, cinge-se aos fatos, i. e., verit effetuale della

    cosa, em vez de especular sobre o modo como os homens devem agir e

    organizar-se politicamente. Por ltimo, elabora um modelo sistemtico

    e lgico de compreenso da realidade poltica, o qual antecipa, a um

    sculo de distncia, o paradigma cientfico introduzido por Galileu no

    estudo da realidade fsica.

    O primeiro destes argumentos constitui um lugar-comum, in-

    clusive para os crticos de Maquiavel, praticamente desde a publicao

    da obra. O segundo tambm se tornou uma referncia obrigatria na

    histria do maquiavelismo, desde pelo menos a releitura do Florentino

    feita por Hegel e Fichte, que enfatizaram a dimenso eminentemente

    histrica da obra, contrariando no s os que a condenam por imorali-

    dade, como tambm os que veem nela, convenientemente disfarada, a

    moralidade republicana. O terceiro, contudo, s no sculo viria a ser

    claramente exposto. Na verdade, apesar de o nome de Maquiavel j an-

    tes andar frequentemente associado a um saber cientfico, a pretenso de

    identificar este saber com a perspectiva epistemolgica que caracterizaa fsica moderna e o paradigma galilaico-newtoniano s ento se deu a

    conhecer. Leonardo Olschki, um dos primeiros a acentuar esta alegada

    proximidade d O Prncipe cincia moderna, no tem dvidas quanto

    especificidade e a novidade desta interpretao: O carcter cientfico

    dOPrncipe foi sempre notado e muitas vezes enfatizado, mas nunca

    corretamente descrito e rigorosamente exposto. Na maioria dos casos, o

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    termo cincia tem sido vaga e abusivamente empregado para significar

    o carcter racional do pensamento de Maquiavel e a objetividade da

    sua expresso literria. Neste sentido, o termo seria uma simples met-fora para designar uma atitude e um estilo, mas no uma caracterizao

    precisa de um corpo de conhecimentos tericos adquiridos atravs de

    investigao sistemtica, raciocnio lgico e procedimento metdico

    (, , p. ). No esse o caso de Maquiavel. Comparando o

    gnio do Florentino com o do seu contemporneo Leonardo da Vinci,

    por exemplo, Olschki conclui que o grande artista nunca foi capaz

    de encontrar um princpio comum para a coordenao da prodigiosa

    variedade de fenmenos por ele estudados, ao passo que a filosofia de

    Maquiavel est integralmente baseada no axioma de que a natureza

    humana constante o qual possui uma traduo exata na suposio,

    fundamental em Galileu, de que a matria inaltervel, quer dizer,

    sempre a mesma (, , p. ). Ser realmente possvel aplicar

    ao texto dO Prncipe a designao de cincia, sem nenhuma ambiguida-de e de acordo com o modo como essa designao passou a ser enten-

    dida a partir de meados do sculo ? Ser essa a chave para chegar

    verdade da obra de Maquiavel, uma verdade que inexplicavelmente teria

    durante sculos permanecido escondida, at ao momento em que o es-

    tudo da poltica, impulsionado pelo positivismo do sculo , passou a

    reivindicar um estatuto idntico ao das cincias empricas? Eis a questo.A leitura de Maquiavel pelos principais representantes do ide-

    alismo alemo negava explicitamente a possibilidade de se atribuir ao

    autor a proposta de um modelo intemporal da ao poltica, isolado no

    Olimpo da pura teoria. Para Hegel, por exemplo, o verdadeiro sentido

    d O Prncipe s poder apreender-se desde que a obra seja lida como

    interveno na histria, como uma espcie de manifesto e um compro-

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    misso do autor com a sociedade do seu tempo. Expresso de um mo-

    mento concreto no percurso da razo, testemunho da ideia no ocaso

    da Renascena, a obra de Maquiavel no pode, de acordo com a inter-pretao hegeliana, ser lida como se fosse o enunciado das regras intem-

    porais do agir humano e da prpria realidade da poltica, dado que esta

    se inscreve sempre diferentemente no fio do tempo. O que surpreende

    em Maquiavel e aquilo que dele ecoa nos intrpretes do sculo ,

    pois, alm da reverberao patritica, contagiante para os nacionalismos

    da poca, a descoberta do ordenamento estatal, enquanto encarnao da

    vontade livre de um povo. Num contexto ainda repleto de formas pol-

    ticas medievais, se bem que j ento em declnio, Maquiavel teve o dom

    de intuir que s esse novo tipo de ordem, alegadamente anunciado

    nO Prncipe, seria capaz deelevar a multiplicidade dos poderes dispersos

    em solo italiano ao nvel de uma

    potncia, isto , de

    uma fora capaz de

    se afirmar internamente e projetar no espao europeu. Como dizia, em

    , o historiador da literatura Francesco de Sanctis, numa linguagemclaramente hegeliana, em Maquiavel o estado adquire conscincia de si,

    toma conhecimento de que o seu fim e os seus meios se encontram em

    si mesmo, torna-se cincia ( , , p.).

