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Memórias de Benedito Ildefonso Pontes

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Pág. 3

Assim decorriam os dias de minha infância, junto com meus inesquecíveis pais, na minha cidadezinha natal.

Nascido e educado com regime de velhos preconceitos, formou-se o meu caráter na escola do dever e do trabalho; cultivando dentro dos preceitos da religião católica algumas virtudes que, graças a Deus, germinaram no meu “EU”.

Infelizmente dotado de um espírito um tanto irrequieto. e um temperamento nervoso acentuado era corajoso e brigalhão. Reinador consumado e com um espírito de observação fora do comum muito trabalho dava à minha mãe que era obrigada, às vezes a prender-me ao pé de uma mesa como se eu fosse um macaco.

Inteligência normal, embora com cinco anos já soubesse ler e escrever algumas garatujas.

Nascido sob o signo de câncer, tenho por inimigo o planeta Urano e por protetora a Lua, que tira-me das dificuldades no momento oportuno.

Pág. 4 Contemplando os quarenta e cinco anos decorridos entre os fatos que eu vou narrar sinto-me satisfeito em recordar as diabruras inocentes que pratiquei porque não tendo havido maldades, não guardo remorso.

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UM SUSTO

Contava eu nessa data com seis anos. Na fazendinha do meu avô a água para se beber era trazida de uma nascente, uns duzentos metros da casa grande.

Como era um lugar um tanto pitoresco eu gostava de passar horas e horas contemplando o filete d´água a correr ou fazendo meus monjolinhos com folhas de caraguatás que junto a fonte existia em abundância.

Minha mãe muito se preocupava pelo medo que tinha de alguma cobra viesse a me picar. Muitas reprimendas e mesmo chineladas levei, mas teimoso como sempre, não a obedecia.

Um dia meu pai resolveu o problema facilmente em meu prejuízo e que me valeu um tremendo susto: mandou que um camarada fizesse uma espécie de poço ou represa e lá depositou uma grande rã ou “intanha” como era chamada pelos caboclos.

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Chamando me disse meu pai: Não irá mais a fonte senão a rã te pega pelas pernas. Eu naturalmente não dei o menor crédito, continuando a construir meus monjolinhos.

Não demorou muito em embirrar-me com o batráquio procurando sempre molesta-lo com uma vara

Irritada, a pobre rã reagia levantando-se nas quatro patas deu um bufo e partiu para cima de mim.

Naquele momento pareceu-me um monstro a querer me devorar. Dei um formidável grito e desandei morro acima numa carreira louca, chegando à casa apavorado. Acudiram-me todos a indagar o acontecido. Ao saberem do fato, caíram na gargalhada desfazendo meu medo.

Por muitas noites meu sono era entrecortado por sonhos horríveis que me faziam dar gritos.

Nunca mais fui fazer monjolinhos na pequena fonte.

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CASTIGO MERECIDO

Quando era pequeno gostava muito de caçar passarinho em arapucas, gaiolas, armadilhas, etc. Morando num sítio onde a casa tanto de pelos como de penas existia até quase as portas de casa era muito natural que eu aproveitasse o mais possível e gostosos manjares procedentes dos inhambus, jacus e outras aves que infestavam as nossas matas Todos sabem que no sertão não há sitiante ou mesmo agregado que não possuía a sua pica pau, espingarda de preço barato, e que se carrega pela boca. Com essa arma que ele estima deveras, não constitui propriamente uma defesa, mas diverte-se a valer nos dias de folga percorrendo as capoeiras ceifando a vida das pobres avesitas e inofensivos roedores que lhe caem na mira.

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Oia, eu como bom caipira que era, acostumado a [...] meu pai trazer fieira de belas pombas-jurutis para que mamãe as preparasse com arroz, não tive dúvida em julgar-me capaz de praticar tal proeza. Para isso era necessário possuir uma espingarda ou conseguir junto ao “velho” que m’a emprestasse a sua. Vencida a resistência de meu pai que até mesmo ensinou-me a fazer pontaria, carregar, etc., não houve mais um tico-tico que pudesse sossegado pousar nas imediações do terreiro. O consumo de munição era excessivo sendo pois necessário encontrar um meio de adquiri-la já que o “velho” não m’a fornecia mais. Acontece que frente ao terreiro da fazenda existia uma pequena capela de Santo Luiz onde um cofre recebia as dádivas ou esmolas dos viandantes que pela estrada real demandavam algumas cidades encravadas nas serras à borda do mar.

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Essas dádivas eram empregadas como parte das despesas de uma festa em honra da padroeira dias 3 de maio de cada ano, realizada na própria fazenda. Religiosamente eram retiradas e guardadas por meu pai periodicamente em um outro cofre de madeira existente debaixo de sua cama. Um dia resolvi pedir um empréstimo a Santa Cruz a fim de poder suprir-me de pólvora e chumbo que podia se adquirir num armazém nas imediações. Para isso consegui com algum esforço remover uma das tábuas do cofre do “velho” e de lá retirando parceladamente as patacas em moedas de cobre que iam passando para a gaveta do vendeiro. Desculpas sempre achava para provar a procedência da munição, ora dizia que este ou aquele me fornecia as pequenas cargas explosivas da pica-pau Mas... um dia pegado em flagrante ajustei contas com a “dourada”, a respeitável cinta de couro que fazia parte do repertório de meu pai.

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A lição foi proveit4osa porque daí em diante

as minhas pequenas plantações de milho sempre

me garantiam farta munição para o meu esporte

predileto.

A cinegética do caboclo roceiro.

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ASSOMBRAÇÕES

Geralmente os roceiros pacatos e religiosos, não deixam de possuir um cunho de crendices dos seus antepassados, cultivando lendas e criando as vezes casos fantásticos, produtos da sua própria ignorância, o respeito as “coisas do outro mundo”. A nossa fazendinha havia a muitos anos passados pertencido a um tal Capitão Jordão, homem de grande funções, e residente na corte como se dizia naqueles tempos e onde possuía até frotas de navios mercantes. Não se sabe porque esse homem tão rico e fidalgo viera a comprar uma pequena propriedade tão longe da capital do país e encravada nas fraldas da serra do mar, a quinhentos quilômetros de distancia.

