dignidade humana ingo sarlet
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2A Dignidade da Pessoa Humana
2.1
Significado de dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana uma qualidade intrnseca, inseparvel de
todo e qualquer ser humano, caracterstica que o define como tal. Concepo de
que em razo, to somente, de sua condio humana e independentemente dequalquer outra particularidade, o ser humano titular de direitos que devem ser
respeitados pelo Estado e por seus semelhantes. , pois, um predicado tido como
inerente a todos os seres humanos1 e configura-se como um valor prprio que o
identifica. Pode-se trazer baila a viso antropolgica de Leonardo Boff, quando
do ultraje da dignidade:
Nada mais violento que impedir o ser humano de se relacionar com a natureza,
com seus semelhantes, com os mais prximos e queridos, consigo mesmo e comDeus. Significa reduzi-lo a um objeto inanimado e morto. Pela participao, ele setorna responsvel pelo outro e con-cria continuamente o mundo, como um jogo derelaes, como permanente dialogao.2
Carmem Lcia Antunes Rocha, ao comentar o Art. 1 da Declarao dos
Direitos Humanos, o festejado dispositivo que decreta a igualdade de todos os
seres humanos em dignidade e direitos, faz as seguintes consideraes:
Gente tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a sua diferena. Gente nomuda. Muda o invlucro. O miolo, igual. Gente quer ser feliz, tem medos,esperanas e esperas. Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um
jeito nico, s seu. Mas o sofrimento sofrido igual. A alegria, sente-se igual.3
A ausncia de dignidade possibilita a identificao do ser humano como
instrumento, coisa pois viola uma caracterstica prpria e delineadora da prpria
1 SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituioda Repblica de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 22.2
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. F e Poltica: fundamentos. So Paulo: Idias e Letras, 2005.3 ROCHA, Carmem Lcia. Antunes. Direito de Todos e para Todos. Belo Horizonte: EditoraFrum, 2004, p. 13.
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natureza humana. Todo ato que promova o aviltamento da dignidade atinge o
cerne da condio humana, promove a desqualificao do ser humano e fere
tambm o princpio da igualdade, posto que inconcebvel a existncia de maior
dignidade em uns do que em outros. Pode-se valer da explicao de Jos Afonso
da Silva acerca do conceito de dignidade da pessoa humana, a fim de se entender
o significado para alm de qualquer conceituao jurdica, posto que a dignidade
, como dito, condio inerente ao ser humano, atributo que o caracteriza como
tal: A dignidade da pessoa humana no uma criao constitucional, pois ela
um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experincia
especulativa, tal como a prpria pessoa humana.4
A explicao de Jos Afonso da Silva se adere ao entendimento de Ingo
Wolfgang Sarlet ao informar sobre as dificuldades de uma definio precisa e
satisfatria de dignidade da pessoa humana. E como relembra este autor, foi Kant
quem definiu o entendimento de que o homem, por ser pessoa, constitui um fim
em si mesmo e, ento, no pode ser considerado como simples meio, de modo que
a instrumentalizao do ser humano vedada. Tal definio tem inspirado os
pensamentos filosfico e jurdico na modernidade. A dignidade no pode ser
renunciada ou alienada, de tal sorte que no se pode falar na pretenso de uma
pessoa de que lhe seja concedida dignidade, posto que o atributo lhe inerente
dada a prpria condio humana.5
Flvia Povesan, ao discorrer sobre o processo de universalizao dos
direitos humanos esclarece que a formao de um sistema internacional, composto
por tratados, fundado na acolhida da dignidade da pessoa humana como valor
que ilumina o universo de direitos. Convm destacar a concepo da autora em
comento:
todo ser humano tem uma dignidade que lhe inerente, sendo incondicionada, nodependendo de qualquer outro critrio, seno ser humano. O valor da dignidadehumana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteo. Todos os
4 SILVA, Jos Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia.Revista de Direito Administrativo, v. 212, p. 84-94, abr./jun. 1998.5
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. In: LEITE,George Salomo (Org.). Dos Princpios Constitucionais - Consideraes em torno das normasprincipiolgicas da Constituio. So Paulo: Malheiros, 2003.
