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A presente sistematiza os resultados de um mapeamento de experiências internacionais de resistência, restrição e proibição ao extrativismo mineral.Em muitos países, disputas em torno da legitimidade dada à prioridade das atividades minerais têm ocorrido e alçado à esfera pública novos valores e visibilizado formas de produção e reprodução social que demonstram que há alternativas à extração insustentável de recursos e à desigualdade ambiental que ela produz quando priva determinados grupos sociais do acesso ao meio ambiente e ao território de que dependem para se reproduzir.Algumas dessas disputas levaram à institucionalização de mecanismos condicionantes, restritivos e/ou proibitórios à extração mineral que podem informar e inspirar processos semelhantes em outros países.

TRANSCRIPT

  • 1a. edio | Rio de Janeiro - 2014

    Julianna Malerba (org.)

    Experincias de resistncia, restrio e proibio

    ao extraiviso ieral

    Bruno Milanez

    Diana Rodrguez Lpez

    Gariela Soto Mara Sert Mansur

    Rodrigo Salles P. Santos

  • Realizao: FASE, NclEo dE EStudoS E PESquiSAS SocioAmbiENtAiS NESA / uFF, PolticA, EcoNomiA, miNErAo, AmbiENtE E SociEdAdE PoEmAS / uFJF / uFF

    TRaduo e Reviso final: Priscila Maia, Julianna Malerba e Joo Paulo MalerbaPRojeTo GRfico e ilusTRaes: Martha WerneckMaPas de enTRadas de caPTulo: Waltencir Menon Junior

    aPoio:

    IBN: ---- EdIo, dE)EmBo dE

  • SUMRIO

    aPResenTao:Ea lIvE dE mINEao: po quE E paa qu? | p. Julianna Malerba INtoduo | p. Bruno Milanez, Gabriela Scotto, Julianna Malerba, Mara Sert Mansur e Rodrigo Salles P. Santos

    agENtINa: la moNtaa IguE EN pIE gacIa a u gENtE | p. Gabriela Scotto

    aRGenTina: MunicPios livRes de fracking | p. Diana Rodrgues Lpes

    pEu: agIcultua x mINEao | p. Mara Sert Mansur

    cota Ica: o vEdadEIo ouo do futuo | p. Bruno Milanez

    Etado uNIdo: Ico amBIENtal, movImENto aNtI-mINEalE opoIo INtItucIoNalI)ada | p. Rodrigo Salles P. Santosanexo: O caso da moratria minerao de urnio na Virgnia | p. fIlIpINa: cattofE amBIENtal, ocIEdadE cIvIlE coalI)o aNtI-mINEal | p. Rodrigo Salles P. Santos anexo: Minerao na Austrlia: explorao no leito marinhoe direitos de populaes tradicionais sobre o territrio | p. Equado: dEIxa o pEtlEo No uBolo | p. Bruno Milanez anexo: Nigria: um Yasun na frica? | p. sobRe os auToRes | p.

  • aPResenTao:reas li6res de minerao: por que e para qu?

    julianna Malerba

    Em setembro de 2010, o governo do estado do Mato Grosso anunciou a descoberta de depsitos de minrio de ferro e fosfato estimados em 11 bilhes de toneladas e 450 milhes de toneladas, respectivamente. O anncio foi comemorado pela Federao da Agricultura e Pecuria de Mato Grosso (FAMATO) e celebrado pelo ento governador Silval Barbosa como o nosso pr-sal2. O Brasil importador de fosfato, um insumo essencial para o agronegcio e a descoberta pode reduzir a dependncia internacional deste minrio. J o minrio de ferro, cuja quantidade estimada equivale reserva de Carajs, no Par, possibilitaria ao Brasil manter o equilbrio na sua balana comercial, conquistada atualmente graas contribuio substancial deste minrio na pauta exportadora, caso se mantenha elevada a demanda interna-cional por minrios.

    As jazidas esto localizadas no municpio de Mirassol DOeste, onde, a despeito do acelerado avano do agronegcio, existem projetos de produo de alimentos por meio de uma economia agrcola familiar. o caso do Assentamento Roseli Nunes, onde 330 famlias vivem e trabalham. Nesse assentamento, um conjunto de famlias ligadas a Associao Regional de Produtores/as Agro-ecolgicos (ARPA) realiza um processo de transio agroecolgica, imple-mentando um modelo alternativo de prticas agrcolas sem o uso de insumos qumicos e agrotxicos. Essas famlias produzem uma diversidade de alimentos livres de agrotxico para sua subsistncia e, desde 2005, tm comercializado o excedente em mercados institucionais regionais atravs do Programa de Aqui-sio de Alimentos (PAA-Conab) do Governo Federal. Em 2010, elas comearam tambm a participar do Programa Nacional de Alimentao Escolar (PNAE), abastecendo com alimentos saudveis as escolas do municpio. Meses de-pois do anncio da descoberta dos minrios em Mirassol, o Instituto Na-

    1 Agradeo aos autores do livro assim como a Vilmon Ferreira, Jean Pierre Leroy e Jorge Eduardo Duro pelos comentrios ao texto.

    2 Conf. Mato Grosso descobre jazida com 11,5 bi t de minrio. Reuters. 01/09/2010. Disponvel em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2010/09/mato-grosso-descobre-jazi-da-com-115-bi-t-de-minerio-6.html

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    Julianna Malerba

    cional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) comunicou aos agricul-tores a possibilidade de desafetao do assentamento para fins de explorao mineral.

    A Constituio Federal de 1988 estabelece no art. 176 que as jazidas e demais recursos minerais constituem propriedade distinta do solo, para efeito de explorao ou aproveitamento e pertencem Unio, a qual pode conceder, no interesse nacional (1, art 176), o direito de pesquisa e explo-tao, garantido ao concessionrio a propriedade do produto da lavra e ao proprietrio do solo a participao no seu resultado.

    O cdigo mineral em vigor prev aos proprietrios e posseiros de ter-ras onde se encontra uma jazida autorizada para pesquisa ou lavra o direito de serem indenizados pelos danos e prejuzos causados pela atividade, assim como uma renda para ocupao dos terrenos (durante o perodo de pesquisa) e uma participao no resultado das lavras. Mas a lei no estabelece a possi-bilidade de recusa por parte dos mesmos de cederem os terrenos para minas e servides que se fizerem necessrias atividade mineral. Pelo contrrio, se no houver acordo com os proprietrios/posseiros quanto aos valores a serem pagos a ttulo de indenizao, ocupao e lavra a lei prev que esses valores sejam avaliados judicialmente e pagos em juzo (art. 27, incisos 6 e 7 do atual Cdigo Mineral/ Decreto Lei 227 de 28 de fevereiro de 1967).

    Por outro lado, o mesmo cdigo mineral estabelece em seu artigo 42 que a autorizao para lavra pode ser recusada se for considerada prejudi-cial ao bem pblico ou comprometer interesses que superem a utilidade da explorao industrial, a juzo do Governo. Entretanto, tem sido recorrente a defesa, dentro do prprio Estado, da prioridade da minerao frente a outras atividades, mesmo aquelas que tambm devem ser exercidas, segundo a Con-stituio, em prol do interesse nacional, como o caso da reforma agrria.

    Vejamos um caso de conflito entre a explorao mineral por um de-tentor de direitos minerrios em mesma rea declarada de interesse social para fins de reforma agrria. Um parecer elaborado pela Procuradoria Geral da Unio relacionado a assuntos minerrios reconhece o conflito de interesse pelo tratamento constitucional que dado a ambas. Porm, argumenta que segundo o art.185, inc.II, da CR/88 as propriedades produtivas so insus-cetveis de desapropriao por interesse social e que embora a lei se refira atividade desenvolvida por empresa rural no h de se olvidar o aproveita-mento advindo da atividade de minerao, uma vez que esta pode subsidiar a permanncia do assentado na terra. Alm de estender minerao conceitos circunscritos atividade agrcola como a categoria de produtividade o parecer tambm argumenta que em funo da

  • ApReSentAO | reas livres de minerao: por que e para qu?

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    [...] rigidez locacional das jazidas minerais, bem como [d]a ex-istncia de direitos minerrios que compreendem a rea inserida na regio que pretende-se a realizao de assentamento, os interesses envolvidos na realizao de reforma agrria devero ser cabalmente contrastados queles decorrentes da atividade minerria pelas auto-ridades administrativas de ambas as autarquias federais envolvidas DNPM e INCRA em exerccio de atividade discricionria informada pelos critrios da oportunidade e convenincia, de forma a se eviden-ciar, in casu, qual das duas atividades ir melhor contribuir para o desenvolvimento nacional na atualidade (DNPM, 2004, grifos meus).

    E conclui: no estando comprovado que a materializao de refor-ma agrria constituiu atividade que est a superar a utilidade da explorao minerria, h de se permitir que o titular da Portaria de Lavra d prossegui-mento s suas atividades de extrao mineral (ibid.).

    Tomando por base esse parecer, os agricultores de Mirassol d Oeste, assentados pela Reforma Agrria depois de um longo processo de reivindi-cao por terra e trabalho, poderiam ser obrigados a ceder suas terras para, segundo o que versa o parecer, dar lugar a uma atividade produtiva que tem como determinante de oportunidade e convenincia sua rigidez locacional. A pergunta que orienta o seu desejo de resistir : afinal, o que est por trs dos critrios que definem a deciso do Estado sobre o que deve ser priorizado no interesse nacional?

    Do ponto de vista da garantia de direitos de cidadania, segurana ali-mentar e da capacidade de gerar bem estar/viver, parece evidente que manter a agricultura familiar, fixar cidados no campo evitando o inchao urbano, produzir alimentos saudveis para alimentar as crianas e jovens das escolas locais e os moradores do municpio tm impacto, no mnimo, mais imediato se comparado extrao de minrios para exportao primria (no caso do minrio de ferro) ou para utilizao em monocultivos de larga escala (no caso do fosfato) igualmente destinados exportao.

    Entretanto, assim como o Assentamento Roseli Nunes, outros espa-os produtivos, e que abrigam bens comuns, esto sendo ameaados pela expanso mineral que o pas tem experimentado na ltima dcada. Na Serra do Gandarela, onde se situa parte das fontes de gua que abastecem Belo Horizonte e sua regio metropolitana, acaba de ser criado um Parque Na-cional. Embora tenha sido proposto pelas comunidades e movimentos lo-cais, sua delimitao deixou de fora os trechos mais significativos da Serra que garantiriam a preservao das ltimas grandes reas de remanescentes do geossistema de cangas ferruginosas da Regio Central de Minas Gerais que protegem e alimentam os aqferos mais importantes para o abastec-imento urbano. Tambm no foi respeitado o pedido de comunidades dos municpios de Santa Brbara e Baro de Cocais de criao de uma Reser-

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    Julianna Malerba

    va de Desenvolvimento Sustentvel (RDS) complementar rea do Parque Nacional nas reas nas quais estas comunidades desenvolvem atividades tradicionais como a apicultura, o manejo de flora e coleta de musgos, in-viabilizando as mesmas e seu modo de vida. O mesmo no foi feito com as reas propostas para outras RDS que so de interesse da mineradora Vale, na poro norte da Serra do Gandarela (Piaco) e Bu, que foram deixadas de fora dos limites do Parque Nacional criado, de modo a poderem ser futura-mente exploradas e explotadas para fim mineral (MOVSAM, 2014).