Neste recanto construiu

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uma grande casa tipo colonial onde acomodava em prolongamento a mesma alguns escravos que eram tratados desumanamente entre castigos corporais e trabalhos árduos. ............ A lenda corria de boca em boca na época em que vamos narrar os fatos, que a tal fazenda era assombrada; que num dos quartos da mesma morava a alma de um bode preto que, de vez em quando assombrava moradores. Eu com a minha pouca idade pois contava nessa ocasião, os meus oito anos, vivia num estado de nervos e medo que para dormir não fazia: a não ser no colo de minha mãe. Já havia apanhado muitos castigos por teimar em não dormir senão do lado dela. ............ Um dia apareceu em nossa fazenda um preto já de idade avançada pedindo agasalho e serviço. O pobre velho era maneta

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...pois faltava-lhe a mão direita. Meu pai, homem de elevados sentimentos e muito temente a Deus, não titubeou em agregar em nossa companhia aquele autêntico representante da miserável classe de escravos que dera à vida rural brasileira o seu suor e sangue por alguns séculos. Tornou-se logo tio Sebastião um prestativo auxiliar na ajuda a minha mãe ora rachando lenha, ora buscando água, o que fazia com rara destreza apesar de possuir uma só mão. Meu confidente de todas as horas contava-me histórias e fatos da sua vida no Rio de Janeiro; enquanto preparávamos as armadilhas e gaiolas, nas quais ele era perito. Em um dos serões que fazíamos sempre na grande sala, a debulhar milho ouvimos os nossos cães no terreiro a ganirem desesperadamente como que estivessem atacados por terrível fera. Muito nos admiramos, pois os nossos mastins eram valentes por demais para que assim acontecesse. Meu pai levantou-se a fim de ver o

que es-

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...tava se passando no que foi obstado pelo tio Sebastião que disse: Deixe patrão; é a alma do bode preto que está assombrando os cachorros. Os camaradas, homens velhos do lugar é que estavam conosco se admiraram das palavras do preto velho que forasteiro como era não poderia saber algo sobre aquela lenda. Interrogado, o tio Sebastião contou-nos: Pois eu há muito tempo quando estava na idade de vinte e cinco anos mais ou menos fui escravo nesta fazenda que pertencia a um tal Capitão Jordão; isto faz pelo menos uns setenta anos ou mais quem sabe? Foi aqui, nos disse ele que naquela época perdi a mão a qual foi decepada por ordem do Sinhô capitão. Mas como foi isso, tio Sebastião? Perguntou meu pai. Um dia, patrão, o tal Capitão mandou que eu como pedreiro que era, fechasse um pequeno quarto, justamente este que dá frente para o seu, de uma.

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...de uma maneira que me intrigou. As janelas que davam para um pequeno jardim foram hermeticamente fechadas com tijolos; o telhado forrado e frente ao corredor foi colocada uma porta especial muito forte e com quatro cadeados enormes. Tempo depois, de vez em vez, quando alguém passava pelas imediações do tal quarto, sentia um cheiro acentuado de bode, animal que nunca existira na fazenda. Intrigado resolvi uma noite fazer uma investigação procurando para isso abrir uma passagem pela parede do lado de fora. Constatei então que existia no interior do quarto um enorme bode preto; tamanho descomunal para espécimes de sua classe. Estava eu no afã de fechar a abertura quando o administrador, homem desumano e boçal agarrando-me pelo braço, jogou-me numa prisão; acorrentado esperando a chegada do patrão que não tardaria pois fora a uma povoação próxima Sumariamente julgada a minha falta, fui condenado.

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...a decepação de minha mão direita como castigo. Louco de dor sai desabalado pelo pasto grande até a beira do brejo onde desalentado desmaiei. Horas depois recobrando os sentidos ouvi uma voz que, partindo do local onde dois corvos empoleirados numa árvore seca dizia um para o outro: Quando o bode morrer a alma do “Sinhô Capitão” morreria também Saindo a correr, doido de medo por ouvir fala de corvo cheguei depois de algumas horas a um pequeno povoado de onde me homiziei até que sarasse a ferida do meu braço Depois.... fui por esse mundo afora auxiliado por amor de Deus. Hoje, saudoso deste recanto aqui estou sem nenhum receio de “Sinhô” que há muito deve ter morrido. ....................... Corriam os dias plácidos para mim nas correrias atrás das lebres selvagens, caçadas de pássaros e mais diabruras quando um dia resolvi caçar frangos d’água à beira do brejo, com um

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.método engenhoso Acocorado atrás de uma moita, com a linha na mão, de cuja extremidade um anzol pendia um grão de milho cozido, estava eu atento quando ouvi uma voz que por traz de mim dizia: - Jordão morreu; outra voz respondia: Morreu mesmo. Olho para traz, Santo Deus o que vi! Dois corvos encarapitados numa árvore seca e como se a mim dirigissem. Numa carreira louca desandei pelo pasto de onde fui no regaço de minha mãe esconder-me doido de medo daquelas aves agourentas. Os frangos d’água tiveram a sua folga porque eu nunca mais fui caçá-los e nem mesmo pelas bandas do brejo não ia a não ser acompanhado.

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REMINISCÊNCIAS

Corria o ano de 1905. Não sei porque meu pai resolveu mudar-se para a cidade. Creio que ele ficara pobre. O sítio já era do meu avô materno, meu padrinho e a quem devo hoje um pouco de educação cientifica dado a sua boa vontade de fazer de mim alguém e que cá dentro dos meus defeitos de gênio sempre irritado e independentemente, não soubera corresponder. .................. Para mim na cidade a vida tornou-se diferente. Matriculado numa escola onde o mestre daqueles tempos era condescendente, as aulas eram gazeteadas a vontade pelo que em vez de literatura e ciência a maior parte dos alunos iam aprender botânica nas chácaras vizinhas ou então vadiar pelos

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.riachos em exercícios natatórios Eu, um pouco tímido por ainda conservar vestígios silvícolas não tardei em tornar-me um autêntico Robin Hood nas correrias e diabruras tão propícias da infância descuidada daqueles tempos passados em cidade do interior. Foi nessa época que eu cometi as maiores diabruras as que me custaram sovas tremendas que ainda hoje tenho como lembrança nítida. Acostumei-me tanto a apanhar de meu pai que se não apanhava durante o dia a noite vinha a “dourada” a me fazer cócegas nas partes nas partes mais apropriadas. Dentre as grandes diabruras minhas, creio que vão a centenas, as que ficaram na lembrança com mais nitidez tentarei descreve-las. Não sei porque quase todas as crianças tem o instinto propenso a cometer pequenas maldades que para elas não passam de brincadeiras inocentes.

