diferenças entre crianças monolíngues e multilíngues no desempenho de tarefas de funções...

94
 MARTA HELENA TESSMANN BANDEIRA Diferenças entre crianças monolíngues e multilíngues no desempenho de tarefas de funções executivas e na transferência de padrões de VOT ( Voice Onset Time) entre as plosivas surdas do pomerano, do português e do in glês Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Linguística Aplicada – Aquisição, Variação e Ensino Orientadora: Profª. Drª. Márcia Cristina Zimmer Pelotas Março, 2010 

Upload: geraldo-barbosa-neto

Post on 08-Jan-2016

13 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

crianças

TRANSCRIPT

  • MARTA HELENA TESSMANN BANDEIRA

    Diferenas entre crianas monolngues e multilngues no desempenho de tarefas de funes executivas e na transferncia de padres de VOT (Voice Onset Time) entre as

    plosivas surdas do pomerano, do portugus e do ingls

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Letras da Universidade Catlica de Pelotas como requisito parcial obteno do ttulo

    de Mestre em Letras.

    rea de concentrao: Lingustica Aplicada Aquisio, Variao e Ensino

    Orientadora: Prof. Dr. Mrcia Cristina Zimmer

    Pelotas

    Maro, 2010

  • Noeli, Paulo Renato, Mariana, Pedro e Rodrigo.

  • AGRADECIMENTOS

    professora Dra. Mrcia C. Zimmer, orientadora deste trabalho, pelos seus conhecimentos, sua ateno, confiana e apoio;

    professora Dra. Carmen Matzenauer, coordenadora do Programa de Ps Graduao em Letras da UCPEL, pelo apoio e exemplo de educadora e pesquisadora;

    Aos professores e funcionrios do Programa de Ps Graduao em Letras da UCPEL, pelo apoio e auxlio constantes.

    s Escolas da Rede Municipal de Ensino de Arroio do Padre pelo apoio na seleo de sujeitos desta pesquisa;

    Aos meus alunos e ex-alunos que participaram deste estudo;

    Aos competentes e incansveis colegas e amigos Magnum Rochel, Cntia Avila Blank,

    Sabrine Martins, Sabrina Borella, Liliane Prestes que me deram auxlio precioso no decorrer desta pesquisa;

    Aos meus pais pelo investimento em minha educao e por todo o carinho e pacincia.

    Ao meu esposo Paulo Renato pelo companheirismo e apoio e por acreditar em minhas capacidades e sonhos, meu eterno amor e gratido;

    Aos meus amados filhos, pelo afeto, carinho, preocupao e apoio incondicionais. Pela torcida constante, pelo respeito aos meus sonhos e desejos, e por acreditarem em mim.

  • "Tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo" Herclito, filsofo Grego.

  • RESUMO O municpio de Arroio do Padre RS foi colonizado por imigrantes pomeranos e alemes e caracteriza-se como uma regio geogrfica de acesso relativamente limitado, fato que contribui para que os habitantes desse municpio continuem usando cotidianamente o pomerano e/ou o alemo como sua primeira lngua, fato que enseja o bi e o multilinguismo. Define-se multilngue como algum capaz de se comunicar em trs ou mais lnguas com certo grau de proficincia (BIALYSTOK, 2001). Este trabalho investiga diferenas entre multi e monolngues em tarefas envolvendo a produo de plosivas surdas de trs lnguas e funes executivas verbais e no verbais. Assim, os objetivos so: 1) analisar as diferenas relativas aos padres de VOT em plosivas surdas do ingls produzidas por crianas monolngues e multilngues, cursando a terceira srie numa escola municipal de Arroio do Padre aprendendo a lngua inglesa, em relao ao papel da lngua materna (PB e pomerano, respectivamente); 2) comparar o desempenho, em funes executivas (controle inibitrio e ateno), de crianas mono e multilngues, na acurcia e no tempo de reao de uma tarefa no verbal (tarefa de Simon); 3) verificar as diferenas de desempenho em funes executivas (controle inibitrio e ateno) entre crianas mono e multilngues na acurcia e no tempo de reao de uma tarefa verbal (Stroop test). Para a consecuo do primeiro objetivo, foi utilizado um instrumento de contao de histrias, em trs lnguas (portugus, pomerano e ingls), acompanhado de um jogo que eliciava a produo de palavras-alvo iniciadas pelas consoantes plosivas surdas. Essas palavras foram gravadas em estdio e analisadas acusticamente para que as mdias de VOT produzidas fossem comparadas. Houve grande diferena entre as mdias obtidas por multilngues e monolngues na produo de plosivas do ingls, apontando grande influncia da primeira lngua dos participantes na produo das oclusivas aspiradas do ingls como L3 (no caso dos bi/multilngues) e como L2 (no caso dos monolngues). Para testar as funes executivas, o mesmo grupo de participantes (20 monolngues e 20 bilngues) foi submetido tarefa de Simon e ao teste de Stroop. Foram analisados os resultados do tempo de reao e acurcia em cada uma das tarefas, e encontraram-se diferenas significativas, em todas as condies dos dois testes relativas acurcia, e na maioria das condies, quando se mediu tempo de reao. O resultados, que sugerem que pessoas multilngues desenvolvem os processamentos ligados s funes executivas mais rapidamente e com nveis maiores de acurcia do que monolngues, so discutidos luz do modelo de Controle Inibitrio (GREEN, 1998) e da Teoria dos Sistemas Dinmicos.

  • ABSTRACT

    Arroio do Padre - RS was colonized by German and Pomeranians immigrants and is characterized as a geographic region relatively limited, which contributes to the inhabitants of the city to continue using the daily Pomeranian and / or German as their first language, a fact that gives rise to the bi and multilingualism. A multilingual person is defined as someone who can communicate in three or more languages with some degree of proficiency (Bialystok, 2001). The objectives of this study are: 1) examine the differences in the patterns of VOT in voiceless consonants of English produced by monolingual and multilingual children, attending the third grade in a municipal school in Arroio do Padre learning the English language in relation to the role of language Native (PB & Pomeranian, respectively), 2) compare the performance in executive functions (inhibitory control and attention) of mono-and multilingual children in accuracy and reaction time of a non-verbal task (Simon task) 3 ) to verify the performance differences in executive functions (inhibitory control and attention) between mono-and multilingual children in the accuracy and reaction time of a verbal task (Stroop test). To achieve the first objective, we used a tool for storytelling, in three languages (Portuguese, Pomerania and English), together with a game that would elicit the production of target words initiated by plosive voiceless. These words were recorded in studio and acoustically analyzed for the average VOT produced were compared. There was great difference between the averages for monolingual and multilingual production of plosives in English, indicating strong influence from the first language of the participants in the production of aspirated stops of English as L3 (in the case of bi / multilingual) and as L2 (in the case of monolingual). To test the executive functions, the same group of participants (20 monolingual and bilingual 20) underwent the Simon task and the Stroop test. We analyzed the results of reaction time and accuracy on each task, and found significant differences in all conditions of the two tests of the accuracy, and in most conditions, when measured reaction time. The results, which suggest that people develop the multi-processing related to executive functions faster and with higher levels of accuracy than monolingual, are discussed in light of the inhibitory control model (Green, 1998) and the theory of dynamical systems.

  • QUADROS Quadro 1: Mdias de VOT de falantes monolngues de PB (L1)em PB e ingls (L2)......................................................................................................... 66

  • TABELAS Tabela 1: Taxonomia das teorias do desenvolvimento....................................................... 21 Tabela 2: valores de VOT do ingls, portugus e OstniederDeutsch................................. 49 Tabela 3: Mdias atingidas por monolngues e bilngues na

    Tarefa de Simon..................................................................................................... 70 Tabela 4: Resultados do teste de Stroop realizado em portugus..................................... 74 Tabela 5: Resultado do teste de Stroop realizado em pomerano por falantes de pomerano........................................................................................................ 75 Tabela 6: Comparao do TR e acurcia entre mono/bilngues em sua L1...................... 76

  • LISTA DE FIGURAS Figura 1: Modelo de Competio Unificado de MacWhinney (2007) ............................... 30 Figura 2: Sistema consonantal alemo................................................................................ 45 Figura 3: Representao do vozeamento e da liberao da ocluso.................................. 47 Figura 4: Trs tipos de VOT .............................................................................................. 48 Figura 5: Visualizao parcial de um dos instrumentos usados para a coleta de dados de VOT..................................................................................................................... 55 Figura 6: Jogo da velha........................................................................................................ 56 Figura 7: Esquema representando hemicampos visuais..................................................... 58 Figura 8: Condies laterais em testagens congruentes e incongruentes da Tarefa

    Simon 1 .................................................................................................................. 58 Figura 9: Desenho experimental com todas as condies testadas na tarefa de Simon..... 60 Figura 10: Teste de Stroop no qual as cores representam fielmente as

    palavras correspondentes.......................................................................................... 61 Figura 11: Teste de Stroop na verso incongruente, isto as cores no

    correspondem a sua representao grfica.............................................................. 62 Figura 12: Imagem do Praat, software utilizado para a medio dos padres de VOT...... 64 Figura 13: Grfico com as mdias de VOT dos multilngues............................................. 64 Figura 14: Mdias do VOT em ingls por monolngues e bilngues................................... 65 Figura 15: Mdias de VOT do portugus por falantes multilngues.................................. 68 Figura 16: Espectograma da palavra casa pronunciada por bilngues............................ 68 Figura 17: Mdia do VOT do ingls por falantes multilngues........................................... 69

  • SUMRIO 1 INTRODUO.......................................................................................................... 12

    2 REFERENCIAL TERICO ................................................................................... 15 2.1 Um sistema dinmico: a cognio ................................................................... 15 2.2 Linguagem, cognio e interao social ......................................................... 22 2.3 Conexionismo e linguagem............................................................................... 25 2.4 Bilinguismo e processamento cognitivo .......................................................... 27

    2.4.1 Interao entre linguagem e cognio na aprendizagem da lngua Estrangeira......................................................................................................... 28

    2.4.2 Bi/multilinguismo e funes executivas............................................. ..... 32

    2.4.3 A transferncia no bi/multilinguismo....................................................... 36 2.4.4 O sistema fonolgico do bi/multilngue................................................... 38

    2.5 Os sistemas fonolgicos do portugus brasileiro, do ingls e do pomerano.. 43 2.5.1 O sistema fonolgico do portugus brasileiro........................................... 43 2.5.2 O sistema fonolgico do ingls................................................................. 44 2.5.3 Os sistemas fonolgicos do alemo padro (AP) e do pomerano............. 45

    2.6 A aspirao das plosivas e o VOT..................................................................... 46

    3 OBJETIVOS E MTODO......................................................................................... 51 3.1 Objetivo geral....................................................................................................... 51 3.2 Objetivos especficos........................................................................................... 51 3.3. Hipteses da pesquisa......................................................................................... 51 3.4 Mtodo.................................................................................................................. 52