    Entre esta leitura e a que v no secretrio florentino o fundador

    da cincia poltica moderna, no existe propriamente um hiato, como

    o que ope Hegel diversidade de autores que acusam ou defendemMaquiavel por razes apenas de ordem moral. Lendo, por exemplo, o

    citado De Sanctis, j se encontra essa ideia de que O Prncipeseria uma

    obra precursora do Dialogo sopra i due maximi sistemi del mondo, escrito

    por Galileu um sculo mais tarde. De acordo com o autor da Histria

    da Literatura Italiana, Maquiavel, ao afirmar a necessidade de a inves-

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    tigao se ater realidade, abandonando a imaginao, teria lanado

    as bases do conhecimento cientfico. Em Maquiavel, diz, o objetivo

    da cincia torna-se o conhecimento do homem, o nosce te ipsum, esseprimeiro movimento da cincia quando se emancipa do sobrenatural e

    afirma a sua independncia. () Espere-se um pouco, e o conceito de

    Maquiavel aplicado natureza vir a dar origem a Galileu e ilustre

    coorte dos naturalistas ( , , p. ). De Sanctis reconhece

    que, para haver uma cincia, tem de haver nela algo de imutvel. Mas

    qual seria, ento, o fundamento das cincias do homem? De uma for-

    ma algo ousada, se no temerria tendo em conta o texto do prprio

    Maquiavel De Sanctis responde que existe na histria, no a fortuna,

    o acaso, o arbtrio, mas qualquer coisa de permanente e imutvel em

    todos os tempos e em todos os lugares, a saber, o homem, as faculdades

    da natureza humana: inclinaes, tendncias, paixes, caracteres, interes-

    ses, coisas que podem mudar de intensidade, mas que, na sua substncia,

    permanecem sempre as mesmas ( , , p. ). E, um poucomais adiante, apoiando-se explicitamente no texto de Hegel, De Sanctis

    conclui ser possvel uma cincia do estado, fundada na imutabilidade

    das faculdades do esprito, as quais a infinidade do desejo, que no se

    apaga nunca ( , , pp. -), aciona e pe a operar.

    Semelhante interpretao aparece recorrentemente no positivismo italiano de fi-nais do sculo , princpios do sculo , em particular na chamada teoria daslites, apresentada por autores como Gaetano Mosca, Wilfredo Pareto e Roberto Mi-chels, ou ainda nos textos dedicados por Raymond Aron a Maquiavel, apesar de estesserem particularmente crticos do maquiavelismo moderno encarnado por aquelesautores (Cf. , ).

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    At meados do sculo , ir predominar esta leitura de Ma-

    quiavel, onde a chamada cincia do estado entendida, hegeliana-

    mente, como revelao da essncia do mesmo estado, enquanto ser cujafinalidade reside em si prprio, no devendo portanto ser analisado em

    funo de padres que lhe sejam extrnsecos, como a religio ou a mo-

    ral. , no entanto, uma revelao, um saber, que se constri ao longo

    da histria, sem paralelo, portanto, com os padres epistemolgicos e

    com o modo preferencialmente a-histrico e matemtico como as ci-

    ncias da natureza enunciam a verdade dos seres, nas suas diversas reas.

    Alm disso, apesar de evidenciar a autonomia do poltico, que ser

    depois sublinhada por Croce, esta cincia do estado permanece um

    saber sem consequncias, pelo menos no curto prazo, longe portanto

    da baconiana scientia propter potentiam, i. e., da cincia que se desenvolve

    com o fim de moldar a natureza s necessidades e interesses do homem.

    Tal como afirma De Sanctis, numa das conferncias que temos vindo a

    citar, Maquiavel imaginou fazer com a cincia aquilo que Savonarolatinha querido fazer com o entusiasmo, e esqueceu que o entusiasmo

    pode produzir qualquer coisa de imediato, enquanto a cincia tem con-

    sequncias longnquas: o pensamento solitrio deve percorrer a sua lon-

    ga via ( , , p. ). Ou seja, o estado, que Maquiavel intui

    e identifica em teoria, s atravs da histria abandona a sua condio de

    simples ideia subjetiva para se tornar cincia objetiva e saber realizado.No caso da Itlia, como se sabe, essa objetivao ainda ir ia levar sculos.

    No admira, por isso, que um dos mais conhecidos estudiosos de Ma-

    quiavel, Federico Chabod, j em meados do sculo , sublinhasse: Ele

    no , portanto, acima de tudo um lgico, que se mova por princpios

    e que atravs de um raciocnio progressivo deles deduzisse, com rigor

    e concatenao, todo um sistema. Ele acima de tudo um imaginati-vo, que ferra de golpe, com iluminao fulgurante, a sua verdade, e s

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    depois se entrega ao raciocnio para comentar a suaverdade (,

    c, p. ). No h nada de semelhante, conclui Chabod, entre Ma-

    quiavel e um esprito j moldado cincia dos modernos e ao espritode sistema, como , por exemplo, Montesquieu.

    As reservas colocadas por Chabod ideia de um Maquiavel funda-

    dor da cincia de pouco adiantaram, de tal maneira ela aparecia como

    evidente e irrefutvel maioria dos comentadores. Ao longo das pri-

    meiras dcadas do sculo , essa ideia viria, inclusive, a ganhar novo

    flego, e Maquiavel, de simples fundador da cincia em sentido vago,ou mesmo da cincia no sentido hegeliano, passou a ser comummente

    encarado como o fundador da cincia poltica, tal como esta se entende

    em nossos dias. Logo em , Alexandre Koyr, o reputado historiador

    da cincia galilaico-cartesiana, escrevia com notrio entusiasmo: Que

    belo Discurso do Mtodoest implicitamente na obra do secretrio flo-

    rentino! Que belo tratado de lgica, pragmtica, indutiva e dedutiva aomesmo tempo, se pode colher desta magnfica obra! Aqui est algum

    que sabe ligar a experincia com a razo de modo completamente

    diferente de Francis Bacon e que, numa antecipao de sculos, v o

    caso mais simples no caso mais geral. () O imoralismo de Maquiavel

    simplesmente lgica (, , pp. -). Ser, no entanto, o

    filsofo Ernst Cassirer quem ir apresentar, na conhecida obra O Mito

    do Estado, a defesa mais conclusiva do Maquiavel cientista e a refutao

    da tese que reduzia o Florentino unicamente ao patriota a clamar pela

    unificao de Itlia e O Prncipea um panfleto de interveno nacio-

    nalista. Contra Hegel e todas as tentativas para limitar Maquiavel ao

    seu contexto epocal, Cassirer perenptrio: Tal como a Dinmica de

    Galileu veio a ser o fundamento da nossa moderna cincia da natureza,

    assim Maquiavel abriu um novo caminho para a cincia poltica (-

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    , , p. ). Na verdade, diz Cassirer, restringir o significado dO

    Prncipeao momento histrico vivido pelo seu autor incorrer naquilo

    a que chama de falcia do historiador, e que consiste em atribuir asnossas prprias concees da histria e do mtodo histrico a um au-

    tor para quem estas concees eram inteiramente desconhecidas e para

    quem elas seriam dificilmente compreensveis (, , p. ).

