dimensões políticas na plaza de mayo e a cidade de buenos...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ANA CAROLINA OLIVEIRA ALVES Dimensões políticas na Plaza de Mayo e a cidade de Buenos Aires como capital federal (1880 – 1910) CAMPINAS 2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ANA CAROLINA OLIVEIRA ALVES

Dimensões políticas na Plaza de Mayo e a cidade de Buenos Aires

como capital federal (1880 – 1910)

CAMPINAS

2017

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ANA CAROLINA OLIVEIRA ALVES

Dimensões políticas na Plaza de Mayo e a cidade de Buenos Aires como capital federal

(1880 – 1910)

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia

e Ciências Humanas da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos

para a obtenção do título de Mestra em História

na Área de Política, Memória e Cidade

Supervisor/Orientador: Profa. Dra. Josianne Frância Cerasoli

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À

VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO

DEFENDIDA PELA ALUNA ANA

CAROLINA OLIVEIRA ALVES, E

ORIENTADA PELA PROFA. DRA.

JOSIANNE FRÂNCIA CERASOLI

_____________________________________

CAMPINAS

2017

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 12 de dezembro de 2017,

considerou a candidata Ana Carolina Oliveira Alves aprovada.

Prof(a) Dr(a) Josianne Frância Cerasoli

Prof(a) Dr(a) Maria Stella Martins Bresciani

Prof(a) Dr(a) Ana Claudia Scaglione Veiga de Castro

Prof(a) Dr(a) Lise Fernanda Sedrez (suplente)

Prof(a) Dr(a) Iara Lís Franco Schiavinatto (suplente)

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da

aluna

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Agradecimentos

É difícil transmitir em palavras agradecimento àquelas pessoas que caminharam do

meu lado até aqui e, principalmente, durante a escrita dessa dissertação. A jornada de três anos,

dificultada pelos quase 500 quilômetros que me separavam da UNICAMP, tornou-se mais amena

pelas pessoas que transpassaram meu percurso contribuindo para a conclusão desse trabalho.

À CAPES pela bolsa concedida durante esses anos de mestrado.

À minha orientadora, Josianne Cerasoli, pelo acolhimento e atenção ao longo desses

três anos e, por todas os instigantes debates sobre os rumos dessa dissertação. Por ter sido sempre

presente, a despeito da distância física, e pela enriquecedora experiência de poder contar com sua

orientação nessa jornada, meu muito obrigada.

Às professoras com quem meus caminhos se cruzaram nesse processo, especialmente

aquelas com quem compartilhei as aulas de linha no mestrado e que em tanto contribuíram para

modificação de meu projeto inicial, Izabel Marson e Maria Stella Bresciani. A esta última, ainda,

um agradecimento especial não só por compor minha banca, mas por se mostrar sempre disponível

para auxiliar, com enorme generosidade acadêmica. À professora Ana Castro, pela disposição em

compor minha banca e por todas as reflexões que ajudaram a repensar meu trabalho. Às

professoras Iara Schiavinatto e Lise Sedrez pela participação como suplentes na defesa. À essa

última, ainda, por me acompanhar desde minhas primeiras incursões em pesquisas históricas me

ensinando tanto desde então. Ao seu grupo de orientação, agradeço pelo companheirismo e leitura

sempre atenta de meu trabalho. À professora Alessandra Nicodemos por caminhar junto comigo

em tantas lutas e partilhar reflexões imprescindíveis sobre nosso papel enquanto educadoras.

Às especiais ajudas obtidas nos arquivos argentinos, especialmente à Viviana Appella,

funcionária das Bibliotecas Técnicas, por toda a atenção que me dedicou em todas coletas de fonte.

À Alicia Novick e à Sonia Berjman, sempre solicitas para debates acadêmicos sobre meu objeto.

Aos meus amigos da UNICAMP por terem demonstrado que o meio acadêmico

também se perfaz de amizade e companheirismo. Ao Leonardo que tornou sua casa em Barão

Geraldo minha ao longo dessa trajetória construindo um laço além do acadêmico, um

agradecimento especial por sua fraterna amizade em meio a tanto nervosismo e questões

compartilhados. À Monique, sempre cuidadosa e afetuosa, não só por me fazer sempre sentir

acolhida em São Paulo e em outros lugares pelos quais transitamos, mas também por ter me

proporcionado tantas importantes reflexões sobre meu trabalho. À Suelen, pelas angustias e apoios

divididos em meio as dificuldades de estudar uma cidade tão distante. Aos integrantes do CIEC,

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Ana Carolina, Ludmilla, Raquel, e Thainã, meu obrigado, pelos debates, acadêmicos ou não, e

tantas outras histórias que compartilhamos.

Agradeço aqueles amigos que extrapolaram os muros institucionais do IFCS tornando-

se presença constante em minha vida e coração. Ao Henrique, companheiro de todas as instâncias

dessa vida, sem o qual vários dos meus passos não teriam sido dados e outros teriam sido muito

mais trêmulos e inseguros, meu muito obrigada. Passar por essa difícil empreitada simultânea nos

fez compartilhar todos os bons frutos que uma amizade sincera proporciona, crescendo fortes,

estimulando voos altos, mas sem deixar de criar e cultivar nossas raízes juntos. À minha família de

amigos Beatriz, Caio, Felipe, Lucas e Thiago, meu agradecimento. Por acompanharem minha difícil

escolha de cursar um mestrado em outro estado e, mesmo me querendo perto, serem

companheiros o suficiente para me dar seu apoio se fazendo, ainda assim, presença constante em

meus dias. Às amigas de diferentes fases da graduação, Ana Luiza, Anne, Aline, Milene e Yasmin,

por sua ajuda e carinho incondicional. Ao Felipe Melo que, entre as dificuldades de compartilhar

da ponte área Rio-Campinas, se fez presente nesse processo com preocupação constante.

Aos amigos da vida, que há tempos já caminhavam comigo, Diogo, Filipe, Marianne,

Priscylla, Camilla, Joyce, Lucas e Monique, meu eterno obrigado por essa amizade que acompanha

cada nova etapa de nosso caminho se esforçando para estar presente, mas compreendendo as

ausências, por vezes necessárias.

Ao Matheus por todo companheirismo e afeto, por ter estado presente em minha

relação com a História desde o primeiro momento e sempre me fazer enxergar além dos meus

horizontes compartilhando reflexões ainda que nos interessemos por temas tão díspares. Agradeço

imensamente por todas as barras que você segurou apenas para garantir que elas fossem menos

pesadas para mim e por estar do meu lado em tantas batalhas dessa vida.

À Ana e ao Sued, considerados parte de minha família, pelo constante acolhimento e,

principalmente, pelas longas conversas que sempre me fizeram sentir em casa.

À minha família por ter constantemente me incentivado, em especial Rosa, Luiz,

Alfredo, Cristina e Carine. À Monique, sempre presente nas frustrações e conquistas dessa vida. A

minha avó Elma, parceira da vida, por ter ajudado a tornar Barão Geraldo um lugar mais familiar.

Aos meus pais, Sérgio e Patrícia, por uma parceria construída e reiterada ao longo da

vida. Agradeço pelo apoio que se estende além do afetivo se perfazendo também em termos

concretos dentro dos meus projetos acadêmicos como ao se disporem a passar dias dentro de

arquivos coletando fontes históricas. Por sempre buscarem tornar meu caminho mais fácil, com a

certeza de que, sem vocês, mais essa fase não teria sido concluída.

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Resumo

Esta dissertação tem como objetivo investigar a dimensão política da Plaza de Mayo, localizada em

Buenos Aires. A praça, constituída como parte do conjunto composto não só pela sede do governo

local, mas também de um centro financeiro e uma instituição religiosa, foi historicamente expressão

de diversas ações cívicas e coletivas. Buscamos compreender, a partir do processo anterior à

ocupação desse espaço, sua concepção e reafirmação como essencialmente político. Nossa hipótese

é de que se atualiza o sentido de poder na sociedade argentina por meio das narrativas em disputa

na praça que, portanto, não está alheia às contendas políticas que se efetivam no espaço público e

nele se materializam. Analisamos documentos oficiais, planos urbanísticos, periódicos

especializados e da grande imprensa, considerados a partir de uma articulação entre cidade e política

para investigar como a praça foi pensada e debatida. Para compreender as transformações desse

espaço como intencionais foram escolhidos dois momentos: o processo de federalização da cidade

na década de 1880 e as posteriores celebrações do Centenário da independência argentina, em 1910.

As transformações urbanas experimentadas pela cidade no primeiro momento estão estreitamente

relacionadas com seu novo status como capital e expressaram interesses específicos de um grupo

que buscava mudanças físicas correspondentes ao projeto político de nacionalização da cidade.

Essa retórica foi alimentada até 1910, segundo momento escolhido, quando afloraram discursos

que, em meio a disputas, mobilizaram argumentos de valorização de certos eventos do passado

implicando em sua expressão na cidade. A originalidade deste trabalho está em compreender, por

meio desses dois momentos, como se desenvolvem as relações entre a política na Argentina e o

próprio espaço urbano e identificar possíveis rupturas e continuidades nas narrativas e ideologias

envolvidas nesse processo.

Palavras-chave: espaços públicos; cidades e vilas; Plaza de Mayo (Buenos Aires, Argentina) -

História

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Abstract

The goal of this master thesis is to investigate the political dimension of Plaza de Mayo, in Buenos

Aires. This square has historically been the expression of several civic and collective actions, since

it has been constituted as a part of a whole made by not only the government’s seat but also by a

financial center and a religious institution. We try to understand its conception and reaffirmation

as essentially political space through its previous occupation process. Our hypothesis is that the

meaning of power in Argentinian society is updated through conflicting narratives in the square,

which is not kept from the political struggle that takes place and materialize in the public space.

We analyze official documents, urban planning, specialized press and the mainstream media,

considered through a linking between politics and the city, in order to investigate how the political

players have thought about the square and how they have debated its issues. In order to

comprehend this public space’s transformations as intentional ones, we have chosen two historical

moments: the process of the city’s federalization in the 1880s and the subsequent centenary

celebrations of Argentinian independence, in 1910. The urban transformations that took place in

the city in this first historical moment are closely related to its new status as the capital of the

country, and they express specific interests of a group that intended to perform physical changes

on the city, which corresponded to the political project to nationalize Buenos Aires. This discourse

was impassioned until 1910, the second historical moment chosen here, when, through the political

struggle, several speeches emerged intending to promote certain past events, which led to its

expressions in the urban space. The uniqueness of this study is in trying to comprehend how the

relations between Argentinian politics and the urban space itself are developed and, also, in finding

disruption and continuity in the narratives and ideologies whenever it is possible.

Key-words: public spaces; cities and villages; Plaza de Mayo (Buenos Aires, Argentina) - History

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Resumen

Esta disertación tiene como objetivo investigar la dimensión política de la Plaza de Mayo, ubicada

en Buenos Aires. La plaza, constituida como parte de lo conjunto compuesto no solamente por la

sede de lo gobierno local, sino también de un centro financiero y una institución religiosa, ha sido

históricamente expresión de distintas acciones cívicas y colectivas. Buscamos comprender, desde

lo proceso anterior a la ocupación de este espacio, su concepción y reafirmación como

esencialmente político. Nuestra hipótesis es de que se actualiza lo sentido de poder en la sociedad

argentina por medio de las narrativas en disputa em la plaza que, por tanto, no esta ajena a las

contiendas políticas que se efectivan en lo espacio público y en el se materializan. Hemos analizado

documentos oficiales, planes urbanísticos, periódicos especializados y de la gran prensa,

considerados a partir de una articulación entre ciudad y política para investigar como la plaza ha

sido pensada y debatida. Para comprender las transformaciones de ese espacio como intencionales

han sido escogidos dos momentos: lo proceso de la federalización de la ciudad en la década de

1880 y las posteriores celebraciones de lo Centenario de la independencia Argentina, en 1910. Las

transformaciones urbanas experimentadas por la ciudad en el primer momento están

estrechamente relacionadas con su nuevo status como capital y expresaron intereses específicos de

un grupo que buscaba cambios físicos correspondientes al proyecto político de nacionalización de

la ciudad. Esa retórica fue alimentada hasta 1910, segundo momento escogido, cuando se

perpetuaron discursos que, em medio de las disputas, movilizaron argumentos de valorización de

ciertos eventos do pasado implicando en su expresión em la ciudad. La originalidad de este trabajo

está en comprender, por medio de dos momentos, como se desarrollan las relaciones entre la

política en Argentina y lo propio espacio urbano y identificar posibles rupturas y continuidades en

las narrativas y ideologías implicadas em este proceso.

Palabras-clave: espacios públicos; ciudades y pueblos; Plaza de Mayo (Buenos Aires, Argentina)

- Historia

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Lista de Ilustrações

FIGURA 1: Esquema antigo da Plaza de Mayo ................................................................................... 17

FIGURA 2: Esquema atual da Plaza de Mayo ..................................................................................... 19

FIGURAS 3A 3B E 3C: Mapas da Argentina e de Buenos Aires ..................................................... 34

FIGURA 4: Plano de Belgrano, Flores e dos limites do antigo município [1888] ......................... 56

FIGURA 5: Esquema da cidade de Buenos Aires [1887] ................................................................... 62

FIGURAS 6A E 6B: Recortes de plano topográfico destacando as praças [1840] ........................ 64

FIGURAS 7A E 7B: Vista das duas praças de distintos ângulos ...................................................... 66

FIGURA 8: Recortes de plano topográfico destacando lugares citados [1840]. ............................. 69

FIGURA 9: Porjeto de melhorias da Plaza Victoria [1882] ................................................................. 71

FIGURA 10: Recortes de plano topográfico destacando lugares citados [1840] ............................ 85

FIGURAS 11A E 11B: Fotografia da praça com detalhe da estátua de Belgrano [1875] ............... 88

FIGURA 12: Fotografia da estátua do general Belgrano .................................................................... 91

FIGURA 13: Casa del Gobierno e Casa de Correos unidas pela obra de Tamburini ............................. 97

FIGURA 14: Abertura da Avenida de Mayo a partir da praça ............................................................. 102

FIGURA 15: Esquema da metade leste da Avenida de Mayo ............................................................ 103

FIGURA 16: Comemoração do Centenário na Plaza de Mayo .......................................................... 126

FIGURA 17: Plano da cidade de Buenos Aires [1910] ...................................................................... 128

FIGURA 18: Plaza de Mayo após o projeto de Carlos Thays .......................................................... 129

FIGURA 19: Disposição da pirâmide em meio ao lado oeste da praça .......................................... 137

FIGURA 20: Recorte da aquarela de Emeric Essex Vidal [1817] .................................................. 138

FIGURA 21: Fotografia da pirâmide com destaque para a estátua da liberdade ........................... 139

FIGURA 22: Translado da pirâmide até o centro da praça [1912] .................................................. 148

FIGURA 23A E 23B: Projetos espanhol e francês - “1810-1816-1910” e “Oceano” ................. 161

FIGURA 24A, 24B, 24C E 24D: Projeto belga “Sol” .................................................................... 164

FIGURA 25A E 25B: Detalhes do projeto argentino “Arco de Triunfo” .................................... 166

FIGURA 26: Monumento a Mayo, proposta de Gaetano Moretti e Luigi Brizzolara. ................ 168

FIGURAS 27A E 27B: Representação da Pátria e da Liberdade na proposta dos italianos. ...... 170

FIGURA 28: Representação da posição do monumento em relação à praça ................................ 171

FIGURA 29A E 29B: Representação da Pátria e da Liberdade na proposta dos italianos..........172

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Sumário

Introdução ........................................................................................................................... 12

PARTE 1: Buenos Aires como metonímia da Argentina: as disputas em torno da questão

capital, 1880 ......................................................................................................................... 32

Capítulo 1: Delineando a “questão capital”............................................................................................................33

Capítulo 2: Una sola plaza ......................................................................................................................................... 54

Capítulo 3: Elementos urbanos e configurações simbólicas ............................................................................... 81

PARTE 2: Mayo enquanto paradigma: (re)atualização do passado e construção simbólica,

1910 ..................................................................................................................................... 107

Capítulo 4: Expressões simbólicas no espaço da cidade.....................................................................................108

Capítulo 5: Espaços historicamente assinalados: alegorias e artifícios ............................................................. 132

Capítulo 6: Civismo em debate no monumento à Revolución ......................................................................... 151

Considerações Finais ........................................................................................................ 176

Referências ........................................................................................................................ 183

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Introdução

Nas recorrentes imagens que compõem o repertório visual da história argentina a

presença da Plaza de Mayo, praça central e mais antiga de Buenos Aires, é constante.1 Para quem

transita pela cidade, é praticamente impossível apreendê-la sem passar por esse espaço emblemático

que teve, ao longo do tempo, grande significado como marco político, histórico e sociocultural a

partir de distintos acontecimentos. Parece-nos demasiado sugestivo, portanto, atentar para uma

abordagem dos percursos e das representações dessa praça central de uma das metrópoles

contemporâneas encarando-a como lugar que, ao mesmo tempo, resiste e se transforma em uma

via de mão dupla. Por sua relação imbricada com a própria política, encaramos esse espaço não

apenas a partir de sua função de reiterar o sentido de poder na Argentina, por sua centralidade e

importância, mas também como atualizador dessa noção, pois com seus novos usos atrelam-se

novos significados que, entretanto, relacionam-se diretamente com um sentido já adquirido pelo

espaço ao longo de tanto tempo.

Essas percepções nos fizeram elegê-la objeto central dessa dissertação. Nosso estudo

parte de uma preocupação pontual: compreender a relação que se desenvolve entre as gestões

administrativas e as modificações da cidade de Buenos Aires, considerando um relacionamento

imbricado entre cidade e política e, logo, materialidade e simbolismo, tomando a Plaza de Mayo

como espaço de observação dessas questões. Focamos no período compreendido entre as últimas

duas décadas do século XIX e a primeira do XX, caraterizado por mudanças abrangentes, embora

sem analisar esse intervalo de forma contínua. Nosso recorte é baseado na escolha de dois

momentos por consideramos que estes elucidam importantes questões sobre a complexa trajetória

da modernização de Buenos Aires e de sua relação com esse espaço representativo.

O estabelecimento de nossos recortes espacial e temporal, tão importantes para a

pesquisa historiográfica, nos coloca, inicialmente, uma pergunta: por que a Plaza de Mayo e, ainda,

por que Buenos Aires? A cidade foi, desde sua fundação, um centro articulador e irradiador de

políticas de pensamento. Desde que passou a desempenhar função de capital, Buenos Aires exerceu

sobre o restante do território nacional ampla força simbólica e estética, desempenhando um papel

difusor a partir da idealização de um projeto civilizatório que buscava uma modernização pautada

na construção simbólica de uma capital. Uma vez detentora de capitalidade, o papel da cidade, que

se constituiu voltada para fora, enquanto centro metropolitano, passou a confundir-se com o do

1 Optamos por conservar a grafia original do nome da praça por considerar que esse já carrega consigo grande carga de significados.

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país, atuando como uma espécie de vitrine republicana. Possivelmente por essa razão, a cidade foi

e tem sido visada em diversos planos e projetos urbanísticos ao longo da sua história, que parecem

refletir expectativas almejadas para toda a Argentina. Grande parte dessas estratégias de intervenção

ocuparam-se ou envolveram a Plaza de Mayo justamente por sua representatividade. Partimos aqui

do pressuposto de que ao mesmo tempo se intenta fazer de Buenos Aires representação de um

microcosmos nacional nesse momento e se busca uma igual relação entre a praça e a cidade e,

consequentemente, o país. A praça deve, portanto, ser capaz de representar a Argentina

A capitalidade passou a implicar um programa urbanístico e arquitetônico cujo teor foi

o da monumentalidade e grandiosidade, determinando em grande parte o novo estabelecimento

material do espaço urbano que passou a se pautar em seu novo papel. Isso explica o

estabelecimento de nosso primeiro marco temporal nas mudanças pelas quais a cidade passou em

função de sua federalização. Essa busca simbólica continuou ao longo do começo do século tendo

como mote a comemoração do Centenário da Independência, em 1910, ocasião encarada como

ideal para reafirmar tais sentidos. A capital definia, portanto, uma cidade como lugar de política,

cultura, núcleo de sociabilidade intelectual e produção simbólica, representando o poder que lhe

conferiria visibilidade decorrente da importância política adquirida. Acreditamos que estes dois

momentos, enquanto atualizam o sentido de poder, não são alheios às disputas efetivadas no espaço

público político e materializadas na praça, o que permite, a partir deles, compreender esse espaço

como a própria materialização de um constante processo de negociação de projetos distintos.

Tendo em vista a centralidade e a importância do espaço da praça, uma revisão

detalhada dos numerosos trabalhos que se dedicaram, de alguma forma, a compreender este espaço

nos permite indicar como foram elaboradas as problemáticas trabalhadas na presente dissertação.

Os trabalhos encontrados centraram-se nos movimentos que ocuparam a praça, como fez a

socióloga argentina Silvia Sigal. A autora afirma ser difícil falar de apenas uma praça não só pelas

transformações que ela passou ao longo do tempo – como a mudança de nome, como afirmado

anteriormente – mas também pela multiplicidade de seus usos. Segundo a autora, podemos

delimitar três praças dentro desta mesma a partir de três formas de apropriação distintas: a

patriótica, a peronista e a das Madres.2 Em sua crônica sobre a praça, ela realiza um histórico da

apropriação desse espaço para compreender o aumento e ressignificação desses atos. A escolha

feita por Sigal contempla a de muitos outros autores que, em maior ou menor grau, priorizam

analisar memórias das apropriações e dos movimentos (de muitos ou apenas de um) em detrimento

2 A autora divide seu livro em três partes designadas por suas apropriações estabelecendo um histórico dessas expressões. Ver: SIGAL, Silvia. La Plaza de Mayo: una crónica. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006.

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do espaço físico, em suas múltiplas dimensões e leituras. Há outros estudos em que as relações política

e praça são também problematizados, embora com distintas ênfases. Gabriel Lerman, na mesma linha de

Sigal, em “La Plaza Politica” também configura esse espaço como um fio condutor de ações heterogêneas

em distintos momentos históricos entendendo-o como um amálgama de distintos acontecimentos da

História Argentina marcando a expressão da política nacional. 3 O livro organizado por Mirta Lobato

dedica-se à análise das ruas e praças de Buenos Aires como cenário de manifestações, festas e rituais,

restringindo alguns capítulos a movimentos ocorridos na Plaza de Mayo como as manifestações católicas

e as próprias Madres de Plaza de Mayo.4 Estudos mais recentes tendem a privilegiar o movimento das Madres

no contexto dos outros movimentos.5

É legítimo que cada movimento se aproprie da praça de sua maneira e compreensível que,

ao longo de tanto tempo, um movimento específico tenha estabelecido com este espaço uma singular

relação de pertencimento – como o das Madres. Esse movimento parece ter relevância ao encararmos

essa relação de apropriação – de tal forma que o símbolo do grupo foi incorporado à própria praça por

meio de pinturas no chão – e, talvez, tenha sido o responsável por garantir tamanha visibilidade à praça

em tempos recentes. Nossa opção foi encarar ambos, os movimentos e a praça, como pertencentes a

uma relação dialógica. Analisamos a praça para além de um simples cenário onde se encontram e

manifestam diferentes movimentos por considerar que essa visão limita as possibilidades de análise

sobre a cidade por encará-la apenas como cenário, ou um palco, de processos políticos e sociais.6

De maneira distinta, o livro escrito por Sonia Berjman e Ramón Gutiérrez foca no

espaço físico da praça e suas modificações ao longo do tempo.7 O espaço, constantemente

reelaborado, é carregado de memórias desses projetos políticos e, portanto, possui uma significação

coletiva peculiar para o imaginário dessa nação. Pretendemos seguir a linha de Berjman e Gutiérrez

de maneira ampliada e encarar, além das transformações físicas, o próprio processo de construção

da praça como algo intencional, como também portador de projetos políticos, capaz se mobilizar

3 LERMAN, Gabriel. La Plaza Política: Irrupciones, Vacíos y Regresos en Plaza de Mayo. Buenos Aires: Colihue, 2005 4 LOBATO, Mirta Zaida. (Ed.). Buenos Aires: manifestaciones, fiestas y rituales en el siglo XX. Buenos Aires: Biblos, 2011. 5A última praça enxergada por Sigal é privilegiada em muitos estudos que escolheram focar no movimento das Madres. Outros dedicaram-se a outros movimentos ou encararam o espaço como cenário de ações estudando momentos específicos desta ocupação. O que a revisão nos mostra é que prevalece a tendência de enxergar este lugar como cenário de memórias específicas. Ver: BOUSQUET, Jean-Pierre. Las locas de Plaza de Mayo. Buenos Aires: El Cid, 1983; PONZIO, Maria Fernanda. Las Madres de Plaza de Mayo: à memória do sangue, o legado ao revés. 196f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 6 Esse tipo de análise foi responsável, segundo Josianne Cerasoli e Marisa Carpintéro, pela reiteração de uma “presença oblíqua” da cidade nos estudos históricos. Ver: CARPINTÉRO, Marisa Varanda Teixeira; CERASOLI, Josianne Frância. A cidade como história. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 50, p. 61-101, jan./jun. 2009. 7 BERJMAN, Sonia, GUTIERREZ, Ramón. La Plaza de Mayo: Escenario de la vida argentina. Colección Cuadernos del Aguila. Buenos Aires, Fundación Banco de Boston, 1995.

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aspectos simbólicos. Propomos aqui, portanto, uma discussão desse espaço não só como ocupado

por movimentos ou componente do cenário de projetos políticos, mas como espaço público em

debate que faz dele um espaço político desde a formação reiterando-se como tal.

Esse olhar sobre a praça nos permite enfatizar como as diversas apropriações políticas

tiveram sua importância e foram também incorporadas pela própria praça de maneira a tornar

complicado pensá-la dissociada desta multiplicidade de movimentos e apropriações e das tensões

políticas que rodeiam sua história. Já que a praça ao mesmo tempo é incorporada pelos movimentos

sociais e os incorpora, seu espaço é continuamente ressignificado, constituindo novas camadas de

significado que se sobrepõem por ser um espaço particularmente utilizado como expressão de

poder. A luta política se dá não só na esfera simbólica, mas também na apropriação do espaço

público. Na praça se acirra uma tensão política, como espaço de disputa cuja visibilidade alcança

toda a nação. Esse sentimento de pertencimento e de visibilidade historicamente foi responsável

pela criação de um espaço que se volta contra si mesmo a partir de novas apropriações.

Um estudo dos espaços coletivos na cidade nos permite constatar a complexidade de

formas e funções por eles adquiridas. A praça constitui um importante espaço urbano na cultura

ocidental e, como espaço coletivo, recebeu acontecimentos relevantes da vida cotidiana estando

vinculada aos momentos de transformações das cidades. Por meio de processos de apropriação,

passam constantemente por ressignificações, configurando-se como locais privilegiados, portanto,

por seu caráter coletivo e multifuncional, sendo elemento fundamental de políticas de intervenção

urbana.8 É um espaço capaz de se adaptar às transformações das cidades e que permite apropriações

diversas que fazem com que adquira, ao longo da história, várias formas e funções, mas continue

essencialmente como um espaço coletivo de vital importância na vida urbana.

Os diferentes usos historicamente feitos das praças são aparentes. Uma primeira

acepção do vocábulo plaza o define como um espaço da cidade destinado ao comércio, à reunião

e à realização de festividades de todos os tipos. Vinculado a esse primeiro, uma segunda definição

fazia alusão ao seu caráter público como lugar onde se conhecer notícia, onde seriam comunicadas

normas e decisões governamentais.9 Assim, estava relacionada com o tornar público em uma

referência implícita a um espaço que possibilitava tornar algo conhecido por todos. Essas diferentes

8 Júnia Caldeira dedicou-se a compreender a praça brasileira e, para isso, empreendeu grande análise sobre a trajetória de conformação desse espaço ao longo do tempo. CALDEIRA, Júnia Marques. A praça brasileira: Trajetória de um espaço urbano – origem e modernidade. 2007. 434f. Tese (Doutorado em História), Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2007. 9 NOVICK, Alicia., FAVELUKES, Graciela. Plaza. In: TOPALOV, Christian, BRESCIANI, Maria Stella Martins, DE LILLE, Laurent Coudroy, D’ARC, Hélène Rivière (Org.). A aventura das palavras da cidade, através dos tempos, das línguas e das sociedades. São Paulo: Romano Guerra, 2014, p. 498-506.

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acepções do termo relacionam-se aos usos agregados que, longe de serem homogêneos,

demonstram a historicidade desse elemento urbano.

Há mais de quatro séculos, a Plaza de Mayo configura-se de forma central no espaço

urbano da capital e é derivada do espaço que desde a colonização espanhola foi dedicado à praça

principal da cidade.10 Foi criada desde sua segunda fundação, em 1580, chamada anteriormente de

Plaza Mayor, estabelecendo-se como local de acontecimentos históricos relevantes tal como a

Revolución de Mayo, em 1810 - movimento do início do século XIX visando a emancipação do vice-

reinado do Prata da Coroa espanhola – que deu nome à praça.11 O quadrilátero encontra-se hoje

no bairro de Monserrat, e é delimitado pelas ruas Hipólito Yrigoyen, Balcarce, Bernardino

Rivadavia e Simón Bolívar.12 Três linhas de metrô possuem estações próximas e a ela se ligam

importantes avenidas como a Avenida de Mayo, que a conecta com a Plaza del Congresso, e as Avenidas

Diagonais Sul e Norte – configuração material que acentua sua centralidade na dinâmica urbana.

Na época da segunda fundação da cidade, a área da praça era metade da atual e

composta apenas por seu setor oeste: o perímetro destinado a ela ocupava, portanto, a manzana

compreendida entre as ruas que atualmente chamam-se Rivadavia, Hipólito Yrigoyen, Defensa e

Bolívar.13 A outra manzana, formada pelas três primeiras ruas além da atual Balcarce jamais foi

edificada, deixando-a abandonada até quando, posteriormente sofreu ações de grupos jesuítas. O

setor leste se destinava ao forte da cidade, posteriormente, construído mais próximo do rio (letra

A, fig. 1), deixando essa área livre. A metade leste, em frente ao forte, foi ocupada por jesuítas que

levantaram capelas e outros edifícios, cujo espaço aberto quando demolidos mais tarde deu origem

à Plaza de Armas, destinada a exercícios militares, chegando a chamar-se posteriormente Plaza del

Mercado e, em 1811, Plaza 25 de Mayo. Já a metade oeste mudou de nome apenas em 1806-1807,

passando a denominar-se Plaza de la Victoria remetendo à contenção de invasores ingleses que

tentaram tomar a cidade nesses anos.

Ainda no século XVI se construiu nessa praça a Igreja Matriz da cidade, transformada

em catedral depois de 1620, sofrendo reedificações constantes (letra C, fig. 1). O cabildo, edifício

destinado à administração metropolitana, foi inaugurado em 1740 (letra D, fig. 1). Ainda na praça

10 BERJMAN, Sonia. La plaza espanola en Buenos Aires, 1580-1880. Buenos Aires: Kliczkowski, 2001. 11 Ver: LLANES, Ricardo. Antiguas Plazas de la Ciudad de Buenos Aires. Cuadernos de Buenos Aires. n48. Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires. Buenos Aires, 1977. 12 O bairro de Monserrat é um dos integrantes da Comuna 1, uma das quinze unidades administrativas nas quais se divide a Cidade Autônoma de Buenos Aires, juntamente com os bairros de Retiro, San Nicolás, Puerto Madero, San Telmo e Constitución. 13 Optamos por manter a grafia original da palavra manzana pela dupla acepção do termo em distintos países poder causar certa confusão de significados. Nesse caso, nos referimos a denominação de um espaço urbano delimitado por ruas por todos os lados.

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localizavam-se o Teatro Colón (letra B, fig. 1) e a antiga sede do Congreso de la Nación (letra E, fig. 1).

Na segunda metade do século XVIII foi sugerida a construção de um edifício destinado a ser o

mercado na cidade. A Recova foi levantada a partir de 1803 e era um edifício alongado com várias

arcadas que cruzava o meio da praça, dividindo-a em duas e separando-as fisicamente. A Recova foi

um marco da praça até sua demolição em 1883, que uniu as praças ampliando sua superfície

precisamente quando passou a chamar-se Plaza de Mayo. Uma série de modificações, tanto nas

edificações públicas de seu entorno quanto na praça propriamente dita, sucedem-se e se tornam

frequentes, sobretudo ao longo do XIX.

FIGURA 1: Esquema representativo do entorno do espaço das duas praças tendo o Rio da Prata à leste. Nossa intenção é localizar os pontos citados no texto ainda que estes não sejam temporalmente concomitantes. Por isso, optamos por indicar as manzanas nas quais estes se inserem já que a tentativa de representação dos próprios edifícios poderia esbarrar em incongruências oriundas do recurso utilizado. A intenção não é representar fidedignamente a realidade, mas uma localização aproximada que permite ao leitor acompanhar as modificações materiais. FONTE: Feito pela autora

Um ano após a Revolución de Mayo, foi decidido comemorar a data com um monumento

público. Se levantou, portanto, um obelisco no centro da ainda Plaza de la Victoria, conhecido como

Pirámide de Mayo. A construção, em 1811, desse primeiro monumento pátrio formalizou a praça

como lugar cívico e cenário arquitetônico e urbano em constante transformação. Esse foi

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reformado em 1856 por Prilidiano Pueyrredón que revestiu com argamassa a base adicionando

também relevos decorativos. O escultor francês Joseph Dubourdieu foi o autor da estátua da

liberdade que coroa a pirâmide, além de outras estátuas ao redor do monumento que foram

posteriormente retiradas. Em 1912 o monumento foi transladado até o centro da praça, onde se

encontra atualmente (letra E da fig. 2). Em 1873 foi inaugurada a estátua equestre de Manuel

Belgrano, atualmente localizada em frente à Casa Rosada. O forte de Buenos Aires, fortaleza

destinada à sua defesa e utilizada também como sede das autoridades residentes na cidade, tinha

uma muralha de pedra e era cercado por um fosso conectando-se à praça a partir de uma ponde

levadiça no lugar atualmente ocupado pela Casa Rosada, sede do governo federal, pelo qual foi

gradualmente substituído. O forte foi finalizado em começos do século XVIII e localizava-se sobre

o barranco do Rio da Prata que chegava a menos de cem metros da Plaza de Mayo. Ainda na década

de 1850 seu alegado mal estado de conservação motivou o governador a demolir seu lado sul – na

direção da atual rua Hipólito Yrigoyen – destruindo suas muralhas para construção da Aduana

Nueva nos terrenos obtidos sobre o rio. Essa situava-se de frente para o rio, atrás do forte,

projetada pelo engenheiro Edward Taylor.

Na década seguinte, o presidente Bartolomé Mitre ocupou o setor norte do edifício,

como sede presidencial, a partir do seu restauro e da criação de um jardim em sua frente.

Respondendo a um incêndio em suas dependências, o presidente subsequente, Domingo Faustino

Sarmiento, reparou-o novamente agregando uma varanda a seu primeiro piso, rodeando-o de um

jardim e pintando-o de rosa. Em sua seção sul, vazia desde a demolição do forte, foi construído

um edifício para Correios e Telégrafos, na gestão do mesmo presidente, finalizado em 1879. Em

1882, o presidente Roca decidirá agregar aos dois edifícios restantes uma fachada simétrica, sendo

esses apenas separados por uma rua. A remodelação da fachada da Casa del Gobierno se diferenciava

da dos correios por uma varanda de cinco arcos. Apenas em 1885 se começou um plano integral

de unificação da sede da presidência iniciado com um corpo central em formato de pórtico na

fachada fechando a rua que então os separava e demolindo o que ainda restava dos edifícios

anteriores para expandir o edifício até o rio e a rua Rivadavia. A Casa del Gobierno substitui,

gradualmente, os vestígios do antigo forte ainda antes do século XX intensificando as relações

daquele espaço não só com a cidade, mas com a Argentina como um todo.

Essa composição paulatina, porém, não foi homogênea ou imune a controvérsias. Em

meio à preparação para as celebrações do Centenário em 1910 há uma forte tentativa de

apagamento de um passado associado com o período colonial que conduz a perdas significativas

no edifício do Cabildo que passa a ser retomado em um movimento contrário a partir da década de

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1930. A abertura da Avenida de Mayo (fig. 2) restringiu sua área que passou a ocupar apenas metade

da quadra anterior (letra C, fig. 2) dividindo-a com o Palacio Municipal de la Ciudad (letra B, fig. 2).

Atualmente, a Casa Rosada e a Catedral continuam em seus respectivos espaços e novas instituições

passaram a incorporar esse espaço, tais como o Banco de la Nación e a Administración Federal de Ingresos

Públicos (letras A e D, fig. 2) substituindo, respectivamente, o Teatro Colón e o antigo Congreso.

Resultantes de todos esses anos da trajetória desse espaço, tanto o círculo ovalado no centro,

reservado para pedestres, quanto sua jardinagem simétrica foram alvo de fervores de multidões em

diversos momentos: fosse cumprindo rituais cívicos ou irrompendo em ocupações das mais

distintas – pelos mais diversos motivos a praça sempre foi espaço da presença constante de corpos.

Recentemente foi, mais uma vez, alvo de ações do Bicentenário que, visando uma exibição triunfal

da cidade, envolveu também o eixo formado pela Avenida de Mayo e Plaza del Congreso.14

FIGURA 2: Esquema representativo do espaço atual da praça. Já é possível perceber, as mudanças no traçado da praça – que, com a supressão da Recova que a dividia em duas, agora configurava uma única praça espaçosa e com bordas curvas substituindo sua forma anterior – a abertura da Avenida de Mayo além das Diagonais Norte e Sul à direita. FONTE: Feito pela autora

A plaza é foco deste estudo por esse caráter público que permite uma clara

compreensão do entrelaçamento da esfera política, dimensão simbólica e a própria materialidade

14A história da praça foi muito bem sintetizada pelo projeto “Memoria Visual de Buenos Aires” dirigido pelos arquitetos Graciela Rapponi e Alberto Boselli que, baseados em fotografias, desenhos e documentos, buscaram reconstruir as modificações da cidade a partir de uma trajetória visual que mostra estas transformações históricas em alguns espaços.

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da cidade. De todos esses anos de história restam algumas lembranças visíveis como o Cabildo,

ainda que incompleto, a Catedral, renovada e também a Casa del Gobierno, cujo edifício foi reduzido

a sua parte sul. Muito do que se passou por ali, entretanto, bem como a própria materialidade da

praça não pode ser visivelmente notada ainda hoje, mas fazem parte de sua história. História esta

construída a partir desse espaço que, de acordo com nossa hipótese, conserva seus sentidos

comprimidos: concentra memórias e conclama diversos signos ao longo do tempo.

É nesse sentido que a escolha dos dois momentos é uma opção metodológica,

correspondente ao nosso pressuposto de que não é possível dissociar esse espaço das tensões

políticas a ele associadas e, ao mesmo tempo, devido a isso, qualquer momento de sua história

poderia evidenciar esta relação. Por compreendermos que toda a trajetória da praça aprofunda e

amplia sua dimensão política, não acreditamos que essa tenha uma origem em um momento

determinado, mas que, ao contrário, é reiterada com a partir de todos estes numa sobreposição de

acontecimentos que a transformam simbolicamente.

A carga simbólica concentrada nesse espaço tem concentrado ao longo do tempo

acentua nosso interesse de compreensão de suas relações com a cidade e o pais, que parecem ter

se configurado de forma singular. Por isso, o intuito que percorremos é a busca da associação dessa

dimensão simbólica com a material, já que ambas são elementos constitutivos da cidade.

Concordamos com estudos que têm ressaltado a importância de se ampliar as análises sobre as

cidades como objeto para a história, a fim de permitir uma compreensão mais rica a partir de

narrativas e vivências que cumprem diversos papéis rotineiramente – sejam políticos, econômicos,

sociais ou culturais.15 Todas essas dimensões constituem elementos relevantes nas intepretações da

História Urbana.

Henri Lefebvre apresenta uma tipologia do espaço que distingue: espaço físico, mental

e social, tentando unificar a teoria espacial e engendrar em uma mesma unidade teórica campos

15 Estudos formulados a partir dessas perspectivas ajudaram a definir novos caminhos para os estudos das cidades. O aporte da filósofa francesa Françoise Choay foi essencial neste sentido já que a autora se deteve a analisar a relação entre a dimensão e política e, portanto, simbólica e a leitura das cidades. A também filósofa Anne Cauquelin afirma que a cidade é memória do passado e que o tempo está presente na constituição do espaço gerando um amálgama de diferentes camadas de sentido. Estudos realizados no Brasil também seguiram esta tendência. Estudos realizados pela historiadora Maria Stella Bresciani a partir dos anos 1980 versam sobre a questão urbana a partir de uma percepção plural ressaltando as imagens suscitadas pela cidade e como estas evidenciam códigos culturais e abrem novas perspectivas para os estudos das cidades. O trabalho de Cristina Freire é um exemplo desta ampliação ao analisar a justaposição de símbolos na perspectiva territorial utilizando dois monumentos de São Paulo como exemplos para identificar as camadas depositadas no espaço da cidade. Outros autores também seguiram esta tendência como veremos no decorrer do projeto. Elegemos esses trabalhos como representativos de uma produção maior que começou a conceder maior importância aos aspectos por nós destacados. Ver: CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades – antologia. São Paulo: Perspectiva, 1979; CAUQUELIN, Anne. Essai de philosophie urbaine. Paris: PUF, 1982; BRESCIANI, M. S. As sete portas da cidade. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, 1981, p. 10-15; FREIRE, Cristina. Além dos mapas: os monumentos no imaginário contemporâneo. São Paulo: SESC/Annablume: FAPESP, 1997.

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separados.16 O exercício de analisar a praça segue estes princípios: separar a distância entre essas

esferas parece promissor para este estudo, ainda que exija cautela para contornar esquematismos

de uma tipologia. A experiência sensível tem seu lugar, ao lado do imaginário, nessa produção

espacial, tal como ressaltou o autor ao enfatizar a importância de projeções, símbolos e utopias.

Essa dimensão refere-se ao processo de significação conectado aos símbolos que se relacionam a

materialidade do espaço como um veículo transmissor de discursos ligados a teorias, definições e

escolhas. A praça não se encerra em sua materialidade. Ao contrário, seu espaço físico é a

materialização do que Lefebvre chamou de espaço mental, ou seja, da forma como este foi

concebido previamente em pensamento e que está intrinsecamente ligado à produção de

significado.17

Embora tenham tido importância inegável para as sociedades americanas já como parte

do processo colonizador, a partir do final do século XIX é possível notar o papel político de

destaque gradualmente assumido pelas cidades no continente. O crescimento acelerado das

economias capitalistas mundiais, no bojo da chamada segunda revolução industrial, estimulou um

aumento da dinâmica da urbanização nas Américas. A América Latina recebeu desde então grande

quantidade de imigrantes. Segundo estudo comparado sobre o período de 1876 a 1909, a Argentina

recebeu pouco mais de três milhões de imigrantes dentre registrados e não registrados.18 Cabe

ressaltar a importância de Buenos Aires nesse contexto como centro do espaço nacional, seja na

dimensão política, econômica ou cultural, acentuada desde o final do século XVIII e, na prática,

formalizada como predomínio administrativo em 1880 com sua federalização. Consolidou-se a

idealização de um projeto civilizatório que transformaria a Capital e englobaria o país de forma

mais geral – buscando uma modernização pautada na construção simbólica de uma capital.19

Como atesta Christophe Prochasson, ampliar as indagações do campo político não se

reduz a aprofundar a consideração de sua dimensão cognitiva, mas também as simbólicas e afetivas,

sendo feito com um conjunto de signos que conclamam identidades, transbordando das

instituições que habitualmente a abrigaram.20 Os modos de enunciação da questão política também

16 LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford, OX, UK ; Cambridge, Mass., USA: Blackwell, 1991. 17 Cabe ressaltar aqui que acompanhamos especificamente essa dimensão do pensamento do autor, ainda que tenhamos ressalvas a outras questões ideologicamente marcadas abordadas por ele e que, a nosso ver, não nos ajudam nesta análise específica. Assim, outros autores, como os indicados anteriormente na nota 3, complementarão nossa análise sobre a dimensão simbólica. 18 KLEIN, Herbert. A integração dos imigrantes italianos no Brasil, na Argentina e Estados Unidos. Revista Novos Estudos. CEBRAP, São Paulo, n.25, p. 95-117, out. 1989. 19 HARDOY, Jorge Enrique, MORSE, Richard. Repensando la ciudad de America Latina. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1988. 20 PROCHASSON, Christophe. Emoções e política: primeiras aproximações. Varia História. Belo Horizonte, v.21, n.34, p. 305-324, jul. 2005.

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constituem tema central da área de concentração “Política, Memória e Cidade”, na qual se insere

este estudo, cujo referencial consiste na exploração das dimensões assumidas pelo político a partir

de diversas linguagens, reconhecendo, portanto, a imbricada relação entre história e política.21 Esta

última dimensão, segundo Hannah Arendt, existe quando os homens agem e se comunicam

coletivamente, o que requer um espaço onde estes possam se encontrar e interagir através da ação

e da palavra.22 A autora defende, portanto, uma noção de esfera pública como lugar que gera a vida

política. A atualização dessa esfera pública tem como condição o espaço público amparado pela

ressignificação, como afirmou Pechman, do próprio sentido da cidade no plano objetivo quanto

subjetivo da experiência urbana.23

A categoria de espaço público é utilizada em diversos campos com muitas intenções.

É um espaço público em transformação, que traz à tona o caráter conflitivo da composição do

espaço urbano e das apropriações – ininterruptas – da cidade. Como afirma Adrían Gorelik, esta

categoria funciona como uma categoria-ponte que coloca em um mesmo horizonte conceitual duas

dimensões da sociedade: a da política e a da cidade.24 O conflito, segundo o autor, é inerente à

definição do espaço público. Cabe aqui compreender como funcionam essas representações do

espaço público e como operam na cidade que se transforma. A proposta do autor é que além de

considerar a capacidade da categoria de colocar unidas diferentes esferas, convenha decompor estas

partes para compreender o que se passa com a cidade e com a política – agregando a este espaço

as qualidades sociais e políticas.

O resultado disso são diferentes formas de percepção e apropriação da materialidade

do espaço urbano que operam nesses processos políticos. Assim, diversas linguagens, de variadas

ordens, incidem sobre esse espaço urbano e se configuram como a materialização de um repertório,

como nos mostra a arquiteta, interessada em história da arquitetura e da cidade, Virginia

21 As pesquisas desenvolvidas nesta área destacam as múltiplas linguagens constitutivas das representações e do imaginário, atentando para a contribuição de sentimentos e sensibilidades nas ações políticas buscando desvendar os caminhos percorridos pelas linguagens políticas e como podemos compreender o político. Alguns livros sintetizaram esse interesse destacando a importância de compreender as diferentes linguagens que operam nos processos políticos. Ver: BRESCIANI, Maria Stella Martins, NAXARA, Márcia Regina Capelari (org.). Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP: Ed. da UNICAMP, 2000; SEIXAS, Jacy Alves de; BRESCIANI, Maria Stella Martins; BREPOHL, Marion. (org.). Razão e Paixão na Política. Brasília: Ed. da UnB, 2002; SEIXAS, Jacy Alves de. CERASOLI, Josianne Frância. NAXARA, Márcia Regina Capelari (org.). Tramas do político: linguagens, formas, jogos. Uberlândia: Edufu, 2012. 22 ARENDT, Hannah. As esferas pública e privada. In: A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.59-83. 23 PECHMAN, Robert Moses. No avesso dos cartazes, a cidade perversa. Risco: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo. Programa de Pós-graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo EESC-USP, n. 20, p.6-13, 12 jul. 2014. 24 GORELIK, Adrian. O romance do espaço público. Arte & Ensaios. EBA/UFRJ n. 17. Rio de Janeiro, n.17, p.189-205. 2008.

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Bonicatto.25 A partir de sua análise de um projeto educacional de Ricardo Rojas encomendado pelo

governo temos subsídios para entender essa orquestração de iniciativas em prol de uma imagem

nacional. O trabalho de Rojas se inscreve na comemoração oficial do centenário da independência

política e na busca por uma identidade argentina: o espaço urbano se tornava alvo de sua política

educativa mediante ações que representam a consolidação destas posturas ideológicas como

incorporação de monumentos, revisão de decoração, mudança de nomes de ruas e praças, dentre

ouros. A arquitetura aparece, portanto, como elemento que colaborou para fortalecer a alma

nacional e que ampliou o raio de ação destas ideais sendo convertida em veículo portador de

valores. Diferentes linguagens são mobilizadas para dar voz a esse projeto e para materializar uma

ideologia do que significaria ser argentino: educacionais, estéticas, artísticas, etc.

Em relação a aspectos políticos e culturais mais abrangentes, a partir de sua pesquisa

sobre as representações do pan-americanismo sob o ponto de vista dos Estados Unidos, sobretudo

na arquitetura, Robert Alexander González nos concede arcabouço para pensar como as imagens

materializadas no ambiente construído da cidade são alimentadas por dado repertório cultural.26 A

partir do exemplo específico de como se forjou a ideia de pan-América nos Estados Unidos,

González mostra esse ambiente como a materialização sensível de ideologias em disputa. Esses

projetos revelam como as expressões arquitetônicas ajudaram a moldar a construção ideológica de

um determinado imaginário. Nossa intenção aqui é seguir caminho similar: compreender como

essa materialidade deve ser lida, no caso argentino da Plaza de Mayo, para que possamos identificar

discursos que se expressam em suas transformações.

Consideramos que o conceito de “capitalidade” delineado em “Europa das Capitais”

por Giulio Carlo Argan que pode também ser aproximado ao caso de Buenos Aires.27 Segundo tal

conceito, as cidades eleitas para capitais perderiam seu caráter municipal e passariam a funcionar

ao mesmo tempo como a imagem do Estado e aparelho do seu poder. Buenos Aires ganha assim

uma posição de destaque em meio à nação argentina sendo representante desse sentimento maior

de pertencimento nacional. Assim, focar este estudo na Plaza de Mayo é essencial, pois partimos do

pressuposto de que esta praça configura um espaço físico no qual a cidade de reconhece como tal.

Esse referencial norteia a análise dos dois momentos específicos, selecionados neste

estudo. O momento de reforma da praça antes ainda da virada do século XIX cujas as tramas

25 BONICATTO, Virginia. La materialización de una imagen nacional: Ricardo Rojas en la arquitectura argentina. Boletín de Estética. Buenos Aires: Cientro de Investigaciones Filosóficas/Programa de Estudios em Filosofía del Arte. Ano 6, n.15, p.3-29, dez.2010-mar.2011. 26 GONZÁLEZ, Robert Alexander. Designing Pan-America: U.S. architectural visions for the Western Hemisphere. Austin-TX: University of Texas Press, 2011 27 ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Organização de Bruno Contardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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políticas envolveram a federalização da cidade deram origem a disputas que se refletiram nas

reformas realizadas nas cidades. Neste, é possível destacar um projeto que está em consonância

com a ideia pretendidas para a nova capital. Fica claro ser o espaço configurado a partir destas

disputas e que é em resposta as próprias mudanças de poder político e social que a nova capital vai

se delineando. Entre os festejos e comemorações que tiveram lugar na praça, sua importância fora

ratificada em meio à modernidade buscada pela cidade como símbolo e expressão do poder

representado pela capital nacional. O segundo momento, o Centenário da Independência, permite

perceber sua inserção em uma tentativa de intervenção pautada ainda na importância desta praça

como centro cívico. As ações concedem à praça espaço central não só por sua importância

tradicional, mas pela necessidade de manutenção futura deste caráter de praça principal.

As possibilidades de investigação histórica sobre cidades são das mais variadas. Para

compreendermos os processos, sejam políticos, sociais ou culturais, que compõe o espaço urbano,

contamos também com uma gama variada de fontes. Inspirados principalmente no ensaio da

historiadora Maria Stella Bresciani e seu objetivo de abordar diferentes entradas para os estudos

urbanos, buscamos aqui trabalhar com essas possibilidades problematizando conceitos e questões

vigentes no debate entre historiadores que se dedicam à História Urbana.28 Estas são, segundo a

autora, portas conceituais relacionadas a saberes antigos e novos que abrem infinitas opções para

o estudo das questões urbanas.29 Nessa perspectiva de ampliação dos estudos sobre cidades,

acreditamos com Bresciani ser possível construí-los a partir de diferentes linguagens, considerando

áreas – portas conceituais – constituintes da configuração do urbano na contemporaneidade.

As contribuições de Françoise Choay, que indicou uma relação direta entre posições

político-filosóficas e os modos de compreensão das cidades, introduziram características centrais

para a compreensão das cidades.30A relação indicada pela autora nos faz considerar

metodologicamente a análise das concepções de espaço presentes nesses projetos urbanísticos –

buscando-se, comparar diferentes temporalidades. Para os historiadores é interessante percorrer

estas fontes já que aglutinam diversas camadas sobrepostas do tempo. A consequência direta da

tendência de encarar a cidade e a seus saberes de maneira ampliada, a aproximação destes campos

com as ciências humanas demanda uma definição de objetos, fontes e métodos de análise para uma

melhor compreensão de como esta aproximação toma forma em termos de pesquisa. A principal

consequência desse processo é o alargamento das investigações históricas, já que novos temas

28 BRESCIANI, Maria Stella Martins. As sete portas da cidade. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, São Paulo, p. 10-15, 1981. 29 BRESCIANI, Maria Stella Cidade e história. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi (Org.). Cidade: história e desafios, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002, p. 16-35. 30 CHOAY, Françoise. Op. Cit.

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entram em cena, modificando as narrativas e também possibilitando a revisão daquelas tradicionais

à luz de novas fontes com as quais os historiadores não tinham familiaridade.

Planos e projetos – Cartográficos ou não – buscam incidir, pensar e modificar o espaço

urbano. Tentamos entender como essas tendências teórico-metodológicas ajudam a incorporar

esses documentos e também nos fazem refletir de novas maneiras sobre os documentos

tradicionais, que à luz dessas novas metodologias passam a ser encarados como portadores de

discursos e ideologias que estão a todo momento se apropriando da cidade. Nossa orientação

metodológica para investigar a produção intelectual desses atores se sustenta nesses pressupostos,

buscando os diversos usos dos saberes constitutivos do campo do urbanismo, bem como seus

distintos vínculos teóricos e políticos. Retomando a importância de estudar tais documentos,

preocupamo-nos com os distintos significados da consolidação de uma proposta urbanística para

o espaço da cidade e, principalmente, em como estes foram objeto de disputa por distintos agentes

e interesses que os guiavam. Ainda que prováveis condições de ruptura política tenham inibido as

tentativas de implementação do projeto, elas não impediram que este expressasse determinado

pensamento sobre a cidade e suas necessidades que continuou reverberando. Os planos e projetos

compõem a leitura da cidade fazendo parte do processo de pensa-la, sendo importantes para a

produção do conhecimento e até para a estruturação de instituições e órgãos públicos.

Para realização desse trabalho lidamos com uma ampla variedade de fontes, consultada

em distintos arquivos da cidade de Buenos Aires ou disponíveis online. Nas Bibliotecas Tecnicas del

Ministerio de Hacienda tivemos acesso a planos urbanísticos propostos para a cidade de Buenos Aires

além de documentos sobre seus edifícios e monumentos. Esses também foram consultados em

outros arquivos como a Biblioteca Nacional Manuel Belgrano, a Sociedad Central de Arquitectos, o Museo

da Ciudad. No Archivo Histórico de la Ciudad de Buenos Aires consultamos um fundo destinado a

Municipalidade da cidade do final do século XIX até a década de 1940. Este concentra documentos

oficiais, planos e decretos que representam importante acervo de origem estatal sobre o processo

de expansão urbana e modernização. Algumas Memórias Municipais, relatórios de gestão, foram

conseguidas nesse arquivo em formato digital e outras já se encontravam disponíveis no acervo

online da Biblioteca Esteban Echeverría que também dispõe de censos municipais, estatísticas,

periódicos, dentre outros. O Instituto de Arte Americano e Investigaciones Estéticas “Mario J. Buschiazzo”

permitiu a consulta de amplo um catálogo de livros e revistas especializados em história, estética e

patrimônio urbano e arquitetônico especialmente para a América Latina e Argentina. No Archivo

General de la Nación Argentina consultamos grande acervo fotográfico que permite notar mudanças

da cidade. Os documentos relativos a debates oficiais como diários de seções legislativas e atas

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foram obtidos em instituições como a Academia de la Historia, as Bibliotecas del Congreso, o Museo Mitre

e a Direccion General Centro Documental de Información y Archivo Legislativo (CEDOM) da legislatura

portenha nos quais coletamos documentação referente ao governo e a administração local, leis,

regulamentos, boletins e decretos.

O debate público em torno das transformações sofridas pela cidade ou propostas para

ela tem um espaço de destaque, ainda, em revistas técnicas que revelam as distintas intenções para

com o edifício e a própria cidade. A Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo (FADU) da

Universidad de Buenos Aires (UBA) possui digitalizado um amplo acervo de revistas técnicas que

abarcam esse período. Tanto na Biblioteca Nacional Mariano Moreno quanto na Hemeroteca José

Hernandez consultamos acervos de jornais importantes para a cidade, e foi possível encontrar

disponível online publicações de revistas técnicas de arquitetura, também essenciais para o

acompanhamento do debate público destas questões.

A própria maneira de projetar a cidade parte de propostas nem sempre consensuais e,

por isso, o olhar lançado para estas fontes deve valorizar visões que buscam discutir, argumentar,

justificar, propor e sugerir modificações para o espaço da cidade em diversos sentidos. Assim, elas

nos ajudam a compreender como esses lugares são concebidos de distintas maneiras e, como esse

conflito pode ser utilizado para verificar a relação das modificações materiais da cidade com

projetos políticos. A ideia é entrecruzar as abordagens presentes nos documentos e compreender

suas representações. A história em diálogo com outros saberes permite entrecruzamento da leitura

de mapas, projetos, fotos e outras fontes possibilitando trabalhar com as noções de tempo e espaço

sob diferentes perspectivas acompanhando distintos momentos históricos a partir de outras

práticas discursivas.

Portanto, para compreender as intervenções no espaço da cidade é necessário atentar

para as mudanças da própria política. Como Carl Schorske observou no caso de Viena, também

aqui o entrelaçamento entre cidade e política se faz muito presente.31 A construção de um conjunto

arquitetônico na capital austríaca – na chamada Ringstrasse – foi uma das grandes realizações do

planejamento urbano e da imaginação liberal do século XIX.32 Os variados estilos de seus edifícios

parecem reunidas harmoniosamente pelo compromisso com seus significados simbólicos de estilo.