    3.4.1 Os informantes............................................................................................ 53 3.4.2 Instrumentos de coleta de dados................................................................. 53 3.4.2.1 Entrevista................................................................................................. 53 3.4.2.2 Termo de consentimento......................................................................... 54 3.4.2.3 Instrumento de medio do VOT............................................................ 54 3.4.2.4 A tarefa de Simon (Simon Task)............................................................. 57 3.4.2.5 Teste de Stroop (Stroop Test).................................................................. 60

    4 ANLISE DOS DADOS E DISCUSSO DOS RESULTADOS........................... 63

  • 4.1 Resultados relativos primeira hiptese.............................................................. 63 4.1.1 Descrio dos resultados relativos primeira hiptese............................ 63 4.1.2 Discusso dos resultados relativos primeira hiptese............................ 66 4.2 Resultados relativos segunda hiptese................................................................ 69

    4.2.1 Descrio dos resultados relativos segunda hiptese.............................. 70 4.2.2 Discusso dos resultados relativos segunda hiptese.............................. 72

    4.3 Resultados referentes terceira hiptese............................................................... 74 4.3.1 Descrio dos resultados relativos terceira hiptese............................... 74 4.3.2 Discusso dos resultados relativos terceira hiptese............................... 76

    5 CONSIDRAES FINAIS........................................................................................... 78 5.1 Relao entre os resultados obtidos na discusso dos trs objetivos da pesquisa..................................................................................................................... 78 5.2 Limitaes do estudo e futuros direcionamentos para a pesquisa em L3...... 79

    6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................................... 81

    7 ANEXOS...................................................................................................................... 88 Anexo 1 Termo de Consentimento ............................................................................ 89 Anexo 2 - Entrevista ..................................................................................................... 90 Anexo 3 Lista de figuras e palavras alvo utilizadas no instrumento de coleta de dados de VOT............................................................................................................. 91

  • 12

    1 INTRODUO

    Durante quatro anos de trabalho como professora de Lngua inglesa no municpio de Arroio do Padre, sempre foi intrigante o processo de aquisio da lngua portuguesa e inglesa pelas crianas que chegam at a escola falando apenas pomerano. O municpio de Arroio do Padre RS foi colonizado por imigrantes pomeranos e alemes e caracteriza-se como uma regio geogrfica de acesso relativamente limitado, na zona rural, fato que contribui para que os habitantes desse municpio continuem usando cotidianamente o pomerano e/ou o alemo como sua primeira lngua.

    A imigrao pomerana na regio de Pelotas iniciou ao sul do rio Camaqu, na Serra dos Tapes, interior do municpio de Pelotas, pela necessidade de ocupar essa rea com pessoas dedicadas s atividades agrcolas, entre as quais predominavam os portugueses de origem continental e aoriana.

    Segundo Coaracy (1957), a Pomernia, palavra que, em polons, significa pas ao longo do mar, situava-se ao longo de toda a costa meridional do mar Bltico e entre os rios Oder e Vstula. Era uma regio de grandes latifndios, onde pequenos agricultores, em condies miserveis, produziam como agregados dos bares, proprietrios da terra. Na Idade Mdia, foi habitada por tribos eslavas, substitudas pelos germanos, formando repblicas de mercadores ou dinastias de cls. Otto de Bamberg, de 1124 a 1128, iniciou a evangelizao desse povo. Em 1231, a Pomernia, de Oder, tornou-se um feudo de Brandeburgo, que a germanizou completamente. Repartida, em 1620, entre a Sucia e Brandeburgo, ela retornou na maior parte de seu territrio ao reino da Prssia em 1720 e depois definitivamente em 1815. Em 1772, Frederico da Prssia apoderou-se da Pomernia Vistuliana.

    A Pomernia, como um todo, fazia parte do imprio Prussiano poca da imigrao pomerana para o sul do Brasil. O Brasil atraa os imigrantes porque representava a possibilidade de um futuro tranquilo e prspero. A colnia do interior de Pelotas hoje Arroio do Padre foi organizada por Jacob Rheingantz em 1858. Os pomeranos dessa regio mantiveram suas tradies, uma vez que, em decorrncia da predominncia luso-brasileira, ficaram fortemente fechados em suas comunidades, cristalizando a sua cultura, sem deixar que a influncia das outras etnias a penetrassem. Com isso, ainda hoje preserva plenamente sua lngua de migrao1 o pomerano.

    1 Lngua de migrao aquela que foi trazida pelos seus falantes durante o perodo de imigrao e que

    se mantm apenas nesse determinado grupo de pessoas, deixando de existir no seu pas de origem.

  • 13

    Com o crescimento dessa regio e com o desenvolvimento das outras etnias, fez-se necessrio que os habitantes dessa colnia se adaptassem lngua oficial do Brasil o Portugus, que comeou a ser implantado nas escolas somente mais tarde, quando as escolas deixaram de ser particulares e passaram a ser municipalizadas.

    A pessoa que leva consigo o acento sotaque forte da sua lngua materna sofre grande discriminao quando tem de se deslocar at grandes centros, sendo inferiorizada pelo fato de morar na zona rural. Para esses brasileiros, que so filhos e netos de imigrantes e que convivem anos em uma comunidade na qual pouco se fala e ouve portugus, o uso da gramtica e da norma culta da lngua oficial do pas apenas um acessrio que pouco utilizado na comunidade. De fato, o bilinguismo parece ter um forte componente sociolingustico que no deveria ser desprezado, mas sim complementar os estudos psicolingusticos sobre esse fenmeno.

    A diversidade lingustica deve ser valorizada e apoiada, tendo presente, principalmente, que o contato com falantes de lnguas diversas vantajoso para o reconhecimento da identidade lingustica de cada um e para o seu desenvolvimento cognitivo e emocional (CRYSTAL, 2003).

    Segundo Tarallo (2007), a lngua falada aquela usada na interao social, nos lares, na interao entre os membros da famlia e da comunidade, etc. Em suma, a lngua falada o vernculo: a enunciao e expresso de fatos, proposies, ideias (o que) sem a preocupao de como enunci-los (TARALLO, 2007 p.19). Portanto, define-se para este estudo o vernculo falado em Arroio de Padre como o pomerano, que, mesmo sendo uma lngua grafa e de imigrao, continua tendo fundamental importncia na comunicao dos habitantes de Arroio do Padre, RS, pois a lngua na qual a maioria das enunciaes acontece. Aprender uma L22 parece ser um processo complexo e a lngua materna , provavelmente, uma fonte importante de propriedades a partir da qual se parte para a aprendizagem da lngua-alvo. O que se deve levar em considerao que a transferncia da L1 para a L2 muito frequente, embora tambm ocorram transferncias da lngua estrangeira para a materna (HERNADEZ, LI e MacWHINNEY, 2005).

    No contexto de bilinguismo, como o investigado neste trabalho, em que a lngua materna uma lngua de imigrao e o portugus brasileiro, doravante denominado PB, a segunda lngua, parece ser importante determinar qual a influncia da aprendizagem de uma

    2 No feita aqui a distino entre aquisio e aprendizagem, propugnada por Krashen (1986), nem entre os

    termos lngua estrangeira e L2, j que o referencial terico aqui adotado no parte de dicotomias estanques como competncia e desempenho, tpicas do cognitivismo. Portanto, os termos lngua-alvo, L2, segunda lngua e lngua estrangeira sero usados intercambiavelmente ao longo deste trabalho.

  • 14

    terceira lngua, como o ingls, nos sistemas fontico-fonolgicos e cognitivos dos aprendizes, uma vez que a cognio dinmica e, por conseguinte, a transferncia dos conhecimentos lingusticos da LM absolutamente inevitvel. Este trabalho tem o intuito de averiguar o que ocorre no desempenho de crianas multilngues em tarefas verbais e no-verbais quando a terceira ou quarta lngua aprendida: quais caractersticas de padres de sonoridade so transferidas entre as plosivas surdas no pomerano (L1), portugus (L2) e no ingls (L3)? Que diferenas no desempenho cognitivo o multilinguismo pode conferir a esses aprendizes, quando comparados aos monolngues? Bilngues fluentes, que usam habitualmente as duas lnguas, nas quais so altamente proficientes, lidam regularmente com o controle de ateno, que usado para atingir alta performance na lngua mais relevante para o momento e inibir o uso da outra lngua. Para o gerenciamento entre as lnguas em competio, Green (1998) prope o modelo de sistema inibitrio, no qual a lngua no relevante para determinada tarefa ou situao suprimida pelo mesmo mecanismo das funes executivas3 usado geralmente para controlar ateno e inibio. Se esta afirmao estiver correta, ento os resultados dos testes sobre as funes executivas, que sero realizados com sujeitos bilngues e multilngues neste trabalho, expressaro diferenas entre essas populaes.

    A contribuio desta pesquisa no est apenas na rea acadmica, mas ser de grande valia para a sociedade multilngue arroiopadrense, pois sero ressaltados aqui os aspectos cognitivos positivos ligados ao bi / multinguismo e, por conseguinte, haver um motivo a mais para a preservao do pomerano na comunidade. A partir da dinamicidade que caracteriza a cognio e a linguagem, esta investigao est organizada em cinco captulos. No primeiro, feita uma introduo s principais questes envolvidas no estudo. No segundo captulo, feita a reviso da literatura, atravs das sees que abordam a cognio como um sistema dinmico, a linguagem, cognio e interao social, o conexionismo e a linguagem, o bilinguismo e o processamento cognitivo e por fim a aspirao de plosivas e o VOT. No terceiro captulo, esto descritos os objetivos e a metodologia utilizada para a coleta de dados. No quarto captulo, feita a anlise dos dados e resultados expressos na pesquisa. Por fim, no quinto captulo esto as consideraes finais e direcionamentos futuros para esta pesquisa.

    3 Funes executivas referem-se s habilidades que so responsveis pelo planejamento, monitorao e aquisio

    de atividades complexas ou novas para o indivduo dirigidas a um fim.

  • 15

    2 REFERENCIAL TERICO

    Nesse captulo sero abordadas, primeiramente, teorias sobre a cognio: seu funcionamento e dinamicidade, sua relao com a linguagem. Na segunda seo deste captulo, a noo trazida por Vygotsky sobre a relao entre cognio e ambiente ser explanada. Na terceira seo, sero traadas consideraes gerais sobre linguagem e conexionismo. Por fim, na quarta seo sero descritos alguns conceitos de bilinguismo, multilinguismo e a sua relao com a cognio e com as funes executivas, assim como consideraes sobre o sistema fonolgico dos bi/multilngues.