    Semelhante restrio, que feita pelo idealismo alemo e largamente

    partilhada, no sculo , pelos arautos do Risorgimento italiano, ma-

    nifesta alm disso dois equvocos: o do historicismo e o do psicologis-

    mo. Quanto ao historicismo, Cassirer observa: Maquiavel no escreveu

    para a Itlia, nem sequer para a sua prpria poca, mas para o mundo

    (, , p. ). Todas as pocas se assemelham, de resto, aos

    olhos do Florentino, no havendo para ele distino entre os exemplos

    que vai buscar a Antiguidade romana e aqueles que colhe na sua poca e

    na sua experincia prxima. Quanto ao equvoco do psicologismo, que

    pretende, nas palavras de Cassirer, psicanalisar o autor, as interpreta-es nele inspiradas esquecem um princpio essencial: Os motivos de

    um livro e o propsito com qual ele foi escrito no so o mesmo que

    o livro (, , p. ). O interesse da obra de Maquiavel no

    reside, por conseguinte, na insero, empenhada e apaixonada, do autor

    na vida poltica florentina, italiana, ou mesmo europeia, de incios do

    sculo , nem nas convices e nos objetivos que presidiram aos seuslivros e onde, posteriormente, sucessivas e desencontradas ideologias se

    vo reconhecer. Reside, segundo Cassirer, na sua inovadora abordagem

    da poltica, a qual se encontra em sintonia com a cosmologia dos mo-

    dernos. De fato, uma e outra rejeitam a distino entre o mundo supe-

    rior dos astros, para o qual se orientaria necessariamente o movimento

    dos corpos feitos de elementos leves ar e fogo - e o mundo alegada-mente inferior, para onde se dirigiria o movimento dos corpos feitos

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    de elementos pesados terra e gua: O mundo de baixo e o mundo

    de cima so regidos pelos mesmos princpios. As coisas esto ao mesmo

    nvel tanto na ordem fsica como na ordem poltica. Maquiavel estudoue analisou os movimentos polticos com o mesmo esprito com que

    Galileu, um sculo depois, estudaria o movimento da queda dos corpos

    (, , p. ). Maquiavel no s no deve ser circunscrito ao

    seu tempo, como inclusive no deve ser lido como um historiador cujo

    propsito fosse unicamente relatar, com a maior exatido, os fatos que

    conhecia dos livros e da vida. Sem dvida, ele cinge-se verit effettuale

    della cosa, e toda a sua linguagem predominantemente feita de no-

    mes concretos e de imagens que procuram representar o lado sensvel

    da realidade. Mas Maquiavel um terico. Ele foi o fundador de um

    novo tipo de cincia, de uma esttica poltica e de uma dinmica pol-

    tica. Ora, uma teoria precisa de um princpio construtivo para uni-

    ficar e sintetizar os fatos (, , pp. -). Na teoria de

    Maquiavel, esse princpio reside na estrutura do novo estado. PorqueMaquiavel foi o primeiro pensador que percebeu completamente o

    que esta nova estrutura realmente significava. Viu a sua or igem e previu

    os seus efeitos. Antecipou no seu pensamento todo o percurso da futu-

    ra vida poltica da Europa (, , p. ). Unificao, sntese,

    previso: a cincia poltica de Maquiavel no difere, segundo Cassirer,

    da cincia fsica

    At que ponto possvel sustentar uma tal aproximao entre a

    doutrina poltica do Florentino, se que na sua obra existe um corpo

    sistemtico de conceitos e teses a que possa atribuir-se tal designao,

    e a revoluo que esteve na origem da Fsica moderna? luz dos

    prprios textos, por mais heterodoxas que sejam as ideias de Maquiavel

    quando comparadas com as ideias polticas predominantes na literatura

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    medieval e no humanismo renascentista, dir-se-ia que tudo ou quase

    tudo o separa daquilo que vir a ser a ruptura metodolgica representa-

    da pelo paradigma galilaico-newtoniano. Mesmo de um ponto de vistameramente baconiano e empirista, a atitude de Maquiavel enquanto

    narrador no se carateriza por uma fidelidade minuciosa aos fatos, como

    os seus crticos tm vindo a notar, desde h sculos. Se alguma coisa

    distingue Maquiavel, nesse domnio, sobretudo a sua capacidade de in-

    tuir o geral nas situaes particulares e recriar os seus contornos com

    uma tal imaginao, vivacidade e verossimilhana, que ele se torna ainda

    mais vivo e, se assim podemos dizer, mais real que a prpria realidade, a

    fim de poder funcionar como caso paradigmtico. Chabod tem inteira

    razo quando observa que, ao compar-lo com Francesco Guicciardini,

    o embaixador e amigo que anotou os Discorsi, este ltimo que revela

    a maior capacidade de distanciamento e de clculo perante os fatos, a

    maior argcia para detectar o foro ntimo dos seus contemporneos e,

    deste modo, elaborar estratgias de sucesso na diplomacia ou na guerra.Na verdade, para Maquiavel o fato histrico no se esgota no seu ime-

    diato contorno, pelo contrrio, se desenvolve na sua potncia criadora

    (, a, p. ). Isto explicaria, por um lado, a indiferena com

    que a obra foi acolhida pelos seus imediatos destinatrios, por outro, a

    ausncia de resultados polticos visveis, j notada por Hegel, da dou-

    trina exposta nO Prncipe, a comear pelo desafio lanado casa Me-dici para a edificao de um estado. certo que no se pode medir o

    grau de cientificidade de uma doutrina pelo sucesso de suas eventuais

    aplicaes. So, no entanto, os prprios defensores do Maquiavel cien-

    tista que sublinham a alegada dimenso tcnica dos princpios tericos

    enunciados pelo secretrio florentino. Por isso mesmo, no deixa de ser

    problemtica a associao ao paradigma galilaico de uma teoria que an-tecipa resultados to distantes e fora de alcance, com base em fatos reto-

