diário do pará (brasil adentro - música do pará)
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Nova série do Canal Brasil, apresentado e dirigido por Charles GavinTRANSCRIPT
Quinta-feira, 10/01/2013, 04h05
Ex-Titã Charles Gavin fala sobre a
música do Pará
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Depois de produzir alguns discos seminais, Charles Gavin, ex-baterista dos Titãs, tomou
para si a missão de revelar outras pérolas da música brasileira como apresentador do
“Som do Vinil”. Criado em 2006, para durar apenas sete episódios, a proposta do
programa do Canal Brasil era contar os bastidores da produção dos álbuns por meio de
entrevistas com os artistas que os criaram. “Hoje já estamos na sétima temporada, vai
passar de 150 episódios. É um feito louvável, mesmo porque é cada vez mais raro ver
programas dedicados à música na tevê brasileira. Se não está sendo empurrado para
horários cada vez mais absurdos, como a madrugada, acaba sendo substituído por uma
programação mais comercial, como esporte. Música é uma coisa que a gente tem que
preservar”, afirma o músico em entrevista por telefone do Rio de Janeiro. Ele dá mais
um importante passo no papel de defensor da música nacional com o programa “Brasil
Adentro - Música do Pará”, que estreia hoje no Canal Brasil. Dividida em cinco
episódios, a serie rodada no ano passado em Belém reúne 23 entrevistas com nomes da
velha e nova geração da música paraense, como Fafá de Belém, Leila Pinheiro, Gaby
Amarantos, Paulo André Barata, Pio Lobato, Pinduca e Felipe Cordeiro. “A cena
paraense esta vivendo um momento muito interessante. O programa é uma tentativa de
mostrar para o resto do país um pouco dessa produção paraense”, define.
Além da euforia do tecnobrega
Em entrevista ao VOCÊ, Charles Gavin conta detalhes sobre o programa e seu
mergulho na música paraense, sobre a qual faz questão de não esconder o entusiasmo.
“O programa deixa bem claro: a minha surpresa é latente”, revela.
P: De onde surgiu o interesse pela música paraense?
R: O tema não surgiu de uma hora pra outra. Não posso deixar de dar crédito ao
Hermano Vianna [antropólogo e pesquisador de música brasileira], que desde a década
de 90 vem falando de economia criativa do tecnobrega. De como esse ritmo vem se
adaptando, se transformando, criando novos modelos de negócios que estão anos à
frente do resto do país. O Nelson Motta [produtor e jornalista] foi outro que me deixou
de orelha em pé sobre o assunto. Me chamou atenção um artigo dele falando sobre a
diversidade da música daí, da união de estilos e gerações de músicos. Paralelamente,
toda a vez que eu ia à casa do Geraldinho Magalhães [produtor do programa “Som do
Vinil” e que também assina a produção e cocuradoria de “Brasil Adentro”] tinha um CD
de algum novo artista paraense. Foi com ele que escutei pela primeira vez o disco do La
Pupuña e fiquei encantado. Me perguntava: “Como nunca ouvi falar desses caras?
Porque eles não estão estourados por aí?”. Ele me apresentou outras pérolas como os
Mestres da Guitarrada, o “Música Magneta” [álbum duplo de versões do Mestres
assinado por nomes da cena pernambucana como Pupillo, do Nação Zumbi, e DJ
Dolores]. Diante desses discos incríveis, para mim era claro que a cena paraense estava
vivendo um momento muito interessante.
P: Como isso desembocou na ideia do programa?