Entretanto, o que Schorske traz à tona nesse processo é o conflito que jaz escondido e solidificado

nesta suposta harmonia. Afinal, durante sua construção, a Ringstrasse foi um espaço contestado e,

31 SCHORSKE, Carl. Viena Fin-de-siècle. São Paulo: Cia das Letras, 1989 32 A palavra Ringstrasse significa “rua do Anel” e faz referência a uma estrada que circularia a cidade tendo sido construída de acordo com uma antiga muralha, que servia para proteger a cidade. O autor se dedicou a analisar seu conjunto arquitetônico compreendendo sua relação com o discurso que os materializava.

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portanto, resultado de lutas entre subgrupos que compunham as tentativas de moldar a política em

mudança. A teoria de Schorske evidencia os conflitos ocultos na cidade, porém, que são tão

importantes em sua constituição. A Plaza foi/é um espaço constantemente contestado. Não só sua

ocupação, mas mesmo os projetos para esse espaço são resultantes de disputas políticas entre

interesses de subgrupos participantes da elite e suas tentativas de moldar a política e a cidade de

Buenos Aires que passava por mudanças rápidas. Fica claro que nesse ambiente construído

projetam-se reivindicações de poder e de valores culturais assim como as verificadas no caso

austríaco, e cabe investigar historicamente como se dá esse processo.33

A trajetória escolhida para efetivar a escrita de nossas reflexões também não está imune

a muitas das questões levantadas aqui. Inicialmente buscávamos fugir de uma divisão estritamente

cronológica e, com isso, linear. Apesar do mote da divisão inicial ser os dois períodos escolhidos,

acreditamos que conseguimos escapar dos problemas dessa abordagem principalmente porque as

questões elencadas não estão dessa forma descritas. Algumas questões situadas em uma ou outra

parte tangenciam também o outro período. Apesar também de considerar que alguns assuntos

dentro do texto possuíam autonomia para constarem em capítulos separados tentamos evitar uma

divisão que separasse instâncias que metodologicamente escolhemos analisar em conjunto, tais

como política e materialidades.

Assim, a escolha que se efetivou como melhor opção foi uma divisão inicial em duas

partes divididas cada qual em três capítulos. A escolha se efetuou pela impressão de não estancar

partes que ao nosso ver deveriam estar relacionadas, ainda que o processo de escrita tenha,

inevitavelmente, esse efeito sobre nossas reflexões. A primeira parte destina-se as últimas décadas

do século XIX e o processo de federalização enquanto a segunda foca no período do Centenário,

já no século seguinte. Na primeira parte, dedicamo-nos a compreender o processo de federalização

e suas implicações para as mudanças materiais da cidade fugindo, entretanto, de uma ideia que

relaciona ambas de maneira mecânica e rígida. Para isso, compreenderemos também a

institucionalização da capital a partir dos rearranjos estabelecidos na estrutura municipal e os

elementos urbanos envolvidos nas disputas simbólicas que a praça suscita – os elementos

escolhidos estão intrinsecamente relacionados com a própria praça, afinal, fizemos uma opção

metodológica de compreendê-la não como um único espaço urbano apenas, mas como uma junção

de artefatos que corroboram as narrativas simbólicas que se constroem em cima desta.

O que devemos atentar evitando essa ideia de tomar em conta somente os processos

de transformação material ou as discussões de disciplinas preocupadas com o desenho urbano é a

33 SCHORSKE, Carl. Museu em espaço contestado: a espada, o cetro e o anel. In: Pensando com a História: indagações na passagem para o modernismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2000

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dinâmica própria da gestão pública, os processos de construção institucional e administração do

fenômeno urbano. Para isso, necessitávamos compreender a organização da administração

municipal e seus vínculos com a federal além das funções ocupadas pelos distintos profissionais e

personagens na gestão da cidade. No contexto estudado, entretanto, essa se tornou uma difícil

demanda tendo em vista que essa própria estrutura foi modificada inúmeras vezes antes de definir-

se de maneira completa. A institucionalização do status de capital foi verificada a partir das

determinações de leis, ora municipais, ora federais que alteraram as distribuições de funções, como

veremos no primeiro capítulo a partir do acompanhamento do processo que transformou ambas

as praças em uma praça única nacional a partir da demolição da Recova.

O segundo capítulo versa sobre alguns elementos inscritos nos projetos não só da

administração de Alvear, mas também de seus antecessores e/ou sucessores buscando recuperar

sua relação com a praça nesse processo. Escolhemos destacar: a abertura da Avenida de Mayo, o

estímulo à construção de edifícios como a sede dos poderes federais e atenção dada a alguns

monumentos públicos como o caso destacado da estátua do General Belgrano. Consideramos

serem esses elementos essenciais para compreender o próprio processo de transformação da praça

porque os discursos que incidem sobre este espaço incidem também sobre eles justificando a

criação ou modificação de novos elementos urbanos ou mesmo reivindicando a destruição de

antigos a partir da incorporação de novas percepções da cidade.

Como demanda surgida no próprio processo de pesquisa, não seria coerente deixar a

Revolución de Mayo alheia a nossas reflexões, se considerarmos que os discursos e narrativas sobre a

praça buscam, a todo tempo, legitimidade a partir desse acontecimento. Na segunda parte da

dissertação, escolhemos compreender como tal evento constitui-se em um paradigma a partir da

comemoração do seu aniversário de cem anos que representou a busca por um efeito pedagógico

por meio de escolhas deliberadas de colocá-lo em uma posição de destaque em meio à história

argentina Nossa intenção é refletir sobre a reinterpretação constante desse evento em 1910 a partir

do espaço da cidade que atualiza percepções e memórias a todo momento gerando comemorações

que monumentalizam ou celebram determinados eventos, lugares ou personagens.

A Pirámide de Mayo, monumento da praça, passa a ser fio condutor dessa segunda parte

por uma escolha de acompanhar sua trajetória em meio a tentativas de demolição que, ao contrário

do caso da Recova, não foram efetivadas. Optamos por reservar a ela o terceiro capítulo porque tais

disputas acontecem nos dois momentos estudados por nós e relacionam-se, diretamente, com o

fio condutor que escolhemos. Acompanhar tais embates sobre sua permanência ou demolição nos

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permite compreender também os argumentos defendidos e os ideais de cidade que se mesclam em

meio a estes.

As pistas da tendência de monumentalização detectada na cidade na ocasião do

Centenário deu origem a uma tentativa de criação de monumento para celebrar o centenário e que,

consequentemente, envolveria a destruição ou ao menos afetaria a Pirámide. O concurso para o

monumento, tanto pelas expectativas geradas em seu redor e pelos conflitos que envolveu, é parte

integrante de nosso quarto capítulo de forma que nos auxiliou na compreensão dos discursos que

se configuravam nesse momento histórico. Nas fontes analisadas por nós observamos um

interessante debate de elaboração de narrativas calcadas em eventos históricos por meio de

metáforas ou imagens – buscando a representação de personagens ou cenários específicos

utilizando recursos alegóricos que devem ser problematizados. Assim, a análise do processo de

construção – ou tentativa – desse monumento foi feita conservando os diálogos, trocas e

negociações que permeiam essa obra pensando como fruto de um processo e de distintas práticas.

A complexidade do objeto e o próprio fazer da pesquisa historiográfica sugeriram

modificações naquele que seria o plano inicial de nossa pesquisa. Esses desvios foram oriundos do

próprio avanço da pesquisa e da análise das fontes que nos permitiu chegar a conclusões distintas

daquelas previstas em nossas primeiras expectativas. Ainda na ocasião da escrita do projeto nos

detivemos a buscar propostas de modificação para a praça ou para a cidade que envolvessem

também esse espaço. As propostas em torno da praça no momento da federalização da cidade

emergiram facilmente como primeiro ponto de análise pois envolviam ações que, relacionadas às

dinâmicas políticas, delinearam também a sua própria estrutura física. Ainda que não formulasse

um plano único para a cidade, o conjunto dessas propostas envolvia e revelava perspectivas de

cidade e estratégias para seu espaço urbano a partir disso, desvelando discursos e intenções dos

atores envolvidos com. A definição, entretanto, de um outro momento para análise não foi tão

simples. Na viagem de coleta de fontes realizada ainda em 2015, em meio a um levantamento de

projetos para a cidade destacamos o Proyecto Orgánico para la Urbanización del Municipio, de 1925, uma

proposta abrangente para Buenos Aires que envolvia um debate específico de estratégias de

intervenção na praça. Ainda que esse fosse um projeto não implementado, se inseria em nossas

pretensões de acompanhar o relacionamento entre política e cidade delineando as distintas

percepções sobre nosso objeto e os diferentes argumentos defendidos. O prosseguimento da

pesquisa a partir desses primeiros dois recortes estipulados nos demandou o estabelecimento de

um terceiro, intermediário, que funcionaria como ponto de inflexão: o Centenário da

Independência como momento para se compreender a Revolución de Mayo como paradigma na

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história argentina e nas narrativas também representadas ou materializadas na praça. A tônica

destinada a praça em nossas fontes envolvia uma retórica de valorização daquele acontecimento

que a nomeara bem como dos homens participantes desse processo. Assim, a relação do nosso

objeto com esse acontecimento histórico se mostrou demasiado relevante enquanto construção

discursiva, assumindo função mais ampla que a imaginada inicialmente no entendimento das

questões abordadas neste estudo.

Em um processo posterior, a análise do projeto de 1925 pareceu não responder mais

aos mesmos questionamentos levantados inicialmente. A complexidade desse objeto ultrapassou

os fios condutores selecionados inicialmente e aqueles desenvolvidos ao longo das pesquisas.

Apesar de contar com propostas específicas para a praça, consideramos serem apenas uma pequena

parte de um projeto que se pensava de maneira muito mais abrangente, modificando as perspectivas

da praça dos momentos até então e, portanto, extrapolando os recortes definidos para este estudo.

Em uma nova seleção, agora definitiva, retiramos, portanto, esse último momento mantendo

apenas aqueles dois primeiros que evidenciavam uma visão do espaço da praça como representativo

da nação como um todo. O percurso trilhado por nós sugeriu uma série de alterações na pesquisa

a partir de documentações específicas que abriram novas possibilidades de reflexão e de

entendimento de nosso próprio objeto. Essas alterações são caminhos naturais do trabalho

historiográfico que se refaz constantemente a partir das perspectivas alcançadas pelas fontes

selecionadas atreladas as perspectivas teóricas e metodológicas.

A praça se configura como um espaço onde os diferentes grupos sociais se

confrontam: onde grupos dominantes exibem seu poder e marcam sua posição social e, em

contraposição, onde grupos marginalizados se apropriam desse espaço demonstrando todos os

significados sociais que se escondem por trás destes espaços. Como questionaria Canclini em

levantamento sobre a hibridez de significações dadas aos símbolos das cidades latino-americanas:

“Não é uma evidência da distância entre o Estado e um povo, ou entre a história e o presente, a

necessidade de reescrever politicamente os monumentos?”.34 A praça foi e continua a ser, portanto,

um espaço histórico de poder, por mais que tenha sido completamente modificado e apropriado

de diferentes formas. As transformações sofridas nesse espaço não anulam a estética do poder que

se configura como predominante. Ao contrário, essas transformações também são alvo dessa

estética e da busca de uma legitimação em torno dessa disputa evidenciando uma intencionalidade

no próprio processo de constituição da praça. A praça apropriada também foi pensada e, portanto,

34 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1998, p. 302.

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é também um projeto intelectual que funciona como incentivador do uso que o espaço adquire

uma vez que, em sua essência, este já nasceu político em consonância com as noções grega e

romana de ágora e fórum.35 Este espaço faz parte de um constante movimento de atualização do

poder e, portanto, tem seu sentido simbólico renovado a todo momento. Tornar este espaço

simbólico não é escolha deliberada, mas faz parte de uma negociação e é esta que buscamos

evidenciar aqui.

35 Na antiguidade greco-romana, a praça – representada pela ágora e pelo fórum – era um espaço público de maior importância e centro vital de muitas atividades da cidade, desempenhando papel fundamental sendo lugar público para a vida dos cidadãos.

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PARTE 1

Buenos Aires como metonímia da Argentina:

as disputas em torno da questão capital, 1880

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Capítulo 1: Delineando a “questão capital”

Buenos Aires como Capital Argentina es esa ‘ciudad-nación’ que según Rossi, en todos los Estados consolidados es teatro de todas las capacidades, fin de todas las ambiciones, que van a ilustrar todos los talentos, a enriquecer todas las fortunas, que todas las artes adornan y embellecen con porfía, objeto del pensamiento, de los placeres y de los votos de todos, orgullo del país, reina aceptada a quien los palacios y las chozas, las aldeas y las ciudades rinden homenaje. ¿Es un bien? ¿Es un mal? ¡Qué importa! Es un hecho y un síntoma.36

O processo de definição de uma cidade como capital de determinado país além de não

ser fácil envolve variáveis que atrelam sentidos simbólicos bem como disputas políticas. A frase de

Juan Bautista Alberdi, importante figura intelectual argentina, com a qual iniciamos esse capítulo

elucida a importância da federalização de Buenos Aires que a transformou em uma cidade espelho

da própria nação, funcionando como uma parte que define o todo como insistiam as adjetivações

das elites liberais. Esse processo, demarcado pela passagem de uma situação provisória a uma

permanente, será o objeto central dessa primeira parte da dissertação por considerarmos que supôs

uma mudança de perspectiva na conformação material da cidade que envolveu transformações

urbanas e arquitetônicas em função de seu novo status de capital. A articulação entre cidade e

política perseguida por nós emerge nessas intervenções urbanas que devem comunicar sentidos

relacionados as instituições representativas republicanas em suas mais variadas instâncias

alcançando também a Plaza de Mayo. Em meio a esse cenário, ela se destaca como espaço

representativo dessa República que se conforma a partir da nova capital.

Atualmente, quando falamos em Buenos Aires em termos urbanos estamos

considerando todo um conjunto metropolitano, ainda que as circunstâncias históricas de sua

constituição tenham sido determinadas pela divisão jurisdicional em dois setores diferentes: o

núcleo, a cidade que é capital do país, e o conjunto de aglomerações que forma a província de

mesmo nome. Essa última é a mais populosa das vinte e três províncias que compõe a República

Argentina sendo dividia em 135 municípios que são constitucionalmente denominados partidos.37

36 ALBERDI, Juan Bautista. La República Argentina consolidada em 1880 com la ciudad de Buenos Aires por capital. Buenos Aires: Imprenta de Pablo E. Coni, 1881. 37 O país é também dividido em quatro regiões criadas por tratos interprovinciais. A região central é formada pelas províncias de Córdoba, Entre Ríos e Santa Fé enquanto o norte divide-se em Catamarca, Chaco, Corrientes, Formosa, Jujuy, Misiones, Salta, Santiago del Estero, Tucumán. A região do “novo cuyo” engloba La Rioja, Mendoza, San Juan, San Luis e a região da pampa divide-se em La Pampa, Neuquén, Rio Negro, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fuego. A província de Buenos Aires é a última das vinte e quatro províncias e não faz parte de qualquer região. Essa é a segunda mais densamente povoada e está localizada na região centro-oeste do país fazendo divisa com Santa Fé, Entre Rios e o Rio da Prata ao norte, com o oceano Atlântico ao sul e com a pampa ao oeste. A cidade de Buenos Aires também não faz parte de nenhuma das regiões citadas por ser distrito federal.

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A província compartilha o nome com a cidade de Buenos Aires, localizada na zona noroeste de

seu território, apesar desta não fazer parte de seu território desde que conquistou status de

autônoma no ano de 1994. No primeiro mapa abaixo encontra-se a divisão provincial do país com

a demarcação de Buenos Aires

FIGURAS 3a 3b e 3c: Da esquerda para a direita em sentido horário: Mapa da República Argentina preparado pelo Instituto Geográfico Militar com as províncias destacadas por diferentes cores e a de Buenos Aires destacada por nós com contorno preto [1934]; Província de Buenos Aires incluindo traçado das linhas ferroviárias e com a região onde está localizada a cidade destacada por nós pelo quadrado preto [1882]; Novo plano dos arredores de Buenos Aires com os limites da cidade destacados por nós pela linha branca [1910]. Padronizamos as orientações geográficas para facilitar a visualização das correspondências dos mapas FONTE: Biblioteca Nacional Mariano Moreno, material cartográfico disponível em formato digital

Diversas denominações alternativas buscam diferenciar as homônimas de forma

adequada, não se limitando apenas à província, mas agregando também aquela chamada Gran Buenos

Aires (GBA), ou a extensão urbana que rodeia a cidade e que a incluí. Essa genérica denominação

se refere à megacidade compreendida pela Ciudad Autónoma de Buenos Aires (CABA) e sua

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conurbação sobre o território da província, sem constituir, entretanto, uma unidade

administrativa.38 Todos os termos citados aqui estão relacionados ainda com outras expressões,

nem sempre bem definidas, afinal, estas variam de acordo com o critério adotado. No uso

corriqueiro desses termos, nem sempre conseguimos distinguir com clareza a que parte do

território argentino nos referimos, mas esse movimento se torna importante.

A cidade de Buenos Aires, capital federal, funciona como uma província – a vigésima

quarta – possuindo poderes executivo, legislativo e judiciário além de sua própria polícia como as

outras vinte e três. Entretanto, o processo pelo qual essa foi declarada capital assumindo a função

que detém hoje não foi simples. Distintos decretos e leis foram promulgados com a intenção de

definir as jurisdições correspondentes à província reservando à Buenos Aires um papel de destaque

a partir de um critério político que definiria também a área de atuação administrativas em termos

de obras. Desde a independência a cidade se afirmava como cabeça do território nacional além de

centro de acumulador de poder

O terceiro artigo da constituição de 1853, a primeira da Argentina, já assinalava a

necessidade de definição de uma cidade para ocupar o papel de capital da República bem como

definia os contornos de debates que marcariam a sociedade argentina ainda por bastante tempo.39

A chamada “questão capital” se faria presente nas décadas seguintes estabelecendo intensos debates

e lutas políticas que reverberariam em outros campos, determinando, de forma significativa, as

transformações urbanas tanto do país quanto de Buenos Aires. Esse processo de definição

ultrapassou os limites considerados políticos e/ou jurídicos evidenciando sua complexidade e não-

neutralidade por abranger embates parciais pela própria concepção de organização nacional que

viria a ser adotada dali em diante além de envolver, no plano da representação, uma questão maior

que o orientaria: a construção de uma ideia de capital, uma ideia em disputa.

A consagração definitiva de Buenos Aires como capital argentina em 1880 demarcou,

tanto para a história da cidade quanto para a do país, mudanças substanciais. Entretanto, o processo

que culminou com essa definição foi, além de denso e conflituoso, resultante de uma série de

pormenores que devem ser analisados buscando ir além de interpretações mecânicas e

reducionistas. A arquiteta e doutora em História e Teoria das Artes Claudia Shmidt acrescenta que

a própria indefinição na redação do terceiro artigo da constituição funcionou como estimuladora

38 Inclui 24 partidos da área de conurbação além da CABA. 39 Esse artigo fora escrito com base na pressão exercida sobre a província de Buenos Aires para que se integrasse ao sistema federal a partir da concessão de sua principal cidade e definia que “las autoridades que ejercen el Gobierno federal residen en la ciudad que se declare Capital de la República por una ley especial del Congreso, previa cesión hecha por una o más legislaturas provinciales, del territorio que haya de federalizarse”. Ver: ARGENTINA. Constitución Nacional, 1853.

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de grandes questões, já que dava margem para diversas interpretações para termos como “cidade”

e “território”.40 Questões como essa demonstram que conflitos travados entre as diferentes

instâncias de poder, entre partidos, entre distintos personagens e setores antagônicos definiriam a

luta por um lugar – por uma cidade – que deveria reunir condições para consagrar-se como sede

de uma nação moderna.

A poderosa imagem usualmente associada à capital argentina, representada como uma

cidade moderna e federalizada, embelezada e saneada a partir da incorporação de seu novo status

administrativo, não é um mero acaso. Essa foi uma imagem construída ao longo desse processo e

resultante de uma trajetória de embates definidores do papel que então caberia para a cidade. De

capital do Governo do Rio da Prata, ainda no século XVIII, e do Vice-Reinado do Rio da Prata

logo em seguida, Buenos Aires assume o papel de capital da República no final do XIX até alcançar,

quase cem anos depois, status de cidade autônoma com constituição própria, mantido até hoje. As

inúmeras transformações jurídicas, políticas e administrativas sofridas pela cidade ao longo de sua

história foram consequências de conflitos constantes nos quais o papel que essa deveria assumir

frente à Argentina sempre teve função decisiva e não devem, portanto, ser desconsiderados.

A “questão capital” se constituiu como cerne de um debate a partir do qual se

originaram múltiplas questões – vinculadas não só com o processo de organização nacional, mas

também com a configuração material da própria cidade – delineadas a partir de diferentes projetos

e interesses, evidenciando escolhas específicas e conjunturas. A definição de uma cidade como

capital envolve representações que são advindas de dinâmicas políticas que se expandem também

para configurações materiais, que serão aqui nosso objeto mais imediato de análise. Entender,

portanto, os debates e propostas em torno das necessidades e representações da futura capital

argentina, bem como os conflitos em torno da sua localização se torna fundamental para que,

posteriormente, compreendamos os papeis simbólicos assumidos por Buenos Aires frente ao país.

A história dessa questão remonta a constantes embates entre os diferentes níveis

administrativos argentinos que, além dos governos federal e municipal, conta ainda com a instância

provincial.41 O consolidado federalismo de base provincial argentino resistiu à constituição de um

40 A autora dedica-se a compreender as nuances da definição da capital além das significações simbólicas provenientes dessa. SHMIDT, Claudia. “…mientras Buenos Aires sea capital de la nación”: La residencia de las autoridades y la “cuestión capital” 1853-1889. In: Congreso Internacional de Teoría e Historia de las Artes (IX Jornadas CAIA) Poderes de la imagen., 1, 2001. Buenos Aires. Anais... Buenos Aires: Centro Argentino de Investigadores de Arte, 2001. 1 CD. 41 O processo de independência que levou à formação da Argentina e de seu Estado foi longo e apenas concluiu-se em 1853 com a promulgação da constituição. Esta estabelecia um pacto político federativo entre as províncias existentes na época – ao qual a província de Buenos Aires aderiu alguns anos depois. Existiu, ao longo da história, um embate constante em torno da base federal ou unitária a ser adotada pelo país na constituição, tendo em vista que essa cristaliza certas áreas políticas com unidade jurídica podendo, a partir de necessidades específicas, desagregar essas funções em

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Estado Nacional com base na cidade de Buenos Aires. A historiografia demonstra que o conflito

entre litoral e interior se manifestou de diversas formas na história argentina a partir de conflitos

armados ou combates ideológicos entre as ideias de civilização e barbárie.42 Portanto, compreender

o processo de construção do Estado argentino demanda um resgate da historicidade das relações

construídas entre a cidade de Buenos Aires e as outras províncias.43

níveis mais baixos. A constituição apresentou uma solução orientada pelo federalismo afirmando a existência prévia das províncias à Nação e, portanto, os poderes dessa última seriam resultantes de uma delegação expressa e direta delas. Às províncias foi permitido promulgar suas próprias constituições, entretanto, estas não poderiam se opor ao que fora estipulado na constituição nacional. Esse acordo foi inicialmente assinado por catorze províncias às quais foram acrescentadas posteriormente nove territórios nacionais sob os mesmos moldes. Mesmo a mais recente reforma constitucional, ocorrida no ano de 1994, apesar do acréscimo de novas definições à relação entre estas instâncias, não alterou a natureza básica da disposição inicial. 42 Para compreender como o termo civilização será recuperado nesse trabalho vale a pena revisitar os dois temas básicos que, para as ciências sociais, participam de várias de suas definições: um desses considera civilização como uma forma de cultura e o outro estabelece um contraste entre tais termos. Os primeiros autores da antropologia cultural seguiam a tendência de equiparar os termos fazendo surgir uma definição de civilização como forma de cultura qualitativamente diferente das outras. Esse uso, que persiste até hoje, se baseia no fato de que, durante o século XIX, civilização pretendia transmitir a ideia de civilizar, ou seja, de tornar as pessoas das sociedades não-ocidentais mais parecidas com as das nações ocidentais considerando, por exemplo, que a vida humana poderia ser dividida em estágios se selvageria, barbárie e civilização, como propunha Tylor. O uso recuperado nesse trabalho se baseia nessas referências nas quais civilização corresponderia a um processo evolutivo vivenciado pela sociedade consistindo no abandono de um estágio considerado inferior, sendo dotado de carga visivelmente valorativa associado à noção de progresso que é a perspectiva que acompanha as retóricas das fontes por nós utilizadas. Os atores produtores dessas fontes incorporam e disseminam essa ideia ao tentar estabelecer padrões baseados no que seria um “modo civilizado” de ser em oposição a outras noções que permeiam seus pensamentos como o de atraso, barbárie etc. Ver: SILVA, Benedicto. (org.) Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1986. Jean Starobinski salientou que esse conceito acabou sendo se definindo, a partir do século XVIII, como par oposto de alguns outros como bárbaro, primitivo e selvagem, sendo associado, de forma indissociável, à noção de progresso ao propor a reinvenção de algumas sociedades a partir de conceitos brancos e eurocêntricos. Enquanto os primeiros conceitos eram citados de forma positiva, seus opostos designavam condições desvalorizadas que deveriam ser superadas a partir de novos referenciais. Ver: STAROBINSKI, Jean. A palavra civilização. In: As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Na história argentina, o deserto assumiu um papel de metáfora que carregou um conjunto de significados instaurando valores que se configuram em representações da realidade. Esse conceito foi alvo de um conjunto de discursividades e uma das principais preocupações do romantismo literário. Foi, portanto, utilizado e apropriado tornando-se a encarnação da ausência, da barbárie, do vazio, servindo como subsídio argumentativo para projetos que terão em seu cerne a ideia de civilização como sua antítese imediata. 43 Segundo Alberto Müller, para compreender essa questão é importante atentar para a distribuição espacial da população e das atividades no território argentino que sofreu durante esse período significativas alterações. O autor expõe que o núcleo mais amplo e consolidado do povoamento colonial (noroesse argentino) esteve vinculado à economia mineira do alto Peru e compreendia 40% da população no momento da independência. A província de Buenos Aires, ainda que fosse capital do vice-reinado, ocupava um espaço marginal e tinha sua economia vinculada à exploração de couro e carne seca, representando pouco mais de 10% da população do que hoje é o território da Argentina. O declínio da mineração e o aumento significativo do comércio de carne seca foram responsáveis por, na primeira metade do século XIX, um processo de mudança territorial que se desdobra em um deslocamento contínuo e gradual do centro econômico do país do noroeste para o litoral, centrado em Buenos Aires que consolida também uma elite intelectual que se torna referência para o resto do país já que muitas das figuras políticas e culturais de grande importância da época ou pertenciam a essa província ou identificavam-se fortemente com a comunidade cultural dela. Assim, se constituiu um antagonismo de base regional entre a cidade de Buenos Aires e o interior que permeou a prática política argentina durante o século XIX, tendo sido personificada também na própria oposição entre unitários e federais no processo de consolidação constitucional. Ver: MÜLLER, Alberto. Federalismo fiscal em um país federativo e conflituoso: o caso argentino. In: LINHARES, P. T. F. S. (Org.). Federalismo Sul-Americano. Rio de Janeiro: Ipea, 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/livros/livros/160330_liv ro_federalismo_sul_americano.pdf. Acesso em: 24 out. 2016.

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Em 1832 foi assinado o Pacto Federal que originou a Confederação Argentina, firmado

com base em um compromisso que manteve a soberania das províncias, entretanto reconhece o

predomínio na província de Buenos Aires, governada naquele momento por Rosas, que recebeu o

título de chefe da Confederação, já concedendo uma posição privilegiada para a cidade. Essa

situação desigual provocou algumas reações e surgiram propostas federalistas em torno da

superação do particularismo e do predomínio portenho, buscando a construção de instituições

nacionais e a redefinição do papel que, tanto a província, quanto a cidade de Buenos Aires teriam

nessa nova conformação nacional.

Nas décadas seguintes, surgem propostas da chamada geração de 37 que

acompanhavam essa tendência.44 Ainda segundo Américo Freire, a constituição norte-americana

serviu como base para sustentar a defesa de arranjos institucionais que buscavam a afirmação do

sistema presidencialista e pela soberania popular e não dos estados. A crença era de que o

fortalecimento militar e político do poder central concederia capacidade de intervenção nas

províncias e redistribuição dos recursos, considerados injustamente distribuídos, já concentrados

em uma única província. A aprovação da constituição e a derrota de Juan Manuel Rosas

consagraram a forma representativa republicana federal criando uma nova Confederação da Nação

Argentina que continuou, entretanto, pautada pela tensão entre interior e a província de Buenos

Aires, já que esta última não reconheceu a nova ordem legal do país e consolidou sua posição a

partir de uma constituição própria que lhe assegurava total soberania.45

A manutenção desse impasse, todavia, deflagrou um conflito militar prolongado até

1859 quando Buenos Aires foi derrotada e aceitou a reincorporação ao país mediante um acordo

que vedava ao governo federal promover a federalização da cidade ou alguma intervenção sem

consultar os poderes constituídos na província. A cidade do Paraná era a sede do governo argentino

44 A inauguração em Buenos Aires do Salón Literário de Marcos Sastre em 1937 com o objetivo de possibilitar trocas e reuniões intelectuais além de debates filosóficos, políticos e sociais, viabilizou a formação de um grupo dentre no qual se destacavam nomes como Esteban Echeverría e Juan Bautista Alberdi. Esse grupo caracterizou-se pela oposição realizada ao governo Rosas além das discussões realizadas acerca de novos projetos de âmbito político e social para a Argentina. Por fazerem parte de uma minoria letrada que se sentia derrotada com a hegemonia da liderança política rosista, consolidaram-se como o primeiro movimento argentino com o objetivo de construir uma identidade nacional proclamando a necessidade de construção de literatura, história e cultura em termos nacionais, ficando conhecidos como generación de 37. Pautavam-se em princípios liberais: acreditavam na democracia, na soberania popular e almejavam liberdades de pensamentos e crenças criticando, por isso, constantemente, ações arbitrárias e autoritárias executadas pelo presidente. O grupo consolidou-se a partir da necessidade de adotar uma nova perspectiva em relação à formação da nação adotando como missão um projeto de transformação cultural baseada na identidade nacional. 45 Rosas foi um político e oficial militar argentino que governou a província de Buenos Aires e, brevemente, a Confederação Argentina. Foi eleito governador em 1829 estabelecendo uma ditadura apoiada pelo Terrorismo de Estado e assinou o pacto que estabeleceu a Confederação reconhecendo a autonomia provincial em 1931, tendo sido derrotado no ano seguinte e se dedicado a disputas contra as populações indígenas nas fronteiras. Em 1935 seus apoiadores realizaram um golpe estabelecendo seu retorno como governador – cargo que ocupou até 1852.

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desde a data da promulgação da constituição. Em 1862, Buenos Aires passou a concentrar os três

poderes sem, entretanto, definições do estatuto político da capital que ainda continuava em

suspenso. O acordo assinado alguns anos antes previa uma lei elaborada pelo Congresso para a

nova capital que provavelmente retiraria o controle da província de sua capital – tendo provocado

constantes conflitos entre o Congresso, o presidente e o poder provincial.

Novas soluções foram tentadas, como a proposta de itinerância da capital, que foi

vetada sucessivas vezes pelo presidente. A consequência dessa indefinição foi a radicalização das

posições portenhas que passaram a considerar o presidente um mero hóspede da cidade. A questão

só foi finalmente decidida mediante conflitos armados. Em 1880, o poder central sufocou a

insurreição do governador promovendo a primeira intervenção federal na província, que

transformou a cidade de Buenos Aires em capital federal ainda naquele ano completando o árduo

processo de formação de um Estado federal argentino. Para Américo Freire, a experiência política

argentina elucida a opção das forças federalistas liberais de conquistar a mais importante cidade do

país para transformá-la em capital, em um processo de forte caráter militar, já que as possibilidades

de acordo não obtiveram êxito. Nesse caso, não apenas o papel estratégico de cidade portuária

levou a capital a fixar-se ali, mas também pesaram motivações de ordem política, já que um governo

central em outro local estaria sempre ameaçado pela força daquela província considerada a mais

importante do país, transformando-se em um campo aberto para novos conflitos.46

Esse processo de construção ou invenção política de uma capital – termo cunhado

também por Freire – mantém relações profundas com o processo de construção do Estado no qual

se engendram diferentes princípios e interesses.47 A capital não constitui um simples estatuto

jurídico, mas “expressa a tensão entre a necessidade de afirmação de soberania do poder central

em sua sede e o princípio de representação política dos cidadãos ali residentes”.48 Heliana Angotti

Salgueiro, ao analisar historicamente a definição de capital com base na cidade de Paris, além das

funções governamentais, fiscais e judiciárias e dos recursos humanos e materiais, o conceito de

cidade capital apoia-se em representações que se constroem sobre o papel que assume como centro

de informação e difusão cultural.49 Dessa forma, para a autora, a metropolização é indissociável do

46 Cabe atentar aqui que não devemos generalizar essa situação que, apesar de funcionar como boa hipótese para o caso argentino, não se configura em uma regra, mas uma condição histórica que funcionou de modo determinado em Buenos Aires já que, se encararmos outras cidades com características semelhantes, como o fato de serem portuárias, não encontraremos, necessariamente, os mesmos processos. 47 FREIRE, Américo. Uma capital para a República: poder federal e forças políticas locais no Rio de Janeiro na virada para o século XX. Rio de Janeiro: Revan, 2000. 238p. 48 Idem, p. 16 49 Para Angotti a acepção de cidade capital com referência à história de Paris vem em primeiro lugar. As representações sobre seu prestígio, significado e poder de atração estão descritas, segundo a autora no Larousse du XIX’ siècle

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peso demográfico, do poder político e econômico, das relações e da representatividade cultural e

social.

Pesquisadores dos mais distintos campos dedicaram-se a pensar a condição de capital

de algumas cidades considerando essencial a posição que estas ocupam em termos de representação

de poder. Esse processo, portanto, representou para Buenos Aires a idealização de um projeto

civilizatório que transformaria a capital e englobaria o país de forma mais geral – buscando uma

modernização pautada na construção simbólica de uma capital. Esse simbolismo é de grande

importância porque a própria “capitalidade” aparece como central na necessidade de afirmação de

uma imagem para a cidade. Esse conceito, desenvolvido por Giulio Carlo Argan analisar o contexto

europeu, pode ser aproximado ao caso de Buenos Aires. Ele surge em uma argumentação de que

as cidades eleitas para capitais perderiam seu caráter municipal e passariam a funcionar ao mesmo

tempo como a imagem do Estado e aparelho do seu poder.50

Para Argan, que considerou a capital como uma forma urbana tipicamente barroca, a

capitalidade passou a implicar um programa urbanístico e arquitetônico específico, cujo teor é o da

monumentalidade e grandiosidade.51 A capital definia uma cidade como lugar de política, cultura,

núcleo de sociabilidade intelectual e produção simbólica, representando o papel de teatro do poder

publicado em 1875 que a define como “a capital da Europa, o centro do mundo inteiro, a metrópole moderna da civilização. A importância de Paris como capital remonta à idade Média e se afirma no século XVI. Já no XVIII exibe a classificação de segunda maior cidade da Europa. Desde o reinado de Henrique IV a cidade já começava a evoluir em uma onda de especulação financeira e construção de edifícios públicos e particulares de grande importância. Esses recursos fariam de paris uma cidade capital inscrita no modelo de cidade administrativa, sede de poder institucional civil, militar e jurídico, responsável pela gestão econômica da monarquia. Genericamente, a partir do século XVII, Paris assumiu essa imagem de cidade capital em um século de cosmopolitismo sendo alvo de políticas sucessivas de obras de novo urbanismo e nova arquitetura que culminariam, sob Napoleão III, com a haussmannização, capaz de transformá-la no grande modelo ideal, cujo alcance se estendeu na longa duração. Ver: SALGUEIRO, Heliana Angotti (org.). Cidades capitais do século XIX. Racionalidade, cosmopolitismo e transferência de modelos. São Paulo: EDUSP, 2001. 50 Segundo a argumentação do autor, o Renascimento deu vida a uma civilização urbana na qual cada cidade se apresentava não mais como um município livre, mas como um pequeno Estado soberano, não sendo exclusivamente do príncipe, mas herdeira de uma tradição histórica própria. A centralização dos poderes ocorrida no século XVII a partir da formação dos Estados Nacionais é acompanhada pelo surgimento de capitais de um novo tipo que tomam forma ao se tornarem sede da autoridade do Estado, bem como de seus órgãos governamentais e da administração pública buscando simbolizar novas referências culturais. A formação dessa cidade-capital determina, por consequência, a regressão de outras cidades a categorias hierarquicamente inferiores bem como faz com que essa passe a exercer uma função representativa ao tornar-se imagem tanto do Estado quanto do poder, perdendo assim seu caráter municipal. Também o esquema organizacional do espaço dessas cidades se dá de maneira diferenciada prevendo um rápido aumento populacional, as consequências decorrentes desse fator demandam alterações na própria estrutura urbana bem como em suas construções. Ver: ARGAN, Giulio Carlo. op. cit. 51 Ampliando o conceito de barroco além da sua referência arquitetônica, Argan demonstrou sua utilidade para a compreensão da sociedade europeia do século XVII. A mentalidade barroca produzira um novo conceito de organização do espaço que teve sua materialidade alcançada, em grande parte, nas capitais europeias. Esse novo espaço urbano, pautado pela ordem e pela uniformidade, gerou a derrubada de muralhas, criação de espaços abertos, abertura de avenidas largas, edifícios de fachada uniformes, jardins traçados de maneira geométrica, e outras ações que se deram em diversos graus de intensidade nas capitais absolutistas. Ver: MOTTA, Marly Silva da. Cabeça da nação, teatro do poder: a cidade capital como objeto de investigação histórica. Rio de Janeiro: CPDOC, 1993.

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que lhe conferiria visibilidade decorrente da importância política adquirida. A capitalidade, para o

autor, impõe alterações específicas no espaço urbano já que esta deve-se impor pela grandiosidade

de seus monumentos e orientar as suas estruturas de acordo com o fato de ser destino de visitantes

e não mais apenas lugar de uma comunidade tradicional.

Dessa maneira, a cidade se torna a representação monumental da “ideologia do poder”

cunhada por Lewis Mumford, pois a centralização da autoridade exigia o predomínio de uma cidade

e essa capital, ao concentrar força militar, burocracia administrativa e impor costumes construía

uma imagem.52 Essa imagem, por sua vez, contribuía para a unificação do Estado, por ser

representativa de certo valor ideológico que lhe concedia grande força simbólica.53 Finalmente, com

a derrota do projeto provincialista, o poder central começou a exercer um controle cada vez mais

rígido sobre a organização política local. A própria constituição de 1853 criou condições para isso

ao estabelecer como atribuição do presidente a chefia imediata da capital federal. Essas idas e vindas

da política federal se relacionam diretamente com o processo de afirmação do Estado nacional

argentino tendo esse ocorrido de forma gradativa. Buenos Aires ganha assim posição de destaque

em meio à nação argentina sendo representante desse sentimento maior de pertencimento nacional

e dando início, portanto, a um novo momento de sua história marcado por um maior controle

federal além de um enorme crescimento em termos urbanos e populacionais.54

O primeiro censo nacional, realizado em 1869 determinou que a soma da população

argentina dentro e fora de seu território totalizava 1.877.490, dos quais apenas a província Buenos

Aires concentrava um quantitativo equivalente a 495.107.55 Além disso, o próprio censo delineava

52 Para Mumford, durante esse o processo, as cidades capitais se desvencilhavam de seu caráter municipal assumindo uma função representativa que as transformou na imagem do Estado, trasbordando a esfera político-administrativa e invadindo outros domínios já que era possível falar de um modo de vida da capital – que era cosmopolita, modelador e difusor de costumes considerados civilizados. Ver: MUMFORD, Lewis. A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 1982. 53 Entendemos aqui ideologia como um sistema cultural com referência na definição de Clifford Geertz de acordo com o qual essa pode ser entendida como um sistema de símbolos Inter atuantes ou padrões de significados que trabalham de forma interativa. O autor enfatiza a ideologia como pertencente a um sistema dentro de um contexto social e psicológico sendo, portanto, uma estrutura simbólica. GEERTZ, Clifford. A Ideologia como Sistema Cultural. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 54 A população da cidade continuou elegendo seus representantes para o Congresso, mas em alguns momentos perdeu o direito de constituir poder local. A província de Buenos Aires, entretanto, perdeu 18 de seus 54 eleitores para a presidência em virtude de sua transformação em sede do governo nacional. 55 Esses quantitativos consideram os 41.000 de argentinos fora do país além de 6.276 pertencentes ao exército que se encontrava, nesse momento, no Paraguai. Apesar de ainda não possuir grande contingente populacional nesse período, já é possível perceber a discrepância de Buenos Aires em relação à outras regiões. Isso fica claro quando observamos que a segunda província com maior contingente populacional é Córdoba com 210.508, ainda consideravelmente atrás dos números já descritos para Buenos Aires. A título de comparação, o primeiro censo realizado no Brasil, ainda no período imperial, no ano de 1872, destacou uma população total notadamente superior do que a argentina, com 8.419.672 pessoas. No caso brasileiro, entretanto, o município neutro contava com apenas com o quantitativo de 279.972 pessoas desse total, representando uma porção bem menor do todo e, ainda, praticamente metade do que a capital portenha. Fontes: ARGENTINA, Primer Censo de la República Argentina, 1869, Buenos Aires;

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forte predisposição de aumento populacional baseado na tendência imigratória por fatores como

o clima considerado benigno e os baixos custos materiais de subsistência – observado também pelo

fato de que, naquele momento, o saldo de imigrantes estrangeiros representava cerca de doze por

cento do montante total do país.56 Segundo Hardoy e Gutman, até a realização desse censo, a

distribuição populacional do país já mostrava uma tendência de concentração nos centros urbanos,

especialmente em Buenos Aires e algumas outras cidades que formam atualmente a principal área

urbana unificada do país (se estendendo de Rosario até La Plata).57 Ainda segundo os autores, entre

1855 e 1869 a população da cidade de Buenos Aires chegou a duplicar, passando, nesse último ano,

a representar pouco mais de dez por cento da população nacional. Essa discrepância fica ainda

mais clara quando comparamos Buenos Aires com outras cidades: sua população era praticamente

trinta por cento superior ao conjunto populacional das dez cidades que a seguiam em uma

considerada ordem de importância. Esses números seguirão uma tendência gradual de aumento

em um curto período de tempo, como viria a ser confirmado pelo censo seguinte.

As transformações ocorridas na cidade nessa segunda metade do século XIX,

entretanto, não envolvem só os números demográficos e atingem outros fatores que também

devem ser considerados por serem frequentemente recuperados para caracterizar esse período

como singular na história – um período no qual a cidade passara por grande expansão. O ano de

1880 é um momento chave para essa compreensão, pois nele concentram-se um conjunto de

acontecimentos que darão um novo significado a cidade a partir da lei 1.029, de conversão da

cidade em capital federal da República, reverberando em transformações profundas em sua

administração.58 Também nesse ano terminou a Campanha do Deserto organizada e comandada

pelo General Julio Roca, ministro de guerra do governo na ocasião, que consistiu em um levante

militar contra os povos indígenas do Sul com objetivos de ocupar regiões que consolidariam a

delimitação territorial do país, respondendo à questão da fronteira, essencial para definição da

DIRECTORIA GERAL DE ESTATÍSTICA - Recenseamento do Brazil em 1872, FSEADE - Informe Demográfico 56 O INDEC (Instituto Nacional de Estadística y Censos) é a entidade nacional encarregada de realizar os chamados Censos Nacionales de Población, Hogares y Viviendas na Argentina bem como da direção técnica de todas as demais estatísticas oficiais do país. O primeiro censo de população, realizado em 1869 sob a presidência de Domingos Faustino Sarmiento, foi limitado tendo alcançado apenas parte do território atual já que excluía regiões dominadas por grupos indígenas, incluindo apenas aqueles considerados civilizados – os que eram assim considerados deviam ser batizados além de falar espanhol. Gradativamente, com a incorporação definitiva de novos territórios e as consequentes transformações dos limites da capital, por exemplo, a abrangência destes censos aumentou, como observaremos pelos próprios números que veremos a frente. 57 GUTMAN, Margarida; HARDOY, Jorge Enrique. Buenos Aires 1536-2006: Historia urbana del Área Metropolitana. Buenos Aires: Infinito, 2007. 58 A lei número 1.029, foi sancionada pelo Congresso em setembro de 1880 e declarou o Município de Buenos Aires como Capital da República da Argentina ainda sob a presidência de Nicolás Avellaneda, substituído no mês seguinte por Julio Argentino Roca.

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própria soberania estatal.59 A população da cidade aumentou aceleradamente, como confirmado a

partir dos números disponibilizados pelo censo, contando também com um importante fator: a

incorporação de grandes contingentes de imigrantes europeus, respondendo a um estimulo da

própria elite governante, como veremos em seguida.

Segundo Roberto Cortés Conde, até a primeira década do século XX, os indicadores

apontam para uma taxa anual média de crescimento de mais de cinco por cento em cada uma das

três décadas, diferenciando de qualquer outro período da história da Argentina.60 O autor

caracteriza ainda uma mudança no próprio caráter econômico já que esse crescimento se apoiou

principalmente na venda de mercadorias básicas da economia argentina – agricultura e pecuária

– para outros países, mas não teria sido apenas esse o pilar destas mudanças. A necessidade de

serviços como transporte e moradia, gerada também pelo aumento populacional, estimulou o

surgimento de indústrias nacionais em setores como o da construção, da produção alimentícia

etc. Em fato, teria sido a integração destas atividades – a partir de investimentos públicos e,

principalmente, privados – que garantiu o alcance destas altas taxas de crescimento e a

possibilidade de competir a nível de igualdade com outros mercados.

Esse período de expansão é frequentemente descrito como um período em que

diversos tipos de mudanças confluíram. Aos avanços do setor econômico, diversos autores

adicionam transformações de grande importância a nível tecnológico, tais como a criação da

primeira linha de transporte ferroviário bem como as primeiras tentativas de uso de eletricidade

59 O processo de construção do Estado Nacional argentino assumiu, no século XIX, uma dimensão essencialmente territorial. Alessandra Seixlack destaca, a partir de Max Weber e da Geografia Histórica, a importância de compreendê-lo como fruto de construções sociais, simbólicas e instrumento de ação política por possuir uma dimensão processual e histórica que envolve representações, discursos, articulações e formas de legitimação que criam materialidades e ordenam o espaço efetivando espaços identitários fundamentais na elaboração de consciências coletivas. Ainda na década de 1870 o Estado argentino não tinha sua jurisdição consolidada sobre a extensão territorial que correspondia ao antigo Vice-Reinado do Rio da Prata. Ao contrário, seu território ainda era objeto em disputas limítrofes já que áreas como o Chaque, o Pampa e a Patagônia, além de constituírem conflitos diretos com outras Repúblicas hispano-americanas recém-formadas, permaneciam sob domínio de diferentes grupos indígenas. Assim, uma significativa parte do território austral ainda não fora explorada, o que traria importantes implicações no processo de formação territorial do Estado argentino já estas áreas seriam alvos principais de posteriores projetos de integração ao que era considerado mundo moderno e civilizado. Foi a partir dessa década que a discussão das fronteiras do interior foi retomada constituindo-se em um assunto de destaque e gerando disputas políticas que buscavam estratégias que assegurassem a inserção desses territórios à jurisdição estatal. A delimitação do território a partir da ocupação estatal possibilitaria o monopólio do poder sobre toda a população que ali habitava e legitimava a aplicação desse poder – desassociando a Argentina da imagem do Deserto e da selvageria atribuídas às populações nativas e permitindo-a ingressar nas consideradas nações civilizadas. A ideia do Deserto, nesse processo, atuou como pressuposto ideológico e artefato discursivo sendo mobilizado por distintos agentes. Estes projetos devem ser interpretados como etapas de um processo de construção do território e estavam à serviço da supressão do Deserto em prol da construção de uma base física para a Nação argentina civilizada e moderna. Ver: SEIXLACK, Alessandra Gonzalez de Carvalho. O juízo final dos índios: guerra e política na conquista do deserto austral argentino (1867-1879). 2013. 149f. Dissertação (mestrado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. 60 CORTÉS CONDE, Roberto. O crescimento da economia argentina, 1870-1914. In: Bethell, Leslie (Org.). História da América Latina, de 1870 a 1930, São Paulo: EdUSP, 2008, p.475-508.

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para iluminação, além da incorporação de serviços como de telefonia e telégrafo – representando

modificações também de aparência na cidade que definiriam a imagem da própria. Essas

mudanças teriam reverberado também na abertura de avenidas que facilitariam a relação entre o

centro e as áreas mais distantes apesar da área central ser sempre citada como alvo principal das

intervenções nesse sentido que ocorreram nesse período.

Ao final da década, a cidade estava unida por transporte ferroviário às cidades de La

Plata, Mendoza, San Luis, San Juan, Rosario, Santa Fe, Córdoba e Santiago del Estero,

constituindo uma rede também entre as províncias – que foi ampliada mais tarde ainda com a

inclusão das cidades da La Rioja, Salta e Jujuy, sendo essas duas últimas importantes cidades do

noroeste argentino distantes mais de 1500 quilômetros de Buenos Aires. Além disso, a cidade

era dotada de seis empresas que transportavam, pelo mesmo meio, indivíduos dentro de seu

próprio território. A população portenha contava também com outros meios de transporte, como

carruagens particulares e empresas de ônibus adaptados a partir das primeiras. Entretanto, o trem

se converteu em um meio de transporte largamente utilizado e que permitiu resolver problemas

de deslocamento como nenhum outro meio de massa havia ainda feito.

Buenos Aires era uma cidade compacta e densa em seu centro, com um traçado de

ruas irregular entremeado por algumas praças públicas. As mudanças em suas características

urbanas, iniciadas ainda três décadas antes de sua transformação em capital, foram orientadas

pela localização das estações de trem e do próprio porto localizado em à frente a tradicional Plaza

de Mayo que mantinha seu prestígio em muitos aspectos. As ruas da cidade, até então, não

possuíam sistema de desague e apenas contavam com uma limitada distribuição de água potável.

Nesse período de federalização, a cidade começava a se estender alargando os limites do antigo

município o que modificou diretamente suas configurações materiais. Entretanto, cerca de 40%

da população ainda vivia em sua área central. É sobre essa área que as gestões desse período

concentrarão seus maiores esforços

Todas essas transformações, entretanto, longe de serem um curso natural seguido pela

cidade como se constituísse destino apenas de Buenos Aires, foram respostas à um estímulo

advindo dos discursos de um grupo que buscava, em meio a retórica da civilização, configurar a

cidade de acordo com os alguns centros urbanos europeus, afirmando ter em Paris seu modelo.

Elas foram em grande parte desejadas e promovidas por políticos e intelectuais que projetaram e

levaram a cabo um amplo programa de grandes reformas para a sociedade argentina, que já vinha

sendo pensado anteriormente pelos integrantes do movimento da Generación de 37. A tentativa é de

converter a cidade de Buenos Aires na expressão física das vontades desse grupo, incluindo a

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própria imigração como chave desse processo, como afirma Fernando Devoto.61 Nos afastamos

das ideias do autor pois consideramos que, superando as tentativas baseadas nas ideias de um grupo

específico, as mudanças urbanas das quais a cidade fora alvo envolveram uma série de disputas de

interesses que definiam o que se efetivava ou não.

A classe dirigente, herdeira das ideias de 1837, que acompanha e lidera o processo de

modernização argentino pautado no progresso econômico e na reorganização política é denominada,

a posteriori, de Generación del ’80. Para Paula Bruno, o clima de ideias vigente durante a passagem do

século XIX para o XX apresenta uma série de tópicos recorrentes dos escritos e discursos das elites

políticas e intelectuais recorrendo frequentemente a expressões como modernizar, civilizar, ilustrar,

europeizar, reformar e nacionalizar que se tornam organizadores de processos e ações dessa época.62

Existiria atualmente um consenso generalizado sustentando que, na década de 1880, um novo grupo

de homens públicos, políticos e intelectuais, reivindicara para si o papel de condução dos processos

de consolidação do Estado e da nação argentina, articulando estratégias formais e informais para

dotar o país de uma nova fisionomia.

Muitos autores utilizam o rótulo de Generación del 80 e, por isso, vale a pena elucidar

alguns aspectos vinculados na construção de representações sobre esse grupo bem como os usos

dados a essa expressão. Desde os anos 1920 se configurou uma definição ligada a uma função

descritiva na qual os membros desse grupo eram homens ligados ao mundo das letras, portenhos e

adeptos das modas literárias e estéticas europeias. Até a década de 50 o repertório de nomes que

conformavam esse grupo permaneceu estável ou com poucas variações. As vertentes seguidas pelos

autores que se propuseram a dar conta da existência e da história desse grupo nesse primeiro

momento destacaram a sua filiação àquela geração que havia ocupado a cena pública anteriormente

– chamando-os de generación hija, generación de príncipes, hijos de los organizadores de la República – e também

sua fugacidade ou incapacidade – caracterizando-a como generación decapitada, generación disconforme ou

generación descontenta – minimizando seu papel. Entre as décadas de 50 e 70, apareceram novos

elementos para definir o significado desse grupo, evidenciando a necessidade de pensar as esferas

intelectual e política de forma conjunta, como um todo homogêneo. Assim, intelectuais-políticos

com clareza ideológica passaram a ser as caracterizações dessa geração que agora já não aparecia

debaixo da sombra daqueles que a precederam, mas como protagonista de uma verdadeira ruptura

histórica, forjadores de uma nova era no mundo das ideias e da ação. Posteriormente, entre 70 e 80,

61 DEVOTO, Fernando. Imigração européia e identidade nacional nas imagens das elites argentinas (1850 - 1914). In: FAUSTO, Boris. (org). Fazer a América – a imigração em massa para a América Latina, São Paulo: Edusp, 2000, p. 33-61. 62 BRUNO, Paula. Um balance acerca del uso de la expresión generación del 80 entre 1920 y 2000. Secuencia, Revista de Historia y Ciencias Sociales, México, n. 68, p. 117-161, mai./ago. 2007.

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a opção foi devolver o conceito ao terreno da cultura, desvinculando-o do da política, convertendo

os indivíduos em receptores praticamente passivos de ideais internacionais.

Após isso, é observada uma tendência de abandono dessa expressão por considerar que

ela postula uma redução da escala de observação ao pensar a história política e cultural do período –

deve-se seguir ações de conjuntos menos homogêneos, genéricos e monolíticos que insistentemente

rememoram a geração. Assim, passam a ser utilizadas expressões como liberales reformistas, patriotas,

cosmopolitas y nacionalistas, primeros modernos, representantes de la cultura científica, que passam organizar o

seguimento a partir de escolhas mais reduzidas por problemas ou perguntas especificas. Mas o uso

da ideia de geração para pensar o passado argentino não deixou de ser sustentado, de maneira geral,

tendo em vista que a geração anterior, por exemplo, continuou tendo sua denominação utilizada. O

conceito de generación del 80 sofreu, entretanto, transformações mais significativas, tendo sido alvo de

múltiplas mutações e alargamento para conter personagens ou grupos mais variados dificilmente

coesos em alguns aspectos. A participação no Salón Literario, a experiência do exílio durante o regime

rosista, seu papel de letrados marginados nos âmbitos políticos, sua adesão a textos-manifestos são

aspectos que funcionam como experimentados pela maioria dos personagens da geração de 37

considerados na hora de definir os homens desse grupo. Porém, para a de 80 não se pode manter

nenhum desses enquadramentos referenciais para se ater, não podendo sem problemas conformá-

los a partir de elementos fixos comuns.