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    ricamente manipulados e dos quais um outro observador poderia infer ir

    o oposto. Em realidade, no se vislumbra qualquer semelhana entre as

    alegadas mximas de eficcia poltica dO Prncipee as leis da naturezaenunciadas pela cincia moderna. Uma vez mais, embora paradoxal, a

    opinio de Chabod sobre esta matria parece a mais avisada: todos os

    erros e defeitos da avaliao histrica que determinaram a criao e a

    no efetividade dO Prncipe vieram, portanto, a ser a fonte primordial

    da sua imensa vitalidade: se Maquiavel tivesse julgado os acontecimentos

    do seu tempo com um esprito verdadeiramente crtico, no teria escri-

    to este tratado (, b, p. ).

    Para considerar O Prncipe uma obra de verdadeira cincia, seria

    necessrio esquecer a exortao aos italianos para pegarem em armas,

    que constitui o ltimo captulo do livro. Seria, alm disso, necessrio

    reinterpretar o captulo imediatamente anterior, dedicado questo da

    fortuna, i. e., da incerteza ou contingncia. Cassirer admite que, no fimde contas, a racionalidade do poltico conhece limites, para l dos quais

    se intromete a desrazo e o mito, encarnado na figura clssica dafortuna.

    Isto implica que os fatos polticos no possam se explicar cabalmente

    em termos racionais. Mesmo se rejeitada pela cincia, a irracionalidade

    reaparece no seu horizonte, como simples metfora, que no seno um

    nome dado a todo um conjunto de fatores que desafiam o alcance da

    cincia e da tcnica poltica. Alm disso, o prprio princpio que unifica

    a diversidade dos fatos polticos e sobre o qual, segundo Cassirer, assen-

    taria a cincia de Maquiavel o estado - , tambm ele, explicitamente

    reconhecido como inassimilvel por algum tipo de racionalidade. No

    por acaso, o livro em que Cassirer dedica trs captulos a Maquiavel tem

    por ttulo O Mito do Estado. Contudo, se o estado por natureza mito-

    lgico, como conciliar a cincia do poltico com o pressuposto de que

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    tal cincia est assente num mito? Claude Lefort explica este aparente

    paradoxo dizendo que Cassirer, muito simplesmente, acredita no mito

    do estado. () O seu erro no sugerir que existe um tal mito e, maisgenericamente, um mito da objetivao em poltica; , pelo contrrio,

    () no franquear o seu caminho a esse pensamento. () Ele cr que o

    estado moderno exatamente como se d na representao racional que

    ele prprio engendra; cr que os homens esto de fato convertidos em

    objeto sob o efeito de uma tcnica poltica; cr que o estado permane-

    ce isolado no vazio, em conformidade com a imagem que a sociedade

    moderna consagrou. O fato de denunciar o mito no o impede de o

    subscrever (, , p. ). Dito por outras palavras, Cassirer no

    parece retirar consequncias da definio do estado como estrutura co-

    erente de dominao, que se auto- representa acima da sociedade e se

    desenvolve em coerncia apenas com a sua lgica interna. Com efeito,

    atribuir um estatuto mitolgico ao fundamento da cincia poltica de

    Maquiavel implicaria a negao no apenas do carter cientfico desta.

    A interpretao que v no Florentino um precursor do esprito

    cientfico moderno conhece, no entanto, um registro ainda mais sofis-

    ticado e porventura menos cientista, na tese repetida por Leo Strauss

    em vrios dos seus livros e onde Maquiavel figura como a primeira e

    mais decisiva das trs vagas da modernidade. Strauss reconhece que

    a obra do Florentino est em geral mais prxima de Tito Lvio do que

    desse mundo novo que apenas surgir com a fsica de Galileu. Conside-

    ra, porm, que a revoluo operada por este ltimo no plano da cincia

    s se compreende luz da revoluo que Maquiavel, a propsito da

    poltica, opera na filosofia.

    So dois os princpios que Strauss faz ressaltar nO Prncipe, com oobjetivo de promover Maquiavel a precursor do mundo moderno: o

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    primeiro afirma que os governantes se devem guiar pela realidade das

    coisas a verit effettuale- e no pelo modo como estas se representam

    na imaginao; o segundo afirma que a fortuna mulher, no apenaspela volubilidade, mas tambm porque pode ser dominada pelo homem

    (, , p. ). De acordo com a tradio grega, helenista ou

    crist , todos os seres vivos estariam, por natureza, orientados para um

    fim prprio e um determinado grau de perfeio. O homem ocupa,

    verdade, a proeminncia: o homem a medida de todas as coisas.

    Mas dizer o homem a medida de todas as coisas, segundo Strauss,

    o oposto de dizer o homem o senhor de todas as coisas. Porque o

    homem , tambm ele, determinado pela sua natureza, racional e social:

    a sua limitao mostra-se em particular no inelutvel poder do acaso.