    A prioridade dada ao aproveitamento dos recursos minerais sobre outros usos dos territrios tem condicionantes que se relacionam sobrema-neira a interesses hegemnicos e poderosos, que no Brasil se expressam:

    i) na capacidade de influncia que interesses corporativos ligado ao setor mineral vem tendo sobre o debate em torno do Novo Cdigo Mineral que resultou na retirada do Projeto de Lei dos dispositivos propostos pelo governo que garantiam maior governana pblica sobre a atividade mineral3.

    ii) na fora poltica que o setor ruralista construiu para si atravs de um permanente processo de interpenetrao no Estado com a participao direta desses setores no aparato estatal (cujo exemplo mais emblemtico a nomeao de Roberto Rodrigues, dirigente da Associao Brasileira de Agro-business/ ABAG, como Ministro da Agricultura no primeiro governo Lula) e no Congresso Nacional4; e

    iii) na manuteno de um modelo de estabilidade macroeconmica determinado por um regime de acumulao financeirizada de capital, onde cumpre um forte papel o pagamento dos juros e amortizaes da dvida pblica, responsveis pela transferncia mdia anual de 100 a 150 bilhes de reais de recursos pblicos para os setores especulativos e financeiros

    3 As duas verses do Substitutivo ao Projeto de Lei N 37/2011 (que antecede o PL N 5.807/2013), propostas pela Cmara apresentam dispositivos que do mais garantias e se-gurana jurdica aos titulares dos direitos minerrios, estimulam a expanso da atividade e diminuem, em relao ao texto anterior, a capacidade do Estado de definir quais minerais e reas devem ser prioritariamente explorados. Um exemplo a excluso da concesso pre-cedida de chamada pblica, que no PL dava fim ao direito de prioridade hoje em vigor. A manuteno da chamada pblica (que no setor energtico ocorre por meio de leiles) pos-sibilitaria maior governana pblica, uma vez que daria ao Estado a capacidade de definir quais minerais e reas devem ser prioritariamente explorados (MALERBA, 2013).

    4 Segundo estimativa da Frente Parlamentar da Agropecuria (FPA), a bancada ruralista na Cmara Federal dever crescer a partir de 2015: dos 191 deputados que formavam a FPA, 139 foram reeleitos e 118 parlamentares eleitos para o primeiro mandato em Braslia tm afinidade com o setor agrcola. Se a adeso for integral, a bancada ruralista pode chegar a 257 dos 513 deputados federais. Conf. Canal Rural. Bancada ruralista ser fortalecida no Congresso Nacional. Disponvel em: http://www.canalrural.com.br/noticias/agricultura/bancada-ruralista-sera-fortalecida-congresso-nacional-7971

  • ApReSentAO | reas livres de minerao: por que e para qu?

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    (CACCIA BAVA, 2013). Em um cenrio de aumento de preos das commodities, a exportao de recursos naturais como minrios, gros, pasta de celulose, etc. sustenta o saldo superavitrio na balana comercial brasileira que ga-rante o equilbrio fiscal necessrio para o pas manter o compromisso com a dvida e com o capital financeirizado. Essa dinmica tambm contribui para a reorganizao da diviso internacional do trabalho, consolidando o papel primrio exportador dos pases da regio.

    A manuteno dos interesses do capital financeiro e agro-minero-industrial responde, em grande medida, ao questionamento dos assentados do Assentamento Roseli Nunes quanto s determinantes dos critrios que tm definido a prioridade das atividades extrativas sobre outros modos de produo social dos territrios.

    Mesmo a rigidez locacional das jazidas minerais, embora em princpio se apresente como um argumento inconteste, no escapa s deter-minantes que atravessam as relaes de poder, to desiguais, de nossa socie-dade, j que a deciso sobre explot-las fundamentalmente poltica.

    Organizaes e movimentos sociais articulados na Rede Brasileira de Justia Ambiental e no Comit em Defesa dos Territrios frente Minerao tm denunciado uma perversa coincidncia` entre o processo de reviso do cdigo mineral e a paralisao dos processos de reconhecimento de direitos territoriais, como a titulao de terras quilombolas. Tal denncia aponta que a lgica poltica que preside a distribuio desigual dos custos ambientais est em vigor no processo de expanso das atividades extrativas no pas. Isso significa dizer que esse processo expansivo no se orienta simplesmente pela descoberta de novas jazidas, mas pelas condies sociais e polticas de explot-las, criadas no campo da poltica. O esvaziamento simblico dos espaos, a desconsiderao ou minimizao dos impactos ambientais ou da existncia de populaes tradicionais nas reas de interesse dos negcios so estratgias que visam esvaziar o debate poltico em torno da deciso sobre os fins que orientam o uso de um determinado recurso natural, ou, em outras pala-vras, para qu e para quem um determinado recurso natural deve ser utilizado.

    Portanto, questionar a implantao de um determinado projeto de extrao mineral quando ele implica o acesso desigual e a concentrao de danos sobre os mais despossudos (de poder poltico, financeiro e informa-cional) no tem nada a ver, como se poderia supor, com a lgica individualista do no no meu quintal. Tais lutas colocam em discusso os processos mui-tas vezes autoritrios de esvaziamento das crticas e de invisibilizao das desigualdades e da diversidade das prticas sociais e sentidos de apropriao do mundo material. E contribuem para democratizar a esfera de debate e al-terar a correlao de foras em torno do projeto de sociedade que orienta as aes do Estado.

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    Julianna Malerba

    Ao mesmo tempo, o carter de prioridade concedido s atividades minerais tambm se sustenta em uma leitura, com tradio no pensamento de parte da esquerda brasileira, que reivindica que os minrios so bens estratgicos para o estabelecimento de um projeto de desenvolvimento so-berano. Sob esse argumento, minerar fosfato para um pas que depende das importaes desse minrio faria sentido. Acontece que o seu beneficiamento atender prioritariamente demanda de um setor que pouco tem contribudo para democratizao da terra e da riqueza no pas, assim como para a diver-sificao da nossa economia.

    Tanto o setor ruralista quanto mineral auferem lucros da exportao primria impulsionada pela prpria dinmica econmica globalizada e fi-nanceirizada e pela atual diviso internacional da produo e do trabalho. E seus interesses orientam a ao do Estado, expressa, por exemplo, no apoio substantivo de crditos ao setor primrio exportador5 e na manuteno de uma taxa de juros elevada, voltada para atender interesses do capital fi-nanceiro. Juros elevados tm impacto negativo sobre o setor industrial, cuja remunerao de capital no alcana os mesmos nveis de rentabilidade do capital financeiro, impossibilitando, portanto, sua reproduo (MILANEZ e SANTOS, 2014).

    Nesse contexto, a resistncia desafetao do assentamento Roseli Nunes assume um papel fundamental ao colocar em debate os critrios que legitimam o que considerado interesse nacional, desnaturalizando e re-significando, de fato, as prioridades que tem orientado a ao do Estado.

    J existem muitas evidncias no Brasil e em vrios pases da regio como Peru e Argentina, para citarmos apenas dois6 de que a minerao em larga escala gera contaminao, devastao e pobreza, e que seus impactos impossibilitam o desenvolvimento de outras atividades econmicas, alm de comprometer as bases materiais necessrias para as geraes futuras.

    Em muitos pases, disputas em torno da legitimidade dada priori-dade das atividades minerais tm ocorrido e alado esfera pblica novos valores e visibilizado formas de produo e reproduo social a exemplo da agroecologia e da agricultura familiar que demonstram que h alternati-vas extrao insustentvel de recursos e desigualdade ambiental que ela

    5 A progressiva ampliao do financiamento e investimento do Banco Nacional de Desen-volvimento Econmico e Social (BNDES) em setores produtores de insumos bsicos na ltima dcada aponta justamente essa tendncia: se, em 2002, 54% da carteira de investimentos do BNDESPar estava voltada para os segmentos de petrleo e gs, minerao e energia, em 2012, esse percentual era de 75% e sobe para 89% se includo os setores de papel, celulose e de alimentos (frigorficos notadamente). (BNDES, Apud MILANEZ, 2012)

    6 Conf. FAUSTINO e FURTADO, 2013 e SVAMPA e ANTONELLI, 2009.

  • ApReSentAO | reas livres de minerao: por que e para qu?

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    produz quando priva comunidades inteiras a exemplo dos assentados de Mirassol d Oeste do acesso ao meio ambiente e ao territrio de que depen-dem para se reproduzir.

    Algumas dessas disputas levaram institucionalizao de mecanis-mos condicionantes, restritivos e/ou proibitrios extrao mineral que po-dem informar e inspirar processos semelhantes em outros territrios.

    A legislao brasileira tem dispositivos que oferecem restries atividade minero extrativa, a exemplo do Sistema Nacional de Unidades de Conservao que delimita reas de proteo integral, como Parques Nacio-nais, onde so proibidas quaisquer atividades que ameacem a preservao da biodiversidade. Embora no estabelea a proibio de atividades minerais, as polticas de reordenamento e reconhecimento territorial criam limitaes minerao ao reafirmar o direito originrio dos povos indgenas sobre suas terras e a propriedade definitiva das terras tradicionalmente ocupadas por populaes quilombolas. Isso porque, de acordo com o que estabelece a Con-veno 169 da Organizao Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil signatrio, os povos indgenas e tribais devem ser consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decises que possam afetar seus direitos, ainda que elas estejam relacionadas explorao de recursos naturais de propriedade do Estado (Arts. 13, 14 e 15).

    Mas esses direitos, alm de estarem na mira dos ruralistas e de setores interessados na ampliao das fronteiras de acumulao7, no pro-

    7 Tramita atualmente no Congresso a Proposta de Emenda Constituio 215/2000 que visa retirar do Executivo a prerrogativa sobre a demarcao das terras indgenas e inclu-la como competncia exclusiva do Legislativo, conferindo-lhe tambm o poder de revisar as demarcaes j homologadas. A essa investida sobre os direitos terri-toriais se somam outras como a Ao de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/2004, que contesta o Decreto n 4.887/03 que regulamenta o procedimento de titulao das terras ocupadas por populaes quilombolas, sustentando a inconstitucionalidade do crit-rio de autoatribuio para identificar e caracterizar as terras a serem reconhecidas a essas comunidades. No mbito do Executivo, a Portaria 303, suspensa por presso dos movimentos sociais, condiciona o usufruto das Terras Indgenas poltica de de-fesa nacional, ficando garantida a entrada e instalao de bases, unidades e postos militares no interior das reservas, assim como a expanso estratgica da malha viria, a explorao de alternativas energticas e de riquezas de cunho estratgico para o pas. Tambm vem ocorrendo um processo permanente de enfraquecimento dos dis-positivos de regulao ambiental. So exemplos as Portarias n. 204, 205 e 206, de 17 de julho de 2008, do Ministrio do Meio Ambiente, que visam acelerar o licenciamento ambiental, reduzindo pela metade os prazos para a concesso das licenas e a Portaria Interministerial 419/2011 que regulamenta a atuao da FUNAI, da Fundao Cultural Palmares, do IPHAN e do Ministrio da Sade, na elaborao de parecer em processo de licenciamento ambiental de competncia federal, limitando os prazos para a manifesta-

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    Julianna Malerba

    tegem outros territrios da expanso em curso da atividade no pas, que j representa mais de 4% do PIB.

    Alm do Assentamento Roseli Nunes e da Serra do Gandarela (MG), ameaada pela minerao de ferro pelo projeto Apolo, da Vale, as resistn-cias contra a expanso da mina Casa de Pedra, da CSN, em Congonhas (MG) e implantao do gigantesco Projeto S11D da Vale, na regio de Carajs, so alguns dos exemplos de contestao social frente expanso mineral.