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Assim parece serem aquelas que, gozando de ótima saúde ou não possuindo a timidez hereditária não há exceção de classe. Na minha cidadezinha natal naqueles tempos não existia luz elétrica. Lampiões de querosene que de cem em cem metros bruxuleavam preguiçosamente no alto do poste davam sua claridade tênue e disfarçada nas noites de inverno. A população pacata e ordeira recolhia-se cedo aos seus [...] ficando a cidade calada e triste tão logo as trevas envolvessem com o seu manto acolhedor. Alguns estabelecimentos comerciais conservavam suas portas semi-cerradas até oito horas da noite atendendo uns poucos desocupados e notívagos que saboreando o seu martelinho de cachaça horas a fio vinham nas suas libações. O destacamento policial muito reduzido pois contava apenas de quatro soldados e um velho sargento

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..não podia realizar um policiamento em regra, dado a necessidade da guarda da cadeia. A segurança da cidade ficava a cargo dos bons cidadãos que auxiliavam a policia ora apartando brigas ora levando para o posto algum indivíduo alcoolizado que esquecendo-se de ir para casa ficava discursando pelas calçadas quando já não tivesse por berço alguma sarjeta. Assim era no meu tempo de garoto, a vida bucólica e cheia de encantos, no meu berço natal. ********************** Sempre houve em todos os lugares uma classe privilegiada – a dos moleques de pés descalços e calças rotas nos fundilhos. Oriunda de todas as classes sociais do lugar, goza de imunidades na suas diabruras que a própria polícia torna-se impotente para coibir seus abusos. Fazia eu parte de um grupo de garotos que apesar de suas diabruras,

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..emprestavam com suas brincadeiras inocentes um cunho alegre à cidade nas noites de luar. Nascido com vocação para a vida militar sempre as minhas brincadeiras eram revestidas desse caráter. Para isso, recrutando dezenas de garotos formávamos pequenos batalhões que desfilavam pelas ruas da cidade naquelas noites, ao som das latas velhas e assobios estridentes. O nosso quartel general era a esplanada da igreja de São Benedito, sita na praça do mesmo nome e infelizmente hoje demolida. Foi numa dessas brincadeiras que deu-se um fato comigo o qual ficou na minha memória como recordação de uma inolvidável sova de primeiríssima. Eram quase nove horas da noite. O nosso batalhão já desfilava pelas ruas da cidade tendo destacado patrulhas que iam conduzindo presos os paus d’água que eram encontrados pelas calçadas e portas de armazéns para a esplanada da igreja .

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Eu fora escalado para a guarda de um pobre

bêbado que viera trazido sem nenhuma

resistência e pouco depois roncava placidamente

na soleira do portal da igreja.

Lá pelas tantas, sentindo sono, não tive pejo

de cochilar no meu posto de sentinela.

Dissolvida a malta de moleques fiquei

roncando ao lado do bêbado.

Alta madrugada fui despertado por alguém

que pegando pelo braço fez girar a “dourada”

pelas minhas costas indo eu para cama daí a

pouco arrependido de ter dormido quando de

sentinela.

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IDÉIA DIABÓLICA Eu não tenho sangue de Judeu conforme

afirmavam meus pais e avós apesar de serem descendentes de estrangeiros, mas não sei porque em casa eu era apelidado de “judeusinho”.

Seria por causa das minhas diabruras? Creio que não.

O motivo era devido ao meu espírito comercial que explodia a todos os momentos ora vendendo bugigangas aos meninos, ora comerciando com frutas e guloseimas na gare da estrada de ferro por ocasião da passagem dos trens.

Infelizmente os vendedores eram muitos e o tempo de parada dos trens não compensavam as vendas

Desde há muito vinha eu desejando que um pequeno descarrilamento ou coisa semelhante se desse a fim de “matar o boi” conforme se dizia na gíria

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Um dia tive uma idéia diabólica. Por debaixo do leito da estrada de ferro,,

frente a estação descarga existia um bueiro ou galeria pluvial que atravessando a linha ia terminar numa baixada além.

Há tempos essa galeria servia de esconderijo da molecada nas suas brincadeiras de piratas. Pensei eu: Se dinamitássemos a galeria os trens parariam nas imediações da estação e aí então que beleza; não haveria laranjas, bananas, pastéis, etc. que chegasse para matar a fome dos passageiros.

Recorri meus companheiros, delineei os planos e pusemos mãos à obra.

Para isso era necessário fabricar uma grande bomba de pólvora já que dinamite não conhecíamos

Escalados os elementos, começou-se a surrupiar pólvora de caça nos armazéns e a pólvora negra dos fogueteiros.

Dias depois havíamos conseguido quase 2 quilos

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...de pólvora sendo imediatamente confeccionada a referida bomba com páginas de jornais e barbante Desencravada uma pedra da galeria, justamente por debaixo da linha foi a bomba colocada e tapada a abertura com um pouco de barro. Posto logo no estopim não demorou muito para que um surdo estouro se ouvisse. Nenhuma conseqüência houve a não ser volumosas colunas de fumaça escoando pelos suspiros da galeria alarmou quase que a cidade toda com boatos de que havia pegado fogo na estrada de ferro ou algum vulcão que tivesse explodido inesperadamente no local Movimentou-se a polícia a fim de descobrir o autor ou autores de tal proeza. Eu há muito tempo já me achava em casa aborrecido, aborrecido pelo fracasso dos meus cálculos. Mal sabia que um dos companheiros havia me traído.

Não demorou muito a “dourada” cantar

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...de novo nas minhas costas já tão vinculadas pela mesma. Continuei no meu pequeno comércio de frutas sempre pensando no momento que por algum motivo os trens ficassem retidos na estação para a minha grande satisfação.

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VINGANÇA VINGADA

Quando eu era garoto gostava muito de chocar carroças único veículo que corria na minha terra mesmo porque ainda não existia um único automóvel e, de bonde só conhecia o nome. Meu pai havia dado permissão aos carroceiros para que trabalhassem comigo e contassem a ele quando eu cometesse uma daquelas artes. Um deles, o Chico Amarelo, um pobre carroceiro cheio de filhos excedeu um dia das suas prerrogativas e deu-me algumas lambadas de chicote quando eu chocando o seu calhambeque o desobedeci. Fiquei firme; nada contei ao velho, de medo que ele quebrasse a cara do Chico. No en t re tan to de i uma opor tun idade p a r a v i n g a r - m e s a t i s f a t o r i a m e n t e

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...do insulto e das lambadas que levara. O Chico, após o serviço diário de carretos que fazia, guardava à tardinha a sua carroça num terreiro baldio; levava o seu pangaré para um pequeno posto nas imediações jantava com boa disposição e dormia placidamente aguardando o dia seguinte para a labuta diária. Estudei um plano que levei logo a execução. Eram três horas da madrugada quando eu sorrateiramente levantando-me da cama e pela escuridão encaminhei-me para o sítio onde se achava ancorada a carroça do Chico. Com um esforço sobre-humano dado a força dos meus oito anos, consegui retirar, com pequenas escoras, uma das rodas. Rodando com jeito conduzi a mesma de bordas de um riacho infestado por alto capinzal pelas margens e lá joguei o instrumento da minha vingança.