    A vida boa a vida de acordo com a natureza, o que significa perma-

    necer dentro de certos limites. A virtude essencialmente moderao

    (, , pp. -). Traduzido em linguagem poltica, isto sig-

    nifica que o bom regime aquele que leva os cidados a evitarem osextremos. E para que um tal regime se instaure, necessrio haver sorte,

    alm de condies materiais qualidade do territrio e, sobretudo, dos

    cidados. Em resumo, tanto os homens, como as cidades, esto adstri-

    tos a uma finalidade ou grau de perfeio. Mas os seus movimentos e

    aes esbarram sempre numa cortina de incerteza, e nunca lhes dado

    conhecer nem o desfecho, nem a totalidade das consequncias de cadaum dos seus gestos. So, por isso, em boa parte impotentes face ao que

    o futuro lhes reserva.

    Na opinio de Strauss, com esta viso do mundo que Maquiavel

    ir romper. Primeiro, ao tomar a fortuna por algo dominvel, no re-

    conhece limites iniciativa e ao do homem. Segundo, ao sublinhar

    que, em todos os estados, a violncia que esteve associada sua funda-

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    o permanece latente o que implica a impossibilidade de superar a

    conflitualidade, tanto no seu interior como de cada um deles com os

    restantes , nega o papel que as causas finais representavam na cinciados antigos, assim como a existncia de um logos ordenador e modera-

    dor da natureza. Como princpio nico de explicao das ocorrncias,

    Maquiavel no reconhece seno as causas eficientes, sejam as que se

    exprimem pela virt dos homens e dos povos, sejam aquelas que ora

    resistem oram apoiam a sua ao e a cujo conjunto se chama de fortu-

    na. Assim, tanto na concepo de Maquiavel, como depois no modelo

    mecanicista da cincia galilaica, a natureza deixa de ser um cosmos, uma

    ordem a respeitar, para se reduzir a um caos merc da vontade e da

    capacidade transformadora do homem, ao mesmo tempo que a poltica

    se converte numa simples arte de dominar e num problema tcnico:

    temos de ter em conta duas grandes mudanas que ocorreram depois

    do seu tempo mas que estavam em harmonia com o seu esprito. A pri-

    meira a revoluo na cincia natural (). A segunda () diz respeitounicamente filosofia moral e poltica. Maquiavel cortou por completo

    a conexo entre poltica e direito ou lei natural, isto , a conexo com

    a justia entendida como algo independente da arbitrariedade humana

    (, , p. ).

    Que o pensamento de Maquiavel se afaste da ortodoxia teolgica

    relativamente consensual, to frequentes so as referncias religio

    como algo de instrumental, visveis quer nos Discorsi (Livro , -)

    quer no Prncipe,assim como na forma irnica com que os principados

    eclesisticos so tratados no cap. deste ltimo livro. Que ele esteja

    convencido da inutilidade de ter em conta as causas finais dos antigos,

    para uma anlise do poltico, tambm no difcil de concluir, se lermos

    a conhecida recomendao de Maquiavel: quem quiser escrever algo de

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    til, deve cingir-se verit effettuale della cosa. Porque esta no unica-

    mente uma forma de designar o real, por oposio ao imaginrio, que

    povoa a bibliografia tradicional sobre poltica. A verit effettuale designatambm, conforme observou Louis Althusser, a coisa ou o aconteci-

    mento na sua singularidade concreta e prtica, por oposio s catego-

    rias gerais e abstratas com que habitualmente as teorias trabalham. Mas

    no s. Cingir-se verit effettuale igualmente considerar a coisa na sua

    condio de efeito e, por conseguinte, ter de procurar a sua explicao

    nas causas eficientes, desprezando consideraes de ordem teolgica ou

    teleolgica (Cf. , , p. ).

    H, no entanto, igualmente razes, porventura ainda mais premen-

    tes, para duvidar deste outro tipo de aproximao de Maquiavel ao me-

    canicismo dos modernos, proposto por Leo Strauss. De fato, sendo em-

    bora inquestionvel o seu abandono das vias tradicionais para interrogar

    o poltico, e sendo, inclusive, notria a sua preocupao em evidenciaras causas de cada acontecimento da histria ou do presente -, o campo

    da ao humana encontra-se em Maquiavel repassado de indetermi-

    nao e por natureza avesso a deixar-se representar mecanicamente.

    A posteriori, o acontecimento aparece como pura sucesso de efeitos

    encadeados uns nos outros, que o narrador desfia linearmente. Mas as

    lies que porventura se extraem de uma narrao jamais se aplicam por

    inteiro a uma situao nova, o que quer dizer que a sua pertinncia em

    poltica limitada. Cada uma das cadeias de ocorrncias irrepetvel,

    da mesma forma que, entre cada um dos seus elos e o elo seguinte, a

    infinidade de hipteses que fica em aberto extravasa o conhecimento e

    o alcance do decisor. Por definio, o poltico convive sempre com uma

    certa margem de imprevisibilidade, porquanto a incerteza e o risco so

    inerentes a qualquer deciso.

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    Por outro lado, a fortuna, como veremos adiante, ainda que na opi-

    nio de Maquiavel seja donna,est longe dessa imagem de passividade e

    submisso que a natureza alegadamente apresenta aos olhos da cinciamoderna. A conhecida alegoria dOPrncipe atribui, certo, ao virtuoso

    a capacidade de lhe fazer frente, irromper desabrido pelos seus domnios

    e tentar reduzir-lhe a margem de manobra, o que a deixa seduzida e a

    leva a inclinar para ele a sua face e os seus favores. No essencial, porm,

    ela permanece inconstante, o que a leva, de um momento para o outro,

    a mudar de humor e a revelar-se madrasta para aqueles a quem, ainda h

    pouco, prodigava os seus dons. Em resumo, e em linguagem dos nossos

    dias, h sempre um remanescente de incerteza que resiste e desafia a

    virtude ou o valor do homem poltico, por mais sagaz e arrojado que

    este se manifeste, um residual de aleatoriedade atravs do qual os acon-

    tecimentos transbordam e podem surpreender os clculos mais avisados

    da tecnocracia. a que verdadeiramente reside o poltico, a que a

    virtude ir ser desafiada. Assim ela existe no decisor.