R: A proposta era fazer um programa investigativo, ao molde do “Som do Vinil”. Só
que não tínhamos a menor ideia de como fazer isso. Apenas sabíamos que queríamos ir
ao Pará ver de perto. O Geraldinho veio na frente, fizemos contatos com a Secretaria [de
Estado e Comunicação - Secom], sondamos alguns músicos. Fomos afinando o
discurso. Até que a Secretaria embarcou nessa com a gente. Tem uma coisa que
acontece no eixo Rio-São Paulo que me incomoda bastante. É uma muralha econômica
imposta pela região que é muito difícil de ser ultrapassada. Se a coisa não estiver
acontecendo embaixo de nossos narizes, ela não existe. Isso se reflete na tevê a cabo,
que é ‘Sãopaulocêntrica’ ou ‘Riocêntrica’. O que está se fazendo em Belém, em São
Luís, em Macapá? Eu quero saber. O programa é uma tentativa de mostrar a produção
paraense e uma tentativa de descentralizar a programação da tevê a cabo.
P: O que você “descobriu” aqui durante sua pesquisa?
R: Que definir o que queríamos do programa seria uma tarefa muito difícil. O Mestre
Curica é um bom exemplo disso. Ele transita ao mesmo tempo por estilos como
guitarrada, lambada, carimbó. É uma cara de cabeça muito aberta. Em São Paulo ainda
se vive um momento de segmentação, quem é da MPB é da MPB. Quem é do rockabilly
não se mistura. Agora nós vemos surgir uma geração que vem quebrando esse
preconceito. Então pra gente chegar a um formato de programa, nós sofremos. Os
editores eram os que mais tinham dúvidas. Eles perguntavam: “Esse episódio é sobre
guitarrada, certo? Não é o que o Curica toca? Porque ele está falando de carimbó?”. Aí
eu tinha que passar um seminário: “Guitarrada não é um ritmo, é um jeito de tocar a
guitarra. Como a música é instrumental, o instrumento faz as vezes de vocalista na
música”. Aí vinha o Mestre Solano, que também é classificado como guitarreiro, mas só
que ele canta. Depois todos voltavam a não entender mais nada. Foram mais de 23
entrevistas. Voltamos com tantas horas de gravação que a Paola Vieira, que assina a
direção junto comigo, ficou desesperada. Nós tivemos que convencer o Canal Brasil a
fazer cada episódio com 50 minutos ao invés de 25, que é a duração habitual. É muita
informação. São cinco programas ao todo, mais ou menos temáticos. O primeiro trata
do carimbó, já que também abarca a história da música do Pará. Conversamos com
Pinduca, Mestre Curica, o pessoal do Arraial do Pavulagem. Existe um episódio
dedicado a guitarrada e suas variações, como a lambada. Temos um contando a
evolução do brega e tecnobrega, com a Gaby, o Edilson Moreno e Gang do Eletro.
P: Como vocês fizeram a curadoria? O formato explora o que além das entrevistas?
R: Gravamos em abril do ano passado. Foram duas visitas à região. Vasculhamos o
acervo de algumas rádios da cidade e nos deparamos com algumas raridades como os
discos da Gravasom, uma extinta gravadora local. Dividimos em dois momentos, as
entrevistas mais aprofundadas no estúdio e a visita em alguns locais, como uma festa de
aparelhagem, por exemplo. Há alguns achados como a entrevista com a Gaby
Amarantos, que foi feita na casa dela. Conversamos com a Dona Onete durante a
gravação do seu disco de estreia, o “Feitiço Caboclo”. As entrevistas são intercaladas
com alguns trechos de documentários e imagens de arquivo retirados de curtas-
metragens e filmes locais como o “Chama Verequete” (Luiz Arnaldo Campos e Rogério
Parreira, 2001). Eu fiquei encantando com a disponibilidade dos artistas paraenses. A
Lu Guedes cantou a capela, sendo que o trabalho dela é extremamente rico e complexo,
com arranjos orquestrados, elementos eletrônicos.
P: Não quero colocá-lo em uma posição difícil, mas algum músico lhe chamou mais
atenção durante as entrevistas?
