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Diário do Mindelact

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mais uma pagina do dia a dia

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Diário do Mindelact

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Diário do Mindelact Textos de Abrãao Vicente

Fotografias de Diogo Bento Coordenação e Design de Samira Pereira

Dia 1 Cabeças a abanar… Dia 2 Monte Cara fumando nuvens… Dia 3 Bsot Tud

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Cabeças a abanar... Mas afinal do que é que se alimentam os artistas. Da loucura, por certo. Cabeças a abanar, corpos em transe e a música das ilhas. Toda a música das ilhas. Quem são os loucos. Onde pára a lucidez. Na verdade com lúcidez há muita razão em desis-tir. Mas estes tipos não desistem. Falo dos artistas, claro, mas também das gentes do Mindelact. Cabeças no ar dizia eu, mas antes disso uma estranha e belíssima coreografia dos alunos do 14º Curso de Iniciação Teatral. A performance "As 4 Estações" na esta-ção das chuvas num dia em que fez Sol em Mindelo. Talvez por isso, hoje, as arvo-res da cidade abanam as cabeças pedindo chuva. As quatro estações com Pina Baush dentro e a rua de Lisboa em espanto. Serão loucos esses meninos de cabe-ça ao ar como as árvores da manhã de hoje pedindo chuva.E dizem que ontem foi o primeiro dia. Como é possivel o primeiro dia acontecer aos 18 anos. E esta cida-de que está sempre alerta apesar de silênciosa. Onde se bebem os vinhos, senho-res? Onde se pisam as letras, onde se compra o futuro? Porque é que as nuvens insistem em tapar a cara ao Monte Cara. E de noite esse burburinho, o jantar às pressas e o Mágico Corsa querendo mudar de camisa. Entretanto três matulões no mítico Renault4 do pintor dos monstros. Tchalê de COHIBA na boca, Corsa indicando o caminho pelas ruas de Mindelo e eu contando os minutos entre sorrisos e gargalhadas pela magia do momento. Em Mindelo, acontecem coisas sublimes enquanto se espera que a magia aconteça. Acontecem abraços inesperados e a palavra SODADI é pronunciada nas suas mais variadas formas e tonalidades. Lembrei-me de repente que este é o primeiro Min-delact sem Cesária Évora. As coisas de que se lembram quando Monte Cara se vê por toda a cidade. As àrvores abanam os ramos e talvez chova hoje em Mindelo. Tenho pena que mesmo à chuva a estátua de Cesária continue comendo gelados no aeroporto. Há monstros que devem ser destruídos e em seu lugar plantar a arte. Mas é preciso coragem para se alimentar a arte em vez de simulacros. Não há lógica nem na cobardia nem no esquecimento. No palco, Mano Preto, o coreógrafo dos Raíz de Polón consolida a sua linguagem em Cidade Velha. Todo o diccionário, todo o corpo, toda a alma do longo percurso de Raíz di Polón numa peça de extraordinária beleza. De que material é feito o artista. De carne e osso, suponho. E por isso tanta subtileza, tanto encanto. Passo e repitiçao. Traços e movimentos. Corpos e fragmentação. Da Rosa, Rosy, Kaka, Zeca, Susana e Djamila. Os 6 bailarinos no palco e umas lágrimas de emoção que me queriam assaltar a face. Esses artistas são loucos. É preciso loucura para tanta lucidez, loucura para inventar espaços tão precisos onde se pode viver sem corpo nem peso. Apenas alma e ritmo. Começou o Mindelact, pois é Setembro, chove nas ilhas e ainda há seres humanos de uma bondade e de uma força de vontade extraordinária para remar contra a maré e acreditar no sonho. O Mindelact é um oásis de optimismo nas artes em Cabo Verde. Como se constroi o corpo de um artista. De sonhos, senhores. De sonhos