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Ao clarear do dia o Chico, sorridente, traz o seu cavalo para atrelar ao veículo. Grande foi a surpresa em constatar que o calhambeque estava mando, quer dizer, com uma roda só. Procurou ansiosamente pelas redondezas, esbravejou, xingou e por fim depois de algum tempo sentou-se desalentado e rodeado pelos filhos que o ajudara nas pesquisas procura coordenar suas idéias a fim de tomar uma atitude mais expressiva. Eu de longe apreciava aquela cena (de desespero do pobre homem), embora tivesse gozado com a minha vingança na relutei em arrepender-me do que tinha feito. Chegando na presença do Chico disse-lhe procure sua roda no riacho entre o capim a borda do bueiro que a encontrará. Fui eu que a joguei lá vingando-me das lambadas que me destes e sai correndo

H o r a s d e p o i s a “ d o u r a d a ”

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...mais uma vez deslizava pelas minhas costas com verdadeira maestria do “velho” quando a manejava. Recebi desta vez um castigo dobrado.

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MALVADEZ

Eu contava na ocasião a que me refiro ao

fato, os meus oito para nove anos de idade. Ainda

não possuía raciocínio ou compreensão para

avaliar as maldades humanas.

Como sempre cultivando as minhas

qualidades de judeu conforme era apelidado em

casa, meu pensamento era sempre voltado para

os afazeres ou negócios que me auferissem lucro.

Não podia deixar de fazer algum trabalho por mais

exaustivo que fosse para a minha idade

conquanto que ganhasse algumas patacas. Sendo

o meu maior prazer conta-las nos bolsos da

minhas calças curtas.

Na minha terra natal por esse tempo

ainda não existia o serviço de água e

esgoto sendo portanto o precioso líquido ,

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...quando não apanhado em cisternas residenciais, o fosse buscá-lo em uma afamada fonte, na chácara do Major Teles nos arredores da cidade. Era interessante durante o dia o vai e vem das criadas ou familiares com potes de barro ou latas conduzindo água apanhada na fonte. Eu sempre reparava naquela cena e ruminava um jeito de ganhar dinheiro conduzindo água para algumas famílias Como poderia eu fazer tal serviço se as minhas forças não davam para levantar ao menos uma lata d´água? Um dia tive uma idéia. Procurei mansamente meu pai e expus os meus desejos pedindo-lhe que me desse um carrinho e um bode; isso resolveria a situação, pois duas latas de água era pouca carga e poderia se fazer umas cinco viagens de manhã antes das aulas e mais cinco a tarde, depois das mesmas. Os dois

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...vinténs cada lata seriam quatrocentos réis diários. Um belo salário, não era? Meu pai ouviu-me atentamente; apresentou algumas razões contrárias, fazendo-me ver que era um tanto dispendioso o sustento do bode e mesmo por ser um bicho daninho iria talvez nos dar algum trabalho. Prometi que sustentaria com meu ganho, cuidaria dele e outras maiores promessas Não ouve réplica por parte dele que acabou prometendo-me o bode com carro e tudo. Não dormi várias noites pensando sempre nos negócios vantajosos que faria, ora vendendo água, fazendo pequenos carretos nas feiras, ora, fazendo pequenos carretos nas feiras, etc.. Que inveja não teriam os meus companheiros que empurravam os seus carrinhos pelas ruas da cidade vendendo frutas? Dias depois meu pai apareceu com um enorme bode branco, sem chifres, belo produto criado numa fazenda dos arredores.

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O carro, um primor do carapina que fabricara por encomenda, com rodas raiadas e eixo de ferro, nada deixava a desejar.

Poucos dias depois de alguns treinos a fim de amansar o bode, estava eu com o veículo pronto para as lidas diárias.

Possante tal qual um burro, o meu bode puxava o carro com dois latões d´água e mais eu em cima em verdadeiras disparadas.

Dava gosto ver o belo animal atrelado ao carrinho, todo arriado, dócil nas rédeas e brioso no cumprimento dos meus gritos de mando

................................ Corriam assim os dias entre o nosso trabalho

e folguedos quando o levava a pastar. Demonstrando amizade ao dono nunca se

irritava pelo que era por mim estimado. Um dia não sei porque o meu bode começou

a esquivar-se do serviço ora empacando, ora

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...deitando-se quando atrelado. Meu pai disse-me que por certo o bicho

estaria doente, pelo que deveria eu dar-lhe um descanso de alguns dias e observa-lo.

Passados os dias nos quais o mandrião comera muito bem, saltava em corridas loucas pelos prados onde se achava solto resolvi reencetar o meu serviço de transporte de água.

Continuou o malandro a não querer mais trabalhar. O chicote entrou em ação o que piorou ainda mais a situação.

Uma vez levei uma cabeçada na parte traseira que quase quebrou-me o quadril. Embirrei-me com ele por não querer puxar o carrinho como dantes ora correndo em disparadas, ora empacando como um burro chucro.

Certa vez desesperado pelas manhas do diabo do bode, acabei por cometer uma ação má que me cus tou depo is g rande

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...mágoa. Ao sair da fonte com uma carga de água o tal

resolveu se deitar e não houve chicotadas que o fizesse levantar. Tive logo uma idéia diabólica: fui ao mato próximo, arranjei um pedaço de roseira silvestre, cheio de agudíssimos espinhos, fiz o bode gentilmente levantar-se, suspendi o rabo dele e coloquei os espinhos.

Foi a conta: o bode deu um berro, saindo numa disparada louca, jogando as latas d´água pelo caminho e só parou quando o carro já estava em frangalhos

Foi o fim da minha aventura; porquanto logo mais o meu bode foi negociado com um carroceiro que o vendeu a quilos, quem sabe se para muitos daqueles a que levara decerto muita água.

E eu como o maior criminoso a “dourada” deu-me o merecido castigo.

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SOVA MERECIDA

Não sei por que, quase todos os garotos

gostam de se divertirem com água, tomando

banhos em riachos, piscinas, etc. ou pescando

com anzóis à beira da lagoa.

Burlando sempre a vigilância de seus

pais, não trepidam em afrontar às vezes, perigo

de morte, por não reconhecerem os acidentes

traiçoeiros de certos rios ou lagoas.

No interior principalmente não há melhor

esporte ou distração agradável, aquela na qual

possamos livremente freqüentar um rio para uma

pesca ou exercícios de natação.

Eu não sei nadar mas na minha infância

não saía da beira do córrego onde

juntamente com os meus amiguinhos,

quase todos os dias ensaiava um programa

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..previamente elaborado na arte natatória. Pesca e natação constituíam o nosso

divertimento. Muitas vezes fui castigado por causa deste

costume que já constituía um vício. Quantas vezes não passei por algum perigo

quando manejando o remo deslizava rio abaixo numa piroga de algum piraquara que descuidado deixava-a numa barranca do rio. Satisfeito o meu desejo soltava-a à deriva para o desespero do dono.