    2.1 Um sistema dinmico: a cognio

    Segundo MacWhinney (2005), no possvel acreditar que os bilngues tenham dois sistemas lingustico-cognitivos um para cada lngua diferentes, conforme o postulado por algumas teorias. Assim, o crebro que processa e armazena duas ou mais lnguas deve lidar de uma maneira muito especial com a transferncia entre padres sejam eles fontico-fonolgicos, morfossintticos, semnticos ou pragmticos - das lnguas em questo. Trata-se da dinamicidade da linguagem, que no pode ser dissociada da cognio.

    O crebro humano um rgo com muitas peculiaridades, dentre as quais se destacam a linguagem e a cognio. Para Elman (1995), melhor entender a linguagem como um sistema dinmico do que como um sistema representacional. O crebro dotado de plasticidade, o que permite sua modelagem inclusive, influenciado pelo meio no qual este ser humano est inserido. Port (2002) usa a metfora da tecelagem para descrever o sistema dinmico, apontando que esse parece um tear: em alguns momentos h uma interao complexa de muitos grupos neurais. As atividades em cada grupo so integradas. Da mesma forma, o pensamento se d como um tear - um produto de todo um sistema de atividades.

    A viso dinmica de cognio est tambm relacionada s ideias de corporificaro da mente e do ambiente da cognio humana. Por um lado, h nfase no comportamento neural e no processo cognitivo; por outro lado, h nfase no ambiente. De acordo com Port (2002), um dos pontos mais importantes da teoria dinmico-conexionista o tempo, pois comum a todos os domnios.

    Isto permite o acoplamento, em tempo real, entre domnios diferentes, no qual a dinmica de um influencia o tempo do outro. Os humanos

  • 16

    frequentemente acoplam vrios sistemas ao mesmo tempo tal quando esto danando uma msica, por exemplo a percepo do auditrio acoplada aos sons da msica. Por causa dessas coisas em comum com o mundo, o corpo e a cognio, o mtodo dos sistemas dinmicos aplicado a eventos em todos os nveis de anlise numa ampla gama de escalas temporais4 (PORT, 2002, p. 10, traduo da autora).

    Assim como Elman (1995), De Bot, Lowie e Verspoor (2007) veem a linguagem como um sistema dinmico, ou seja, como um conjunto de variveis que interagem no tempo. Assim, tambm o desenvolvimento da linguagem pode ser visto como um processo dinmico, pois apresenta algumas caractersticas principais dos sistemas dinmicos: dependncia sensvel do estado inicial, interconectividade dos subsistemas, emergncia de atratores no tempo e variao entre indivduos. A aplicao de ferramentas e instrumentos desenvolvidos para os estudos dos sistemas dinmicos em outras disciplinas (matemtica, por exemplo) chama a ateno para os diferentes tipos de pesquisas, as quais permitem a incluso tanto nos sistemas sociais quanto cognitivos e ainda a interao entre ambos os sistemas. A Teoria dos Sistemas Dinmicos doravante denominada TSD uma forte candidata para ser a teoria mais abrangente entre aquelas que lidam com o desenvolvimento da linguagem.

    Um dos problemas que subjaz s pesquisas sobre a aquisio da linguagem que a aquisio vista como tendo um comeo claro e um estado final, com um caminho linear a ser percorrido no desenvolvimento lingustico de cada indivduo. Em muitas pesquisas tradicionais de aquisio da linguagem (KRASHEN, 1986; RIVERS, 1983), previsto que um aprendiz de L2, no importando qual a sua L1, siga estgios muito similares aos da aquisio da sua lngua materna na aquisio da L2. Tal viso de aprendizagem da linguagem frequentemente associada ao Modelo de Processamento da Informao. H outros estudos que no aderem a essa viso linear. Eles tm mostrado que a linguagem, a aquisio da linguagem, e a eroso lingustica (language attrition) so muito mais intricadas, complexas, e at mesmo mais imprevisveis do que uma viso linear possa permitir (De BOT et al., 2007). Teorias lingusticas tais como a Lingustica Cognitiva (LAKOFF; JOHNSON, 1999; LANGACKER, 1998), teorias da aquisio como o emergentismo (N. ELLIS, 2005; MACWHINNEY, 2006), e do processamento como o modelo de competio (MACWHINNEY, 2001), reconhecem que existem muitas variveis interdependentes, no

    4 No original: This permits real-time coupling between domains, where the dynamic of one system influences the

    timing of another. Humans often couple many systems together, such as when dancing to music -- where the subject's auditory perception system is coupled with environmental sound and the gross motor system is coupled to both audition and musical sounds. Because of this commonality between the world, the body and cognition, the method of dynamic systems is applicable to events at all levels of analysis over a wide range of time scales.

  • 17

    apenas no sistema da linguagem, mas tambm no ambiente no meio social e no nvel psquico do indivduo. No possvel conceber o processo de aprendizagem da linguagem de forma isolada, sem a anlise dos outros fatores mencionados. H a interao destas variveis em nveis diferentes: na comunicao, na construo do significado, no aprendizado de uma lngua, e nas lnguas em um crebro multilngue. A teoria que d conta de todos estes aspectos a Teoria dos Sistemas Dinmicos. De acordo com De Bot e associados (2007), a Teoria dos Sistemas Dinmicos surgiu da matemtica, de sistemas dinmicos de duas variveis, como os do pndulo duplo. Embora tal sistema tenha apenas duas variveis interagindo, a trajetria do sistema complexa5. Quando aplicada a um sistema complexo, tal como o ser humano ou a sociedade, em que inmeras variveis tem graus de liberdade, a TSD torna-se a cincia dos sistemas complexos. A maior propriedade dos Sistemas Dinmicos que com o passar do tempo, e isso pode ser expresso em uma equao x(t+1)=f(x(t)), na qual qualquer funo descrita como o estado x no tempo t transformada em um novo estado no tempo t+1. Embora os clculos paream estar no mago da TSD, no so to necessrios para o entendimento dos princpios gerais dos Sistemas Dinmicos (THELEN, BATES, 2003; VAN GELDER; PORT, 1995). Nos sistemas dinmicos, tais como a aprendizagem, existem conjuntos de variveis que interagem e se caracterizam pela completa interconectividade: todas as variveis so interrelacionadas e eventuais mudanas, bem como a insero de uma nova varivel, geram mudanas em todas as outras variveis que so parte do sistema.

    Os sistemas dinmicos so muito mais do que poderosas ferramentas. Assim com o paradigma computacional ou cognitivista, so uma viso de mundo. O sistema cognitivo no um computador, um sistema dinmico. No o crebro, sozinho e encapsulado; mais do que isso, todo o sistema nervoso, corpo e ambiente. O sistema cognitivo no uma manipulao sequencial discreta das estruturas representacionais estticas; muito mais, a estrutura da influncia mtua e simultnea da mudana. Seus processos no se do de forma arbitrria, em tempo discreto dos passos do computador, mas acontecem em tempo real junto com as mudanas do ambiente, do corpo e do sistema nervoso. O sistema cognitivo no interage apenas operando sobre o corpo, mas sendo influenciado por ele todo o tempo (VAN GELDER; PORT, 1995).

    5 Ver http://www.maths.tcd.ie/~plynch/SwingingSpring/doublependulum.html para a ilustrao de um

    sistema como o de pndulos acoplados, que constitui um sistema dinmico.

  • 18

    O que seria, ento, um sistema dinmico? A palavra dinmico vem do grego dynamikos, e significa fora, poder. Um sistema dinmico um sistema em que as mudanas so originrias das foras que nele operam.

    A noo de sistema dinmico ocorre em ampla escala, desde os contextos matemticos e fsicos, passando pela biologia, pela psicologia e chegando lingustica. Um sistema um conjunto de aspectos que se modificam no mundo. O estado do sistema depende do tempo. O comportamento do sistema a mudana que ocorre em um determinado estado. A totalidade dos estados do sistema o que faz o conjunto de estados, comumente chamado de espao de estados6. Ento, o comportamento de um sistema pode ser considerado como uma sequncia de pontos nesse espao de estados. Elman (1998) destaca a ideia de espao de estados, lembrando que nunca um estado separado de forma abrupta ou estanque do prximo, havendo a ideia de continuidade no decorrer do tempo. As interaes so mltiplas e simultneas, e afetam o processamento global da aprendizagem. O tempo e o movimento tm destaque na TSD, resgatando o papel do enfoque sensrio-motor na aprendizagem e tendo o tempo como fator de importncia na anlise dos processos cognitivos. Assim, a ideia de movimento e de sistemas mudando substancialmente no tempo, com o envolvimento da atividade motora na aprendizagem, leva a uma abordagem cognitiva baseada na interao entre ao e linguagem (ALBANO, 2007).

    Os sistemas dinmicos so quaisquer sistemas com estados numricos que mudam em funo do tempo. Um sistema se distingue pelo fato de que seus aspectos se completam. H dois lados: primeiro, os aspectos devem interagir entre si a maneira como um muda depende do jeito do outro. Segundo, se h algum outro aspecto do mundo que interage com algum do conjunto, ento este tambm parte do sistema (VAN GELDER; PORT, 1995).

    Segundo Ashby (1952), um sistema dinmico determinado pelo estado apenas quando seu estado atual sempre determina um comportamento futuro nico. H trs caractersticas principais: 1) o comportamento futuro no depende de nenhum estado em que o sistema possa ter estado antes; 2) o fato de o sistema determinar o comportamento futuro implica a existncia de algumas regras da evoluo que descrevem o comportamento do sistema como uma funo do seu estado atual; 3) o fato de os comportamentos futuros serem nicos determina que a sequncia de espao de estados nunca poder se ramificar.

    6O espao de estados, na teoria dos Sistemas Dinmicos, consiste de uma representao equacional ou grfica de cada momento e cada trajetria, levando em conta as variaes da trajetria percorrida. No caso da fala, por exemplo, podemos mensurar e representar o movimento da lngua, maxilar e lbios, verificando a modificao de cada um no decorrer da trajetria e ao longo do tempo. Um estado no totalmente separado do prximo, estando representado num espao, que geralmente um grfico tridimensional.

  • 19

    Os sistemas cognitivos naturais so como os sistemas dinmicos. Dinamicistas da cincia cognitiva afirmam que a cognio um fenmeno do comportamento de um tipo de sistema dinmico (ELMAN, 2009, PORT, 2002). Em que consiste, ento, a hiptese dinmica acerca da cognio?