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Monte Cara fumando nuvens... No mindelact faz-se teatro de qualidade. Não tenhamos dúvidas disso. O Minde-lact é feito de sangue novo. Sabiam que a disciplina é remédio santo para muitos males. Onde estão os notaveis desta ilha que não os vejo, onde estão os críticos da cartola que não sinto os seus aplausos. O cego e o paralítico. Qual deles um de nós. Tens de pensar mais em mim, disse o cego. Eu disse que tinha pena de ti quando os outros te faziam mal não quando eu te faço mal, disse o paralítico. Egos e sirenes ao pé da baía. Monte cara fumando nuvens, jovens em transe na Ribeira da Craquinha. É preciso "Sabê Vivê" nha boyz. Vinte escudos ta bom mister. Silvia e Elba Lima mais uma vez com pedagogia no Jotamont e os do Craq'Otxod num jogo sedutor de corpos e silhuetas vaticinam uma nova Ordem Mundial. Tu com as minhas per-nas e eu com os teus olhos. O cego e o paralítico imitando a parafernália das ilhas. Cada uma sua virtude num negócio improvável de comadres. Meter o pau no fun-do da ferida e fazer gritar o ceguinho. Desamparar o paralítico das nossas costas e tentar a fuga. Em Mindelo há gente capaz de fazer um Mindelact em 18 temporadas. Mas é pre-ciso também haver gente capaz de impludir os tanques de combustíveis que estragam a paisagem, é preciso haver gente que ponha fim à ignorância doentia das palavras sem acção repitidas décadas após decadas. É o teatro senhores, é o teatro. Muitas polpas "pregod" na laginha sem saber que na Craquinha uma Romina, ma katelene, ma Salete, uma Gielinda, um Fabrisio e uma Janilda acreditam no teatro e transfiguram suas vidas em momentos de catarse e pasmo. Há muito talento nesta ilha. Há barcos afundados na baía. Não os vemos, mas estão lá. Piratas e sereias que encandeiam os nossos passos a cada madrugada. Se o cego consegue ver eu também posso andar. Matar o cego e descobrir o improvável. Cegos em delirios. Paralíticos visionários. Seremos nós cada um deles. Qual de nós? Raul Rosário e Correia Adão Pelinganga foram maiores que o texto. Soberba interpre-tação. As homenagens são provas de gratidão. Ontem os de Angola, irmãos do Elinga Teatro, receberam a estatueta e falaram de coraçao um "obrigado". Obrigado não, pois como disse José Mena Abrantes no momento "isto não pode ter sido somente pela amizade que nos une". Pois não. Foi pelo mérito, pela caminhada juntos, pelo talento.Obrigado sim. Os artistas, suas taras e fantasias. Conversas. É preciso mais escrita dramatúrgica caboverdiana. Proponho as penas de Filinto Elisio, de Chissana Guimarães (por onde andará a Chissana?), de Silvino Évora e de Caplan Neves. Proponho um pré-mio anual para o melhor texto dramaturgico caboverdiano. Proponho que seja financiada por uma grande empresa nacional. Mas dizia, os artistas, suas musas, suas nuvens...isso, Capitão Farel debitando his-tórias e Monte Cara indiferente ao azul enquanto caça nuvens ao acaso no céu do atlântico mar.

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Bzot tud...

"Bzot tud merecé um merda" berrou o bêbedo em frente à praça nova. O Palhaço Enano imitando fucinhos, criando o non sense na cidade paralisada pelo improvável golpe da ironia."Bzot tud merecé um merda", volta a atacar o bêbedo urbano. Será isso a traduçao literal para a linguagem dos bebe-dos da clássica frase "muita merda" usada pelos actores para desejar boa sorte e um bom espetáculo aos colegas. A que espetáculo estará ele a referir: à cidade paralisada, às meninas que oferecem "cafés" em frente aos hotéis do centro, às mãos estendidas aos loucos da cidades, aos citadinos sen-tados nos cafés ou ao palhaço Enano e Nick Fortes feitos cão de raça da madame Zenaida Alfama. Isso ou o cupido louco que anda pela cidade em enanomanias. Bzot tud merecé um merda, isso digo eu. Já dizia Nelson Rodrigues que com bons sentimentos nem literatura, nem política, nem futebol.

Da varanda fotográfo Monte Cara várias vezes ao dia. Sempre diferente. Tento imaginar esse monte sem a cara, faço mil malabarismos com a mente para eliminar a cara ao monte. Desconsigo tal como as personagens de Mia Couto. Volto a tentar, agora imaginar esta cidade em Setembro sem o Minde-lact. Mil malabarismos. Desconsigo e dou por mim a saber da minha falta de imaginaçao para o improvável.Bzot tud merecé um merda. Entenderá Monte Cara a perversidade desse grito. Os da Morada, dos Calhaus, das Baías das Gatas, dos navios afundados. As crianças e os teatros de fantasia. Beckett fazendo figas.