R: É de fato uma pergunta difícil. O Pinduca é uma figura inacreditável. Um hitmaker,
uma referência no carimbó e um músico incompreendido. Ele foi o responsável pela
modernização da música regional, eletrificando o carimbó. E justamente por causa disso
não é visto com bons olhos por alguns puristas, que consideram que ele desvirtuou o
gênero. Bom, sendo ele ou não o detentor do carimbó legítimo, o que ele faz é
maravilhoso. O que ele fez grandes nomes da música também fizeram, como Chico
Science, Caetano Veloso, Tom Zé. Inclusive eu tentei conseguir alguns de seus discos
para minha coleção ai em Belém, mas não consegui achar nada nos sebos da cidade.
Vou ter que me conformar com esse vazio na minha discoteca. Outra grande surpresa
foi o Fernando Belém. Eu ouvi falar sobre ele durante a nossa visita em alguma rádio
daí, estava vasculhando o acervo e a capa dos seus discos chamou logo a atenção. Em
todos eles, o cara aparecia de óculos escuros com seu nome gravado nele. Falei:
“Preciso conhecer esse cara”. Minha intuição estava certa. Fernando é dono de uma
trajetória interessantíssima: começou como cantor de MPB, depois fez uma transição
para o brega e se tornou mais conhecido como o “Rei do Merengue”. Suas letras são
engraçadíssimas, bem sacanas, cheias de duplo sentido. A entrevista foi tão engraçada
que durante uma das tiradas dele tive um acesso de risos, que até mantivemos na edição.
P: O que acha da euforia em torno do tecnobrega, um estilo de origem popular que vem
caindo no gosto até dos mais antenados? Isso te influenciou de alguma forma?
R: A gente não foi contaminado por essa euforia em torno do tecnobrega. É justo que
isso aconteça e as pessoas estejam falando disso, porque é um ritmo contagiante.
Digamos que fomos igualmente interessados em conhecer o tecnobrega, como fomos
pelo carimbó, pelo samba de cacete. Eu vejo muita semelhança entre a atual ascensão do
tecnobrega e a disseminação do funk carioca. Os dois são músicas eletrônicas com um
sotaque brasileiro. Mas o tecnobrega... Vi uma gravação do show da Gang do Eletro e
fiquei de queixo caído. A energia no palco do grupo contagia, tanto que o DJ Waldo
Squash já começa a ganhar projeção lá fora, fazendo um remix pro Pet Shop Boys. Mas
é nas ruas de Belém que a gente sente a força cultural desse fenômeno. Visitei com a
Gaby uma aparelhagem, o Príncipe Negro. Ficou um gosto de quero mais. Queríamos
ter visitado várias, até para efeito de comparação. O programa deixa bem claro: a minha
surpresa é latente. Se dependesse de mim, ficaria meses aí, gravando.
P: Consegue ver algum paralelo entre o que está acontecendo no Pará com algum outro
movimento musical?
R: Lembra um pouco o manguebeat, ao abarcar a tradição aliada à musica que está
sendo feita no momento. Pessoas como o Felipe Cordeiro, a Gaby Amarantos são bons
exemplos. Até escolhas menos óbvias provam a comparação, como o Coletivo Rádio
Cipó, um grupo de rock que mistura ritmos regionais, rap, dub. Outro ponto interessante
é que a maioria dos artistas paraenses cita a influência de Chico Science. Mas em
termos de estética, eu não me arriscaria a fazer uma comparação. O fato é que existe
uma miscigenação na música paraense que é única. Junte aí a influência da música
caribenha, os anos de “isolamento” cultural que fizeram os artistas daí desenvolverem
um estilo longe dos modismos radiofônicos. O que percebi é que Belém é uma cidade
na qual o silêncio não existe. Toda hora se escuta uma música, o grito dos vendedores, o
barulho de alguma feira a céu aberto. Fui a um bar que era bem a cara disso, o Beatles.
O cara deixa uma pilha de vinil para os clientes escolherem e botar na vitrola. De uma
hora pra outra estava tocando um brega, depois um Rolling Stones. Onde mais senão aí?
(Diário do Pará)