    Ao contrrio do que deixaria supor a interpretao de Strauss, a

    ao poltica em Maquiavel conhece limites e est, como vimos, con-

    dicionada. No os limites que seriam ditados por qualquer instncia

    transcendente, mas os limites que fazem com que a ao esteja sempre

    lastreada pelo risco. Maquiavel nega, certo, a pertinncia dos vnculos

    extrapolticos, ao mesmo tempo que despreza quaisquer modelos in-

    temporais a que o prncipe devesse moldar os seus passos e as suas de-

    cises. Para todos os efeitos, ele realmente legibus solutus. Alm disso, o

    poltico, em certa medida, objeto de um saber, o qual permite a quem

    o possui evitar muitos males. Dizendo-me o cardeal de Ruo que os

    italianos no entendiam da guerra, recorda Maquiavel, eu respondi-

    lhe que os franceses no entendiam do estado: porque, se eles entendes-

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    Diogo Pires Aurlio p. -

    sem, no teriam deixado a Igreja chegar a tanta grandeza (,

    , p. -).Porm, o fato de o prncipe no depender de ordens

    alheias no significa que a sua ao seja totalmente incondicionada, vistoo horizonte em que se inscreve esta ao, alm de relativamente des-

    conhecido, ser instvel, no estando ao alcance de ningum eliminar de

    vez as razes dessa instabilidade. Nem sequer a posse do saber poltico,

    por mais elevada, supera as dificuldades prprias da natureza do poltico.

    Pelo contrrio, ao evidenciar a incerteza inerente ao poltico, Maquiavel

    desvenda igualmente os limites do saber poltico. O conhecimento dos

    dados no anula jamais a imprevisibilidade contida em cada um dos seus

    lances.

    Ao contrrio da maior parte dos tericos, Maquiavel enfatiza a im-

    possibilidade de fixar regras que subsumam a infinidade de aspetos em

    que a realidade poltica se metamorfoseia. O alcance da prudncia e dos

    preceitos tirados do saber ou da experincia revela-se, por isso, limi-tado. So medidas de precauo, que ajudam na exata medida em que

    reduzem o campo das probabilidades. Mas para l delas est sempre um

    territrio, maior ou menor, onde cada novo passo um passo no escuro,

    que implica riscos e exige audcia, porquanto no existe ponderao

    que cubra todos os riscos, nem regra anteriormente estabelecida que d

    garantias de ser adequada no futuro. Numa das muitas passagens em que

    sublinha esta opacidade do poltico e a sua insero na finitude, Ma-

    quiavel escreve o seguinte: dado que todas as coisas dos homens esto

    em movimento, e no podem estar paradas, ou elas sobem ou descem; e

    a muitas coisas que a razo no te induz, s induzido pela necessidade

    ( , , , p. ). A frase levanta um conjunto de questes

    que tm a ver com o essencial do pensamento do autor. Em primeiro

    lugar, o que que significa esta necessidade? Em que que se traduz,

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    por outro lado, um agir induzido apenas por necessidade, que se ope

    liberdade supostamente implcita na deciso e na ao politicas? Como

    pensar, enfim, o poltico, se ele aparentemente se furta s categorias darazo? Analisemos, um pouco mais demoradamente, este problema.

    Entre os captulos e do Prncipe, Maquiavel passa em revista

    uma srie de alternativas que podem colocar-se a qualquer governante,

    desde a mais elementar, entre bem e mal, at a simples edificao ou node fortalezas. Em todos os exemplos citados, a deciso a tomar depende

    sempre de circunstncias vrias. Mas em nenhuma circunstncia ela

    determinada por um critrio alheio ao poltico. Isto mesmo transpare-

    ce no primeiro dos referidos captulos, de uma forma que tem algo de

    inesperado e paradoxal: o prncipe deve aprender a poder ser no bom

    e us-lo e no us-lo consoante a necessidade (, , p.

    ). Por um lado, a manuteno do prncipe no depende da observn-

    cia de cdigos que tenham sido fixados por algum, nem mesmo pelo

    prprio, em momento anterior. Ainda assim, ela est condicionada: o

    prncipe no livre de ser bom ou no bom; pelo contrrio, obrigado,

    conforme a necessidade, a ser uma ou outra coisa.

    Esta necessidade significa, antes de mais, tudo aquilo que est forado alcance e do arbtrio do prncipe e se intromete nas suas decises,

    cerceando-lhe a amplitude dos efeitos. A complexidade dos fatores e

    a rede de pulses intersubjetivas, em que sempre se movem os agentes,

    fazem de cada caso um acontecimento singular, impossvel de deduzir

    por inteiro dos seus antecedentes. Reside aqui a insustentabilidade de

    uma poltica que se restringisse planificao e ao clculo, uma poltica

    reduzida tecnocracia, como dir amos hoje. A necessidade, como obser-

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    va Maquiavel, pode induzir o prncipe a fazer coisas a que a razo o no

    induz. Seja porque ela se apresenta sbita e imprevistamente, impondo

    uma resposta no mediada pela razo, nem sequer pela prudncia, comoacontece no caso das conspiraes, ou de certas guerras e de outros

    desafios a que preciso fazer face imediatamente; seja porque as coisas

    humanas esto de tal maneira entrosadas numa rede causal de interaes

    e em movimento contnuo, que um prncipe ou uma repblica, mesmo

    querendo estar tranquilos, so por fora das coisas implicados no vaivm

    da histria e veem, aparentemente sem razo, a sua condio alterar-se.

    Qualquer cidade, se no molestar outra, ela molestada, e do ser mo-

    lestada nascer-lhe- a vontade e a necessidade de conquistar e, mesmo

    quando no tiver inimigo fora, encontr-lo- em casa: como parece ne-

    cessrio que acontea em todas as grandes cidades (, ,

    , , pg. ).