Essa expressão terá, nesse trabalho, uma utilização mais prática e utilitária e menos

conceitual, por termos conhecimento da tendência de abandono dessa expressão para se denominar

a esse grupo que, de forma distinta de seu anterior, demonstrou uma grande heterogeneidade, sendo

considerado, de maneiras diferentes em distintas épocas e por distintos autores. Por isso, faz sentido

delimitar nossa compreensão dessa geração, pois não concordamos também com uma ideia tão

generalizante e buscamos seguir tendências menos predeterminadas, uma vez que estas podem

enquadrar e limitar nossas análises. Em contrapartida, somos adeptos da posição de considerar

seguimentos de alguns grupos intelectuais e políticos que conviveram no período em questão,

reforçando nossas hipóteses de considerar a definição destes processos não de maneira fácil nem

linear, mas, ao contrário, em meio a muitos embates e negociações. Utilizaremos o termo aqui com

o intuito mais direto de nos referir principalmente a estes governantes argentinos responsáveis por

levar a cabo um projeto que buscava transformar a cidade baseados em ideais de modernidade.63

63 A imagem positiva sobre as mudanças na cidade é recorrente em nossas fontes e toma conceitos como “modernização” que, ao nosso ver, carregam heranças dos julgamentos elaborados naqueles momentos. Ancorados em Cerasoli, destacamos que, a despeito do papel homogeneizador, coeso e sem conflitos atribuído à modernização pelos discursos analisados, optamos por encarar essa expressão a partir da análise crítica de certas imagens positivas

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Esses políticos manifestavam uma aposta plena no progresso – visto a partir do

crescimento econômico e da modernização aproximando-se de ideias positivistas. Esperavam pelo

desenvolvimento do país em diferentes aspectos: econômicos, sociais e culturais, com base em

pressupostos da ciência e da tecnologia em tese capazes de resolver todos os problemas dessa cidade

em vias de modernização. De acordo com esses princípios, sustentavam ideias de expansão da ordem

e da civilização, e difundiam também o suposto papel da vinda de imigrantes europeus nesse

processo. Por esse motivo, levaram a cabo um grande processo de incentivo à imigração europeia e

à uma expansão da economia do país. Tais incentivos também se relacionam com as teorias racialistas

que levaram os intelectuais latino-americanos a buscar alternativas para superação do postulado da

época de inferioridade racial de seus povos. Como afirma George Andrews, para ingressar no seio

das nações “civilizadas”, a resposta de grande parte da América Latina, como no caso argentino, foi

um esforço amplo para transformar suas sociedades mistas em repúblicas brancas.64

Durante a década de 1880 o projeto elaborado por alguns setores em anos

anteriores alcançou sua realização de maneira mais plena. Entre 1881 e 1885 o número de

imigrantes dobrou em relação aos cinco anos anteriores – número esse que aumentou ainda mais

nos anos seguintes.65 As ideias sobre a questão imigratória defendidas por intelectuais amplamente

conhecidos como Alberdi e Sarmiento, representantes da chamada Generación del 37, não eram

exclusivas destes, mas compartilhadas por muitos outros membros participantes dessa elite.66 Uma

relacionadas a ela. A autora encara “modernização” como conceito histórico e não como vocábulo que remete diretamente a ideia de atualização. A opção se dá porque a apropriação dessa concepção acaba subvertendo-a em um discurso linear e hegemônico que dificultaria a compreensão das complexidades de um processo que, ainda que se perfaça de movimentos decisivos com predomínio de certos grupos sociais, não acontece sem contradições e embates. Incorporando essas ideias, entendemos modernização como um conceito operante, com significados historicamente inscritos e, portanto, um conceito plural. Ver: CERASOLI, Josianne Frância. Modernização no plural: obras públicas, tensões sociais e cidadania em São Paulo na passagem do século XIX para o XX. Tese (Doutorado em História) – IFCH-Unicamp, Campinas, 2004. 64 A América Latina foi levada a buscar solução diferentes para o problema da inferioridade racial que a ciência na época postulava para seus povos visando encontrar modos de viabilizar suas nações, já que o continente era marcado pelas genealogias indígena, negra e ibérica. As tendências seguem duas saídas: a aceitação do postulado geral da raça ou a tentativa de superação deste. Enquanto países como México e os países andinos optaram por essa última, outros fizeram a opção pelo primeiro pensamento, o que originou uma série de medidas como as adotadas pela Argentina com o objetivo de embranquecer sua população. Nesse caso, a baixa densidade da população indígena argentina possibilitou que os líderes políticos expulsassem ou exterminassem esses, evitando incorporá-los à nação – permitindo a ascensão de um novo discurso nacionalista calcado no pressuposto de que os povos de cada nação constituem um grupo étnico ou raça especifico. O branqueamento foi visto como chave essencial do processo por muitos países, por mais que não tivesse que como se realizar em muito deles e suas ideias foram defendidas por muitos intelectuais nessa época. Ver: ANDREWS, George Reid. Afro-Latin America: 1800-2000, New York: Oxford University Press, 2004. 65 DEVOTO, Fernando. op cit. p. 38 66 Para Fernando Devoto, a queda de Rosas, em 1852, fez com que participantes da geração de 1937 ganhassem papel de destaque chegando a assumir papel de líderes políticos capazes de alcançar até os mais altos cargos. Embora a imigração efetiva tenha começado apenas depois, estes indivíduos gostavam de pensar nesse fenômeno como advindo dessa época criando imagens que foram essenciais para a definição da própria identidade argentina bem como redefinir aquelas construídas pelos próprios imigrantes. O programa defendido por Juan Bautista Alberdi foi baseado no ideário

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série de discursos elaborados desde o final da década de 1870 insistia na necessidade de reorientação

na política migratória para promover a imigração de grupos europeus de acordo com os ideais já

citados. O final da década de 1880 resume o que Devoto considerou um primeiro conjunto de

motivos em torno da questão imigratória e da identidade nacional, que consagrou também uma

atitude de instauração de uma espécie pedagogia cívica baseada em estátuas e lugares públicos.

Os projetos de transformações urbanas revelam como as expressões arquitetônicas e

urbanísticas ajudaram a moldar a construção ideológica de um determinado imaginário. Buscamos

compreender como essa materialidade deve ser lida, no caso da Plaza de Mayo, para identificar os

discursos expressos em suas transformações. As modificações do final do século XIX estavam

inseridas em um contexto de transformação da cidade e acabaram por expressar interesses de atores

que buscavam mudanças físicas correspondentes ao projeto político de nacionalização da cidade.

Estes interesses, entretanto, não estavam imunes a disputas que se deram a todo momento na

constituição do espaço construído. Todos estes fatores são ferramentas essenciais para decifrar as

dimensões das transformações urbanas em uma perspectiva que busque se distanciar daquelas

fatalistas, voltadas a conceber esse processo a partir de explicações mecânicas e evolutivas.

O entendimento da necessidade de adequação da cidade ao seu novo papel como capital

fez, portanto, da cidade alvo de transformações que modificariam drasticamente sua aparência. Já

que o caráter da capital precisava agora ser definido – em meio a tensão por distintas representações

e modelos possíveis – a arquitetura das próprias instituições e sua relação com o espaço urbano se

tornaram um eixo dessa constituição. A nova possibilidade (e necessidade) de construir

materialmente a sede da administração pública nacional fez surgir propostas e ações que evidenciaram

interesses em constituir a cidade como modelo ocupado em representar a imagem de progresso que

buscavam setores mais altos dessa sociedade baseados em padrões de cidades europeias.67

“governar é povoar” no qual povoar tem um claro sentido civilizatório. Para esse autor, todo o esforço de transformação na Argentina seria inútil caso não se transformassem também suas características de sociedade atrasada – concedidas principalmente pelos nativos. Nesse sentido, a imigração europeia seria o novo ator que possibilitaria a implantação de novos hábitos e novos comportamentos que, por meio do exemplo, seriam imitados. Tratava-se, grosso modo, da substituição de uma população por outra concedendo à imigração um papel de mudar a Argentina para além de somente fornecer mão de obra. Outro programa apresentado por Devoto é o de Domingos Faustino Sarmiento que se centrou na experiência de uma colônia agrícola da província de Buenos Aires, Chivilcoy, na qual acreditava estar o futuro da argentina. Em seu projeto, defendia a criação de cem Chivilcoys e os imigrantes seriam os braços de uma agricultura cujo poder de transformação seria imenso já que eliminaria aquele que era considerado o verdadeiro inimigo da civilização e do progresso: o deserto. Nesse sentido, não necessitava de um tipo especial de imigrantes e a nova identidade argentina seria definida a partir do triunfo da cidade sobre o campo ou, grosso modo, da civilização sobre a barbárie. Um último projeto citado pelo autor é o de Bartolomé Mitre que, de maneira diferente, acreditava que a imigração era desejável não para transformar a realidade e criar um novo país, mas para se integrar aquele já existente. 67 Um dos principais recursos retóricos utilizados por estes discursos era a comparação com a modernização efetuada na capital francesa pelo barão Haussmann, encarada como paradigma de transformações urbanas de tal forma que, até hoje, é recuperada de forma recorrente. O destaque dessa reforma está no projeto baseado em arrumar o conjunto da

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Embora muitos autores tenham incorporado essas ideias a suas análises e reiterem a

concepção de que algumas cidades foram modelos imitados por outras – principalmente no caso

latino americano, encarado frequentemente como tendo sido muito influenciado pela Europa, sendo

enquadrado na ideia de cópia – nossa opção vai na contramão dessa perspectiva. Para Maria Stella

Bresciani as chamadas “ideias fora do lugar” referem-se à inclinação de rotular prática arquitetônica

e urbanística como importação inadequada ou mesmo transferência empobrecida de ideias e projetos

idealizados na Europa para uma outra “realidade”.68 Rejeitamos a ideia de modelos por estes gerarem

certa cristalização das tendências urbanas e arquitetônicas, nos prendendo em modelos explicativos

que viram regras que nos imobilizam em nossas análises por criarem metáforas explicativas de forte

caráter imagético. É importante, para tal, ter em mente a elaboração destes e inseri-los em uma

conjuntura de temporalidade que nos permita compreender suas especificidades e abandonar tais

esquemas rígidos, que já nascem desde o ponto de partida com resultados quase que certeiros. Por

isso, optamos aqui por encarar esses modelos como inscritos em seu tempo, tentando evitar o

anacronismo em sua análise.

A historiografia argentina sobre as transformações de Buenos Aires durante essa

transição do século XIX para o XX teve, principalmente a partir da década de 1990, um aumento

quantitativo considerável, responsável também por um alargamento de perspectivas. Preocupamo-

cidade além de embelezá-la, pensando em articulação de redes e sistemas. Apesar de Paris não ter sido a primeira cidade a ser alvo de reformas urbanas, foi naquela cidade que a dimensão dessas transformações assumiu tal amplitude que se transformou em modelo frequentemente recuperado como exemplo. A intervenção de Haussmann fez de Paris o primeiro paradigma da metrópole industrial que representava o urbanismo como nova disciplina que queria transformar o espaço urbano em objeto de ciência. A França aproveitou ocasiões como as Exposições Universais de 1867, 1878 e 1889 para exibir o que considerava como grandes avanços de técnicas, organização urbana e embelezamento. O que se buscava era exibir um domínio cada vez maior da ordem e a articulação de novas técnicas. Nessa chave, cabe retomarmos as ideias de Salgueiro que destaca que a convergência de fatores como poder político e econômico, peso demográfico, relações e representatividade cultural e social no caso da Paris do século XIX a transformou em um produtor de circunstâncias específicas cristalizando uma imagem-paradigma que teria se estendido em longa duração. O tema da transferência de modelos pressupõe uma reflexão atenta e a autora sustenta que se deve pensar das diferentes modalidades e graus de apropriação de modelos atestando, por exemplo, a superação de um antigo simplismo redutor para uma perspectiva que passou a estudar as respostas que a remodelação geral da cidade dava a representações anteriores e a problemas urbanos. Nesse sentido, destaca como importante a reflexão de que as apropriações não apresentam o mesmo nível, ritmo e evolução e, ao contrário, estão inscritas “no tempo próprio de cada cidade, no cenário particular de uma modernidade que se impõe, mas que é, ao mesmo tempo, almejada e escolhida, modernidade que se diversifica historicamente, embora conservando pontos comuns inscritos em sedimentação longa e complexa”. Ver: SALGUEIRO, Heliana Angotti. Op. cit, p.26. 68 Para a historiadora essas referências são estranhas ao domínio acadêmico, mas ganharam adeptos por seu caráter de fácil explicação e adoção em muitos campos das ciências humanas. Rejeitando a ideia da necessidade de compartilhar determinada crença na nacionalidade das formas de pensar ou exigência ingênua de ideias puras e originais, seus estudos propõem o reconhecimento de que “no campo do urbanismo, e estreitamente vinculado às possíveis opções políticas, colocava-se ao dispor dos interessados, como um fundo comum do conhecimento e prática de intervenção nas cidades, um leque de concepções universalizantes”. Ver: BRESCIANI, Maria Stella Martins. Imagens de São Paulo: estética e cidadania. In: FERREIRA, Antonio Celso; LUCA, Tania Regina de & IOKOI, Zilda Marcia Gricoli (Org.). Percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo: Ed.Unesp/FAPESP/ANPUH-SP, 1999.

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nos em analisa-las a fim de compreender o lugar ocupado por essa pesquisa e por nossas escolhas m

meio a essa historiografia e seus debates. Um enfoque dotado de uma forte chave interpretativa ainda

vigente se baseia na consideração de que a cidade foi modificada como parte de um fenômeno

orgânico, produto de uma evolução gestada pelo progresso próprio das cidades grandes. Nessa chave,

tanto aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos apresentam-se como fragmentos articulados

entre as obras da gestão municipal, a infraestrutura dos transportes, os grandes edifícios públicos e a

dinâmica de desenvolvimento de moradia desde o centro até os bairros afastados, caracterizando a

hipótese clássica defendida pelo historiador norte-americano James Scobie e reiterada em trabalhos

posteriores.69

A maioria dos estudos sobre história urbana desse período considerou, genericamente,

o grande volume de obras públicas e a anexação territorial como consequência direta da mudança da

condição política da cidade. O próprio trabalho de Margarida Gutman e Jorge Hardoy já citado por

nós, por exemplo, ao dedicar capítulos a esse período destaca o considerado fenomenal impacto

dessas transformações na capital nacional – caracterizando a federalização e o alargamento territorial

como dados políticos-administrativos, que resultaram no crescimento urbano e o potencializaram,

associando alguns desses processos de forma mecânica e pouco problematizada. Entretanto, outras

perspectivas apareceram nesse processo e ofereceram alternativas possíveis de abordagem. Estes

trabalhos coincidiam sobre a conformação de um campo ainda frágil e disperso e também advertiam

sobre os problemas gerados pela consagração de uma espécie de cânone historiográfico inclinado por

pressupostos e concepções que demonstravam problemas de caráter metodológico. Em particular

essas transformações urbanas se mostravam como objeto de difícil abordagem já que era notável uma

crise interpretativa baseada numa tentativa de encontrar o nacional dentro de uma produção que era

academicamente francesa, de forma majoritária.

A revisão crítica de Adrián Gorelik e Graciela Silvestri sobre as hipóteses de Scobie

evidenciou as múltiplas facetas vinculadas à existência de distintos modelos de cidade e as alternativas

da relação entre tendências de crescimento urbanos e os projetos para controlar a imagem de Buenos

Aires.70 Segundo Claudia Shmidt, a perspectiva desses autores representa um ponto de inflexão na

69 O livro do historiador norte-americano, publicado em 1974 e três anos depois em espanhol, transformou-se rapidamente em uma referência obrigatória a toda interpretação de cidade. O desequilibro atestado entre o sul e o norte da cidade, considerado pelo autor fator constitutivo da forma de Buenos Aires em favor do norte, foi recuperado e reiterado posteriormente em uma verdadeira multiplicidade de trabalhos que se dedicaram a esse tema, Ver: SCOBIE, James. Buenos Aires. Plaza to Suburbs, 1970-1910, Oxford University Press, 1974. GUTIÉRREZ, Ramon. Buenos Aires: Evolución histórica. Buenos Aires: Escala, 1992. GUTIÉRREZ, Ramón. BERJMAN, Sonia. op cit. 70 GORELIK, Adrián y SILVESTRI, Graciela. Imágenes al Sur. Sobre algunas hipótesis de James Scobie para el desarrollo de Buenos Aires. In: Anales del Instituto de Arte Americano e Investigaciones Estéticas Mario J. Buschiazzo, Buenos Aires. FAU, UBA, n.27-28, p.93-104, 1992. .

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historiografia inaugurando uma tendência acompanhada por outros trabalhos.71 Jorge Liernur

posteriormente também atenta para um mundo material em constante movimento, efêmero e

aleatório como definitivo para iluminar a chave de leitura de uma capital em processo de consolidação

buscando afirmar-se.72 Novamente Gorelik se concentrou em analisar a tensão da gestão municipal

com o imaginário cultural urbano avançando em uma análise do espaço público em sua rede de

parques e ruas integrando-os ao âmbito da esfera pública, considerando o espaço público como um

produto da colisão entre forma e política.73 A emergência desse espaço não está, portanto, definida

mas deve, ao contrário, ser definida como uma conjuntura.

Se advierte, de todos modos, que el conjunto de estos textos comparte un punto de vista común al abordar el estudio de Buenos Aires en el período propuesto: considerar las transformaciones urbanas y territoriales desde los procesos de modernización en general. El análisis del crecimiento, la zonificación y la movilidad; el desarrollo de las fuerzas productivas, las permanencias, las desapariciones o recreaciones de instituciones sociales; en fin, las múltiples operaciones que adquieren sentidos cuando la ciudad se inserta como instrumento de financiación, inversiones, ensayos técnicos, ilusiones y conexiones en múltiples niveles es, en efecto, el punto de vista que se corresponde con la dinámica de la expansión y reconversión de las ciudades cuyo rol relativo en la red de la economía mundial provoca su categoría de gross Stad, de metrópolis. Ese enfoque del pasaje de la ciudad – vista como una organización urbana en torno a formas reconocibles, una sociedad basada en sentidos comunes, creencias y tradiciones, asible como una totalidad – a la metrópolis, concebida en términos simmelianos como esa nueva conformación en la que todos os valores de la ciudad de disuelven, resulta verificable y puede prescindir de detenerse en la condición atípica y en ocasiones caprichosa de una capital de estado.74

Compreender, portanto, a “questão capital” nos conduz a dois níveis possíveis de análise:

a abordagem a partir das representações simbólicas ou aquela que se limita à mudança de status

administrativo. Essa segunda coloca ênfase na adjetivação jurídica justificando as modificações na

cidade e sua arquitetura como lógica consequente, quase que dever natural do Estado, resultante

direta dessa mudança política. Essa chave de leitura dilui, entretanto, a capitalização como problema

também simbólico desconsiderando o modo significativo que essa afetou a conformação material

desdobrando-se, ademais, em efeitos políticos. Na contramão destas análises, buscamos pensar as

71 SHMIDT, Claudia. Palacios sin reyes. Arquitectura pública para la "capital permanente". Buenos Aires, 1880-1890, Rosario: Prohistoria Ediciones, 2012. 72 LIERNUR, Jorge Francisco. La ciudad efímira. Consideraciones sobre el aspecto material de Buenos Aires: 1870-1910. In. LIERNUR, Jorge Francisco; SILVESTRI, Graciela. El umbral de la metrópoles. Transformaciones técnicas y cultura em la modernización de Buenos Aires. 1870-1930, Sudamericana, Buenos Aires, 1993, p. 176-222. 73 GORELIK, Adrián. La grilla y el parque. Espacio público y cultura urbana em Buenos Aires, 1887-1930, UNQ, Buenos Aires, 1998. 74 SHMIDT, Claudia. Palacios…, p.32

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transformações materiais encaradas a partir de suas características e pela escolha relativa dos espaços

que deveriam ocupar na cidade, nos interessando pelo efeito que o fato de estarem na capital, produz

na própria dinâmica de orientação dessas intervenções. Buscamos contribuir para a superação da

tradicional perspectiva que encara estes processos como distintos, impondo uma distância entre estas

esferas (política e a materialidade urbana). Manifestamos aqui, portanto, a intenção de percorrer um

caminho contrário buscando sua interação.

Focar nas mudanças materiais nos conduz, muitas vezes, à falsa ideia de uma evolução

material que sustentaria os estudos sobre o urbano ou pensamentos sobre ele. A questão capital,

bastante tratada na historiografia argentina por seu âmbito político, foi, entretanto, pouco

explorada a partir das implicações dos pressupostos desse universo das ideias em sua conformação

material. Escolher adotar esse enfoque revela a existência de continuidades e persistências em uma

série de tópicos que, em outras análises, pareceriam surgir de maneira automática sendo encaradas

como consequências da superação do conflito e da estabilidade conferida pela federalização.

Ao contrário, acreditamos existirem relações diretas entre formas e ideias relacionadas ao

urbano, ou seja, entre as transformações vivenciadas pela cidade e aquelas narrativas que a

adjetivam. Essas relações são essenciais e evidenciam a importância da dimensão histórica como

parte fundamental dos estudos urbanos pois permite situar e problematizar ambas – as narrativas

e as transformações. Ainda que estejamos tratando de um momento posterior, os debates em torno

da definição da capital se fazem necessários porque reverberam simbolicamente em toda história

da cidade. Por isso, o debate político foi revisitado aqui a partir das figurações, provenientes das

conceituações políticas, que passam ao terreno das representações materiais envolvendo a relação

entre cidade e política. Em meio a tão rica e sugestiva produção historiográfica, pretendemos seguir

as possibilidades abertas por essas últimas abordagens, que sugerem a interação entre esses campos

por meio de questões como a coexistência dos governos, suas competências, as relações entre os

poderes, o peso do simbolismo etc., reconhecendo que estas funcionam como articuladoras entre

cidade e política, dissolvendo as tradicionais visões estáticas de ambos

Desse momento em diante se abre um novo dilema entre a ordenação do limite existente e

a incorporação e anexação de novas jurisdições: um dilema entre capital e território. Essa relação é

reveladora se observamos as transformações da cidade no período focando em sua condição de

capital republicana e, logo, cidade de todo o país. A mudança de enfoque permite perceber as

diferenças entre gestões municipais e nacionais a respeito dessa nova condição já que fora

submetida a extensos debates e rígidas reformulações. Considerar essa gama de questões permite

observar operações diretas de outros atores – presidente da nação e congresso nacional – que

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também tem incidência direta nas transformações e na gestão da cidade além da esfera municipal.

Se colocarmos estas em relação, surgem gestões simultâneas ou sobrepostas, desordenadas ou

distintas que são encabeçadas pelo município e pelo país por meio de distintos protagonistas –

políticos e técnicos – no contexto dos órgãos públicos. As visões desses atores sobre a cidade

derivadas de sua própria relação hierárquica que se estabelece em âmbito político implicavam,

necessariamente, em distintas visões sobre os problemas a serem considerados.

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Capítulo 2: Una sola plaza

A federalização de Buenos Aires institucionalizou o fim da forçada coabitação entre o

presidente da república e o governador bonaerense instituindo o primeiro como soberano no

cenário político nacional. A ascensão do General Julio Roca ao poder ainda no ano de 1880,

sucedendo a presidência de Nicolás Avellaneda, propagou a ideia de progresso apoiado no avanço

da economia tão característica daquela geração que fazia parte. Nessa rede de relações, o novo

presidente esteve rodeado de figuras de grande prestigio intelectual e político, também pertencentes

a esse grupo, que compartilhavam ideias como a de que as heranças hispânica e indígena eram os

principais entraves ao desenvolvimento nacional.75 Esses homens públicos, adeptos de um nítido

conservadorismo político, consideravam-se os únicos capazes de direcionar tal desenvolvimento e

destinavam a si mesmos a manutenção dos mecanismos de poder por meio de práticas

antidemocráticas e excludentes que foram comuns a diversas gestões que se alternaram no poder.76

A capitalização tornou possível a realização inédita da convicção dessa elite dirigente

que se expressou na necessidade de acompanhar o processo de modernização com a conformação

de um mundo material que corporificaria seu projeto de novo estado-nação de forte base simbólica.

A partir de então, a representação da condição republicana como particularidade de nova Buenos

Aires seria o cerne de grandes questões. Muitos anos ainda seriam dedicados a delimitar essa cidade,

definida agora em função de ser sede das autoridades que exerciam o governo federal.77 Pela

Constituição, a cidade de Buenos Aires tinha reconhecida representação nas câmaras de deputados

e senadores, como todas as outras províncias, entretanto, sua organização institucional ficava

submetida a legislação ditada pelo congresso federal e a autoridade do poder executivo nacional.

Ainda que desde 1880 Buenos Aires fosse administrada por uma Comissão Municipal,

nesses anos iniciais, o Congresso Nacional foi responsável por criar as leis necessárias para

institucionalizar e organizar os poderes públicos nessa nova capital constituída, como a criação do

cargo de Intendente Municipal.78 Superando ainda alguns embates, como o veto a uma lei do ano

75 A gestão de Roca encarava também a dificuldade de desenvolvimento nacional como associada a um sistema de ensino ainda precário e que pouco se assemelhava aos padrões europeus, considerados ideais. Uma das principais ações de seu governo foi a sanção da lei 1420, no ano de 1884, que estabelecia o ensino primário gratuito, obrigatório e laico a todos os habitantes da nação. 76 A política argentina dos anos subsequentes se caracterizou pela afirmação desse grupo no poder a partir de uma sucessão regular de governantes se estendeu até 1916 com domínio majoritário do Partido Autonomista Nacional detendo controle do governo nacional e de grande parte dos governos provinciais. 77 Como descrito pela Constituição da Nação Argentina. Artigo 3º. 1853 78 A Comissão Municipal era formada por doze pessoas nomeadas pelo general José María Bustillo, então interventor da província de Buenos Aires

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anterior por parte do presidente Roca, foi em outubro de 1882 que foi sancionada pelo congresso

a Ley Orgánica de la Municipalidad, de número 1260, lei responsável pela organização da

municipalidade da capital, promulgada em novembro que significou profundos rearranjos no

funcionamento municipal.79 A estrutura dessa lei era muito similar àquela sancionada anteriormente

e desenhava a nova forma de governo que seria exercida na capital: a municipalidade seria composta

pelo Consejo Deliberante, integrado por 30 legisladores e por um Intendente com mandato de três

anos – designado pelo presidente com acordo do Senado. 80

O primeiro fora definido como um órgão legislativo com autoridades suficientes para

ditar ordenanças – espécies de normas que ocupavam um grau mais baixo na hierarquia jurídica se

comparadas a leis nacionais ou provinciais – aprovar pressupostos da administração municipal e

até mesmo afastar o intendente do cargo, caso obtivesse aprovação necessária de dois terços do

seu corpo total. Tal Conselho se integraria com representantes de cada paróquia eleitos por voto

limitado aos contribuintes e teriam seus cargos garantidos por dois anos, se renovando a legislatura

anualmente pela metade.81 Já o departamento executivo estaria a cargo da figura do Intendente,

funcionário nomeado pelo presidente da nação com a aprovação do senado. Esse permaneceria

em sua função também por dois anos podendo ser reeleito, e possuiria amplas funções para

designar funcionários municipais além de poder de veto sobre as iniciativas do conselho.

Na divisão de atribuições, o governo federal se reservava ao controle do porto, à

administração tanto da justiça quanto do poder de polícia. A municipalidade se encarregaria da

provisão de serviços públicos – água corrente, pavimentação, limpeza, saúde e transporte – da

organização do trânsito, do traçado das ruas e vias, conservação de parques, passeios e praças e

planificação urbana. As atribuições do Conselho Deliberativo quanto a distintos campos da

administração municipal eram definidas na segunda seção da lei, como no caso das obras públicas,

que nos interessam de forma mais direta.82 Nesse setor, eram tarefas correspondentes a esse órgão

a abertura e o alargamento de ruas, fixação da altura dos edifícios e delimitações da cidade,

79 Em outubro de 1881 foi sancionada uma lei que criava um Conselho Deliberativo e um Departamento Executivo cujo titular possuía um mandato de três anos para governar a cidade. 80 DE LUCA, Miguel; JONES, Mark; TULA, María Inés. La ciudad de Buenos Aires. Política y gobierno en su último medio siglo. Revista Mundo Urbano, n.7, UNQ, 2000. 81 O termo paróquia refere-se a antiga divisão eclesiástica, uma das muitas administrativas da cidade, na qual essa se definia a partir das 14 paróquias do antigo município adicionando as de Belgrano e Flores, incorporadas aos novos limites ainda na primeira década após o processo de federalização. Apesar dessa não ser a única divisão encontrada, a título de aproximação, cabe lembrar que esse tipo de divisão administrativa é muito semelhante com a encontrada também no Brasil em períodos de sua história cuja importância eclesiástica se estendia a tal modo que esbarrava em funções políticas determinando a nomenclatura e o entendimento dos limites nos quais os territórios se dividiam. Ver: GONZÁLEZ, Lidia (dir.). Ciudad de Buenos Aires. Un recorrido por su historia, 2ª ed., Dirección General Patrimonio e Instituto Histórico, Buenos Aires, 2009. 82 Ley Orgánica de la Municipalidad, número 1260.

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construção e melhorias de edifícios e monumentos públicos, espaços públicos e outras obras

municipais bem como a compra ou desapropriação de terrenos necessários pare estas funções.83

FIGURA 4: Plano que mostra os partidos de Belgrano e Flores, cedidos pela província de Buenos Aires para o alargamento territorial de Capital, e a área do antigo município, 1888. FONTE: Litografia do Departamento de Engenheiros, Museo Mitre

A nova condição de Buenos Aires enquanto capital é narrada como marca do processo

de transformação da cidade em uma metrópole. Esta, que ainda contava com uma insuficiente

infraestrutura de serviços, vai ser alvo de mudanças que ocorrerão na gestão do primeiro intendente

e assinalarão as principais características da imagem consolidada posteriormente. A falta de um

83 Além das atribuições já descritas aqui o Conselho acumulava uma série de outras responsabilidades no quesito de obras públicas. Como descrito no sétimo ponto do artigo 46, essa responsabilidade se estendia a tudo que se relacionasse com obras públicas municipais e que fosse executado de maneira direta ou por contratos particulares.

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sistema de esgoto e o limitado serviço de provimento de água potável são exemplos da estrutura

dessa cidade que até então contava também com poucos edifícios suntuosos, de caráter público ou

privado.84 A rápida expansão da cidade a partir de então se orientou, grosso modo, para a direção

norte e oeste como observamos a partir da própria definição dos limites territoriais da capital –

favorecida pelo traçado da linha férrea.85 A lei de federalização definira para a cidade os mesmos

limites fixados em 1867: o antigo município estava limitado ao norte pelo Arroyo Maldonado, ao

sul pelo Riachuelo e a leste pelo Rio da Prata. A oeste, os limites eram determinados pelas atuais

ruas Córdoba, Medrando, Castro Barros e Boedo até alcançar o Riachuelo totalizando o equivalente

a uma superfície de 4.400 hectares. Em 1887, entretanto, esses limites foram ampliados com a

incorporação das jurisdições dos partidos de Belgrano e Flores – localizadas, respectivamente, ao

norte e a oeste do antigo município).86

Ficou definida para a capital uma extensa área de 18.869 hectares que ainda

compreendia, em sua maior parte, terrenos vazios ou de uso rural. Os novos limites norte e

noroeste eram os partidos de San Isidro e San Martín e oeste e sudoeste o partido de Matanza

(fig.4). Nessa podem se observar ainda, marcado pelo tom mais escuro, os limites do antigo

município permitindo dimensionar o que significara esse crescimento em termos de expansão

física, que girou em torno de uma porcentagem calculada em 428. Essa perspectiva de

desenvolvimento não poderia deixar de ser representada cartograficamente por essa elite dirigente

e por seus representantes a nível municipal que se inseriram nessa retórica de enaltecimento

desenvolvendo estratégias capazes de registrar as ações que se desenrolavam na cidade. Na figura

ainda é possível observar o limite traçado pelos engenheiros do departamento na busca de uma

regularidade que não é compatível com a forma preexistente dos partidos cedidos pela província

84 Segundo Claudia Shmidt, antes da definição de uma capital definitiva a variável do tempo foi um fator determinante nas decisões relacionadas a obras públicas. Essas centraram-se nas linhas férreas, atividades portuárias, construção de hospitais, distribuição de água e esgoto e abertura de ruas, ou seja, intervenções concebidas com forte sentido operativo do ponto de vista da modernização e um sentido técnico-higienista na sua materialização – sendo impulsionadas por estratégias políticas e empresariais e sua materialização confiada nas perspectivas de médicos e engenheiros. Entretanto, um outro tipo de obras públicas não poderia ser impulsionado sem a resolução primária da definição da cidade enquanto fenômeno unitário e estratégico: o porto, os parques públicos ou as localizações das estações de trem. Essas arquiteturas, responsáveis por comunicar sentidos ligados a instituições representativas republicanas em suas distintas instâncias, não podiam ser concebidas sem a definição de uma capital permanente. Ver: SHMIDT, Claudia. Palacios… 85 O desenvolvimento da rede ferroviária começou ainda na década de 1850 quando foram firmados contratos entre empresas inglesas e o estado argentino. A primeira linha pertencia a investidores ingleses e argentinos e contava com financiamento da província de Buenos Aires. a Ferrocarril Oeste, como era chamada, possuía um trecho inicial de 9.8 quilômetros e ligava a estação Del Parque (Plaza Lavalle, aonde está hoje o Teatro Colón) e a estação Floresta. 86 Partido é a denominação constitucional dos municípios que se dividem as províncias. Sobre o processo de formação de Buenos Aires e seus partidos ver: LÓPEZ-GOYBURU, Patricia. La ciudad de Buenos Aires y sus partidos fronterizos. Primeras reflexiones. In: Jornadas de Jóvenes Investigadores, 6, 2011. Buenos Aires. Anais… Instituto de Investigaciones Gino Germani, Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2011.

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chegando a incluir uma parte do partido de San Martin. Carla Lois, ao pensar nos elementos

representativos do espaço urbano, tais como mapas, planos e cartografias, destaca a necessidade de

refletir sobre seu papel na formação territorial e na própria construção identitária.87 Apesar de

utilizados aqui como elementos que nos permitem dimensionar, mesmo parcialmente, as

modificações descritas, destacamos também a necessidade de pensar em suas condições de

produção reconstruindo a ideia de que os mapas são meras representações científicas rígidas para

compreendê-los como imagens que funcionam como objetos culturais complexos.

A intendência foi ocupada pela primeira vez por Torcuato de Alvear que exercera

também durante os três anos anteriores à presidência da comissão. Alvear começou a se envolver

de maneira ativa pelos problemas da cidade desde sua nomeação para a Comissão Municipal sendo

esse e sua gestão retratados sempre como símbolos de todo esse anseio de seus pares por

transformar a aparência dessa nova cidade burguesa contando com uma série de colaboradores

que se responsabilizariam pela realização de seus projetos. Durante os anos de sua gestão, de

1880 a 1887, contando com a presidência da comissão, a população da cidade aumentara

significativamente, seguindo a tendência dos números apontados no censo anterior . Na capital,

a taxa de crescimento populacional entre o censo nacional de 1869 e o municipal de 1887 foi de

4,77% definindo este último um total de habitantes de 433.375 distribuídos entre o antigo

município, os novos partidos e a população fluvial.88 Desse quantitativo, os residentes estrangeiros

representavam 52,8% da população do distrito federal dentre os quais predominavam italianos,

espanhóis e franceses. O Segundo Censo Nacional, realizado no final do século no ano de 1895, a

população da Argentina totalizava 4.094.911 habitantes, representando um aumento de 121% com

relação aos números do censo nacional anterior, dos quais a província de Buenos Aires concentrava

agora cerca de 921.168, praticamente dobrando as cifras de 1869.89 A capital, aparecendo agora

como território, concentrava 663.854 habitantes e seu crescimento populacional é estimado em

255%, ficando apenas atrás da província de Santa Fé. As cifras também demonstram um grande

aumento da população considerada urbana que representava agora 42.8% do total enquanto em

1869 somente alcançava 34,6%, comprovando uma tendência universal do século de

engrandecimento das cidades. Além disso, segundo a Revista de Engenharia do começo de 1893 a

Argentina contava com 7.310 milhas de malha ferroviária construída além de 1.520 em vias de

87 LOIS, Carla. Mapas para la Nación. Episodios en la historia de la cartografía argentina. Buenos Aires: Biblios Ed., 2014. 88 Censo general de la población, edificación, comercio e industrias de la ciudad de Buenos Aires de 1887, Buenos Aires, 1889 89 Esse seguiu os parâmetros do anterior, porém a amostragem territorial passou a considerar novas regiões. Fonte: ARGENTINA, Segundo Censo de la República Argentina, Tomo 2. Población. Buenos Aires, 1895

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construção.90 A cidade expandia-se rapidamente para o norte e o oeste, tendência iniciada com seu

alargamento territorial, aonde concentraram-se os projetos e intervenções do governo.

A administração de Alvear foi encarada como o arquétipo de uma gestão

modernizadora e reformista pois, durante esse período, foi impulsionada a formação de uma

burocracia técnica a nível municipal. Essa possuía alguns graus de autonomia e se apoiava em um

conjunto de saberes especializados buscando aplicá-los para resolver problemas específicos do

processo de crescimento urbano. A criação de uma oficina estatística, em 1886, foi parte dessa

complexificação e burocratização que aconteceu também em outros âmbitos. Essa oficina

dedicava-se a estatística municipal e ao registro populacional, começando a funcionar apenas no

ano seguinte já na gestão de outro intendente. Em termos gerais a estatística se consagrava como

instrumento de representação da riqueza material da nação que, em Buenos aires, buscava celebrar

as mudanças pelas quais passavam.91 Assim como os mapas, destacamos aqui que os dados dos

censos recuperados por nós também devem ser encarados além de simples reflexos da realidade.

A própria preocupação da administração do intendente em criar o serviço de estatística revela a sua

importância enquanto instrumento que, muito além de mensurar, tem papéis discursivos que visam

disseminar uma dada mensagem em consonância com os desejos da classe dirigente. Nos

aproximamos desse corroborando as ideias de Diego Roldán que os considera a estatística um

gênero de escrita inscrito no processo de formação histórica da promoção de uma propaganda

urbana superando a visão de que esses consistiriam em reflexões da realidade sem distorções.92

Estes conformavam artefatos culturais híbridos que, a partir de um conjunto de saberes,

propunham imagens úteis tanto do território quanto da população que eram traduzidas a partir das

necessidades culturais e políticas da sua administração. Compartilhando, portanto, dessa premissa

procuramos compreender seus efeitos para além dos números, considerando a narrativa que estes

compõem em meio a um tecido complexo de ações, significados e relações. 93

Para a Plaza de Mayo se destina um papel de destaque em meio ao projeto municipal e,

ainda, nacional. O projeto que foi pensado para esse espaço inicialmente envolveu sua valorização

90 Revista de Ingenieria, Buenos Aires, 14 de janeiro de 1893, número 1. 91 GONZÁLEZ BOLLO, Hernán. COMASTRI, Hernán. DANIEL, Claudia 125 años de la estadística porteña. Buenos Aires: Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Dirección General de Estadística y Censos, 2015. 92 ROLDÁN, Diego. Inventarios del deseo. Los censos municipales de Rosario, Argentina (1889-1910). História (São Paulo) v.32, n.1, p. 327-353, jan./jun. 2013. 93 Optamos por compreender essas fontes como textos publicitários do próprio processo de modernização argentino. Entretanto, consideramos que essa seja uma característica desse tipo de fonte e não exclusiva da Argentina. Também para o Brasil, estudos dedicaram-se a destacar a importância de atentar para as possíveis distorções e omissões presentes nesse tipo de fonte que utilizavam estratégias como o incremento populacional como forma de controle. Ver: BASSANEZI, Maria Silvia Casagrande Beozzo (Org.). São Paulo do passado: dados demográficos. Campinas, SP: Nepo/Unicamp, 1998.

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enquanto espaço representativo e, portanto, demandou ações que buscavam dotá-la de elementos

considerados importantes para isso como o próprio aumento de sua superfície. Na gestão de Alvear

esse discurso começou a tomar forma e se inseriu nessa dinâmica de conformação de uma imagem

para a cidade por meio de estratégias materiais e discursivas que estavam, como defendemos aqui,

sempre imbricadas. Por ter sido o primeiro intendente da cidade, lidou com questões que

concerniam ainda à organização dessa condição inédita de capital. Escolhemos analisá-lo pela sua

gestão compreendendo como se efetivam ou não projetos na cidade em meio aos embates

estabelecidos entre atores. Nossa opção, portanto, por investigar a ação da administração de Alvear

tentou se afastar da tradicional tendência de enaltecimento de seu governo e de sua figura se

esforçando para entender como suas estratégias foram resultado, em grande parte, de configurações

política as quais o intendente se sujeitou.

O estudo das intervenções nas cidades quase sempre nos conduz a pensar em

protagonistas, sejam esses coletivos, anônimos ou mesmo desconhecidos, já que estas ações são

comumente remetidas à ideia de autoria. Ao realizar esse movimento, entretanto, devemos

conhecer a formação desses sujeitos, suas posições político-partidárias, equipamentos e recursos

disponíveis, dentre outros fatores que ultrapassam suas simples trajetórias biográficas e que devem

ser entendidos a partir de posições e escolhas assumidas por estes em suas vidas profissionais e

pública bem como de condições externas que não se apresentam da mesma forma para todos os

sujeitos. Torcuato de Alvear é, desde então, descrito como um intendente empreendedor e

obstinado, tendo se dedicado a conduzir a cidade de maneira muito regular por meio de uma

administração regular que modificara Buenos Aires de acordo com os ideais de modernidade

buscados.94 Entretanto, ressaltamos aqui mais uma vez a necessidade de problematizar essas

classificações a posteriori que concedem a determinados indivíduos papel de destaque encarado

quase como destino. As ações empreendidas tanto pelo interventor quanto por seus colaboradores

resultaram de alianças e negociações que se deram entre grupos e interesses a todo momento.

Esse campo de intervenção se conforma a partir do acirramento de disputas e

injunções políticas e consideramos estar falando, majoritariamente, de uma parcela letrada da

população com acesso a saberes especializados. Suas adjetivações e enquadramento são também

parte de um discurso voltado a conceder a esse grupo ou determinados indivíduos papel de

protagonistas em um processo que, em realidade, ocorreu a partir da confluência de inúmeros

94 Os trabalhos dedicados a figura do intendente tenderam para visão que destaca suas atitudes como singulares quase como se estivesse, de maneira inata, destinado a realizar as ações que empreendeu e sem problematizar as relações que ele estabelecia, os recursos que dispunha e as condições diferenciadas que o possibilitaram levar a cabo tais estratégias. Discordando dessas visões, escolhemos evidenciar também esses aspectos.

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fatores. É inegável, por exemplo, que seus vínculos com a própria elite dirigente do país lhe

permitiram empreender tarefas impossíveis a muitos outros. Avellaneda e Roca, por exemplo,

criaram grandes oportunidades para que Alvear pudesse colocar em prática suas ideias de

transformação da cidade.95 Entretanto, a convivência do intendente não foi pacífica com todas as

instâncias já que, durante sua gestão, se envolveu em conflitos contínuos com o Conselho

Deliberativo.96 Tais embates chegaram a afastar o presidente de suas funções por um curto período

de tempo, situação que foi revertida rapidamente graças aos distintos apoios acumulados por este.97

Destacamos, portanto, a necessidade de repensar as interpretações da ação pública,

colocando o território como componente chave destes processos de mudança. Assim, as

diversas ações que tomaram forma durante a gestão do intendente e seus colaboradores

estavam emparelhadas com o discurso que incentivada a constituição de Buenos Aires a partir

do modelo dos centros urbanos europeus, incorporando estes aspectos estéticos a uma cidade

que não só queria, mas precisava se consolidar como cosmopolita para agora cumprir seu

protagonismo de capital da nação argentina. A cidade até então contava com uma insuficiente

estrutura de serviços que incluía uma baixa porcentagem de ruas pavimentadas e transporte

caro para os setores populares. As mudanças gestadas nesse período vão assinalar os principais

traços de uma cidade que ainda demoraria algumas décadas para se consolidar.

O intendente, considerado representante também da Generación del 80, encabeçou

projetos que buscavam alterar a imagem da cidade para que essa sustentasse ideias de expansão

da ordem e da civilização defendidas por esse grupo. O Plano proposto por Alvear tem como

95 Para Gutman e Hardoy, o intendente procurava manter-se atualizado sobre iniciativas urbanísticas desenvolvidas na Europa por meio de amigos pessoais, residentes ocasionais em países europeus que lhe escreviam periodicamente ou mesmo por pessoas especializadas a quem recorreu durante sua gestão. Avellaneda se encontrava nesse primeiro grupo. Alvear contou com a oportunidade de visitar alguns países da Europa ainda em 1851 quando, ao retornar, militou pelo partido liberal em apoio a pré-candidatura de Adolfo Alsina a presidente nas eleições de 1874 que consagraram, entretanto, Avellaneda. Depois da morte de Alsina, apoiou a candidatura de Roca que assumiu a presidência entre 1880 e 1886. Como presidente da República, Roca foi um dos mandatários que mais prestou apoio às autoridades municipais da capital. Com sua intervenção direta em muitas oportunidades conseguiu sancionar disposições que tendiam a impulsionar os considerados progressos positivos e grandiosos da cidade ajudando inclusive a Alvear ao manter a conformação da comissão como era, ajudando-o a ser eleito seu presidente posteriormente. 96 O Conselho suspendeu o intendente por conta de uma questão com os jarros dos leiteiros tendo sido substituído por Dr. Alberto M. Larroque que não foi, entretanto, reconhecido por alguns secretários que, por esse motivo, não chegaram a notificar Alvear causando uma clara disputa entre poderes paralelos que buscavam se legitimar a partir de critérios e argumentações distintos. A partir dessa situação, o intendente afastado recorre ao ministro de interior, Bernardo Irigoyen, afirmando que a acusação contra ele é fraca e uma violação direta à própria Lei Orgânica do município colocando em prática o funcionamento democrático da cidade. Alguns meses depois, com a ajuda da intervenção de Irigoyen, Alvear é restituído de seu posto. De maneira geral, seu processo de resistência e o sucesso desde pode ser explicado pelo apoio que possuía de algumas importantes figuras de autoridade bem como do próprio povo e de alguns meios de comunicação. Ver: BECCAR VARELA, Adrián. Torcuato de Alvear, primer intendente municipal de la ciudad de Buenos Aires. Buenos Aires: Guillermo Kraft y Cía, 1926. 97 O livro de Beccar Varela foi escrito para homenagear Alvear e revela sua não-neutralidade ao tratar do autor, optamos por acompanhar esse processo de afastamento também a partir das atas do Conselho Deliberativo.

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base a visão da cidade delimitada desde 1867 e que, posteriormente, incorpora os novos partidos,

como vimos acima. Fora dos considerados os limites urbanos foi pensado ainda uma espécie de

cinturão: uma Avenida que funcionaria como contorno da cidade e contenção sanitária a partir da

proposta do alinhamento entre artefatos considerados insalubres de serviço e as funções de uma

cidade moderna: matadouros, industrias, queima de lixo, hospitais e cemitérios.98 Essa proposta era

anterior a anexação dos partidos que não estavam incorporados nos limites desse boulevard.

Começou-se ainda a pensar sobre a abertura das diagonais norte e sul, processo concluído mais

tarde, e na própria qualificação da trama urbana com a pavimentação de grande parte das ruas.99

FIGURA 5: Esquema da cidade de Buenos Aires em 1887 assinalando as áreas construídas e os três sucessivos boulevards de circunvalación durante o século XIX. O esquema evidencia a concentração da área edificada, os partidos que foram incorporados e situa elementos representativos no espaço urbano tais como a Plaza de Mayo e a Plaza del Congreso. FONTE: GORELIK, Adrián. La grilla y el parque. Espacio público y cultura urbana em Buenos Aires, 1887-1930, UNQ, Buenos Aires, 1998, p.15.

98 Cabe lembrar a especial atenção dada a infraestrutura hospital e para a saúde tendo em vista que se preocupava, a partir de preceitos higienistas e sanitaristas, com a recente epidemia de febre amarela e com os perigos da chegada da cólera e todo tipo de enfermidade contagiosa com a chegada cada vez maior de pessoas. Foram estimuladas obras de provisão de água potável e de drenagem, reservando à questão higiênica lugar prioritário na administração. 99 A todas essas questões se somam a estruturação de uma administração municipal a partir da criação de assistência pública, oficina química municipal, controle alimentício e até o primeiro regulamento edílico.

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As intervenções concentraram-se na parte central da cidade e dois foram os grandes

projetos da administração que mudaram significativamente a imagem física do centro da cidade: a

remodelação da Plaza de Mayo e a abertura de uma avenida que teria como função dirigir-se para o

oeste a partir da mesma praça. A primeira dessas é a que mais nos interessa aqui por envolver a

praça que é objeto específico desse estudo e será objeto direto desse capítulo, embora, também o

projeto de abertura da Avenida de Mayo relacione-se com nossas análises pois, segundo Gutierrez

e Berjman, a formação do eixo Plaza de Mayo-Avenida de Mayo adquiriu grande importância

dentro de seus projetos e realizações, o que ajudou a ratificar certa ideologia de apropriação do

centro de poder do país. Segundo Hardoy, as grandes transformações físicas da cidade se

registraram em estilos e tipos de edifícios, mas também se produziram alterações no traçado

urbano.100 O antigo traçado colonial de ruas estreitas foi alargado: a Avenida de Mayo foi

construída e também outras ruas diagonais que partiam da Plaza de Mayo acabaram modificando

o centro de Buenos Aires. No próprio traçado das ruas da cidade era possível perceber uma

notável melhoria da pavimentação em relação ao século anterior. O historiador Mario Rapoport

e a periodista María Seoane ao escrever sobre a história da cidade de Buenos Aires recordam

que quase todas as ruas ao redor da Plaza de Mayo e até quinze quadras de distância estavam

pavimentadas além de contar com iluminação e sistema de limpeza. 101

Aquela considerada a reforma mais significativa da gestão de Alvear foi a da própria

praça que, segundo seu discurso, visava dar forma a um desejo de todos de comemorar a

nacionalidade argentina por meio de monumentos públicos. Ainda naquele período, o atual

espaço da praça era ocupado pelas Plaza 25 de Mayo a leste e a Plaza de la Victoria a oeste,

separadas a partir do edifício da Recova, como demonstram as figuras 5a e 5b, ocupavam um

espaço livre definido para esse fim desde a chamada segunda fundação da cidade, em 1580. 102

Esse espaço, apesar de existir a tanto tempo passou por significativas modificações até mesmo

no que concerna as instituições que a rodeavam. É importante compreendermos a configuração

material dela nesse momento para facilitar a visualização das mudanças que ali vão acontecer a

partir de então. A partir dos esquemas e descrições já realizados em nossa introdução

evidenciamos que tanto o espaço da praça e seus arredores se modificaram. Recuperamos aqui

100 HARDOY, Jorge Enrique; MORSE, Richard. op. cit. 101 RAPOPORT, Mario; SEOANE, Maria. Buenos Aires, historia de una ciudad. Tomo II. Buenos Aires: Planeta, 2007, p. 226 102 Ainda no século XVIII, foi sugerida a construção de um edifício para suplantar o mercado improvisado que acontecia diariamente na Plaza del Forte servindo como local de venda de mercadorias. A construção da Recova aconteceu em entre 1802 e 1804 e, a partir de 1840, a construção foi privatizada sendo adquirida por dois irmãos e vendida para Thomás Anchorena que, com sua família, alugava seus espaços para comerciantes.

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parte dessa configuração no momento citado para facilitar a visualização dos processos que

buscamos descrever e analisar.

FIGURAS 6A e 6B: Recortes de plano topográfico da década de 1840 mostram a localização das praças. O detalhe mostra a Plaza 25 de Mayo a leste, frente ao ainda existente forte, marcado pela letra A, e a Plaza de la Victoria a oeste, com o cabildo e a catedral em seu entorno – separadas pela Recova também representada. FONTE: Biblioteca Nacional Mariano Moreno, material cartográfico disponível em formato digital

Cabe assinalar que projetos anteriores já haviam sido pensados para esse espaço e, por

isso, cabe refletir sobre questões de escalas e perspectiva que permitam ponderar com maior

precisão o impacto representado pelas modificações. Em anos anteriores, quando a cidade ainda

não era capital, para as escassas praças existentes em Buenos Aires teve início a introdução de

artefatos que modificariam radicalmente seu sentido, seu uso e suas percepções como bancos,

fontes e monumentos. Na Plaza de la Victoria, em 1856 foram plantados cinamomos e se instalaram

bancos e lanternas de acordo com as disposições de Prilidiano Pueyrredón cujos desenhos

orientariam também, no ano seguinte, a remodelação da pirâmide. Na década seguinte se dividiu

as extensas superfícies das praças com jardins geométricos e foram colocadas fontes e cercas

dispondo de um sistema perimetral de iluminação que as converteu em recintos cerimoniais e

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festivos. Até meados da década de 70 ainda se instalou na praça a estátua do general Belgrano, a

partir de muitas negociações e polêmicas bem como as remodelações da pirâmide e propostas para

novos monumentos, alguns dos quais serão ainda tratados em momentos futuros dessa dissertação.

Tais modificações já haviam transformado a própria imagem da praça, que quando

representada anteriormente aparecia como um grande vazio espacial com ocupações específicas de

pessoas, animais e atividades comerciais, a partir de uma regulamentação de formas e usos que já

vinha sendo gestada.103 As transformações de Alvear compõe, portanto, uma longa tradição de

reforma no sentido do caráter cívico e cerimonial do espaço público. Desde anos anteriores

observa-se uma tendência de um civismo histórico sobre o qual se procurou construir uma

memória nacional. Esse processo ocorreu de forma a fazer com que a história nacional se

identificasse também com a gestação de Buenos aires, com sua história e, principalmente, com seu

espaço urbano. – convertendo a cidade na localização dessa memória nacional.

Na fundação de Buenos Aires, somente se dedicava a praça chamada Plaza Mayor a

metade oeste, limitada pelas ruas Reconquista pelo lado norte e Defensa pelo lado Sul. Até

1884 foram consideradas realmente como praças distintas simplesmente próximas uma da

outra. Na década de 1880 ainda temos a presença do antigo forte de Buenos Aires, demolido

ainda no ano de 1882. A autorização para a construção da Casa del Gobierno que atualmente tanto

marca a imagem da praça data do mesmo ano tendo se consolidado apenas em 1886 a partir da

união com o prédio do Palacio de Correos y Telégrafos, terminado em 1879. A unificação definitiva

das duas construções data do ano de 1898 a partir da construção de uma espécie de arco do

triunfo que passa a ser a entrada para a sede governamental, como veremos mais à frente. A

antiga sede do Congresso Nacional também ali se localizava desde 1864 no prédio que

atualmente encontra-se o banco hipotecário, sobre as esquinas das atuais Balcarce e Hipólito

Yrigoyen, a alguns metros da sede do poder executivo permanecendo com tal função até

princípios do século seguinte. O Teatro Colón também funcionara ali desde 1857 localizando

nas atuais Rivadavia e Reconquista, onde atualmente está o Banco Nación, onde permaneceu

até 1888 mudando-se para próximo da Plaza Lavalle.

Essa obra envolveu a resolução de uma questão que se arrastou: a demolição do

edifício da Recova, pela qual o intendente acreditava expressar todo patriotismo presente em

seu programa. Não cabe aqui fazer uma exposição dos antecedentes dessa construção, mas

103 Para Adrián Gorelik também na Argentina essas transformações ganharam o espaço público após uma lenta experimentação no espaço privado: as quintas – denominação comum de propriedades rurais – e residenciais localizadas nas bordas da cidade foram desde muito cedo espaços de introdução da jardinagem francesa e cenário em que novos ritos sociais foram se convertendo em hábitos das elites locais.

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recuperá-la para entender sua inserção em meio ao projeto encabeçado por Alvear. As questões

que envolveram essa construção estão datadas desde uma solicitação particular proveniente de

1800 pedindo sua exploração, não aceita pelo Cabildo que pretendia construí-la por conta

própria. O projeto foi pensado e apresentado ao Cabildo, tendo sido rejeitado. Apresentado

novamente em 1802 de forma mais suntuosa e elegante, apesar do custo superior, foi aceito e

encaminhado ao vice-rei que depois de estudá-lo aceitou a construção de uma obra mais

moderna que havia sido projetada.

FIGURAS 7A e 7B: Vistas de ângulos das praças nos quais é possível destacar o edifício da Recova, sem data precisa. A primeira foi tirada de seu lado oeste, podendo-se observar a pirâmide na Plaza de la Victoria, enquanto a segunda foi tirada do ângulo sudeste, próximo de onde se localiza atualmente a Casa del Gobierno.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

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O Cabildo, ao autorizar a sua construção, propunha a construção de um edifício

estável na Plaza Mayor com um desígnio duplo: aumentar as vendas de propriedades e fornecer

ao povo artigos de abastecimento com maior comodidade e asseio do que existia hoje,

constituindo um mercado modelo que foi o fim buscado ao se propor a construção. Pertencia

até então ao Cabildo, instituição que se confundia com o próprio vice-reinado e que com as

mudanças legislativas e constitucionais chegou a corresponder ao município de Buenos aires.

Durante os anos do regime de Rosas as dificuldades financeiras aumentaram e o presidente

pensou em vender a Recova que, após inúmeras negociações, foi comprada por Nicolás

Anchorena em 1836 que havia emprestado dinheiro anteriormente ao governo. Não cabe entrar

em detalhes mais extensos sobre seus antecedentes históricos, mas é perceptível que essa

construção se apresentava como um monumento da história colonial, considerada por

representar uma parte do passado argentino. A edificação é posteriormente privatizada ao ser

vendida e, com sua morte, vai deixando gradualmente de cumprir sua função de abastecimento.

Tendo assim servido ao seu propósito por mais de meio século, foi no final da década de

sessenta que a ideia de sua demolição começou a ganhar força.

O arquiteto italiano Juan Antonio Buschiazzo foi chamado pelo intendente para

executar suas ideias e, por mais que as estratégias urbanas fossem do próprio Alvear, encontraram

no arquiteto um eficiente técnico para executá-las, seguindo o preceito das novas exigências da

cidade que buscava uma caracterização particular, em consonância com o grupo da Generación del

80, em sua nova dimensão como sede do governo nacional.104 O arquiteto é designado como

diretor do Departamento de Obras Públicas desde o início da gestão e, nesse papel, deu corpo

às novas exigências da cidade que buscava uma caracterização particular com tarefas pontuais como

direção de profissionais, inspeção de obras e redação de regulamentos urbanos.

Nesse processo de reorganização municipal alguns documentos oficiais dessa

administração nos permitem acompanhar o processo de transformação da praça. O cruzamento

principalmente entre as Memórias Municipais, as Memórias do Ministério de Interior, as

Memórias do Ministério de Obras Públicas e as versões taquigráficas das sessões das câmaras

tanto dos senadores quanto dos deputados permite seguir os rumos que tomaram as distintas

negociações, os atores envolvidos e os argumentos defendidos por esses. As estruturas das

Memórias são parecidas entre si pois estas consistem em relatórios de órgãos ou administrações

104 Buschiazzo nasceu na Itália [1845] e chegou na Argentina ainda com quatro anos de idade, aonde formou-se arquiteto. Teve seu nome vinculado com as buscas de embelezamento da cidade de Buenos Aires tendo assumido o cargo de diretor do Departamento de Obras Públicas da Municipalidade a partir do qual pôde planejar diversas reformas além de ter sido sócio fundador de instituições como a Sociedade de arquitetos e o Centro de Engenheiros.

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que descrevem estratégias empreendidas por estes. As Municipais eram efetuadas pelas gestões

municipais ao Conselho Deliberativo consistindo em relatos sobre o ano de governo, dividido

em distintas partes que elucidam questões que a administração considere relevante para a

cidade, normalmente, lançadas no ano seguinte a qual se referem – podendo ser dividida em

tomos ou não, dependendo de seu tamanho. Apesar de não apresentarem estrutura fixa

comumente estão divididas em tipos de ações dentre as quais nos detivemos sobre aquelas

relacionadas às obras públicas e os anexos a estas correspondentes. As Memórias de Obras

Públicas são relatos específicos compilados por esse departamento e, posteriormente, pelo

ministério variando, por isso, sua própria nomenclatura. O processo de reestruturação da

administração municipal explica a necessidade de incorporação de uma gama variada de fontes.

Por exemplo, as memórias do Ministério de interior foram recuperadas por recompilarem as

atividades relacionadas com obras públicas anteriores ao ano de 1884.