    Pode ser considerada como uma hiptese bruta da natureza da cognio. Por dcadas, a filosofia da cincia da cognio tem sido dominada pela ideia de que a mente como um computador. Essa hiptese j foi articulada de inmeras maneiras, mas a mais famosa a de Newell e Simon The Physical Symbol System Hypothesis, que diz que sistemas simblicos fsicos (computadores) so necessrios e suficientes para o entendimento do comportamento inteligente (NEWELL e SIMON, 1976). De acordo com essa hiptese, os sistemas cognitivos naturais so inteligentes simplesmente por serem sistemas simblico-fsicos do tipo correto. Por dcadas estudiosos da cincia da cognio tentaram decifrar os mecanismos e processos relativos cognio, comparando-os com um computador, por exemplo. Trabalhos clssicos como os dos pioneiros Newell, Simon, e Minsky entendiam o crebro humano assim, como um computador; e os rgos sensrios levariam as informaes do ambiente para o crebro. Van Gelder e Port (1995) exemplificam a compreenso de crebro para estes estudos como o que acontece em uma partida de tnis: a luz da bola que se aproxima atinge a retina e o mecanismo de viso do crebro que v a bola e a direo para qual ela est indo. Essa informao alimenta o sistema de a qual tem representaes do objetivo que se almeja (no caso, ganhar o jogo) e outros conhecimentos prvios (pontos fracos do outro jogador, problemas com a quadra de tnis, etc). O sistema de planejamento infere o que deve ser feito: acertar a bola no lado da quadra do oponente. Esse comando dado ao sistema motor e os braos e as pernas se movem como requerido. Nessa descrio, o processo cognitivo baseado em eventos sequenciais, nunca simultneos, e a manipulao simblica uma condio sine qua non nas abordagens cognitivistas. Muitos processos cognitivos se distinguem de outros processos pelo fato de que dependem crucialmente do tipo de conhecimento que deve ser guardado e utilizado. No mago do modelo computacional ou cognitivista, a ideia de conhecimento baseada numa concepo esttica de representao, que depende de processos cognitivos em que ocorrem operaes sobre as representaes, como a manipulao de smbolos.

    Por outro lado, h pesquisadores que creditam aos sistemas dinmicos a Hiptese Dinmica da Cognio: sistemas cognitivos naturais so sistemas dinmicos, e so melhor entendidos da perspectiva dinmica. Os sistemas dinmicos so partes complexas ou aspectos que esto evoluindo continuamente, assim como a cognio, que est em constante

  • 20

    movimento, em permanente transformao. A TSD diz que o conhecimento deve influenciar o comportamento. A diferena entre o paradigma computacional e o paradigma dos Sistemas Dinmicos que, no primeiro, as regras que governam como o sistema deve se comportar so definidas pelas entidades que tem status representacional, enquanto nos modelos dinmicos as regras so definidas por estados numricos. Isso quer dizer que um sistema dinmico pode ser representacional sem ter suas regras de evoluo definidas por representaes estticas e baseadas em primitivos de tempo extrnseco (PORT, 2005).

    A afirmao de que os sistemas cognitivos assemelham-se a computadores, nascida no bojo da revoluo cognitivista e entranhada em teorias como o Processamento da Informao, e a afirmao de que os sistemas cognitivos so sistemas dinmicos, formam vises distintas a respeito da natureza dos sistemas cognitivos.

    Para o computacionalista ou cognitivista, o sistema cognitivo descorporificado, essencialmente mental, o qual um tipo de controle localizado dentro do corpo e por vezes atua externamente tambm. O sistema cognitivo interage como o mundo exterior pelo seu corpo. Esta interao se d pelos transdutores sensrios e motores, cuja funo traduzir os eventos fsicos no corpo e no ambiente, e por outro lado o estado simblico que a mdia do processamento cognitivo. Os episdios cognitivos so cclicos: primeiramente, h o insumo sensrio do sistema cognitivo, depois o sistema cognitivo algoritimamente manipula os smbolos, o que resulta no movimento do corpo e todo o ciclo comea novamente. Internamente, o sistema cognitivo tem uma construo modular, hierrquica. importante salientar que o sistema cognitivo usa apenas representaes simblicas que no abrangem o corpo e o ambiente. Contudo, o mago do problema, o tempo durante o qual os processos cognitivos e seus contextos desdobram-se, deixado de lado. O fato de o tempo no ser contemplado pelas teorias cognitivistas de desenvolvimento, em geral, e lingustico, em particular, tornava a cognio esttica, uma vez que os grandes argumentos dessa abordagem giravam em torno de dicotomias como natureza e ambiente, continuidade e descontinuidade, modularidade ou processamento distribudo (THELEN; BATES, 2003).

    As teorias do desenvolvimento tm como princpios gerais os mecanismos e processos. Os pesquisadores elaboram hipteses tericas sobre esses processos e mecanismos quando eles desenham ou conduzem um estudo. Frequentemente, essas hipteses so implcitas, mas influenciam cada deciso sobre a escolha das variveis, desenho, pesquisa da populao, exemplos de intervalos e tcnica estatstica. Boas teorias explicitam essas hipteses e as sujeitam a testes empricos. Alm disso, o papel dos modelos formais fazer com que essas hipteses subjacentes sejam extremamente precisas. A forma especfica do

  • 21

    modelo menos importante do que os princpios gerais do desenvolvimento em que se baseiam.

    So os princpios do desenvolvimento a teoria qualitativa e as hipteses que formam a base para os dois assuntos relacionados: conexionismo e sistemas dinmicos. Thelen e Bates (2003) acreditam que ambos so muito parecidos, diferenciando-se apenas nos objetivos e nos mtodos utilizados. Em funo disso, ser apresentada abaixo uma adaptao de um quadro sobre as principais caractersticas das teorias do desenvolvimento, destacando a questo do quo diferentes so as teorias cognitivistas, as conexionistas e as teorias dinmicas. A tabela 1 mostra as similaridades e as diferenas entre as principais teorias do desenvolvimento representativas dos modelos cognitivista, conexionista e dos Sistemas Dinmicos, respectivamente, adaptada de Thelen e Bates (2003).

    Tabela 1 - Taxonomia das teorias do desenvolvimento

    Mecanismos de mudanas

    Chomsky et. Al. Maturao

    (Modelo cognitivista)

    Thelen/Smith Auto-organizao

    (Modelo de Sistemas Dinmicos)

    Elman et al.

    Emergencia/

    Auto organizao

    Modelo Conexionista

    nfase na: Experincia

    No

    Sim

    Sim

    Informao externa No Sim Sim

    Interao social No No No

    Restries biolgicas Sim Sim Sim

    Desenv. Cerebral No Sim Sim

    Cognio corporificada No Sim No

    Representaes mentais Sim No (at 1994) Sim

    Sistemas dinmicos No Sim Sim

    Formalizao Sim Sim Sim

    Simul. computacionais No No (at 1994) Sim

    Como se observa acima, as abordagens cognitivistas aquisio da linguagem no enfatizam a experincia, pois baseiam suas alegaes tericas no fato de o estmulo de input ser pobre demais para explicar as estruturas especificas de conhecimento associadas ao usurio maduro da linguagem.

  • 22

    Segundo Plunkett (1994), o conexionismo oferece uma ferramenta para examinar o meio-termo entre o papel do input e o papel das estruturas e processos pr-adaptados no desenvolvimento. Embora as representaes formadas pelos sistemas conexionistas sejam sensveis aos parmetros do input, so as arquiteturas e algoritmos de aprendizagem dos prprios sistemas conexionistas que permitem essa sensibilidade. Por diferirem em termos de suas estruturas de rede e algoritmos de aprendizagem, as arquiteturas conexionistas tambm diferiro na maneira em que respondero aos mesmos inputs. As arquiteturas de rede so uma fonte adicional de hipteses quanto ao estado inicial do dispositivo de aprendizagem antes de ser exposto a qualquer input. O conexionismo tambm uma ferramenta til para explorar explicaes interacionistas e naturalistas da aquisio da linguagem.

    Para Cummins (2009), a fala ao; portanto, dinmica. um comportamento objetivo: sua finalidade a comumicao e implica coordenaes de movimentos. A essa coordenao de movimentos Cummins d o nome de ritmo, que no inerente a nenhuma lngua, mas sim ao ato da fala (CUMMINS, 2009 p.4). O ritmo a sincronizao do movimento e permeia a percepo e a ao humana (MEDEIROS, 2009). A viso dinmica de cognio est tambm relacionada s ideias de corporificao da mente e do ambiente da cognio humana. Por um lado, h nfase no comportamento neural e no processo cognitivo; por outro lado, h nfase no ambiente.

    A partir das exposies acima, dedicadas a explorar em carter preliminar alguns conceitos bsicos sobre a cognio e os sistemas dinmicos, pode-se explorar um pouco os pressupostos de que cognio, linguagem e ambiente so sistemas dinmicos que se influenciam reciprocamente e atuam de forma interdependente no desenvolvimento humano. Quando se fala em linguagem, cognio e ambiente no se podem deixar de lado importantes tericos como Vygostky (1962), que via o processo de aquisio da linguagem de forma dinmica, levando em considerao a continuidade entre o pensamento e a linguagem, e a interao do desenvolvimento cognitivo com o social. Na prxima seo, haver uma explanao concisa de suas principais ideias.

    2.2 Linguagem, cognio e interao social

    Dois importantes estudiosos do comportamento humano no podem deixar de ser mencionados nesse trabalho, so eles Vygotsky e Piaget. Vygotsky trata a aquisio da linguagem do meio social como o resultado entre raciocnio e pensamento em nvel intelectual. Piaget considerou a linguagem falada como manifestao da funo simblica,

  • 23

    quando o indivduo utiliza a capacidade de empregar smbolos para representar, o que reflete o desenvolvimento intelectual, mas no o produz (FOWLER, 1994). Piaget considerou a linguagem como facilitadora, mas no como necessria ao desenvolvimento intelectual. Para Piaget, a linguagem reflete, mas no produz inteligncia. A nica maneira de avanar a um nvel intelectual mais elevado no na linguagem com suas representaes, e sim, atravs da ao (FOWLER,1994).

    Vygotsky e Piaget estavam preocupados com o desenvolvimento intelectual, porm cada um comeou e perseguiu por diferentes questes e problemas. Piaget estava interessado em como o conhecimento adquirido ou construdo, no qual a teoria um acontecimento da inveno ou construo que ocorre na mente do indivduo, Vygotsky estava preocupado com a questo de como os fatores sociais e culturais influenciam o desenvolvimento intelectual. A teoria de Vygotsky uma teoria de transmisso do conhecimento da cultura para a criana segundo a qual, os indivduos interagem com agentes sociais , como professores e colegas. As crianas constroem e internalizam o conhecimento que esses seres instrudos possuem. Piaget, no entanto, no acreditava que a transmisso direta desse tipo fosse vivel. Para ele, as crianas adquirem uma forma prpria de se desenvolver no social, mediante a construo pessoal desse conhecimento. Piaget aprovou a construo individual como singular e diferente, embora comumente ligada e prxima daquela da cultura, com isso a criana tem a chance de errar e construir.