    A tradio, j o dissemos, via esta necessidade como uma fora quetranscende o curso dos acontecimentos, fora perante a qual o homem

    obrigado a reconhecer os seus prprios limites. Quer se lhe chame

    fortuna, providncia, acaso ou fado, essa fora se move e se sobrepe

    natureza, de modo impossvel de prever ou at de decifrar, margem,

    portanto, de qualquer razo conhecida. Na mitologia que lhe anda as-

    sociada, ela aparece como uma deusa caprichosa, vagabunda, instvel

    e irascvel, que derrama a cornucpia dos seus favores sobre quem lhe

    apetece e arruna quem lhe desagrada. primeira vista, Maquiavel no

    despreza esta constelao imagtica, atravs da qual a tradio persona-

    liza e d um nome a tudo aquilo de que o entendimento comum no

    descortina as causas. No captulo dOPrncipe, parece at que ele

    Sobre as conspiraes em Maquiavel (, , , cit. p. ).

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    prolonga esse jogo de metforas, sublinhando na fortuna, a par da fria e

    do mpeto que a assemelham a um rio caudaloso, a sua condio femi-

    nina: ela poderosa mas volvel, caprichosa mas domvel. No entanto,no para defender a viso de um mundo em que os acontecimentos

    fossem determinados por algo como a providncia ou a fora das coisas,

    muito menos pelas conjunes astrais de uma ordem cosmolgica a que

    seria impossvel escapar. , pelo contrrio, para negar a existncia de

    qualquer tipo de causalidade ou de finalismo que transcendesse o pr-

    prio agir dos homens: o sentido dapraxis irredutvel a uma teleologia;

    o seu xito e eficcia no esto vinculados obedincia a qualquer regra

    ou saber universal.

    A tradio falou sempre de poltica como se esta fosse uma cincia

    prtica, um saber cujo objeto o caso singular, imprevisvel e irrepetvel

    , embora se furte universalidade e necessidade, poderia at cer-

    to ponto ser controlado, bastando para tanto possuir saber, experinciaacumulada e virtudes, sobretudo a virtude da prudncia. contra uma

    tal cincia que Maquiavel vai insurgir-se. Decerto, o Florentino no

    despreza liminarmente a prudncia, como se pode ver pelo incio do

    captulo , onde o autor reconhece que, se no se construrem diques

    no leito e amparos nas margens dos rios, haver fatalmente inundaes.

    Mais ainda, ao enunciar a tese de que a runa dos governantes nasce do

    fato de a sua virtude no variar consoante variam os tempos, Maquia-

    vel parece acolher a verso tradicional da prudncia como capacidade

    de intuir em cada caso a respectiva singularidade. De algum modo, a

    virtude maquiaveliana tambm se identifica com o golpe de vista, a

    sensibilidade ao kairs,a intuio, a penetrao de esprito e todo esse

    espectro de qualidades a que os gregos chamavam a mtis(Cf. -

    , , p. ). primeira vista, Maquiavel repete o que

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    Diogo Pires Aurlio p. -

    dizem os humanistas da Renascena, os quais interpretam a prudncia

    como adaptao a cada momento, maleabilidade, versatilidade: s triunfa

    quem sabe mudar a sua vontade, os seus objetivos e o seu prprio ser,consoante mudam os tempos e os desafios.

    Semelhante leitura, que desde muito cedo se imps na histria da

    interpretao de Maquiavel, alm do mais porque parece confirmar a

    pertena do autor ao esprito do tempo, no entanto insustentvel

    luz daquilo que est nOPrncipe. Na verdade, aquilo que diz o famoso

    captulo sobre a fortuna que, de uma forma ou de outra, as mudanasdo prncipe acarretam sempre a runa: no se encontra homem to

    prudente que se saiba acomodar a isto, seja porque no se pode des-

    viar daquilo para que a natureza o inclina, seja tambm porque, tendo

    algum prosperado sempre a caminhar por uma via, no se pode per-

    suadi-lo de que seja bom sair dela (, , cap. , p. ).

    Em resumo, a versatilidade no jamais possuda em grau suficiente.Trata-se, por conseguinte, de mais uma soluo imaginria, como tantas

    outras que Maquiavel critica. No quer dizer que o autor se renda

    crena na fortuna, mesmo se, ao tratar este assunto na generalidade, no

    incio do captulo, parece concordar que mais ou menos metade dos

    acontecimentos depende dela. Se assim fosse, alm de o pensamento de

    Maquiavel se integrar por inteiro na tradio renascentista, a parte final

    do captulo ficaria sem sentido, tal como a exortao aos Medici, que

    vem no captulo seguinte. Com que fundamento diria Maquiavel que

    melhor ser impetuoso que cauteloso, se realmente acreditasse que

    tanto uma como outra destas qualidades do homem levam igualmen-

    te runa, mal surgem tempos para os quais elas no so adequadas?

    Manifestamente, a fortuna no se confunde em Maquiavel com uma

    causalidade transcendente aos acontecimentos, perante a qual o homem

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    fosse impotente, no todo ou em parte. Se, de fato, indeciso ou via

    mdia prefervel a impetuosidade, porque esta, em primeiro lugar,

    significa o contrrio do baixar os braos e esperar passivamente o que otempo dir; mas tambm, em segundo e mais importante lugar, porque

    a impetuosidade significa no s agir, como tambm fazer o contrrio

    do que a prudncia aconselha.