Nos relatórios municipais, a sessão dedicada às praças públicas destaca os trabalhos

de demolição da Recova e, consequentemente, a união das duas praças atestando, entretanto, o

adiamento do projeto mediante a exigência de um montante muito alto pelos proprietários e

ainda pela impossibilidade de arrecadação de recursos extraordinários a curto prazo.105 A

transcrição de uma correspondência destinada a indivíduos da família Anchorena, principais

proprietários, indica o início das negociações a partir da solicitação municipal da indicação de

um preço por parte dos proprietários para a venda dos terrenos. Nesse contato inicial já se

observa a opção da administração em ressaltar a obra como de interesse público por dizer

respeito a um lugar “al que están vinculados glorias y hechos patrióticos em que figuraron en

primera línea los ascendientes de vds., no dudo contribuirán a su realización”.106 Tal argumento,

porém, não parece ter sido convincente tendo em vista a resposta dos proprietários a esta nota

afirmando a sua disponibilidade em ceder a propriedade de tal edifício a partir, da concessão

de uma soma de dezessete milhões de pesos em moeda corrente. Esse preço, descrito

posteriormente pela própria municipalidade como excessivo levando em consideração a

própria produção da Recova, tornou indispensável sua desapropriação mediante a declaração

prévia de sua utilidade pública para possibilitar a obtenção de recursos para concretizar tais

esforços. Essa demanda será observada nos anos seguintes a partir de um processo iniciado pela

105 Como destacamos anteriormente, estes documentos eram compilados apenas no ano seguinte ao qual se referiam, explicando as datas das fontes. Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, referente a 1880, publicada em 1881. 106 Carta as senhoras Da. Clara Garcia Zúñiga de Anchorena, Da. Clara Anchorena de Uribelarrea e senhorita Da. Isabel Anchorena. Buenos Aires, 1 de outubro de 1880. Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, referente a 1880, p. 278

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municipalidade não só para conseguir o dinheiro necessário para prosseguir com as obras, mas

também de argumentação em prol da necessidade de desapropriação destes terrenos.

A associação do espaço com um evento nacional é utilizada como argumento para

justificar a necessidade de intervenção do governo federal nesse processo. O próprio presidente

da república, segundo descrito nas memórias, teria prometido em uma festa pública colaborar para

que o tesouro da nação dividisse com a municipalidade os gastos de desapropriação da Recova. Por

meio de uma correspondência, o presidente da Comissão Municipal se dirigira ao ministro do

interior citando a autorização verbal realizada pelo presidente e solicitando autorização do

congresso para contribuir com a soma de cem mil pesos fuertes, moeda da época, objetivando obter

a compra do edifício. Isto foi fundamentado a partir da ideia demonstrada nas últimas

comemorações cívicas de que a cidade carecia de um local capaz de conter o aumento progressivo

da população.107 Essa ideia permeava todo o projeto de construção de uma grande praça central

representando, não só uma necessidade do presente da cidade, mas também um ato de previsão

adiantando a cidade do porvir que passaria por novas ondas de crescimento populacional.

FIGURA 8: Novo recorte no plano da década de 1840 localiza as únicas praças citadas na sessão correspondente das Memórias Municipais. A Plaza Lorea, representada pela letra B, é a atual Plaza del Congreso e se interliga a Plaza de Mayo pela avenida de Mayo, aberta posteriormente. FONTE: Biblioteca Nacional Mariano Moreno, Material cartográfico disponível em formato digital.

107 O presidente, ao presenciar a aglomeração na estreita Plaza de la Victoria, prometeu contribuir para que o tesouro compartisse os gastos da desapropriação. A promessa não pode, entretanto, ser confirmada pelo pouco tempo restante do período ordinário e pelos sucessos políticos de junho que tornaram impossível ocupar a atenção dos

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A sessão destinada às praças públicas desse primeiro ano de Buenos Aires com status

da capital incorpora estratégias destinadas além da Plaza de Mayo (letra A, fig. 8) apenas às praças

Lorea e del Temple (letras B e C, fig. 8) reafirmando continuarem as demais sendo atendidas pela

respectiva direção. Essas variações ainda ocorriam em função dos rearranjos na própria estrutura

institucional do município. Entretanto, todas as memórias dos anos analisados citam a Plaza de

Mayo pelo menos uma vez, o que reitera que esta é encarada como praça relevante e representativa.

Nas memórias municipais posteriores nota-se a reiteração contínua da ideia de que a capital da

República ainda não teria uma só praça apropriada para “sus necesidades y a la importancia política

y social que le corresponde por su carácter”.108 Foi a partir dessa ideia que a Corporação Municipal

justificou e desenvolveu projeto de união da Plaza de la Victoria e da Plaza 25 de Mayo fazendo

estudos correspondentes para tal projeto, que permeavam praticamente todas as edições das

memórias municipais ao menos durante o período da gestão de Alvear.

Em 1882 o intendente recebeu de Buschiazzo um plano e uma descrição de uma

proposta para unificar as duas praças: uma proposta coerente com o projeto modernizador da

cidade e que incorporava as mudanças no entorno daquele espaço pensando também no

embelezamento.109 Chama atenção nessa proposta sua apresentação a partir de “tres ideas

capitales” que deveriam ser homenageadas nas melhorias da praça, ideias estas que expressam

os cernes nacionalistas desse projeto que estavam alinhados com as pretensões de determinado

grupo. Estas ideias eram: a Revolución de Mayo, os homens que asseguraram tais conquistas e a

voz nacional dessa revolução, encarnada no Hino Nacional.

A relevância adquirida pela Revolución de Mayo em meio a estes processos é

facilmente perceptível. O início do século XIX foi marcado, no continente americano, pelas

lutas por independência da coroa espanhola e pela consequente ruptura com o mundo colonial.

Apesar de possuírem encaminhamentos parecidos, estes processos são muito vastos para serem

abordados de maneira generalizada e abrangente. Entretanto, podemos compreender traços

que aproximam estas experiências como a articulação de estratégias de base simbólica

objetivando cristalizar certos eventos, como as independências. Em muitos países foi

despendido grande esforço na criação de um verdadeiro panteão dos grandes homens da pátria,

que são aqueles envolvidos nos processos de independência e que passaram a ser vistos como os

próprios fundadores destas novas nações, além de outros símbolos presentes nesse processo que

passaram a ser frequentemente recuperados. Surgiram iniciativas diversas que buscaram associar

108 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 386 109 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882

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essa recuperação com os espaços públicos, tornando-os simbólicos. O caráter cívico de algumas

cidades se converteu em elemento principal e amalgamou em praças, ruas e avenidas diversos meios

de publicizar essa retórica e estes marcos, considerados tão significativos.

FIGURA 9: Projeto de melhorias da Plaza de la Victoria pautado nas três ideias capitais, 1883. Na figura é possível observar as fontes que ornariam a praça juntamente com o novo monumento pensado para seu centro, em substituição à pirâmide. Em baixo, no canto esquerdo, é representada a abertura da futura Avenida de Mayo que forma, com os elementos da praça e o portal que unifica a Casa del Gobierno, um eixo único que pauta o projeto – destacado por nós.

FONTE: documento MAP-II-462, Archivo General de la Nación Argentina.

A partir da carta recebida, Alvear iniciou a campanha definitiva para realizar esse

propósito, observada a partir do resultado final esperado projetado para a praça e expresso

naquelas melhorias propostas para a ainda denominada Plaza de la Victoria. As novas condições

materiais daquele espaço são apresentadas em forma iconográfica buscando uma aproximação

com as bases das transformações, as ideias nacionalistas pelo fato das imagens facilitarem,

também, o convencimento. Nesta imagem o projeto é retratado de forma a mostrar seu

conteúdo frontal considerado mais relevante – a própria praça enquanto seu perímetro, apesar

de aparecer, não alcança posição de destaque – bem como elementos textuais que supostamente

estariam em seu verso e elucidam os pontos de destaque do processo de unificação das praças

dizendo que as “estatuas deben representar e poner em evidencia” aquelas três ideias já citadas .

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Além disso, no canto oposto também aparecem com posição de destaque nomes de

importantes figuras argentinas como os membros da Primeira Junta. 110

A proposta de demolição da velha Recova que separava as duas praças anteriores deu

origem a uma remodelação da praça unificada a partir do projeto de Buschiazzo com o engenheiro.

Neste sobressaía uma rígida composição geometria, uma marcada simetria e a disposição no centro

do conjunto de um monumento comemorativo a independência que deveria substituir a antiga

pirâmide. O projeto foi encarado, no momento de sua difusão, como emblema da modernização e

do “afrancesamento” desejados para a cidade por parte de sua elite governante. O novo desenho

emergia sobre a antiga cidade propondo uma nova escala, monumental, para esse centro. A própria

ampliação visual evidencia esse aspecto a partir da duplicação de escala e da criação de um eixo

central de simetria a partir da abertura da Avenida observada à esquerda e pontuado ainda pelo

monumento no centro culminando no arco triunfal proposto como entrada da sede governamental.

Dois anos depois da federalização, o arquiteto formalizou o envio das descrições de

uma proposta para efetivar a união das duas praças, detalhando os trabalhos a serem efetuados para

suprimir a Recova que ainda as separava. Essa nota indica a nova forma dessa grande praça, assim

como descreve as ruas que a circundam, a mudança de posição das fontes e da estátua do General

Belgrano e o lugar onde se ocupariam outras estátuas que deveriam, ainda, ser colocadas. A forma

definitiva das ambas praças reunidas seria um retângulo recortado no meio pela prolongação da

rua Defensa (até então prolongada pela própria Recova) e terminando em seus lados menores junto

em forma de um semicírculo. A nova praça teria uma calçada circular de pedra e outra de igual

amplitude e material, algumas em linhas retas e outras em diagonal. Na intersecção das ruas

diagonais se formariam espaços circulares, em cujo centro se colocariam as duas fontes atuais.

O arquiteto Buschiazzo, ao acompanhar o trabalho de demolição, emitiu uma nota na

qual detalha e explica os trabalhos que devem ser efetuados. Contamos apenas com essa para

imaginar a descrição dos planos já que sua representação gráfica não foi encontrada. O arquiteto

descreve sua opção por representar, em um plano inicial, a disposição da praça antes das reformas

com linhas mais claras com a localização de seus elementos enquanto destacava com linhas carmim

a nova forma da grande praça, as ruas de circulação, a mudança de posição das fontes e da estátua

bem como o lugar que deveriam ocupar outras quatros estatuas, que deveriam se colocar na Plaza

de la Victoria por sanção municipal. Já um segundo plano representaria a forma definitiva que teriam

110 Essa junta surgiu em 25 de maio de 1810 como consequência do triunfo da Revolução de Independência que destituiu o então vice-rei. Seus integrantes se diziam defensores da soberania popular, do princípio representativo e da publicidade dos atos governamentais e entre esses figuram os nomes de Cornelio Saavedra, Juan José Castelli, Manuel Belgrano, Miguel de Azcuénaga, Manuel Alberti, Domingo Matheu, Juan Larrea, Juan José Paso e Mariano Moreno.

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ambas as praças reunidas, um retângulo cortado no meio – ou um pouco menos – pelo

prolongamento da rua Defensa e terminando em seus lados menores frente às ruas Bolivar e

Balcarce em forma de semicírculo seguindo uma amplitude de 95 metros e 20 centímetros. Existiria

ainda uma calçada circundante de 5 metros de largura, de pedra e outra de igual amplitude e

material, algumas em linhas diretas e outras em diagonais.

Na intersecção das ruas diagonais se formariam espaços circulares com 9 metros de

diâmetro em cujo centro se colocaram as duas fontes se não se dispusesse de colunas monumentais.

Ainda é dito que nos compartimentos dos extremos se colocaria no da rua Balcarce a estátua atual

de Belgrano e em outro poder-se-ia colocar a de outro general da independência a quem não tivesse

sido tributada, segundo documento, justa homenagem. A disposição de todos estes monumentos

ocuparia uma linha que forma exatamente a prolongação do eixo da grande Avenida (de Mayo) que

se pretende realizar formando “el último término de su hermosa perspectiva”. As ruas adquiririam

maior amplitude do que anteriormente e, particularmente, nas quatro esquinas, como resultado da

forma semicircular da praça, seria garantida uma comodidade para estação de carruagens e o

trânsito de todos veículos, para facilitar as paradas militares e festas pátrias. Ainda o centro dos

quatro compartimentos frontais às ruas Rivadavia e Victoria seriam ocupados pelas estátuas de

Moreno, Rivadavia, etc. As ruas Bolivar, Defensa, Balcarce, Rivadavia e Victoria adquirem nesse

projeto maior amplitude. Particularmente as quatro esquinas externas pela forma semicircular da

praça corroboraria uma grande comodidade para o estacionamento de carruagens e o trânsito de

todo tipo de veículo – essencial para as próprias paradas militares das festas pátrias segundo

Buschiazzo.111 Ainda nessa nota, o engenheiro se dedica a descrever o edifício da Recova em sua

condição de então realizando ainda uma estimativa do valor produzido por ele mensalmente

somado com o valor do prédio e do terreno.112

Nas memórias desse ano se segue uma correspondência de Alvear ao Ministro do

Interior na qual apresenta os planos e estudos preliminares referentes à ampliação da praça e

demolição da Recova. O intendente acrescenta à nota a conveniência e utilidade das obras que se

projetam que “dotarían á la Capital de la República, de una plaza apropiada á la importancia política

111 A rua Rivadavia teria 14 metros e 40 centímetros de largura na altura da Catedral e 21 metros e 70 centímetros em seu extremo imediato a 25 de Mayo. A rua de la Victoria teria 20 metros; Bolivar 17 metros, Defensa 12 metros e 40 centímetros e Balcarce 21 metros. 112 Segundo essa nota, as construções que formam a Recova se compõe de dois corpos edificados com dez armazéns ocupados por diferentes negócios e rodeados em seus quatro lados por um pórtico. Todo edifício seria construído em cal, com bons materiais, paredes perimetrais duplas, teto revestido interior e exteriormente também de cal, piso de madeira bastante deteriorado nos pórticos e de azulejo, pedra e madeira nos armazéns. As portas são grandes, com leques de ferro e coberturas rodeadas de pilares de material com trilhos de ferro. Essa descrição é utilizada como justificativa das estimativas de custo realizadas.

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y social que le corresponde por su carácter”. Destaca ainda que a municipalidade demandaria na

antecipação de uma soma considerável para prosseguir com a desapropriação. Alvear argumenta,

ainda, não lhe parecer que a soma represente um sacrifício ao governo nacional que não deveria

negá-la considerando as dificuldades e gastos que demandavam a criação de uma nova cidade após

a consagração como capital pelo próprio Congresso. Tendo isso em mente o intendente formulara

o projeto que seguia anexado declarando de utilidade pública a desapropriação, que se torna

indispensável prosseguir.

Tais demandas tornam indispensável a autorização do Congresso e, por isso, seguira

uma nota de setembro para a Comissión de Hacienda del Senado perante o qual se encontrava pendente

o projeto de desapropriação. A plaza tinha relevância enquanto marco espacial e de usos pois cabe

lembrar que sempre havia sido espaço preferencial de festas cívicas, desfiles cerimoniais ou

protestos públicos. Uma nota final, entretanto, acrescenta que tal autorização não houvera sido

conseguida ainda e que as festas públicas se realizavam a cada ano reforçando a inconveniente

estreiteza do local aonde se apinha a população. A Recova nesse contexto representava não só um

marco visual, mas sua função de mercado produzia no cotidiano uma mescla de usos que outorgava

para a praça uma função muito distinta da que se buscava nesse novo momento. Com sua

demolição a praça emergiria como espaço público monumental da cidade.

As avaliações da renda mensal da Recova buscam a equivalência da produção dos

proprietários para efetuar a desapropriação dos terrenos. Juntamente com estas, acompanhou-se

uma nota para o Ministro do Interior, na qual o intendente e seu secretário reafirmavam a

conveniência e utilidade das obras ali descritas pois estas dotariam a capital da República de uma

praça apropriada a sua importância política e social. Nessa nota, a municipalidade afirma que possui

recursos próprios para a realização das obras, mas pede mediação para o governo federal para a

desapropriação dos terrenos particulares que atualmente separam as duas praças.

no me ha parecido que esa misma cantidad importe um sacrificio para la Nación ni pueda ser negada por el Congreso que ha establecido la Capital de la República em um Municipio como el de Buenos Aires, sin las dificultades y los gastos que hubiera demandado necesariamente la creación de una nueva ciudad.113

Retoma-se a ideia de que a praça não deveria ser encarada como específica apenas da

cidade de Buenos Aires, mas deveria representar toda a nação e, para tal, demandava ações para

adquirir a imagem desejada pelos projetos de governo. O projeto arquitetônico foi enviado por

Alvear ao ministro juntamente com a lei de desapropriação da Recova que “se conserva como una

113 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 390

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especie de muralla que se opone á la realización del pensamiento”.114 Essa forte metáfora alude ao

pensamento especificamente nacionalista e progressista que enxergava a cidade como alvo

específico da política que pretendia converter a capital em expressão nacional de grandes símbolos.

Assim, o discurso enfatizava não existirem razões poderosas em favor da desapropriação e

deveriam ser tidas como principais como a higiene e o embelezamento de um dos centros mais

importantes da capital e local onde “nuestros padres dieron el grito de Patria y Libertad”.115

As negociações mostraram-se ainda difíceis por algum tempo. No ano seguinte, os

trabalhos foram suspensos por não ter sido possível tão rápida demolição da Recova como se

pretendia e também pelo Conselho não ter se pronunciado sobre a Pirámide de Mayo que impedia a

colocação de uma das fontes no local assinalado no plano. A municipalidade apresentou a cópia da

lei autorizando a proceder com a desapropriação, executada pelo Departamento de Interior em

agosto de 1883.116 Assim, são tomadas medidas preocupadas em fixar o justo preço da propriedade

na esperança de que o processo transcorresse sem maiores dificuldades. Os trabalhos para execução

desenvolveram-se e terminariam quando se resolvesse essa última instância da desapropriação.

As sessões da Câmara de Senadores do Congresso Nacional elucidam importantes

discussões legais e administrativas em torno dessas questões. Em 1883 a Comissão de Interior,

levando em consideração o projeto de lei e as mensagens emitidas pelo poder executivo

pedindo a autorização de gasto para a desapropriação de tais terrenos particulares, aconselhou

a sanção dos mesmos.117 Essa obra era descrita como conveniente para o “embellecimiento de

la ciudad, y de manifiesta importancia para la higiene de la población” já que a existência de

praças espaçosas no centro de um município densamente povoado “es una necesidad evidente,

de modo que el ensanche indicado será um complemento de las grandes obras cuya ejecución

ha sancionado el Honorable Congreso”.118 A própria lei orgânica sancionada anteriormente criava

114 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 391 115 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1882, p. 392 116 Cabe aqui atentar que, embora nossas fontes utilizem a palavra “expropiación” realizamos a opção de traduzi-la como desapropriação por se referir a uma ação do poder público onde há um efetivo pagamento de indenização ao proprietário do bem e/ou terreno que será desapropriado para utilidade pública. O caso que chamamos aqui de expropriação consistiria, por outro lado, em uma desapropriação forçada por lei, sem pagamento. 117 Esse projeto tinha como principais pontos a declaração de utilidade pública pela ocupação dos terrenos de propriedade particular que separavam as duas praças, a autorização para que a Municipalidade procedesse com a desapropriação das mesmas propriedades de acordo com a lei de setembro de 1882 contando com uma contribuição por parte do poder executivo nacional pela importância da realização. Seção de 12 de junho de 1883 da Câmara dos Senadores do Congresso Nacional. 118 Tais autorizações referem-se a uma carta, anexada também nestas sessões, enviada para o Congresso da Nação por Julio Roca e Eduardo Wilde para submeter à consideração desse órgão o projeto que autorizaria a Municipalidade da Capital a executar as desapropriações. Essa carta acrescenta ainda que é “innecesario en ese caso justificar extensamente la utilidad pública de la obra” justificando que essas desapropriações são facilitadas pela própria lei orgânica municipal, mas que mesmo em casos onde estas são restritas, conservou-se como atitude para casos como o que se apresentava nesse momento.

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mecanismos para facilitar a desapropriação de propriedades particulares das quais a ocupação seja

necessária para o alargamento ou mesmo abertura de ruas ou praças no município.

Nessa mesma sessão se encontram nos discursos outras razões: como ornamento, era

entendido como necessidade que desaparecesse o promontório existente em meio às duas praças,

que desfiguravam sua vista exterior e impossibilitava que os edifícios existentes à época, como a

Casa de Correos, a Casa del Gobierno e aquelas que poderiam ser construídas posteriormente

apresentassem o aspecto de comodidade e beleza que corresponderiam à primeira praça da capital

da república. Como questão de higiene, também se afirmava como necessário o desaparecimento

daquilo que se entendia como foco de infecção existente entre as duas praças: todos que haviam

transitado por aquele lugar em dias chuvosos se impressionaram negativamente ao ver os barracos,

pois era considerado vergonhoso ter no meio da cidade de Buenos Aires algo considerado tão

pouco agradável aos olhos. Portanto, encara-se como demanda a realização do propósito de

engrandecer a cidade capital. Propósito esse que, de acordo com o pensamento que defendia a

junção das praças, todos os argentinos deveriam ter, para que aquele empecilho desaparecesse.

As únicas objeções enfrentadas são pontuais e expostas por Avellaneda que afirma a

necessidade de suprimir a palavra “ocupação” porque não significaria verdadeiramente domínio.

Além disso, argumenta a favor da troca das palavras “al solo objeto”, pois descreveria unicamente

a intenção atual de unir as duas praças, mas, futuramente poderiam haver outros motivos.119 Essas

ressalvas expõem interesses que vão além da simples troca de palavras, mas relacionam-se

diretamente com o significado de tais expressões quando incorporadas ao projeto de lei. Em 29 de

setembro do mesmo ano, vemos a discussão da desapropriação voltar ao centro das sessões dos

Senadores quando é questionada a soma que deveria ser contribuída para realização de tal obra na

construção de um monumento nacional. Nessa sessão o Sr. Igarzábal afirma:

el propósito de ese funcionario es hacer práctico el patriótico pensamiento del año 26, cuando por medio de una ley mandaba que las glorias de Mayo se conmemorasen, haciéndose un monumento, una pirámide de bronce en el centro de la Plaza de la Victoria, destruyéndose, por consiguiente, la pirámide que entonces existía, elevada en conmemoración de esas mismas glorias poco después de los sucesos de 1810.120

Para Gutman e Hardoy, é possível falar de uma modalidade dupla na gestão municipal

de Alvear. Segundo as palavras do próprio intendente, o ornamento e a higiene que presidiram seu

119 O artigo primeiro é aprovado, portanto, com a palavra desapropriação (“expropiación”) ao invés de ocupação enquanto também o segundo artigo é modificado a partir da supressão da palavra “solo”, enquanto o terceiro permanece inalterado. 120 Seção de 29 de setembro de 1883 da Câmara dos Senadores do Congresso Nacional.

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programa de reformas não foram aplicados nem buscados em mesma proporção em todos os

bairros da cidade. Se optarmos por agrupar esses projetos em três grupos: intervenções urbanas,

das edificações, e regulamentações do funcionamento urbano, vamos perceber a existência de

critérios urbanísticos nos quais estes fatores foram aplicados com distinta intensidade no distrito

central, e no restante da cidade, onde se faziam presentes os imigrantes em sua maioria.121

Segundo o artigo 18, inciso quarto da lei orgânica, ainda de 1865, corresponde à seção

de obras públicas da municipalidade tudo que se relaciona com a conservação e reparação das ruas,

passeios e demais que contribuem ao ornamento e utilidade da cidade. De acordo com as Memórias

do Ministério do Interior, o começo das obras de aumento de um dos departamentos da cada de

governo na capital também descreve em uma seção a pendência de organizar de maneira definitiva

a corporação.122 Contas pendentes entre o governo nacional e o da Província de Buenos Aires,

procedentes ainda dos acordos celebrados para execução da lei da capital também constam nas

memórias do ministério.123 O Conselho Deliberativo autorizou a edificação da Casa del Gobierno,

dando princípio as obras de união das praças.124

Tomamos em consideração o despacho da Comissión de Hacienda na nota do Intendente

datada de 18 de fevereiro, pedindo fundos necessários para finalizar a desapropriação da Recova. O

vereador Dr. Aleu informou que a Comissão Municipal anterior a havia autorizado, e seu presidente

era o atual intendente a praticar as obras de ornamento e embelezamento das duas praças, segundo

os planos – assim, o assunto se encontraria quase resolvido necessitando dessa autorização para

que o intendente dispusesse dos fundos necessários para concluir.125 Os vereadores Golfarini e

Nevares propuseram reformas ao projeto em discussão que foi posto em votação e aprovado e

sancionado dessa maneira: autorizando o intendente a fazer uso do crédito, afetando, se necessário,

alguma propriedade municipal para obter os fundos para completar. O intendente deveria dar conta

do uso que for feito dessa autorização.

O intendente fez uma solicitação para fazer uso do crédito para pagamento da

desapropriação, já que a quantidade assinalada havia sido insuficiente.126 Foi autorizado o uso de

setecentos mil pesos para pagamento das melhorias devidas e também para, se necessário, afetar

com hipoteca as propriedades municipais que fossem indispensáveis, tornando sem efeito as

autorizações concedidas em 19 de setembro do ano anterior e em 10 do mês de março. Esse

121 GUTMAN, Margarida. HARDOY, Jorge Enrique. Op cit, p.102 122 Memória del Ministerio del Interior, 1881 123 Memória del Ministerio del Interior, 1882 124 Memória del Ministerio del Interior, 1883 125 Sesion ordinaria del dia 10 de Marzo de 1884, ACTAS HCD 1884 126 Sesion ordinaria del dia 19 de Marzo de 1884, ACTAS HCD 1884

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discurso era recorrente apesar de ter sido percebido como inviável diante do alto custo e dos

trâmites burocráticos. Diversos jornais locais já veiculavam a ideia de formar uma praça única

décadas antes de sua concretização, criando uma comoção na opinião pública em sua razão. 127

O próprio “La Nación” em artigo de julho de 1883 abordou a junção das praças .

Desde hace años las municipalidades que se han venido sucediendo, se han ocupado de él como de una obra necesaria para el embellecimiento de esa parte céntrica de la ciudad, a la vez que para su mejora en todo sentido. Pero[...] la Recova Vieja, la Tradicional Recova, ha sido en todo tempo una especie de muralla china que se ha opuesto a la realización del pensamiento. Pero el actual Presidente de la Municipalidad no es hombre, sin embargo, de detenerse ante dificultades, por serias que sean, cuando se la ha puesto entre ceja y ceja llevar adelante una reformar o mejora que juzgue conveniente y necesaria.128

Para Adrian Becar Varela, Alvear pode ter se se inspirado em Sarmiento para realizar

suas obras pois esse também pedia a desapropriação e demolição da Recova, tal como publicizou

em diversos veículos de imprensa. O presidente Julio Roca e o ministro do interior Bernardo

Irigoyen mantinham relações estreitas com o intendente Alvear, facilitando o alcance da lei que

previa a demolição da Recova. A aprovação desta, entretanto, não se deu de forma fácil. A partir da

aprovação da lei, foi possível iniciar os trâmites para concretizar a demolição do antigo prédio. Tal

dificuldade nos trâmites permite assinalar que as ideias acerca da demolição da Recova e de uma

reforma urbanística não eram tão homogêneas.129 Alvear lançou mão de suas conexões com

diversos homens de negócios para se assegurar do preço da Recova, antes de dialogar com os

proprietários, e os trâmites envolveram também disputas entre esses atores.130

Uma portaria autorizou Alvear a buscar recursos financeiros para bancar a

desapropriação da Recova.131 Depois de um comunicado feito por Alvear ao Conselho Deliberativo,

a demolição da Recova foi autorizada rapidamente. Ainda depois que a demolição fora autorizada

127 Já havia sido pensada em pelo ocasiões anteriores. Já havia sido discutida quando se tramitou sobre sua propriedade com os sucessores de Nicolás Anchorena Em 1869 durante a apresentação deu m projeto de portaria por um membro da municipalidade que também não foi sancionado, apesar de retomado novamente e também não sancionado. A necessidade de demolição parecia evidente, entretanto, não parecia dispostos a encarar essa disputa que não seria fácil. 128 La Nación, Buenos Aires, julho de 1883. Citado por: BECCAR VARELA, op cit. P.. 16 129 Alvear foi ao congresso tentar convencer deputados e senadores sobre a necessidade de aprovarem seu projeto, e para isso, contou, novamente, com o apoio de Irigoyen. Na primeira votação, a proposta foi rechaçada. Na segunda, porém, houve 23 votos favoráveis e 21 contrários, caracterizando um triunfo bem precário. 130 A estimativa inicial era de que a construção deveria valer entre 7 e 10 milhões de pesos. Porém, seus proprietários não estavam satisfeitos com esse valor. Esse desacordo foi parar na justiça. A ação judicial que tratou da disputa, após um caloroso debate estipulou, no dia 3 de janeiro de 1884 que a indenização aos proprietários ficaria no valor de 7,5 milhões de pesos. Entretanto, após uma apelação ante à Suprema Corte Nacional, os proprietários conseguiram aumentar a indenização para 9 milhões de pesos argentinos. 131 A portaria, do dia 19 de março, autorizava o intendente a lançar mão de um crédito de 700 mil pesos e ante uma hábil negociação com o banco hipotecário, conseguiu reunir os recursos para a desapropriação da Recova.

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uma série de contratempos estendeu sua duração.132 Por conta da demolição da Recova, o serviço

de telefonia da capital foi suspenso. Segundo Becar Varela, o próprio Alvear foi quem arrebentou

os cabos para prosseguir a demolição após ordenar em vão duas vezes à empresa responsável. A

empresa de telefonia Panteléfono (recém instalada na cidade) também resistiu à destruição da Recova

pois seus postes e cabos de instalação estavam situados sobre seus muros. No dia 14, foi terminada

a demolição e a retirada dos escombros. A pavimentação da rua terminou no dia 22 de maio. No

dia 25, data de comemoração do grito da liberdade, as pessoas puderam apreciar a obra concluída.

Para o autor, a união das duas praças foi a realização do esforço mais potente de ação de edificação,

tanto por uma questão moral (de concretização de um desejo antigo), quanto pelas dificuldades

financeiras superadas. Sua biografia, entretanto, destaca que para homens como o intendente

municipal, nada era impossível, numa clara tentativa de construir uma narrativa que coloca em

destaque as ações de Alvear como determinantes para as importantes transformações pelas quais

passava a cidade de Buenos Aires naquele momento histórico.

O desenho do projeto revela a concentração de poderes públicos em torno da praça a

partir do projeto de reforma da sede de governo localizada a esquerda do congresso e em frente as

sedes da municipalidade e dos tribunais. As ambiguidades dos traços sugerem que os edifícios não

aparecem desenhados para não esconder a perspectiva da praça que aparece em primeiro plano de

forma sugestiva. O cabildo também não aparece representado e provoca dúvidas quando a sua

permanência ou possível reforma a partir do projeto da Avenida. A representação se mostra

provocativa por já se excluírem explicitamente tanto a Recova quanto a Pirámide. Além disso, prevê

para a praça bordas chanfradas e curvas, distintas das de até então para facilitar o deslocamento

veicular, associando-a diretamente com a modernização da cidade. O esforço pela representação

das ausências parece garantir a nova imagem moderna da nação pois essa é a única praça projetada

diretamente dentro da gestão municipal.

A unificação definitiva dos dois espaços foi finalizada em 1884 dando lugar à

simbólica praça e a demolição da Recova representou um avanço nas ideias de modernidade

pretendidas pela Generación del 80. Essa união é vista como forma de celebrar o nascimento da

132 A demolição foi autorizada no dia 1° de maio, mas levou mais de uma semana para ter início devido a uma serie de atrasos nas operações financeiras, só podendo iniciar suas atividades a partir do dia 10. Para complicar ainda mais a situação, a obra deveria terminar até o dia 25, com as ruas devidamente pavimentadas. Além disso, havia os negociantes que imploravam pela manutenção do prédio, buscando resistir à iminente destruição do mesmo. Portanto, pôr abaixo um prédio grande como o da Recova em menos de duas semanas demandaria uma verdadeira força-tarefa. Cerca de 300 homens estavam encarregados de realizar essa missão, na qual revezavam-se em turnos diurnos e noturnos. A falta de luz não foi um obstáculo. Abriram-se grandes canos de distribuição de gás, e neles se instalaram canos que propagaram uma chama capaz de iluminar a região.

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própria nação argentina, representada simbolicamente naquela praça no coração de sua capital,

e é esse tipo de materialização de discurso que pretendemos analisar a partir destas propostas.

Essa união frente à destruição da Recova evidencia a negação do projeto anterior. A Recova, havia

sido construída para colaborar com a função comercial da praça. Essa função já não

correspondia a imagem buscada pela elite dirigente e a destruição da construção significou uma

tentativa de evidenciar o aspecto político e representativo da praça – convertido em projeto

vencedor, apesar de, mesmo na decisão de demolição dessa construção, observarmos uma série

de embates entre grupos e interesses antagônicos que se deram a nível legal todo o tempo.

Alvear atua, portanto, sobre um espaço de fortes conotações transformadoras que já

havia perdido parte de suas heranças coloniais propondo uma mudança de escalas que confirma

uma tendência já iniciada. Se essa dinâmica já havia começado a se conformar, para fixar marcos

urbanos na memória nacional portenha e para reconciliar a cidade com seu destino nacional, a

reforma do intendente materializa a conversão do coração da cidade em coração nacional, segundo

Gorelik. Para ele, as realizações de Alvear na praça são uma operação simbólica oposta daquela

realizada até então.133 Explico: enquanto durante o Estado de Buenos Aires a cidade se apropriara

da memória da nação, agora o processo seria inverso e a nação reorganizaria a memória da cidade,

mas não mais no sentido anterior da polêmica entre interior e Buenos aires e sim no sentido da

nova realidade de Estado Nação. Essa reorganização da memória sanciona a nível urbano uma

possessão já estabelecida e garantida pela federalização. A proposta envolve uma remoção dos

restos de identidade local e de construção de um cenário novo capaz de construir uma nova

memória para o estado nacional e integrar em seus rituais as massas recém-chegadas. Um cenário

com grande carga simbólica pela memória nacional e pela monumentalidade própria se estabelece

assim em espaço urbano, reproduzindo uma nova história ao conjunto da nova sociedade

A questão da escala simbólica do espaço acompanhava mudanças em meio a busca

pela monumentalidade que afetava os anteriores marcos significativos da cidade criolla. A Recova

demolida não fora a única evidência nesse processo: o cabildo também ficou comprometido e

chegou-se a cogitar sua destruição total pela busca da simetria a partir da proposta de abertura da

Avenida.134 No projeto, estavam previstos outros abandonos como a desaparição dos vestígios do

antigo forte pela conversão da Casa del Gobierno em um único edifício com a incorporação dos

Correios e também a pirâmide seria substituída por outro monumento no centro da praça.

133 GORELIK, Adrián. 1998. Op cit. 134 O cabildo estava alterado nessa ocasião porque no começo da década se agregaram pisos na torre modificando seu perfil. O projeto também da Avenida de Mayo, por sua vez, implicava sua demolição completa (o cabildo atual é uma reprodução em escala do velho do qual só se conserva a sala capitular).

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Capítulo 3: Elementos urbanos e configurações simbólicas

A questão polêmica acerca da permanência ou não da Recova separando aquela que se

pensava agora como praça nacional não foi a única envolvendo esse espaço. Apesar desta ter sido

colocada em posição relevante por dizer respeito diretamente a estrutura da própria praça, alterada

a partir da dita demolição, outros elementos urbanos compõem esse espaço público e permeiam

fontes e debates políticos da época dialogando diretamente com a nossa intenção de pensar os

discursos que se estabelecem sobre esse lugar específico. Nesse sentido, pensar em monumentos,

edifícios e ruas/avenidas se insere nessa tentativa maior de compreender esse espaço urbano já que

sua relação com os elementos que o circundam, muitas vezes, revela muito sobre como este próprio

foi concebido. Esse capítulo versará sobre outros desses elementos inscritos nos projetos não só

da administração de Alvear, mas também de seus antecessores e/ou sucessores buscando recuperar

sua relação com a praça nesse processo.

O decreto de federalização da cidade de Buenos Aires ao definir a capital argentina,

consagrou também algumas intervenções urbanas que passariam a incorporar as decisões

municipais. Nessa nova etapa na conformação material da cidade, a busca pela representação de

sua condição republicana particular levou as autoridades a adotarem estratégias que a definissem

segundo seu novo status. Nesse capítulo nos destinaremos a compreender algumas dessas

estratégias das quais escolhemos destacar: a abertura da Avenida de Mayo, o estímulo à edificação

pública e atenção dada a alguns monumentos públicos. Consideramos que estes elementos são

essenciais para compreender o próprio processo de transformação da praça porque os discursos

que incidem sobre este espaço incidem também sobre eles justificando a criação ou modificação

de novos elementos urbanos ou mesmo reivindicando a destruição de antigos a partir da

incorporação de novas percepções da cidade.

Em 1884 fora autorizado o pedido de mudança do pedestal da estátua do general

Belgrano, que se encontrava em más condições. A compreensão das questões em torno da estátua

revela outros embates que ocorriam em relação ao espaço da praça e seus elementos, pois a

preservação desta também corrobora ideais de valorização dos homens considerados responsáveis

por importantes eventos na história argentina. A construção e valorização desses monumentos teve

um claro propósito de criação de imagens para culto à pátria, para completar um conjunto de

referenciais materiais e históricas para mobilizar o entusiasmo patriótico popular. Partimos das

ações que envolveram o monumento após a federalização da cidade, mas estas nos levaram também

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a compreender o contexto de idealização e concepção do monumento que muito revela sobre a

relação estabelecida entre esse e o espaço onde fora construído.

No último quarto do século XIX se observa uma tendência de inscrição de elementos

simbólicos no espaço urbano e, a partir disso, notamos iniciativas de construção de estátuas que

seriam dedicadas aqueles considerados “grandes homens” do processo de independência argentina.

Essa tendência, também registrada em outros contextos históricos em diferentes países, apesar de

operante na cidade de Buenos Aires, tem seu significado dirigido a toda a República. Os primeiros

homenageados por meio de monumentos foram José de San Martín (general argentino, 1778-1850)

e Manuel Belgrano (político argentino, 1770-1820), esse último autor da bandeira nacional.

Belgrano, apesar das visões historiográficas que discutem o caráter do processo independentista,

foi recuperado por ter sua atuação de dirigente considerada de grande relevância na insurreição que

se transformou na Revolución de Mayo, na qual teve atuação central.135 O general participara também

do cabildo aberto – espécie de reunião deliberativa realizada, como o nome sugere, no Cabildo – de

22 de maio votando pela substituição do vice-rei por uma junta a qual, tendo sido posteriormente

a proposta vencedora, foi incorporado e que consistiria no que naquele momento fora considerado

embrião do primeiro governo pátrio argentino.136

O autor da obra homenageando Belgrano foi o escultor francês Albert Carrier-Belleuse

ajudado pelo argentino Manuel de Santa Coloma. O escultor francês, membro fundador da Société

Nationale des Beaux-Arts, foi responsável, além desta, por outras obras dedicadas a grandes nomes

associados à ideia de libertação do continente americano: na própria Argentina, a construção do

mausoléu de José de San Martin e pela estátua também equestre de Bernardo O’Higgins, no

Chile.137 Para Jorge Manuel Bedoya, estudioso de história da arte da Universidade de Buenos Aires,

135 A visão tradicional da história nacional reitera o papel do general por sua associação com o projeto carlotista, cujo partido chegou a dirigir, que consistia em um projeto político para criar no Vice-Reinado do Rio da Prata uma monarquia independente, apoiando as aspirações da princesa Carlota Joaquina na região, ainda que sem êxito. 136 O cabildo aberto consistia em uma modalidade de reunião extraordinária das cidades hispano-americanas durante a colonização espanhola voltadas para casos emergenciais. A despeito das discussões historiográficas que permeiam as guerras de independência, alguns consideram que esses tiveram papel decisivo como órgãos de participação popular com capacidade de destituir as autoridades estabelecidas substituindo-as pelo que consideravam governos autônomos. 137 Destacamos que estamos em consonância com o debate historiográfico recente que relativiza o peso de tais eventos e personagens não só na história argentina, mas do continente latino-americano como um todo. Entretanto nos colocamos em um lugar de compreender que a tentativa de construção de uma unidade nacional nesse período, nos diversos países da América, se baseou na criação de ficções narrativas associadas a estes símbolos. Foi a partir de enunciados discursivos que buscavam instituir um imaginário social da maneira mais eloquente o possível que se buscou estabelecer marcos definitivos para a identidade latino-americana. Reiteramos, portanto, que compreendemos tais narrativas como construções socioculturais ligadas com o contexto na qual se inserem. A associação de tais histórias à feitos específicos de personagens paradigmáticos, como foi o caso dos libertadores no âmbito continental, responde a uma intenção específica de alcanço de unidade e integração em nações tão diversas constituindo também atitudes decisivas para manter e fortalecer imaginários sociais propostos por grupos restritos. Uma rápida busca encontrou muitos trabalhos que se dedicam a essa tendência compreendendo o papel desses personagens como uma construção

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no momento da realização da obra, ainda em 1872, não ecoava a forte polêmica acerca da arte

nacional que caracterizou os anos do centenário algum tempo depois e, por isso, a escolha do

escultor não parece ter sido alvo de críticas ao menos em função de sua nacionalidade distinta.138

O papel de destaque ocupado pelo general em meio às narrativas criadas e reiteradas

sobre o processo independentista explica o grande apelo popular que ganhou a iniciativa de criação

de um monumento que o homenageasse. Desde pelo menos a década anterior à sua construção

jornais periódicos já noticiavam a realização de espécies de arrecadações populares espontâneas

que pediam a elevação da estátua como reação às justificativas de falta de verbas concedidas até

então. Estas foram, entretanto, por muito tempo respondidas por uma atitude governamental de

pouca atenção ao optar pelo não pronunciamento nem contra nem a favor dita obra. Foi apenas

no ano de 1872 que o Governo Nacional teve uma real iniciativa nesse sentido, investindo na

criação do monumento uma dada quantia – descrita em alguns periódicos como de dez mil francos,

mas alvo de discordância por parte de outros – a partir do discurso de cumprimento de “um acto

de justicia largo tempo reclamado por la grantitud popular”.139

A apresentação de um comunicado à administração provincial sobre a morte dos

anteriores membros da comissão que se encarregaria da realização da estátua evidenciara a

consequente necessidade de conjecturar uma solução já que grande parte dos recursos arrecadados

já haviam sido investidos – como nos trâmites da viagem para a Paris do ministro plenipotenciário

Mariano Balcarce para proceder com a contratação do escultor.140 Foi adotada, portanto, pelo

Governo da Província de Buenos Aires uma resolução em seu decreto do dia 22 de janeiro de 1870

na qual, a partir da nomeação de novos nomes para integrar a comissão, este decidia prosseguir

com a obra já que os fundos reunidos eram originários de uma ação voluntária da própria

população.141 Bartolomé Mitre, Enrique Martínez e Felix Pico foram nomeados nesse processo

tornando-se encarregados de acionar a arrecadação bem como solicitar ajuda oficial caso tal

mecanismo não fosse suficiente.

histórica. Ver: MILTON, Heloisa Costa. Visões e versões da história: Cristóvão Colombo na ficção hispanoamericana. In: Letras. O Quintal Vizinho, n. 35. Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGL/UFSM, p. 15; SANTOS, Fabio Muruci dos. Ricardo Rojas e a construção biográfica de um herói nacional: San Martín, el santo de la espada. Revista Eletrônica da ANPHLAC, São Paulo, v. 8, p. 1-26, 2009. SOUSA, Rui Bragado. Criando heróis e mitos: o elemento simbólico na construção do nacionalismo no Brasil e Uruguai (Tiradentes e Artigas). Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 151, p.63-73, dez. 2013. 138 BEDOYA, Jorge Manuel. La estatua del general Belgrano. Boletín del Instituto Histórico de la ciudad de Buenos Aires, número 9. Buenos Aires: Municipalidad de la ciudad de Buenos Aires, 1984 139 La Nación, Buenos Aires, 10/04/1872. 140 Os trâmites administrativos da cidade passavam pela esfera provincial antes da nacional antes de sua federalização. 141 Decreto nombrando una comisión que encargue de llevar adelante los trabajos iniciados para erigir una estatua ecuestre al General Belgrano, firmado por Castro-Antonio Malaver, 22/01/1870, em Registro Oficial de la Provincia de Buenos Aires, año 1870.

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A própria iniciativa de construção de tal estátua já se insere nesse contexto de

idealização de um ideal nacional que iria se reiterar nos anos seguintes, a partir da obtenção do

status de capital por parte de Buenos Aires estendendo-se, ao nosso ver, até o processo que

culminou com a comemoração do centenário já no século seguinte. Ainda que iniciada anos antes

do processo analisado por nós nessa dissertação e fugindo, portanto, de nosso recorte temporal,

essa resolução permite elucidar questões que relacionam a estátua com a praça e com o discurso de

valorização nacional que continua posteriormente. As disputas em torno desse artefato definem,

inicialmente, como e onde este será construído e, posteriormente, outras modificações pelas quais

este passa. Analisar as origens do monumento não é nossa intenção, mas sim focar em alguns

elementos que, nesse processo, nos permitem compreender como a idealização dessa construção

já busca correspondentes simbólicos que a legitimem.

Uma primeira questão que atravancou o processo de estabelecimento da estátua nos

interessa de maneira mais direta por dizer respeito a sua localização. Essa foi objeto de amplos

debates antes de ser definida na Plaza de Mayo a partir de uma série de argumentos. O mapa

apresentado na figura 10 esquematiza a cidade de Buenos Aires, tendo sido girado noventa graus

para o sentido horário, já que a representação original do Rio da Prata encontra-se ao sul, próximo

do primeiro ponto destacado – ponto A – que é a localização das Plazas 25 de Mayo e de la Victoria,

ainda separadas. Os pontos destacados serão colocados em debate ao pensar a localização da

referida estátua e por isso, cabe compreender seu posicionamento em meio a cidade. Tais escolhas

não são, portanto, aleatórias e a compreensão não só daquelas que se efetivaram, mas também das

abandonadas se faz necessária porque acompanham concepções sobre a própria cidade, bem como

as remodelações as quais ela está sendo submetida.

Os defensores da localização da estátua na dita praça – entre os quais destacava-se o

falecido coronel Albariño, um dos participantes dos levantes da revolução e membro da comissão

anterior que defendera essa proposta sem a concordância dos demais – argumentavam que, por ter

sido Belgrano um homem da revolução, sua figura estaria bem representada na própria praça que

teve em seu espaço acontecimentos relevantes desse processo – de onde foi visto o rendimento

das armas inglesas em 1806.142 Sua posição inicialmente suscitou reações contrárias como a do

próprio jornal La Tribuna que defendia a localização da estátua na Plaza del Parque (atual Plaza

Lavalle, letra B, fig. 10) passando, entretanto, posteriormente a concordar com a posição do coronel.

Uma nota enviada pelo coronel ao então Ministro de Guerra e Marinha descrevia melhor seu

posicionamento nessa questão reiterando as recordações gloriosas que a praça tinha como tesouro

142 La tribuna, Buenos Aires, 17 de maio de 1863.

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bem como o processo de embelezamento ao qual tal espaço estava sendo submetido, indicando

consonância com os discursos que tinham o progresso como mote do crescimento da cidade.

FIGURA 10: Plano Topográfico da cidade de Buenos Aires (1840), indicando a Plaza de Mayo com a letra A além de outros pontos citados no texto FONTE: Biblioteca Nacional Mariano Moreno, Material cartográfico disponível em formato digital

Para compreender também a importância desses outros locais que estão sendo citados

cabe relacioná-las também com o ímpeto de ampliação da rede ferroviária com a criação da linha

Ferrocarril del Oeste iniciada alguns anos antes. Desde o começo a busca por locais possíveis para a

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instalação das primeiras estações foi considerada de forma flexível e parecia natural a possibilidade

de muda-las de acordo com os interesses e propostas das empresas.143 Até a federalização, a

mudança de lugares, prédios e alteração da função de edifícios e espaços era uma lógica muito

vigente para as instalações do estado e também para os serviços públicos, como nesse caso. A Plaza

del Parque foi escolhida para instalar a primeira estação por seu amplo terreno, de propriedade

pública e pela instalação de serviços já existentes como o parque de artilharia. A conexão com o

oeste gerou uma descentralização geográfica já que a função principal era o transporte de

passageiros até a zona de Flores (tradicionalmente vinculada pela já extensa avenida Rivadavia). A

integração com o transporte de cargas se realizaria a partir da Plaza de las Carretas (posteriormente

seria a estação Once, 1874). A relação com o Sul se concentrava na Estação Constituición inaugurada

em 1864. Estes novos pontos de tensão urbana marcavam importantes assimetrias. A distância da

área central com as estações – pontos de concentração e distribuição – acentuou uma dinâmica de

permanente fluxo e circulação. A introdução do sistema ferroviário somado com a instalação

definitiva da administração pública foram modificando a área central e sul de Buenos Aires

transformando-as a partir de um caráter cosmopolita e metropolitano, vital para toda a cidade.

Quando se anuncia a construção do monumento adornando um ponto de uma praça

da cidade ressurge a questão. A antiga polemica da localização da obra retorna e representantes

paroquiais de Montserrat se dirigem à municipalidade demandando sua colocação no Paseo San

Martin, parte de sua jurisdição, demarcado na figura 10 com a letra C.144 As Memórias Municipais

do ano de 1860 inclusive denominam esse espaço como “Paseo General Belgrano”, indicando um

projeto já existente de que seu nome seja mudado em função de passar a abrigar a estátua.

Demandas similares foram registradas naquele período e se sucederam chegando a levar à formação

de uma comissão destinada ao embelezamento de dito passeio já que tudo levava a crer que seria

o destino final da figura de bronze do general. Entretanto, como resposta a estas, um dos artigos

do decreto de 1870 assinalava a comissão como encarregada por selecionar o local e propor este

ao governo. Ao se dirigir ao Governo Nacional solicitando a designação do lugar de sua ereção, a

Plaza ainda chamada de 25 de Mayo – porção leste da praça atual, mais próxima da Casa del Gobierno

– emergiu como opção.

143 O raio possível de atuação dessa linha deveria seguir o caminho de uma das seguintes ruas: Potosí, Victoria, Federación, Piedad e Cangallo (indicadas pelas primeiras quatro setas vermelhas, de baixo para cima, na figura 10). Nota-se que se designavam apenas ruas paralelas entre si não estabelecendo um ponto de interseção. Esse raio foi aumentado e incorporou as cinco seguintes ruas: Cuyo, Corrientes, Parque, Tucumán e Temple (indicadas pelas setas seguintes) deixando claro que não se cogitava um abandono dessa faixa central. 144 Não encontramos informações precisas sobre esse local, mas o cruzamento das fontes nos indica que esse ocupara o lugar indicado no mapa citado como Plaza General San Martin.

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Ainda encontramos registros de uma outra polêmica que explicaria a inicial recusa em

aceitar essa designação. Ao que indicam alguns periódicos a Municipalidade cogitava mandar

construir também uma estátua a Bernardino Rivadavia quando houvessem fundos suficientes e a

esta destinaria a localização na Plaza 25 de Mayo. A partir dessa justificativa surgem argumentações

de que a grandeza das duas figuras tornaria impossível que ambas os elementos comemorativos se

localizassem na mesma praça. Reitera-se um sentimento arraigado nos homens públicos daquele

momento que apresentam uma clara pretensão de extrair significados pautados em normativas de

um passado nacional. O culto à memória desses homens considerados ilustres recuperada por meio

dos monumentos teria uma importância quase que transcendental nesse processo. Ainda no ano

de 1860 encontramos vestígios dessa tentativa nas memórias municipais que atestam a possível

mudança de nomenclatura do espaço que pretendia receber a estátua de Belgrano.

Os desdobramentos dessa nova controvérsia implicaram na proposta de que a estátua

de Belgrano se localizasse na rua Rivadavia. Essa ideia era resultado de uma intenção de simetria

que a escultura deveria obter em relação com a de Rivadavia que localizar-se-ia na rua Victoria, em

frente a antiga sede do Congresso Nacional.145 Nesse processo se delineia uma oposição entra a

Municipalidade de Buenos Aires e o Governo da Província que maca, em um nível mais profundo,

que a localização dos monumentos era o enfrentamento de poderes registrados nas diferentes

instâncias governamentais. Apesar, entretanto, de todas as discussões, até a metade do ano de 1873

esteve definido que seu destino seria a Plaza 25 de Mayo. Mesmo com a permanência da ideia de

homenagear Rivadavia tendo dado origem a instalação da pedra fundamental do seu monumento

da própria Plaza de la Victoria, esses questionamentos foram ignorados e os trabalhos para

instalação do general Belgrano continuaram na mesma rua de árvores que unia o arco triunfal da

Plaza de la Victoria com a Casa del Gobierno.

Além dessa indefinição inicial a estátua passou por um posterior deslocamento dentro

da própria praça, também justificado a partir da relação direta que estabelecia com os outros

elementos desse espaço urbano. Por configurarem elementos simbólicos, a escolha tanto da

localização quando do posicionamento de uma estátua são elementos-chave para a eficácia da

mensagem que se busca transmitir. No momento da inauguração da estátua foi colocada em um

local distinto do que ocupa hoje na praça, naquela que até então se chamava Plaza 25 de Mayo,

estando disposta de frente para a Recova e o general tendo seu olhar voltado ao Antigo Teatro

Colón, onde atualmente se encontra o Banco Nación. Em uma fotografia de 1875 do Arquivo

145 Nos referimos, nesse momento, ainda a primeira sede do Congresso Nacional, inaugurada em 1864 por Bartolomé Mitre e que foi deslocada para a sua atual localização n. Sua antiga sede se localizava ainda na Plaza de Mayo na esquina das atuais ruas Balcarce e Hipólito Yrigoyen a alguns metros da sede do Poder executivo.

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Geral da Nação Argentina se pode observar uma vista panorâmica da praça nesta época na qual

destacam-se o teatro e a Recova. Nela a estátua pode ser vista na metade – entre as atuais ruas

Reconquista e 25 de Mayo – da rua de arvores que ligava o arco central da Recova a Casa del Gobierno,

olhando até o centro da praça e rodeada por uma alta cerca com lanternas eu seus ângulos (estátua

em destaque na figura 11).

FIGURAS 11A E 11B: Fotografia de 1875 indica a localização inicial da estátua na praça. O detalhe amplia a rua de árvores que ligava a Recova com a Casa del Gobierno permitindo melhor discernimento da estátua.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

A decisão de transladar o monumento desde sua posição inicial não envolveu questões

técnicas e foi, portanto, política. Nesse sentido, os argumentos que a justificavam baseavam-se em

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valorizar a localização da obra em relação a praça e aos monumentos, reconsiderando para onde

ficava a frente do general e suas costas, já que estas posições carregavam também sentidos

simbólicos. O deslocamento do centro da rua de arvores até o lugar que ocupa hoje dando a as

costas à pirâmide se efetuou simultaneamente com as modificações de sua base, durante a

intendência de Alvear. Essas transformações acompanharam a remodelação das praças incluído no

vasto plano de reformas da cidade que devia esquecer seu passado espanhol transformando-se. A

estátua girou em um ângulo de 90 graus trocando sua orientação anterior na qual o cavalo se

direcionava para o cabildo e, a partir de então, passou a fazê-lo para o norte, deixando de dar as

costas para a Casa del Gobierno, como fazia antes.

A inauguração da estátua no dia 24 de setembro de 1873, referenciando ao dia da

batalha de Tucumán, fora lavrada por um decreto estabelecido quatro dias antes que determinava

o transcorrer da cerimônia que ocorreria.146 Foi um acontecimento festivo e simbólico de grandes

proporções, celebrado pelas autoridades civis e militares na nação. Teve a participação de

autoridades administrativas tais como o Presidente, seus ministros, a Corte Suprema, a Comissão

de Câmara dos Deputados e autoridades provinciais seria acompanhado ainda da presença do clero

regular e das ordens religiosas incluindo o arcebispo. Havia ainda Comissões de Colégios e Escolas

Públicas que entoariam o hino nacional após a proclamação discursiva. O presidente seria

responsável por fazer um discurso enquanto descobrisse o véu da estátua seguido do Governador

da província e de Mitre, representante da comissão encarregada pela construção da obra. O

descobrimento da estátua contemplaria uma apresentação de armas e do hino nacional.

Apesar de acontecer especificamente na cidade de Buenos Aires existia uma

preocupação muito forte em marcar esse acontecimento como nacional. O ato seria

simultaneamente anunciado a todas as províncias por meio de telégrafo para que essas se juntassem

a uma festividade considerada nacional. A partir de então seria formada uma guarda pela custodia

da bandeira em torno da estátua. Essa, que levaria em seu pico a bandeira, deveria servir como

recordação da “origen, las glorias, y el carácter simbólico de nuestra Bandera”, segundo as palavras

do presidente em exercício, Sarmiento.147 Também segundo ele um dos mais nobres deveres da

vida social seria render homenagem à memória dos altos feitos que imortalizam o nome de um de

seus antepassados o que justificaria todo o aparato ritualístico envolvendo também a inauguração.148

146 Essa fora um enfrentamento armado ocorrido nas imediações da cidade de San Miguel de Tucumán no curso da guerra pela independência sendo lembrada como a vitória mais importante obtida pelos exércitos patrióticos. 147 Decreto de 20 de setembro de 1873, Buenos Aires. 148 Trecho retirado do discurso do presidente. Ver: Discurso pronunciado pelo presidente da República Domingo Faustino Sarmiento pela honra da bandeira nacional ao inaugurar a estátua do General Belgrano no 24 de setembro de 1873. Buenos Aires: Imprenta de La tribuna: 1873

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A representação do general também não foi concebida de maneira fácil. Incialmente a

questão sobre o monumento ser equestre também não fora consensual Ainda depois de decida, o

caráter do animal gerou também alguns questionamentos. Apesar da unidade sugerida pelo

monumento deve-se assinalar o trabalho feito por dois escultores e o fato de ser Santa Coloma

filho do primeiro cônsul argentino na Europa, tendo nascido na embaixada, o que lhe outorgava a

nacionalidade sem, entretanto, conhecer o país. Sua nacionalidade era tão controversa que as

próprias enciclopédias europeias de arte apresentavam o escultor como francês. O escultor era

especializado na escultura de animais tendo sido, por essa razão, eleito para modelar o cavalo da

escultura que havia se decidido ser equestre. Entretanto, a falta de conhecimento do país e o fato

de seu trabalho ter sido realizado em seu ateliê, na França, resultou em um cavalo de estilo grego e

neoclássico – uma espécie de corcel que não se assemelhava em absoluto com os cavalos criollos

que se supôs o criador da bandeira montara durante sua vida militar – tendo sido, por isso, alvo de

inúmeras críticas. Essas críticas estenderam-se, ainda, a desproporcionalidade do animal junto ao

seu montador que, para alguns, tirara o mérito da obra.