Há muito que nos retirámos da pressa dos dias e do desassossego das noite. Escreveu Al Berto com os exactos cinco "S" da palavra contrária a sossego que por sua vez apenas três. "N ka ten tempo,N ka ten tempo,N ka ten tempo... A fisicalidade de Spinola emprestada ao coelho da Alice. Alice que perdida e mesmo assim rebelde e petulante. Laura Branco sai aos seus com graça e talento. Nós aplausos. Onde estão as crianças de Mindelo na tarde de domingo. Perdidas no mundo mágico da Alice ou será da Janaína Alves. Beckett fazendo figas, Nelson chingando "só o rosto é indecente" cavalheiros. Só o rosto é indecente..."do pescoço para baixo, podia-se andar nu".N ka ten tempo,N ka ten tempo,N ka ten tempo... Crianças em delirio, pois cabeças irão rolar.

No pátio do CCM outras magias e a ternura da descoberta.Enano insistindo em ser bailarina troca as voltas ao menino Nilo Independente e à plateia com dores nas bochechas. Isso e Arménio Vieira con-jecturando novas faunas entre Heliofante, Plurifante, Mitofante, Necrofante, Ornifante, Putifante, Androfante, Fenolofante e assim por diante. Alice, mais à frente desvendando novos talentos entre Cristian Andrade, Ricardo Fidalga, Patricia Silva, Adilson Spinola, Susy Maocha, Ná Lopes, Quelton dos Santos, Genú Delgado, Yara Azevedo, Aramis Évora, isso para não repitir Laura Branco que por razões várias devo aqui revelar ser filha do magnifico chapeleiro bebedor de chá João Branco. Algo inimagi-nável pelo próprio Lewis Corroll que também por certo não teria tanta imaginaçao como os Minde-lenses para botar nomes aos filhos."Bzot tud merecé um merda" no mais teatral dos sentidos, claro.

De resto é preciso dizer que devemos voltar à Craquinha e não deixar que os canalhas do costume boicotem a escolha da maioria. De resto é preciso dizer que a magia de Corsa cura pela fantasia e pela perspicácia e que nada nos impedirá de acreditar. Isso porque cabeças irão rolar e lá fundo o velho bêbedo tem as suas razões quando apregoa sem pudor: "Bzot tud merecé um merda".

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Punhais de Prata na valsa número 6...

Onde há gente neste mundo. Um bispo promíscuo, uma raínha submissa,um cavalo que chuta

heroína nas veias, príncipe afinal,um Rei em cadeira de rodas. Fim. O bispo outra vez. Entre todos.

Cheque mate. HIV. Positivo. O monólogo das desgraças num espaço secreto do coraçao de Minde-

lo. Cheque Mate. Dei a volta ao mundo e de todos os lugares trouxe objectos típicos, característi-

cos. Em Cabo Verde não encontrei nada. Trouxe a morabeza. Xeque mate. O bispo, o príncipe, a

rainha, o rei. Positivo no sangue. Um lugar secreto de Mindelo. Sídney Bretanha. Fernando pessoa

e seus "eus" entre Nelson Rodrigues e a menina que via caras e se envergonha de ver pés nús. A

valsa número 6. O importante é não dar muita confiança à morte. Luisa Thiré perseguida por um

vestido. Deslumbrante. Sôoooooooniaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Grito. Paaauuuulooooooooooo!

Grito. A transição. Foi da transiçao. 15 anos. 14 anos! 15 ou 14 anos que importância tem. Cheque

mate. Fumar cigarros em ambar. Cravar punhais de prata na valsa número 6.O importante é não

dar confiança à morte. Onde há gente nesta terra. Ana Madureira

com cachupa no estômago e morabeza na mala. Risos. Eu não mataria ninguém...Mas ela, ela é

capaz de tudo. Meter os braços pelas ventas da vaca e ajeitar o bezerro. Repensar o contrato entre

as vacas e Deus, Quico Cadaval. Filosofias. Anoitecer em Mindelo. Uma raínha submissa.Silêncio. O

palco e suas entrelinhas. Como podem caber tantas sensações num só dia. Os palcos. Nelson Rodri-

gues e suas adúlteras bebendo grogue com as meninas e boémios de Mindelo. A escrita criativa por

um fio. Heroína pelas veias. Pessoa passeando Caeiro. Sôniaaaaaaaaaaaaaaaaa...onde estão as

vossas caras. Tantos olhos! Meu Deus.Deus? Xeque Mate. O teatro. O palco. Vida. Onde há gente

nesta cidade. Cheque mate

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