    O impetuoso aquele que, alm de ir contra a situao e as regras

    que existem, atua de uma maneira que no se esperaria e que, por isso

    mesmo, no se aconselha. Dele se diz que no tem maneiras. A suaimpetuosidade est precisamente em agir margem daquilo que so

    as boas maneiras e que se espera dos homens, em qualquer sociedade

    e em qualquer tempo. Mais do que dizer que ele tem capacidade para

    se moldar mudana dos tempos - versatilidade -, como se os tempos

    fossem uma entidade caprichosa que muda autonomamente, deve antes

    se dizer que ele surpreende com a sua ao e, nessa medida, se impeao seu tempo, inaugura um tempo novo: aquilo a que se chama a sua

    fortuna no seno a evidncia e a marca do seu sucesso. A menos que

    ele no possua virtude bastante para imprimir essa marca. Nessa altura,

    se diz que teve m fortuna, ou que sua atuao no foi adequada aos

    tempos. Mas o que realmente aconteceu foi que um outro - ou outros -

    determinou a qualidade do tempo, coisa que ele foi incapaz de fazer.

    O verdadeiramente virtuoso, esse, faz, determina a qualidade do tempo

    que se segue sua ao, i. e., dita as normas e os costumes. Em cada uma

    das suas decises ou aes, repete-se o gesto fundador que subsume o

    essencial da ao poltica: com a sua palavra, ou a sua espada, ele ordena

    o acontecimento e talha o instante, ainda que para tal seja obrigado,

    como diz Maquiavel, a entrar no mal. No se trata de excluir a con-

    tingncia, pois a tanto no chega a virtude de ningum. Trata-se de en-

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    tend-la de modo positivo, no como coeficiente de inevitabilidade que

    limitaria o alcance da vontade humana, mas como horizonte de ao e

    de inao, atravs do qual se realiza o tempo histrico. Para alm dissono existe seno o vazio ontolgico, mais ou menos saturado de iluses.

    H nesta relao da virtude com a fortuna algo de semelhante ao

    que Darwin pensa da seleo natural. Assim como a causa da evoluo

    dos seres vivos interna, sendo o meio unicamente o filtro em que se

    procede seleo das formas que so vantajosas porque asseguram a

    adaptao, assim tambm a mudana dos tempos produzida unica-mente por aquelas decises e aes que triunfam, isto , que eram as

    mais adequadas s circunstncias e por isso se impem e cristalizam em

    instituies, configuram de novo a qualidade dos tempos, at a deter-

    minada por um outro ordenamento institucional. S assim se justifica

    que elas se digam virtuosas. No foi por serem antes virtuosas que elas

    triunfaram, mas sim o contrrio. essa, de resto, a razo por que acon-tece tantas vezes duas atuaes diferentes produzirem o mesmo efeito

    e, por outro lado, de duas atuaes semelhantes, uma ter xito e a ou-

    tra levar ao desastre (Cf. , , cap. , p. ) . Miguel E.

    Vatter, num texto verdadeiramente inovador sob este aspecto, comenta

    assim o lado anti-teleolgico da concepo da histria por Maquiavel:

    A maioria das vezes, supe-se que o encontro (rincontro)entre a ao

    e os tempos uma espcie de correspondncia harmoniosa entre am-

    bos. A fortuna no existe seno como sintoma da no-coincidncia das

    A sintonia, at estilstica, entre Maquiavel e Darwin surpreendente neste ponto.Compare-se as observaes citadas com a seguinte passagem: Seedlings from the samefruit, and the young of the same litter, sometimes differ considerably from each other,though both the young and the parents () have apparently been exposed to exactlythe same conditions of life; () but in some conditions it can be shown that quiteopposite conditions produce similar changes of structure. (, , pp. -).

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    aes e dos tempos, ela sintomtica, portanto, de que a virthumana

    j no procura mudar os tempos. Afortuna perde o seu estatuto de causa

    da mudana dos tempos precisamente a onde a virt muda, ela prpria,os tempos, em vez de simplesmente corresponder ou se adaptar aos

    tempos (, , p. ).

    O verdadeiro heri , pois, aquele que determina por inteiro os

    efeitos da sua ao e, nessa medida, ocupa o campo da fortuna. A hist-

    ria, como Hannah Arendt, inspirando-se em Maquiavel, reiteradamente

    afirma, criao, afirmao da singularidade e diferena do homem,cuja ao livre constitui o at a desconhecido, o sem precedentes e ab-

    solutamente novo, ao mesmo tempo que nega qualquer determinismo

    ou teleologia (Cf. , , pp. -). Se h um significado para

    a fortuna, ele s poder ser essa resistncia indeterminada afirmao da

    virtude, que por definio determinante. A fortuna, como diz Lucien

    Sfez, uma potncia que de potncia no tem seno o nome, e designasomente o que resiste nossa ao, a resistncia que faz o resto, segundo

    um duplo sentido da resistncia: resistncia da Virt, resistncia da For-

    tuna (, , p. ).

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    Diogo Pires Aurlio p. -

    REASON AND UNREASON IN POLITICS: THE ALLEGED

    MACHIAVELLIS POLITICAL SCIENCE

    Machiavelli is usually considered a precursor, if not the cre-

    ator, of political science. Such an interpretation sees the work of the

    Florentine as if it were a rational systematization of the human events.

    With some nuances, we can see it in so different authors like Hegel,Meinecke, or Leo Strauss, who credit Machiavelli with the intuition of

    the state as the principle from which the autonomy of the political as

    well as the realism in politics can be deduced. Is, however, such a prin-

    ciple really present in Machiavellis work? This paper questions such a

    hypothesis and supports instead that the Florentine belongs to a uni-

    verse of thought in which the modern concept of state is still ignored.

    On the contrary, the mixture of reason and unreason, that is inherent

    in the political action and that will be hidden by the basic principle of

    modern political science the myth of the state, as Cassirer termed it ,

    is still perfectly visible.

    events, science, state, uncertainty, action, fortune, virtue.

    , . (), Machiavel et nous, in :, . crits Philo-

    sophiques et Politiques, Tomo , Paris : /.

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