A estátua, realizada em bronze, representa Belgrano levantando a bandeira argentina

com seu braço direito enquanto sua cabeça está virada para a mesma, contemplando-a, com a visão

em direção ao céu. O pedestal era criticado desde sua inauguração, sustentando que não guardava

proporções adequadas com o grupo equestre. Este, feito de cobre, sofreu mudanças ao longo

tempo sendo hoje constituído de um bloco de mármore. O general foi representado vestido com

roupa militar e postura triunfante além de um rosto que demonstra tranquilidade – provavelmente

por alusão a batalhas que já haviam sido vencidas ou mesmo pelo encerramento positivo do

processo de independência – se opondo a sensação que, por outro lado, transmite o cavalo.

Compondo o conjunto escultórico, o animal é mostrado afirmando potentemente a pata dianteira

esquerda elevando-a de maneira enérgica e sugerindo certo nervosismo. Seu pescoço curvado

transmite a ideia de movimento como se este estivesse pronto para libertar-se a qualquer momento.

O trabalho do artista evidencia os músculos e curvas do animal reiterando novamente a sensação

de nervosismo que remete também as próprias batalhas da guerra.

Toda escultura tem uma marcada tendência diagonal indicada pela pata direita do

cavalo, passando pela perna do general, pela faixa dobrada sobre seu peito e culminando no

conjunto braço-bandeira, que parece ser encarado como ponto máximo da composição. Essa

parece ter sido uma estratégia para fazer com que os olhares alcançassem esse ponto. A

contemplação a partir de diferentes ângulos faz surgir novas visões que, segundo a idealização da

obra, ofereceriam elementos necessários para incorporar a ideia inspiradora de representação de

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um patriota. Na prática, esses processos explicitaram uma tentativa de manuseio da história,

apropriada a partir do presente e de contexto específicos, que passa a compor o repertório utilizado

pelos sujeitos envolvidos nessas questões para validar suas interpretações e posicionamentos. Essas

características são partilhadas por muitos monumentos que, ao serem pensados, envolvem

discussões desse teor. Paulo Knauss, ao destacar esse processo para o Brasil, analisa a primeira

escultura pública do Brasil, a estátua equestre de Dom Pedro I, o e destaca a importância da escolha

do local e da posição da peça, evidentemente, não foram aleatórias e acompanhavam o plano de

remodelação daquela área urbana, que se transformaria na praça da Constituição, tendo a escultura

monárquica ao centro.149

FIGURA 12: Fotografia da estátua do General Belgrano, sem data, mas que permite, por meio da análise das fontes citadas no texto perceber diversas nuances de sua representação em meio ao discurso nacional. É possível perceber a posição escolhida para representar o general e a postura deste e do cavalo perante a bandeira.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

149 KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010.

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A estátua foi gestada ainda antes da definição da capital, o que definira que alguns dos

trâmites administrativos ainda passassem pela esfera provincial antes de alcançar a nacional, ou até

mesmo fossem totalmente resolvidas nesta primeira. Ao contrário, quando Buenos Aires passou a

ser capital e não mais uma cidade da província homônima funcionara como território federal não

sendo, portanto, contemplado mais pela esfera intermediária. Isso explica a mudança até mesmo

das fontes que estão corroborando nossas reflexões. Nesse novo momento da cidade, as questões

que concernem as modificações urbanas podem ser encontradas nos documentos das

administrações municipais e também são discutidas por senadores e deputados nacionais, o que

não acontece com outras cidades.

O monumento esteve rodeado de originalmente por uma grade de ferro que, no

princípio do século, foi trocada por uma de bronze. Durante a intendência de Alvear, essa foi

retirada e, em seu lugar, foi elevado um pedestal na tentativa de facilitar a valorização de pequenos

detalhes presentes na escultura. A figura 12, sem data especificada, representa algum momento

entre essa substituição devido à falta do pedestal e presença da antiga grade. A troca transcorreu

porque se considerava que a base da estátua era muito baixa dada a importância do monumento,

além de simplória a grade que o circundava. Foi decidido então pela sua substituição,

primeiramente, de uma outra de ferro e bronze. Estava também sobre uma base mais baixa que,

com a derrubada da Recova, foi modificado. A construção do pedestal se concretizou em Gênova,

chegando a Buenos Aires no ano de 1885.

Na sessão ordinária do dia 21 de março de 1884, verifica-se uma série de considerações

sobre o despacho do Intendente e do Engenheiro arquiteto sobre o novo pedestal para a Estátua

do General Belgrano, tratando de conservar a memória de um benemérito soldado argentino.150 O

intendente, pedindo autorização para o diretor da oficina de engenheiros municipais para efetuar

as obras da estátua, já que havia sido autorizado a tirar licitação da construção e esse acreditava que

não era propicio licitar as obras de arte.151 Depois de intensos diálogos entre os membros do

conselho, a nota foi transferida para a Comissão de Obras Públicas. De acordo com um documento

da sessão ordinária de cinco de setembro do ano de 1884, o intendente realizou um pedido de

autorização para encarregar o pedestal a Europa e colocá-lo com os elementos de que dispõe a

municipalidade. Esse pedido foi devidamente autorizado pelo Conselho Deliberativo.152

Esse processo nos permite observar a catalisação da memória histórica a partir de um

monumento que foi idealizado por um grupo específico reivindicando seu próprio entendimento

150 Sesion ordinaria del dia 21 de Marzo de 1884, ACTAS HCD 1884 151 Sesion ordinaria del dia 28 de Marzo de 1884, ACTAS HCD 1884 152 Sesion ordinaria del dia 05 de Setiembre de 1884, ACTAS HCD 1884

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da história e forjando, a partir deste, um elemento identitário comum. Esse elemento se pauta na

existência como cidadão argentino remetendo as raízes da própria nacionalidade nesse evento

considerado fundador. Diversos interesses convergem sobre o monumento modificando seu

destino em termos de materialização e até mesmo modificações. Os argumentos e narrativas que

este envolve recuperam o processo de consolidação na nação argentina direcionando memórias na

busca de uma produção discursiva específica. Na prática, esses processos explicitaram uma

tentativa de manuseio da história, apropriada a partir do presente e de contexto específicos, que

passa a compor o repertório utilizado pelos sujeitos envolvidos nessas questões para validar suas

interpretações e posicionamentos.

Ainda no quesito monumentos, também em 1883, destacamos a intenção da

construção de um monumento para comemorar de maneira permanente e digna o movimento de

1810. A questão girava entre dois extremos: se seria destruído ou conservado para servir como base

do próximo monumento que se planejava construir. A ideia imperante do projeto de

transformações envolvia a elevação, no lugar da demolida Recova, de uma Coluna de Mayo, em cuja

fundação se utilizaria restos da pirâmide anterior. É feita a nomeação de uma comissão para decisão

sobre o atual monumento da pirâmide. A defesa da criação de um novo monumento era construída

a partir de argumentos que consideravam essa uma forma de publicizar a nacionalidade do povo

argentino, recuperando constantemente a revolução pela independência. Devido à direta relação

desse tema com o Centenário da Independência, no qual um novo monumento foi proposto,

optamos por analisa-lo melhor na segunda parte desta dissertação.

Consideramos ser a cidade composta de uma série de objetos que constituem o espaço

urbano dentre os quais se estabelece uma interação dialética. O plano de ocupação republicana da

cidade impulsionou a edificação pública se materializando em distintas construções. As

transformações pelas quais passou a cidade de Buenos Aires, principalmente entre a década de 1880

e 1890, estão marcadas pelo seu novo status de capital federal, agora permanente, que evidenciam

a articulação entre cidade e política por meio também das modificações em sua arquitetura. Parte

dos argumentos e disputas que dominaram a definição da capital são retomados na forma de

múltiplas questões que envolvem: o debate em torno da sede dos três poderes republicanos, o

esforço de localizá-los naquela considerada zona mais moderna da cidade, a construção de um

sistema de edifícios escolares. A questão inicial sobre a localização da capital, portanto, prolongou

um debate que passou a referir-se sobre a localidade dos edifícios representativos.

Para compreender as mudanças produzidas na arte cívica representativa do poder

central é necessário atentar para as intervenções da cidade operadas pelo presidente Roca. A

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mudança de enfoque evidencia a diferença entre as administrações municipal e nacional acerca da

nova condição da cidade, que estarão sujeitas a extensos debates e reformulações. Surge, assim,

uma variedade de questões decorrentes diretamente das operações de outros atores e instituições

além do controlador direto das ações estritamente municipais – como é o caso do próprio

presidente e do congresso. Quando colocamos as administrações em relação surgem gestões

simultâneas ou sobrepostas, desordenadas e distintas, levadas adiante por distintos personagens.

Assim, intendente e presidente, município e nação se articulam por meio de políticos e técnicos

que trabalham em meio a órgãos públicos evidenciando suas posições dentro de uma hierarquia

política e um jogo de poder e demonstrando as diferenças e contradições em suas atuações.

A questão capital constituiu, portanto, um polo de debate em torno do qual

convergiram múltiplas questões vinculadas a processos de modernização, organização nacional e

conformação material da cidade. Diferentes projetos se mesclaram com as ordens concretas que

ditavam as decisões a serem tomadas, a curto prazo ou mesmo aquelas pensadas conjunturalmente.

Para essa cidade, que devia estabelecer-se como território, cidade e capital, era necessário agora

investir no valor de permanência em contraposição ao caráter provisório da indefinição anterior.

Segundo Claudia Shmidt, a figura simbólica e material do palácio emergiria como portadora da

máxima expressão das novas instituições republicanas e da afirmação do poder desse estado federal.

Já o primeiro discurso efetuado por Roca ao assumir a presidência demonstra o caráter central

previsto para essas construções arquitetônicas nesse processo. A parte dessa mensagem destinada

a obras públicas destaca, em grande parte, obras de salubridade baseadas na ideia de construção de

uma cidade higiênica e além disso apenas dedica-se a ressaltar a demanda pela conformação material

dessa nova capital

Designada esta ciudad para capital permanente, tenemos que pensar en dotarla de todas aquellas mejoras indispensables para el ornato, comodidad y salubridad de un gran pueblo. Hacen falta para el Honorable Congreso, el Poder Ejecutivo y la Suprema Corte de Justicia, edificios dignos de la nación y de los representantes de su soberanía y para casi todas las oficinas de la administración, residencias cómodas y aparentes a las funciones que en ellas se desempeñan. Por el ministerio del ramo se os presentarán los planos y presupuestos de una casa para el Congreso, de otra para el Poder Ejecutivo y de otros edificios de que no se puede prescindir por más tiempo.153

Roca dedicou atenção à construção das sedes para os três poderes, iniciando a

empreender os edifícios para a capital a partir da continuidade de obras municipais que agora se

153 Mensaje del Presidente de la Republica Argentina Julio Argentino Roca al abrir las sesiones del Congreso Nacional en mayo de 1881 en la ciudad de Buenos Aires, capital federal de la República Argentina

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sobrepunham com a gestão nacional. A Casa del Gobierno pode ser considerada a primeira dessas

grandes operações simbólicas na qual se empreenderam ações por suas reformas e, nesse caso

particular, manteve uma aposta, desde o início, sobre a permanência em lugar histórico. As

dependências destinadas a ela até então eram fruto ainda do recondicionamento parcial dos

terrenos do antigo Forte. Durante a presidência de Sarmiento alguns anos antes havia sido

construído o edifício de Correios e Telégrafos no ângulo sudoeste, na esquina da Balcarce e

Victoria. Este era propriedade do governo provincial e continuou assim até 1884 quando passou a

domínio da nação. Enrique Aberg, então arquiteto nacional e diretor do departamento de

engenheiros, foi encarregado do projeto de ampliação e construção do edifício na esquina noroeste,

Balcarce e Rivadavia

De maneira geral, foram feitas reformas parciais que implicaram no anexo de edifícios

existentes ou na união de novas partes com critérios pragmáticos um tanto quanto aleatórios. No

momento que o presidente assumiu o mandato, o plano de reformas ainda estava a cargo de Aberg.

O presidente, em uma carta de apresentação do projeto ao Congresso Nacional da Argentina,

sustentou a prioridade e urgência de levar a cabo tais obras alegando a obsolescência e mal estado

das instalações existente, não correspondendo, portanto, ao avanço do país. As considerações de

sua carta abriram a discussão na Câmara de deputados sobre o projeto para a construção do Palacio

del Gobierno que consistia na ampliação da existente unificando-a com o edifício do correio, o que

suscitou um debate estético particular.

O plano da Comissão de Obras Públicas expunha tarefas previstas por etapas. A

principal crítica, advinda principalmente de deputados, sustentava que a falta de um plano comum

contrariava as regras de estética e ornamentação esperadas para um edifício público nacional.

Assim, o resultado esperado seria um edifício irregular oriundo da junção arbitrária de dois prédios

sem ligação entre si tornando difícil a visualização de um único prédio com as características

esperadas para a sede governamental. A defesa dos membros da comissão, por outro lado,

sustentava que o projeto correspondia a um plano abrangente que se realizaria a partir da demolição

gradual de todo o edifício antigo, evitando a interrupção das atividades. A então Casa dos Correos

seria parte de um palácio que pretendia se construir, ligada com outra sessão nova que se construiria

em frente a Plaza 25 de Mayo, a partir de um arco onde ficará o principal átrio e consequentemente

a entrada do edifício.

As Memórias do Departamento de Obras Públicas do ano de 1884 descrevem que a

sessão de Obras arquitetônicas fora destinada ao arquiteto Francisco Tamburini no início daquele

ano, quem havia iniciado importantes ações tais como as obras de alargamento da Casa del Gobierno,

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cujo projeto definitivo foi apresentado também nesse documento.154 A execução desse projeto, o

qual afirmam ter sido pensado depois de longo e detalhado estudo além de várias conferências com

as autoridades do Governo Nacional, buscava a união por meio de um arco dos edifícios do

Correios e do Governo, apesar de afirmar as imensas dificuldades decorrentes desse bem, como a

complexidade de seus usos.155 A opinião do próprio, descrita algumas páginas depois é de que a

disposição de um edifício público deve responder a algumas normas especiais e que são

indispensáveis ao seu bom funcionamento – suas entradas, galerias devem ser pensadas nesse

sentido: grandiosas, fáceis e de rápido acesso. Era necessário prever para todas as suas partes um

destino especial, com um aspecto estético apropriado, indicativo da natureza de seu objetivo.

A partir dessas considerações, fora elevada a dúvida novamente se o edifício dos

correios seria harmonicamente incorporado à Casa del Gobierno. A falta de uma resposta certeira e a

tendência à negativa fez com que os críticos concluíssem que o resultado consistiria mesmo em um

edifício sem unidade arquitetônica, com fachadas diversas conferindo-lhe o aspecto sempre de

provisório ainda que um arco unisse as duas estruturas. Os críticos advogavam uma unidade

arquitetônica como condição fundamental para o destino de tal obra. A necessidade, portanto, de

uma solução integral pensada harmonicamente para aquele que seria um edifício permanente em

uma praça histórica ficava cada vez mais evidente. Os críticos chegam a sugerir a autorização, a

partir da existência de fundos, para o poder executivo buscar um terreno para construir uma obra

arquitetônica que correspondesse a seu plano desde sua origem, transformando-se em objeto

exclusivo.

Esses argumentos ilustram debate que manterá tensionada diversos âmbitos de decisão

sobre as obras públicas, transpondo o espectro particular dos técnicos – engenheiros ou arquitetos.

O tom desse debate associa unidade arquitetônica com permanência e as reformas com

provisoriedade introduzindo a possibilidade da construção de algo completamente novo a partir

de um terreno supostamente sem história. Em meio a esse debate, o presidente contratara

Tamburini a quem nomeou diretor do Departamento de Obras Públicas – renunciando Aberg que

recebera duras críticas – encarregando-o dos projetos para as sedes também dos outros poderes

buscando transformar segundo seus preceitos a cada de governo para a qual havia sido sugerida a

criação de uma espécie de “arco do triunfo” como forma de acesso. O próprio Tamburini, nas

154 Segundo o próprio arquiteto, muitos projetos teriam sido submetidos a sua seção e estes envolviam, principalmente, a renovação de alguns edifícios justamente por não corresponderem às exigências e aos conceitos que o Governo Nacional tinha a respeito deles além de outras obras consideradas secundárias, mas que não teriam sido deixadas de lado, como aquelas dos edifícios relacionados com ensino. Memoria del Departamento de Obras Publicas de La Nación, 1884 155 Idem, p. 85

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memórias destinadas ao diretor de Obras Públicas admite que as razões para adotar um estilo

diferente do dos edifícios laterais para projetar a união se encontravam justamente em seus estilos

difíceis de conciliar.156 A nova obra, revela, teria sido realizada sem preocupar-se com essas partes

expressando um violento contraste violento entre ambas partes.

FIGURA 13: Casa del Gobierno e edifício dos correios unidos pela obra de Tamburini, sem data. Nela é possível observar a diferença das fachadas e a proposta de arco projetada para interliga-las, alvo de discordâncias por sua diferença estética com o restante do conjunto.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

Roca previu a compra de terrenos para a sede do Congresso Nacional e também o caso

da construção desse edifício envolveu uma discussão a respeito dos lugares concretos aonde deveria

completar-se a obra além de outra sobre se o edifício para ambas as câmaras deveria ser o mesmo

ou não. O Palacio del Congreso é um edifício caráter representativo e tal caraterística definiu os

parâmetros da sua construção, que tinha como intenção transformá-lo em peça fundamental do

tecido urbano, marcando sua diferenciação com os demais e destacando sua interação com o

entorno. O aspecto que nos interessa recuperar aqui diz respeito à relação da localização com as

outras sedes de poder. Dentre as variadas propostas, considerou-se construí-lo em algum lugar da

Plaza de la Victoria para evitar possíveis problemas de comunicação, orientando-se por uma

dinâmica administrativa própria que assinalava demandas cotidianas de vinculação entre eles.

Durante esses primeiros anos da década, entretanto, seria mantida a localização da Casa del Gobierno

na Plaza de Mayo, do Congresso próximo à rua Callao e da sede para os tribunais nos terrenos que

anteriormente pertenciam ao Parque de Artillería, em frente à estação ferroviária del Parque.157

156 Memoria del Departamento de Obras Publicas de La Nación, 1889-1891 157 Escolhemos trabalhar os edifícios públicos no sentido de sua representação republicana restringindo-nos, portanto, às sedes dos poderes cujos debates pela instalação envolvem debates que se ligam com os discursos sobre a praça.

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Observando essa série de ações sobre a capital é possível encontrar algumas chaves de

compreensão dos critérios de eleição dos locais para as sedes dos poderes. A gestão de Alvear

manteve dentro de um esquema de ações concentrado sobre a base da consolidação de uma cidade

pequena e densa. A praça adquiriu novas funções para abrigar os projetos que estavam em disputa.

Os debates e decisões tomados em torno dos edifícios públicos para a capital mostram relações

entre município e poder central, evidenciadas tanto na figura de Roca e seus projetos quanto

naqueles de outros presidentes, nas decisões e projetos sustentados pelos representantes provinciais

no Congresso e pelas ações e interesses vinculados com o município e seus sucessivos intendentes,

um período de acomodações, conflitos e tensões em torno das relações entre cidade e capital. As

sucessivas compras de terreno modificando os pontos da cidade que situariam um mesmo edifício,

como o caso do próprio Congresso, assinalam a disponibilidade e a indecisão sobre a localidade

aqueles que deveriam constituir focos cívicos. A edílica pública aparece, portanto, como portador

máximo da propaganda estatal, substituindo a arquitetura efêmera de antes, e que será

posteriormente retomada pelos monumentos que buscarão celebrar o centenário da independência

em 1910. As construções civis concentram, nesse processo, uma linguagem própria constituindo

as principais operações de transformação urbana: se tratava de representar o progresso dessa

cidade/país modernos. Em 1889, com o território federal já estabelecido, a Casa del Gobierno

reformada, a sede para a justiça em construção e o lugar para instalação do Congresso redefinido a

capital já havia se instalado e suas principais sedes institucionais estavam delimitadas, conformando

a imagem que dela se esperava.

Ao evitar formas de análise já cristalizadas sobre o processo de transformação urbana

de Buenos Aires, buscamos aqui analisar os efeitos da incorporação de certos discursos por seus

agentes e como estes se expressaram em constantes embates que também definiram os contornos

da cidade. O objetivo de acompanhar a trajetória das modificações materiais sofridas pela Plaza de

Mayo a partir de discussões políticas e simbólicas tem aqui o fechamento de seu primeiro ciclo.

Encerramos essa parte da dissertação concluindo o objetivo de iniciar esse acompanhamento a

partir da década de 1880 e da proposta de unificação das duas praças. A federalização da cidade e

os preparativos para o Centenário impulsionaram empreendimentos urbanos orientados a

Entretanto, em um registro paralelo, outra prioridade desse momento foram as escolas. A sanção da lei 1420 instituiu a educação laica, gratuita e obrigatória em 1884 e o estado empreendeu estrategicamente d um projeto de modernização que mobilizou a construção da identidade nacional. Os edifícios projetados e construídos para escolas primárias aludiram de maneira expressa a essa mobilização avançando em direção a mensagem modernizadora com a criação de um aparato burocrático inédito por sua autonomia política e de recursos econômicos como ilustra a criação do Conselho Nacional de Educação que tomaria decisões próprias sobre lugares, terrenos, normativas e características arquitetônicas.

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satisfazer demandas crescentes como serviços sanitários, iluminação elétrica, edifícios de terminais

ferroviárias e construção de obras que transformariam a cidade em seu caráter simbólico – Palacio

del Congreso, Casa del Gobierno, Teatro Colón e a abertura da Avenida de Mayo em 1898.

Para Novick e Piccioni, o tema das avenidas é um elemento chave nos processos de

modernização do final do século XIX e revelam numerosos fatores em sua constituição.158 A teoria

circulatória já havia sido traduzida espacialmente nos desenhos de cidades a partir da noção de

Avenida ainda dos oitocentos gestada a partir de antecedentes vinculados ao uso de ruas largas

como elementos geométricos que poderiam facilitar deslocamentos militares.159 Entretanto, no

século XIX a circulação adquiriu outros sentidos se traduzindo em respostas concretas para favores

um sistema econômico e um dado desenvolvimento sanitário. A antiga crença hipocrática segundo

a qual as enfermidades eram transmitidas por meio de miasmas propagados através do ar

impulsionara uma verdadeira cruzada higiênica no sentido de melhorar os meios de ventilação

abrindo grandes avenidas no espaço urbano para manter a boa saúde da população.160 Esse espaço

agora entendidos como instrumentos de defesa higiênica envolviam uma reconsideração do lugar

e do inimigo que agora era produto de um imaginário de enfermidade instalado nas sociedades

modernas. Os ideais higienistas radicados na cidade moderna condensavam preocupações

circulatórias no qual concebeu-se um modelo ideal emblema da cultura cientifica argentina

Em 1898 se inaugura a Avenida de Mayo projetada também por Buschiazzo durante a

intendência de Alvear. Essa é descrita como uma verdadeira artéria de ampla largura como um eixo

monumental entre a Plaza de Mayo e a Plaza del Congreso, implicando na formação de manzanas

retangulares. A ideia de dota a cidade de um sistema viário hierarquizado já estava originalmente

esboçada no plano de reformas urbanas de Rivadavia de 1826 que previa a conversão de algumas

das principais ruas em avenidas. Referências nesse sentido também podem ser encontradas nas

propostas de Sarmiento, que antecipa a possibilidade de abertura de uma avenida central na cidade

158 Por um lado, evidenciam a mudança da imagem urbana no sentido da negação da quadrícula tradicional, do modelo das cidades capitais e da busca por espaços com perspectivas para aqueles edifícios monumentais. Por outro, também evidenciam a mudança de funcionalidade do centro urbano oriunda de uma necessidade de facilitar a circulação aumentando o valor do solo sendo que, nesse caso, as grandes avenidas permitiriam uma maior altura edificada. Ver: NOVICK, Alicia; PICCIONI, Raúl. “Avenida”. In: LIERNUR, Jorge; ALIATA, Fernando. (comp.) Diccionario de la Arquitectura em Argentina, Tomo 1, A-B, Clarín, 2004, pp. 98-102. 159 A questão da circulação no corpo emerge no século XVII, com a descoberta do sistema circulatório por William Harvey. Richard Sennett remete a teoria circulatória considerando que seu estatuto revolucionário se deve também às interferências sobre outros campos disciplinares. Também o vocabulário e a linguagem e médico-biológica passaram a imperar também dentro desses outros campos do conhecimento sendo constantemente associados as próprias questões urbanas. Ver: SENNETT, Richard. Corpos em movimento. In: Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2008. 160 Sobre a relação metafórica estabelecida entre a cidade e a ciência, a partir de questões higiênicas e circulatórias ver: VALLEJO, Gustavo. Escenarios de la cultura científica argentina. Ciudad y universidad (1882-1955). Madrid: CSIC, 2007.

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como solução para os problemas de crescimento e comunicação gerados pelas transformações

urbanas. Na mesma direção colocam-se ideias como de José Marcelino Lagos que apresentara, em

1869, um esboço do que depois será a Avenida de Mayo, prefigurando também as diagonais.

Esse tipo de planejamento, ainda que reiterado como observamos pela própria história

das propostas urbanas argentinas, acaba abandonado por falta de recursos ou problemas operativos

como indeterminações jurídicas que costumam impossibilitá-los. A necessidade de uma legislação

precisa e uma intervenção estatal direta garante tais materializações. As alternativas, portanto, que

resultam na abertura de dita avenida acontecem a partir da inspiração direta do intendente Alvear

que, em seu mandato, consegue a sanção da legislação que garante o apoio jurídico do projeto. No

final de 1884, durante a presidência de Roca, é sancionada, portanto, a Lei Nacional que autoriza a

abertura de “una avenida de 30 metros de ancho, por lo menos, que partiendo de la Plaza de Mayo,

divida por la mitad las manzanas comprendidas entre las calles Rivadavia y Victoria y termine em la

de Entre Rios”.161 No ano seguinte o Conselho Deliberativo dita a ordenança reguladora desta lei

para que se iniciem, oficialmente, o trabalho. A leitura dessa permite entender os alcances da

proposta já que afirma que a intendência começaria os trabalhos de construção de uma avenida de

35 metros, aumentando a estimativa inicial, “por las manzanas en que se ofrezca menos resistencia

en los arreglos que previamente procurará con los propietarios”. Ainda se afirmava que poderia

“reducir el ancho indicado, si en la ejecución de la obra se ofreciesen inconvenientes que en

obsequio de los intereses generales conviniese conciliar” não podendo, entretanto, reduzir-se a

menos de 30 metros. Posteriormente, a necessidade de diminuição se reafirma limitando-o a 32,

mas ainda mais de 30 por afirmar que esse limite inicial causava inconvenientes ao deixar faixas de

terreno cujo fundo não alcança um metro e não poderiam ser utilizadas para edificação. 162

Essa ordenança, além de conferir ao município amplas atribuições na execução do

projeto, estabelece o perfil que devia ter a dita avenida. As construções, por exemplo, além de não

poderem exceder vinte metros não poderiam ser empreendidas sem a aprovação prévia dos seus

planos pela Oficina Municipal de Obras Públicas para que “las fachadas se ajusten en lo posible a

un mismo plano arquitectónico”. Alvear traçara um esquema para garantir a realização financeira

da obra que consistia em um mútuo acordo entre o setor público e privado que garantiria a

resolução rápida de possíveis litígios causados pela intervenção sem ser uma carga apenas para o

setor municipal.163 Se conquistariam os terrenos por cessão dos proprietários em troca do aumento

161 Lei Nacional, número 1583, 31 de outubro de 1884 162 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1885 163 SOLSONA, Justo; HUNTER, Carlos. La Avenida de Mayo: Un proyecto inconcluso. Buenos Aires: Nobuko, 1990.

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do valor imobiliário em frente à nova avenida, além da isenção dos direitos de construção de novas

fachas e uma eventual compensação monetárias caso a desapropriação fosse inevitável. Apesar dos

acordos, verbais ou por meio de documentos privados, permitirem a iniciação dos trabalhos, as

confusões na interpretação da lei e a ânsia de enriquecimento de alguns proprietários afetados pelo

projeto geram posteriores dificuldades no processo. A utilidade pública e a autorização de

desapropriação garantidas pela lei geram reclamações por parte dos particulares até uma resolução

final da Suprema Corte que estabelece que a desapropriação só pode ocorrer para aqueles terrenos

diretamente afetados pelo traçado da avenida. A municipalidade lamenta-se que seu trabalho tenha

sido alongado por conta dessa decisão e também da sede da Polícia que não abandonara o local,

afetado pelo projeto.164

Chega-se a instaurar uma Comissão central da Avenida de Mayo para estudar, com consulta

prévia aos proprietários, as possibilidades para avanços das obras de maneira mais prática e

conveniente. A situação entre iniciativa privada e governamental passa por uma série de tensões ao

longo das inúmeras intendências que lidam com o processo. As tentativas para concretizar acordos

levam em conta os três fatores já citados. Ainda que o município não possa exercitar um preciso

controle morfológico sobre as decisões dos particulares são sancionadas ordenanças especiais que

definam formalmente a avenida tratando de uniformizar as novas construções. Entre outras

disposições, uma norma de junho de 1888 estabelece como altura máxima dos edifícios vinte e

quatro metros. O processo ainda se arrastou, mas superadas as dificuldades iniciais, a atividade

construtora consolidou o projeto.

Novick e Picconi a encaixam dentro de um terceiro momento na análise operacional

das avenidas da cidade, o da ruptura da quadrícula que, posteriormente, entraria em uma segunda

etapa com a abertura das diagonais evidenciando a tendência de intervenções nessa estrutura urbana

fundacional.165 Desde a abertura da Avenida de Mayo, portanto, teriam se sucedido projetos

caracterizados pelo predomínio de avenidas que, na primeira década do século XX representaram

intensa controvérsia entre a administração municipal e o Congresso Nacional sobre as avenidas e

diagonais. Tal debate suscitou a promulgação das leis n8854 e 8855 em 1912 que aprovavam a

construção das diagonais e da avenida 9 de Julio.

164 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1886 165 Os autores enfatizam dois momentos anteriores a esses. O primeiro seria o dos alargamentos das ruas existentes, operações que requereram legislação de restrição a propriedade privada por utilidade pública envolvendo desapropriações que eram resolvidas entre os departamentos técnicos e o Conselho Deliberativo. O segundo momento seria o de definição de planos urbanísticos gerais ou parciais que intentavam reestruturar a trama viária afirmando que esta tem como sua primeira expressão o projeto das reformas empreendidas por Rivadavia ainda em 1820 buscando regularizar a cidade, de onde surge um projeto de avenidas que figuraria em posteriores realizações.

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FIGURA 14: Fotografia que mostra a abertura da Avenida de Mayo a partir da perspectiva da praça, sem data. Nela é possível verificar as mudanças nas edificações, como o próprio Cabildo, que teve partes destruídas. A imagem dimensiona também a amplitude da avenida, pensada para ser uma larga via circulatória.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

Encarado como segundo grande projeto que representa a gestão de Alvear, a abertura

de dita avenida fora justificada a partir das necessidades do novo contingente populacional. A

cerimônia que deu início a sua construção, entretanto, começara já no ano de 1888 sobe a

intendência de Antonio Crespo, que sucedera a Alvear no ano anterior. O primeiro boulevard de

Buenos Aires se converteu em um lugar de passeio e intensa atividade comercial sendo considerado

por seus idealizadores como representante dos ideais de modernidade que devia ecoar em uma

grande cidade cosmopolita. Como frisamos, as ameaças epidêmicas em conjunto com o

desenvolvimento de concepções higienistas centrou as ações da administração municipal sobre

questões infra estruturais e, nesse processo, foram construídos sistemas de água corrente, diversas

ruas passaram por procedimentos de pavimentação e também se controlou a limpeza e salubridade

especialmente das proximidades da praça.

Retomando a ideia do caráter dual da gestão defendido por alguns autores, as

necessidades dessa modernidade seriam respostas prioritárias as necessidades da cidade da classe

alta para qual o embelezamento definira as transformações ecoando em estratégias como a que

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vemos aqui: a abertura da Avenida, a demolição da Recova, a plaza e seus monumentos. Tal

embelezamento continha critérios que procuravam ordenar a circulação e harmonizar as

construções edílicas manifestando-se na revisão do traçado tradicional das ruas, na regulamentação

das ruas e também de algumas atividades. Segundo Hardoy e Gutman, para a remodelação do

distrito central parece ter se operado um claro conceito de cidade como obra de arte, enquanto

para o resto da cidade se destinava o de cidade como negócio.166

FIGURA 15: Esquema da metade leste da Avenida de Mayo, começando na Plaza de Mayo da qual partem também as duas avenidas diagonais. A parte leste da mesma avenida desemboca na Plaza del Congreso, conformando um eixo cívico entre os poderes. FONTE: SOLSONA, Justo; HUNTER, Carlos. La Avenida de Mayo: Un proyecto inconcluso. Buenos Aires: Nobuko, 1990.

O projeto de abertura da Avenida de Mayo desde a própria Plaza de Mayo até o oeste,

desembocando na Plaza Lorea, envolvia a uma fileira de manzanas densamente ocupadas entre

as ruas Rivadavia e Victoria. O intendente justificava essa abertura se baseando nas novas

demandas de circulação derivadas do próprio crescimento populacional da cidade. A cerimônia

inaugural dos trabalhos foi realizada em 1888 e a construção da avenida, definida pelos pleitos

que ocasionaram as desapropriações começou no início de 1889. Essa Avenida incorporaria à

cidade seu primeiro boulevard, se convertendo imediatamente como lugar de passeio e atividade

166 A questão do embelezamento não foi considerada, inicialmente, em outros espaços da cidade aos quais só se destinaram ações que se pautavam pela ordem e higiene. Além disso, até estas eram menos rígidas nesses bairros mais distantes já que as redes projetadas de saneamento só chegavam até um ponto relativamente curto da cidade e também a pavimentação só se concentrara no centro chegando nos bairros apenas em algumas ruas que os atravessavam. Assim, as poucas ações que alcançavam as demais localidades foram empreendidas mais no sentido de controle e da especulação do que da ornamentação urbana.

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comercial, sendo comparada com aqueles de Paris, algo que sem dúvida orgulharia a elite

portenha e o próprio intendente.

A Avenida de Mayo antecede como projeto a própria gestão de Alvear, já que sua

necessidade vinha sendo levantada em diversas propostas de renovação urbana pelo menos desde

o Plano de Lagos proposto em 1869. Essa avenida não só reforça a ortogonalidade existente, mas

também se limita a abrir uma saída da Plaza de Mayo até o que então funcionava como limite da

cidade consolidada, a linha da rua Callao-Entre Rios, sem buscar conexões produtivas. Nem

mesmo a decisão de conformar um eixo cívico-monumental que fora logo constituída estava

formulado nos planos originais tendo em vista que a decisão de instalar o Congresso Nacional no

outro extremo da avenida é posterior à sua concepção.

Essas evidencias relativizam grande parte da importância atribuída ao intendente,

tendo em vista que este foi realmente responsável apenas parcialmente pelo traçado da avenida

e esta não modificou estruturalmente a cidade como linha de ação. Ao contrário, sua

consolidação definitiva como eixo cívico tem a ver com um momento posterior. Entretanto,

reiteramos a importância de Alvear no seu papel na realização da avenida principalmente por

ter produzido grande parte das transformações administrativas na gestão e reformas jurídicas

que tornaram essa possível assentando os precedentes das reformas que já vinham sendo

pensadas. Estendemos também essa importância a relevância da avenida e da praça no contexto

da cidade já que a esta esteve destinada uma fundamental transformação do espaço público.

Nesse momento de reforma da praça, antes ainda da virada do século XIX, cujas as

tramas políticas envolveram a federalização da cidade, originaram-se disputas que se refletiram nas

reformas realizadas nas cidades. É possível destacar um projeto que pauta as mudanças, permeado

pelas ideias pretendidas para a nova capital, mas também constantemente envolvido em embates e

negociações. Fica claro ser o espaço configurado a partir destas disputas e em resposta às próprias

mudanças de poder político e social que a nova capital vai se delineando. Entre os festejos e

comemorações que tiveram lugar na praça, sua importância fora ratificada em meio a modernidade

buscada pela cidade como símbolo e expressão do poder representado pela capital nacional.

Do plano geral se concretizou o redesenho da praça e a demolição da Recova, mas a

Pirámide de Mayo envolveu ainda uma serie de polêmicas acerca de sua validade histórica, material e

estética como símbolo da revolução. As tres ideas capitales que deveriam ser homenageadas

constituíram certa retórica de efervescência patriótica que tiveram uma correlação material nesse

projeto. A destruição da Recova se concretizou de maneira autoritária enquanto a Pirâmide

permanece até hoje na praça, tendo sofrido modificações posteriores, mas sem desaparecer

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completamente. Foi resolvida a moção do vereador dr. Roberts, reiterando a nota que ele passou

ao intendente, sobre a pavimentação da pirâmide de maio, obstruída com os trabalhos de

embelezamento e união das praças.167 Ao defender a essência nacional, esse grande projeto

mostrava sua consonância com os ideais da Generación del 80, buscando uma retórica de

glorificação de certos símbolos sem, entretanto, estar livre de disputas e negociações que

permearam, como tentamos destacar aqui, vários pontos de sua execução.

As transformações realizadas por sua gestão no espaço público urbano, se vinculam

com um esforço de centralidade tradicional. Esse esforço, entretanto, implicou, nesse novo marco,

na operação de uma profunda alteração sobre a significação da centralidade com relação a cidade

anterior. A historiografia consagrou Alvear destacando sua gestão duas obras como de maior força

emblemática: a formação da Plaza de Mayo e a abertura da Avenida de Mayo. É evidente que essas se

destacaram para os contemporâneos e memorialistas pelo seu alto grau de visibilidade e sua eficácia

em atuar no coração mesmo da cidade. Ambas afetaram o centro cívico tradicional e alentaram o

desenvolvimento do eixo principal da cidade para o oeste, reforçando a simetria fundacional que

concentrava toda a atividade pública e privada ao redor da Plaza.

Atentamos para a dinâmica da gestão pública das questões urbanas e para a construção

institucional e administração dessas. Nesses anos de final do século, a cessão dos municípios de

Flores e Belgrano, produto de uma decisão política faz a gestão municipal enfrentar uma serie de

definições. A ampliação territorial, longe de uma previsão de Alvear formulada no momento de

definição da capital, gerou uma situação de incerteza para os atores de gestão municipal que ainda

se consolidava e organizava-se mediante da separação com a província. A anexação dos municípios

suburbanos se deu num momento de expansão da cidade, quanto os empreendimentos de

renovação e reformas estavam em implantação plena, evidenciando as incertezas e a necessidade

de financiamento que incluíam demandas já levantadas no antigo município.

A leitura das transformações urbanas do fim do século como respostas a problemas já

sinalizados desde muito cedo nesse mesmo século tende a dissolver a ideia defendida por parte da

historiografia de que a década de oitenta representa uma quebra entre a ideia de grande aldeia

provinciana e a de metrópole moderna. Assim como Gorelik, identificamos lógicas técnicas,

transformações institucionais e perspectivas culturais de grande continuidade no processo de

modernização que recorre desde o início do período independente. Nossa opção por seguir a

colocação da gestão desse período numa linha sucessória a partir de projetos pensados

anteriormente não implica em desconhecer suas intervenções. Entretanto, cabe partir do registro

167 Sesion ordinaria del dia 23 de Abril de 1884, ACTAS HCD, 1884

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que foi mais destacado pela historiografia: Alvear foi identificado como o arquétipo de intendente

e sua cidade como o modelo ideal de uma Buenos Aires que devia ser completada com arranjo a

essa inicial inspiração. Colocamos em questão a ideia da “originalidade” do intendente e a visão de

ineditismo com que ficou vinculada sua gestão.

Alvear consagrou-se enquanto uma figura de gestão pública capaz de atender

simultaneamente a administração municipal e a aposta de encarnar a identidade e alma da cidade

em uma intensa personificação de seu mandato. É inegável que o intendente supôs criar sua

imagem uma figura com grande peso pessoal, entretanto, se deve relativizar a validade do rótulo

de “Haussman argentino”, já que a cidade na sua gestão é um artefato complexo no qual se

sobrepõem interesses e jurisdições em um processo de reestruturação do poder público. Para

Gorelik, existe uma dupla realidade no caráter fundacional atribuído a Alvear. Por um lado, o peso

das representações contemporâneas de suas obras na própria conformação da realidade cuja

descrição buscavam. E, por outro, a capacidade de Alvear de compor novas figuras para um espaço

público que se pretendia novo: figuras urbanas que assumem o controle da necessidade simbólica

latente na federalização, propondo reconstruir a memória para configurar um espaço público já

não de cidade e sim de Nação.

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PARTE 2

Mayo enquanto paradigma: (re)atualização do

passado e construção simbólica, 1910

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Capítulo 4: Expressões simbólicas no espaço da cidade

Como antes de Mayo no teníamos Patria, para saber lo que es la Patria era preciso retroceder á la tradición de Mayo, y tomarla como punto de partida.168

A gestão de Torcuato de Alvear, detalhada no capítulo anterior, não limitou suas

intervenções urbanas na Plaza de Mayo, mas também envolveu a abertura da Avenida designada

com o mesmo nome. A partir dessa coincidência, aparentemente simples, de nomenclatura, surgem

questionamentos que merecem nossa atenção mais detalhada devido à associação com a já citada

Revolución de Mayo que parece figurar constantemente o imaginário dos argentinos no período. Por

isso, cabe aqui nos perguntarmos: como surgiu essa forte e insistente recuperação? A frase de

Esteban Echeverría com a qual começamos essa nova parte da dissertação reitera a relação da

identidade pátria argentina com esse acontecimento que figura constantemente o imaginário de sua

população atestando a necessidade de tomá-lo como ponto de partida para compreendê-la. As

narrativas envolvidas nas ações urbanísticas analisadas até então já demonstraram que a revolução

figura como parte central nas argumentações sobre a importância da praça. O centenário desse

acontecimento, período privilegiado de análise a partir de agora, nos parece apropriado para

compreender o estabelecimento desse passado argentino como um paradigma.

A revolução de 1810, bem como suas sucessivas comemorações cuja principal

expressão esteve no Centenário da Independência, têm sido objetos de distintas reflexões e revisões

em meio a historiografia e outros campos.169 Como o próprio nome da praça sugere, não seria

coerente deixar a Revolución de Mayo alheia a nossas reflexões tendo em vista sua importância para a

própria forma como a praça é entendida e projetada por muitos agentes. Esse episódio, entendido

como o primeiro passo no caminho até a independência argentina, tem um grande significado

político e histórico, de maneira geral, mas nos interessa resgatar seu sentido simbólico,

constantemente entrelaçado com a Plaza de Mayo.

Como analisa Felipe Pigna, importante historiador argentino, deve-se considerar a

relevância de tal acontecimento na história do país como tão grande que se torna difícil designá-lo

168 ECHEVERRÍA, Esteban. Manual de Enseñanza moral, para las escuelas primarias. Buenos Aires: Imprenta y Librería de Mayo, 1873. p. 333 169 GOLDMAN, Noemí. Historia y Lenguaje. Los discursos de la Revolución de Mayo. Buenos Aires: Editores de América Latina, 2000; CHIARAMONTE, José Carlos. Nación y Estado en Iberoamérica. El lenguaje político en tiempos de las independencias. Buenos Aires: Sudamericana, 2004; TERNAVASIO, Marcela: Gobernar la revolución. Poderes en disputa en el Río de la Plata, 1810-1816. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007; TERÁN, Oscar. Historia de las ideas en la Argentina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008; GOEBEL, Michael: La Argentina partida: Nacionalismos y políticas de la historia. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2013; CHIARAMONTE, José Carlos. El mito de los orígenes en la historiografía latinoamericana, Cuadernos del Instituto Ravignani, nº 2, Buenos Aires, 1991.

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apenas como um ato de ordem política, econômica ou até mesmo militar. Para o autor, esse seria

melhor caracterizado como um ato escolar por atravessar as vidas dos indivíduos argentinos de

forma a ser cristalizado constantemente como um ato fundador da própria nacionalidade.170

Entretanto, o autor o encara como um mecanismo efetivo para despolitizar e reduzir pontos da

história nacional já que, por mais que seja um tema constantemente debatido, segundo o autor não

chega a ser compreendido pelos indivíduos a partir de todas as suas dimensões. Ao contrário, a

visão difundida continua reforçando esse mito fundador tornando quase impossível dissociar o

país das batalhas de 1810. Essa imagem é útil para esse discurso de poder que busca se legitimar a

partir de uma despolitização da história que, ao deixar de lado seus múltiplos elementos, é

acompanhada da exaltação de determinados protagonistas e datas.

Nossa intenção no atual capítulo é refletir sobre essa reinterpretação dos sentidos do

passado a partir do espaço da cidade que atualiza percepções e memórias a todo momento gerando

comemorações que monumentalizam ou celebram determinados eventos, lugares ou personagens.

Como a Plaza de Mayo constitui o objeto dessa dissertação, tentaremos acompanhar a relação desses

discursos com esse espaço específico de Buenos Aires. A praça, em meio ao Centenário, ocupou

lugar central a partir da preocupação em reforçar sua importância por ter sido palco da Revolução

pela Independência. Acompanharemos aqui especificamente as tentativas de eternizar esse

momento expressas na praça: a Pirámide de Mayo, que emerge como primeiro monumento pela

argentinidade, ainda em 1811 e os esforços empreendidos na primeira década do século XIX na

realização de um concurso para eleger um projeto de Monumento a Revolución de Mayo, a ser

construído na praça. Focar nossa análise nesse concurso e nos projetos apresentados nos permite

compreender toda uma conflituosa negociação estabelecida entre a própria Comissão e os artistas,

bem como outras dinâmicas de conflito que se estabelecem a partir das propostas de

monumento.171

Ao longo da segunda metade do século XIX as exposições universais chancelaram uma

relação entre celebrações patrióticas e demonstrações de progresso nacional fundadas em

necessidades simbólicas de expressão.172 Essa relação, segundo Gorelik, além de encarnar-se nas

cidades tendeu converter cada uma dessas em sua manifestação, como uma verdadeira exposição.173

170 PIGNA, Felipe. Los mitos de la historia argentina. La construcción de un pasado como justificación del presente. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004 171 A Pirâmide, comentada anteriormente, será recuperada, nesse capítulo, pela sua relação com o novo monumento. 172 PLUM, Werner. Exposições Mundiais no Século XIX: Espetáculos da Transformação Sócio-Cultural.Editora Friedrich-Ebert-Stiftung. República Federal da Alemanha, 1979; PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais: Espetáculos da Modernidade do século XIX. São Paulo: Editora Hucitec – São Paulo. 1997 173 GORELIK, Adrián. 1998. Op cit, p. 187

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Também nos primeiros anos do século seguinte, o governo argentino começava a preparar os

festejos do Centenário da dita revolução. Como as exposições, os eventos programados para 1910

teriam como objetivo incluir o país como nação em um contexto internacional, evidenciando para

o mundo o progresso alcançado. A cidade de Buenos Aires assumiu um papel substancial,

encarnada novamente como vitrine do progresso dessa nação em construção, mas também

propriamente como objeto de modernização e, portanto, intervenção. Do ponto de vista da cultura

urbanística a cidade se foi usada como expressão dessas celebrações: como monumento ela própria

e, também, como legado vinculado ainda a ideia de cidade capital que é imagem nacional. A reforma

urbana nas primeiras décadas do novo século seguiu propondo a modernização das cidades

praticamente nos mesmo termos daqueles da gestão Alvear.

Para Raul Piccioni, a noção de arte pública torna-se essencial para interpretar as ideias

implantadas nesses anos já que esta proporcionou o sustentou teórico de uma ampla gama de

projetos de transformação urbana.174 Ainda que essa seja ambígua e pouco explorada e, segundo o

autor, não se consagrar verdadeiramente enquanto categoria, a arte pública emergia como solução

para enfrentar os conflitos suscitados nas cidades pela modernidade. As soluções, a partir dos

novos alcances da arte, intentavam harmonizar mudanças e nostalgia conciliando tradições e novos

valores encarando a educação artística como instrumento para alcançar esses objetivos. As

intervenções no espaço público delineavam uma ideia que considerava a estética meio didático

exemplar para construir a cidade e a própria sociedade em um processo conjunto. Entretanto,

reiteramos, esses projetos estão inscritos como dimensões de um projeto mais amplo encarnado

na ideia de civilização. Nesse sentido, cabe identificar os protagonistas, analisar suas estratégias,

instrumentos e os modos de operar que precederam suas ações.175

Françoise Choay, ao buscar compreender as razões que conduziram ao culto

contemporâneo do patrimônio, recupera referências históricas sobre o termo monumento que se

origina, afirma a autora, do latim monumentum, que deriva de monere – advertir, lembrar – sendo

174 PICCIONI, Raúl. El Arte Público en la transformación de la ciudad del centenario. Buenos Aires 1890-1910, Tesis de Maestría, Universidad de San Andrés, 2001 175 Piccioni faz um balanço do amplo conceito arte pública, começando por uma noção mais generalista do mesmo, a partir da qual ele aprofunda e precisa o que o termo designa. Uma definição mais ampla do termo se referia às obras de arte que poderiam ser acessadas pelo público em geral, tanto aquelas que se localizavam nas ruas quanto em ambientes fechados, como museus e galerias, por exemplo. Contudo, outra abordagem – que segundo o autor não seria oposta à primeira, mas sim um aprofundamento do conceito – entende a arte pública como um tipo de manifestação artística, operada com uma linguagem acessível ao maior público possível. Os artistas que se aproximavam desta segunda noção – como Raymond Unwin, William Morris, Camilo Sitte, Charles Buls, entre outros – entendiam que a arte pública deveria ser construída como uma expressão da vida coletiva, transcendendo a noção de mero embelezamento urbano. Para eles, as construções da cidade não deveriam se estabelecer sem conexão com outas artes. Além disso, a arte pública deveria ter um papel social importante, no qual o autor destaca a valorização da identidade nacional e da história nacional – motivo pelo qual este conceito esteve atrelado à noção de arte cívica.

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compreendido como aquilo que traz algo à memória.176 A autora ressalta a dimensão afetiva do

propósito desses artefatos que não buscam apresentar ou dar uma informação de maneira neutra e

desinteressada, mas, ao contrário, tocar através da emoção e da memória viva. A especificidade do

monumento se deve ao seu modo de atuação sobre a memória já que ele mobiliza pela mediação

da afetividade de forma que “lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente”.177 Esse

passado invocado, para Choay, não é um passado qualquer: é localizado e selecionado para seus

fins na medida em que pode contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade.

Assim, independentemente de suas formas e seu gênero, o monumento assume diretamente uma

relação com o tempo e com a memória

É esse elemento que pretendemos recuperar tentando compreender e discutir como

alguns dos discursos constituídos em torno do episódio da revolução, principalmente em meio à

comemoração de seu aniversário de cem anos, buscaram esse efeito pedagógico por meio de

escolhas deliberadas de colocar tal evento em uma posição de destaque em meio à história

argentina. Entretanto, corroborando a hipótese que vem sendo apresentada nessa dissertação, esses

discursos não são hegemônicos e a todo momento entram em embates e negociações com outras

concepções que, em meio a esse dinâmica, definem o que é ou não efetivado enquanto mudanças

físicas na cidade de Buenos Aires. Além de seu significado emblemático, 1910, o ano do centenário,

representa um importante ponto de inflexão na história nacional a partir de distintos pontos de

vista. E, mais relevante que isso é recordar as tentativas de eternizar esse momento, caracterizado

como de extrema euforia comemorativa, na arquitetura, nas ruas, nas praças além de outros

aspectos da cultura de Buenos Aires.178

Essas tentativas não têm nesse caso sua única expressão e, ao contrário, podem ser

relacionadas a outras efemérides, tratadas de maneira similar a partir de um aspecto pedagógico. A

coletânea “Tempo e História” organizada por Adauto Novaes, ao buscar traçar reflexões sobre a

experiência do tempo e as diversas formas de elaboração de tradição e narrativas da história, nos

ajuda a compreender algumas das questões tangenciadas nesse capítulo.179 Para o próprio

organizador, as distintas articulações entre épocas e situações permitem diferenciar condutas

múltiplas no tempo e reconhecer que práticas políticas e culturais são específicas destas. Ao eleger

três datas ícones – 1922, 1792 e 1492 – a coletânea se detém a compreender os mecanismos que

176 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 4. ed. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006. 177 CHOAY, op. Cit, p. 18 178 MALOSETTI COSTA, Laura. Arte e Historia en los festejos del Centenario de la Revolución de Mayo en Buenos Aires. Historia Mexicana, Cidade do México, v. LX, n.1, p. 439-471, jul.-set. 2010. 179 NOVAES, Adauto. (org). Tempo e História. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Companhia das Letras, 1992.

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garantem a repetição, a permanência e a novidade nestas que, para Alfredo Bosi, possuem grande

força e resistência oriundas daquela relação intrincada entre o acontecimento e a polifonia do

tempo social, cultural e corporal.180 Nesse sentido recuperamos também aqui esse momento da

história argentina: por considerar que, muito além da própria conjuntura comemorativa do

centenário, o tema oferece amplos caminhos de investigações que podem ser percorridos,

funcionando como paradigma central para compreender ambas as partes dessa dissertação.181

Os espaços e monumentos não são estáticos. Ao contrário, eles se redefinem em

função de novos processos e memórias que agregam – nutrindo-se das descontinuidades do tempo,

das dinâmicas de visibilidade e ausência que marcam as tentativas de produção de sentido e nos

conduzem entre as temporalidades, colocando estas em contato constante. A noção de monumento

será essencial nessa discussão. Não quaisquer monumentos, mas especificamente aqueles que,

nesse momento, destinam-se à comemoração e tem relação direta com a praça. Esses artefatos se

fazem importante na nossa análise por estarem quase indissociavelmente ligados com a ideia de um

objeto material intencionalmente feito ou preservado para perpetuar a memória de algo ou alguém.

Dentro dessa perspectiva, torna-se essencial discutir nosso entendimento sobre

memória. A relação entre a história e a memória tem sido objeto frequente de reflexão por parte

da historiografia que busca definir seus limites e ambiguidades. Muitas tentativas têm sido feitas

por historiadores para delimitar fronteiras e nuances entre estas concepções que envolvem

discussões complexas que afastam e/ou aproximam as duas esferas. Buscamos aqui corroborar o

afastamento de uma antiga concepção cuja tendência era separar as duas categorias. Nesse esforço

torna-se fundamental o retorno às ideias do sociólogo Maurice Halbwachs que, ainda em 1925,

desenvolveu o conceito e memória coletiva, forjado a partir de uma perspectiva positivista, que

considera a memória como uma construção social e um fenômeno coletivo.182 Ao atribuir a

180 Os artigos da coletânea explicam a experiência do tempo partindo do pressuposto de que uma cultura recorre à diversas formas de elaborar suas tradições e narrar a própria história. Argumentam que a História não pode ser pensada sem conexão com as diferentes dimensões. As datas selecionadas servem para reiterar o argumento de que o passado é recuperado em experiências específicas e os usos feitos dessa narrativa envolve interesses e representações pensadas a partir desse novo tempo. O Argumento de Bosi destaca a data como um número-índice, um elo de uma cadeia de sentidos em torno das quais destacam-se interesses individuais e paixões que ensejam efeitos teatrais. Para ele, as datas devem ser problematizadas como símbolos já que a cronologia é insatisfatória para penetrar e compreender as múltiplas esferas da existência social. Ver: BOSI, Alfredo. o tempo e os tempos. In: NOVAES, A. (org). Op. Cit. 181 O terceiro capítulo não figurava nas intenções iniciais de escrita dessa dissertação. A primeira década do século XX e a chegada do centenário não foram incialmente escolhidos como um momento de análise pois centramos nossas decisões em projetos que, de alguma forma mais direta, envolvessem a Plaza de Mayo. Entretanto, a partir das reflexões geradas tanto pela primeira parte dessa pesquisa quanto pela segunda criou-se uma demanda de exploração maior desse período, tendo em vista que envolvem paradigmas, projetos e discursos que se relacionam de maneira direta com ambas as partes dessa dissertação. 182 Halbwachs defendia a existência da memória individual pela coletiva já que as lembranças são constituídas por um grupo e, inspiradas por esse. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

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memória a uma entidade coletiva, um grupo ou sociedade, Halbwachs estabelece uma oposição

clara ente memória individual e coletiva e, também, entre memória coletiva e História, conferindo

atributo de espontaneidade e seletividade à primeira enquanto a última se caracterizaria como uma

atividade que deveria organizar e unificar as diferenças e lacunas.

Partindo das ideias desenvolvidas por Halbwachs, Pierre Nora criou bases para a

discussão da memória ao apresentar, na introdução da obra coletiva Les lieux de mémoire, o conceito

de “lugares de memória”. 183 Segundo o autor, na sociedade contemporânea, a possibilidade de uma

história-memória teria sido substituída por uma narrativa que busca unificar o tempo e tratar o

passado como um processo e não como algo morto, mas sim, como algo existente no próprio

presente. Os lugares de memória surgiriam como cristalizadores da memória e estariam

relacionados com esse momento particular de nossa história no qual a o sentimento de

continuidade torna-se residual nos locais, existindo “locais de memória porque não há mais meios

de memória”. Nora reitera a separação entre memória e história afirmando que “a memória se

enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga a

continuidades temporais, às evoluções, e às relações das coisas. A memória é o absoluto e a história

o relativo”.184 O conceito de lugares de memória teria surgido como resposta à essa necessidade de

identificação por parte do indivíduo contemporâneo e do sentimento de que não existe memória

espontânea – o que teria gerado uma necessidade de criar arquivos, manter aniversários, organizar

celebrações, dentre outras. Tais lugares são considerados amálgamas de história e lembrança

aparecendo como espaços com os quais estes indivíduos se identificam e se reconhecem,

resultantes da própria vontade humana, agregando dimensões materiais, simbólicas e funcionais.