No tempo das chuvas, que delícia quando os pequenos arroios avolumando as suas águas, convidava-nos para um banho de água suja.

Em correrias constantes, gazeteando, lá estávamos, moleques vadios, todas as horas à beira d´água, infernando as pobres lavadeiras que em magotes viviam aqui e ali em pequenas enseadas a ganhar o seu pão diário.

Quantas vezes levamos corridas com as roupas

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..nas mão, fugindo de alguma lavadeira mais corajosa que empunhando um pedaço de pau nos batia sem dó.

Umas das maiores carreiras que levei ficou eternamente na minha lembrança pelas cicatrizes que ainda hoje tenho pelo corpo.

Foi assim: Estávamos eu e mais quatro companheiros tomando banho e sujando a água para as pobres lavadeiras quando vimos surgir dois soldados de polícia que a pedido das mulheres acorreram a nos prender.

Neste recanto do riacho havia um enorme capinzal folhas de navalha que pelas margens encobria grande área.

Quando vi os soldados que se aproximavam correndo, juntei minhas roupas, e desapareci por entre o capinzal alto em trajes de Adão e quando consegui atingir a orla fronteira parecia um supliciado pelo sangue que escorria pelo meu corpo todo retalhado pelo capim.

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Nesse dia a dourada não funcionou mas a

salmoura me castigou a valer. Nem assim emendei-me a minha ultima

aventura em banhos de riachos estava reservada para dias não muito longe.

Numa bela tarde de maio, em um domingo festivo, na qual se realizava uma procissão estava eu todo de fatiota nova, calções de veludo, punhos de renda que mamãe houvera feito com esmero e capricho, a fim de vesti-la pela primeira vez.

Descuidado, perambulava pela praça à espera da procissão que se formava em frente à igreja.

Nesse ínterim chegava-se a mim um amiguinho e diz-me: Vamos até a Rua Nova perto da chácara do Chico Barbudo para vermos os meninos estreando um trampolim que fizeram no poço grande?

Relutei a princípio, mas... esqueci de tudo. Corri para o local aonde os rapazes se divertiam a valer em graciosos mergulhos

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...ao se atirarem da prancha. Não houve dúvida;

desvencilhei-me das minhas roupas e entrei na brincadeira.

Quando daí alguns minutos olhei para a margem oposta, vi meu pai com a “dourada” na mão ao pé de minha roupa.

Pronto; disse eu com os meus botões, não há outro remédio senão encaminhar-me para boca do tigre

Cabisbaixo entreguei-me em suas mãos e senti logo a “dourada” que passando pela água cortava-me as carnes sem dó.

Nem uma palavra saiu de meus lábios que sagravam pelo aperto dos dentes que captavam a dor.

Terminado o suplício tive vontade de abraçar e beijar o meu pai que conseguiu tirar de mim o pior dos costumes que possuía quando menino.

Nunca mais aproximei-me de algum rio sem que não me viesse na lembrança as benditas lambadas.

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EMPRESÁRIO AZARADO

Se houvesse alguém que apanhasse do seu próprio pai, mais do que eu, duvido, porque senão levava uma sovinha durante o dia, à noite era infalível o trabalho da “dourada”. Meu pai era bondoso de coração; sacrificara sempre pela família, nunca descuidando-se da nossa saúde e bem estar. Adorava os filhos em extremo mas era demasiado exigente e nunca tolerava uma falta nossa. Tendo os seus velhos preconceitos exigia de nós um regime de vida social não mais compatível com a época. Não freqüentava cinema, não assistia espetáculos de circos de cavalinhos tão em voga, só porque tudo isso não passava de velharia (para ele). Isso dava margem para que me proibindo de entrar pela porta do circo fatalmente eu deveria

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...entrar por baixo do pano.

Quantas pauladas dos vigilantes, quantas lambadas da “dourada” não levei. Depois de ter rido muito do palhaço chorava na cama pela madrugada com as dores que me deixava a “dourada”. Quantas vezes não dormi fora de casa para não apanhar à noite, mas... no dia seguinte a etapa era dobrada.

A influencia que exercia as funções circenses no espírito da molecada do interior trazia muitas vezes conseqüências funestas tais como braços partidos, cabeças rachadas, costelas quebradas, etc..

Acontece que ao despedir-se um circo da cidade um outro se instalava em algum quintal por conta de meia dúzia de moleques que se transformavam de uma noite para o dia em barristas saltadores, trapezista, palhaços, etc, etc..

Eu como sempre visando lucros conseguia de vez em quando formar uma companhia e i ns ta l a r o meu c i r qu inho cobe r to de

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sacos velhos de aniagem comprados a meia pataca.

Artistas não faltavam, assim como palhaços, malabaristas, homens que comem fogo, etc..

................................. Hoje, passados tantos anos, quase meio

século, fico cismando sobre a displicência das autoridades daqueles tempos que consentiam tais brincadeiras tão cheias de perigos, havendo até um delegado de polícia que assistia nossas funções.

Foi uma das últimas diabruras minhas que passo a relatar a qual me custou muito remorso e muitas lambadas pelas costas.

Foi assim: Vinha já funcionando o nosso cirquinho no quintal do Zezé Magalhães ,um carapina muito estimado na minha terra.

Bonacheirão, gostando muito de crianças nunca deixou de nos auxiliar na arrumação das arquibancadas e aparelhos ginátiscos.

Aos domingos à tarde os espetáculos e r a m c o n c o r r i d o s p o r q u a n t o g r a n d e n ú m e r o d e c r i a n c i n h a s c o m p a r e c i a m

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...acompanhadas de crianças de todas as idades,

garridamente vestidas o que dava um aspecto atraente. A entrada custava apenas dois vinténs (quatro centavos hoje); o que fazia encher altamente as arquibancadas rasteiras ao solo ficando a maior parte em pé ou sentada quando trazia o respectivo assento (uma cadeira velha ou um caixão).

Foi numa dessas matines que por descuido ou maldade minha por deixar de substituir uma corda já bastante gasta, o “Jãozinho”, o melhor trapezista nosso despencou lá das alturas partindo o braço em dois lugares.

Foi uma debandada geral porquanto algum mais afoito achando que era eu o culpado acabou a turba para cima de mim.

Eu como era natural, dei as “Vilas Diogo” indo cair nas garras do velho que deu-me uma das maiores sovas das que tenho lembrança.

Nunca mais me meti a empresário de circos.

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PASSAR FOME NA FARTURA

Nos tempos antigos todas as famílias de

poucos recursos faziam com que seus filhos

aprendessem uma arte ou ofício qualquer a fim de

se garantirem para um futuro às vezes incerto.