    Quando, em meados de 2013, um novo projeto de lei foi enviado pelo Executivo ao Legislativo propondo a reviso do atual Cdigo Mineral (Bra-sil, 2013a), um conjunto de organizaes e movimentos sociais se organizou em torno do Comit Nacional em Defesa dos Territrios Frente Minerao (CNDTM) para incidir no processo de debate sobre a nova lei. Uma das deman-das deste coletivo relacionava-se necessidade de que o novo marco regu-latrio considerasse o estabelecimento de reas livres de atividade mineral, que deveriam incluir reas protegidas, bacias de captao de gua, locais de importncia histrica, florestas primrias e territrios onde as atividades econmicas, usos socioprodutivos e culturais sejam incompatveis com a atividade mineradora e os impactos a ela associados8.

    Acompanhando a formao conflituosa de uma arena pblica em torno das atividades extrativas minerais no Brasil, em novembro de 2013 e abril de 2014, foram apresentadas Cmara dos Deputados as duas verses do Substitutivo Preliminar ao Projeto de Lei N 37/2011 (BRASIL, 2013b; 2014), reforando a confluncia dos interesses estatais e empresariais em torno da extrao mineral como prioritria sobre outras formas de uso dos territrios.

    Nesse sentido, o Primeiro e o Segundo Substitutivos ao projeto de lei do Executivo acabaram por dar origem a um conceito de reas livres para a minerao. Sob a premissa de garantir a liberao e acesso a novas reas para a atividade, incluem vrios dispositivos9 que preveem a disponibili-zao obrigatria de reas para a minerao. Tais mudanas limitam a pos-sibilidade de maior governana e planejamento pblico sobre as atividades minerais, j que restringem drasticamente a capacidade do Estado de definir quando e quais reas deveriam ser disponibilizadas para explorao mineral, conforme propunha o Projeto de Lei original.

    o desses rgos.

    8 Confere Texto Base do Comit em Defesa dos Territrios frente minerao, julho de 2013.

    9 Um exemplo o art. 11 que obriga que as reas atualmente sob controle do Centro de Pesquisa em Recursos Minerais/Servio Geolgico do Brasil, autarquia do Estado responsvel pela pesquisa pblica sobre os recursos minerais no pas, sejam colocadas a disposio no prazo de 12 meses). Conf. Projeto de Lei 5.807/2013 (Novo Cdigo de Minerao) apensado ao PL 37/2011. Disponvel em: < http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1101998.pdf>.

  • ApReSentAO | reas livres de minerao: por que e para qu?

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    Alm disso, as verses do Substitutivo ainda propem que o estabe-lecimento de qualquer limitao que possua o potencial de criar impedimentos atividade mineral (o que inclui a criao de reas destinadas tutela de interesses, tais como unidades de conservao, terras indgenas, territrios quilombolas) dependa da anuncia da Agncia Nacional de Minerao, cuja criao est condicionada aprovao do Projeto de Lei10. Essa proposta segu-ramente limitaria as polticas de conservao da biodiversidade e o reconheci-mento de direitos territoriais de populaes tradicionais.

    Portanto, diante das ameaas de retrocesso a direitos adquiridos e da expanso acelerada da minerao sobre novas fronteiras, est posto aos movimentos e organizaes crticas o desafio de acumular subsdios que con-tribuam para disputar o sentido da prioridade dada pelos governos s ativi-dades minerais em relao a outros usos econmicos e culturais dos territrios.

    Em vrios pases da Amrica do Sul, intelectuais e movimentos sociais vm construindo um debate em torno da transio rumo a um modelo econmi-co menos dependente das atividades extrativistas minerais e defendem uma estratgia gradual de transio. Essa estratgia estabelece a internalizao pro-gressiva dos custos socioambientais das atividades extrativas; a reduo da de-pendncia exportadora de recursos, vinculando mais diretamente s atividades a cadeias econmicas nacionais e regionais, e; justamente, a definio de reas livres de explorao mineral em funo da biodiversidade e da manuteno de dinmicas socioprodutivas locais.

    Colher os acmulos dessas experincias na Amrica Latina e ao redor do mundo nos parece fundamental frente aos desafios postos sociedade organizada no Brasil. A presente publicao representa um esforo nesse sentido ao sistematizar um processo de mapeamento de experincias internacionais de resistncia, restrio e proibio ao extrativismo mineral.

    Esperamos que ela constitua uma primeira fonte de sistematizao de experincias bem sucedidas de restrio a processos de implementao e/ou expanso mineral que tm se dado a qualquer custo, sobre a qual seja possvel agregar novos exemplos a fim de contribuir para integrao em nveis nacional e regional dos vrios processos que vm se consolidando localmente.

    Nossa expectativa tambm que ela oferea elementos que alimentem e inspirem o debate no Brasil sobre o estabelecimento de critrios que definiriam reas Livres de Minerao. Critrios esses que estejam vinculados a um com-promisso com a manuteno da base material para a reproduo da popula-o brasileira e mundial no futuro e, por isso, inseridos em uma estratgia de longo prazo.

    10 Idem. Artigo 109

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    Julianna Malerba

    Nesse sentido, os fins que orientam a extrao mineral (atualmente destinada majoritariamente exportao primria) devem ser colocados antes em debate para o estabelecimento de tais critrios, desvelando quais interesses se beneficiam da naturalizao e cristalizao de determinadas prioridades que orientam a ao do Estado e em que direo a defesa desses interesses aponta em termos de sustentabilidade e garantia de direitos.

    efernciasASCELARD, H. O Movimento de justia ambiental e a crtica ao desenvolvimento capitalista perifrico: a desigualdade ambiental como categoria constitutiva da acumulao por espo-liao no Brasil. In: LITTLE, P. et alli. Os novos desafios da poltica ambiental brasileira. Braslia: IEB,2014.

    BRASIL. Projeto de lei n 5.807, de 2013. Braslia: Congresso Nacional. 2013a

    BRASIL. Substitutivo ao Projeto de lei n 37 de 2011. Braslia. 2013b

    BRASIL. Substitutivo ao Projeto de lei n 37 de 2011 e apensos. Braslia. 2014

    CACCIA BAVA, S. O n do desenvolvimento. Le Monde Diplomatique. Edio n. 70, Ano 6, Maio de 2013

    DNPM. Parecer PROGE N 318/2004-CCE. 2004. Disponvel em http://www.dnpm.gov.br/ba/conteudo.asp?IDSecao=321&IDPagina=258

    FAUSTINO, C. e FURTADO, F. Minerao e violao de direitos: o projeto Ferro Carajs S11D, da VALE S.A. Relatrio da misso de investigao e incidncia. Acailandia: Plataforma Dh-esca, 2013.

    MALERBA, J. Anlise do Substitutivo ao Projeto de Lei 5.807/2013 (Novo Cdigo de Minera-o) apensado ao PL 37/2011. Novembro de 2013. (Mimeo)

    MILANEZ, B. O novo marco legal da minerao: contexto, mitos e riscos. In: MALERBA, Juli-anna et alii. Novo Marco legal da minerao no Brasil: Para qu? Para quem? Rio de Janeiro: FASE, 2012

    MILANEZ, B. e SANTOS, R. Neodesenvolvimentismo e neoextrativismo: duas faces da mes-ma moeda? 37 Encontro anual da ANPOCS. 2014 (no prelo).

    MOVSAM. Parque Nacional criado no protege a serra e as guas do Gandarela. 2014. Dis-ponvel em www.aguasdogandarela.org

    SVAMPA, M. e ANTONELLI, M. Minera transnacional, narrativas del desarrollo y resistn-cias sociales. Buenos Aires: Biblos, 2009.

  • inTRoduobruno Milanez

    gariela oto julianna Malerba

    Mara sert MansurRodrigo salles P. santos

    obre a pesquisa e a escolha dos casosA pesquisa foi realizada, essencialmente, a partir de fontes secundrias

    em funo de restries de tempo e recursos, mas se beneficiou, entretanto, de atividades de campo previamente realizadas por alguns dos autores, como nos casos da Argentina e do Peru.

    Dessa maneira, estabelecemos uma forma de comparabilidade entre casos de oposio local s atividades extrativas minerais (particularmente, de grande porte) que configuraram processos sociais mais amplos (em escalas re-gional e/ou nacional) de presso por institucionalizao de formas de restrio e proibio ao extrativismo mineral.

    Para isso, consideramos tanto os diferentes contextos nacionais, in-corporando questes relativas s caractersticas do pas, estrutura dos mer-cados de recursos minerais e seus principais agentes econmicos, alm do marco regulatrio em questo; quanto investigamos em detalhe os principais agentes e demandas, as oportunidades e limitaes e as dinmicas e estrat-gias de contestao social.

    Desse modo, so os processos sociopolticos de resistncia bem-suce-dida que so comparados, em detrimento de caractersticas fsico-geogrficas

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    bruno Milanez, Gabriela Scotto, Julianna Malerba, Mara Sert ManSur e rodriGo SalleS P. SantoS

    e socioeconmicas dos casos, com vistas a prover elementos que subsidiem os processos de resistncia j em curso no Brasil.

    Especificamente sobre os casos, definimos que seis deles seriam con-siderados mais representativos dos processos que resultaram naquilo que pas-samos a conceituar como reas Livres de Minerao.

    Assim, o primeiro deles foi a Argentina, onde a minerao bastante representativa economicamente (8,3% do PIB em 2012) e passou a ser tratada como poltica de Estado a partir de 2004, com o Plano Minero Nacional. As mu-danas no marco regulatrio da minerao, que entre outras coisas passou a permitir a participao de empresas estrangeiras na possesso de concesses e direitos mineiros, remessas de lucros para fora do pas, livre comercializa-o do minrio, regime tributrio favorvel s empresas mineiras e a suspen-so da lei que proibia a minerao de aceder a jazidas nas chamadas Zonas de fronteiras e de segurana, possibilitou a ampla expanso do setor.

    Nesse caso, a oposio construda a partir do projeto da mina Cordn Esquel (da canadense Meridian Gold) na cidade de Esquel foi considerada em-blemtica, tendo originado a Asamblea de Vecinos Autoconvocados (AVA) e re-sultado no referendo e lei municipais que proibiram a minerao metalfera, em 2003. Mais importante foi o efeito multiplicador da oposio, provocando assembleias em 15 provncias, dando origem a inmeras leis similares e, so-bretudo, produzindo um processo de nacionalizao da oposio minerao, atravs da criao da Unin de Asambleas Ciudadanas (UAC) composta por 70 assembleias de base.

    Em um movimento semelhante, que tambm se irradiou em diversas localidades pas afora, a mobilizao contra a utilizao da tcnica conhecida como fracking para extrao de petrleo e gs no convencionais no pas foi igualmente exitosa ao proibir sua utilizao por meio do estabelecimento de leis municipais.

    Os argumentos apresentados para a proibio se referiam condio experimental de utilizao desta tcnica, o que no permitia saber exatamente quais seriam os impactos ambientais e tambm a ausncia de controle por par-te dos municpios e estados provinciais, que j havia gerado inmeros danos ambientais com relao a explotao convencional. Acionando o Princpio da Precauo, os conselhos municipais lograram aprovar ordenanas (leis munici-pais) que proibiram a utilizao do fracking amparados pelo poder atribudo aos municpios pelas leis federais de legislar sobre questes ambientais.