    Vygotsky (1987) coloca a linguagem oral como processo psicolgico superior adquirido na vida social mais extensa e por toda a espcie, e sendo produzido pela internalizao de atividades sociais, atravs da fala. A interao e a linguagem tm um importante destaque no pensamento de Vygotsky, uma vez que iro contribuir no desenvolvimento dos processos psicolgicos, atravs da ao. Vygotsky explica a evoluo dos processos naturais at alcanar os processos mentais superiores, por isso, a linguagem, instrumento de imenso poder, assegura que significados linguisticamente criados sejam significados sociais e compartilhados.

    Vygotsky afirma que, alm da funo comunicativa, a linguagem essencial na formao do pensamento e da conscincia; na organizao e planejamento da ao; na regulao do comportamento e em todas as demais funes psquicas superiores do sujeito, como vontade, memria e ateno. O estudioso russo (1962) levanta questes como a unificao da conscincia e a inter-relao entre todas as funes psquicas. A funo primordial da linguagem a comunicao, a interao social.

  • 24

    Afirma o autor que o mesmo acontece com as crianas que tem um perodo pr-lingustico do pensamento e pr-intelectual da fala: o pensamento e a fala no se encontram relacionados por uma relao primria. No decurso da evoluo do pensamento e da fala gera-se uma conexo entre um e outra se modifica e se desenvolve.

    O significado das palavras s um fenmeno do pensamento na medida em que encarnado pela fala e s um fenmeno lingustico na medida em que se encontra ligado com o pensamento e por este iluminado. um fenmeno do pensamento verbal ou da fala significante uma unio do pensamento e da linguagem. (VYGOTSKY, 1962, p.56)

    Vygotsky alega que todas as escolas e tendncias psicolgicas anteriores a ele descuidaram de um ponto fundamental: todo e qualquer pensamento uma generalizao. Assim, eles estudavam a palavra e o significado sem fazer qualquer referncia evoluo e, segundo Vygotsky, enquanto estas duas condies persistirem em tendncias sucessivas nas tendncias posteriores, estas muito pouca relevncia tero para o tratamento do problema. Naquele momento, a descoberta de que o significado das palavras evolua tirou o estudo do pensamento e da linguagem de um beco sem sada. Os significados das palavras passavam a ser vistos como dinmicos no estticos- transformando-se medida que as crianas se desenvolvem e alterando-se com as vrias formas como o pensamento funciona. Essa ideia pode ser resumida da seguinte forma: a relao entre o pensamento e a linguagem um processo, um movimento contnuo de vai-e-vem entre as palavras e o pensamento; nesse processo, a relao entre o pensamento e a palavra sofre mudanas que so consideradas como um desenvolvimento no sentido funcional. As palavras no se limitam a exprimir o pensamento: por elas que este acede existncia (VYGOTSKY, 1962, p.58).

    Alm das colocaes acerca das relaes entre linguagem e pensamento, o autor mergulha na questo do desenvolvimento cognitivo geral, destacando que a aprendizagem pode progredir mais rapidamente que o desenvolvimento e, regra geral, redunda no prprio desenvolvimento.

    Uma vez expostas as principais colocaes do autor acerca de temas to ricos aos sistemas dinmicos, como a existncia de uma interdependncia de influncias recprocas entre pensamento e linguagem, pode-se partir para uma discusso a respeito das contribuies do conexionismo dinamicista para o campo da aquisio de L2. Porm, antes disso, parece necessrio avaliar, ainda que de maneira sucinta, o modo como a aquisio da linguagem concebida pelo referido paradigma.

  • 25

    2.3 Conexionismo e linguagem

    Jeffrey Elman (2009) traz indagaes semelhantes s de Vygotsky (1962) sobre a relao entre as palavras entre si e como esse processo se d em sua representao mental. Afirma Elman que, por muitos anos, as teorias lingusticas focaram em regras. O lxico era

    visto como um armazenador com itens lexicais que eram entidades passivas submetidas a transformaes por meio de regras. A perspectiva da lngua dentro de um sistema dinmico, diferentemente do paradigma computacional/simblico, leva-nos a pensar de uma maneira diferente sobre as regras e palavras. Entende-se por regras os comportamentos que se tem atravs da dinmica do sistema. Segundo Elman, as palavras variam randomicamente entre as linguagens e o lxico no deveria estar separado das regras.

    Outras teorias lexicalistas tambm sugerem que as palavras podem ser o elemento funcional de onde a gramtica surge epifenomenologicamente (BATES; GOODMAN, 2001; TOMASELLO, 2000). A psicolingustica de cunho construcionista7 sugere que a interpretao de uma estrutura gramatical de uma frase interage com o conhecimento detalhado de propriedades das palavras envolvidas no processo pelo compreendente. De fundamental importncia torna-se, ento, a natureza e a quantidade do estmulo, pois esse contato entre a base fsica, o estmulo e o conhecimento prvio (dependentes e relacionados ao corpo, alm de inseridos em dada cultura) conduzem emergncia, construo de novas estruturas lingusticas, em diferentes e novas situaes.

    Isso parece indicar que a representao lexical rica e detalhada, e que seu contedo vem dos hbitos de uso. Parece, ento, que essa riqueza de especificidade de informaes no lxico afeta a interpretao de estruturas gramaticais de alto nvel j no comeo dos processos. Representao no s contedo, mas forma tambm. A gramtica est contida no lxico.

    Elman (2009) sugere algumas posies sobre qual mecanismo representacional necessrio para codificao da informao. Segundo ele, um consenso entre os pesquisadores da abordagem cognitivista o de que o conhecimento da palavra guardado em um dicionrio mental. A forma precisa do lxico varia de acordo com a teoria, mas quase todas partem do pressuposto de que o lxico mental seja uma estrutura de informaes enumerativas com algumas restries na natureza da informao que pode ser guardada com ela.

    7 Nessa abordagem da aquisio da linguagem justamente a interao em um ambiente sociocultural que

    possibilita ao aprendiz extrair regularidades atravs da percepo da frequncia de uso de determinada estrutura em termos estatsticos e probabilsticos.

  • 26

    Uma ameaa sria concepo tradicional de lxico surge quando o conhecimento lexical pode ser mostrado como dinmico e dependente do contexto. Uma pequena dependncia pode ser tolervel, mas quando a combinao dos efeitos do contexto aumenta, uma estrutura de informaes enumerativas parece improvvel.

    Essa concluso advm de duas correntes da pesquisa apresentadas por Elman (2009). A primeira envolve simulaes computacionais dos fenmenos que no foram especificados nas questes de representaes lexicais. O foco de sua pesquisa era como uma rede neural lidava com fenmenos do nvel da frase, tais como dependncias distantes e estruturas hierrquicas. Um resultado antecipado desta pesquisa sugere uma nova maneira de pensar sobre as palavras e o lxico.

    De acordo com Elman (2009), no existem entradas lexicais. Pelo contrrio, existe uma gramtica em que as palavras operaram. Essencialmente, o sistema tem a capacidade de refletir generalizaes que ocorrem em vrios nveis de gradincia. A dinmica pode ser sensvel a um termo da categoria gramatical, as muitas categorias conceituais a que podem pertencer, e at mesmo a sua identidade especfica. . Desta forma, Elman (2009) explica a linguagem como um sistema dinmico, levando a pensar de uma maneira diferente sobre as regras e palavras. A regra como comportamento obtida ao longo de um processo dinmico do sistema. Uma nica rede pode ser capaz de suportar mltiplos regimes dinmicos, uma vez que, alm de perturbar uma rede, uma nova entrada lexical pode tambm funcionar como um vis que muda a dinmica. Coletivamente, esses mltiplos regimes dinmicos codificam a gramtica. A gramaticalidade refletida pelo grau em que a sequncia de palavras produzida atravs do sistema de espao de estados consistente com a dinmica.

    Com a literatura da psicolingustica, a maioria dos dados que motivaram e enriqueceram o lexicon ou lxico mental veio no do estudo direto das representaes lexicais, mas tem emergido como produto de um alto debate terico nas ltimas dcadas que tratam dos mecanismos do processamento da frase.

    A teoria baseada em restries ou probabilstica enfatiza os aspectos sensveis do contexto do processamento da frase. Albano, ao seguir uma linha mais lexicalista para a interpretao do desenvolvimento do conhecimento lingustico no nvel fnico-fonolgico, entende o lxico como

    uma entidade lingustica e psicolingustica que constitui a interface natural entre os aspectos fnico e gramatical desse conhecimento e inclui informaes semnticas e pragmticas suficientes para permitir o processamento do material lingustico do seu nvel ao ser acessado (ALBANO, 2005, p.3).

  • 27

    A dinmica da interao lxico-gramtica muito complexa, pois cada domnio de input tem suas propriedades e domnios de dinmicas internas. O processamento da linguagem acontece de forma dinmica, estando envolvida com e dependendo de vrios mecanismos cognitivos, como a memria, a percepo, a ateno, a categorizao. Em um

    falante bilngue, o processamento ainda mais complexo, conforme ser explanado nas prximas sees.

    2.4 Bilinguismo e processamento cognitivo

    A lngua um dos instrumentos da nossa identidade que, segundo Derrida (1996), sempre estrangeira, na medida em que provoca estranhamentos, e sempre materna, na medida em que nela nos inscrevemos. So variadas as definies e classificaes de bilinguismo, que variam dependendo das dimenses lingusticas, cognitivas, sociais.

    Segundo Zimmer et al (2008), um dos primeiros linguistas que abordou diferentes tipos de classificao para os bilngues foi Roberts (1939), que fez uma distino entre bilinguismo subordinado e coordenado. Duas dcadas mais tarde, Weinrich (1953) apropriou-se dessas classificaes (com o devido crdito a Roberts) e acrescentou mais uma distino dicotomia original, estabelecendo trs categorias de bilinguismo na relao bilinguismo tomando como base a relao entre lxico e sistemas conceituais nas duas lnguas: 1) o bilinguismo coordenado, em que duas palavras (uma de cada lngua falada pelo bilngue) representariam conceitos separados; 2) o bilinguismo composto, em que duas palavras (uma de cada lngua falada pelo bilngue) representariam um nico conceito combinado; 3) o bilinguismo subordinado, em que uma palavra da L2 seria acessada por intermdio da sua traduo na L1.