Retomamos aqui essas ideias para afirmar uma posição que acredita que as esferas da

memória e da história, ao contrário daquilo delimitado por estes autores, não são opostas. Ao

refletir sobre a sociologia da memória de Halbwachs, Jacy Seixas chama atenção que em sua tese

central a memória significa fundamentalmente a reconstrução do passado a partir dos quadros

sociais do presente tendo um grupo social como mantenedor de uma dada memória.185 A autora,

então, propõe a retomada desse pensamento a partir de novos saberes para situá-lo em um polo

oposto a essa concepção.186 Segundo ela, a memória aparece como possibilidade de “fazer ‘reviver’

183 NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 7-28. 184 Ibidem, p. 9. 185 SEIXAS, Jacy Alves de. Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e história. História. São Paulo, 20: 93-108, 2001 186 Jacy Seixas, em sua crítica ao modo tradicional que a historiografia abordou o tema da memória, se propõe a compreender a relação entre memória e história por meio de um diálogo entre outras disciplinas dando destaque à filosofia

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o passado, fazê-lo ressurgir de uma aparente ‘não lugar’ para assombrar ou fecundar o presente, de

uma memória coletiva que possa de alguma forma, resgatar o que não é mais imediato e socialmente

articulado e representado”.187

Para Seixas, mais do que reconstruir o passado, esses grupos são responsáveis por fazê-

lo emergir, tornando-se símbolos de lutas políticas que se reatualizam, tendo a memória como

ponto de apoio com a qual lidam afetivamente já que essa emerge em conjunto com sentimentos

e afetos. A função criativa inscrita na memória de atualização do passado é ressaltada pela autora

que entende que o ato de memória busca reconstruir o passado.

Em poucas palavras, se buscamos refletir sobre as relações entre memória e história, penso ser necessário iluminar a memória também a partir de seus próprios refletores e primas; necessário, portanto, incorporar tanto o papel desempenhado pela afetividade e sensibilidade na história quanto o da memória involuntária. Necessário, igualmente, atentarmos para o movimento próprio à memória humana, ou seja, o tempo-espaço no qual ela se move e o decorrente caráter de atualização inscrito em todo percurso de memória.188

A autora reitera seu afastamento daquela concepção da relação entre memória e

história como entendida por Nora, que considera rígida e dicotômica, tendo a primeira função de

servir à segunda. Assim, a relação entre ambas deve compreender a memória a partir de seus

mecanismos de existência, que demandam do pesquisador uma percepção dessa como passado

(re)atualizado mas também como uma atividade do presente. A memória introduz o passado no

presente necessariamente atualizando-o.

Os monumentos públicos celebrativos construídos nesse momento revelam narrativas

oficiais ligadas com a biografia e personificação daqueles que são considerados grandes

personagens ou grandes eventos históricos. Analisar o processo de construção destes – efetive-se

esse ou não – nos auxilia a compreender essas narrativas oficiais e as disputas envolvidas em torno

destas a partir de discursos com outros interesses. Segundo a categoria criada por Aloïs Riegl no

início do século XX para analisar os monumentos, o que caracterizaria os celebrativos seria o fato

de surgirem com uma intenção específica de memória, já estabelecida no momento de sua

idealização sendo, portanto, já projetados com a ideia de fixar uma memória específica através do

tempo.189 É nesse sentido que, mais uma vez, destacamos sua dimensão pedagógica, tendo em vista

e à literatura nesse processo. A autora incorpora a dimensão da memória permeada pela afetividade e pela sensibilidade se apoiando em autores como Bergson e Proust, não minimizando o potencial de apoio de outras disciplinas na compreensão do conceito. Ver: SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Maria Stella Martins, NAXARA, Márcia Regina Capelari (Org.), op. Cit.. p. 37-58. 187 SEIXAS, Jacy Alves de. Halbwachs..., p.95 188 SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos..., p 45. 189 RIEGL, Aloïs. Le culte moderne des monuments: son essence et sa genèse. Paris, Éditions du Seuil, 1984

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que são produzidos com o intuito de ensinar, estabelecendo um discurso que se corporifica na

cidade objetivando despertar um sentimento nacional que, por não ser espontâneo, precisa ser

cultivado. O autor classifica os monumentos intencionais como aquelas obras destinadas, pela

vontade de seus criadores, a comemorar um momento preciso ou um evento do passado enquanto

a concepção de monumentos históricos se alarga para abarcar àqueles que apresentam ainda um

momento particular cuja escolha é determinada por preferências subjetivas.190

Os monumentos comemorativos, portanto, encarados como artefatos pensados

intencionalmente para passar uma ideia à posterioridade envolvem atos públicos consagratórios

que buscam legitimar seus efeitos a partir de seu caráter de atualidade. Nestes, a presença de

alegorias que se referem a determinadas ideias e/ou conceitos tem relação direta com esses feitos

do passado que foram escolhidos para serem neles celebrados. Além disso, essa relação também se

estabelece com a intencionalidade daqueles que efetuam as escolhas acerca dos monumentos

buscando que essas ideias sejam atualizadas na posterioridade, construído um passado segundo seu

próprio arbítrio. Por isso se mostra tão importante a análise crítica desses monumentos públicos

buscando reconstruir o clima das ideias no momento de sua construção e durante sua história, de

forma a compreender a evolução destas a partir de mudanças artísticas e também políticas, como

buscamos destacar aqui.

Essas memórias, portanto, são fragmentos do passado e envolvem escolhas –

conscientes ou não – já que são reconstruções individuais e sociais por envolverem relações

interpessoais e dependerem também de códigos e referências culturais específicas de determinado

grupo. As construções memoriais, portanto, pertencem ao domínio das representações e dos

imaginários.191 Porém, estas construções, ao tentar superar os limites de curta duração provenientes

da transmissão oral, busca ultrapassar estes meios e perpetuar-se por meio de outros como

monumentos, cerimonias e rituais, que envolvem uma constantemente interpretação e

reinterpretação destas. Essas comemorações atualizam – e, portanto, modificam – o passado,

retomando as ideias de Seixas e transformando-o em uma atividade também do presente.

O período das independências latino-americanas contempla um intervalo de tempo

(grosso modo, tido pela historiografia como o período entre os anos de 1808 e 1825) pontuado por

190 RIEGL, op. cit., p. 47. 191 François-Xavier Guerra atesta a existência de uma duplicidade nas construções memoriais por considerar que estas oscilam entre as propriedades opostas de permanência e variabilidade. O autor argumenta que, por serem elementos estruturantes de grupos e de suas identidades, estas construções se configuram como invariáveis. Mas, quando consideradas como resultado de uma elaboração que envolve a combinação específica de atores, também são variáveis modificando-se com a mudança destes atores, de seu lugar na sociedade ou suas referências culturais e assumindo um caráter duplo. Ver: GUERRA, François. Xavier. Memórias em transformação. Revista Eletrônica da ANPHLAC, São Paulo, n. 3, 2003.

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eventos que impactaram a Espanha e, consequentemente, também as regiões da América

Hispânica. Nestes anos diversos países foram consagrados independentes tais como Colômbia,

Venezuela, Equador, Argentina, Bolívia, Paraguai, México, Uruguai, Chile, Peru dentre outros

como os localizados na América Central.192 É importante, entretanto, ter em conta que a

Independência tomou diferentes formas em todo o continente porque as experiências dos países

foram distintas apesar de ser possível perceber uma tendência de criação de uma base memorial

compartilhada para sustentar o sentimento nacional.

Esse movimento constante envolve dinâmicas e remanejamentos que aparecem de

maneira bastante específica no caso latino-americano sobretudo ao redor de um impactante

acontecimento que marca a memória do continente: a Independência.193 Para François-Xavier

Guerra, esse processo abarcou uma busca pelo esquecimento do período colonial envolvendo uma

tentativa de dotar os novos Estados de um passado capaz de legitimar sua existência como Nação,

gerando tentativas diversas de reinterpretação desse passado latino-americano. A questão nacional

está na base de algumas das lutas e controvérsias fundamentais dos países da América Latina. A

Nação pode ser vista como uma configuração histórica, em que se organizam e sintetizam forças

sociais, arranjos políticos, produções culturais, diversidades regionais, dentre outros.194 Essa é uma

formação social em movimento e, por isso, elementos como hino, bandeira, heróis, moeda

adquirem sentido de acordo com o contexto das relações de força que a (re) configuram.195 Na

América Latina, as guerras e revoluções pela independência estão no cerne da origem da Nação e

estabelecem seus principais traços e sintetizam o dilema da problemática nacional.

192 As independências foram deflagradas por uma conjuntura de transformações no século XVIII na Europa e levaram à queda do Absolutismo. A própria independência das colônias inglesas da América do Norte, a revolução industrial, o iluminismo e a revolução francesa impactaram tais acontecimentos. A invasão de Napoleão a Espanha, no comando do Estado Francês, desestabilizou a autoridade do governo sob suas colônias. Nesse contexto de instabilidade e fragilidade política, criaram-se oportunidade para a classe dominante hispano-americana sustentasse um movimento pela Independência como forma de conservar seu status – movimento impulsionado também pela demanda britânica e norte-americana pela expansão de seus mercados consumidores. A Grã-Bretanha negou ajuda a Coroa Espanhola para recuperação dos reinos americanos com a finalidade de que estes países pudessem, após sua liberação da cora espanhola, estabelecer livre comercio – o que permitiria que a própria Grã-Bretanha alcançasse posição de potência hegemônica. Também os Estados Unidos, agora emancipados, compartilhavam dessa necessidade de ampliação de mercado. 193 Segundo Guerra isso acontece também de maneira marcante em diversos países latino-americanos no caso da Conquista configurando uma experiência comum entre esses países acerca de traumas de passado. Ambas as experiências, segundo o autor, provocaram rupturas na continuidade da memória e das visões acerca do passado praticamente sem equivalentes. 194 IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. Estudos Avançados. v.2, n.1, São Paulo, jan./mar. p.5-40, 1988. 195 A Nação está na história e no imaginário já que é uma realidade inquestionável, mas também é uma fabulação que ressoa em muitos pensamentos. Em vários momentos, história e imaginário confundem-se. Entretanto, não devemos perder de vista a historicidade das conjunturas já que a Nação não surge acabada. Ao contrário, conforma-se ao longo da história. A compreensão da ideia de nação enquanto narração cultural amplia as possibilidades de articulação simbólica desse conceito o que propõe uma nova forma de reflexão pois permite descentralizar o movimento que tende a unificar e homogeneizar a representação de nação – possibilitando pensa-la a partir das diferentes temporalidades e recortes.

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Seguindo esse movimento, buscamos privilegiar a polêmica dessa discussão

conformando sua amplitude e importância e situando o lugar de nossa abordagem em meios as

problematizações e potencialidades de distintas interpretações. A abordagem estabelecida por Elias

Palti e sua crítica a perspectiva de François-Xavier Guerra, cujas reflexões dedicam-se grande parte

às independências e formação das nações latino-americanas, se tornam aqui essenciais. A partir de

um diálogo estabelecido em um colóquio com Fernando Catroga sobre o par conceitual

pátria/nação, no qual esse último dedica-se, de maneira mais geral, a compreender a trajetória do

conceito, Palti centra sua análise nos estados americanos de origem hispânica e nos problemas

instaurados na conformação de suas identidades nacionais revelando o local de sua abordagem.196

Problematizando duas explicações consagradas sobre a emergência dessas identidades:

a tese da “nação pré-existente” e as leituras revisionistas dessa tese, Palti se distancia dessas últimas

por considerar que, assim como a tese que criticam, se sustentam a partir de categorias

homogeneamente concebidas e anacrônicas que condensam temporalidades ocultando contextos

diversos e impondo ao tempo e às instituições uma grande duração.197 Para Izabel Marson, Palti

parece deslocar o olhar para privilegiar os contextos político-intelectuais e a trama das linguagens

entendidas como atos políticos propondo indagações que retomam e subvertem o princípio das

teses revisionistas.198 Suas indagações são desveladas em dois movimentos: o de desconstrução da

concepção homogênea de Antigo Regime e, o que se relaciona mais diretamente com a discussão

levantada nesse capítulo, de esclarecimento das etapas da trajetória de constituição do conceito

moderno de Nação, nos estados formados na América Hispânica.

Palti caracteriza as reflexões de Guerra, representante das teses revisionistas citadas

anteriormente, sobre as revoluções hispânicas como uma revolução historiográfica já que, para ele,

196 O Colóquio “Conceitos e Linguagens: Construções Identitárias” aconteceu na UNESP em 2012 com a participação de pesquisadores convidados a explorar e debater conceitos frequentes ao trabalho do historiador orientados por distintos pares, como o caso de pátria/nação que além das reflexões de ambos os autores contou com uma síntese de Izabel Marson. Em seu texto, Catroga dedica-se a compreender o percurso de autonomia e singularidade bem como as aproximações e adensamentos sofridos pelos conceitos de pátria, estado e nação. Nesse ímpeto, sinaliza que Pátria e Nação são conceitos com origem e significados distintos, mas que partilham de traços formativos comuns que sedimentam sólidos vínculos de pertencimento sustentados por valores culturais e políticos. Para o autor, na modernidade, o conceito de nação teria se integrado e redefinido pátria de forma que o conceito de nação constituiu uma instância de conexão com experiências mais complexas de estado, promovendo o desdobramento de novos vocábulos e relações/sentimentos derivados como patriotismo, nacional e nacionalismo. Ver: CATROGA, Fernando. Pátria, Nação. In: NAXARA, Marcia; CAMILOTTI, Virgínia. (Orgs.). Conceitos e Linguagens: construções identitárias. São Paulo: Intermeios-Capes, 2013. p. 15-31. 197 Palti não endossa as concepções revisionistas que se fundamentam na ideia do anacronismo presente na utilização do conceito moderno de nação no momento da independência porque, segundo o autor, as instituições do antigo Regime não se adequavam a esse conceito. Ver: PALTI, Elias José. El absolutismo monárquico y la génesis de la soberanía nacional. In: NAXARA, Marcia., CAMILOTTI, Virgínia. (Orgs.). Conceitos…, p. 33-50. 198 MARSON, Izabel. A natureza como artifício: tramas de conceitos e linguagens na tessitura da questão nacional na Europa e na América. In: NAXARA, M; CAMILOTTI, V. (Orgs.). Conceitos..., p. 51-68.

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o autor franco-espanhol efetuou deslocamentos que colocaram os estudos sobre o assunto em

novo patamar. O historiador argentino se dedica a revisão de alguns dos paradigmas propostos por

ele, problematizando certos elementos das linguagens políticas latino-americanas. Os

deslocamentos de Guerra teriam: rompido com o tradicional esquema de influências ideológicas;

relacionado as transformações conceituais com alteração nas práticas políticas advindas de novos

sujeitos políticos; superado o dualismo entre tradicionalismo espanhol e liberalismo americano;

reconsiderou a inscrição das guerras de independência no marco da chama “era das revoluções

democráticas” atentando paras as peculiaridades da modernização hispânica o que levou-o a

explicar a constituição dos novos estados nacionais com base nesta.199 A crítica de Palti surge a

partir desse último ponto, que considera estar em desacordo com os anteriores afirmando que

Guerra propõe um dualismo rígido entre modernidade e tradição que provoca ainda uma série de

problemas conceituais oriundos da confusão do autor entre linguagens e ideias – uma confusão

que que simplificaria as linguagens políticas a ponto de os tornar praticamente inviáveis.200

A análise de Palti sugere uma mudança conceitual que possibilitou uma nova

compreensão do conceito de nação no próprio contexto americano, sendo fundamental para os

processos das independências, diferindo das tradicionais abordagens. Ao constatar a presença de

uma ideia de nação que originou as guerras revolucionárias, Palti considera surgirem da ruptura do

vínculo colonial um conjunto de novos estados, ainda precários.201 Coloca-se, nesse contexto, a

necessidade de cortar laços com o passado colonial para justificar o rompimento com a metrópole

e a resolução do problema, para o autor, pressupôs a árdua tarefa de tentar definir um conceito

mais forte de nacionalidade – convocando expoentes políticos e intelectuais a realizar a operação

intelectual, a partir de meados do XIX, de construir historias genealógicas da nação.202 É uma

posição que se opõe claramente àquela ideia de que as colônias acompanhavam com certo atraso

todas as transformações europeias e que esse processo teria sido resultado de meras influências.203

199 GUERRA, François. Xavier. Modernidad e independencias: ensayos sobre las revoluciones hispanicas. Madrid: Mapfre, 1992. 200 PALTI, Eliás José. La revolución historiográfica de François-Xavier Guerra, y sus limites. In: PRADO, Maria Emília (org.). Tradição e modernidade no Mundo Ibero-Americano. Atas do Colóquio Internacional. Rio de Janeiro: CNPq, 2004 pp. 23-28. 201 A ideia de que esses seriam expressão institucional a nações pré-existentes consistiria em uma operação intelectual complexa por demandar o reconhecimento de traços de unidade, segundo as definições universais de nacionalidade, que, no caso da América Hispânica, dificilmente poderiam se fundamentar nos argumentos clássicos utilizados na Europa como língua, etnicidade e tradição. 202 PALTI, Elías José. El momento romántico: nación, historia y lenguajes políticos en la Argentina del siglo XIX. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 2009 203 As medidas contratualistas que embasaram a ideia de nação no tempo das independências, associadas à opção republicana, implicaram na fragmentação política ocorrida no império hispânico e inviabilizaram eventuais projetos de confederações criando, portanto, uma questão insolúvel no sentido de serem constituídas identidades nacionais. Em suma, avalia Palti “o mesmo princípio que havia fundado um novo Estado continha os germes de sua própria

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A crítica do autor, reiterada nesse trabalho, sugere uma defasagem metodológica na concepção de

guerra que se propõe a reconstruir linguagens políticas mas segue pensando-as como sistemas de

ideias.

Un lenguaje, a diferencia de las ideas, no es un atributo subjetivo. Mientras que las ideas remiten a la conciencia de los sujetos y son relativas a los mismos, los lenguajes son entidades objetivas, se encuentran públicamente disponibles, para diversos usos posibles, por distintos interlocutores. Los vocabularios de base no cambian con las posturas de sus portadores, sino que definen las coordenadas dentro de las cuáles éstas pueden eventualmente desplazarse (al menos, sin hacer entrar en crisis el mismo).204

Para Palti, nas colônias emergiria a necessidade de criar, no mesmo ato de constituição

da ordem política, também a entidade a ser representada – a nação. Assim, a ruptura do vínculo

colonial se estenderia ao nível da história intelectual pois as ideias não alcançaram as modificações

em curso. A história das linguagens políticas se orienta a analisar como, além da persistência das

ideias se alteraram as coordenadas conceituais de onde estas tiram seus sentidos, tentando descobrir

as alterações sofridas nas condições de enunciação dos discursos.

A Nação, portanto, deve ser pensada como um sistema classificatório que evidencia

uma ligação entre o Estado e seus membros entre si. Elementos como território e a língua são

categorias responsáveis por sustentar um sentimento de pertencimento entre estes indivíduos, uma

ligação que acontece por meio de representações simbólicas, como afirmou Benedict Anderson

que permitem forjar essa tradição cultural em comum.205 Para pensar na representatividade desse

destruição”. Diferindo das leituras revisionistas – leituras que pressupõe modelos universais – considera que a fragmentação política territorial da América Hispânica não deve ser atribuída, portanto, “nem ao conceito republicano de governar, nem a uma herança tradicionalista hispânica” 204 PALTI, Elías José. Historia de ideas e historia de lenguajes políticas: acerca del debate en torno a los usos de los términos "pueblo" y "pueblos". Varia hist., Jul 2005, vol.21, no.34, p.325-343 205 Para Benedict Anderson a nação é definida como “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”. O autor se propõe a realizar a análise dos sistemas culturais que precederam o surgimento, desenvolvimento e recepção do nacionalismo no final do século XVI. Tanto as comunidades religiosas quanto o reino dinástico estabelecem seus vínculos de referências pelos quais as comunidades se compreendiam como tal antes das nações modernas, através das línguas sagradas e da presença de um sistema político em comum – a monarquia. A concepção de nação imaginada surge, para o autor a partir de algumas bases históricas. Uma delas seria as mudanças religiosas que teriam propiciado a crença de que o nacionalismo seria uma solução para uma questão anteriormente respondida pela fé. O declínio das religiões levou também ao crescimento das linguagens seculares, diminuindo a importância do latim como única linguagem sagrada possível e tendo como consequência a perda da confiança na sacralização de um determinado idioma por parte das comunidades mais antigas. Outros fatores que teriam contribuído para essa concepção seriam o fim da crença de que era natural que as sociedades fossem organizadas ao redor de um monarca, legitimado por um poder divino bem como a emergência de uma nova concepção de tempo que permitia a ideia de simultaneidade transversal propiciando a ideia da nação como um organismo. Anderson ressalta a importância da imprensa para ilustrar essa primeira tomada de consciência de que grupos compartilhavam certa inteligibilidade por consumir os mesmos produtos culturais. Assim, o surgimento de um discurso compartilhado foi o primeiro passo para a formação do que chamou de comunidade imaginada e que complementou as formas institucionais previamente existentes nos Estados nacionais. O autor, dessa forma, evita

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conceito, Homi Bhabha propõe um novo olhar buscando pensar em diferentes formas de

identificação cultural comportadas pela nacionalidade pensando a nação enquanto metáfora e

narrativa questionando a visão linear e homogênea da representação cultural e possibilitando

visualizar as estruturas de poder que a fundamentam.206 Revela as identificações culturais de um

grupo por meio de uma disputa e forças entre persente e passado já que a dinâmica do presente se

compõe de signos articulados no passado, ou seja, a própria narrativa nacional é construída na

interação entre signos repetidos da tradição e ressignificação desses mesmos no presente.

Esses pressupostos são essenciais para compreender as negociações de significados

dentro do discurso nacional e como essa representação cultural nacional ocorre por um sistema

simbólico que buscar estabelecer identidades a partir de relações de poder. A narrativa da nação

constrói imagens recorrentes de uma tradição buscando a formação de uma identidade nacional

marcada pelos mitos de origem. A tradição, dessa forma, age como estratégia de unificação entre

um passado seletivo e um presente para forjar essa nacionalidade, exercendo função a favor de uma

hegemonia cultural que fundamenta a identificação entre os membros de determinada nação.

A cidade é constituída de espaços onde diversas lembranças se situam. Estes espaços

construídos aludem a significados simbólicos específicos ao evocar narrativas e experiências. A

interpretação destas possibilita dar significados distintos à materialidade da cidade a partir de um

conjunto de signos. Estes significados, que emergem das cidades, são aspectos fundamentais de

sua constituição. Ao atentar exclusivamente sobre a experiência argentina, buscamos entender

como se articularam diferentes estratégias política de criação de uma nação, no sentido cultural, já

que o objetivo principal era transformar uma população heterogênea em um único povo unificado

por uma visão comum do passado. Assim, foi despendido grande esforço na criação de um

verdadeiro panteão dos grandes homens da pátria, que são aqueles envolvidos nos processos de

independência e que passaram a ser vistos como os próprios fundadores destas novas nações. Além

dessa personificação da independência, diversos outros símbolos foram buscados e recuperados

nessa tentativa de forjar uma nação supostamente unificada a partir dessa memória compartilhada.

A construção desse projeto de nação a longo prazo foi encampada pelas elites no

contexto pós-independência e a busca pela modernidade apareceu nessas projeções a partir de

discursos que buscavam, por um lado semelhanças com o continente europeu tido como expressão

máxima de civilização e, por outro, reiterar um passado cristalizado a partir de alguns símbolos

reduzir nação à um fenômeno puramente institucional, ligado ao conceito de Estado. Ver: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 206 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

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próprios possibilitando o reconhecimento destas novas nações. Dessa maneira, tais esforços foram

recorrentes desde o fim do processo de independência, porém, ganham força nas últimas décadas

do século XIX e aproximação da virada para o século XX. A intensificação de tais ações pode ser

explicada pelo próprio crescimento da importância de Buenos Aires, agora capital, e também a

aproximação do centenário comemorativo da independência que representava um importante

marcos para reiterar a imagem que vinha sendo construída para a Argentina enquanto país.

Tais comemorações representavam momentos propícios de evocação desse passado,

portanto, de reiterar os acontecimentos do século anterior. Diversas ações se inseriram nessa busca

por uma evocação simbólica da grandiosidade do processo que deveria ser comemorado.

Observamos surgirem em Buenos Aires iniciativas por parte do governo de tornar simbólicos os

espaços públicos, dentre os quais encontramos novamente a Plaza de Mayo. Em Buenos Aires, assim

como outras cidades, o caráter cívico – aquele que se desenvolve a partir da honra à pátria e que

faz referência à condição de cidadão integrante do Estado – se converteu em elemento principal e

amalgamou em praças, ruas e avenidas diversos meios de publicizar o discurso governamental

numa clara tentativa de monumentalizar o progresso pretendido por estes governantes.

As mudanças monumentais vieram cobrir o que foi entendido como necessidade desse

novo país com identidade em formação e, portanto, os elementos urbanísticos foram mobilizados

para simbolizar o pretendido avanço cultural expressando em obras públicas os discursos

identitários buscados pelo governo. Essas obras buscavam, de maneira geral, mudança do traçado

da cidade, abertura de novas avenidas, construção ou reformulação de praças ou parques e

inauguração de estatuas que personificariam atores desse passado. A cidade se materializava como

uma crônica da própria história destes países já que os monumentos buscavam reafirmar sentidos

de identidade e pertencimento. Temas selecionados do passado foram utilizados como metáfora a

partir da ideia de que a nação se construía também a partir dos discursos visuais e literários.

Tais elementos visuais, como monumentos e construções arquitetônicas, devem ser

encarados por sua relação de proximidade com o espaço urbano. Retomando as ideias de Choay,

acreditamos que não se deve afastar esses artefatos da realidade de uma cidade, afinal, existe uma

relação de dependência mútua que se estabelece entre estes e seu entorno. O valor de uso desses

elementos urbanos é legitimado por um trabalho que não é estreitamente técnico, mas também se

preocupa com a sua articulação com grandes redes de ordenação, sendo indissociável do contexto

das construções no qual se insere. É essencial que estes tenham seus papéis constantemente

atualizados já que “o entorno do monumento mantém com ele uma relação essencial”.207

207 CHOAY, Françoise. Op. Cit. p. 201.

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Ao atentar para a capacidade da metáfora de fornecer informações intraduzíveis além

de sua pretensão de propor um verdadeiro insight da realidade, Paul Ricoeur defende a tese de que

as imagens e os sentimentos possuem funções constitutivas nesse processo.208 A análise

empreendida pelo autor acerca da construção metafórica como processo complexo reivindica a

necessidade de atentar a fatores paralelos e extrínsecos ao cerne informativo da metáfora

considerando que seu objetivo cognitivo não é alcançado sem a atribuição semântica àquilo que

parece reduzir-se a simples características psicológicas. Ao sugerir que há uma analogia estrutural

entre os componentes cognitivos, imaginativos e emocionais do ato metafórico, Ricoeur busca

associar uma psicologia da imaginação a uma semântica da metáfora destacando três fases nesse

processo: a do insight a partir da semelhança – que provoca a aproximação de dois termos distantes

no espaço lógico –; a da dimensão figurativa – operando uma ampliação icônica que possibilita a

esquematização da assimilação – e a da interrupção – que a partir do elemento de ficção gera novas

possibilidades de ver o mundo advindas da mobilização do elemento sentimental.209

As perspectivas advindas da análise de Ricoeur nos permitem uma maior compreensão

do efeito político de tais figuras de linguagem ao atuarem a partir da imaginação e do sentimento

que são deslocados para a dimensão cognitiva do processo. Uma vez que esse processo só constitui

sua totalidade a partir do funcionamento complementar entre estes conceitos, estas assumem

caráter altamente persuasivo por atuarem a partir de uma lógica interna que associa, de maneira

lógica, estes elementos. Os discursos políticos filiam-se a formações discursivas atravessadas por

distintos sentidos e ideologias, em constante dinâmica, que se condensam em metáforas, como as

aqui analisadas no caso do discurso nacionalista, mobilizado em prol de um ideal racionalista,

moderno e científico buscado para o país/a cidade.

As significações em torno do discurso político e seus efeitos envolvem uma complexa

circulação de saberes, crenças e valores operados. Todos esses envolvem significados que se aliam

ou confrontam dentro de uma determinada conjuntura. Sua eficácia dependerá, portanto, da

capacidade de articulação e mobilização dos imaginários que encontram eco nas sociedades,

provocando adesão a estes já que operam imagens, crenças e emoções forte, lidando com a

construção de identidades – são articulados em determinadas conjunturas históricas e políticas ou

mesmo ganham sentidos próprio de acordo com essas conjunturas. Argumentos sustentados por

meio de metáforas conferem um efeito dramático e persuasivo direcionando a atenção para o que

se busca ressaltar e neutralizando o que não se pode ou quer mostrar, reforçando as analogias.

208 RICOEUR, Paul. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. In: SACKS, Sheldon. (org.). Da metáfora. São Paulo: Editora da PUC-SP & Pontes, p.145-160, 1992. 209 A imaginação permite a produção de perspectivas reveladas pela leitura que geram um significado transformado.

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Na busca de uma construção identitária argentina, estes discursos e recursos criam e

reforçam efeitos de diferenciação que definem um lugar específico para a argentinidade. Nesse

caso, a associação constante com eventos específicos da história do país busca recuperar essa

identificação e imbricar tais formações discursivas a partir de deslocamentos e associações. O

pressuposto que toma como natural a superioridade da cultura europeia perante a América apenas

reafirma as estruturas dessa mentalidade e explica, em grande parte, a tentativa de recuperação de

elementos considerados originários de tal continente, paradoxalmente, em consonância com um

movimento de busca de uma legitimidade no próprio continente europeu. O mecanismo alegórico

introduz representações na forma de diferentes imagens que vão se sobrepondo buscando

significar uma mesma característica ou reforçar a mesma ideia, sendo um lugar de formação

discursiva que busca fixar um sentido. O discurso nacionalista cria a ilusão de certo apagamento

dos conflitos e da diferença buscando representar uma visão única da sociedade. O efeito político

da metáfora é forçado por essa atuar tanto na imaginação quanto no sentimento, como teorizou

Ricoeur, possibilitando a fixação de elementos que ao se estruturarem de maneira lógica, dificultam

a perda de força do argumento.

As festividades pátrias configuram oportunidades de reflexão sobre o passado e

consequente manifestação pública destas tradições forjadas a partir de um passado cristalizado.

Para Ramón Gutierrez, o século XIX teve a peculiaridade de, a partir de um projeto civilizatório

encampado pela elite, preocupar-se em apagar os signos das raízes latino-americanas colaborando

com a ideia de progresso.210 Entretanto, tornou-se uma demanda a criação de histórias próprias

para explicar aos milhares de imigrantes os singulares passados destes diversos países. Em diversos

locais do continente, nesse período, era possível encontrar relatos que buscavam, de maneira linear,

resgatar a fundação dos países para conformar uma história oficial encadeada que justificasse as

modificações do presente.211

Os centenários de independência demonstraram a necessidade de expressar

publicamente que tais países eram, de fato, independentes. Apesar dos processos de independência

terem dado origem a um período de guerras civis e fragmentações regionais que definiram as

fronteiras internas, o centenário pareceu momento oportuno para cristalizar em feitos a definição

da soberania nacional. Na Argentina, esse movimento seguiu essa tendência e o projeto de

210 GUTIÉRREZ, Ramón. Las celebraciones del centenario de las independencias. Apuntes, Facultad de Arquitectura y Diseño, Bogotá, Colombia, v. 19, n. 2. p. 176-183, 2006. 211 Em todo o continente, para Gutiérrez, surgiram retratos épicos dos fundadores e conquistadores latino-americanos bem como reivindicações apaixonadas das culturas pré-hispânicas selecionando, de maneira cuidadosa, recursos específicos enquanto contradições eram minimizadas para conformar essas histórias oficiais, lineares e encadeadas, que permitiriam assumir-nos plenamente como nações autônomas.

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imaginário que essa buscava demonstrar, enquanto nova nação, era o da modernidade e do

progresso para, com isso, ratificar sua opção por separar-se da metrópole no viés político.

O centenário, entretanto, também serviu para a consolidação de obras mais concretas

de caráter público por todo o país. O centenário serviu para consolidar obras concretas de caráter

público por todo o país. A preocupação com uma edificação estética fica clara e foi também impulsora

de grandes obras urbanas como abertura de avenidas e diagonais que alteraram seu traçado visando não

só melhorias no trânsito, mas também alterar o efeito simbólico da cidade com a incorporação de

elementos tidos como modernos. Na virada para o século XX, por exemplo, a abertura da Avenida de

Mayo reorganiza a estrutura urbana em Buenos Aires na qual se incorpora uma linguagem

correspondente com a imagem das novas cidades.212 Também é importante notar as transformações

nas edificações dentre as quais foram favorecidas algumas áreas como educação e saúde além da

substituição de edifícios de governo e departamentos. Por exemplo, um importante conjunto de escolas

foi inaugurado na Argentina entre 1910 e 1916.213 Também as obras culturais encontraram expressão

nessa expansão dentre as quais podemos citar especificamente o caso do Teatro Colón em 1908.

Apesar de uma tentativa de recuperação da própria história, a atuação sobre a arquitetura

e o próprio patrimônio histórico foi controversa em alguns casos. Alguns edifícios de cabildos foram

demolidos como os casos argentinos de Santa Fé e Tucumán dentre outros. O de Buenos Aires

também perdeu parte de sua estrutura para a construção da Avenida de Mayo.214 Em outra chave,

entretanto, as cidades se converteram em verdadeiras exposições de esculturais comemorativas de

heróis das independências. Em grande medida, foi através da configuração destes espaços concebidos

como de memória, que a retorica cívica em torno da independência e dos personagens históricos foi

ganhando importância propiciando a exaltação governamental de uma imagem ligada com ideias de

desenvolvimento.

As iniciativas governamentais tendem a uma ornamentação dos espaços públicos e

dessa forma, as cidades amalgamam em suas praças, ruas e avenidas novos componentes

simbólicos. Em diversos países esses ímpetos de avenidas e monumentos vinculados com as histórias

nacionais foram reconhecidos – reafirmando o papel de destaque e reconhecimento dos processos de

independência. Tais feitos reiteram a vontade de grupos específicos cristalizar na memória os processos

212 PÉRGOLIS, Juan Carlos. La plaza: El centro de la ciudad. Bogotá: Ed. Stoa Libris, 2002. 213 GUTIÉRREZ, Ramón. Op. Cit. p. 182 214 Posteriormente, documentos históricos são utilizados numa tentativa de recuperar partes destruídas do cabildo de Buenos Aires. Nesse novo momento, a memória da instituição colonial passa a ser preservada por ser enxergada também representante da história argentina. Tais mudanças de paradigmas nos mostram como as atitudes e expressões urbanas e arquitetônicas ligam-se diretamente com os acontecimentos de vários âmbitos a partir de retóricas que se renovam constantemente de acordo com tensões e negociações que estão sempre presentes na sociedade.

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independentistas e suas comemorações como recordações nostálgicas de um certo passado que tinha clara

intenção de forjar uma unidade nacional e um sentimento de pertencimento.

Nesse processo o espaço físico adquire e reafirma sentidos. Quando nesse espaço

ocorrem expressões significativas, o que antes era um simples espaço geográfico se transforma em

um lugar com significados particulares, carregados de sentidos e sentimentos para os sujeitos. Mas

não são apenas estas memórias individuais que estão jogo nessa dinâmica, mas os lugares que são

significativos para toda uma sociedade, têm valor simbólico e político que se expressam em rituais

coletivos de comemoração. Nos interessa analisar como tais expectativas motivaram as mudanças

urbanas de Buenos Aires envolvendo a Plaza de Mayo ressaltando, entretanto, que esse processo

não ocorre de forma neutra e envolve sempre negociações e tensões. Cabe aqui compreender como

grupos dominantes agem na intenção de sobrepor seus ideais e fazer com que estes sejam tomados

como parâmetro de tais mudanças enquanto outras práticas e expressões são propositalmente

esquecidas para corroborar os ideais de unidade e progresso buscados.

A Plaza de Mayo se configura em um destes espaços no qual a dinâmica de disputa de

memórias se torna evidente. Essa existe como espaço simbólico e, historicamente, foi utilizada para

legitimar a ideia de poder e, por isto, foi encarada como lugar de disputa por ele. Esse lugar,

portanto, envolve novas identidades a partir de seus usos. As novas relações que os sujeitos

estabelecem com o espaço urbano produzidas pela mudança de uso desse lugar modificam a

fisionomia desse espaço que incorpora novos processos e a reconstrução de símbolos urbanos.

Assim, a praça elucida que os processos sociais e políticos fazem com que os atores sociais se

apropriem de espaços físicos em função de sua memória buscando construir monumentos, marcar

espaços e outros processos que induzem a (res)significação destes espaços materiais. Esse espaço

público, pela ação destes grupos humanos e pela reiteração de rituais comemorativos acabam se

convertendo em veículos para memória – são lugares de luta entre os que querem transformar seus

usos para modificar as marcas de identidade.

No caso de Buenos Aires, os distintos acontecimentos que caracterizaram a Revolución

de Mayo encontraram em 1910 eco nos festejos do Centenário, representativa do apogeu de uma

transformação que estava sendo gestada no país já há uns 30 anos. Representou, dessa forma, o

ápice de um processo de conversão de uma argentina colonial para uma que buscava uma

modernidade para se enxergar como protagonista de sua própria história e, principalmente, certa

hegemonia continental.215 Esse processo de conversão significou nítidas transformações na

215 MÉNDEZ, Patricia, VIÑUALES, Rodrigo Gutiérrez. Buenos Aires en el Centenario: Edificación de la nación y la nación edificada. Apuntes, Facultad de Arquitectura y Diseño, Bogotá, Colombia, v. 19, n. 2. p. 216-27, 2006.

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Argentina, mas não de maneira generalizada em todo seu território. Tais transformações podem

ser observadas de maneira mais evidenciada na capital que foi alvo mais direto da idealização de

um projeto que transformaria não só ela, mas englobaria o país como um todo, funcionando como

uma espécie de vitrine dos ideais dessas mudanças ao reiterar a imagem de modernidade.

FIGURA 16: Comemoração do Centenário na própria Plaza de Mayo, 1910

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

Buenos Aires foi alvo de drásticas transformações entre o final do século XIX e início

do XX e, em meio a tais mudanças, as comemorações do centenário da Revolución de Mayo se

mostraram profícuas para manifestações comemorativas, concentradas especialmente na cidade de

Buenos Aires e a Plaza de Mayo contava sempre com um papel central nestas. Analisar esse tipo de

comemoração permite perceber estratégias conscientes que buscam institucionalizar o passado e

que implicam, como afirmou Jaime de Almeida na ereção ou destruição de monumentos,

estabelecimento de datas cívicas, literatura, etc. Essa análise de da relação entre festas e memória

envolve diretamente a problemática da formação da consciência nacional, o papel do culto ao

passado e, consequentemente, a função das representações na definição nacional.216 Estas

216 ALMEIDA, Jaime. O segundo centenário da independência na América Latina, um desafio historiográfico. In: Encontro Internacional da Anphlac, 7, 2006, Campinas. Anais... São Paulo: Anphlac, 2006.

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representações são construções e, portanto, artefatos de memória, pois estas celebrações possuem

grande capacidade de sobrevivência e, além disso, adquirem distintos significados conforme a

passagem do tempo.

Tais comemorações patrióticas tiveram grande expressão na praça nesse início de

século constituindo importantes mobilizações cívicas organizadas pelo governo. A Independência

foi celebrada ano após ano como forma de ritualizar esse momento específico da história argentina.

Essas comemorações, celebradas publicamente, são consideradas momentos de exibição de poder

e funcionam como artifícios oscilantes entre a pedagogia e a propaganda configurando uma

tentativa governamental de evocar sentimentos patrióticos a partir de uma celebração da memória

coletiva dessa sociedade. Essas comemorações emergem, portanto, como forma de constituir e

legitimar o governo transformando-se em verdadeiros espetáculos de afirmação do poder através

da exibição da pátria e da própria prática de ritualização de poder. Essas cerimônias têm forte

caráter político pois são parte de um ritual patriótico de representação pública de uma sociedade

ao expressar práticas de natureza simbólica e rituais de rememoração que tangenciam os usos que

são feitos do passado.

A vontade de modernizar a cidade e também a chegada massiva de imigrantes nas duas

últimas décadas do século XIX impulsou várias ações como adequação do sistema de transporte,

abertura de novas ruas e melhoras infra estruturais de maneira geral. Estas modificações ocorreram,

grosso modo, em um setor específico da cidade que alcançava apenas um quinto de seu território

total. A abertura da Avenida de Mayo conectou a Casa del Gobierno com a Plaza Lorea, onde

posteriormente foi instalado o Palacio del Congreso. Foi inaugurada em 1894 e pensada para ser símbolo

máximo da modernização da cidade além de coluna vertebral da cidade. Com trinta metros de

largura, foi a primeira avenida não só da Argentina, mas de toda a América do Sul. Essa ação

representou a criação de um primeiro grande eixo urbano a romper com a trama colonial –

posteriormente continuado com a abertura das diagonais norte e sul que completariam a nova

articulação da praça com o tecido urbano.217

A construção da Avenida de Mayo envolveu destruição de alguns edifícios mais antigos

como os três arcos do lado norte do cabildo, mas, por outro lado, envolveu também a criação ou

construção de fachadas mais imponentes para as construções que nela se localizavam. Afinal, uma

avenida com tamanho simbolismo necessitava de arquiteturas condizentes com o poder e a

modernidade que buscava representar, tornando-se uma metáfora do que era pretendido para a

própria cidade. A construção e modificação destes primeiros edifícios foram, portanto,

217 SOLSONA, Justo; HUNTER, Carlos. Op. Cit.

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testemunhos eloquentes da modernização em torno da avenida e contribuíram para a mudança da

aparência do centro da cidade. Não existiram regras estéticas rígidas que padronizassem os edifícios

apesar de ser possível notar a manutenção de algumas linearidades como a continuidade dos

balcões. O mosaico de estilos arquitetônicos que conformou a avenida pode ser explicado a partir

da fragmentação dos terrenos que favoreceu o aparecimento de casos singulares dificultando a

uniformização estética devido à presença de propriedades particulares.

FIGURA 17: Plano da cidade de Buenos Aires com o traçado geral das ruas confeccionado pelo Departamento de Obras Públicas da Municipalidade orientado com o norte para a direita, 1910

FONTE: Biblioteca Nacional Mariano Moreno, material cartográfico disponível em formato digital

Um novo censo nacional, realizado já em meados da segunda década do século XX,

nos ajuda a tomar dimensão do crescimento populacional argentino e da significativa expressão de

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sua cidade capital como concentradora de um grande contingente populacional.218 O censo de 1914

atesta uma população total para a Argentina de 7.885.237 pessoas das quais aproximadamente 30%

eram estrangeiros.219 Com relação à população de Buenos Aires, nesse ano já concentrava

praticamente a porcentagem de 20% da população nacional, contando com um contingente de

1.575.814 pessoas das quais o número de estrangeiros alcançava a expressiva marca de 777.845,

totalizando quase metade da população da cidade no dito período.

FIGURA 18: Plaza de Mayo após o projeto de Carlos Thays que modificou seu traçado e seu paisagismo, sem data. É possível perceber a já efetivada demolição da Recova e, ao fundo, a abertura da Avenida de Mayo.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

Buenos Aires seguiu o projeto de monumentalização que ocorreu de maneira geral no

continente e acolheu estátuas representativas de personagens convertendo a cidade em um espaço de

simbolização. A ideia era monumentalizar os membros da Primeira Junta, colocando nome também

em praças ou ruas da cidade. Diversos personagens figuraram as tentativas ou projetos de homenagem

e monumentos, tais como Mariano Moreno, Cornelo Saavedra, Manuel Alberti, Miguel Azcuénaga,

218 ARGENTINA, Tercer Censo de la República Argentina, Tomo 2. Población. Buenos Aires, 1914 219 Os números expressos pelo censo de 1914 não incluem as chamadas populações autóctones que, nesse momento chegavam ao quantitativo de 18.425 não estando, entretanto, incluídas nos números anteriormente citados.

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dentre outros, tendo, alguns destes, tido obras sobre si efetivadas. A construção e valorização destes

monumentos teve um claro propósito de criação de imagens e templos para culto à pátria, para

completar um conjunto de referenciais materiais e históricas para mobilizar o entusiasmo patriótico

popular. Algumas estátuas já existentes foram também alvo de ações de melhoramento como a de San

Martín que teve seu pedestal trocado porque o anterior fora considerado modesto para a grandeza dos

seus feitos. O mesmo aconteceu com o pedestal da estátua do General Belgrano.

A designação de Carlos Thays como responsável pelos parques e passeios teve como

resultado ampliação e embelezamentos de vários destes espaços como o Tres de Frebrero em Palermo que

foi sede principal das exposições do centenário. A própria exposição de 1910 buscou celebrar e promover

o centenário e foi inspirada na lógica de vitrine buscando construir certo microcosmos celebratório

estando em consonância com eventos similares que se concretizaram em muitas cidades latino-

americanas.220 Esses eventos seguem a tendência inaugurada em 1851 com as primeiras exposições

universais que, segundo Heloisa Barbuy, constituíam uma representação condensada do projeto capitalista

para o mundo.221 Segundo a autora, a linguagem expositiva adotada nestas estava associada a práticas mais

amplas como as dos museus seguindo a lógica de representação visual e sistema de elementos.222

As exposições buscavam consolidar imagens próprias para as cidades e contrastam com as

heranças materiais mais duradouras deixadas nas cidades por seu caráter efêmero e temporal. Porém, as

220 LOIS, Carla. El mapa del Centenario o un espectáculo de la modernidad argentina en 1910. Araucaria: Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades. Sevilla, v. 12, n. 24, p. 176-196. 2010 221 BARBUY, Heloisa. O Brasil vai a Paris em 1889: um lugar na museografia da Exposição Universal. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v4. p 211-61. 1996. 222 Barbuy argumenta que a busca por esse tipo de imagem do mundo, como esse era concebido pela filosofia dominante, correspondia ao fato de que o mundo estava, agora, interligado em redes de interdependência econômica, em função da expansão capitalista. Assim, o mundo, tornado um só, era encarnado nessas exposições a partir de diversas expressões materiais, ou seja, fisicamente construídas, palpáveis e visíveis. A autora se detém nas distintas representações do Brasil que foram difundidas na Exposição Universal de Paris em 1889, comemorativa do centenário da Revolução Francesa, delineando distintas faces dessa representação que revelam a busca de uma imagem acerca do país – esforços que passavam pela sua compreensão enquanto indivíduos de elite e conscientes do atraso brasileiro. O caso explorado pela autora é icônico e desvela considerações sobre o funcionamento dessas exposições reiterando nossos argumentos de que tais eventos eram responsáveis pela emergência de discursos que buscavam solidificar determinadas visões que eram encenadas ali como correlatos diretos da realidade que se tentava simbolizar. Também Mauricio Tenório dedica-se a compreender esse tema ao debruçar-se sobre a Exposição Internacional do Centenário de 1922 que considera ter constituído uma versão brasileira, embora anacrônica, das exposições do século XIX. O autor desvela a relação entre México e Brasil a partir desse evento compreendendo como se constroem visões de ambos os países a partir dessa interação. O México enviou para a mostra uma importante delegação chefiada por José Vasconcelos, com farto material de exposição tendo, simultaneamente, entrado em contato com mitos nacionais brasileiros que reforçavam a ideia de uma raça ibérica superior. A visita de Vasconcelos ao Brasil em dada ocasião ajudou a nutrir seus argumentos sobre a raça cósmica. O Rio de Janeiro, reconstruído para a exposição de 1922, representou para esse uma cidade que experimentara uma verdadeira belle époque arquitetônica e urbanística, tendo sua etnia branca reforçada por meio de uma massa de imigrantes ibéricos. A cidade descrita por Vasconcelos, segundo Tenório, foi aquela inventada para apoiar suas ideias: a de uma sociedade quase aristocrática, branca e iluminada, assim como a Exposição buscava reiterar. Ver: TENÓRIO, Mauricio. Um Cuauhtémoc carioca: comemorando o Centenário da independência do Brasil e da raça cósmica. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 123-148, 1994.

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próprias exposições estimularam intervenções urbanas que condensaram e reafirmaram esse momento

de monumentalização. Essa materialização discursiva era encarnada nos monumentos, edifícios e estátuas

que decoravam a cidade e transformavam sua fisionomia seguindo os preceitos de grupos hegemônicos.

Em Buenos Aires, a inauguração de monumentos comemorativos na cidade está ligada também com a

criação de novos espaços simbólicos que sustentassem as ideias de nacionalidade para que fossem

elementos urbanos de referência além de meio visível de identificação com a própria história argentina.

Assim, o Estado exerce um papel de homogeneizar a memória selecionado os feitos sobre os quais o

presente da nação deveria se basear.

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Capítulo 5: Espaços historicamente assinalados: alegorias e artifícios

Já na primeira parte dessa dissertação, observamos que nosso objeto central, longe de

constituir-se simplesmente em uma praça, é composto por múltiplos elementos que formam um

mosaico discursivo que se materializa espacialmente. A Pirámide de Mayo, elemento essencial nesse

processo e já citado anteriormente, compôs também esses discursos sendo alvo de propostas que

envolveram calorosas disputas que questionaram, já desde muito tempo, sua validade estética como

partícipe de uma ideologia nacional. Optamos por reservar a ela este capítulo porque tais disputas

acontecem nos momentos estudados por nós e relacionam-se com o fio condutor que escolhemos.

Acompanhar tais embates por sua permanência ou demolição nos permite compreender também

os argumentos defendidos e os ideais de cidade que se mesclam em meio a estes.

A proposta de construção desse monumento surgiu logo que o processo de

independência argentina se encerra. Sua construção data do ano seguinte à consolidação desse

processo, acompanhando a própria fundação das bases republicanas e do entendimento e

construção da identidade nacional, estando, por isso, a estes atrelada. O emprego de uma

mensagem a ser perpetuada pode ser observado na sua análise iconográfica e simbólica

possibilitando a abordagem de suas relações como elementos culturais que constroem imagens

mentais na memória coletiva – conformando e promovendo identidades e ideais de pertencimento.

A Pirámide, como primeiro monumento, desde sua concepção esteve associada à

inspiração que lhe deu origem: a Revolución de Mayo. A ideia da Revolución, como evento fundador da

Argentina, é constantemente recuperada para legitimar discursos de intervenção urbana

associando-o constantemente com a praça na qual teria tido lugar. Essa recuperação, observada

nesse primeiro momento e que também estará presente no segundo, demanda uma atenção maior

a esse evento que, mais do que caracterizá-lo como fundador, se centrará em entender como se

construiu e reiterou essa concepção nos imaginários argentino e portenho, além de como ele

funciona como paradigma de muitas das modificações da praça e da cidade que estão sendo

analisadas por nós.

O 25 de maio na Argentina, representa uma das efemérides consideradas mais

importantes, comemorando a proclamação da independência a partir da série de eventos iniciada

no dia 18 daquele quase mítico ano de 1810. A Revolución de Mayo, primeira revolta bem-sucedida

inserida no processo mais amplo de independência da América do Sul, resultou na remoção do

antigo vice-rei que garantia a submissão à coroa espanhola, estabelecendo um governo local a partir

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da Primeira Junta de Governo que, a partir do reconhecimento de sua autoridade, consolidou o

primeiro governo nacional, inaugurando um sistema político novo.223 Para Felipe Pigna, a

relevância deste acontecimento da história do país torna difícil designá-lo como um ato apenas de

ordem política, econômica ou até mesmo militar.224 Para o autor, esse seria melhor caracterizado

como um ato escolar, por atravessar as vidas dos indivíduos argentinos de forma a ser cristalizado

constantemente como um ato fundador da própria nacionalidade. Muitas pesquisas historiográficas

demonstram a heterogeneidade de discursos envolvidos nesse processo, que se configura como

um dos fenômenos mais complexos da história argentina pela grande variedade de correntes e

interpretações mobilizadas para compreendê-lo, bem como seus antecedentes e os usos e

recuperações feitas deste a posteriori.225

Não propomos o estudo do acontecimento em si, mas sim de sua construção no tempo

e o ressurgimento de seus sentidos, não no passado, mas em suas constantes recuperações, usos e

mesmo ausências, suas imposições e suas formas de transmissão. Acompanhar o seu percurso

historiográfico seria tarefa demasiado extensa para esse trabalho, mas se faz necessário o retorno a

algumas abordagens para que seja possível compreender os ideais responsáveis por cristalizar essa

data como um lugar de memória.226 Bartolomé Mitre enxergou na volta ao passado a possibilidade

de atualização da origem da nação, afirmando a tese da sua preexistência. Os eixos sobre os quais

baseia sua explicação são os princípios liberais e democráticos presentes na história argentina

caracterizando, portanto, o processo como um feito popular, manifestação da vocação

democrática. Mitre reivindica a vontade popular como força decisiva do processo, silenciando o

poder da elite e instaurando a ideia de revolução popular que constituiu um dos pilares sobre os

quais se representou desse acontecimento no imaginário popular. A Nova Escola Histórica na

segunda década do século XX se ocupará de respaldar e difundir as ideias mitristas. Entre seus

membros, com importante inserção institucional, destacamos a figura de Ricardo Levene, cuja visão

223 A chamada Primeira Junta de Gobierno foi a junta surgida em 25 de maio de 1810 em Buenos Aires como consequência do triunfo da Revolução de Independência que destituiu o vice-rei Baltasar Hidalgo de Cisneros. A soberania popular, o princípio representativo e a publicidade dos atos governamentais eram os princípios que regiam a junta e entre seus integrantes figuram os nomes de Cornelio Saavedra, Juan José Castelli, Manuel Belgrano, Miguel de Azcuénaga, Manuel Alberti, Domingo Matheu, Juan Larrea, Juan José Paso e Mariano Moreno. Ver: Actas Capitulares del Extinguido Cabildo de Buenos Aires, años 1810-1811 224 PIGNA, Felipe. Los mitos de la historia argentina. La construcción de un pasado como justificación del presente. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2004. 225 Nesse sentido, justificamos aqui que não é nosso interesse percorrer todo o caminho que a historiografia argentina destinou a esse acontecimento. Embora reconheçamos que as visões sobre esse mudaram constantemente e novos debates enxergam-na não como uma revolução independentista em sua essência, mas apenas circunstancial, reiteramos a necessidade de enxergar visões anteriormente destinadas a ela justamente porque foram apropriadas por nossos atores como forma de justificar suas narrativas. 226 PILIA DE ASSUNCAO, Nora; RAVINA, Aurora (eds.). Mayo de 1810. Entre la Historia y la Ficción Discursivas. Buenos Aires: Biblos, 1999.

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sobre o processo revolucionário de 1810 completará a de Mitre, constituindo uma perspectiva

decisiva para construção deste como lugar de memória. O autor apresenta a revolução como criolla,

pacífica, de caráter social e origem popular, sendo dela que nasce o regime representativo e

republicano, congregando ideais de liberdade e independência. Essa visão corrobora, em grande

parte, as ideias de Mitre e reitera o processo começado com ele de definição desse processo como

momento fundante da nacionalidade lhe conferindo sentido particular.

Buscamos refletir sobre essa reinterpretação constante dos sentidos desse evento a

partir do espaço da cidade que atualiza percepções e memórias a todo momento, gerando

comemorações que monumentalizam ou celebram determinados eventos, lugares ou personagens.

Analisaremos essas interpretações através da Pirámide de Mayo acompanhando sua trajetória até o

momento do Centenário da Independência Argentina, escolhido como momento simbólico dos

usos paradigmáticos que são feitos da Revolución de Mayo. Nos dedicaremos a compreender os

elementos simbólicos e alegorias que estiveram envolvidos em alguns momentos da história desse

monumento, bem como acompanhar discursos que interferem em sua materialidade. Esses

discursos não são hegemônicos e, ao contrário, seus embates e negociações definem os rumos da

cidade conjecturando sobre o que se efetiva ou não enquanto mudanças físicas na mesma.

Consideramos relevante nesse processo uma análise mais detalhada das simbologias e

significados carregados pelas diversas alegorias presentes na pirâmide e suas constantes mudanças.

A análise iconográfica do monumento se fundamenta não só na capacidade de descrição dos

mesmos, mas também em sua interpretação. A iconologia se postula como método de análise a

quem interessa também alcançar o que não está necessariamente explícito no objeto,

compreendendo as alegorias que representam o que ou quem se representa. Uma representação

simbólica que outorga um sentido metafórico nos permite compreender as articulações das imagens

e dos significados que estas adquirem transcendendo suas referências mais imediatas. Buscamos

também compreender as mudanças pelas quais o monumento passou e suas ligações com

momentos e embates que se efetivavam no campo político e definiam o que acontecia

materialmente com o espaço da cidade de Buenos Aires, partindo de nossa consideração de que

política e cidade são esferas que se encontram intrinsecamente relacionadas e utilizando a pirâmide

para desvendar aspectos dessa relação.

A partir de 1810 foi criada uma liturgia cívica que abarcava a instauração de um aparato

simbólico, para substituir o espanhol existente até então, constituído por monumentos

comemorativos como a pirâmide, e contava também com a apropriação de espaços públicos agora

identificados com o feito revolucionário como a praça e o cabildo. O universo simbólico eleito para

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a conservação da memória de tal feito constituiu o caminho para gestar os elementos atribuídos à

nação. A pirâmide, construída em 1811 e considerada primeiro monumento público da cidade, terá

papel central para compreensão da construção dessas ficções históricas. Essa obra foi iniciativa da

Junta provisória governativa, buscando celebrar o primeiro aniversário da revolução da melhor

forma, a partir de um ofício de março do mesmo ano. Reunidos, os membros do antigo Cabildo

consideraram “ser indispensables demonstraciones del mayor júbilo para solemnizar um día de

tanto honor e glorias a la América del Sud”.227 Na ocasião, foram designados alguns desses

membros para se ocupar da formulação do plano da dita comemoração dando origem, ainda no

mês seguinte, na proposta de levantar “en media plaza una Pirámide figurada, con jeroglíficos

alusivos al asunto de la celebridad”.228 Foi proposto na ocasião que sua legenda fizesse referência a

feitos gloriosos da cidade que fossem anteriores ao da revolução. Essa proposta foi rejeitada por

ser considerada inadequada: seria supostamente confundido o objetivo essencial do monumento.229

Por outro lado, esse deveria ser a expressão simbólica dessa revolução. Mesmo que os fatos

anteriores merecessem lembrança, a pátria nascente teria sua origem nos gloriosos dias de maio.

En ese mismo día (25 de mayo) se concluía la Gran Pirámide que decora la plaza Mayor de esa Capital y recuerda los triunfos a la posteridad de esa Ciudad, la que se principió a levantar los cimientos el 6 de abril último; pero aunque no está adornada con los jeroglíficos, enrejados y adornos que debe tener por la cortedad del tiempo que ha mediado, sin embargo a los cuatro frentes provisionalmente se le puso una décima en verso, alusiva a la obra y victorias, que habían ganado las valerosas tropas de esa inmortal ciudad y las que esperaban ganar en defensa de la patria, la libertad y de las banderas que jurara defender.230

A passagem explicita a representatividade e o simbolismo da pirâmide na ocasião

de sua construção. Os ideais de defesa da pátria e da liberdade representados pela conquista da

independência deveriam ser expressos na cidade e esse monumento fora resposta a tais desejos.