    O grande desafio s ordenanas foi evitar o veto por inconstituciona-lidade, j que, de acordo com o governo e setores empresariais, os municpios estariam legislando em matria de recursos naturais, o que estava expressa-mente proibido, j que estes so de domnio exclusivo das provncias. Isto levou necessidade de gerar e debater a legitimidade dos critrios acionados

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    para a defesa da restrio tcnica, tanto em nvel normativo, como poltico e discursivo. A elaborao de argumentos baseados no direito fundamental de viver em um ambiente saudvel e equilibrado, adequado ao desenvolvimento humano, e na garantia de que atividades produtivas satisfaam as neces-sidades presentes sem comprometer as geraes futuras fizeram prevalecer, na maioria dos casos, o poder de polcia ambiental atribudo aos municpios sobre o direito das provncias de dispor dos recursos minerais revelia dos impactos negativos que sua extrao poderia causar em nvel local.

    O caso do Peru foi considerado em detalhe. A atividade extrativa mineral no pas responde por cerca de 30% das exportaes totais e, como o Brasil, ali se assiste a um processo de expanso acentuada das concesses minerais e dos processos de militarizao, conflitos e violncia estatal em reas de grandes projetos. O sentimento antimineral acabou por produzir uma mirade de tticas de aes diretas, como conferncias, reunies, protestos e manifestaes, no plano geral; mas tambm exibiu casos de enfrentamento violento entre comunidades, empresas e as foras armadas, assumindo, em grande medida, uma feio extralegal. Nesse contexto, o projeto polimetlicos (ouro, cobre e zinco) Tambogrande, da tambm canadense Manhattan Minerals Corp., deu origem a uma onda de protestos populares que tinha como eixo discursivo a impossibilidade de convivncia entre a atividade mineral e a agri-cultura, principal atividade ameaada pela minerao na regio. As respostas autoritrias do Estado provocaram o envolvimento de redes de apoiadores ex-ternos, levando realizao de uma Consulta Vecinal que resultou na cassao do direito de explorao, em 2003. Como na Argentina, seu efeito multiplicador foi significativo, inspirando processos semelhantes em vrias localidades e regies peruanas.

    Na Costa Rica, a despeito do fato da minerao ser uma atividade economicamente irrisria, nos chamou ateno a existncia de uma cultura preservacionista arraigada, elemento mobilizado ativamente no contexto de eventos de contaminao ambiental produzidos por operaes minerais, como no caso da mina Bellavista, em 2007. Neste caso, o projeto da mina de ouro Las Crucitas, da canadense Infinito Gold, cuja licena foi revogada pela Suprema Corte, unificou um processo de oposio to representativo da sociedade civil costa-riquenha que no se restringiam apenas a movimentos ambientalistas, havendo tambm movimentos feministas, camponeses, indgenas, religiosos e organizao de estudantes que resultou na Ley para declarar a Costa Rica Pas Libre de Minera a Cielo Abierto, em 2010.

    O caso dos Estados Unidos da Amrica (EUA) traz contribuies es-pecficas, ainda que significativas. Primeiramente, representa um cenrio na-cional de baixa propenso emergncia de formas resistncia s atividades econmicas em geral. Por sua vez, no que diz respeito minerao, o pas se

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    bruno Milanez, Gabriela Scotto, Julianna Malerba, Mara Sert ManSur e rodriGo SalleS P. SantoS

    caracteriza por uma tradio liberal enraizada, que condiciona as formas de acesso e de controle dos recursos minerais. No entanto, sua elevada descen-tralizao poltico-administrativa, faz das escalas local e regional espaos po-tenciais de estratgias de contestao, nos quais elementos contextuais espe-cficos a tipos de minrio, tecnologias de extrao, configuraes geolgicas, etc. assumem grande importncia.

    Assim, o estado de Wisconsin observou a emergncia de um processo de resistncia relevante nos anos 1990, que se institucionalizou como uma moratria de fato e no de direito da atividade mineral. Nesse exemplo, a formao geolgica estadual, caracterizada pelo predomnio de corpos minerais sulfetados, cuja explorao relacionada ao fenmeno da drenagem cida de mina e a impactos significativos sobre reservas de gua, localizou a noo de risco ambiental no centro da contestao ao projeto Crandon, em 1993. A mobilizao social e poltica acerca do risco em escala local desem-bocou na legislao estadual conhecida como Prove It First, em 1998. Embora no impea legalmente as atividades extrativas no estado, a lei requer que a mineradora requerente do direito apresente evidncias de um nico caso se-guro (ativo ou recuperado) de explorao de sulfetos nos EUA (ou no Canad). De fato, at hoje nenhuma mineradora conseguiu apresentar tais evidncias, e Wisconsin tornou-se uma rea livre de minerao desde ento.

    No que diz respeito s Filipinas, se observa a convivncia de dois processos poltico-econmicos contraditrios nos anos 1990, que vo impac-tar diretamente na emergncia multilocalizada de processos de contestao e resistncia a novos implantes minerais e de nacionalizao de uma coalizo antimineral no pas nos anos 2000. O primeiro processo diz respeito democra-tizao da sociedade filipina, tendo como eixos as polticas de descentraliza-o poltico-administrativa, de um lado, e o reconhecimento dos direitos dos povos indgenas, de outro. O segundo, entretanto, remete promulgao do Ato Mineral de 1995, que liberaliza o controle de operaes de grande porte por parte de companhias mineradoras multinacionais. Desse modo, interesses difusos na sociedade filipina encontraram canais de expresso institucional significativos atravs do Cdigo Governamental Local, de 1991, pouco antes da retomada dos fluxos de investimento direto externo em atividades minerais de grande porte e pouco reguladas ambiental e socialmente.

    A conjugao de tais processos explica, em grande medida, a multipli-cao de conflitos com diversos grupos sociais, particularmente populaes rurais e nativas, apoiadas em diferentes escalas por organizaes populares, ONGs e a Igreja Catlica filipina. Ademais, a ruptura do reservatrio da mina Marcopper, em 1996, episdio convertido ativamente em um modelo da im-plantao e operao da minerao nas Filipinas, fez da noo de desastre ou catstrofe ambiental um elemento-chave de sua contestao social. As princi-

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    pais expresses de tais processos tm, desde ento, assumido as formas insti-tucionais de negao de consentimento, a exemplo do projeto de cobre e ouro Didipio; e de moratrias minerao, como na ilha de Samar, ainda que a mo-bilizao da sociedade civil organizada filipina venha assumindo um carter progressivamente nacional e o carter de coalizo antimineral.

    J o Equador, por sua vez, extremamente dependente da indstria petrolfera, que responde por cerca de 25% do PIB e a 60% das exportaes. Entretanto, a presso social por mudanas levou a uma composio poltica que reconheceu os direitos da natureza e o princpio do bem viver como eixos constitucionais, assim como o tornou um Estado plurinacional. Tais conceitos nascem de uma histria de crtica ao colonialismo que os movimentos no Equador vm acumulando.

    Nesse contexto, foi analisada a Iniciativa Yasun-ITT, que diz respei-to a um imenso jazimento na Amaznia equatoriana correspondente a cerca de 25% das reservas comprovadas do pas, e cuja explorao traria impactos dificilmente calculveis sobre a biodiversidade e sobre povos tradicionais em isolamento voluntrio. Assim, se constituiu um amplo movimento em favor da moratria da extrao petrolfera, tendo por lema deixar o petrleo no subsolo e como horizonte a defesa por uma economia ps-extrativista. Esse movimento conseguiu a institucionalizao da proposta e, em 2007, o governo equatoriano aceitou abrir mo de explorar esse recurso, em troca do investi-mento por parte dos pases do Norte, em um fundo compensatrio cujos recur-sos seriam investidos em polticas sociais e para conservao da biodiversidade. Ainda que o governo Correa tenha autorizado a explorao dos campos ITT em 2013, permanece uma intensa presso para uma consulta popular e assiste-se a uma yasunizao dos debates sobre extrao de recursos naturais no mun-do, a exemplo de campanhas que a sociedade civil vem desenvolvendo na Nigria e Bolvia.

    lies para pensar o BrasilOs aspectos relacionados legislao so muito especficos a cada

    caso, mas o que se percebe de forma ampla que, em cada um deles, a insti-tucionalizao de mecanismos condicionantes, restritivos e/ou proibitrios ao extrativismo mineral constituiu, sempre, uma etapa dentre outras de um longo processo de contestao social.

    Talvez seja desnecessrio apontar que nenhum dos processos teve como etapa inicial a institucionalizao de reas Livres de Minerao. Mesmo onde estratgias de moratria so iniciadas em escala local, como na Argentina, Costa Rica e nos EUA, por exemplo, dois elementos aparecem. O primeiro a existncia de uma estrutura prvia e institucionalizada de reconhecimento de direitos os mais diversos das populaes locais. Mas esse no o mais im-

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    bruno Milanez, Gabriela Scotto, Julianna Malerba, Mara Sert ManSur e rodriGo SalleS P. SantoS

    portante, pois mudanas nessas estruturas so tambm elementos de disputa, como mostra o caso filipino e a prpria realidade brasileira atual. O segundo e, certamente, o mais importante, diz respeito aos movimentos antiminerao que se encontram na base dos processos de contestao social. Foi a partir deles, e de sua relao conflituosa e dinmica com as estratgias das empresas e dos Estados envolvidos que se tornou possvel institucionalizar mecanismos legais que estabelecessem reas Livres de Minerao.

    Nesse sentido, no caso brasileiro o trabalho da Comisso Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento Nacional pela Soberania Popular frente Minera-o (MAM), assim como as atividades do prprio Comit Nacional em Defesa dos Territrios frente Minerao (CNDTM) tm sido fundamentais para dar visibilidade e unificar essas vrias expresses de resistncia em uma coalizo antimineral nacional.

    Da mesma maneira, a enunciao de critrios de justia divergentes daqueles que justificam o extrativismo mineral no plano das aes do Estado e das empresas um elemento fundamental para modificar a relao de foras no plano da luta poltica, a exemplo dos argumentos acionados pelos movimen-tos no Peru, Equador e Filipinas. Tambm a estrutura poltico-administrativa teve influncia no desenvolvimento dos processos em favor da institucionaliza-o de mecanismos de restrio e proibio atividade mineral.

    No entanto, fundamental dizer que a institucionalizao desses mecanismos no certamente a etapa final de nenhum desses processos de contestao social. Em todos eles, a disputa em torno do acesso e do uso dos territrios e de seus bens naturais permanece aberta, de modo que movimen-tos nos mercados de minrios relacionados a preos, depleo de reservas, mudanas tecnolgicas, etc. tendem a produzir influxos de investimento e relaes de cooperao para a abertura de novos espaos para as atividades minerais como vem ocorrendo no Equador.

    As mineradoras so estruturalmente subordinadas abertura con-tnua de tais espaos (dependncia locacional), assim como os Estados, par-ticularmente os latino-americanos, cuja legitimidade poltica vem sendo as-sociada conjunturalmente ampliao da captura da renda mineral e a formas de redistribuio social dessa renda, e que permanecem atados ao pagamento da dvida pblica e a um regime de acumulao financeirizada de capital.

    Desse modo, territrios caracterizados por ampla dotao de recursos minerais esto permanentemente sob ameaa de novas rodadas de reviso dos marcos que regulam direitos sobre bens comuns e naturais e, consequentemente, sob o risco de sua privatizao. No entanto, essa mesma dependncia de em-presas e Estados por esses territrios e recursos que convertem a contestao social do extrativismo mineral em um processo decisivo que vai condicionar e mesmo definir os resultados dessas disputas.