    As vrias classificaes e, no raro, conflitantes caracterizaes sobre o bilinguismo deixam claro que no h uma definio consensual sobre o tema. Neste trabalho, toma-se a definio de Grosjean (1989), para quem um bilngue algum capaz de funcionar na lngua de acordo com as necessidades propostas. Pode-se, tambm, definir um falante bilngue como:

    Algum capaz de se comunicar em duas (ou mais) lnguas, em ambas as comunidades monolngue ou bilngue, de acordo com as exigncias de competncia comunicativa e cognitiva feitas por estas comunidades ou pelo prprio indivduo (de ser falante), (...) e que capaz de se identificar positivamente com ambas (ou todos) os grupos de lngua (e culturas) ou parte delas. (SKUTNABB-KANGAS,1990)

  • 28

    Segundo Grosjean (1989, 1997), um indivduo bilngue no a soma de dois monolngues, pois os bilngues usam cada uma de suas lnguas para diferentes propsitos, em contextos distintos e ao comunicar-se com interlocutores diferentes. Para Zimmer et al. (2008, p.231),

    [...] isso significa dizer que praticamente impossvel atingir-se uma proficincia total em duas ou mais lnguas, considerando-se as quatro habilidades lingusticas (fala, escrita, compreenso auditiva e leitora) e cada um dos subcomponentes lingusticos de cada lngua (fonologia, morfologia, sintaxe, semntica, pragmtica, discurso).

    Bialystok (2001) define indivduos bilngues como aqueles que so capazes de falar duas ou mais lnguas num certo grau de proficincia. Assumimos esta ltima definio como a mais plausvel para este trabalho, reiterando que, de acordo com Bialystok (2001), o bilinguismo traz consigo uma grande carga psicolgica, principalmente afetiva e identitria.

    Contudo, o fato de raramente se encontrar bilngues simultneos no parece diminuir as vantagens que o fato de usar mais de uma lngua no cotidiano traz para o ser bilngue, conforme ser colocado mais adiante neste trabalho. Em funo da complexidade das questes relacionadas tanto ao bilinguismo como aprendizagem da lngua estrangeira e cognio, esta seo est subdividida em quatro. A seo 2.4.1 trata da interao entre a aprendizagem de segunda lngua e cognio, conduzindo, ento, relao entre o bi/multilinguismo e o incremento de funes cognitivas ligadas ao controle inibitrio e ateno, como as funes executivas. Essa relao entre o domnio verbal e o no verbal acontece tambm dentro do domnio verbal: o caso da transferncia interlingustica no bi/multilinguismo, que ser o assunto da subseo 2.4.3. Na quarta subseo, um tipo de transferncia em particular destacado: a transferncia fontico-fonolgica, muito comum entre bi/multilngues.

    2.4.1 Interao entre linguagem e cognio na aprendizagem da lngua estrangeira

    A compreenso de como a lngua aprendida/adquirida pelo ser humano uma questo que intriga a humanidade h muitos sculos. Quando se trata da aquisio da segunda lngua o dilema ainda maior. O estudo da transferncia lingustica, distncia e interao tipolgica, idade de aquisio, o crebro de aprendizes, motivao, ambiente educacional so alguns fatores que levam percepo de que um bilngue no pode ser apenas a simples soma de dois monolngues. De acordo com Ellis (2005), existem mais de 6000 lnguas no mundo e pouco mais de 200 pases, o que significa que a natureza dos seres humanos bi/multilngue.

  • 29

    A diferena entre a aquisio da L1 e da L2 tratada por vrios autores, entre eles MacWhinney (2007), que atribui essa diferenciao a vrios motivos. O primeiro que a criana que est aprendendo a falar sua lngua materna est engajada em aprender como o mundo funciona, ao passo que um aprendiz de L2 j dispe de muito conhecimento sobre o mundo. Segundo, as crianas, quando esto aprendendo a falar, desfrutam da plasticidade cerebral, pois tiveram at ento menos exposio a inputs do que o crebro de adultos, por exemplo, que implica uma maior maleabilidade. O terceiro motivo, que as crianas esto imersas no contexto social das pessoas que as cuidam, que so responsveis por elas.

    Segundo MacWhinney (2007), esses trs motivos so suficientes para que exista um modelo unificado para aquisio de L1 e L2. Este autor tambm aponta que alguns pesquisadores acreditam que o processo de aquisio da L1 to diferente do processo de aquisio da L2 que seriam necessrios dois mecanismos separados. Por exemplo, Krashen (1994) entende a aprendizagem de L1 como aquisio, ao passo que a da L2 vista como aprendizagem.

    De acordo com MacWhinney (2000), um exemplo o mtodo utilizado para aprendizagem de novas palavras em L2 que basicamente uma extenso dos mtodos usados para aprendizagem de palavras na L1. Da mesma forma, quando h a combinao de palavras em uma frase em L2, usam-se as mesmas estratgias das crianas que esto aprendendo sua lngua materna. Alm disso, o fato da aprendizagem da L2 ser to influenciada pela transferncia da L1 significa que seria impossvel a construo de um modelo de aprendizagem de L2 que no levasse em conta a estrutura da L1.

    MacWhinney (2007) acredita que, ao invs de tentar formular dois modelos diferentes que dem conta da aprendizagem de L1 e L2, faz-se necessrio um modelo unificado. De acordo MacWhinney (2007), apesar de parecer existir um consenso sobre o multilinguismo infantil de que as crianas aprendem as mltiplas lnguas como entidades separadas, h grandes evidncias de que as mltiplas lnguas interagem nas crianas pelo processo de transferncia e pelo code-switching - capacidade que os falantes bilngues tm de trocar de lngua no meio da conversao.

    Para uma melhor compreenso do modelo unificado de aprendizagem de L1 e L2, MacWhinney (2007) sugere que se tenha como base o Modelo de Competio (Competition Model) (BATES e MACWHINNEY, 1983;), embora este modelo no tenha sido desenvolvido para verificar todos os aspectos de aprendizagem da L2, h alguns conceitos que so plausveis ao modelo unificado tambm. Para uma melhor compreenso do modelo de competio, MacWhinney (2000) apresenta a seguinte figura, que deve ser entendida no

  • 30

    como um modelo de processamento, mas como uma decomposio lgica dos problemas gerais de aprendizagem da linguagem, numa srie de menores, porm inter-relacionados componentes estruturais e de processamento.

    Figura 1 - Modelo de Competio Unificado de MacWhinney (2007)

    No centro do modelo, h um sistema de processamento que seleciona entre vrias opes ou dicas. As arenas lingusticas na qual cada competio ocorre so os quatro nveis tradicionais reconhecidos na maioria dos modelos de processamento psicolingusticos: fonologia, lexicon, morfossintaxe e conceitualizao. Na produo, as arenas envolvem a formulao da mensagem, ativao lexical, arranjo morfossinttico, e planejamento articulatrio. Na compreenso, as arenas competitivas incluem processo auditivo, ativao lexical, decodificao do papel gramatical e interpretao dos significados.

    O mago do Modelo de Competio a noo do signo lingustico como um mapeamento entre forma e funo. Nesse mapeamento, as formas servem como dicas das funes durante a compreenso e as funes servem como dicas as formas durante a produo. Em outras palavras, na produo, formas competem para expressar as intenes ou funes subjacentes. O resultado desta competio determinado pela fora das dicas relevantes.

    A aprendizagem de novos mapeamentos fica armazenada tanto na memria de curto prazo quanto na de longo prazo. Gupta e MacWhinney (1987) desenvolveram o papel da memria de curto prazo na construo de memrias das formas fonolgicas das palavras e o mapeamento destas formas em itens lexicais de significados. A memria de curto prazo est tambm crucialmente envolvida no processamento online de estruturas sintticas especficas.

  • 31

    MacWhinney (1999) examinou como o processo de troca respectiva e de identificao do referente demandam dos processos verbais da memria durante o modelo de construo mental. A operao destes sistemas de memria restringe o papel da validade da dica durante o processamento e a aquisio.

    O Modelo de Competio distingue dois componentes da teoria de competio entre cdigos (lnguas). O primeiro componente a teoria da transferncia. Esta teoria tem sido articulada em detalhes pelo trabalho do Modelo de Competio em termos de predio tanto para transferncia positiva quanto para negativa nas diversas arenas lingusticas. O segundo componente a teoria de interao de cdigo, a qual determina a seleo, a troca, e a mistura do cdigo. Tal modelo est embasado na noo de processos de coativao em aprendizes de L2 e bilngues. A escolha de um cdigo em um momento em particular durante a conversa depende de fatores como a ativao de itens lexicais prvios, a influncia de espaos lexicais, expresses de opes socioligusticas, e dicas da conversao produzidas pelo ouvinte.

    Talvez a rea mais importante da nova teoria do comportamento no Modelo Unificado de Competio seja a teoria da ressonncia, necessria para que se relacione o Modelo de Competio com outras pesquisas da rea da cognio, assim como os modelos conexionistas de redes de processamento neural.

    Dos sete componentes apresentados por MacWhinney (2000), nenhum deles coloca a aprendizagem como outro componente/item, pois a aprendizagem vista como a interao entre todos estes subcomponentes durante o processo de competio e ressonncia. At mesmo Vygotsky (1962) diz no estudo do pensamento e da linguagem que esta umas das reas da psicologia na qual se v claramente a importncia da relao interfuncional.

    Quando se fala em relao interfuncional e se pensa em sistemas dinmicos, no se pode deixar de mencionar a interdependncia entre mecanismos verbais e no verbais. Um caso tpico em que se observa a influncia recproca entre mecanismos verbais e no verbais a relao entre o bilinguismo e o incremento de funes cognitivas ligadas s funes executivas8 como o controle inibitrio e a ateno, conforme ser explanado na seo 2.4.3, a seguir.

    8Funes executivas referem-se capacidade de engajamento em comportamento orientado a objetivos, realizando aes voluntrias e auto-organizadas. Como por exemplo, memria de trabalho, ateno seletiva, controle inibitrio, flexibilidade e planejamento.

  • 32

    2.4.2 Bi/multilinguismo e funes executivas

    Para Eslinger (2003), o crebro humano tem uma notvel plasticidade: a habilidade de ser modelado e modificado pelo crescimento de conexes novas e mais complexas entre clulas. Alguns neurnios desenvolvem at 10.000 conexes, um nmero espantoso quando se considera que existem aproximadamente 90 bilhes9 de neurnios no crebro (AZEVEDO et al., 2009). A propriedade bsica das camadas externas do crtex cerebral armazenar informao. Esse armazenamento ocorre em mltiplas reas corticais devotadas a diferentes tipos de memria. Algumas reas se desenvolvem em sistemas de conhecimento que surgem das memrias lingusticas, visuoespaciais ou motoras. Outras regies do crebro armazenam informaes a respeito de experincias emocionais e outros tipos de atividades, tais como completar um trabalho de casa, ou conseguir um emprego de professor. Portanto, aprendizado e memria no esto limitados a um nico sistema neural ou processo. Existem mltiplos sistemas de memria, espalhados por diferentes reas cerebrais, com conexes e vias que podem interconect-las em distintos meios, variando at mesmo de indivduo para indivduo.