Meu pai tendo ficado pobre e, como “mãe”

possuía nenhum ofício, achou de bom alvitre que

eu aprendesse um ofício qualquer. Eu que

escolhesse aquele que melhor me servisse.

Como sempre fui um menino um tanto

vaidoso não podia concordar com a idéia

extravagante do “velho”, portanto fui protelando a

escolha até que um dia o pai disse-me: Amanhã

cedo deves se apresentar ao Benjamim na

construção que ele está fazendo no largo da

matriz. Você vai aprender o ofício de pedreiro;

amanhã serás um grande construtor.

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De princípio achei um pouco ruim, mas

depois me entusiasmei. Um construtor, ganhar dinheiro, etc., etc.

No dia seguinte pela manhã brumosa apresentei-me ao mestre Benjamim que dando-me uma lata vazia, disse-me: Não deixe faltar massa para os pedreiros lá em cima; o vosso ordenado é de oitocentos réis por dia.

.... Lá pelas duas da tarde, como os ombros

ardendo e as pernas doloridas de tanto subir e descer escadas joguei a lata lá de cima com massa e tudo e soltando um palavrão abalei-me para casa por salmoura nas escoriações das minhas clavículas em sangue.

- Dias depois lá estava eu de cabresto no dedo segurando o dedal, tentando fazer uma casa de paletó. As dores nos rins por ficar sentado o dia todo, as cãibras no raio do dedo que já estava ficando endurecido, fizeram-me desertar da oficina de alfaiate do primo “Majorzinho”.

Com o velho a me atropelar fui tentar a aprender

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...ser carpinteiro com um português, meu tio por afinidade.

Estava gostando já daquele ofício quando, sem pensar nas conseqüências tomei de um formão de estimação do tio e deixei-o desbocado num pequeno serviço que tentei fazer. Às carreiras deixei a oficina para não levar os cachações que já vinham para cima de mim.

Experimentei também fazer-me sapateiro, mas a minha vida era somente bater a sola nos joelhos que o mestre ia aproveitando. Nenhuma aprendizagem havia conseguido e o ordenado era um cruzeiro por semana.

Mandei as favas o tal ofício resolvido a não tentar mais nada. Os meus pequenos negócios com frutas davam-me algum dinheiro para os meus divertimentos.

Meu pai não se conformava com aquele estado de coisas

Só pensava num ofício que algum dia poderia eu precisar

Chamando-me seriamente disse-me: Filho, decida-te logo em abraçar o teu futuro porquanto, daqui a

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...um ano irá viver a tua custa, porque já sois um homem de calças compridas e não fica bem levares a vida que levas.

Tens razão pai, mas eu desejo um ofício de sombra e água fresca. E assim fui empunhar uma navalha e uma tesoura no pequeno salão de barbeiro do espanhol Vidal.

Seis meses depois já era meio oficial apreciado pelos fregueses pelo meu capricho e delicadeza

Nada mais tendo a aprender, resolvi trabalhar por conta própria abrindo para isso um pequeno salão onde a raspagem de barba custava duzentos réis (vinte centavos) e um corte de cabelo quarenta centavos

Corriam os dias felizes em casa onde o velho já me tratava com certa consideração, não pedindo contas dos meus negócios.

Não sei porque deixei que alguns amigos aproveitassem os fundos da casa onde estava instalado o salão um joguinho de cartas.

Foi a minha derrocada,

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...porquanto, tudo o que ganhava na navalha, perdia no jogo.

Tendo o velho, ciência do que se passava um dia apareceu de sopetão, pegou os jogadores pela gola e a sopapos tacou-os para rua tendo eu como único responsável levado uma sova de encher as medidas .

No dia seguinte, pela madrugada, tendo juntado algumas ferramentas fugi para São Paulo.

Não procurei nenhum parente conhecido por vergonha ou por despeito.

Já me julgava senhor de mim; já tinha um ofício que me garantiria a subsistência.

Vaguei alguns dias desnorteado, nada arranjando fui vendendo as minhas ferramentas de barbeiro a troco de nada a fim de poder comer e dormir.

Já me desesperava prestes a entregar os pontos quando um garoto de bicicleta e v e s t i d o d e m e n s a g e i r o , a c e r c o u - s e

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...de mim e perguntando-me: O que há menino, que estás tão triste? Contei para ele mais ou menos a minha situação.

Como eu sabia andar de bicicleta, levou-me então a Mensagerie, onde empreguei-me com o ordenado de trinta cruzeiros mensais. A comida ficaria por conta das gorjetas escassas daqueles tempos. Comia-se um sortido em restaurantes operários por vinte centavos ou meio sortido por dez centavos.

Esse ultimo prato era a minha refeição diária quando ganhava uma gorjeta.

Já se tinha passado quinze dias mais ou menos que vinha eu nessa agonia cada vez mais me enfraquecendo devido ao trabalho estafante de entrega de mensagens e a fome que me devorava.

Felizmente tudo tem o seu fim, e um dia terminou o meu sofrimento.

Descia eu a Rua Consolação num pedaço de bicicleta que por azar nem breque tinha. Na minha frente, um espanhol, vendedor

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...de cestos, vassouras, espanadores, etc., apregoava sua mercadoria que enfiada numa grande vassoura de vasculhar tomava conta de quase toda rua.

Sem breque e sem buzina me vi apertado, desviando daqui e dali até que na velocidade que vinha, entrei pelas costas do pobre homem que se esborrachou no passeio. Só se via a mercadoria do coitado a espalhar-se por todos os lados e a bicicleta e mais eu também de pernas para o ar.

Medindo as conseqüências rapidamente esgueirei-me contra os curiosos e desci a ladeira da Memória, num fechar de olhos. Até hoje não soube o que se passou depois.

À tardinha por um simples acaso encontrei-me com um dos meus tios que, inteirado da minha desdita levou-me para a sua pensão onde um bom banho, uma copiosa refeição e uma boa cama fez-me ficar alguns dias refazendo as minhas forças.

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De retorno para a casa de meus pais, meu avô defendeu-me da ira do “velho” planejando a minha volta em breve para São Paulo, onde eu quem sabe acharia o meu futuro.

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DE CAPITÃO A RECRUTA

Já tive a oportunidade de relatar um episódio da minha vida quando menino, demonstrando a minha vocação pela carreira militar que embrionária no meu “eu” chegou a germinar embora tivesse sempre os percalços que me atulhavam os passos. Desde o tempo da escola me fascinei pelo uniforme do exército, o qual ficou para sempre integrado como parte da minha indumentária. Não poderia ver um soldado, um oficial do exército principalmente, sem que o meu coração não batesse desordenadamente com uma certa inveja ou desejo de algum dia poder ingressar nas suas fileiras. Ass im que terminei os meus estudos pr imár ios na minha ter ra nata l , depois que guardei o meu v is toso un i forme de capi tão com o qual br i lhara nas festas

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...de encerramento das aulas, embarquei com destino a São Paulo para trabalhar e estudar por conta de um tio, irmão minha mãe.