Entretanto, ao longo de sua história, passou por debates acerca de sua manutenção tendo em vista

que, em diversos momentos, foram defendidas ideias que demandavam a sua demolição em prol

da construção de uma nova alegoria representativa. Muitos desses debates podem ser evidenciados

em torno de um concurso de base internacional decidir o responsável por criar um monumento

que deveria representar a nacionalidade argentina na ocasião em que se aproximava o centenário

da independência. Esses embates reforçam seus significados desvelando uma série de dinâmicas na

227 Acuerdos del Extinguido Cabildo de Buenos Aires, Serie IV, Tomo IV, p. 432. 228 Idem 229 ZABALA, Rómulo. Historia de la Pirámide de Mayo. Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia, 1962. 230 ZABALA, Rómulo. op. cit, p. 28

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qual se insere constantemente ao longo da sua história, reiterando seu simbolismo, de maneira

cíclica. Gradativamente, esse monumento iria converter-se em um marco urbano de referência,

bem como um meio visível de identificação do indivíduo argentino com os valores da história da

pátria no qual o Estado exerceria um papel de construção de memória a partir da seleção de feitos

nos quais o presente deveria se basear, constituindo uma organização própria dos fatos em uma

operação historiográfica.

Na exposição do projeto para aprovação de suas inscrições, a ideia era rememorar datas

como a da Reconquista, a da Defesa e a da instauração da própria Junta em conjunto com armas

da cidade, localizada em seus ângulos. A proposta da ocasião que sua legenda fizesse referência a

feitos gloriosos da cidade anteriores ao da revolução, entretanto, foi rejeitada pela Junta por ser

considerada inadequada ao confundir o objetivo essencial do monumento.231 Ainda que os fatos

anteriores merecessem lembrança, a pátria nascente teria sua origem nos gloriosos dias de maio.

Com essa restrição a Junta dava à pirâmide um sentido particular que teria sido desvirtuado pela

proposta anterior: ser uma expressão simbólica da Revolución de Mayo.

Até a sua construção, iniciada ainda em abril, logo após a resolução, não havia estátuas

nem monumentos na cidade, sendo as representações rememorativas restritas aos espaços

privados. A ereção de monumentos comemorativos em Buenos Aires está ligada à criação de novos

espaços simbólicos para sustentar as ideias de nacionalidade. Reafirmamos aqui a ideia colocada

ainda no início desta segunda parte: a arte pública, nesse contexto, emerge como veículo portador

de ideologias, funcionando como meio de propaganda pedagógica através da qual se reitera o

passado. Não se reitera, aliás, qualquer passado, mas um passado específico, atendendo a interesses

ideológicos também específicos. A pirâmide foi o primeiro monumento pátrio e público erguido

para celebrar a ocasião do primeiro aniversário da Revolución. Seu simbolismo é inegável, não de

forma valorativa, mas por afirmar-se enquanto uma construção retórica que adquire distintos

significados ao longo do tempo, tornando necessário compreender porque tais construções foram

e são constantemente atreladas a esse artefato.

Os relatos dos acordos do antigo Cabildo revelam a ritualística envolvida no momento

que se deu início à sua construção.232 O povo, congregado na Plaza de la Victoria, acompanhava

esses momentos. Há registros de tambores e bandas de música que completavam tal cenário,

reiterando os princípios que simbolizavam o monumento. A obra finalizou-se nas vésperas do

aniversário da data. Ainda de acordo com a resolução do Cabildo, fora entregue uma quantia em

231 ZABALA, Rómulo. op. cit 232 Esses acordos descreviam parcialmente essas comemorações permitindo vislumbrar seus rituais.

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dinheiro para ser investida nessa construção, o que determinou – além do pouco tempo disponível

para sua execução – a não utilização de alvenaria compacta. Isto resultou em um espaço central

oco desde a base até a parte maior. Na ocasião de sua inauguração foram colocados ao pé da

pirâmide bandeiras de diversos regimentos militares que participaram de campanhas durante o

processo revolucionário. Tanto a pirâmide quanto a Catedral foram fortemente iluminadas assim

como a Recova, permanecendo assim durante os quatro dias de comemoração.

FIGURA 19: Disposição da pirâmide em meio ao lado oeste da praça, sem data. É interessante notar como sua posição parece estabelecer uma coesão no espaço urbano a partir das três torres que se alinham.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

O que hoje se sabe do monumento inicial, construído por Francisco Cañete, tem como

fonte alguns desenhos, aquarelas ou litografias. O mais antigo desses registros gráficos data de 1817

e é a do pintor inglês Emeric Essex Vidal em uma aquarela na qual pode-se observar, nitidamente,

a silhueta da primitiva pirâmide. Através do exame atento desses materiais, é possível perceber que

o monumento passou por mudanças ao longo de sua história, que alteraram significativamente seu

aspecto físico. Desde o princípio, entretanto, possuía o formato de coluna que, enquanto elemento

artístico e alegórico, foi frequentemente utilizado na ibero américa para corporificar os

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monumentos, a liberdade e a independência. Ela fora fabricada em adobe cozido, uma espécie de

tijolo feito artesanalmente, tendo treze metros de altura – alcançando os quinze com o pedestal

quadrangular. Possuía ainda uma base em dois níveis, um pedestal simples com quatro ângulos de

entrada e uma faixa horizontal destacada ao redor. Um globo decorativo arrematava o conjunto.

Era rodeada por uma cerca sustentada por doze pilares. Em cada uma das quatro esquinas da dita

cerca, foram colocados postes com iluminação. Nos dias comemorativos, todo o aparato era

adornado com faróis de papel, luzes e legendas alusivas. Até o ano de 1834 não aparecem em

arquivos referências a modificações na pirâmide que, até dito ano, só havia sido limpa e pintada

para colaborar com a dinâmica comemorativa ano após ano.

FIGURA 20: Recorte da aquarela de Emeric Essex Vidal -Vista del Cabildo desde la Recova [1817] FONTE: Galeria online de História da Arte. http://picssr.com/photos/historiadelarte2/interesting/page9

A pirâmide foi, em diversas ocasiões, decorada com inscrições dos mais diversos tipos.

À inicial data foram acrescentadas, ano após ano, distintos escritos que faziam alusão direta a

elementos nacionais ou vontades específicas de cada governante. As inscrições – datas, nomes,

palavras de ordem, valores nacionais e republicanos encarnados em alegorias e até décimas poéticas

carregadas de significados – revelam as distintas relações estabelecidas para com o monumento já

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que estas são modificas, recuperadas, apagadas e reescritas em um processo constante de produção

e construção de significado. Por exemplo, a associação do monumento com a ideia de liberdade é

reforçada durante o governo de Juan Manuel de Rosas, no qual foram agregadas inscrições alusivas

à independência nacional e também a datas comemorativas da atuação de seu próprio governo.

Nelas encontramos a primeira alusão escrita a liberdade, em 1853, quando se grafa em um seu lado

sul: “La Libertad / La Libertad siempre renace / 25 de mayo de 1810 / La república

independiente.”. As inscrições eram acompanhadas de escritos sobre a esperança, a justiça e a

força nas outras faces do monumento.

FIGURA 21: Fotografia sem data da pirâmide onde é possível observar a estátua da liberdade agregada em seu topo bem como outras inscrições e alegorias que perfazem seu conjunto. Sua altura chega a assemelhar-se, a partir da perspectiva, com a própria torre do Cabildo.

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

A pirâmide original manteve sua fisionomia até 1856 quando foi modificada pelo

artista e arquiteto Prilidiano Pueyrredón. Também nessa reforma é incorporada a figura que alude

à liberdade, localizada no cume da pirâmide, obra do escultor francês Joseph Dubourdieu. A

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representação artística da ideia de liberdade está presente em numerosos monumentos da cidade

de Buenos Aires em forma de escultura alegóricas. As referências à liberdade aparecem

constantemente, e uma análise dos monumentos públicos da cidade nos faz observar o tipo de

representação que essas alegorias estabelecem com a história política e social. No caso da pirâmide,

a alegoria mais prontamente associada com essa é a própria estátua da liberdade que passou a

incorporar.233 A motivação para essas transformações foi a consideração, por parte de alguns

governantes, de que a obra original não estava em condições estéticas de representar o feito

histórico que comemorava, por se encontrar descascada, oxidada, com a cerca retorcida, dentre

outros fatores. Dubourdieu dedicou-se à tarefa de moldar a estátua da liberdade que coroaria a

pirâmide e Pueyrredón alteraria seu pedestal original, aumentando, consequentemente, sua altura e

largura. Antes das comemorações daquele ano, a figura da liberdade já se encontrava em seu lugar.

Entretanto, críticas construtivas à visão do autor acabaram determinando que quando terminadas

as celebrações, se introduziriam reformas a figura além da construção das quatro esculturas que

adornariam os ângulos de seu pedestal.

A pirâmide foi transformada a partir da construção de uma nova sobre a base em

cimento da anterior, que foi revestida com ladrilhos e argamassas, mas continuou compondo a base

do monumento – o que causou certa confusão a partir do pensamento de algumas pessoas de que

o antigo monumento estaria dentro daquele reformado. A nova pirâmide agora incluía uma alegoria

da liberdade protegendo as ciências, as artes, o comércio e a agricultura, que se encontravam

representadas no formato de estátuas. Foi colocada em sua parte superior uma estátua da liberdade,

de 3,6 metros de altura, cujos cabelos foram cobertos com um gorro frígio. Em sua face virada

para o lado leste – para a casa rosada – foi escrita a legenda “25 de Mayo de 1810” acompanhada do

desenho de um sol nascente em dourado – o Sol de Mayo. Nas três faces restantes foram colocadas

coroas de louro em alto relevo. Nos quatros lados da base foram colocadas representações do

escudo nacional argentino, além da instalação de uma nova cerca que, em seus vértices, possuía um

farol a gás. Os pilares foram demolidos e a antiga cerca foi substituída por uma construída em

ferro. As quatro figuras ornamentais foram posteriormente substituídas por quatro novas em 1875:

a Geografia, a Mecânica, a Astronomia e a Navegação. A substituição ocorreu porque as primeiras

encontravam-se em mal estado, o que motivou a decisão de substituir o material anterior – terra –

por mármore.

233 LÁZARA, Juan Antonio, Dos siglos de representaciones artísticas de la libertad. Revista de Instituciones Ideas y Mercados. Out. 2010. Nº 53. p. 5-64.

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Data de 1826, sob a presidência de Bernardino Rivadavia, a primeira tentativa

governamental de construir um novo monumento ao processo revolucionário sem, entretanto,

suprimir a antiga pirâmide, já que a nova proposta localizar-se-ia na Plaza 25 de Mayo, formada

apenas por parte do atual. Entretanto, posteriormente, a fonte de bronze é pensada para a própria

Plaza de la Victoria, entrando em conflito com a pirâmide que deveria ser demolida. Uma série de

debates começam a envolver, desde então, a permanência de tal alegoria na praça. Um constante

antagonismo envolve essas discussões, que oscilam entre aqueles que acreditam na insuficiência e

imperfeição da pirâmide para representar a revolução e dos que, por outro lado, sustentam sua

relevância como primeiro monumento pátrio. Em meio a essas questões, um ano depois da sanção

da lei, Rivadavia renunciara à presidência sem cumprir suas disposições e mantendo, portanto, a

pirâmide inalterada.

La idea de conmemorar con monumentos públicos la entidad nacional del Pueblo

argentino que se inició con la gloriosa revolución de 1810, es una de esas

aspiraciones que son naturales al noble espíritu de todos los hijos de esa

República, que hoy están viendo desarrollarse á la luz del siglo lo que fue una

modesta, pero grandiosa inspiración de la generación de Mayo. Esos

monumentos deben tener su lugar preferente en la plaza aquella de donde partió

el primer grito de libertad, que después de emanciparnos del poder colonial, debía

ir hasta las entrañas de las madres que habían nacido esclavas para romper las

cadenas de sus hijos. Con la mira de dar una forma grandiosa á ese deseo el

infrascripto tiene el humor de acompañar un plano de mejoras y embellecimiento

que debe hacer de nuestra plaza de la Victoria un vivo testimonio de esos hechos

famosos que tuvieran lugar en ella […] Como V. H. puede verlo, si no es posible

erigir en su reducido recinto las estatuas de todos los patriotas y guerreros que

tienen celebridad en nuestros fastos, se alzará en su centro la columna de Mayo,

donde esos nombres quedarán grabados de un modo indeleble.234

O embelezamento da antiga Plaza de la Victoria é encarado como maneira de dar forma

a esse desejo de expressar a nacionalidade, transformando-a em testemunho vivo dos feitos que

nela aconteceram. Esse projeto intencionava dar uma forma grandiosa ao desejo dos filhos da

republica de comemorar com monumentos públicos a identidade nacional do povo argentino e tais

monumentos deviam ter seu lugar preferencial na praça por ser lugar histórico de tais

acontecimentos. O plano que acompanha em sua apresentação para o Congresso Nacional centra

a atenção na unificação da Plaza de la Victoria, eliminando a Recova e substituindo a pirâmide por

uma columna de mayo que motivou uma enorme polemica no âmbito político e intelectual. Nesse

234 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1883, p. 522 e 523.

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processo, a demolição da pirâmide aparece justificada pela necessidade de criação de um

monumento, uma coluna de Mayo, aonde os nomes dos guerreiros patriotas estariam gravados,

dada a impossibilidade de que cada um tivesse sua própria estátua na dita praça.

Nos anos finais da gestão de Torcuato de Alvear, depois da grande atenção já

dispendida em suas duas obras principais, nota-se o foco no concurso para confecção de planos e

projetos para o monumento de Mayo, já previsto nos desenhos e planos da equipe do intendente

desde seus primeiros anos de governo. Segundo os projetos, este monumento ocuparia lugar central

na praça e deveria simbolizar a comemoração dos sucessos que teriam conduzido a Argentina ao

posto de Nação Soberana, tendo como objetivo “conmemorar la entidad política del Pueblo

argentino”.235 Em 1886, a Plaza de Mayo já se encontrava totalmente reformada por distintas ações,

como a demolição da Recova, a concessão de um novo pedestal para a estátua de Belgrano, a maior

amplitude dada para as ruas que a circundavam, a plantação de palmeiras em seu espaço e a

construção de calçadas.236 O término dessa reforma é justificado, inclusive, pela necessidade de

postergar a construção desse grande monumento projetado para o seu centro, já previsto por

Buschiazzo em seus pressupostos iniciais.

Essa ideia já fora tratada alguns anos antes e desde 1885 é possível notar os relatos

municipais descreverem que a falta de definição sobre a permanência da pirâmide afetava

diretamente a continuidade das ações empreendidas pela administração, pois, por exemplo, nesse

mesmo ano, uma das fontes fora colocada em seu lugar enquanto a outra não fora, em função de

destinar a ela o mesmo lugar que era ocupado pelo monumento.237 Tais ações teriam demorado

porque se julgou necessário postergá-las para esperar a construção do monumento a ser colocado

no centro da praça. Sobre a permanência da pirâmide, podemos afirmar que ela não fora decidida

e envolveria, ainda, muitas opiniões divergentes. Considerado como um projeto para o qual todas

as províncias deveriam contribuir, a intendência confiou sua direção ao Governo Geral, sob

responsabilidade do próprio presidente já que “la realización de esa patriótica idea constituye una

aspiración tradicional del Pueblo argentino y las glorias que se trata de perpetuar pertenecen á la

Nación entera”.238 Em carta ao intendente da capital também publicada no relatório desse ano

percebe-se, mais uma vez, a intencionalidade por trás desse projeto.

espera de su patriotismo que se servirá dedicar una preferente atención á ese

asunto, empleando todos los medios que estén á su alcance á fin de que la capital

235 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires 1887, p. 127 236 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1886, p. 67 e 68. 237 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires 1885, 236 238 Memoria de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires, 1887, p. 129 e 130.

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de la República sea dignamente representada en la realización de un pensamiento

destinado á honrar y perpetuar el recuerdo del glorioso movimiento que dio

origen á la Independencia Argentina.239

Fora submetido um projeto de ordenança pela intendência no ano de 1887 referente a

organização do concurso para a confecção de planos e projetos para execução do monumento de

Mayo que deveria levantar-se no centro da praça de mesmo nome em comemoração “de los sucesos

que elevaron á lo República al rango de Nación Soberana”.240 A continuação dos trabalhos na praça

exigia a decisão sobre o monumento e, por isso, a municipalidade considerava que não deveria mais

ser postergado já que ele garantiria a aspiração da ideia de comemoração da identidade argentina.

A ordenança autoriza a intendência a realizar o concurso nomeando um júri de dez membros que

terá como missão redigir as bases do programa a qual os projetos devem se sujeitas, publicar os

avisos correspondentes no país e em outros – Uruguai, Chile, peru, Brasil, Itália, França, Alemanha,

Inglaterra e Estados Unidos – e, ainda, estudas todos os projetos apresentados e designar os

prêmios aos que considerarem merecedores relatando em informe para a própria intendência.241

Ficariam estabelecidos três prêmios em dinheiro cujos planos agraciados passariam a ser de

propriedade exclusiva da municipalidade que decidiria confiar sua execução a quem melhor

conviesse. Ainda se estipulava uma autorização para solicitar para o governo Nacional ou das

províncias que arcassem com os gastos necessários.

Posteriormente, a intendência considerou trata-se de um monumento para o qual

deveriam contribuir todas as províncias e, consequentemente, interessar a toda a nação e, por isso,

confiou sua direção ao governo federal. O Congresso e o poder executivo nacional ditaram um

decreto sobre o monumento em novembro do mesmo ano. A lei reiterou a procedência do

monumento convidando os governos provinciais e o intendente da capital a promover uma

arrecadação popular para seu custeio.242 A execução do monumento se realizaria pela direção de

uma comissão de cidadãos nomeados pelo poder executivo que deveriam lançar o concurso,

designar os prêmios e nomear os jurados além de contratar a construção do monumento

administrando os fundos arrecadados. É definida ainda a possibilidade de colaboração financeira

por parte do poder executivo caso não se alcance o valor necessário – e não seja uma diferença

superior a trezentos mil pesos moeda nacional. Posteriormente o Vice-presidente expediu um

decreto nomeando a comissão e convidando os governos a tomar parte das atribuições que lhes

correspondia na expressada lei.243

239 Memoria... 1887, p. 135 240 Memoria... 1887 241 Proyecto de Ordenanza, 5 de outubro de 1887 em: Memoria... 1887 242 Ley y Decreto sobre el Monumento de Mayo, em: Memoria... 1887 243 Seria presidida pelo Ministro do Interior que poderia elegir seu vice-presidente e tesoureiro.

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Espera de su patriotismo que se servirá dedicar una preferente atención á este asunto, empleando todos los medios que estén á su alcance á fin de que la capital de la República sea dignamente representada en la realización de un pensamiento destinado á honrar y perpetuar el recuerdo del glorioso movimiento que dió origen á la Independencia Argentina.244

O concurso, entretanto, não aparece nas memórias seguintes e não conseguimos

acompanhar ar razões que levaram a sua interrupção. Nossa suspeita está nas controvérsias

causadas pela derrubada da pirâmide pois a criação desse novo monumento não era consensual.245

Após a solicitação de Alvear para sua destruição, teve início uma polêmica entre progressistas e

preservacionistas que era facilmente notada nas páginas de periódicos, escritos de época ou

documentos oficiais. Ao contrário do caso da Recova, entretanto, a pirâmide não foi destruída.

Prevaleceu a leitura simbólica de sua localização e permanência, norteada pela ideia de que tal

monumento era ponto de partida da história argentina e estava também vinculado com suas vitórias

e, para tanto, deveria ser preservada para perpetuar tal memória.

Quando, em outubro de 1883, Alvear apresentou seu projeto de reforma, foi

necessário solicitar autorização ao Conselho Deliberativo para derrubar aquela que era descrita

como uma mesquinha construção de alvenaria cuja origem não se conhecia bem. Uma mensagem

de Alvear ao Conselho argumenta que as distintas dificuldades e escassez de recursos fizeram com

que fossem destinadas a esta “reformas y adornos de mal gusto, que colocan esa construcción fuera

de todas la reglas arquitectónicas y muy lejos de las formas con que debemos conservar en la

imaginación de nuestros hijos el recuerdo glorioso de la obra de nuestros padres”.246 O Conselho,

que já havia se oposto a diversas ações do intendente, dessa vez fora pressionado por uma primeira

aprovação no Senado e decidiu realizar uma pesquisa de opinião sobre o destino do artefato entre

figuras destacadas da vida política, tanto local quanto nacional. Essas figuras eram protagonistas

do próprio ciclo histórico que estava em questão e também seus interpretes historiadores.

Para Gorelik, essa é uma notável ocasião, pois solicita-se opinião sobre a refundação

desse espaço histórico da cidade aos mesmos que estavam construindo e reconstruindo as visões

historiográficas sobre os feitos que esse estava destinado a comemorar.247 Essa consulta, portanto,

coloca lado a lado os julgamentos sobre essa construção e sobre as transformações, chegando a

244 Correspondência de Manuel Zorrilla ao intendente da capital Em: Memoria... 1887 245 Acreditamos que os jornais periódicos constituem importantes fontes para o acompanhamento dessa questão não foi percorrida de maneira mais detalhada por nós, por opções dos nossos próprios recortes, mas que constitui uma outra possível pesquisa. 246 Mensaje de Alvear al Concejo Deliberante del 18 de octubre de 1883 reproduzido na integra em: BECCAR VARELA, Adrián. Op. Cit.. 247 GORELIK, Adrián. 1998. Op cit, p. 111

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contemplar a capacidade do monumento de contribuir com a fundação de memória que se

sustentava a partir do caráter que esse espaço público poderia materializar. As respostas divergentes

destas figuras vão muito além de atestar a celebração do progresso pretendido ou de argumentar

em favor da sua preservação ou retirada: constituem um rico registro da complexidade das

operações que o intendente colocava em jogo.

Os consultados por essa pesquisa foram: Bartolomé Mitre, Domingo Sarmiento,

Vicente López, Nicolás Avellaneda, Andrés Lamas, Miguel Estévez Seguí, Ángel Carranza, Manuel

Trelles e José Manuel Estrada – escolhidos por seus papéis na política ou como

pensadores/historiadores sendo, inclusive, os três primeiros os presidentes argentinos antes de

governo de Roca.248 As conclusões e opiniões foram publicadas nos periódicos da época e, por sua

importância, também compilados posteriormente. As maiores defesas do monumento foram as

Mitre e de Avellaneda, mas a homogeneidade não predominou dentre as nove argumentações. Os

resultados da pesquisa demonstram que quatro se pronunciaram a favor de sua demolição total,

apenas argumentando pela conservação de uma relíquia do monumento e três opinaram que o

deixassem como estava. Além destes, um defendeu que o melhor era removê-la e outro que se

restaurasse seu aspecto original. Devemos ainda pensar que caso dependesse unicamente dos

resultados relativos dessa pesquisa, Alvear podia ter prosseguido com o projeto de demolição sem

grandes inconvenientes pois contava com a maioria relativa. Entretanto, tais resultados

evidenciaram a não homogeneidade dessa ideia.

O repudio pelas reformas consideradas de mau gosto, já nos anos oitenta, eram

compartilhadas e se referiam a um rechaço a principal reforma da praça, realizada por Pueyrredón

e que envolveu a remodelação também da pirâmide por Dubourdieu. As opiniões acerca das

“extravagâncias arquitetônicas” não eram consensuais, mas como resultado da unidade nacional

consagrada com Buenos Aires como capital, as mudanças ocorridas durante esses primeiros anos

do governo do Estado foram consideradas ilegítimas e o monumento foi encarado por muitos

como o maior exemplo destas. As questões mais destacadas nas argumentações, entretanto, dizem

respeito menos aos olhares sobre o passado e se relacionam de maneira mais direta com o presente.

Apenas um desses personagens, Manuel Tréllez, identifica de forma celebratória a

reforma realizada por Alvear com a ideia de progresso e sustenta que somente essa ideia permite

atualizar os valores representados pelo monumento original.249 Sua opinião coloca a questão focada

diretamente na complexidade da relação de permanência e mudança que afeta as nações em

248 GORELIK, Adrián. 1998. Op cit, p. 111 249 GORELIK, Adrián. 1998. Op cit, p. 114

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formação recente. Ele relembra que, embora reconheça-se o monumento como fundador da

história e da memória nacional este possui apenas setenta anos, e que foi erguido em nome de uma

Revolução que precisamente colocava em xeque o que a precedia. Se se sustenta uma versão

revolucionária de Mayo, como, se pergunta Tréllez, pode-se render homenagens com um

monumento erguido justamente com o objetivo de demonstrar que nenhuma forma deveria ser

respeitada para garantir o futuro? Por que “submeter à posteridade limites variáveis e estreitos”, se

o que se trata é justamente “cultuar as grandes evoluções dos povos”?

Para os opositores mais ferrenhos, a virtude patriótica deveria ser guardada como

memória da revolução e não aquela da vontade de transformação. Para Estrada, a própria modéstia

do monumento e suas imperfeições artísticas realçariam o mérito do acontecimento que simboliza.

Seguí corrobora afirmando ser a pirâmide registro e testemunho da pobreza e virtude do país.

André Lamas destaca ainda que quanto mais rico e artístico fosse um novo monumento menos ele

representaria os revolucionários de Mayo distanciando-se do momento que buscava aludir. Como

a pobreza teria sido a grandeza da revolução, apenas a pobreza também do monumento poderia

representa-la.

Gorelik acrescenta que nem todos defendíamos defensores da restauração e

preservação desse monumento estavam dispostos a inscrever esses juízos sobre o processo de

modernização em curso, tampouco todos que defendiam a sua demolição se entusiasmavam com

ela. A maior parte dos entrevistados fazia parte de uma geração receosa com os rumos tomados

pelo do governo de Roca, o novo estado que surge com plenos poderes e desconhecido grau de

autonomia, e a sociedade em transformação a partir do “progresso material”. Para o autor, esse

compartilhamento geracional da maioria evidencia coincidências que permitem perfilar com maior

precisão os alinhamentos específicos. A questão que se coloca nesse processo é que se as ideias de

celebração são as mesmas – Mayo enquanto momento fundacional, remetendo a figuras

consagradas e concordando sobre o espaço nacional onde seria celebrado – a dissidência só poderia

estar no valor do monumento e no caráter do espaço público que o mesmo contribuiria para forjar.

Nicollás Avellaneda e Andrés Lamas apresentam o problema do valor em termos

excepcionalmente claros, expondo um conflito na definição do monumento entre as ideias de

monumento histórico e artístico, cujo valor não está relacionado com o fato de remeter a uma

memória comparada, mas sim na capacidade de prover conhecimento e prazer estético. Avellaneda

defende o Pirámide a partir dessa diferenciação afirmando que o valor desta estaria na sua

autenticidade, enquanto monumento histórico. Lamas corrobora afirmando que os monumentos

históricos, por fazerem parte do passado consumado, são irrevogáveis e intocáveis sendo

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impossível que estes acompanhem o desenvolvimento da sociedade e o progresso das artes. Lamas

apoiava a conservação do monumento por muitas causas, dentre as quais defendia que este era

ponto de partida da própria vida argentina – de uma história exclusiva de quando a Plaza de la

Victoria havia se convertido em uma espécie de fórum do povo – e que se transformara em espécie

de altar da liberdade – por ter a ela vinculada as primeiras vitórias pátrias e por junto a ela terem se

comemorado todas as importantes celebrações. Para sustentar sua posição, Lamas defendia ainda

estar sua aparência diretamente relacionada com a simplicidade dos patriotas naquela época e que

a demolição demandaria uma autorização por lei de âmbito nacional pois a municipalidade não

teria sobre ela esse tipo de poder. Sem dúvida, é Lamas quem mais enfaticamente defende a

necessidade de preservação, pois sua concepção romântica valoriza como a principal função da

história ligar uma comunidade desde os primórdios, se apoiando em monumentos cuja

autenticidade faça presente com sua própria materialidade uma série de códigos morais que

sintetizem o legado que buscam rememorar.

Mitre sustentou a opinião de que não havia razões para preservação do monumento

porque depois de tantas renovações e adições feitas ao original ele já havia perdido o sentido inicial

e não era mais a pirâmide construída na sequência da revolução, considerando válida apenas a

preservação da sua base. Para o ex-presidente, a versão com as linhas gerais e proporções

adulteradas, bem como o estilo arquitetônico alheio à tradição histórica que lhe concedera

significado devia ser demolida por ser uma falsificação que muito se afastava de sua antiga

simplicidade. Sarmiento também rejeitara as adições realizadas na primeira estrutura. Avellaneda

argumentara que deveria ser restaurada a forma original e despojada de seus adornos acrescentados

posteriormente, o que não implicaria sua destruição completa.

As imperfeiçoes da pirâmide para os apoiadores da destruição parecem evidenciar um

caráter provisório que, no momento, se busca afastar. Esse caráter transitório seria um obstáculo

para incluir grupos amplos e diversos nas narrativas nacionais. Enquanto Lamas quer manteê-la

como resquício do “lugar antropológico” que ele vê na praça – isto é, um lugar de identidade,

relacional e histórico -, a proposta de remodelação parece querer converter a praça em “lugar de

memória”: ou seja, um lugar em que se capta aquilo que uma sociedade já não é mais, sua diferença,

justamente para produzir um novo processo de identificação e construção comunitária.

Gorelik considera terem sido até então realizadas mudanças na praça agregadas

sobre uma base sempre reconhecível de signos, para a qual se podia apelar inclusive para a

restauração material, o que se pretende agora substituição completa de conteúdos e formas: pela

primeira vez em Buenos Aires se coloca de tal forma o conflito entre o tempo histórico e o espaço

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urbano, ao se sugerir que um novo espaço urbano deveria surgir a partir da destruição completa

do anterior. Se tratava de uma mudança de escala que buscava encarregar-se de que a capitalização

e, principalmente, a imigração significaram um repensar acerca da questão da identidade já que esta

significara a chegada de novos contingentes populacionais. Encaramos, portanto, a discussão da

pirâmide como reação da própria elite governante ao aumento das celebrações coletivas que

poderiam significar afastamentos da história argentina que estes buscavam reiterar.

FIGURA 22: Translado da pirâmide até o centro da praça, lugar que ocupa até hoje, 1912

FONTE: Archivo General de la Nación Argentina, fundo fotográfico

A pirâmide, ao fim, não foi demolida e, até 1914, fora transladada para o meio da praça,

lugar que ocupa até hoje e que deveria ser ocupado pelo monumento proposto no projeto de

Alvear. Essa não foi, ainda, sua única tentativa de demolição. Além das anteriores já citadas,

escolhemos desvelar esse monumento nessa parte da dissertação pelo elo de continuidade presente

nas distintas tentativas de sua destruição. Na ocasião dos preparativos para a comemoração do

Centenário, um novo concurso foi lançado pensando na construção de um monumento cívico na

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mesma chave do proposto anteriormente: para celebrar a revolução localizando-se na praça que

levava seu nome. Dedicaremos a este concurso nosso próximo e último capítulo.

Ainda que, depois de tantas tentativas, o artefato mantenha-se em seu lugar, o espaço

urbano central da cidade e da nação foi modificado por completo ao longo desses períodos. Essas

modificações indicam a construção do espaço público como local onde os valores de uma dada

comunidade são rearranjados em função de uma efetividade geral e de interesses de grupos que se

colocam em disputa por narrativas históricas. Nesse momento emerge uma demanda de

reorganização das marcas identitárias a partir da vivência reiterada da história e seus

acontecimentos, como forma de celebrar o presente considerado grandioso tanto para a Nação,

que estava em pleno crescimento, quanto para a cidade que a partir do alcance do status de capital,

deveria seguir os passos nacionais.

Os centenários de independência na América Latina foram eventos marcados por uma

evocação de um determinado passado, específico e cristalizado, configurando oportunidades de

manifestação de tradições forjadas a partir de escolhas. O caráter cívico de algumas cidades

amalgamou em praças, ruas, avenidas e outros espaços da cidade diversos meios de tornar público

este discurso nacionalista, buscando monumentalizar o progresso pretendido.250 A comemoração

do centenário da Revolución de Mayo foi um acontecimento de extraordinárias projeções nacionais.

Desde anos antes, o governo e seus organismos representativos, bem como o povo e outras

instituições de distintas índoles envolveram-se em atividades e iniciativas que pudessem conceder

uma rememoração digna de tal episódio da emancipação política em seu primeiro aniversário de

um século. Essa comemoração teria funcionado como uma espécie de caixa de ressonância de um

conjunto de tópicos na época, já que um conjunto de valores, ideias e projetos, que vinham dando

forma ao que genericamente denominamos identidade nacional, assumiram modos públicos e

visíveis.251 Carla Lois sugere que a densidade de eventos como esse, que celebram a argentinidade

a partir de narrativas coerentes em torno de um conjunto de tópicos considerados positivos – como

a modernidade, o progresso econômico e a civilidade –, solidificam certo imaginário nacional a

partir de certa articulação entre passado, presente e futuro.

O perpasso pela história da pirâmide teve como objetivo central demonstrar os

constantes debates aos quais esse monumento já foi submetido, alcançando o período estudado

por nós que os reiterou. Os debates, assim como as propostas urbanísticas analisadas, não são uma

250 GUTIÉRREZ, Ramón. Las celebraciones del centenario de las independencias. Apuntes, Facultad de Arquitectura y Diseño, Bogotá, Colombia, v. 19, n. 2. p. 176-183, 2006. 251 LOIS, Carla. El mapa del Centenario o un espectáculo de la modernidad argentina en 1910. Araucaria: Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades. Sevilla, v. 12, n. 24, p. 176-196. 2010.

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condição própria desse período, mas são recuperados a luz de novas questões e da consequente

necessidade de modernização surgida quando a cidade adquiriu o status de capital. Na gestão de

Torcuato de Alvear, a ideia de que a pirâmide já não era suficiente para representar o progresso

material alcançado pela cidade e pelo país tomou forma e, apesar de não ser pensada de maneira

homogênea, deu origem a inúmeras estratégias urbanas que visavam sua substituição. A análise das

críticas que emergiram ainda durante a gestão do primeiro intendente permite destacar um discurso

que valorizava seu forte conteúdo histórico e emocional, desqualificando, entretanto, sua qualidade

artística. Considerava-se, por isso, suficiente a conservação de apenas alguns de seus fragmentos

que garantiriam a continuidade histórica propondo uma reforma em sua imagem artística.

a los que intervinieran al Concurso, plena libertad para concebir y expresar sus idealidades estéticas, siempre que la Obra estuviera inspirada en la historia argentina, en sus episodios más sobresalientes, y en la síntesis más significativa, así como también a la glorificación de sus enseñas más gallardas: La bandera-El Escudo-El himno nacional.252

Essa substituição era pautada em projetos maiores que relacionavam o novo

monumento a ser construído com seu entorno mais imediato, a Plaza de Mayo, e com o

acontecimento que deveria celebrar, a Revolución de Mayo. A pirâmide se mantém fisicamente, mas

passa, portanto, a ocupar um distinto lugar na narrativa. O papel dos monumentos pode ser bem

observado justamente nessa proposta através da qual tornam-se visíveis conflitos políticos e

artísticos que caracterizaram o período e também expressa as diferentes formas de pensamento em

torno do debate sobre o caráter cívico dos monumentos como um todo.

252 Moretti, Gaetano, Brizzolara, Luigi, El Monumento a la Revolución de Mayo y a la Independencia Argentina en Buenos Aires, Milán, Edición de los autores, 1914, p3

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Capítulo 6: Civismo em debate no monumento à Revolución

A dinâmica comemorativa para o Centenário começou a ser estabelecida

anteriormente, ao longo da primeira década do século XX. Seguindo pistas dessa motivação de

monumentalização detectado na cidade nesse período, nos deparamos com uma nova tentativa de

criação de monumento para celebrar o centenário e que, consequentemente, envolveria a destruição

ou ao menos afetaria a Pirámide de Mayo. O próprio plano de Alvear e Buschiazzo já antecipava a

ideia da substituição desse monumento por outro em meio à dinâmica nacionalista que envolvia

sua retórica. Assim, ainda em 1907, no mês de março, fora convocado um concurso para o

monumento comemorativo da revolução, a partir de um decreto oficial do poder executivo. Esse

concurso, tanto pelas expectativas geradas em seu redor e pelos conflitos que envolveu, é foco

desse capítulo de forma a nos auxiliar na compreensão dos discursos que se configuravam nesse

momento histórico. A hierarquia entre esses distintos atores não descaracteriza a ocorrência de

interferências entre esses projetos que são determinantes na concepção final da obra – como nesse

caso, cujo monumento não chegou a se concretizar. Nas fontes analisadas por nós observamos um

interessante debate de elaboração de narrativas calcadas em eventos históricos por meio de

metáforas ou imagens – buscando a representação de personagens ou cenários específicos

utilizando recursos alegóricos que devem ser problematizados.253 Assim, a análise do processo de

construção – ou tentativa – desse monumento deve ser feita conservando os diálogos, trocas e

negociações que permeiam essa obra pensando como fruto de um processo e de distintas práticas

A principal razão de recuperar aqui esse concurso está em suas bases. Quando

publicadas, estabeleciam que, além de construído no dia 25 de maio de 1910, aniversário exato da

Revolución, esse teria lugar na Plaza de Mayo, corroborando e integrando todos os discursos já

pensados para tal espaço público. O concurso foi estabelecido a nível internacional e ocorreu a

partir de duas fases distintas das quais a primeira envolveria maquetes em uma escala de um para

dez com um prazo de seis meses de execução e a segunda envolveria os vencedores em confronto

direto para eleger o monumento que seria construído.254 Os vencedores do primeiro lugar, além de

receber um prêmio em dinheiro, participariam automaticamente da segunda fase mas previam-se

253 Nossas fontes incluem o edital do concurso bem como posteriores publicações sobre eles em revistas técnicas ou materiais divulgados pela própria comissão responsável além de uma publicação realizada pelos próprios vencedores dissertando sobre seu projeto. 254 Dessa primeira fase seriam eleitos cinco primeiros lugares, cinco segundos lugares e cinco terceiros lugares. Estes vencedores seriam os selecionados para a fase seguinte. Em fato, foram selecionados seis primeiros lugares, cinco segundos e nove terceiros.

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outros dois grupos selecionados que receberiam apenas prêmios monetários sem ter, entretanto,

nenhuma possibilidade de chegar a instância final do concurso. Os responsáveis por julgar esse

concurso seriam quinze pessoas dentre os quais, além de representados do senado, do poder

executivo e de outras representações políticas como a própria Comissão do Centenário,

encontramos os diretores de instituições como o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu

Histórico Nacional e da Academia Nacional de Belas Artes além da própria Sociedade Central de

Arquitetos.255 Compreender a composição desse júri se torna importante ao percebermos que a

designação de seus membros, apesar de priorizar figuras políticas não abria mão de importantes

representantes das artes e especificamente da arquitetura.256

A idealização de um monumento público da natureza desse aqui investigado envolve

uma expectativa inicial manifestada pelos autores que o conceberam. Antes mesmo disso, porém,

é possível já perceber uma proposta por parte do grupo proponente de sua construção,

concretizado no edital do concurso que se torna o primeiro mediador entre a proposta buscada e

os escultores, capaz de dar forma a esse projeto previamente concebido. O edital para a construção

do monumento para a Revolución de Mayo foi publicado em 1907 convocando escultores argentinos

e estrangeiros a enviarem seus projetos e propostas. O documento argumentava a necessidade de

construção, na cidade de Buenos Aires, de uma obra comemorativa da história argentina. A

elaboração de discursos de identidade na trajetória dos monumentos celebrativos configuram

discursos produzidos para um coletivo determinado e que atende a interesses de pequenos grupos

relacionados com a gestão urbana da cidade. Esse documento se torna, portanto, o ponto de partida

da realização dessa construção, sendo de extrema relevância uma vez que aparecem neles indicadas,

em linhas gerais, os parâmetros da proposta – suas dimensões e materiais e, principalmente, o

conteúdo simbólico esperado a ser corporificado.

Muitas vezes, mesmo antes da publicação do edital, já estavam sendo gestadas as ideias

que seriam representadas, seja em âmbito público ou privado. A leitura do edital se torna

imprescindível já que esse representa o primeiro contato entre o artista e a obra. Dessa forma,

255 Os quinze membros seriam: o presidente do Comitê Executivo da Comissão Nacional do Centenário, um representante do Senado Nacional, um representante da Câmara de Deputados Nacional, três membros da Comissão Nacional do Centenário e três membros de seu comité executivo, o diretor do Museu Histórico Nacional, o diretor da Academia Nacional de Belas Artes, o diretor do Museu Nacional de Belas Artes, o diretor geral do Departamento Municipal de Obras Públicas, um delegado da Comissão Nacional de Belas Artes e um delegado da Sociedade Central de Arquitetos. Ver: Bases del Concurso para el monumento à la independencia argentina. Em Revista Técnica nº 44, abril – mayo de 1907. 256 Importantes nomes para a arquitetura e para as próprias artes no país como o de Eduardo Schiaffino, Ernesto de la Cárcova, Eduardo Sívori estavam envolvidos nesse júri. Também Julio Dormal, Cárcova e Alejandro Christophersen foram responsáveis pela redação das bases do concurso.

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também a fase anterior à própria construção da obra se torna bastante importante para

compreendê-la, pois é possível observar toda a conflituosa negociação entre a Comissão e os

artistas em uma tentativa de controle sobre o conteúdo da obra, seja em aspectos materiais ou

simbólicos/narrativos que, claro, estão imbricados. As negociações ocorridas no processo de

estruturação do projeto se relacionam com uma disputa de objetivos: os artistas apresentam suas

interpretações sobre o episódio em questão, mas, por outro lado, nota-se a presença de uma

comissão julgadora bastante presente e preocupada em controlar e decretar uma específica

apreensão do tema, segundo suas perspectivas.

O edital nos oferece uma primeira pista no que tange ao conteúdo simbólico da

obra ao sugerir leituras específicas da historiografia, embora ofereça determinada liberdade aos

artistas a respeito da forma assumida pela obra. Desejava-se que as propostas fossem capazes de

traduzir a suposta verdade encarnada naquela Revolución materializando uma digna homenagem às

personalidades consideradas relevantes na versão do episódio defendida por esses atores em meio

a tal projeto. Fica clara na idealização dessa proposta a busca por uma leitura específica a respeito

da história argentina, a partir de um ponto de vista escolhido desde a produção do próprio edital e

que buscava reiteração em meio as propostas inscritas pelos artistas. Trata-se de uma perspectiva

que escolhe protagonistas específicos para o processo de independência – aqueles considerados

heróis nacionais – produzindo uma visão própria do fenômeno a partir da noção de liberdade e

heroísmo.

O exame crítico desses projetos – o vencedor que não chegou a ser executado e mesmo

aqueles não selecionados – seus discursos e suas imagens revelam escolhas ligadas aos interesses

desse grupo idealizadores. Os pareceres da comissão sobre os projetos tornam possível observar,

de maneira cuidadosa, o tipo de leitura realizada por cada artista em seu projeto e também o modo

como essa comissão julgou e interpretou estes, revelando critérios e o fatores determinantes na

seleção de um projeto vencedor.

Os monumentos construídos com intenção de celebração, além de seu conteúdo

ideológico, estão sujeitos a olhares e interpretações novas das alegorias que o compõe. Apesar

destas serem pensadas com um objetivo, é difícil garantir que essa leitura seja a mesma prevista no

momento em que foram concebidas afinal, os olhares se transformam e novas camadas de

significação se sobrepõe nestes artefatos. A rigidez no conteúdo simbólico destes recursos se torna

contraditória uma vez que a cidade é um espaço em constante transformação. Por isso, cabe aqui

dedicarmos a este objeto um olhar abrangente, um olhar atento aos distintos interesses em jogo

em sua construção, nesse caso a partir da representação da situação diferenciada alcançada pelo

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país a partir do processo de independência, que teria possibilitado a organização nacional a partir

de bases bem definidas. Buscamos saber, portanto, como se configura a composição desse

monumento? Como se construiu e recuperou a ideia de liberdade a partir deste? Como essa analogia

dialoga com a política de constituição de soberania nacional? Como as alegorias propostas

relacionam-se, simbolicamente, com as narrativas que conformaram as propostas de monumento?

Que tipo de sociedade parece se confirmar a partir dessas representações?

Já que esses monumentos são construídos para celebrar o passado de maneira não

espontânea, mas, ao contrário, sistematicamente concebidos e levados a cabo para reafirmar

pessoas, valores, ideologias, percebemos ser a independência um evento presente na sociedade

daquele período. Essas distintas narrativas recuperam esse evento propondo uma leitura sobre ele

já que ocupa um lugar tão importante nesse debate, como vimos no capítulo anterior. As visões

desse episódio da história nacional são, portanto, mobilizadas constantemente cristalizando

narrativas também em elementos da cidade e de seu espaço. Nessa nova proposta monumental

cabe também compreender qual relação se estabelece com a conformação material e a construção

do passado segundo as dinâmicas políticas do presente. A glorificação desse evento na estatuária

pública não significa uma reflexão constante e atualizada sobre o mesmo, mas, ao contrário, pode

representar, na realidade, uma neutralização de sua narrativa a partir de uma perspectiva particular.

País de origem Número de projetos inscritos

França 21

Itália 17

Chile 11

Espanha 10

Argentina 8

Alemanha 6

Bélgica 3

Inglaterra 3

Áustria 2

Uruguai 2

América do Norte 1

TABELA 1: Procedência dos projetos inscritos no concurso FONTE: Dados retirados do Concurso para el Monumento de la Independencia Argentina. Buenos Aires, Kraft, 1908

Para a primeira fase do concurso foram recebidas, ao todo, 74 maquetes que foram

expostas na Sociedade Rural, instituição importante e influente na Argentina localizada em

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Palermo, nos meses de abril e maio de 1908.257 Dentre estas, apenas oito eram de autoria de

argentinos. A Autoria de todos os projetos estava distribuída segundo a tabela acima. A execução

do concurso coloca em movimento muitas questões dentre os quais se destaca a da conformação

da Nação e o consequente debate em torno do nacional. Já anteriormente, muitas haviam sido as

tentativas de substituir a histórica pirâmide, como observamos. Parece até mesmo irônico, em certo

ponto, que a proposta de construção de um monumento homenageando a revolução de 1810

envolva a destruição desse primeiro artefato pátrio a partir de uma lógica de valorização de

elementos nacionais. Entretanto, cabe buscar compreender como se configura o jogo de poder e

as representações imbuídas nestas obras já que essas ações configuram uma disputa clara entre

grupos distintos. Esses debates se apresentam até mesmo sobre a própria destruição da pirâmide

que não é consensual. Muitas perspectivas apresentaram, nesse processo, ideais de conservação

desse monumento por ter sido o primeiro representante da nacionalidade argentina.

Paulo Knauss desvela a lógica monumental a partir de uma escultura a Pedro Álvares

Cabral que o retrata como herói e celebrando o ato do descobrimento na ocasião das

comemorações do quarto centenário do descobrimento.258 Para o autor, essa se constitui a partir

de uma estrutura narrativa que a define como produto de representação do passado ordenando

determinada leitura da história insistindo em uma organização temporal que apresenta o processo

histórico como univocidade da nação, simbolicamente representada.259 Essa estrutura se define,

para Knauss, em torno de uma pedagogia do civismo na qual as imagens urbanas de tipo escultórico

evidenciam como se constituíram em instrumentos de dada pedagogia social caracterizada pela

promoção do civismo – ou seja, baseada nos feitos dos grandes homens e capaz de fazer germinar

um certo orgulho pela história fomentado pela nacionalidade. A análise do autor relaciona-se

257 Palermo é um dos bairros situado ao norte da cidade. É, atualmente, o mais extenso e caracterizando-se pela grande presença de áreas verdes. A Sociedade Rural Argentina é uma associação civil patronal de 1866 que agrupa os grandes proprietários de terra na região dos pampas. Historicamente, teve um papel político e econômico importante na argentina, principalmente na época das chamadas três presidências históricas, na qual muitos de seus membros ocuparam altos cargos nos diferentes governos. Para nosso objeto, é interessante destacar que essa sociedade manteve posteriormente seu papel de destaque também durante as presidências do Partido Autonomista Nacional – entre os anos de 1880 e 1916. 258 KNAUSS, Paulo. O Descobrimento do Brasil em escultura: imagens de Civismo. Revista Projeto História, São Paulo: PUC, n. 20, p-175-192, abr. 2000. 259 Segundo o autor, essa iniciativa de comemoração de um acontecimento associada à promoção de um monumento acompanhou uma tradição iniciada no Brasil em 1864 com uma estátua de D. Pedro I que teve continuidade em 1872 com a de José Bonifácio. Esse modelo se expandiu por todo Brasil inovando tipologias, distribuindo imagens de caráter histórico em centros urbanos. A celebração de grandes personagens da história nacional a partir de esculturas pública teria seguido o modelo francês originário da Revolução Francesa e tendo seu ápice na virada do século. As estátuas assumem novas conotações simbólicas e, nessa trajetória de transformação de valores sociais, se tornam emblemas políticos, derivados do culto laico à nação. As cerimônias e símbolos conferiam ao povo um papel ativo na criação da mística nacional transformando a representação política em uma dramatização que o colocava como ator da história. Por isso, para o autor, os monumentos se confundiram com os próprios processos de fundação simbólica da nação.

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diretamente com as reflexões que estabeleceremos aqui já que define que as escolhas para as

esculturas não são aleatórias. Será, portanto, essencial compreende como essas se configuram no

caso do concurso do monumento à revolução,

A ênfase na biografia não é um recurso aleatório. Ao contrário, esse recurso é

utilizado por ser considerado um exemplo de vida a ser seguido ou usado como inspiração por

servir para construir um padrão universal e absoluto. Assim, ela possibilita uma identidade a partir

da condição humana universalmente válida, reforçada pelo sentimento investido em um objeto

comum. Para Knauss, o amor dedicado ao caso exemplar e o orgulho pela excepcionalidade

constroem uma identidade afetiva que pode anular distancias e diferenças sociais instaurando, a

partir de uma mesma base emocional, a comunhão de cidadãos que circulam em torno de uma

mesma peça urbana que expressa valores sociais comuns. O caso biográfico é um dos elementos

principais da estratégia educativa da pedagogia do civismo, na qual os objetos urbanos e suas

imagens são compreendidos como elementos de mediação – o caso analisado por nós da estátua

do General Belgrano ilustra a recuperação desse aspecto bem como a vontade de criação de outros

monumentos que homenageassem os homens da revolução. Esses instalam uma base de

identificação entre sujeito e objeto de conhecimento, empregando a empatia como

procedimento.260 Rituais de uma mobilização social convocada por iniciativa pela promoção de

uma imagem urbana assumiam sentido de educação cívica seja pela peça imaginária pelas formas

de culto ao emblema escultórico que são incorporadas as práticas de civismo. A ritualização das

imagens urbanas ganhava um atributo específico. A imaginária urbana se define, assim, como

recurso didático para a promoção do civismo.

O caso biográfico é bastante ilustrativo, mas essa pedagogia pode se materializar

também na recuperação de marcos históricos, como o caso analisado nesse capítulo. A iniciativa

de promoção de uma imagem urbana de caráter histórico e escultórico baseava-se na recordação

de um personagem do passado, concebido como herói, capaz de uma ação extraordinária

fundadora da nação, bem como o caso de um evento específico. A unidade nacional se afirma

como termo fundamental da pedagogia do civismo proposta na didática dos monumentos. Para

Knauss, podemos afirmar então que a promoção das imagens escultóricas urbanas se integra aos

quadros de uma ideologia de Estado por visar a integração político-social sob a égide tutelar do

Estado. Os monumentos participaram da lógica da pedagogia social do civismo no Brasil revelando

260 Esse método, por se sustentar no princípio da empatia, leva a uma relação indissociável entre o cidadão e a ordem social instituída, inviabilizando seu distanciamento, restam somente a reprodução e extensão dos padrões sociais estabelecidos. Os objetos urbanos, assim, se caracterizam como instrumentos de educação política conservadora, a serviço do poder instituído.

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seus elementos e conteúdo – novas pedagogias da cidadania impuseram a criação de novos padrões

simbólico. É assim que hoje convivemos com outros tipos de imagens e esculturas nas cidades.

Apesar de declará-lo como uma competição de arte verdadeiramente excepcional e

sem precedentes na América do Sul, Enrique Charnoudie, importante figura da Sociedade Central

de Arquitetos, afirma que não houve no concurso um esboço que incorporasse todos os critérios

pedidos.261 Entretanto, partindo do pressuposto que essas obras com filiação considerada genial

não são muito frequentes, o arquiteto ressalta a importância das circunstâncias de realização do

concurso considerando que dele tomaram parte arquitetos e escultores de grande valor apesar de,

em suas palavras, pouco conhecedores “de nuestra historia y de nuestros adelantos”.262 Para ele,

existe uma carência, em matérias artísticas, daqueles que possam ser considerados gênios, mesmo

medianos. Fazendo uma crítica ainda mais contundente afirma que um terço dos esboços

participantes do concurso não era digna de participar de uma competição de tal importância, ainda

que tal situação fosse inevitável.263

No ano seguinte, o suplemento da Revista Técnica publicara com detalhes uma crítica

realizada por seus membros aos resultados do concurso e aos projetos vencedores, destacando

aqueles, em sua concepção, mereciam ser valorizado ou, por outro lado, aqueles considerados

dignos de críticas.264 Essa revista constitui o primeiro órgão específico de difusão da disciplina na

Argentina sendo antecedente direta da Revista de Arquitectura da Sociedad Central de Arquitetos. Na

Argentina, o desenvolvimento do periodismo especializado na arquitetura se tornou possível em

meio ao processo modernizador de final do século XX que impulsionou intensa atividade

periodista. Essas publicações apresentam-se como fontes legítimas de análise dos processos

históricos por articularem estes com trajetórias individuais ou de grupo que se materializam

enquanto empreendimentos editoriais. Assim, tornaram-se espaços privilegiados para a expressão

de ideias e inquietudes, considerar propostas, unir a crítica – funcionando, portanto, como núcleos

de articulação de estratégias de grupo, instrumentos de legitimação e de expressão de ideias.

As revistas nos interessam pela possibilidade de tornar públicos e colocar em debate

atos e decisões desse grupo de agentes especializados que demanda reconhecimento enquanto

261 Charnourdie [1864] era editor da Revista Técnica, arquiteto e graduado em engenharia civil pela Universidade de Buenos Aires. Como estudante, foi incorporado, em 1882, ao Departamento de Engenheiros da Nação onde atuou até 1894 ocupando distintos cargos. Fundou a Revista Técnica em 1895 dirigindo-a até 1918. Ver: LUCCHINI, Alberto Plinio. Historia de la ingeniería Argentina. Buenos Aires, Centro Argentino de Ingenieros, 1981. 262 Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 48, abril – mayo 1908 263 Foi dito ironicamente que os gastos dos participantes poderiam ser suficientes para construir o monumento, porém Charnoudie afirma ser possível que os gastos feitos pelo concurso por parte do governo realmente fossem. 264 Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 49, junio – julio 1908

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grupo e legitimidade para seu modo de operar no mundo. Os temas de investigação vinculados

com o desenvolvimento do próprio campo disciplinar e com a prática da profissão encontram nas

revista uma valiosa fonte de produção textual dos técnicos. Para Silvia Cirvini, elas se apresentam

enquanto correlatas, portanto, de associações profissionais, científicas e academias da engenharia e

da arquitetura convertendo-se em órgãos difusores de ideais e propostas em torno da prática

profissional. 265 Anteriormente, as publicações vinculadas com tais temas era oficias e pertencentes

as primeiras repartições estatais de administração territorial, aonde predominavam engenheiros.

Esse motivo revela sua importância enquanto fonte por ser veículo onde as questões debatidas por

nós apresentavam ecos para a sociedade técnica a partir de artigos, concursos, críticas etc. A revista

nasceu enquanto suplemento da anterior Revista Tecnica, entretanto, ganhou autonomia a partir de

um acordo para organizar a publicação com páginas independentes.266 Os vencedores dos

primeiros, segundos e terceiros prêmios do concurso totalizaram vinte projetos – dos quais sete

eram franceses, cinco italianos, três argentinos e Inglaterra, Alemanha, Uruguai, Espanha e Bélgica

contavam com um cada.267 Escolhemos, entretanto, nos deter sobre aqueles destacados pela

publicação para compreender as críticas realizadas por essa instituição profissional e seus

participantes e o que estas representavam.

O texto inicia destacando a dificuldade em se optar por qualquer um dos

esboços/projetos que concorreram ao monumento da Revolución de Mayo. Considerava-se difícil

escolher a forma que materializaria as ideias que tanto a revolução quanto seu monumento

deveriam evocar, ainda mais diante de tamanha diversidade de critérios nas concepções daqueles

que concorreram naquela disputa já que os projetos eram filiados a distintas escolas, antigas e

modernas. Afirma-se não existir uma preferência clara por um tipo específico de monumento –

265 CIRVINI, Silvia Augusta. Las revistas técnicas y de arquitectura (1880-1945). Periodismo especializado y modernización en Argentina. Argos, v. 28, n. 54, p. 13-60, 2011. 266 A revista foi publicada entre os anos de 1904 e 1916 e, durante esse tempo, contou com 119 edições. Significou para o ambiente profissional daquela época a primeira publicação dedicada a arquitetura tratada de maneira especial por seus próprios protagonistas e não mais como anexo de outro periódico. Segundo Jorge Tartarini, o arquiteto e a arquitetura enquanto símbolo de status social encontraram na revista páginas dedicadas a hotéis privados, pequenos hotéis, casas de aluguel, palácios e obras monumentais. A exceção de alguns estudos sobre habitação para trabalhadores a temática social fora deixada de lado. A revista publicara também sessões da comissão diretora da Sociedade, concursos organizados pela instituições e opiniões oficiais sobre temas de estética edílica. Quase todos os projetos monumentais do período foram publicados tais como o Congresso e o teatro Colón. Ver: TARTARINI, Jorge. Revista Arquitetura. In: LIERNUR, Jorge; ALIATA, Fernando. (comp.) Diccionario de la Arquitectura em Argentina, Tomo 5, O-R, Clarín, 2004, pp. 174-175 267 Os projetos vencedores foram: “Fortes Fortuna Adjuvat” de Berlim; “Oceano” de Paris; “1810-1816-1910” de Madrid; “Pro Patria et Libertate” de Milão; “Sol” de Bruxelas; “Arco de Triunfo” de Buenos Aires; que ocuparam o primeiro lugar. “Sol Naciente” de Paris; “Bellum, pacem, fecit” de Londres; “Oize” de Florença; “Patria” de Buenos Aires; “Tabaré” de Montevidéu, que ocuparam o segundo. “Addico” de Paris; “Argentino” de Buenos Aires; “Coronada su siem de Laureles” de Roma; “Gloria Republica” de Paris; “Iris Florentina” de Florença; “Paris Marsella” de Paris; “Soleil de Libertè” de Paris; “Triomphal” de Paris e “Una nueva e gloriosa nación” de Roma, que ficaram em terceiro lugar.