    As funes relacionadas aos componentes cognitivos so chamadas de funes executivas doravante denominadas FEs e esto relacionadas, de forma geral, capacidade do sujeito de engajar-se em comportamento orientado a objetivos, ou seja, realizao de aes voluntrias, independentes, autnomas, auto-organizadas e orientadas para metas especficas (GAZZANIGA et al., 2002). As funes executivas esto entre os aspectos mais complexos da cognio e envolvem seleo de informaes, integrao de informaes atuais com informaes previamente memorizadas, planejamento, monitoramento e flexibilidade cognitiva (GAZZANIGA et al., 2002; LEZAK, 1995). Na tica da avaliao neuropsicolgica, o termo funo executiva usado para nomear uma ampla variedade de funes cognitivas que pressupem ateno, concentrao, seletividade de estmulos, capacidade de abstrao, planejamento, flexibilidade, controle mental, autocontrole e memria operacional (HAMDAN; BUENO, 2005).

    A localizao anatmica do processamento cognitivo das FEs no crtex pr-frontal. Cappovila et al. (2007) afirmam que o crtex pr-frontal, que ocupa quase um tero da massa total do crtex, mantm relaes mltiplas e quase sempre recprocas com inmeras outras estruturas enceflicas. Tais relaes correspondem a conexes com regies de associao do

    9 O nmero de clulas neuronais do crebro humano gira em torno de 86 bilhes, conforme estudo de

    neurocientistas brasileiros que utilizaram um novo mtodo de contagem de neurnios: o fracionador isotrpico - isotropic fractionator . (AZEVEDO et al., 2009).

  • 33

    crtex parietal, temporal e occipital, bem como com diversas estruturas subcorticais, especialmente com o tlamo, e possui as nicas representaes corticais de informaes provenientes do sistema lmbico. Acontecem no crtex pr-frontal processos cognitivos que abarcam o desempenho de subcomponentes, dentre os quais se destacam: focalizao da ateno em informaes relevantes, inibio de processos e informaes concorrentes, programao de processos para tarefas complexas que necessitam de alternncias entre elas (KRISTENSEN, 2006).

    As funes executivas so o produto de uma operao realizada por vrios processos cognitivos, a fim de executar uma tarefa especfica, e o controle executivo (CE) pode ser entendido como mecanismo responsvel pela coordenao de vrios processos implicados na realizao das FEs.

    Funes executivas (FE) referem-se s habilidades cognitivas envolvidas no planejamento, iniciao, seguimento e monitoramento de comportamentos complexos dirigidos a um fim. Na neuropsicologia, o termo FE utilizado para designar uma ampla variedade de funes cognitivas que implicam: ateno, concentrao, seletividade de estmulos, capacidade de abstrao, planejamento, flexibilidade, controle mental, autocontrole e memria operacional.

    Evidncias advindas da avaliao neuropsicolgica, de neuroimagem e de pesquisas neurofisiolgicas tm apontado para a necessidade atual de fracionamento das FEs, diferenciando o produto do mecanismo de execuo. Em outras palavras, FEs podem ser compreendidas como um termo amplo, que se refere ao produto de uma operao eliciada por vrios processos cognitivos para realizar uma tarefa particular. Por sua vez, o controle

    executivo (CE) pode ser compreendido como um sistema ou mecanismo responsvel pela coordenao dos vrios processos implicados na realizao das FEs. O lobo frontal, em particular a regio pr-frontal, tem sido relacionado com o processamento cognitivo das FEs e do CE (Hamdam e Bueno, 2005).

    O controle inibitrio um componente chave das FEs, porque lida com o controle consciente do pensamento e da ao. Outros componentes das Funes Executivas so resistncia interferncia, memria de trabalho (habilidade de manipular informaes da memria de curto prazo), e a habilidade de planejamento.

    Como o prprio nome diz, o controle inibitrio, inibe a ateno aos estmulos menos importantes. A falta deste controle torna a pessoa mais confiante com o que mais exercitado, familiar e parte da rotina o que caracteriza respostas automticas - e menos capaz de ter

  • 34

    pensamentos originais. Alm disso, sem a adequada inibio, a memria de trabalho se ocupa com informaes irrelevantes e h a diminuio da eficincia do processamento cognitivo.

    Segundo Bialystok (2001), uma vantagem exibida pelas crianas bilngues est relacionada a um melhor funcionamento de funes executivas como a ateno e o controle inibitrio. As crianas bilngues so capazes de inibir a ateno para informaes dispersivas de grande salincia e complexidade, muito mais do que as monolngues. Green (1998) props um modelo baseado no controle inibitrio, no qual a lngua no relevante eliminada pelas funes do sistema executivo usado normalmente para controlar a ateno e a inibio. Green (1998) explica que foram feitos grandes progressos no entendimento da natureza e organizaes dos processos que subjazem o desempenho de tarefas especficas, porm ainda so poucos os estudos sobre como os processos com vrios componentes se juntam para desempenhar uma tarefa e no se confundem tentando realizar outra. Ao escutar uma palavra, a pessoa pode decifrar seu significado, escrev-la, repeti-la, associ-la, contar o nmero de letras ou slabas, ou at traduzi-la para outra lngua. Como que os indivduos combinam os vrios processos, fazendo com que desempenhem a tarefa correta e no outra?

    Vamos considerar a tarefa de traduo de uma palavra impressa essa tarefa semelhante tarefa de Stroop10 na qual os bilngues tm de evitar a nomeao do que est impresso, e no seu lugar produzir a traduo equivalente. Isto est conectado com o problema de como so representadas as palavras nas mentes de falantes bilngues. Ervin e Osgood (1954) no especificam como bilngues que adquirem suas duas lnguas no mesmo contexto, poderiam produzir uma palavra em L1 quando o seu significado pode ser expresso pela traduo equivalente em L2. Potter et al. (1984) contrastaram essa viso com outra possibilidade. Partindo de Weinreich (1953), sugeriram que os bilngues podem construir uma ligao lexical direta de uma palavra na L2 para a traduo equivalente em L1. O resultado de tal sistema que o acesso ao significado de uma palavra na L2 se d via representaes das tradues das palavras em L1. Ento, como os indivduos conseguem evitar a produo de uma palavra em L1 quando querem produzir a palavra equivalente em L2? Bialystok (2001) sugere que a traduo de palavras equivalentes conectada tanto por mediao de conceitos quanto por ligaes associativas diretas, mas ainda no uma convergncia de posies em

    10 A tarefa de Stroop aqui mencionada ser explicada em detalhes na metodologia deste trabalho, pois

    um dos instrumentos utilizados neste estudo.

  • 35

    relao traduo de palavras equivalentes no lxico do bilngue, devido diversidade de modelos lexicais bilngues11 existentes na literatura.

    Os bilngues frequentemente conseguem selecionar a lngua a ser falada, inibindo a outra, alm de trocarem de lngua fazendo o chamado code switch no meio de uma fala. Grosjean (1997a, 1997b) afirma que os sistemas da linguagem podem estar em diferentes nveis de ativao e que h um nvel maior de ativao na lngua que est sendo usada com maior predominncia na interao. Para Grosjean, os bilngues podem se diferenciar nos modos de controle das lnguas: eles podem falar uma lngua e excluir outra, ou, dependendo do contexto, podem misturar as lnguas, fazendo o code switching. Tal controle requer sensibilidade a inputs externos e capacidade de direcionamento interno.

    Um pressuposto bsico dessa monitorao e do controle de ativao no uso de duas ou mais lnguas que ambos tm em comum a lngua como forma de ao comunicativa. Em aes no-verbais, os indivduos devem especificar qual objetivo alcanar. Na fala, os indivduos devem especificar que papel cada entidade deve ter. Outra noo importante que a regularizao alcanada pelos nveis de ativao de redes lingusticas, ou itens dentro dessas redes, alm de simples mecanismos de troca (Bialystok, 2001).

    O modelo de Controle Inibitrio de Green (1998), doravante denominado CI, tem caracterstica semelhante a outros modelos de controle lxico-semntico em bilngues. A diferena principal que este modelo assume que as duas ou mais lnguas de um indivduo funcionam como subconjuntos do sistema lingustico tais como as variveis de um espao de estados na Teoria dos Sistemas Dinmicos - e essa viso compartilhada no modelo de percepo (Grosjean, 1997a), reconhecimento visual da palavra e produo da fala.

    A inteno de falar uma lngua e no outra leva ao comeo da ativao do outro sistema lingustico, mas no a sua inibio total. Falar uma lngua reduz a ativao de componentes do sistema. Ativar e desativar sistemas lingusticos permite ao bilngue atingir diferentes modos lingusticos (GROSJEAN, 1985, 1997a). No modo monolngue, uma lngua a lngua base e a outra desativada, pelo menos parcialmente, no modulo bilngue, ao longo de um continuum de ativao lingustica. Quando os indivduos esto falando com pessoas que podem fazer o code-switch ou a mistura das lnguas, os bilngues adotam uma lngua como base - lngua matriz e trazem a outra lngua, quando necessrio, como uma lngua visitante. Em consequncia, ambas as lnguas esto relativamente ativas, mas a lngua base est mais fortemente ativada. No modelo CI, o code-switching envolve uma relao mais

    11 Para uma explicao detalhada e pertinente sobre modelos de produo de fala monolngue e

    bilngue, consultar Prebianca e Xhafaj (2006).

  • 36

    cooperativa do que competitiva entre palavras e produo de esquemas. Se esse modelo estiver correto, ento indivduos bi/multilngues tero prtica macia em exercitar o controle inibitrio tambm em tarefas no verbais.

    Um exemplo do efeito do exerccio do controle inibitrio em crianas bilngues sobre o processamento de funes executivas no verbais o descrito no estudo de Bialystok e Martin (2004), no qual os participantes, crianas de 4, 5 anos, tinham que realizar a tarefa de classificao de cartas por mudana dimensional12. Nessa tarefa, as crianas deveriam agrupar as cartas pela cor (azul, vermelha) ou pela forma (crculo, quadrado). Os participantes primeiro selecionaram as cartas por uma dimenso (cor), mas depois foram instrudos a mudar de parmetro, classificando-as de acordo com um novo parmetro (forma). De acordo com esse estudo, as crianas monolngues persistiam na seleo das cartas pelo parmetro original, ao passo que os bilngues no tinham problemas na troca de parmetro, o que indica nveis mais altos do controle executivo.

    A transferncia observada do domnio verbal para o no verbal, pode se dar tambm entre diferentes domnios verbais. o caso, por exemplo, da transferncia interlingustica, que ocorre com falantes bi/monolngues nos mais diferentes nveis fontico-fonolgico, morfossinttico, semntico e pragmtico e fruto de um sistema de cognio dinmico, como j foi referido anteriormente. A transferncia entre as lnguas faladas pelo multilngue ser, ento, o foco da prxima subseo.