Tinha nessa época eu nessa época 14 para 15 anos. Morando com meus tios numa pensão, trabalhava numa casa de loterias de sua propriedade. Meu trabalho de vassoura carimbagem de bilhetes e expedição era monótono e sem futuro (pensava eu). Não calculava ou refletia sobre os planos de meu tio sobre o meu futuro.

Rebelde como sempre, não podia tolerar as exigências do mesmo no que se referia ao trabalho e ao cumprimento dos meus deveres e das suas ordens.

Por três vezes regressei à minha terra e por três vezes volvi à mesma situação por interferência de meu avo materno que ainda vivia.

Estávamos nos princípios do ano de 1912 Minha situação permanecia nas mesmas

condições anteriores. A n d a v a d e s g o s t o s o s e m m o t i v o s j u s t i f i c á v e i s , p o r q u a n t o

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...meus tios apesar de um tanto neurastênicos tratavam-me bem, dando-me tudo o que necessitasse, até para os meus divertimentos.

Um dia não sei por que fiz uma viagem à minha terra sem as suas ordens. Quando voltei foi a conta. Ouvi tantas reprimendas, recebi tantos cachações que encheu-me as medidas. Sai desesperado em direção ao viaduto Santa Ifigênia com a intenção de atirar-me ao solo e acabar com minha vida.

A raiva que se avolumava no meu íntimo por não poder tirar uma desforra esvaiu-se de pronto quando lembrei-me de um motivo que iria fatalmente ferir o orgulho de meus tios no mais íntimo dos seus preconceitos.

... Naqueles tempos soldados do exército diziam, eram indivíduos desclassificados, sem profissão, etc..

Ainda não estava em execução o sorteio militar sendo, portanto os claros das fileiras do pequeno exército altivo daquela época preenchido somente com voluntários.

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Na cidade de São Paulo aquartelava-se nos Altos de Santana a 10º Companhia Isolada de infantaria e um Pelotão de Estafetas à cavalo.

Antes de dirigir-me para lá, a fim de apresentar-me voluntário, resolvi, em companhia de um conterrâneo ingressar na polícia.

Apresentei-me ao comandante do 1º batalhão o qual recusou-me por não apresentar certidão de idade e a respectiva licença paterna.

O problema estava um pouco difícil mas sem medir as conseqüências do meu ato procurei um amiguinho, filho do escrivão do cartório de registro civil no bairro do Bexiga.

Facilmente num domingo falsificamos a papelada e segunda-feira lá estava eu na presença do comandante da referida Cia. Isolada.

Embora o meu aspecto físico desmentisse a idade regulamentar de 17 anos, os papéis autenticavam o que desvaneciam as dúvidas.

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E foi assim que no dia 2 de fevereiro de 1912, as 9:30 horas, jurei bandeira e tornei-me o soldado nº. 90, o mais moço e mais trouxa dos recrutas daquela unidade do exercito.

Começa nesse dia a minha odisséia, os meus primeiros sofrimentos que me fortaleceram o ânimo para o futuro em outra etapa da minha carreira militar.

Logo a seguir o juramento à bandeira, fui mandado à presença do sargento intendente que forneceu-me todos os uniformes. Escolhidos aqueles que melhor adaptassem ao meu pequeno corpo, fui obrigado a vesti-lo assim mesmo “jegue”. Creio que não fiquei lá muito elegante mas o meu prazer foi imenso em pensar que amanhã ou depois me defrontaria com meus tios e desafiava-os para que batessem novamente se fossem capazes.

À tarde desse mesmo dia estava eu pensativo num lugar pouco afastado do quartel quando a

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...corneta deu toque de rancho para o jantar. Não conhecendo o toque deixei de atender, mesmo porque retirado como estava não vi a fila que se formava atrás do pavilhão. Pouco depois, um dos rapazes perguntou-me: Recruta, você já jantou? Disse-lhe que não. Então vai depressa senão ficarás preso. Apressado procurei o rancho onde fui atendido por um cabo preto como carvão: Olhou para mim com cara feia e mandou que me sentasse em frente de um prato de sopa de macarrão já frio. Ao levar a colher à boca descobri dezenas de moscas mortas que sobrenadavam no caldo.

Quis levantar-me quando o mesmo cabo que trazia outra coisa da cozinha dando-me um cachação no ombro disse-me: Sente-se recruta; isso é pimenta do reino; se não comeres para acostumar irás já para o xadrez. Que remédio; sente i -me, fechei os o lhos e f iz des l izar p e l o e s ô f a g o a b a i x o n ã o s e i q u a n t a s

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...pimentas do reino. Esse cabo, encontrei-o seis anos depois no

6º B.I. como sargento tendo sido um dos meus melhores amigos.

No dia seguinte, lá pelas cinco horas da manhã por um ensurdecedor toque de clarins, cornetas, tambores; era a alvorada e o alerta para a tropa que ainda se achava dormindo.

Logo que cessou o barulho caí novamente no sono sendo despertado pelo cabo de dia que de cinturão em punho fazia os retardatários pularem da cama a chicotadas

Estranhando aquele regime, uma leva nuvem de arrependimento passou pela minha mente, embora minha vontade férrea sempre dominasse.

Começa daí os meus leves clarões de disciplina que sempre foi o meu apanágio nas fileiras do exercito onde por mais de vinte anos perlustrei todos os seus ângulos.

Um dia veio-me a idéia de tirar a minha

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...desforra com os tios. Depois do café, da instrução e da faxina desse dia me vi livre para o primeiro passeio à cidade. Quando defrontar-me com os tios a fim de ver a reação dos mesmos quando me vissem fardado. Consegui o meu intento porquanto; postados em frente a casa de loterias onde os mesmos se achavam no balcão; encarei-os como que desafiando-os.

Dado ao desprezo que eles tiveram para comigo, tornei-me ridículo e arrependido da minha ação tão feia, parti para o quartel nunca mais aparecendo na cidade.

Meu pai posto ao par da minha aventura deixou que eu sofresse as agruras da vida de quartel.

Sofri muitos vexames por parte de elementos desclassificados que zombavam da minha falta de experiência ou por ser tão novo nas fileiras.

A faxina e a instrução me fatigavam, no entanto ia me desenvolvendo fisicamente e abatendo

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...gradualmente o meu gênio rebelde e atrabiliário. Dois meses já se haviam passado quando

uma manhã ao levantar-me não achei o meu uniforme; a minha mala estava arrombada e vazia. Foi preciso um colega emprestar-me uma calça e uma túnica para poder apresentar-me ao comandante.