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tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do Positivismo Jurdico,incorporam o valor da dignidade humana. 6
As vrias tentativas de conceituao de dignidade da pessoa humana se
valem, sobretudo, da etimologia do termo dignitas, que significa respeitabilidade,
prestgio, considerao, estima ou nobreza.7 Para uma elucidao mais completa,
necessrio oferecer uma brevssima explicao sobre a conceituao jurdica de
dignidade e de como a condio intrnseca da pessoa humana foi incorporada a
diversos textos constitucionais contemporneos e fazer, ainda, uma abordagem
sobre a insero da dignidade, enquanto princpio de hierarquia superior, na
Constituio ptria de 1988. Para tanto, entende-se a necessidade de perpassar
uma abordagem da teoria dos princpios.
2.2
Conceituao Jurdica de dignidade da pessoa humana e suaelevao categoria de princpio constitucional
A noo de dignidade da pessoa humana como valor inerente, prprio edeterminante da condio de ser humano remonta ao pensamento clssico e tem
origem ideolgica no pensamento cristo. Pode-se recorrer novamente a Ingo
Wofgang Sarlet, para melhor elucidao:Ao pensamento cristo coube, fundados
na fraternidade, provocar a mudana de mentalidade em direo igualdade dos
seres humanos.8
Pelas concepes filosficas e polticas da Antigidade, constatam-se
situaes de quantificao da dignidade da pessoa humana em virtude da posiosocial ocupada pelo indivduo e, nessa tica, avaliavam-se certas pessoas como
mais dignas e outras como menos dignas.
6 PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e Princpio da Dignidade da Pessoa Humana. In: LEITE,George Salomo (Org.). Dos Princpios Constitucionais: Consideraes em torno das normasprincipiolgicas da Constituio. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 188.7 BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional. Editora Frum: Belo
Horizonte, 2006, p. 105.8SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituioda Repblica de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 24.
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O filsofo Ccero o destaque no pensamento estico para a compreenso
da dignidade em um sentido mais amplo e da dotao em sentido igualitrio da
dignidade em todos os seres humanos. E sob a inspirao dos pensamentos
estico e cristo que na Idade Mdia Santo Toms de Aquino refere-se
expressamente ao termo dignitas humana, pela primeira vez.
Nos sculos XVII e XVIII, quando predominava o pensamento
jusnaturalista, a dignidade era vista como direito natural a partir da premissa da
igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. A concepo Kantiana,
vinculada a uma compreenso da dignidade como qualidade insubstituvel da
pessoa humana a mais expressiva do perodo, como repdio de consideraes
acerca do ser humano que o reduzissem a objeto ou coisa. Kant traa uma
distino entre as coisas no mundo que tm preo e as que, em contraposio, tm
dignidade e vale-se do entendimento de que tudo aquilo que est acima de
qualquer preo e sem possibilidade de substituio dotado de dignidade. Tudo
que digno no permite valorao ou substituio.9
Merece recordar que o advento da Declarao dos Direitos do Homem, em
fins do sculo XVIII, implicou na libertao do ser humano de qualquer tutela e
tinha por escopo a queda dos abusos estatais. Os direitos do Homem eram
considerados inalienveis, irredutveis e indeduzveis, inclusive de outras leis ou
direitos. Foram concebidos como inerentes natureza humana e o Homem surgia
como nico soberano em questes de lei, da mesma forma como o povo era
proclamado como o nico soberano em questes de governo. A declarao
significou o prenncio de que se tinha atingido a maioridade, nas palavras de
Hannah Arendt.10 Em As Origens do Totalitarismo, a filsofa alem faz uma
abordagem do perodo que antecede a Primeira Guerra Mundial e dos que se
seguem ao fim do perodo blico. Explora o que ela chama de nao de minoria etece uma anlise histrica que perpassa a explicao da consumao da
transformao do Estado de instrumento da lei para instrumento da nao. Faz
pensar o ponto em que menciona a situao dos sobreviventes dos campos de
extermnio nazistas, dos refugiados e aptridas que foram tratados como animais
pelo regime de Hitler. E este um dos aspectos para se fazer a correlao com a
9
Ibid., p. 26.10 ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.324.
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perda da dignidade por tantos seres humanos subjugados s condies mais
degradantes de sobrevivncia.
Na esfera jurdica, a primazia da pessoa com fundamento na dignidade
configura-se como resposta crise do Positivismo Jurdico, desencadeada pela
derrota dos nazi-fascistas, uma vez que tais movimentos polticos e militares se
ampararam na legalidade para promover os horrores do holocausto e difundir
prticas de barbrie em nome da lei.11
O resgate da dignidade como valor inerente condio humana, com
tratamento de garantia de direito ocorre com a Declarao de Direitos Humanos
da ONU de 1948. O desfecho da Segunda Guerra Mundial e de momentos
emblemticos na histria da humanidade como o julgamento de Eichman em
Jerusalm, inspirou Arendt (1996) a cunhar a expresso banalidade do mal, com
a finalidade de explicar o comportamento dos algozes do perodo blico. Eles
agiam indiferentes a qualquer juzo tico, o que chama a ateno para a
necessidade irrefutvel, sobretudo, em razo de sua decretao pelas naes
unidas, de impingir valores ticos aos ordenamentos jurdicos.12 A dignidade
passa, ento, a ser reivindicada como princpio e como cerne dos sistemas
jurdicos.