    2.4.3 A transferncia no bi/multilinguismo

    A transferncia na aquisio da lngua estrangeira uma das manifestaes da dinamicidade da cognio no nvel lingustico. Durante um tempo considervel da histria do estudo da aquisio da lngua estrangeira, a transferncia lingustica foi vista como a repetio de velhos hbitos de uma lngua para a outra (LADO, 1957), tendo, assim, cado em descrdito. A partir da dcada de 80, essa credibilidade foi recuperada e hoje desempenha papel fundamental nas teorias de aquisio de segunda lngua.

    De acordo com Uylings (2006), que se vale de mtodos advindos da neurolingustica para explicar a transferncia de uma L1-L2, a grande plasticidade de elementos do circuito cerebral como as habilidades sinptica e a dendrtica, as estruturas implicadas no aprendizado de uma L2, bem como o fato de o conhecimento, como um todo,

    12 O nome da tarefa originalmente dimensional-change card-sort task (DCCS).

  • 37

    ser amplamente generalizvel, pode levar a concluir que essas caractersticas da organizao cerebral favorecem, em indivduos bilngues e multilngues, a ocorrncia de transferncias de um sistema lingustico para outro. Mas em que consiste a transferncia lingustica?

    A transferncia um fenmeno complexo no qual os aprendizes baseiam-se no conhecimento que tm da lngua materna para compreender e para produzir as estruturas da lngua estrangeira seja no nvel fonolgico, morfossinttico, semntico ou pragmtico (ZIMMER, 2007). Porm, nem sempre a transferncia foi vista como benefcio para o bilinguismo. Na dcada de 50, a transferncia era tida como interferncia de velhos hbitos (L1) na aquisio de novos hbitos (L2) e a aquisio da L2 era a poca de se livrar de velhos hbitos. Em 1957, Lado apresentou a Hiptese da Anlise Contrastiva, na qual as semelhanas da L1 com a L2 seriam facilmente incorporadas na aprendizagem da L2, ao passo que as diferenas entre a L1 e a L2 originariam dificuldades. A transferncia nessa poca era negativa, entendida como interferncia (WEINRICH, 1953) da lngua materna, um processo negativo que induziria o falante a cometer erros durante a aprendizagem da LE.

    Na dcada de 60, o behaviorismo perdeu credibilidade e, portanto, no havia mais sentido em continuar tentando entender a aprendizagem lingustica em termos de aquisio de hbitos. Assim, os estudos sobre a transferncia lingstica foram de certa forma, proscritos, j que estavam fortemente relacionados ao behaviorismo (ZIMMER, 2007).

    Com o passar do tempo a transferncia lingustica comeou a ser vista como desempenhando um papel fundamental no processo de aprendizagem da L2. Isso levou os pesquisadores, nos anos 90, a aprofundarem os estudos da transferncia interlingustica como estratgia de aprendizagem para uma segunda ou terceira, quarta lngua (ZIMMER, 2008). medida que o aprendiz vai se tornando proficiente, ao longo do tempo, vai construindo ligaes diretas entre sons e significados na L2, alm de reestruturar conceitos j existentes na lngua materna. Assim, o aprendiz vai, pouco a pouco, aumentando o acesso automtico ao lxico e estrutura gramatical e fonolgica na L2 sem recorrer lngua materna. A

    reestruturao do espao lingustico do aprendiz desfaz a forte associao inicial entre a lngua materna e a estrangeira, embora algum grau de transferncia entre as duas lnguas esteja sempre presente, dada a natureza interativa do processamento cognitivo (MacWHINNEY, 2001).

    De Bot (2004), em seu Modelo de Processamento Multilngue (The Multilingual Processing Model), defende que as lnguas aprendidas pelo trilngue sempre so ativadas simultaneamente, o que acaba gerando uma competio constante entre elas tanto no momento da produo quanto da percepo lingustica. Entretanto, isso no implica que todas

  • 38

    as palavras de todas as lnguas do multilngue tenham as mesmas chances de serem ativadas. Para de Bot (op. cit.), a lngua que for ativada com mais frequncia tender a sobrepujar as demais. O modelo de De Bot prediz igualmente uma competio, no nvel fonolgico, entre as formas semelhantes das lnguas do multilngue. sobre o desenvolvimento do sistema fonolgico do bilngue, bem como da transferncia do conhecimento fontico-fonolgico, que trata a seo a seguir.

    2.4.4 O sistema fonolgico do bi/multilngue

    Durante os primeiros anos de vida, as crianas adquirem a habilidade de processamento dos sistemas dos sons da lngua materna. Esta habilidade ser refinada ao longo dos prximos anos de vida e isso permitir que os outros membros da mesma comunidade lingustica se identifiquem. Quando, mais tarde na vida, os seres humanos tentam aprender uma lngua estrangeira, no so raros os casos em que h forte sotaque inclusive no s na produo da fala, mas tambm na sua percepo ouvintes no nativos s vezes falham no reconhecimento de determinados sons da L2.

    Por que to difcil dominar os sons de uma L2? A resposta para esta pergunta complexa dada por Nria Sebastin-Gales & Laura Bosh (2000) no livro Handbook of Bilingualism, cujo captulo tem o mesmo ttulo desta sesso. Elas respondem a essa pergunta fazendo outras indagaes, como Por que algumas pessoas aprendem com mais facilidade que as outras? Por que alguns sons de L2 so to difceis e, s vezes, impossveis de ser aprendidos?. Essas questes esto no mago do domnio da aquisio e processamento da fonologia da L2. A primeira pergunta lida com as diferenas individuais. A segunda pergunta trata das diferenas fonolgicas dos sistemas de L1 e L2. A terceira questo, por sua vez, aborda a dificuldade de aprendizagem da fonologia de L2, que um assunto intimamente relacionado plasticidade cerebral, que se reflete sobre o sistema de aprendizagem da fala.

    Para as autoras, inegvel que h dois fatores determinantes para melhor aprendizagem da L2 primeiro quanto mais cedo melhor e segundo quanto mais experincia melhor, isto quer dizer tempo e quantidade. Estes dois aspectos so as principais variveis que subjazem ao sistema cerebral e mudana. No comeo da vida, o crebro altamente plstico, ento apenas pequenas exposies podem ter grandes consequncias. O crebro humano uma estrutura viva que est sempre mudando e se adaptando a novas vivncias, sendo assim quanto mais exposto estiver a certa aprendizagem maior o nmero de

  • 39

    mudanas que podem acontecer. Deve-se considerar que nem todas as reas do crebro se desenvolvem ao mesmo tempo, por exemplo, a criana nasce praticamente cega, porm sua audio excelente. A aprendizagem de uma L2, especialmente seu sistema de sons, uma tarefa que requer a colaborao de diferentes reas do crebro, algumas funcionando desde o nascimento, outras que somente entraram em funcionamento meses depois. Um dos primeiros pr-requisitos para se tornar um bilngue distinguir que existem dois sistemas de sons no ambiente. Dados de recm nascidos monolngues mostram que eles podem diferenciar entre pares de lnguas, mas no entre qualquer um. Os recm nascidos distinguem entre espanhol e ingls, ingls e japons, mas no entre ingls e holands, porque essas lnguas so tipologicamente muito prximas, tm a mesma categoria rtmica (MEHLER et al., 1996; NAZZI et al., 1998).

    Parece ser a prosdia o comeo de tudo na lngua. a partir dela que a criana distingue os idiomas.

    A informao prosdica pode facilitar a descoberta de dois sistemas diferentes de linguagem e talvez auxiliar as crianas a comear a construir a partir desta informao dois sistemas distintos at mesmo antes de alcanarem o estgio lexical do desenvolvimento da linguagem. (SEBASTIN-GALES; BOSH, 2000, p.71)

    De acordo com Sebastin-Gales e Bosh (2000), no existem registros que comprovem a capacidade de discriminao de lnguas com recm nascidos, mas pode-se dizer, ao menos teoricamente, que recm nascidos expostos simultaneamente a diferentes categorias rtmicas so capazes de distinguir os sons das diferentes lnguas a que so expostos. Estudos realizados com bebs monolngues de seis meses de idade comprovam que so capazes de distinguir os fonemas da sua lngua materna e com o passar do primeiro ano esta diferenciao j no acontece com tanta facilidade (SEBASTIN-GALES; BOSH, 2000).

    Em uma srie de experimentos realizados por Burns et al. (1999) sobre as fronteiras dos fones [b], [p] e [pH], foram investigados o tempo de desenvolvimento e a natureza das representaes fonticas destes sons. Quando feita a comparao entre monolngues e bilngues, a diferena foi apontada por volta dos 10 -12 meses de idade. Enquanto os monolngues j haviam categorizado corretamente na sua lngua materna estes sons, os bilngues ainda no haviam feito tal categorizao em nenhuma das suas lnguas, o que s aconteceria por volta dos 14-21 meses de idade. Isso sugere que crianas em ambientes bilngues esto por muito mais tempo suscetveis organizao e reorganizao fontico-fonolgica e indica que h transferncia entre as lnguas faladas por bilngues. Esse assunto ser tratado mais detalhadamente na seo a seguir.

  • 40

    Quanto ao desenvolvimento da fala, pode-se tambm mencionar que a discriminao auditiva tem um papel muito importante para o desenvolvimento fonolgico da criana. a partir da percepo dos fones e da tentativa de sua produo que a criana vai adquirindo o sistema fonolgico de sua LM. Para Flege (2001, 2002), os bilngues tardios e os aprendizes da L2 tendem a padronizar o sistema fonolgico da L2 de acordo com a sua lngua materna. Assim, como muitas vezes no reconhecem o fone ouvido como diferente de um fone que mapeie para uma categoria fonolgicadiferente, tendem a classific-lo como uma instncia de um fonema de sua LM que esteja prximo daquele fone que pensam ter percebido e, assim, produzem uma transferncia de padres fontico-fonolgicos causada pela proximidade perceptual e articulatria entre o sistema fontico-fonolgico da L1 e da L2. Poucos estudos foram feitos no Brasil sobre o multilinguismo; nos pargrafos a seguir, farei um breve apanhado do estudo realizado por Brito (no prelo) e um estudo emprico realizado por Blank (2008), que serviu como base para a sua dissertao de mestrado.

    Brito (no prelo) apresenta um apanhado terico sobre multilinguismo individual, cujo foco est na aprendizagem de diversas lnguas pelo mesmo indivduo, e questiona dois aspectos tericos que tm vigorado nas pesquisas lingusticas: o monolinguismo, por um lado, o carter pouco abrangente dos estudos em Aquisio de Segunda Lngua, que tm restringido o escopo de investigaes considerao de apenas uma lngua estrangeira/segunda lngua. A partir de uma perspectiva psicolingustica, a aprendizagem e o uso de outras lnguas estrangeiras, alm da primeira, so fenmenos mais complexos, e qualitativamente difer