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    O mecanismo das reas Livres de Minerao representa para o re-sultado dessas disputas uma ferramenta de contestao bastante importante ao dar visibilidade s desigualdades que tambm perpassam os embates pela apropriao do meio ambiente e a desigual proteo aos riscos ambientais a que esto submetidos determinados grupos sociais, historicamente vulnerabilizados.

    Tambm aponta certo esgotamento da adeso dos movimentos sociais ao discurso dos governos progressistas da regio, no caso latino-americano, no que se refere necessidade de explorar de forma intensiva os recursos naturais como condio para superao da pobreza e das desigualdades sociais. Em alguns casos, esse questionamento tem resultado em propostas inovadoras do ponto de vista ideolgico, mas tambm prtico a exemplo da proposio no Equador de novos modelos de financiamento para polticas de mudanas climticas e conservao da biodiversidade, em face da crescente presso dos grandes empreendimentos minerais, energticos e agroindustriais.

    Mas as lies aprendidas com os casos estudados nos mostram que essa no pode ser a nica estratgia. Antes de um fim em si mesmo, mecanis-mos de proibio e restrio s atividades minerais representam um dos meios pelos quais a sociedade acumula foras para contestar os rumos do desen-volvimento no pas e disputar um projeto de sociedade contra-hegemnico, comprometido com a sustentabilidade e a democracia.

    efernciasBRASIL. (2013a). Projeto de lei n 5.807, de 2013. Braslia: Congresso Nacional.

    BRASIL. (2013b). Substitutivo ao Projeto de lei n 37 de 2011. Braslia.

    BRASIL. (2014). Substitutivo ao Projeto de lei n 37 de 2011 e apensos. Braslia.

  • aRGenTina: la MonTaa siGue en Pie GRacias a su GenTe

    gariela oto

    apresentao do casoA partir dos anos 1990, assistimos a uma forte expanso do modelo

    mineiro na Argentina, em particular da chamada mega-minerao a cu aber-to, sob o comando de grandes empresas transnacionais. O pas se transforma num importante fornecedor de ouro e cobre; o incremento deve-se generaliza-o da cotao dos metais no mercado global; a condies fiscais e jurdicas que favoreceram a instalao de empresas de minerao, no pas; e ao baixo custo local da extrao (energia, mo de obra e servios). Por sua vez, um amplo conjunto de mudanas no marco regulatrio contribuiu a criar as condies para que a atividade fosse atraente e segura para a radicao das empresas no pas. Dentre as reformas, a da Constituio de 1994 implicou mudanas profundas em relao explorao dos recursos naturais: a) provincializou os recursos naturais (gs, petrleo, minerais), que deixaram de depender da instncia federal para serem explorados; e b) permitiu ao Estado (federal e provincial) renunciar explorao dos mesmos, o que causou a delegao da explorao a mos privadas. Segundo um informe da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal), as reformas no marco regulatrio que garantiram um cenrio de segurana para a captao de investimentos estrangeiros fizeram com que, das sete empresas mineiras que operavam na Argentina no incio dos 1990, aumentasse, em 2007, para 55 firmas estrangei-ras e algumas poucas nacionais (GIARRACA, 2006).

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    Gabriela Scotto

    A brutal expanso da atividade foi acompanhada pela emergncia de conflitos, mobilizaes e protestos contra os empreendimentos mineiros e, em particular, contra a chamada mega-minerao a cu aberto. Como con-sequncia da presso e mobilizao dos movimentos sociais e da populao dos locais ameaados pela minerao, um nmero expressivo de provncias mineiras promulgaram leis que probem e/ou restringem, de uma forma ou outra, a minerao a cu aberto e o uso de substncias contaminantes, como o cianeto e o mercrio.

    No caso de Chubut, provncia marcada pela forte oposio mega-minerao por parte da populao, atualmente existem trs dispositivos le-gais restritivos atividade mineradora. Primeiramente, em abril de 2003 foi promulgada a lei No 5.001, que probe a atividade de minerao de minerais metlicos na modalidade a cu aberto e a utilizao de cianeto nos processos de produo mineira em toda a provncia, referendando o resultado do plebis-cito popular que votou pelo no minerao. Existe ainda um dispositivo de proteo ambiental (amparo ambiental) que mantm interrompida a explora-o de uma mina que era pertencente Meridian Gold. H uma terceira lei que probe qualquer atividade de minerao (incluindo a pesquisa e a prospeco) em toda a faixa da cordilheira, da provncia de Santa Cruz at a provncia de Ro Negro.

    Finalmente, outro importante momento na restrio minerao con-sistiu na aprovao, em 2010, da lei nacional No 26.639 para a preservao dos glaciares e do ambiente periglaciar1. Aps um extenso debate que envolveu uma importante parte da sociedade e uma sesso parlamentar extraordinria de mais de oito horas se logrou a aprovao e sano dessa lei (que tinha sido vetada dois anos antes pela presidente Cristina Kirchner) numa votao acir-rada: 35 votos a favor e 33 contra a aprovao do projeto.

    Em 2014 a situao ainda instvel na medida em que continua ha-vendo uma forte presso por parte das empresas de minerao em favor da liberalizao da explorao das jazidas e dos recursos minerais. Por sua vez, nada parece garantir que leis aprovadas no sejam posteriormente revogadas, o que exige uma constante vigilncia e mobilizao por parte da populao, dos movimentos e dos coletivos que se opem mega-minerao.

    1 O ambiente periglacial a escala regional na Cordilheira dos Andes se desenvolve em regies de alta montanha, associado principalmente ao efeito dessa imensa massa montan-hosa sobre a temperatura, radiao solar e circulao das massas de ar, a escala global. De forma geral, o ambiente periglacial pode ser definido como um ambiente de clima frio, no glacirio, o qual se encontra por cima do limite do bosque, caso ele exista. O ambiente peri-glaciar est caracterizado por: ocorrncia de solo congelado permanente; e predomnio de ciclos de congelamento e descongelamento que afetam s rochas e parte superior do solo. (Fonte: Glaciares de Argentina, disponvel em: , acesso em 20 de junho de 2014.

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    ARgentInA: LA MOntAA SIgUe en pIe gRAcIAS A SU gente

    conTexTo nacional

    . caractersticas do pasA Repblica Argentina o segundo maior pas da Amrica do Sul em

    territrio, com uma extenso de 2.791.810 km2, o que situa o pas no oitavo lugar no mundo, logo atrs da ndia. Dessa extenso, 969.464 km correspon-dem a uma parte do Continente Antrtico. A rea total de fronteiras de 9.376 km, tocando cinco pases vizinhos: Chile, Bolvia, Paraguai, Brasil e Uruguai. A fronteira mais extensa com o Chile (5.150 km), ao longo de toda a Cordilheira dos Andes.

    O pas est constitudo como uma federao de 23 provncias e uma cidade autnoma, Buenos Aires, a capital federal do pas. Cada provncia por sua vez se divide em municpios. Seu regime poltico, como o da maioria dos pases da Amrica Latina, Presidencialista. O presidente e o vice-presidente so eleitos para um mandato de quatro anos, sendo possvel a reeleio por um s perodo consecutivo. A eleio se d em dois turnos, desde que um dos candidatos no obtenha mais de 45% dos votos no primeiro turno. O Poder Legislativo bicameral. A Cmara dos Deputados tem 257 membros eleitos para um mandato de quatro anos, com possibilidade de reeleio (a proporo de um deputado para cada 33.000 habitantes). A cada dois anos a Cmara renova metade da sua composio. J o Senado possui 72 membros eleitos pelas Assembleias Provinciais, sendo trs senadores por provncia e trs pela cidade de Buenos Aires. O mandato de seis anos, renovando-se um tero da bancada a cada dois anos. O Vice-Presidente da Nao o Presi-dente do Congresso.

    Em 2012, estimava-se uma populao de 41.118.986 habitantes. um pas com baixa densidade demogrfica (15 hab/km) e predominantemente urbana (92,6%), muito concentrada na regio denominada Gran Buenos Aires (38,9%). Em relao distribuio geogrfica das reas urbanas, cerca de 50% da populao urbana reside em seis grandes cidades e, aproximadamente, 32% residem em 273 cidades mdias (dos 10.000 at 500.000 habitantes). Por sua vez, a populao rural foi diminuindo gradualmente ao longo das lti-mas dcadas, fundamentalmente pela mecanizao do campo e pelas crises do setor agropecurio.

    Tradicionalmente, a Argentina indicada como um dos pases latino-americanos com melhor nvel de vida. No entanto, devido prolongada crise econmica, poltica e social que assolou o pas em dcadas recentes, os indica-dores sociais sofreram uma notvel deteriorao. Contudo, a Argentina conti-nua podendo ostentar um bom sistema educativo pblico, uma baixa taxa de analfabetismo, entre outros indicadores favorveis. O pas possui um ndice

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    Gabriela Scotto

    de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,811 sendo o segundo no ranking da Amrica do Sul, precedido apenas pelo Chile (UNDP, 2013).

    O Produto Interno Bruto (PIB) do pas, no ano de 2012, foi de US$ 475 bilhes, sendo o PIB per capita, tambm em 2012, estimado em US$ 11.500. A composio do PIB apresenta forte predominncia do setor de servios (60,4%), secundado pela indstria (30,5%). Ao setor primrio (agricultura) corresponde um 9,1% da economia nacional (CIA, 2013). Na base industrial, consideravel-mente diversificada, se destacam os setores de processamento de alimentos, automveis, bens de consumo durveis, txteis, produtos qumicos e petro-qumicos, metalurgia, e siderurgia.

    O setor agrcola fundamentalmente orientado para a exportao; den-tre as principais commodities exportadas encontramos a soja e seus derivados, petrleo e gs natural, milho e trigo. Em 2012, os principais destinos das expor-taes foram Brasil (20,4%), China (7,4%), Chile (6,0%) e EUA (5,2%) (CIA, 2013).

    Desde 2011, aproximadamente, quando se inicia o segundo mandato de Cristina Kirchner, vem se ampliando a interveno estatal na economia. Em maio de 2012, o Congresso aprovou a renacionalizao da companhia petrolfera YPF, em mos da Repsol espanhola; ampliou um conjunto de medi-das para restringir as importaes, incluindo a obrigatoriedade de pr-registro e pr-aprovao de todas as importaes. Em julho daquele ano, tambm, se aprofundaram os controles cambiais, em um esforo para reforar as reservas internacionais e conter a fuga de capitais.

    . agentes econmicos e estrutura do mercadoEmbora seja possvel situar o incio das atividades mineiras tanto as

    de metais como as de minerais no-metlicos na etapa colonial, o surgimento de um setor em escala relevante somente ocorrer no sculo XX, aps o raciona-mento das exportaes de matria-prima por parte dos principais pases euro-peus, durante os perodos de guerras e de crise econmica que atravessaram o continente, entre 1914 e 1945. Para cobrir a demanda no atendida nos setores industriais existentes no pas, se implementou o chamado processo de sub-stituio de importaes. A partir dessa poca, e nesse contexto, se expande a minerao voltada ao fornecimento de insumos, desenvolvida com uma forte presena estatal. O Estado foi o consumidor principal do setor, assim como o protagonista na prospeco e explorao dos minrios. Quanto participao do setor privado, no perodo se ampliou a presena de pequenas e mdias empresas nas exploraes de no-metlicos (TOLN ESTARELLES, 2011, p.10).