A Declarao Universal introduz, portanto, a concepo atual de direitos
humanos e, pela primeira vez, ocorre a acolhida da dignidade da pessoa humana
como centro orientativo dos direitos13 e fonte de inspirao de textos
constitucionais posteriores: Art. 3 - Todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. So dotados de razo e conscincia de devem agir em
relao uns aos outros com esprito de fraternidade.14
O primeiro momento histrico em que a dignidade da pessoa humana foi
recepcionada como princpio constitucional foi na Carta Constitucional daRepblica Alem de 1949, a seguir reproduzido:Art. 1. (proteo da dignidade
11 PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e Princpio da Dignidade da Pessoa Humana. In: LEITE,George Salomo (Org.). Dos Princpios Constitucionais: Consideraes em torno das normasprincipiolgicas da Constituio. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 188.12 Idem.13 Ibid, p. 187-189.14
Artigo 3 da Declarao Universal de Direitos Humanos de 1948. Disponvel em. Acesso em Fevereiro de 2008.
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da pessoa humana) A dignidade da pessoa humana inviolvel. Todas as
autoridades pblicas tm o dever de a respeitar e proteger.15
Constata-se que a partir do marco histrico do texto constitucional alemo, a
constitucionalizao da dignidade da pessoa humana enquanto princpio arraigou-
se a vrias constituies contemporneas. O direito a uma existncia digna passou
a ser considerado condio indissocivel ao ser humano, como leciona Eugnio
Pacelli de Oliveira:
a partir da Revoluo Francesa (1789) e da Declarao dos Direitos do Homem edo Cidado, no mesmo ano, que os direitos humanos, entendidos como o mnimotico necessrio para a realizao do homem, na sua dignidade humana, reassumemposio de destaque nos estados ocidentais, passando tambm a ocupar oprembulo de diversas ordens constitucionais, como o caso, por exemplo, das
Constituies da Alemanha (Arts. 1 e 19), da ustria (Arts. 9, que recebe asdisposies do Direito Internacional), da Espanha (Art. 1, e arts. 15 ao 29), da dePortugal (Art. 2), sem falar na Constituio da Frana, que incorpora a Declaraodos Direitos do Homem e do Cidado.16
Contudo relevante ressaltar o fato de que os ordenamentos normativos,
obviamente, no concedem dignidade. O que eles fazem apenas o
reconhecimento da dignidade como dado essencial da construo do universo
jurdico. Enquanto princpio constitucional, a dignidade permeia e orienta o
ordenamento que a concebe como fundamento, porm seu significado muito
mais amplo que a conceituao jurdica que venha a ser adotada. A dignidade
prevalece como condio da essncia humana, ainda que um dado sistema jurdico
no a conceba.17
A conceituao de dignidade da pessoa humana no mbito de proteo
jurdico-normativa ainda um pouco inconsistente e motivo de controvrsias. De
outro lado, bem mais pacfico o entendimento e a percepo dos momentos em
que a dignidade agredida, violada, usurpada. Definio na esfera jurdica quemerece destaque de Ingo Wolfgang Sarlet. Para esse autor, dignidade :
Qualidade intrnseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor domesmo respeito e considerao por parte do Estado e da comunidade, implicando,neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
15 SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais naConstituio da Repblica de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 26.16 OLIVEIRA, Eugnio Pacelli de. Processo e Hermenutica na Tutela Penal dos Direitos
Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 12.17 ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O princpio da dignidade da pessoa humana e a exclusosocial.Interesse Pblico, v.1, n. 4, p. 23-48, out-dez, 1999.