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apesar de terem havido tentativas de definir as dimensões do monumento advindas do Congresso

que não obtiveram êxito – ainda que não houvesse um explícito ponto de elucidação acerca disso,

pois se confiava que a importância do concurso inspiraria os artistas mais famosos do mundo a

ofereceram soluções não previstas anteriormente. Essa razão explicaria na exposição dos projetos

a diversidade de critérios e concepções adotadas pelos artistas concorrentes que variavam entre

arcos do triunfo, pirâmides, colunas etc. A própria escolha por não determinar baseava-se na

confiança de que o produto estimularia a criação de soluções não previstas.268 A intenção, de

maneira geral, era erguer um monumento grandioso na Plaza de Mayo o que reitera os sentidos desse

espaço que estão sendo analisados por nós.

O texto destaca a contribuição de uma importante publicação chamada de “Breve

reseña histórica de la revolución argentina para los artistas extranjeros que tomen parte em el

concurso del monumento à la Revolución de Mayo”.269 Como o próprio nome sugere, o objetivo

desse texto era aproximar artistas de fora da Argentina da importância histórica da revolução de

maio para a construção da nação. Ainda que a presença de participantes estrangeiros tenha sido

permitida no concurso, fica clara a necessidade de que estes indivíduos compreendam a história

argentina antes de projetar o monumento que deveria representar sua identidade exigindo,

portanto, que elementos representantes desse sentimento nacional sejam compartilhados também

pelo autor e sua obra. Seus parágrafos mais destacados sustentam o seguinte

La revolución de mayo no fue la obra de un hombre, sino la obra de un pueblo. El primer actor que debemos poner en escena, el protagonista [...] es el Pueblo mismo [...] La Plaza de la Victoria, cuyo nombre consagra la obtenida sobre los ingleses, es el foro donde se reúne y delibera el pueblo, la muchedumbre que pronto será ciudadana.270

Já, portanto, no edital, a relação imbricada entre o evento e a Plaza de Mayo fica clara

em como estabelecem-se símbolos importantes de serem representados nesse processo, como é o

caso do próprio povo. A resenha histórica destaca elementos como a bandeira, a assembleia

constituinte e o próprio hino que vão ser, de maneiras diferentes, incorporados aos projetos.

Entretanto, segundo a publicação da revista, teria existido uma certa confusão acerca do objetivo

268 Ainda que a apresentação de distintas soluções parecesse positiva, a publicação da revista demonstra que algumas das ideias geraram manifestações sem êxito. A mais insinuante dessas teria sido uma que implicava em uma solução descrita como absurda porque fazia a importância do monumento depender de suas dimensões gerando um problema de proporção ao projetar na praça o monumento mais alto já erguido. 269 Concurso para el Monumento de la Independencia Argentina. Buenos Aires, Kraft, 1908 270 Breve reseña histórica de la revolución argentina para los artistas extranjeros que tomen parte em el concurso del monumento à la Revolución de Mayo. Concurso para el Monumento de la Independencia Argentina. Buenos Aires, Kraft, 1908, p. VIII

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do monumento a ser erguido. Ele deveria representar a “Revolución de Mayo” ou a “revolução

argentina”? Segundo o texto, a primeira ideia incorpora-se aos sucessos de 1810, e a mente do

artista poderia concretizá-la em uma figura que simbolizasse o “grito de mayo”. A segunda, dada a

sua natureza complexa, exigiria recorrer a recursos igualmente complexos. Considerando-se que a

Plaza de Mayo é um lugar adequado para erguer um monumento decorativo chega-se à conclusão

de que convinha não se afastar da ideia de comemorar os acontecimentos do ano de 1810. A partir

do pressuposto escolhido pela revista que fora exposto acima, reconheceu-se a dificuldade de

selecionar os melhores naquela disputa. A síntese dos projetos teria confirmado que o monumento

concebido pelos autores foi dedicado mais à Revolução de Mayo do que à Revolução Argentina.

A publicação acrescenta que, considerando o conjunto de propostas, a decisão dos

jurados parecera bem inspirada ao consagrar os seis primeiros prêmios a projetos que, em sua

maioria, constituem os mais sobressalentes e adaptáveis dentre todos os apresentados.271 Seis

projetos ganharam o primeiro lugar: um francês, um italiano, um belga, um argentino, um espanhol

e um alemão. 272 As pesquisas de Raúl Piccioni indicam, ainda, que houve uma alteração na ordem

dos ganhadores da primeira categoria e de um que, em princípio, havia sido qualificado para a

segunda. Segundo o autor, foram as pressões exercidas por Emilio Mitre, um dos jurados, que

originaram o deslocamento de outro projeto francês do primeiro lugar para o segundo, sendo

substituído pelo espanhol.273 Tendo em vista que os franceses haviam conseguido duas vagas para

a segunda fase, parecia politicamente mais conveniente contar apenas com um representante de

cada país. Entretanto, o autor destaca ainda que esses debates ocorriam em âmbito diplomático em

um momento no qual a Argentina ocupava certo lugar na esfera internacional e a política externa,

assim, emergia também como modo de construção nacional.

Os autores da revista destacam sua preferência por três: “1810-1816-1910”, “Oceano” e

“Sol”, referindo-se a eles como os únicos que poderiam disputar definitivamente tal título. O

monumento proposto pelo primeiro projeto, de autoria espanhola, apresentava interessantes

alegorias além de claras associações com o entorno da praça. À base do monumento, o autor

adicionara duas representações transversais que fariam frente ao Cabildo e a Casa del Gobierno, pela

271 Não se refere a totalidade dos projetos pois será realizada uma dura crítica a proposta argentina entre as seis. 272 Cabe aqui, ainda, destacar que o plano inicial de eleger apenas cinco vencedores em cada um dos três primeiros lugares pareceu ser deixado de lado, tendo em vista que foram selecionados seis para o primeiro e nove para o terceiro, contando com cinco vencedores apenas o segundo. De acordo com Raul Piccioni, a ampliação para seis teve o único objetivo de incluir o projeto argentino mesmo que esse não tenha cumprido uma das principais cláusulas por não ter entregue a maquete solicitada, mas apenas um desenho do projeto. O autor demonstra a partir de correspondências e fontes diplomáticas que outras delegações se mostraram incomodadas com esse acontecimento afirmando que foram ignoradas as bases do concurso com o propósito de favorecer “a un hijo de la patria" Ver: PICCIONI, Raul. Op. Cit. 273 PICCIONI, Raúl, op cit.

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importância de tais instituições.274 Essas representações eram a figura de um afável rapaz com

postura altiva que personificaria a boa vontade do povo argentino, rompendo a dominação

espanhola além de uma figura feminina que representava a cidade de Buenos Aires tendo escrito a

primeira junta popular independente na pilastra e voltando-se ao povo que estava ao redor do

pedestal aplaudindo. O povo, ao lado do pedestal, era representado se preparando para a defesa,

laçando-se ao combate. Destacavam-se, ainda, em sua base as figuras de Don José de San Martin e

Belgrano (ambos a cavalo), além de generais, frades, nobres, gaúchos, soldados, gente do povo,

saudando a independência do país. Acima deste grupo, em letras douradas sobre a pilastra, verifica-

se os seguintes versos do hino nacional: “Se levanta a la faz de la tierra/ Una nueva e gloriosa

nación”, elemento simbólico valorizado em meio as narrativas nacionais.

FIGURA 23A E 23B:Projetos espanhol e francês - “1810-1816-1910” e “Oceano” FONTE: Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 49, junio – julio 1908

No centro do mesmo monumento representou-se o escudo da nação e, em seu topo,

a figura da república em pé em posição digna e portando uma viga de varas em sua mão esquerda

274 Essa é uma tendência em muitas propostas: a direção principal do monumento voltada para algum lado do eixo de comprimento da praça, sendo o mais representativo por ter a Casa Rosada em seu fundo. Caso, ainda, a opção fosse contrária, importantes alegorias do monumento pareceriam estar esquecidas como se fossem no centro da praça no qual se voltariam apenas para uma rua. Essa opção reforça ainda a possibilidade de visibilidade do monumento a partir da própria praça, já que seu sentido horizontal se apresenta em comprimento bastante maior se comparado ao vertical.

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para representar o poder e a possibilidade de punição. Sua mão direita apoiava-se em Minerva,

deusa romana representante da sabedoria, quase como se essa representasse a figura de uma

conselheira ao oferecer-lhe um ramo de oliveira, caracterizado constantemente como símbolo da

vitória e do triunfo além de símbolo da paz. Minerva esconde também a lança e o escudo,

representando, possivelmente, uma pronta disposição em defesa da justiça e do direito. A figura

do tempo aparece sentada contemplando as outras e anotando o ano de 1910 com uma feição de

espanto que parece sugerir surpresa com a situação da jovem nação em pleno fortalecimento em

tão curto espaço de tempo. O interior da parte central da figura arquitetônica contaria ainda com

a Pirámide de Mayo considerada relíquia demonstrando uma intenção de preservação ainda que nada

do antigo monumento ficasse visível – essa visão do passado se apresenta de forma ambígua ao

recusar-se à demolição total do antigo monumento, mas incorporá-lo de forma incipiente.

Os autores da revista mostraram surpresa ao saberem que o projeto cujo lema era

“Oceano” fora produzido por um arquiteto e um escultor da França, pois ele era muito parecido

com uma obra em homenagem ao Coronel Bolognesi e com projetos feitos para Alfonso XII e

para o General Mitre. Eles afirmam que o projeto lhes pareceu simpático desde o primeiro

momento, e que estavam seguros de que teria muitos votos na exposição. Entretanto, perceberam

que o mesmo que ocorreu com o monumento em homenagem a Mitre: o encanto com a obra foi

diminuindo com o tempo, o que fez despertar uma dúvida acerca da validez do monumento. O

excesso de harmonia de suas linhas gerara uma dúvida se ele não perderia a coerência do conjunto

quando fosse ampliado para tamanho de execução. Além disso, a ausência do que a revista

caracterizou como “linhas viris” no projeto foi considerada um ponto negativo, já que elas

deveriam ser predominantes no monumento. O que faltava no monumento proposto pelos

espanhóis, não era nem um pouco escasso no francês que, segundo a revista, contava com

relevantes linhas viris retas e também curvas

O projeto “Oceano” buscava rememorar os principais acontecimentos que asseguraram

a república e os personagens que desempenharam os papéis mais importantes. Na sua parte

inferior, havia uma serie de baixos-relevos representando cenas populares, batalhas e

acontecimentos que marcaram as diferentes fases da revolução. Acima, sobre as faces laterais, havia

as estatuas dos homens de estado: Castelli, Alberti, Matheu, Passo e Azcuénaga, membros da

primeira junta. Figuram também escudos das províncias e das cidades que fizeram parte do

movimento revolucionário. Sobre a base da face posterior, um alto-relevo glorifica o povo

respondendo ao chamado de Belgrano, que apresenta o emblema nacional e o convida a unir-se às

falanges nos combates, liderados pelo general San Martin, cuja estátua (com cavalo) ocupa o centro

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da face principal. Os feitos gloriosos desses homens os trazem à alcunha de heróis. A estátua da

Liberdade, guiada pela Vitória, coroa o conjunto do monumento. Toda a parte bruta do

monumento seria feita com materiais do próprio país. Todas as fachadas, por sua vez, seriam de

mármore de Carrara.

Dois aspectos foram reprovados nesse projeto pela revista: sua aparência funeral e o

excesso de figuras amontoadas em sua base. O primeiro defeito poderia ser corrigido na execução

do projeto, enquanto o segundo era considerado praticamente impossível de ser modificado já a

demanda de transformar cada uma das figuras em uma obra primorosa além de infactível não teria

como consequência um resultado estético aprovado ainda pelas muitas estátuas em bronze. É

curioso ainda notar que algumas justificativas nas críticas dos monumentos apresentam-se

contraditórias entre si. Enquanto a proposta “Oceano” criticada pelo excesso de figuras em sua base,

apresentando-se quase que amontoadas, o projeto “1810-1816-1910” não recebera as mesmas

críticas. Entretanto, uma observação das figuras 23a e 23b nos permite comparar ambos e notar

que, inclusive, este último projeto apresenta mais figuras representadas do que o que por essa razão

fora criticado. Outra modificação sugerida nesse projeto pela revista foi a de substituição do cartaz

levantado pelo Genio de la Patria. Enquanto no projeto original o cartaz trazia os dizeres

“independência”, a revista considerava essa construção um tanto vulgar e preferiam vê-lo

quebrando correntes opressoras, o que remontaria a um trecho do hino que diz “oíd el ruido de

rotas cadenas”. Essa demonstra a valorização do hino que, enquanto elemento nacional, parece ser

simbolicamente mais forte do que a própria condição alcançada pelo país no pós-Revolución.

Dos seis primeiros prêmios, o projeto belga “Sol” foi o único, segundo a revista, que

tinha como base a transformação completa da Plaza de Mayo e sua conversão completa em

Monumento de Mayo. A revista destaca o propósito de erguer uma estátua do General San Martín no

centro da Plaza, independente do monumento principal, que lhe serviria de fundo. Os autores

convenceram-se de que se tratava de um dos trabalhos mais conscientemente estudados,

concebidos e executados. A revista destaca que a proposta presente no projeto de dedicar toda a

Plaza para rememorar os heróis da independência nacional causou grata surpresa, pois em anos

anteriores, isso já havia sido proposto pelos membros da própria revista. Nessa concepção, a Plaza

de Mayo deveria comemorar os feitos dos ilustres homens a quem o país deve sua independência,

enquanto a praça do congresso deveria ser dedicada aos constituintes.

Ainda que o projeto “Sol” agradasse bastante os membros da revista, foram apontadas

algumas características que consideravam vulneráveis. Ainda que o projeto pertencesse ao gênero

sintético, o mais adequado, de acordo com os autores, e embora o a parte principal do monumento

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tenha grupos escultóricos de verdadeira concepção artística e oportuno simbolismo, a mitologia

parecia ter uma importância muito grande, o que não parecia adequado para um povo que acabara

de atingir sua maioridade em um momento no qual a mitologia não tinha tanta força. Então, a

revista expõe algumas sugestões de modificação ao projeto “Sol”, que, segundo eles, seriam mais

evocativos do episódio de Mayo. Uma delas seria a substituição de um troféu de armas por um

baixo-relevo bem enquadrado que remontaria à histórica jornada do dia 25 de maio de 1810.

Também sugerem o reposicionamento dos postes angulares, cujas dimensões foram consideradas

exageradas. Em relação ao monumento de San Martin, afirma-se que não deveria sofrer nenhuma

modificação sequer, já que era a obra de arte mais pura e nobre que fora vista na exposição.

FIGURA 24A, 24B, 24C E 24D: Projeto belga intitulado “Sol” propõe interação entre monumento e praça FONTE: Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 49, junio – julio 1908

A exceção da escolha de bons projetos como vencedores, segundo a publicação, ficou

por conta do projeto do escultor argentino Irutia, cujo tema se chamara “Arco do Triunfo”

antecipando detalhes de sua obra. A inclusão desse projeto na lista dos agraciados com o primeiro

prêmio não seria justificada, de acordo com a revista, já que teria existido excesso de boa vontade

no processo que levou a escolha de tal esboço, por não se ajustar às bases do concurso, ainda que

se reconhecesse seu autor como um excelente escultor. A crítica realizada faz referência direta ao

fato do escultor ser argentino atestando que este não deveria ser um fator suficiente para fazê-lo

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ser escolhido pois “el triunfo de um artista nacional no puede ser preferido al triunfo de la Justicia”.275 Dessa

forma, revelava-se a crença de que tal escolha teria sido pautada na simples nacionalidade do artista

não levando em consideração critérios que avaliavam particularmente a obra proposta. Observa-se

a rejeição em aceitar a nacionalidade como critério de escolha ainda que o monumento a ser

projetado estivesse totalmente imbricado com a história argentina. A crença parece revelar que o

real conhecimento da história não é o mais essencial, mas sim o conhecimento da versão específica

escolhida por seus idealizadores para que fosse compartilhada a mesma perspectiva e, para isso, a

leitura da resenha publicada em conjunto com o concurso parecia ser suficiente.

O projeto argentino é descartado pela crença de que suas formas e detalhes

arquitetônicos não fossem adequados ao seu destino. Era considerado um monumento “mudo”,

que não despertaria na imaginação do povo nem ideias artísticas nem ideais patrióticos, além de ser

arquitetonicamente deficiente. O grupo que pretendia sintetizar a apoteose da independência,

apesar de ser uma grande obra enquanto estudo anatômico, não funcionava como articulador de

uma mensagem tendo em vista que era necessário descrevê-lo para que se entenda o simbolismo

pretendido. O conceito do projeto, entretanto, era descrito de maneira positiva, mas encaravam-

no como ideal para figurar, por exemplo, o cruzamento de duas avenidas. No entendimento da

revista, essa obra de escultura deveria ser adquirida pelo governo nacional e colocada em um lugar

que não simbolizasse nada, porque poderia testemunhar a possibilidade de dias gloriosos

reservados à arte nacional pela existência de representantes como Irutia. A solução encontrada

pelos críticos revela, ainda, a importância do espaço da Plaza de Mayo. Para a seleção do monumento

vencedor, portanto, parecia não bastar uma validez estética e correspondência com os ideais que

representaria. A posição que esse ocuparia na praça considerada nacional e valorizada como tal

deveria estar presente no projeto e pautar a construção da obra já que, ao contrário de lugares que

nada simbolizavam, a Plaza de Mayo parecia acolher todos os significantes nacionais.

Além desses problemas, foram apontados outros em relação ao monumento proposto

por Irutia. Primeiramente, consideravam que o tipo arco de triunfo não era monumento adequado

a uma praça. Aqui novamente destacamos as contradições presentes no discurso, tendo em vista

que o próprio concurso evidenciava, anteriormente, não ter preferência por nenhum tipo de

monumento. Outro projeto que ocupara um desses primeiros lugares também incorporava um

arco do triunfo, o alemão, porém não teria cometido o erro de esquecer de não ser esse um

monumento próprio para aquele espaço e tendo estabelecido certo esforço em sua adaptação. Esse

275 Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 48, abril – mayo 1908, p. 135

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é o único comentário destinado ao projeto alemão na revista que, apesar de considerar a adequação

uma boa iniciativa não o selecionou como destaque dentre os demais. Os ajustes não realizados no

projeto argentino teria sido seu erro. Ademais, houve um erro histórico na concepção da obra, já

que ela daria importância igual a quatros dos gloriosos generais da independência argentina.

Segundo a interpretação histórica da revista, não se pode igualar nenhuma figura histórica da

independência à de San Martin. O general Belgrano, outra figura importante, apesar de constar no

mesmo plano da bandeira nacional que havia criado não poderia ser colocado também com outros

generais. Provavelmente por essas imprecisões, o projeto deixava a cargo do Comitê a resolução

de que generais ocupariam os outros três lados do monumento.

Tais erros são encarados de maneira exacerbada pela convicção de que poderiam ter

sido evitados com o “correto estudo da história nacional”. Novamente aqui percebe-se a

importância concedida à resenha histórica e as contradições entre nacionalidade e autoria do

monumento. Enquanto alguns projetos estrangeiros foram elogiados pela visão concedida à

história argentina, o único projeto nacional que chegara a segunda fase fora criticado pela mesma

razão. A nacionalidade, portanto, parecia não garantir o “correto” manuseio da história nacional –

com correto aqui nos referimos aquele escolhido e difundido pelo próprio concurso.

FIGURA 25A E 25B: : Detalhes do projeto argentino “Arco de Triunfo” FONTE: Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 49, junio – julio 1908

A revista, ao final do artigo, escreveu sobre outros projetos que também achou

pertinente. Acerca do monumento chamado “Patria”, projeto argentino agraciado com o segundo

lugar, afirmou-se que ele não acertou o tipo de monumento mais adequado para a Plaza, ainda que

se destacasse a sua originalidade e beleza arquitetônica – segundo eles, a mais bela de todo concurso

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Já sobre o monumento “Luz y Libertad”, afirma-se que esse merecia ser premiado mais do que

outros que foram agraciados. Ainda que tivesse alguns detalhes considerados deficientes para os

autores, o projeto reunia algumas características apreciáveis, por sua arquitetura, e grupos

esculturais atribuindo a sua não premiação ao não cumprimento de uma das regras por parte dos

autores já que deveriam fazer o projeto em gesso e colori-lo de acordo com o que se pensava para

o monumento. Novamente notamos que as escolhas se efetivam de acordo com interesses dos

atores envolvidos porque outros projetos que também não seguiram à risca as normas do concurso

foram premiados. Outro projeto que, segundo a revista, mereceu um segundo prêmio, foi o do

escultor uruguaio Juan M. Ferrari, que fora objeto de simpatia geral, mas não parecera adequado

para o espaço da Plaza. Entre os vencedores dos terceiros prêmios, a revista destacou o projeto

francês cujo lema seria “Triomphal”, que constituía o mais notório arco do triunfo dedicado a

homenagear a revolução de maio, sendo essa a única razão pela qual ele fora destacado, já que os

autores não concordavam com esse tipo de monumento na Plaza.

Segundo a revista, o jurado teria indicado aos premiados que uma das modificações a

ser introduzida nos projetos consistiria em adequá-los para abrigar a antiga Pirámide de Mayo. Os

autores da revista expressaram seu desacordo com a proposta, pois duvidavam de seu valor

histórico devido a suas numerosas alterações, que pouco teriam deixado da pirâmide inicial e assim

não se justificaria impor uma tarefa cheia de dificuldades para os vencedores. Caso houvesse

discordância em relação ao valor histórico da pirâmide e fosse necessário conservá-la, dever-se-ia

deixá-la onde estava até que se construísse o edifício de substituição do velho cabildo, e então

transferi-la para lá. Essas considerações demonstram a permanência da antiga disputa entre a

preservação ou não do primeiro monumento pátrio, como em várias ocasiões anteriores.

No que diz respeito ao projeto cujo lema era “Pro Patria et Libertate”, vencedor final do

concurso, realizado pelos italianos Gaetano Moretti e Luigi Brizzolara, ainda que ele tivesse uma

base interessante e bons conjuntos esculturais, seu obelisco – que deveria ser sempre a parte mais

destacada do monumento – é descrito como possuidor de uma silhueta pobre, além de ser mal

trabalhado em seus detalhes, o que fez com que os membros da revista duvidarem se esse seria um

projeto que mereceria o prêmio.276 Os autores do projeto afirmam que a História da revolução

276 Gaetano Moretti nasceu em Milão [1860] e foi arquiteto e professor universitário além do primeiro presidente da Facultad de Arquitectura del Politécnico de Milán em 1933. Enquanto esteve em Buenos Aires estabeleceu uma rede de vínculos que determinaram uma série de cargos profissionais, oficiais e particulares, prolongando sua atividade no continente até meados dos anos 20. Sua produção iniciou com a participação no concurso pelo monumento da Revolución e se estendeu ao da bandeira, em Rosario, um dos últimos que realizou no continente tendo, também se envolvido como as obras do Palacio Legislativo de Montevideo. Luigi Brizzolara nasceu em Chiavari [1868] e foi escultor. Embora residente em Genova, executou várias encomendas em nosso continente que se estenderam além do concurso

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argentina, resumida pela comissão do centenário, foi um importante guia no desenvolvimento do

trabalho.

FIGURA 26: Monumento a Mayo, proposta de Gaetano Moretti e Luigi Brizzolara. FONTE: Moretti, Gaetano.; Brizzolara, Luigi. El Monumento a la Revolución de Mayo y a la Independencia Argentina em Buenos Aires, 1914. Academia Nacional de la Historia de la Republica Argentina

argentino à realizações para patronos paulistas, como o Mausoléu da Família Matarazzo no Cemitério da Consolação além de dois grandes bandeirantes no Museu do Ipiranga. Obteve o segundo lugar no Concurso para o Monumento da Independência em 1919, tendo sido considerado o favorito pela opinião pública. Ver: MAKINO, Miyoko. Ornamentação do Museu Paulista para o Primeiro Centenário: construção de identidade nacional na década de 1920. Anais do Museu Paulista, núm. 11, 2003, pp. 167-198 Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil; TOSONI, Luis. Gaetano Moretti y su obsesión americana. Anais do Seminário de Crítica. Buenos Aires: Instituto de Arte Americano Mario J. Buschiazzo, 2008.

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Na relação apresentada em conjunto com o projeto os autores delineavam as

características gerais de sua proposta:

[…] una extensísima base, como para indicar las grandes raíces de aquel fuerte sentimiento popular, que la chispa inicial del 25 de Mayo de 1810 llevó al triunfo de la revolución, da origen a un Obelisco colosal que, elevándose hasta 35 metros de altura, evoca los recuerdos patrióticos más sobresalientes y termina en su cumbre con una composición escultórica, que es la Apoteosis del Pueblo, del nuevo Estado y de su enseña santa: La Bandera Argentina.

Nos hemos atenido á ella, sintetizando y coordinando en conexión lógicamente expresiva, aquellos personajes, aquellos momentos, aquellos hechos que la historia registra entre los más hermosos y que la humanidad puede noblemente proclamar entre las más nobles victorias, ya que de ahí surge como aurora radiante para un pueblo generoso oprimido por tiranías reculares, Patria y Libertad. 277

A extensa base do monumento proposto pode ser entendida a partir de uma chave de

indicação das profundas e grandes raízes do forte sentimento popular inspirado pelo 25 de Mayo.

Essa base origina um colossal obelisco que alcança 35 metros de altura para rememorar as mais

sobressalientes recordações patrióticas terminando em seu cume com uma composição escultórica

que representava a apoteose do povo, da revolução, no novo Estado e da bandeira argentina. Duas

grandes escadarias, uma em frente à Casa del Gobierno, e a outra em frente ao cabildo, chegam aos

altares dos símbolos aos quais o povo, representado nos monumentos mais épicos já feitos na

história, se traduz em um grande alto-relevo que rodeia a base do obelisco. Da massa plasticamente

expressiva nasce a torre, desenvolvendo seus quatro lados como se fossem as páginas de um imenso

livro, o grande livro de ouro da Argentina, que guarda as memórias de feitos de guerra, os feitos

gloriosos, as iniciativas políticas e os nomes dos patriotas mais importantes.

A nova Nação é representada se lançando ao futuro e derrubando no caminho,

iluminado pelo progresso, tiranias, injustiça e ignorância ao levantar a bandeira como afirmação de

poder e direitos. Assim, a Revolução, a Independencia, a Justiça e o Povo simbolizados em suas

altas virtudes acompanham, como símbolos, a pátria conquistada. Os elementos da estrutura

arquitetônica se desenvolvem formando duas fontes reavivadas com composições plásticas que

compõe alguns dos mais importantes episódios do processo revolucionário. Entre essas

recordações, os autores afirmam que a água “cantará con su lenguaje mudo las glorias de los héroes y su

perenne murmurio entonará el himno á la Patria hecha grande y poderosa con la Libertad”.278 A Pátria e a

277 Concurso para el Monumento de la Independencia Argentina. Buenos Aires, Kraft, 1908 278 Descripción de varios bocetos. Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 49, junio – julio 1908, p. 152

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Liberdade, representadas nas figuras 27a e 27b, seriam consideradas pelos autores dois sentimentos

divinos, duas espécies de faróis para o povo – aludindo, provavelmente, a metáfora de sentimentos

norteadores pela ideia de que o farol ilumina o caminho. Assim, tais sentimentos guiaram o povo

argentino até a conquista de direitos e, por isso, tanto estes quanto o próprio povo ocupavam no

monumento lugar de destaque. A torre tem seus quatro lados como as páginas de um imenso livro

– o Grande Livro de Ouro da Argentina. Sobre essas estariam eternizadas as recordações dos mais

importantes feitos de guerra, as datas mais significativas de iniciativas políticas, os nomes dos

patrióticas que teriam contribuído para a formação da República.

FIGURAS 27A E 27B: Representação da Pátria e da Liberdade na proposta dos italianos. FONTE: Moretti, Gaetano.; Brizzolara, Luigi. El Monumento a la Revolución de Mayo y a la Independencia Argentina em Buenos Aires, 1914. Academia Nacional de la Historia de la Republica Argentina

Depois de aprovado na primeira fase, o projeto dos italianos recebeu dos jurados

algumas recomendações de mudança por mais que insistissem que fosse conservada a índole e

estrutura do projeto inicial. No número seguinte da revista se publicaram as solicitações dos jurados

para modificações nas propostas apresentadas. Para o monumento dos italianos, essas implicavam

na modificação da arquitetura de sua parte baixa para dar mais amplitude e espaço para a fontes.279

O projeto dos italianos ganhou após um empate técnico com o projeto de uma equipe belga tendo

sido necessário recorrer ao voto do presidente da comissão que decidiu em favor da primeira

equipe.280 Ainda devido às polêmicas envolvendo a própria pirâmide de maio, interessante dizer

que esse projeto incorporava um vão em seu interior que incluiria a antiga pirâmide. O projeto

279 Arquitectura, Suplemento de la Revista Técnica n. 50, junio – julio 1908 280 O empate evidencia, ainda, a fluidez do concurso e das opiniões colocadas em questão.

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originalmente tinha trinta e cinco metros se elevaria com essas modificações até quarenta e seis

para conceder lugar a cripta com a pirâmide. O contrato firmado estabelecia que os autores eram

obrigados a dirigir e dar assistência pessoalmente aos trabalhos de colocação do monumento.

Receberiam, em troca, um pagamento de 300.000 pesos em moeda nacional e era estabelecido

também que a obra deveria estar concluída antes do dia 31 de dezembro do ano de 1915 quando

estava previsto o translado da pirâmide.

FIGURA 28: Representação da posição do monumento em relação à praça FONTE: Moretti, G.; Brizzolara, L. El Monumento a la Revolución de Mayo y a la Independencia Argentina em Buenos Aires, 1914. Academia Nacional de la Historia de la Republica Argentina

Na descrição do projeto dos italianos a proporção entre a praça e o monumento é

levada em consideração como aspecto importante. A condição dos prédios circundantes abria a

possibilidade de se fazer cumprir uma regulamentação oportuna. Se impunha a necessidade de

estabelecer um plano arquitetônico regulador sancionando a disposição edílica. Por isso, os autores

concretizaram estudo especiais baseados na visão do monumento construído decidindo contribuir

espontaneamente para uma melhor organização da praça que devia conter o monumento a partir

de uma solução mais ampla, mais radical e mais significativa do que as que haviam sido, até então,

propostas. Essas baseavam-se nas seguintes premissas: que a cidade conseguisse disfrutar de sua

vista para o Rio da Prata – para oferecer a quem chegasse um grandioso espetáculo – e a projeção

adequada de uma sede para os monumentos oferecidos a república como contribuição a seu

centenário. A resposta a esse conceito respondia a supressão do Palacio del Gobierno e na desaparição

dos armazéns da aduana em todas as partes compreendidas no ângulo visual da Praça e do Rio.

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FIGURAS 29A E 29B: Representações iconográficas presentes no projeto dos italianos que simulam o entorno da praça após a efetivação de sua proposta. FONTE: Moretti, G.; Brizzolara, L. El Monumento a la Revolución de Mayo y a la Independencia Argentina em Buenos Aires, 1914. Academia Nacional de la Historia de la Republica Argentina

Esse processo envolveu uma série de questões que se tornaram centrais para as artes e

para a arquitetura nas primeiras décadas do século XX na Argentina. A proposta do monumento

foi um momento de sintetizar embates que envolveram a criação de uma identidade nacional – a

construção e a afirmação de uma obra de arte de caráter público servia de instrumento de

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propaganda e retórica naquele momento. Cabe aqui também o esclarecimento, pois abordamos

uma obra de arte que ficou restrita à concepção, não tendo sido efetivamente realizada.281 Ainda

assim, compreender e desvelar as nuances e negociações envolvidas no concurso nos permite

verificar o entrelaçamento entre arte e política que está por trás das pretensões para com esse

monumento.

A manipulação da memória se opera por meio de seu caráter seletivo. Nesse propósito,

as comemorações nacionais oferecem pertinentes exemplos já que são objetos de distintos

interesses em jogo – políticos, ideológicos etc. Comemorar, nesse sentido, significa reviver de

maneira coletiva a memória de um acontecimento considerado como um ato fundador –

sacralizando grandes valores e ideais de uma comunidade como objetivo principal. Assim, o

próprio Centenário da Independência buscou celebrar em 1910 aqueles ideais nacionalistas

exaltados na Revolução, que consistiram em objeto de um grande consenso nacional. Privilegiou-

se, nesse processo, a construção narrativa de negação das antigas ligações de dependência com a

Espanha enquanto se reforçava uma ideia de nação autossuficiente. O esquecimento de pontos da

história é significativo e mobilizou distintos discursos em prol de uma narrativa especifica na busca

incentivar uma determinada dinâmica cultural antes, após e durante tais celebrações. Observamos

assim, uma tendência geral de representar ou mesmo imortalizar a lembrança das vitórias celebradas

naquela data reforçando o imaginário coletivo e o orgulho nacional.

As comemorações do primeiro Centenário da Revolución de Mayo envolveram, mesmo

antes de sua realização, uma série de eventos, exposições e mesmo projetos arquitetônicos, sendo

expressão de ressonância de um conjunto retórico dos governantes da época – um conjunto de

valores, ideias e projetos que visavam dar forma a uma identidade nacional assumiram modos

públicos e visíveis para tornarem-se espetáculos e se cristalizarem. Assim, estas expressões

celebram a argentinidade em torno de ideias como modernidade, progresso e civilização buscando

consolidar certo imaginário social e forjar uma narrativa que une a aproxima passado, presente e

futuro. As utilizações sociais da memória se tornam óbvias nesses fenômenos de comemoração

que se impõe como ritos nacionais buscando valores de uma comunidade na rememoração de

acontecimentos passados que atribuem significações diversas para usos no presente. Essa tendência

unificadora, baseada em renegar os conflitos e antagonismos sociais desse processo bem como a

violência desvela uma representação forjada ao longo de tanto tempo que deixou rastros na

memória coletiva.

281 É interessante ainda pensar nas relações estabelecidas pelo concurso já que, apesar do projeto vencedor, não ter se efetivado, o segundo colocado foi materializado posteriormente na Plaza del Congreso.

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O centenário, em toda a América, foi oportunidade de reiterar um passado mítico que

se adaptou às necessidades do momento para fomentar a celebração do progresso, da modernidade

e do próprio futuro imaginado. Estes ideais foram celebrados entusiasmadamente nos centenários

para articular discursos nacionalistas que agregavam valores positivos a ciência nesse ímpeto de

transformação das cidades. Apesar das expressões individualizadas de cada caso, estas ações

também possuem um denominador comum: ocorreram em uma conjuntura propicia para a

cristalização desse passado forjado que permitiu a criação de tais expressões que materializaram a

tradição inventada. Estes feitos representavam adaptação de práticas de construção de identidade

que os países da região vinham tecendo na égide da própria formação nacional.

Essas comemorações e ritos alimentam a história nacional e constroem identidades

que despertam sentimentos de pertencimento. Essa maneira de recordar coletiva se transforma em

espetáculo e exige um lugar para tornar-se pública. A experiência coletiva se constitui nessas

práticas de natureza simbólica que expressam significados e vínculos complexos. Os ritos e práticas

são catalisadores de novas interpretações e realidades e reconfiguram os significados que não são

homogêneos, mas apropriados de distintas maneiras. O caso da Plaza de Mayo e a ritualização da

independência argentina representa, portanto, uma forma de pensar essa relação e questionar estas

práticas que trazem à tona relações de poder que a partir dos ritos definem interpretações que são

feitas do passado a partir do presente.

A própria praça, nesse sentido, aparece como maior expressão da tentativa de formular

uma identidade, pois até mesmo os objetivos de suas transformações estão calcados na sua

importância e representatividade na história argentina – papéis estes que tal projeto buscava reiterar

e consolidar. As escolhas feitas nas alterações no traçado e composição urbana demonstram a

possibilidades de compreender estas atitudes também como políticas e analisar como esta

materialização, como afirma Alan Colquhoun revelando que não só a arquitetura, mas também as

alterações urbanas operam dentro desta lógica. Colquhoun indica que as posições do presente estão

sujeitas a um quadro de referências anterior que ajuda a perceber sua própria configuração

constituindo conceitualmente a arquitetura.282

Ainda cabe notar outro ponto importante do projeto de Moretti desenvolvido em

conjunto com o escultor Luigi Brizzolara: a ideia de um monumento comemorativo que

representasse a Argentina e pudesse, por meio de seus elementos alegóricos, conduzir a uma

reconstituição do passado. Não uma reconstituição qualquer, mas de momentos específicos

282 COLQUHOUN, Alan. Modernidade e tradição clássica: ensaios sobre arquitetura São Paulo: Cosac & Naify, 2002

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seguindo uma premissa de valorização da nacionalidade e, para isso, buscando momentos julgados

como agregadores destes valores. O espaço público seria utilizado, portanto, como espaço

pedagógico para se relatar a história da nação – aquela eternizada em grandes feitos como é o caso

da Independência. O projeto tinha como cerne uma ideia de pátria e liberdade deixando clara que

a escolha destes momentos envolvia uma seleção simbólica, material e, principalmente, ideológica.

O monumento proposto era considerado uma verdadeira alegoria a apoteose da

Independência e foi pensado de maneira a se relacionar diretamente com o espaço circundante.

Sua acentuada verticalidade o transformava em um projeto eloquente e efeito semelhante era

gerado por seus elementos simbólicos como a presença de figuras femininas que representavam a

glória cantando o Hino Nacional. As alegorias de pátria e liberdade se mostram centrais por serem

consideradas mobilizadoras do povo a conquistar sua independência e, por isso, são sacralizadas

de tal maneira no espaço físico que o passado se converte em objeto de devoção: é uma versão da

história nacional que se baseia em um passado específico cristalizado – um passado de heroísmo,

de luta pela pátria – mas, construído no presente para projetar certo triunfo

A obra ganhadora, aparentemente por razões econômicas, nunca se realizou. A dos

artistas belgas, que ocupara o segundo lugar, entretanto, foi levantada na nova praça do Congreso

alguns anos depois. Todo esforço no âmbito nacional e internacional – dinheiro gasto nas etapas,

trabalho para torná-lo público, intrigas produzidas e entusiasmo gerado na população – acabou

servindo apenas para que alguns artistas alcançassem encargos menores. O dinheiro necessário

nunca apareceu a os autores insistiram na sua realização mediante a publicação seguramente

custeada pelos próprios, entretanto tudo foi inútil e a pirâmide continuou ornando a praça.

O debate sobre a função cívica dos monumentos foi amplo e controverso. Os artistas

ocuparam nesse um papel importante. Os monumentos emergem como ferramentas eficazes para

projeto civilizatório e como campanha pedagógico-artística para incluir valores cívicos e artísticos.

O impulso dado ao tema não se deveu apenas a eles, mas a uma elite governante que tinha uma

visão muito clara dos valores que gostariam de reforçar entre virtudes cívicas e patrióticas em um

momento que o conceito de nação precisa ser reiterado. O concurso converteu-se uma disputa de

interesses também econômicos e políticos internacionais. Encará-lo a partir dos jogos políticos e

diplomáticos que se ocultaram por trás da competência dos artistas demonstra este enquanto um

confronto de uma elite intelectual e do Estado nacional a partir da ideia de perpetuar a memória

dos heróis de maio como exemplo às futuras gerações. Os festejos do centenário pareciam

oportunidades perfeitas para reforçar os valores cívicos recorrendo a memória de heróis da

independência.

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Considerações Finais

A análise de cada um dos momentos escolhidos nas duas partes desta dissertação

demonstrou um tipo de estratégia urbana para com o espaço da Plaza de Mayo em busca de reiterar

seus sentidos históricos e seu simbolismo através dos mais distintos recursos. A capitalidade

implicou um programa urbanístico e arquitetônico, pautado na monumentalidade, determinando o

estabelecimento material e, em certo sentido, das referências desse espaço urbano. Essa busca

simbólica permeou o começo do século XX, tendo como mote a comemoração do Centenário da

Independência, em 1910, ocasião ideal para reafirmar tais sentidos e expressá-los em narrativas no

espaço público. As intervenções em Buenos Aires na federalização se pautaram em um papel

pedagógico ao escolher marcos da história para cristalizar no ambiente construído. A Revolución de

Mayo, pelas relações com o processo de independência política da Argentina, foi recuperada por

seus personagens, locais e outros símbolos. Essa retórica foi alimentada até 1910, centenário da

revolução, quando afloraram de modo contundente esses discursos. Evidenciamos na dissertação

as muitas disputas relacionadas a esses pressupostos, bem como a narrativa de valorização desse

passado e sua respectiva expressão na cidade se fazem constantes em muitas das argumentações

analisadas. A capital definia, portanto, uma cidade como lugar de política, cultura, núcleo de

sociabilidade intelectual e produção simbólica, representando o poder que lhe conferiria visibilidade

decorrente da importância política adquirida.

Analisar a configuração da cidade e dos projetos de transformação através do debate

político exige que reconheçamos distintos interesses e atores sociais, evidenciando o lugar

profissional dos agentes especializados envolvidos nesse processo como forma de situar a

produção intelectual em uma rede de relações políticas e sociais. Os referenciais norteadores de sua

formação, a circulação e o debate entre distintas concepções urbanísticas revelam as múltiplas

inserções e inclinações desses agentes por meio de suas escolhas, defesas ou rejeições efetuadas em

campos de atuação profissional e/ou instituições políticas – importantes na consolidação de um

pensamento e de uma prática urbanística. Planos e projetos – cartográficos ou não – buscam

incidir, pensar e modificar o espaço urbano. Os planos e projetos compõem a leitura da cidade

fazendo parte do processo implicado ao pensá-la não somente enquanto forma, mas como

expressão, sendo importantes para a produção do conhecimento e até para a estruturação de

instituições e espaços públicos nesse processo. Seus discursos evidenciam concepções de cidade e

perspectivas de intervenção que estavam proliferando-se nesse período de grandes demandas de

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regulação sobre o urbano. Os planos representam construções de ideias de cidade, expressando

interação entre elementos que evidenciam modos de pensar, intenções e escolhas.

A Plaza de Mayo, praça central da cidade, foi reformada e pensada desde então a partir

dessa chave nacionalista e da ideia de construção simbólica do centro cívico da cidade. O tipo de

estratégia definido para lidar com esse espaço cívico, entretanto, parece ter mudado posteriormente

a partir de um deslocamento de temáticas alcançado pelas disciplinas preocupadas com a questão

urbana que começaram a se alargar abarcando outros espaços da cidade. Acreditamos que até 1910,

os simbolismos presentes na própria data reiteraram uma ideia de arte cívica a partir do espaço

público da praça. Essa ideia não fora, entretanto, completamente abandonada: a Plaza de Mayo

continuou sendo um espaço público considerado relevante no cenário da cidade e em contexto

nacional. Até hoje, muitos projetos continuam a ser pensados para esse espaço principalmente pelo

fato de ter se constituído, ao longo de sua história, como espaço tão representativo: as diversas

apropriações desse espaço tomam forma diariamente a ponto de demandar a recente colocação de

grades de ferro separando as antigas duas praças – no lugar da anterior recova – por receios e

proteção à Casa del Gobierno. Essa atitude parece contraditória com a ideia de que tanto a praça

quanto seus símbolos são pertencentes a todos a nação. Essa ideia parece ter sido acolhida apenas

para aqueles que compartilham do mesmo conjunto referencial e visão de história, buscando uma

ideia nacional pautada pela uniformidade e pela neutralização da diferença. As próprias iniciativas

observadas aqui pareceram concordar com essa ideia ao pautar projetos de âmbito nacional a partir

de visões da história nacional estabelecidas por grupos do poder.

Nos planos iniciais da escrita dessa dissertação o momento do Centenário não figurava

como uma de nossas preocupações. Foi demandado a partir do próprio processo de pesquisa, já

que as outras análises demonstravam a recorrência do discurso sobre a Revolución de Mayo em suas

narrativas e a consequente preocupação com 1910, comemoração da mesma. As reflexões desses

três anos de pesquisa levaram à compreensão de que esse novo momento escolhido compunha

com o momento da federalização um conjunto razoavelmente harmônico de propostas que eram

pensadas em uma mesma direção com relação a cidade e, principalmente, ao nosso objeto, a Plaza

de Mayo. Posteriormente, observamos o aparecimento de uma nova concepção de cidade que se

afasta desse sentido por introduzir uma necessidade de alargamento da estrutura urbana para limites

não explorados.

O Proyecto Orgánico para la organización del Municipio de 1925, inicialmente incluído nessa

proposta de análise, nos ajudou a perceber essa mudança de perspectiva, principalmente em relação

ao tratamento concedido à Plaza de Mayo. Se nas nossas próprias fontes, anteriormente, notava-se

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um claro destaque desse espaço público em relação aos demais, além de sua reiteração anual em

praticamente todos os documentos, esse novo período cronológico demonstrava o aparecimento

de outros espaços e a constante falta de informações sobre essa praça específica enquanto, ao

contrário, proliferavam-se praças no espaço da cidade. O Proyecto demonstrou ultrapassar os

propósitos da dissertação, seja devido à complexidade diante do fio condutor escolhido até então,

seja por colocar em pauta a cidade em uma outra escala. As propostas específicas para a praça

contabilizam cerca de quinze páginas de um projeto que, em sua íntegra, contava com mais de

quatrocentas. Essa pequena porcentagem e a abrangência de diversos outros temas elucidaram a

necessidade de compreender esse objeto não a partir de um único espaço urbano, mas a partir de

suas percepções sobre a cidade, já que suas variadas estratégias envolviam a valorização também

de outros espaços além de trazer à tona novas discussões dentro da perspectiva do urbanismo.

Na verdade, ao longo da pesquisa, o ano de comemoração do Centenário da

Independência emergiu como ponto de inflexão por aparecer nas distintas narrativas como

culminância desse processo de representação nacional, no qual a praça continua ocupando lugar de

destaque, inclusive nas reiteradas comemorações. A antiga Plaza Mayor, então, se transforma em

receptáculo de disputas e modificações que o próprio sistema político imprime a cidade parecendo,

assim, organizar-se como espaço público onde tomam forma as manifestações dos mais

importantes ritos republicanos. A escala simbólica desse espaço acompanha as mudanças que

ele sofre ao longo desses anos e a busca pela monumentalidade altera os anteriores marcos

significativos de uma cidade colonial criando ou modificando aqueles que devem funcionar

para uma nação independente. Para Fernando Aliata, essas modificações se baseiam em duas

operações fundamentais.283 A primeira destas é a eliminação das atividades de mercado naquele

lugar, limitando assim a presença dos setores populares. Além disso, conta também a conversão

desse espaço em equipado para receber as celebrações políticas agora exigidas pelo status adquirido

pela própria cidade.

Na primeira parte deste trabalho, em meio a prolongada polêmica da demolição da

Recova, observamos a primeira intenção destacada pelo autor. Apesar de não termos seguido a

intenção de verificar a presença ou deslocamento de setores populares nesse processo verificamos

a intenção de transformação da praça em um espaço político com novos significados.284 Essa

283 ALIATA, Fernando. La ciudad regular. Arquitectura, programas e instituciones en el Buenos Aires posrevolucionario, 1821-1835. Buenos Aires: Prometeo-UNQ, 2006 284 Aliata destaca, em seu trabalho, a impossibilidade de conciliação de uma nova arquitetura para a praça com as práticas anteriores e, consequentemente, com a presença daqueles que não seriam detentores dos códigos de comportamento adequados para estar naquele lugar que exigia uma nova sociabilidade. Para o autor, portanto, esse

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intenção também responde a uma tendência ligada a resolução de problemas higiênicos e

circulatórios, bastante defendida e que implicaria, necessariamente, na supressão de certas funções

ligadas a espaços urbanos. As funções congregadas na praça até então, representativas de outro

momento de sua história tenderam a modificar-se

A unificação definitiva dos dois espaços, no ano de 1884, deu lugar a uma simbólica

praça de acordo com as ideias de modernidade pretendidas pela Generación del 80. Essa união é

levada a cabo, em meio a embates, por ser vista como forma de celebrar o nascimento da

própria nação argentina, representada simbolicamente naquela praça no coração de sua capital,

como vimos a partir das propostas analisadas aqui. A Recova, havia sido construída para

colaborar com a função comercial da praça, função que já não correspondia à imagem buscada

pelas elites dirigentes que tentavam de evidenciar o aspecto político e representativo da praça.

Evidenciamos nesse trabalho que essas conformações materiais não são, entretanto,

construídas a partir de consenso. Ao contrário, intensas disputas entre grupos e interesses

acabam delimitando, todo o tempo, o que se efetiva ou não na cidade.

O primeiro intendente de Buenos Aires, Torcuato de Alvear, tratado

tradicionalmente pela historiografia como personagem ímpar nesse processo de transformação

da cidade emergiu para nós, durante a pesquisa, com papel diferente. Sua gestão atua a partir

de um processo que já tinha se iniciado confirmando uma tendência e conformando a ideia de

fixar marcos urbanos na memória nacional portenha associando a cidade com a nação, de

maneira cívica e pedagógica – tendência que vai se reafirmar ao menos até o centenário já trinta

anos depois. Retomamos a ideia de Gorelik ao afirmar que esse período a nação reorganizaria

a memória da cidade para configurar de acordo com seu novo status. Essa operação sanciona,

no nível das intervenções na cidade, uma posse já estabelecida em nível legal e que diz respeito

a uma remoção de uma identidade anterior para a construção de um espaço capaz de congregar

a memória do Estado Nacional integrando novos rituais. A praça se estabelece enquanto

cenário de grande carga simbólica pela memória nacional e pela monumentalidade que se

constrói a partir dessa retórica, um espaço urbano que reproduz determinada história para o

conjunto da sociedade que, enquanto país, deve partilhar dessa memória.

Ao eliminar a função comercial da praça com a demolição do edifício da Recova ganhou

destaque a ideia de amplificar o âmbito da praça em consonância com maior densidade de usos

processo envolveu tentativas de expulsão desses grupos indesejáveis para outras áreas da cidade, dinâmica que não foi acompanhada por nós nessa dissertação. Ver: ALIATA, op. cit.

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dados a área central. Essa demolição representou não só a perda de um edifício, mas a ratificação

de uma ideologia que buscava eliminação de formas tidas como atrasadas e buscando outras que

agora representassem a emancipação argentina. A criação desse novo espaço capaz de congregar

novas práticas e ritos, condizentes com a condição de capital e do sistema republicano fica clara

nas demais partes nas quais perseguimos uma trajetória de compreender os artefatos dessa praça e

como estes compõe, em conjunto, uma narrativa nacionalista que tenta uniformizar a cidade por

meio de uma pedagogia cívica. Assim, o repertório simbólico que vai compor a praça deve ser

pensado para condizer com a organização de capital que não se limita ao administrativo mas

envolve expectativas em relação ao novo status adquirido.

Enquanto os debates em torno da Recova culminaram em sua efetiva destruição, a

pirâmide, que também envolveu questionamentos, se manteve fisicamente. A ideia da pedagogia

cívica aqui também se fez presente a partir da criação de monumentos – ou substituição – para

representarem o acontecimento celebrado, a Revolución de Mayo, e consequentemente, o status de

capital de Buenos Aires. A pirâmide, apesar de se manter materialmente na praça, passa a ocupar

um distinto lugar na narrativa. É recuperada enquanto primeiro monumento pátrio buscando um

novo espaço por aqueles que o consideram capaz de congregar as raízes da argentinidade por estar

relacionada com um evento tão significativo da sua história. Os monumentos e suas modificações,

bem como outros artefatos urbanos, evidenciam conflitos políticos e artísticos que caracterizam o

período expressando diferentes formas de pensamento em torno do debate sobre

A Recova demolida não fora o único exemplo desse processo. Ao longo dessa

dissertação citamos outros exemplos de artefatos urbanos que foram envolvidos nesse processo

de criação de referenciais para o novo momento que a cidade passa a viver. A expressão

materializada de certos discursos, que vemos encarnada nos monumentos, edifícios e estátuas que

compõe a cidade transformando sua fisionomia, seguia princípios de grupos hegemônicos tentando

conformar um discurso uniforme. Entretanto, quando analisados com atenção, percebemos nesse

discurso estratégias nada consensuais, apesar de conclamarem perseguir a mesma finalidade. A ideia

da necessidade de representar simbolicamente a nação parece unir diferentes agentes que, apesar

disso, evocam diferentes formas e estratégias para isso.

Nos trinta anos que seguiram a declaração de Buenos Aires como capital federal, foi

adotado um projeto de monumentalização acolhendo representações de personagens e eventos da

história nacional – o que converteu a própria cidade em um espaço de simbolização. A construção

de novos monumentos ou mesmo a reforma e valorização daqueles já existentes correspondeu a

um propósito de estabelecimento de imagens e templos de culto à pátria buscando configurar um

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conjunto referencial – tanto em termos materiais quanto histórico – capaz de mobilizar o

entusiasmo patriótico popular, ou seja, o sentimento de pertencimento a uma nação unificada.

A função cívica desses monumentos envolveu um debate amplo e controverso, como

demonstramos, no qual os diferentes agentes, instituições e órgãos e esferas ocuparam papel

importante. Esses artefatos emergem como ferramentas eficazes de propaganda para um projeto

civilizatório que estava sendo colocado em curso e como campanha pedagógica para incluir na cidade

valores artísticos e cívicos que expressassem a história nacional. Na cidade de Buenos Aires, portanto,

os monumentos comemorativos envolvem a criação de novos espaços simbólicos capazes de sustentar

as ideias de nacionalidade – consagrando-se em elementos visíveis da própria história argentina. Nesse

processo, o Estado exerce um importante papel na busca por homogeneizar a memória selecionado os

feitos sobre os quais o presente da nação deveria se basear. Esse movimento é impulsionado por uma

elite governante que tinha uma visão clara dos valores a reforçar – ainda que não concordassem

sobre os meios – entre atitudes cívicas e patrióticas nesse momento que o conceito de nação

precisava se reafirmar. Esses debates e disputa de interesses vão definindo, paulatinamente, e se

efetivam na materialidade da cidade.

A opção por tratar as transformações urbanas desse período como esforços para sanar

problemas já averiguados desde antes tende a contrariar a ideia defendida por muitos de que a

década de 1880 representa uma grande ruptura na história da cidade. O que identificamos foram

dinâmicas técnicas e transformações institucionais com graus acentuados de continuidade de um

processo que ocorre desde a independência. Optamos, por isso, por tratar as mudanças do período

escolhido sob uma nova chave interpretativa, não desconsiderando as alterações provocadas a

partir da definição da capital. Questionamos, entretanto, a identificação de Alvear como modelo

de intendente e de Buenos Aires, consequentemente, como modelo de cidade – explicações que

foram tradicionalmente vistas como respostas mecânicas para todo esse processo.

Ao optarmos por essa mudança de enfoque, percebemos as diferenças entre gestões

municipais e nacionais sobre a nova condição da cidade. Assim, observamos operações diretas de

outros atores além do intendente – como o presidente da nação e congresso nacional – que também

tem incidência direta nas transformações e na gestão da cidade além da esfera municipal. As

distintas gestões emergem de maneira não linear, mas, ao contrário, simultâneas ou sobrepostas a

partir de diferentes dinâmicas, agentes e órgãos. As visões desses atores sobre a cidade são também

derivadas da própria relação hierárquica que se estabelece entre eles em âmbito político. O espaço

urbano, portanto, se converte em alvo de uma disputa de interesses distintos na qual distintos

agentes interagem. Nesse processo, percebemos um movimento de uma elite intelectual em torno

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do Estado Nacional pautado na ideia de perpetuar a memória dos heróis de maio como exemplo

para as futuras gerações. Em meio a essa ideologia, os festejos do centenário pareciam

oportunidades profícuas para reforçar os valores cívicos recorrendo a memória desses mártires da

independência.

O intendente consagrou-se como uma figura importante na gestão pública

congregando a capacidade de atender a administração municipal e a tentativa de consagrar a

identidade da cidade a partir da ideia nacional. A despeito, entretanto, dos rótulos personalistas

concedidos a ele nesse processo, relativizamos seu papel considerando a cidade em todos os

momentos e, consequentemente, também em sua gestão como um artefato complexo sobre o qual

se sobrepõe interesses de distintas esferas – principalmente nesse momento de reestruturação do

poder público. Destacamos, nesse período, a composição de novas figuras para um espaço que

pretendia-se consagrar-se como novo. Nesse processo, figuras urbanas assumem papel de

corroborar com a necessidade simbólica latente a partir da federalização, reconstruindo uma

memória para, dessa forma, configurar um espaço público já não de cidade, mas de Nação.

Este trabalho partiu da intenção de analisar as mudanças materiais da cidade de Buenos

Aires tendo como foco a Plaza de Mayo e evitando a ideia da evolução material que frequentemente

sustenta esse tipo de análise. A questão capital, com a qual iniciamos esta pesquisa, foi foco de

diversos estudos historiográficos que levaram em consideração seu âmbito político. Escolhemos,

entretanto, seguir uma tendência iniciada por outros trabalhos explorando esse fenômeno a partir

das implicações do universo das ideias em sua conformação material. Essa escolha foi realizada por

considerarmos mais enriquecedor lidar com as continuidades e persistências de forma não linear já

que, em outros tipos de análise essas pareceriam surgir de maneira quase automática como

consequência imediata da superação dos embates que culminou com a federalização.

Seguindo o enfoque adotado evidenciamos nossa crença na existência de relações

diretas e complexas entre formas e ideias relacionadas ao urbano. Os debates em torno da definição

da capital, nosso momento inicial, foi escolhido porque reverbera na história da cidade como um

todo. As transformações pelas quais a cidade passa estão imbricadas, portanto, também daquelas

narrativas que as adjetivam. Compreender como essas se entrelaçam nos permite situar e

problematizar tanto as narrativas e discursos quanto as transformações materiais. Revisitamos o

debate político a partir de suas expressões e conceituações que se interligam com as representações

materiais evidenciando a relação entre cidade e política que nos propusemos a explorar, dissolvendo

a tradicional ideia de que esses campos são estáticos e não relacionáveis.

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