    Dcadas mais tarde, aps o perodo das reformas neoliberais dos anos 1990 e a elevada expanso nos investimentos externos, assistimos a um expressivo aumento no desempenho do setor associado, principalmente,

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    ARgentInA: LA MOntAA SIgUe en pIe gRAcIAS A SU gente

    explorao de metais no explorados significativamente at esse momento, tais como cobre, prata e ouro. Na atualidade, o pas ocupa um lugar de de-staque dentre os que possuem as maiores reservas de cobre, ouro, prata, mo-libdnio e urnio. A Argentina tambm possui depsitos de chumbo e zinco; minerais energticos, incluindo gs natural e petrleo bruto; assim como uma grande variedade de minerais com aplicaes industriais, tais como cdmio e ltio (USGS, 2011). At 2010, conforme a avaliao das empresas mineiras, mais da metade das reas potencialmente ricas ainda no teriam sido explora-das (BRUZZONE, 2012, p.15). As principais reas de explorao se localizam na cordilheira de Los Andes.

    Aps o comeo da produo de Bajo de la Alumbrera (em 1997, na provncia de Catamarca: cobre e ouro), Salar del Hombre Muerto (1997, Cata-marca, ltio) e Cerro Vanguardia (1998, Santa Cruz, ouro) iniciada a partir das reformas regulatrias da dcada de 1990, a Argentina comea a participar cres-centemente na exportao de cobre, ouro e de certos minerais no metlicos, como o ltio e os boratos (provenientes da jazida de Loma Blanca, Jujuy, desde 2000). O pas se transforma no nono fornecedor mundial de cobre e no dci-mo-quarto de ouro, e passa a ter a capacidade de abastecer 30% da demanda internacional de ltio (TOLN ESTARELLES, op.cit., p.16). A esses projetos se somaram posteriormente outros, como os de Veladero (San Juan, ouro e prata, iniciado em 2005); Pirquitas (Jujuy, prata, estanho e zinco, reinaugurado em 2009 aps vinte anos de inatividade); El Pachn (San Juan, cobre), Agua Rica Faralln Negro (Catamarca, ouro, cobre e molibdnio, 2012); Potasio Ro Colo-rado (Mendoza, potssio, 2010); Cerro Negro (Santa Cruz, ouro, 2011) e Pascua Lama (San Juan e Chile, ouro e prata).

    A contribuio da minerao ao PIB tem aumentado a cada ano, pelo menos desde 1993, quando foi responsvel por 1,5% do produto argentino. Em 2012, a indstria extrativa mineral foi responsvel por 8,3% do valor total gerado pela produo de bens (em comparao com 8,8% em 2010). O PIB nomi-nal estimado da Argentina cresceu 8,9% em 2011, em comparao com 9,2% em 2010, sendo que o setor de minerao foi responsvel por cerca de 3,1% do PIB (em comparao com 3,3% em 2010) (Wacaster, 2013). A renda mineral argen-tina aumentou de 0,1 % (em 1980) a 0,8 % (em 2011), acompanhando a tendncia mundial (WORLD BANK, 2013).

    Por sua vez, segundo dados da Secretaria de Mineria, as exportaes, que atingiram cerca de um bilho de dlares em 2003, passaram a representar aproximadamente 3,9 bilhesde dlares em 2008, configurando 6% do total das exportaes nacionais (SECRETARIA DE MINERIA, 2009).

    Em 2010 a atividade de minerao recuperada da crise financeira de 2008 registrou um novo recorde histrico, com mais de 730 mil metros de perfuraes em todo o pas 340% a mais do que em 2003, ano em que essa

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    Gabriela Scotto

    atividade comeava a se recuperar e um incremento de 21% acima do l-timo recorde de explorao, alcanado em 2008, de 603 mil metros perfurados (DILOGO DE LOS PUEBLOS, 2011). Porm, tudo indica que em anos recentes o volume de exportaes de minrios vem tendo uma importante queda, sendo que em 2012 o pas chegou a ter um saldo de exportao negativo, despen-cando ao 122 lugar no ranking mundial (ITC, 2014).

    Grfico 1: Evoluo da participao do valor agregado da minerao no PIB total nacional. Em pesos argentinos. Perodo 2002-2011.Fonte: abeceb.com Abril de 2011, extrado de CAEM, 2012.

    Grfico 2: Valor de exportaes do setor mineiro, em milhes de dlares.Fonte: abeceb.com Abril de 2011, extrado de CAEM, 2012.

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    ARgentInA: LA MOntAA SIgUe en pIe gRAcIAS A SU gente

    A expanso do modelo mineiro na Argentina, a partir dos anos 1990, ocorreu sob o comando de grandes empresas transnacionais que chegaram ao pas, atradas pela poltica de investimento estrangeiro, promovida pelo governo2. As empresas do setor contam com a representao da Cmara Argentina de Empresarios Mineros (CAEM).

    De sete empresas mineiras que operavam na Argentina no incio dos 90 pulou-se, em 2007, a 55 firmas estrangeiras e algumas poucas nacionais (GIARRACA, 2006). Segundo um informe da Cepal, isto teria sido devido s re-formas no marco regulatrio que garantiram um cenrio de segurana para a captao de investimentos estrangeiros.

    Tabela 1: Principais empresas produtoras de minerais metlicos

    (excl. metais preciosos) em nvel mundial, segundo valor de

    capitalizao no mercado (Ano 2011)

    2 Entre 1990 e 1997 Argentina incrementou em cerca de 400% os investimentos na explora-o mineira, sendo um dos setores que mais cresceu na ltima dcada (CHRISTLER, 2012).

    Ranking Companhia Origem do capital

    Valor da capitalizao (em USD) Dezembro de 2011

    Principais produtos Valor das vendas (USD). Perodo 2011.

    Part. % em vendas Top 15

    Projetos com participao na Argentina

    1 BHP Billiton Ltd.

    Austrlia 188.017 Ferro, alumnio, cobre, prata, chumbo, zinco, etc.

    72.065 15,6%

    2 Vale S.A.* Brasil 162.500 Minrio de ferro, nquel, cobre, carvo, alumnio, potssio, fosfatos, cobalto, mangans.

    50.100 10,8% Potasio Ro Co-lorado (100%)

    3 Rio Tinto plc Reino Unido

    91.084 Alumnio, cobre, ferro, diamantes, boratos, dixido de titnio, etc.

    56.576 12,2% Tincalayu (100%)

    4 Anglo Ameri-can plc

    Reino Unido

    49.007 Metais do grupo de platino, diamantes, cobre, nquel, ferro e carvo.

    27.960 6,0%

    5 Xstrata plc Sua 44.588 Cobre, zinco, nquel, carvo, ligas de cromo, platino e vandio

    30.499 6,6% La Alumbrera (50%); El Pachn (100%)

    6 Glencore International plc

    Sua 42.240 Metais & minerao (diversiicada)

    144.978 31,3%

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    Gabriela Scotto

    Fonte: abeceb.com Abril de 2011, extrado de CAEM, 2012 Traduo da autora.

    7 Freept-McMo-Ran C&G

    Estados Unidos

    36.400 Cobre, ouro, molibd-nio e cobalto

    18.982 4,1%

    8 Norilsk Nickel Mining and Metallurgical Co.

    Rssia 27.099 Nquel, paldio, platino, cobre e outros

    12.775 2,8%

    9 Southern Copper Corp (Grupo Mxico)

    Estados Unidos

    25.684 Cobre, molibdnio, prata e zinco

    5.150 1,1%

    10 Teck Resour-ces Ltd.

    Canad 20.809 Cobre, carvo, zinco e outros

    9.390 2,0%

    11 Antofagasta plc

    Reino Unido (base en Chile)

    18.645 Cobre e molibdnio 4.577 1,0%

    12 Eurasian Natu-ral Resources Corp Plc

    Reino Unido

    12.738 Minrio de ferro, ferro-ligas, carvo, alumnio, alumina, bauxita, platino, luorita

    6.605 1,4%

    13 Sociedad Minera Cerro Verde SAA

    Peru 12.602 Cobre, ouro e moli-bdnio

    2.369 0,5%

    14 NMDC Li-mited

    ndia 12.018 Principalmente ferro 2.551 0,6%

    15 Aluminum Corporation Of China Limited

    China 11.474 Alumnio 17.954 3,9%

    Top 15 SUBTOTAL - 754.903 Commodities me-tlicas

    462.530 100,0%

    Essa brutal expanso da atividade foi acompanhada pela emergncia de conflitos, mobilizaes e protestos contra os empreendimentos mineiros e, em particular, contra a chamada mega-minerao a cu aberto que emprega substncias txicas e altamente contaminadoras, alm de produzir visveis mod-ificaes na paisagem. Diversos analistas coincidem ao associar as origens do movimento contra a minerao em grande escala a duas experincias de mobi-lizao social: a das populaes vizinhas Minera Alumbrera, em Catamarca; e, fundamentalmente, a mobilizao da populao da localidade de Esquel, na Patagnia (SVAMPA et.al, 2009, p.125). Desde 2003, quando os vizinhos autocon-vocados de Esquel organizaram uma consulta popular na qual vence por 81% dos votos o no minerao txica (resultado que permite obter uma lei estadual que probe a minerao na provncia de Rio Negro), os movimentos de resistncia mega-minerao a cu aberto no param de aumentar.

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    ARgentInA: LA MOntAA SIgUe en pIe gRAcIAS A SU gente

    . marco regulatrioA forma do Estado argentino caracterizada, desde a primeira

    Constituio Nacional, promulgada em 1853, por duas esferas de autoridades soberanas diferenciadas (governos provinciais e o governo federal), pela Corte Suprema de Justicia de la Nacin como rbitro dos conflitos federais, por uma repblica centralizada com um executivo federal forte, mas que permite auto-nomia s provncias.

    O federalismo argentino estabelece que as provncias deleguem al-gumas de suas atribuies ao Governo Federal, assegurando o fortalecimento da forma de Estado, mas mantendo seu prprio governo e suas prprias leis e respeitando a Constituio Nacional. Por essa razo as provncias so consideradas autnomas e independentes. Em 1994, uma reforma constitucio-nal reforou o federalismo argentino e aclarou as bases da relao entre as provncias e a nao, especialmente quanto repartio de receitas fiscais, ao domnio provincial dos recursos naturais, ao poder de tributao e no que concerne ao estabelecimento de polticas de interesse nacional (ANZIT GUER-RERO, 2012). Segundo seu artigo 1, a Nacin Argentina adota para seu governo a forma representativa republicana federal, de forma a garantir a cada provn-cia o gozo e exerccio das suas instituies. Nesse esprito, cada unidade da federao conta com sua Constituio, orientada pelos princpios da Constituio Na-cional, garantindo a sua administrao de justia, seu regime municipal e a educao bsica (ARGENTINA, 1994).

    a eforma constitucional de : o direito ao ambiente sadio e a pro6incializacin dos recursos naturaisUma das novidades da reforma constitucional de 1994 que com ela

    a Argentina consagra expressamente, atravs da sua Constituio, a proteo do meio ambiente. O artigo No. 41 estabelece o direito a um ambiente sadio, equilibrado e apto para o desenvolvimento humano, introduzindo a noo de que as atividades produtivas no devem comprometer as necessidades das geraes futuras.3 Por sua vez, o artigo No. 43 dispe que a ao de amparo

    3 Artigo 41: Todos los habitantes gozan del derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preser-varlo. El dao ambiental generar prioritariamente la obligacin de recomponer, segn lo establezca la Ley. Las autoridades proveern a la proteccin de este derecho, a la utilizacin racional de los recursos naturales, a la preservacin del patrimonio natural y cultural y de la diversidad biolgica, y a la informacin y educacin ambientales.Corresponde a la Nacin dictar las normas que contengan los presupuestos mnimos de proteccin, y a las provincias, las necesarias para complementarlas, sin que aqullas alteren las jurisdicciones locales. Se prohbe el ingreso al territorio nacional de residuos actual o potencialmente peligrosos, y de los radiactivos. (ARGENTINA, 1994).