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pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, comovenham a lhe garantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel,alm de propiciar e promover sua participao ativa e co-responsvel nos destinosda prpria existncia e da vida em comunho com os demais seres humanos.18
O Direito exerce papel fundamental na proteo e promoo da dignidadehumana, sobretudo, quando cria mecanismos destinados a coibir eventuais
violaes. Ressalte-se novamente que a dignidade no existe apenas onde
reconhecida, posto que um dado prvio. Como expresso da prpria condio
humana, a dignidade pode e deve ser reconhecida e promovida, mas, no pode ser
criada ou concedida.19
O reconhecimento constitucional do princpio constitucional da dignidade
da pessoa humana remete investigao dos conceitos de pessoa, personalidade esujeito de direitos. Segundo Jos Alfredo de Oliveira Baracho20 a pessoa um
prius para o direito, isto , uma categoria ontolgica e moral, no meramente
histrica ou jurdica. E continua o referido autor: pessoa todo indivduo
humano, homem ou mulher, por sua prpria natureza e dignidade, qual o
direito se limita a reconhecer esta condio. Para Baracho21, o conceito de pessoa
e o direito vida so essenciais para explicitar a concepo de direitos humanos e
a internacionalizao dos mesmos e, portanto, para consagrar a dimenso da
dignidade da pessoa humana.
Cristina Queiroz anota que importante elucidar que a determinao do
conceito jurdico-constitucional de dignidade funda o tipo de Estado
constitucional como valor supremo. A autora portuguesa defende ainda que:
Este conceito de dignidade sofreu igualmente uma evoluo. No se refere aoindivduo desenraizado da abstraco contratualista setecentista (teorias docontrato social), mas o ser, na sua dupla dimenso de cidado e pessoa,
inserido numa determinada comunidade, e na sua relao vertical com o Estado eoutros entes pblicos, e horizontal com outros cidados. A idia de indivduono corresponde hoje ao valor (individualista) da independncia, mas ao valor(humanista) da autonomia onde se inclui, por definio, a relao com os outros,isto a sociablilidade. O conceito de pessoa jurdica no constitui hoje somentea partir da bipolaridade Estado/indivduo, antes aponta para um sistema
18 SARLET, Wolfgang Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais naConstituio da Repblica de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 62.19 SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. In: LEITE,George Salomo (Org.). Dos Princpios Constitucionais: Consideraes em torno das normasprincipiolgicas da Constituio. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 203.20
BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional. Editora Frum: BeloHorizonte, 2006, p. 106.21 Idem.
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multipolar no qual as grandes instituies sociais desempenham um papel cadavez mais relevante22 [destaques em itlico e entre aspas no original].
Ainda no esteio do entendimento de Queiroz, mister destacar que a
dignidade da pessoa humana no se apresenta como um conceito vazio de
contedo ou abstrato. um conceito valorativo, um valor constitucional, que se
constitui como o pedestal do ordem jurdico-constitucional. Trata-se de um
conceito, ao mesmo tempo, definidor de norma constitucional e direito
fundamental. A dignidade da pessoa humana deve ser apreciada como conceito de
teor positivo, que remete excluso de sua apreciao em carter ponderativo em
relao a outros bens e princpios constitucionais.23
Pode-se afirmar que a consagrao da dignidade da pessoa humana nos
remete viso do ser humano como a base, o esteio, o eixo principal do universo
jurdico. a dignidade da pessoa humana o princpio fundante do
constitucionalismo contemporneo. a vedao da coisificao do humano, pela
compreenso de que toda pessoa humana digna e, por essa condio singular,
vrios direitos fundamentais so conquistados e declarados com o objetivo de
proteger a pessoa humana de abominveis formas de dominao e
instrumentalizao de sua nsita condio.
O acolhimento do princpio da dignidade na maioria das ordens
constitucionais contemporneas dos Estados que detm a inteno de construir o
Estado Democrtico de Direito, como no caso brasileiro , sem dvida, uma
conquista que inaugura um momento mpar para o Direito, que passa a ser
construdo pelos paradigmas principiolgicos.
Contudo, a consagrao da dignidade enquanto princpio constitucional, na
esfera de proteo jurdica, no est isenta de anlises crticas, tendo em vista as
possibilidades de relativizao no dimensionamento de sua condio normativa.
Com o intuito de exemplificar equvocos normativos justificados com
embasamento no princpio da dignidade da pessoa humana, convm trazer baila
o exemplo brasileiro da edio do Ato Institucional n. 5, no ano de 1968, em
plena poca da ditadura militar os famosos anos de chumbo. O referido
diploma legal inaugurado com consideraes acerca da necessidade de sua
publicao, embasado na defesa de que o regime institucionalizado no pas em
22 QUEIROZ, Cristina.Direitos Fundamentais Sociais. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 19-20.23 Ibid., p. 23-24.
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1964 teve por fundamentos um sistema jurdico e poltico destinado a assegurar a
autntica ordem democrtica, baseada na liberdade e no respeito dignidade da
pessoa humana (grifos nossos). Ora, nada mais contrrio a qualquer concepo
de dignidade da pessoa humana do que um texto normativo que teve por escopo
medidas atentatrias aos direitos fundamentais, como a possibilidade de
suspenso de direitos polticos o que inclua o direito ao voto e de ser votado;
proibio de manifestaes sobre assunto de natureza poltica; aplicao das
chamadas medidas de segurana que incluam a liberdade vigiada, proibio de
freqentar determinados lugares, domiclio determinado; cassao do direito de
habeas corpus em funo do cometimento de crimes polticos, contra a segurana
nacional, a ordem econmica e social e a economia popular.24
A referncia feita no pargrafo anterior sobre o Ato Institucional n. 5 serve
para demonstrar que, s vezes, a dignidade pode ser avocada com o intuito de
justificar e amparar instrumentos para a concesso de poderes absolutos como no
caso do regime autoritrio que vigorava no Brasil poca. Assim, necessrio
informar que o princpio da dignidade no deve ser glamourizado. Ele fonte de
inspirao para concretizar os direitos fundamentais - fundamento da garantia a
existncia digna, mas, nem sempre, os significados mais elementares do que
realmente se possa entender como digno so de fato apreendidos.
Ainda acerca de um posicionamento crtico e de desmistificao do
princpio da dignidade da pessoa humana, convm citar a propsito o
entendimento que de acordo com uma viso teleolgica dos direitos fundamentais
(que so a base de sustento do indigitado princpio, como se apresentar em tpico
posterior) compreende-se que eles esto inseridos em seus prprios contextos
histricos. Coaduna-se com Gisele Cittadino, ao lembrar que s chamadas
tradies no se deve depositar confiana antropolgica, tal como leciona:
As cmaras de gs na Alemanha nazista, as mltiplas formas de violao dadignidade humana nas experincias totalitrias do leste europeu, a tortura e osdesaparecimentos nas ditaduras militares latino-americanas, enquanto prticasocultas sob uma aparente normalidade, aniquilam inteiramente qualquer confiananas tradies e j no possvel uma vida consciente sem desconfiar de toda
24 Ato Institucional n. 5. Disponvel em . Acessoem Fevereiro de 2008.
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continuidade que se afirme indiscutivelmente e que pretenda tambm extrair suavalidade desse seu carter questionvel.25
Destaque-se, a dignidade da pessoa humana princpio fundamental em
termos jurdico-formais. Porm, seus ditames no extravasam do texto
constitucional da Constituio de 1988, a Constituio-Cidad para a realidade
poltico-econmico-social basta que se observe o enorme nmero de excludos e
marginalizados na sociedade brasileira. Infelizmente, no mbito poltico, a
dignidade figura meramente retrica e no se traduz na prtica, haja vista a
insistente inobservncia dos direitos fundamentais para grande parcela da
populao deste pas.26 oportuno trazer baila um processo de desmistificao
da dignidade, posto se tratar de um princpio deveras aclamado, mas sem a
aplicao real que merecia. Como se demonstrar ao longo do trabalho, a
dignidade de fato princpio-norteador e garantidor; o problema no de
enaltecimento de sua categoria principiolgica, mas de sua ineficincia objetiva.
Um prximo tpico para analisar o entendimento doutrinrio acerca da
posio dos princpios na Magna Carta de 1988 de suma importncia para o
entendimento posterior da ntima relao entre o aludido princpio da dignidade
humana e os direitos fundamentais, com vistas a compreender o significado dos
princpios no constitucionalismo contemporneo. Tal proposta visa a
compreender a conexo desses direitos uma vez que para se chegar a um
entendimento sobre a relevncia garantidora da dignidade da pessoa humana em
relao aos outros princpios constitucionais, como os que fizemos opo de
trabalhar: os princpios do contraditrio e da celeridade processual.
25 CITTADINO, Gisele. Princpios Constitucionais, Direitos Fundamentais e Histria. In.PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; FILHO, Firly Nascimento (orgs). OsPrincpios Constitucionais da Constituio de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2006, p. 106.26 QUARESMA, Regina; GUIMARAENS, Francisco. Princpios fundamentais e garantias
constitucionais. In. PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; FILHO, FirlyNascimento (Orgs.). Os Princpios Constitucionais da Constituio de 1988. Rio de Janeiro:Lumen Jris, 2006, p. 468.
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