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    Gabriela Scotto

    poder ser exercida, no que tange aos direitos que protegem o ambiente, por trs categorias de sujeitos: os particulares afetados, o Defensor del Pueblo e as associaes constitudas para a defesa do meio ambiente.

    As diretrizes constitucionais se complementam com a Lei Geral do Ambiente (LGA), que estabelece que a poltica ambiental nacional deve preve-nir os efeitos nocivos ou perigosos que as atividades antrpicas geram sobre o ambiente de forma a garantir a sustentabilidade ecolgica, econmica e social do desenvolvimento. (CHRISTEL, 2012).

    No entanto, a reforma constitucional de 1994 tambm implicou uma mudana profunda em relao explorao dos recursos naturais quando, no ttulo segundo, onde se delimitam as atribuies provinciais, o artigo No. 124 reconhece s provncias o domnio originrio dos recursos naturais existentes no seu territrio. Em outras palavras, a Constituio provincializou o gs natural, o petrleo e os minerais, os quais deixaram de depender da anuncia da instncia federal para serem explorados pelas provncias.4 Por essa razo, o Estado Nacional pressiona as provncias para que estas criem empresas mi-neiras estatais provinciais. Contudo, como as provncias mineiras geralmente no contam com a capacidade para explorar elas mesmas os minrios, acabam dando a concesso de explorao a empresas privadas, majoritariamente es-trangeiras. Um dos resultados, bastante evidente no caso dos hidrocarbone-tos, a assimetria das negociaes entre os governos provinciais e as em-presas, que acabam tendo uma receita (local) anual vrias vezes superior aos oramentos provinciais.

    anos : um no6o marco regulatrio para a mineraoDiversos analistas coincidem ao salientar que as mudanas do marco

    regulatrio da minerao (sancionado nos anos 1990 durante o governo de Carlos Menem (1989-1999) e confirmado nas sucessivas gestes dos Kirchner5) tiveram um papel fundamental na expanso da mega-minerao a cu aberto, no pas.

    Uma das medidas de maior impacto foi a lei No. 24.196, a Lei de Investi-mento para a Atividade Mineira, sancionada pelo Congresso Nacional em maio de 1993. Essa lei, conforme Christel (2012) avalia, foi o pontap inicial de uma srie de mudanas legislativas destinadas a uma reforma do Cdigo de Minerao.6

    4 Embora, vale ressaltar que, logo em seguida, o artigo 126 limita o poder das provncias ao declarar que a elaborao de cdigos (Civil, Comercial, Penal e de Minerao) de exclusiva competncia do Congresso Nacional (CHRISTEL, 2012).

    5 Nstor Kirchner foi presidente de 2003 a 2007; foi sucedido pela sua esposa, Cristina Kirchner (eleita em 2007 e reeleita em 2011).

    6 A Lei 24.196, de 1993, foi um dos instrumentos legais do novo marco regulatrio da min-erao criados para atrair investimentos externos atravs de medidas tais como: garantir o tratamento igual aos capitais nacionais e estrangeiros outorgando s empresas estrangeiras,

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    ARgentInA: LA MOntAA SIgUe en pIe gRAcIAS A SU gente

    Dentre as principais novas leis aprovadas no perodo, se destacam:7

    - Lei Nacional No. 24224 de Reordenamento mineiro (julho de 1993).

    - Lei Nacional No. 24227, que cria a Comisso Bicameral da Minerao (julho de 1993).

    - Lei Nacional No. 24228 de Ratificao do Acordo Federal Mineiro (julho de 1993).

    - Lei Nacional No. 24402: Regime de Financiamento e devoluo ante-cipada do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) (novembro de 1994).

    - Lei Nacional No. 24498: Atualizao do Cdigo de Minerao. Rege os direitos, obrigaes e procedimentos referentes aquisio, explorao e aproveitamento das substncias minerais (julho de 1995).

    - Lei Nacional No. 24585 de Proteo Ambiental para a Atividade Min-eira (novembro de 1995).

    - Lei Nacional No. 25243: Tratado Binacional entre Argentina e Chile de Integrao e Complementao Mineira (julho de 1996 e dezembro de 1997, subscrita por ambos pases).

    - Lei Nacional No. 25161: Valor Boca Mina (outubro de 1999).

    - Lei Nacional No. 25429 de Atividade Mineira II (maio de 2001).

    Esse conjunto de disposies legais definiu um novo marco regu-latrio para a atividade, cujos principais traos so: a) no restrio participa-o de empresas estrangeiras na possesso de concesses e direitos mineiros; b) estabelecimento de garantias para que os investidores possam transferir livremente os ganhos para fora do pas; c) garantia de livre comercializao, interna e externa, dos minerais; d) determinao da vigncia de um regime tributrio estvel de trinta anos a partir da obteno da licena (BRUZZONE, 2012, p.34).

    Igualmente, durante o governo menemista, foi suspensa a lei que proibia a minerao em jazidas nas zonas de fronteiras e de segurana (o que corresponde a uma rea de 150 km de largura nas fronteiras com Chile, Bolvia, Paraguai; assim como de 50 km na costa martima).

    Finalmente, para Christel, outro fato que tambm teria sido de grande importncia para o processo de reestruturao do panorama mineiro argen-

    por exemplo, o direito a transferir para o exterior todos seus lucros; a estabilidade jurdica dos direitos minerrios adquiridos; prioridades para a atividade privada na explorao; des-regulao do regime de concesso; aumento da superfcie de explorao; etc.

    7 Para mais informaes sobre a normativa e o conjunto de leis que regulam a minerao na Argentina, ver Leyes de Minera, disponvel em

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    Gabriela Scotto

    tino foi o Projeto de Assistncia Tcnica para o Desenvolvimento do Setor Mi-neiro Argentino (PASMA). Atravs desse projeto, o Banco Mundial se dedicou a identificar as fragilidades institucionais, reordenar os organismos estatais vinculados minerao de forma a adequ-los aos investimentos estrangeiros e inserir a Argentina nos principais fluxos comerciais internacionais de mi-nrios (DIRECCIN DE MINERIA DE SAN JUAN, s/d).

    O Cdigo de Minerao que no tinha sido quase modificado desde sua criao em 1880 foi reformulado (Lei No. 24498 Actualizacin Minera, de 1995); a partir de ento, foram eliminadas algumas das restries que re-giam desde a poca colonial, como aquelas aplicadas ao tamanho das con-cesses de prospeco e explorao, e se ampliaram os prazos para arrendar e usufruir as minas, etc. (SVAMPA, 2009, p.34; SCOTTO, 2011).

    Esse quadro se completa com o Plano Minero Nacional, lanado em 2004 pelo presidente Nstor Kirchner, que proclama a atividade de minera-o como uma verdadeira alternativa produtiva para o desenvolvimento e a prosperidade das regies mais afastadas dos grandes centros industriais da Repblica Argentina. Os lineamentos do plano so: a) a minerao como polti-ca de Estado; b) a identificao dos cenrios previsveis para os investimen-tos; c) os estmulos ao modelo produtivo nacional; d) a relao entre produo e comunidade; e) a integrao regional; e f) a democratizao da informao pblica.8

    conTesTao social

    . mobilizao contra os impactos da mega-minerao a cu aberto A mega-minerao a cu aberto (exclusivamente realizada por

    grandes empresas transnacionais) tem provocado, desde comeo dos anos 2000, significativas resistncias sociais. Essa forma de minerao causa srios problemas ambientais: ao mesmo tempo em que requer um uso desmesu-rado de recursos, tais como gua e energia, ela produz visveis e profundas mudanas na paisagem e nos territrios. Para retirar os minerais se remove uma grande quantidade de rochas mediante o uso de toneladas de explosivos. A paisagem vai sendo povoada por imensas crateras de at 800 metros de profundidade. Para separar o ouro, por exemplo, se utiliza uma quantidade imensa de cianeto. Por sua vez, o processo consome diariamente centenas de milhares de litros de gua potvel. A gua contaminada com cianeto e metais

    8 Plano Minero Nacional (2004) - Secretaria de Minera / Ministerio de Planificacion Federal, Inversion Publica y Servicios. Disponvel em: . Acesso em: 22 de fevereiro de 2014.

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    ARgentInA: LA MOntAA SIgUe en pIe gRAcIAS A SU gente

    pesados se deposita, ento, em piscines, que costumam romper-se, deixando seu contedo contaminado fluir em direo a rios, crregos e lenis freticos.

    Em 1997, se instala um dos primeiros projetos de minerao a cu aberto (cobre e ouro), o Bajo La Alumbrera,9 em Catamarca. Inicialmente a populao recebe com agrado o projeto, mas o apoio no dura muito e, em 2003, seis anos depois, as resistncias sociais e a mobilizao da populao contra a minerao j so visveis. Nesse percurso, que vai do apoio resistn-cia, possvel identificar os seguintes momentos: 1) a populao pede a cria-o de empregos; 2) reivindica a participao nos lucros da empresa; 3) se mobiliza contra a minerao com substncias txicas.

    Segundo Machado Aroz (2009) houve alguns acontecimentos que contriburam com a virada da populao contra a minerao: sucessivos rup-turas e derrames no mineroduto, parte do projeto; a passividade e conivncia das autoridades provinciais perante os acidentes; as denuncias encaminha-das justia federal pelo diretor de meio ambiente da provncia de Tucumn, de contaminao das aguas causadas pelos derrames; denncias de grupos indgenas locais (comunidade diaguita-calchaqui de Tafi del Valle) sobre des-florestamento, contaminao do ar por radiao, destruio de cemitrios in-dgenas causados pela linha de transmisso eltrica; dentre as principais (op.cit., p.217ss). Um ano depois, um grupo de cientistas consegue comprovar a existncia de infiltraes numa barragem vizinha do empreendimento que pe em risco de contaminao toda a bacia do rio Vis Vis-Amanao.

    Perante esse conjunto de sucessos, a rejeio total minerao a cu aberto ganha as ruas em 2004 e obscurece as posturas que reclamavam por participao nos benefcios obtidos e aumento de controles. Se questionam os impactos ambientais (a destruio e saqueio dos recursos naturais e a contaminao) e os impactos negativos do empreendimento nas economias locais (incompatibilidade da minerao como a agricultura, a criao de gado e o turismo). Essa nova posio, majoritria no movimento social, se expressa atravs de passeatas e manifestaes massivas em diversas cidades da regio (MACHADO AROZ, 2009, p.218). As lutas continuam at o momento e pro-curam obter, junto justia, a paralisao das atividades, assim como uma legislao que proba tanto a minerao de metlicos como a de urnio.10

    9 Para explorar a mina se constitui, como unio transitria de empresas, a Minera Alumbrera Ltd (MACHADO ARAOZ, 2009, p.205).

    10 Para mais informaes sobre o caso Bajo La Alumbrera ver tambm o site No a la Mina, disponvel em: http://www.noalamina.org. Por sua vez La enciclopedia de ciencias y tec-nologas en Argentina tambm uma detalhada e rigorosa fonte de informaes; o caso se encontra disponvel em http://cyt-ar.com.ar/cyt-ar/index.php/Bajo_de_la_Alumbrera.

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    Gabriela Scotto

    . Esquel e o No a la mina: um caso emblemticoExiste consenso de que o ponto inicial das mobilizaes sociais contra

    a mega-minerao se deu a partir dos sucessos obtidos em 2003, na cidade de Esquel (provncia de Chubut), quando 81% dos 30.000 vizinhos11 expressaram sua oposio instalao da mineradora canadense Meridian Gold, atravs de um referendum municipal. (WEINSTOCK, 2006; SVAMPA, 2009; CHRISTEL, 2012 dentre outros). Essa primeira vitria teve um efeito multiplicador e logo as mobilizaes e os protestos contra a mega-minerao se fariam presentes em todo o pas.

    No final do ano de 2000 j circulavam em Esquel os rumores de que uma empresa de minerao pretendia se instalar na rea. Em janeiro de 2001, a comunidade Mapuche Huisca Antieco denunciou que uma empresa de minera-o havia entrado no seu territrio sem respeitar os direitos indgenas. Um ano depois, em julho de 2002, a mineradora Meridian Gold oficializou (com o apoio do governador radical de Chubut e do prefeito peronista de Esquel) a compra das aes da Minera El Desquite S.A e de seus direitos de explorao sobre a mina de ouro e prata Cordn Esquel, localizada a 10 km da cidade.

    Logo, vrios grupos de moradores comearam a se organizar e em out-ubro desse mesmo ano se reuniram na primeira de uma srie de assembleias12 que confluiriam na criao da Asamblea de Vecinos Autoconvocados (AVA) por el No a la Mina.13 Os autoconvocados convocaram uma primeira marcha no dia 24 de novembro de 2002, e para uma segunda, em dezembro, onde partici-param milhares de pessoas sob a palavra de ordem: No a la Mina. Como resulta-do das mobilizaes, o Concejo Deliberante (Cmara de Vereadores) sancionou uma lei municipal proibindo o uso do cianeto, e revogou a adeso municipal s leis nacionais de investimento mineiro e a de reordenamento mineiro e, junto ao Executivo municipal, convocou populao para um referendum. No dia 23 de maro de 2002, 81% da populao votou pelo No a la Mina. Um ms mais

    11 Vizinho (Vecino) uma categoria chave na constituio dos sujeitos sociais que se mobili-zam contra a minerao. Embora poderia traduzir essa noo pela de morador, de uso mais frequente no Brasil, prefiro manter a palavra vizinho por considerar que esta no remete apenas ao local onde se mora, mas o tipo de vnculos e relaes entre os moradores (relaes de vizinhana).

    12 As assembleias cidads (muitas vezes conformadas como assembleias multisetori-ais) so coletivos sociais que surgem, a maioria das vezes espontaneamente, mobilizando pessoas e grupos sociais em torno de alguma questo especfica, emergente. Como forma organizativa, promove a participao direta no intermediada por representantes - nas as-sembleias. Este formato de mobilizao poltica, que emergiu com fora a partir da crise de 2012, vem sendo a modalidade privilegiada pelos movimentos sociais e outras organizaes.

    13 Para entender a grande e rpida mobilizao e apoio nacional que a populao de Esquel conseguiu importante contextualizar o cenrio nacional que, decorrente da crise econmi-ca de 2002, esteve caracterizado por uma importante efervescncia e mobilizao social.

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    tarde, em abril de 2013, se sancionou a lei provincial No. 5.001 que probe a atividade de minerao de metlicos na modalidade a cu aberto e a utilizao de cianeto nos processos de produo mineira.

    O fato teve repercusso miditica de alcance nacional e, como mencio-nado, desencadeou uma onda de mobilizaes pelo pas todo (OCMAL, 2014). Nasceram assembleias em todo o Chubut (Madryn, Rawson, Trelew, Comodoro Rivadavia e, sobretudo, em Gan Gan), onde confluram comunidades indgenas tehuelches e vizinhos (no indgenas) para rejeitar a explorao de prata e chumbo impulsionada pela Pan American Silver.

    Para Christel (2012), a mobilizao de Esquel se transformou num ponto de inflexo para o setor mineiro por trs razes: a) foi o primeiro questionamento social organizado aos projetos mineiros, agregando as populaes vizinhas como um novo sujeito poltico num marco onde at o momento s participavam o Estado e as empresas; b) foi uma mobilizao bem sucedida, convertendo-se numa referncia para diversas assembleias, organizaes, redes e processos de protesto social que surgiram posteriormente, e c) favoreceu e muito a construo da questo mineira como uma problemtica social e ambiental relevante (op. cit., p.9).

    Em 2013, durante as comemoraes pelos dez anos do triunfo do No a la Mina, os cartazes que desfilavam pela rua traziam o dizer: La montaa sigue en pie gracias a su gente.

    . outras estratgias bem sucedidasInspirados nas experincias bem sucedidas dos vizinhos de Esquel e,

    logo depois, no sucesso tambm das mobilizaes na provncia de Catamarca (contra a empresa Minera Alumbrera) emergem resistncias sociais e organiza-es de autoconvocados em mais de quinze provncias que adotam, para de-liberar, o formato de assembleia. As Asambleas de Vecinos Autoconvocados se definem como trabajadores, estudiantes, amas de casa, profesionales, jubi-lados..., personas comunes interesadas en cuidar nuestra tierra. (ASAMBLEA DE LAS HERAS POR EL AGUA, 2014).14

    O caso da provncia de Crdoba apresenta uma estratgia de mobili-zao e presso bem sucedida que desembocou numa das leis mais completas e abrangentes de proibio estadual da minerao: a Lei No. 9.526.

    A assembleia dos vizinhos autoconvocados Ongamira Despierta!, da provncia de Crdoba, surgiu em 2003 como resposta dos moradores da regio de Ongamira e redondezas perante a possibilidade de que se instalas-

    14 Ver pgina da Asamblea de Las Heras por el Agua, Quienes somos disponvel em: http://asambleadelasherasporelagua.weebly.com/iquestquieacutenes-somos.html . Acesso em 20.07.14.

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    Gabriela Scotto

    sem projetos de minerao a cu aberto. Algumas prospeces e levantamen-tos tinham comeado a ser realizados na regio por parte de empresas de minera-o e de pessoal da Secretaria de Mineria da provncia, os quais em face da mobilizao local foram suspensos. No entanto, em 2007, as atividades prvias explorao mineral se fizeram presentes novamente no local e desta vez o movimento popular contra a mega-minerao adquiriu uma grande fora, mo-bilizando praticamente toda a provncia.

    Segundo o relato de Christler (2012), os vizinhos autoconvocados em-preenderam uma srie de aes com atores e aliados diversos (vale a pena destacar a aproximao de advogados, e especialistas da universidade e ONGs que contriburam na elaborao do projeto de lei) muitas delas consistentes em estratgias de dilogo com atores polticos que posteriormente derivariam na sano da lei 9.526. O apelo abertura de canais de dilogo com os poderes polticos foi uma estratgia utilizada desde o comeo da resistncia. Quando comearam os protestos locais, as primeiras exigncias foram dirigidas aos representantes municipais atravs dos quais, entre 2007 e 2008 baseando-se na experincia de Esquel e das provncias argentinas que j contavam com leis antiminerao se sancionaram 14 decretos e resolues municipais proibindo a minerao a cu aberto (CHRISTLER, op.cit).

    . articulando nacionalmente: os autocon6ocados e a unin de asambleas ciudadanas uac Assim, ante os primeiros indcios de consequncias socioambientais

    derivadas de uma nova explorao, os vizinhos afectados comeam a organi-zar as resistncias, agrupados primeiro em pequenas organizaes autocon-vocadas, para logo se articular local e regionalmente at constituir coletivos nacionais de defesa do meio ambiente, contrrios por princpio ao modelo de extrao de recursos minerais (CHRISTEL, p. 9). Foi por esse caminho que em 2003 se constitui a Unin de Asambleas Ciudadanas (UAC) que, em 2009, j contava com setenta assembleias de base nucleadas em torno dela.

    La Unin de Asambleas Ciudadanas (UAC) es un espacio de intercambio, discusin y accin conformado por asambleas, grupos de vecinos auto-

    15 Uma verso anterior deste item encontra-se no texto Scotto, Gabriela (2011) Conflitos sociais, mobilizao poltica e minerao na Amrica Latina: algumas reflexes sobre a consti-tuio de sujeitos coletivos, identidades sociais e representaes sobre a natureza apresen-tado no XXVIII Congresso da Associao Latinoamericana de Sociologia (ALAS). Recife - PE, 6-11 de setembro de 2011. A bibliogrfia prioritria que serviu como fonte nesta reconstituio histrica foi o artigo de Svampa y Bottaro (2009), o de Giarraca (2006) e as pginas web das organizaes, em particular o No a la mina da Asamblea de Vecinos autoconvocados de Esquel por el No a la Mina (http://www.noalamina.org/).

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    ARgentInA: LA MOntAA SIgUe en pIe gRAcIAS A SU gente

    convocados, organizaciones autnomas no partidarias ni vinculadas al aparato estatal y ciudadanos en general reunidos en defensa de los bi-enes comunes, la salud y la autodeterminacin de los pueblos, seriamente amenazados por el saqueo y la contaminacin que el avance de diferentes emprendimientos econmicos van dejando o pretenden dejar a su paso16.

    Em novembro de 2003 se realizou em Buenos Aires o I Encuentro Na-cional de Comunidades Afectadas por la Minera, no qual participaram del-egaes integradas por assembleias de moradores (vecinos), organizaes ambientalistas e funcionrios pblicos municipais de seis provncias do pas. Uma das iniciativas do encontro foi a da conformao da Red de Comunidades Afectadas por la Mineria (Red Cama) com o objetivo de coordenar a luta contra o saque e o ecocdio que conta com o aval da atual legislao mineira.17 A Red Cama desde sua origem como articulao nacional, mesmo no sendo integra-da apenas por grupos ambientalistas, incorpora nas suas prticas discursivas um ecologismo poltico militante e combativo, que v sua misso como a luta pela defesa dos bens comuns da natureza contra o saque e ecocdio por parte das empresas mineiras estrangeiras.

    No entanto, trs anos mais tarde, em 2006, irrompe na cena nacional o conflito em torno da localizao das fbricas de pasta para papel que a em-presa Botnia quer instalar no Uruguai, junto ao rio do mesmo nome, em cujas margens se assenta a cidade argentina de Gualeguaych. Perante o imenso risco de contaminao e a intensa mobilizao da populao contra o projeto, esse caso contribuir ainda mais para ambientalizar os conflitos contra a mega-minerao e percepo da sociedade em geral.

    Uma das representaes sociais que se consolida a partir desse conflito a de que as empresas estrangeiras (com a cumplicidade dos polticos, provin-ciais e nacionais) atingem aos vizinhos do local do empreendimento (vecinos) no apenas pela contaminao das guas e do entorno, mas tambm ao saquea-rem o meio ambiente. Assim, a prpria natureza (no seu carter de patrimnio pblico e coletivo) passa a ser atingida e, na medida em que o movimento se nacionaliza, todos os argentinos se transformam em vtimas das empresas.

    Ao ritmo da grande mobilizao contra Botnia, em julho