Depois de algumas pesquisas infrutíferas ficou resolvido pela ordem do dia que me fossem distribuídos novos uniformes fazendo-me carga para desconto na importância de 438,70. O desconto seria a metade do soldo (6,00); levaria portanto 6 anos e um mês para pagar aquela dívida.

Desde esse momento a vida de caserna tornou-se me um tormento. Não mais olhava com simpatia os meus colegas e cada vez mais um medo inexplicável se apoderava de mim.

Escrevi uma sentida carta à minha mãe e esperei as suas providências que não tardaram.

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Meu pai, apesar de que o seu desejo fosse a minha permanência no exercito, onde poderia granjear alguma experiência da vida, locomoveu-se longe e com documentos comprobatórios procurou junto ao comandante da Região obter a anulação da minha praça.

Com alguma dificuldade obtive a minha exclusão depois de pagar a minha dívida para com a Fazenda Nacional.

Novamente junto dos meus pais e arrependido da minha maluquice, tratei de esquecer-me do brilho da farda que alguns anos depois enverguei-a por mais de vinte e cinco anos.

“Nota curiosa desta narração” Em 1932 eu era 1º sargento servido no 5º

R.I. em Lorena. Moço cheio de vida, gostava de passear aos domingos em Guaratinguetá, onde freqüentava sociedades esportivas, etc..

Postado à por ta de uma charu tar ia , f u i a b o r d a d o p o r u m v e l h o m e n d i g o

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...alquebrado e macilento que pediu-me um níquel. Satisfeito olhava para o meu uniforme como que invejando as suas divisas douradas.

Disse-me com uma voz rouca e abafada: Eu também, meu belo sargento, já vesti a farda do exército mas faz muito tempo. Servi em São Paulo, na 10º Cia. Isolada em 1912. Respondi a ele: Meu velho, naquela época também servi naquela Cia.; eu era o mais novo, o recruta nº. 90. Ao ouvir as minhas palavras o pobre velho fez menção de ajoelhar-se e pediu-me perdão pelo mal que tinha me feito. Fora ele o ladrão das minhas roupas, que as vendeu a troco de cachaça.

Comoveu-me o seu arrependimento e dei graças a Deus por me achar sadio e feliz.

O mundo dá cada volta!

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CASAMENTO FRUSTRADO

Já ouvi dizer que a humanidade é composta

de indivíduos mais ou menos malucos. Parece

que é verdade.

Se estudássemos psicologicamente pessoa

por pessoa chegaríamos à conclusão que todos

possuem mais ou menos células cerebrais um

tanto deslocadas das suas funções normais cujos

transtornos refletem no temperamento, nas ações

ou no princípio inteligente de cada um.

Nesta categoria sempre me achei colocado

desde a infância à juventude atribulada.

Hoje descendo os degraus primeiros da

decrepitude; aguardando pelos sofrimentos

mora is que me cast igaram o espí r i to ,

p o s s o a v a l i a r a s c o n s e q ü ê n c i a s d a s

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...minhas maluquices de rapaz. Quantas recordações doces e quantas

amarguras também se acham estampadas no âmago do meu pensamento.

Dentre as tolices que pratiquei, creio que foi uma das maiores, a qual passo a relatar.

......................... Depois de uma temporada na minha terra,

mais uma vez aprontei malas para São Paulo, onde ia fazer os meus preparatórios para a escola normal conforme ficara combinado entre os meus tios e minha mãe.

Eu parecia mais ajuizado, mais sossegado, depois da minha aventura no exército. Meus tios mais uma vez perdoaram os meus destinos.

______ A minha vidinha dava-me algum prazer embora a vaidade começasse a se arraigar dentro de mim.

Cursava um ginásio juntamente com um dos meus tios mais moço de casa, o qual hoje está para se aposentar como diretor de um grupo

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...escolar no litoral do Estado. Como eu não tivesse grande vocação pela

pedagogia, um dia rebelei-me e exigi que me fosse dado a possibilidade para estudar medicina.

Não sendo possível conseguir os meus desejos, resolvi abandonar os meus preparatórios e regressar para a casa de meus pais.

________ Alguns meses depois, em fevereiro de 1914 resolvi ir para uma pequena cidade serrana, para os lados de Minas Gerais.

Nessa cidade empreguei-me ganhando Trinta Mil Réis mensais com cama e mesa.

Sempre bem vestido, freqüentando a melhor sociedade local, não demorou muito para arranjar uma namorada, bela pequena mas infelizmente mais pobre que eu.

Meses e meses transcorreram na mais bela e fagueira fantasia de um amor de jovens inexperientes.

As circunstâncias fizeram-me noivo, aceito de bom grado pela família da garota que, já tendo

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...conhecimento da minha personalidade aristocrática, filho de boa família e endinheirado (para eles), tudo vinha facilitando para a realização de um casamento vantajoso (no pensar deles).

Eu quando soube dos planos dos meus futuros cunhados, pois a pequena era duplamente órfã me vi atrapalhado, porquanto eu só contaria comigo e não com parentes ricos que possuía.

O que fiz: Uma bela madrugada dei “Vilas Diogo” deixando a noiva desiludida do seu “príncipe encantado”. Creio que o iludido ia sendo eu.

Dez anos mais tarde encontrei-a casada com um dos meus amigos daqueles tempos.

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FUGA DE UM NÁUFRAGO

Existem pessoas que o destino poupa às vezes de uma morte trágica, por haver um pequeno acidente desviando o que devia acontecer. No meu horóscopo recomenda muito cuidado com acidentes por líquido, se o que faz pensar em afogamentos, envenenamentos, etc.. Por isso é que sempre tive medo de banhar-me no mar, rios, mesmo porque não aprendi nadar. Sempre fui fascinado pelas viagens pelo que meu pensamento não deixava de vagar por lugares longínquos, cujo acesso estava longe das minhas cogitações. Estávamos nos princípios da Primeira Guerra Mundial entre 1914-1915. Depois da minha aventura no exército e de ter andado pelas bandas de Minas Gerais, trabalhava

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...como sempre entre as grades de um balcão de loterias, o único emprego que em era dado pelos meus tios.

A luta que se travava entre os planos daqueles que procuravam me encaminhar na vida e o gênio perturbado e mau que eu possuía, não tinha ainda achado um índice de estabilidade. Por qualquer pequena coisa o conflito se desencadeava, sendo eu o mais prejudicado porquanto não tinha sossego nem na minha terra nem junto aos tios.

Um dia veio-me uma idéia maluca. Vou embarcar num navio espanhol, o Leão XIII, que deveria aportar em Santos, vindo de Buenos Aires, com destino à Europa. Como sempre, esses vapores precisam de alguns tripulantes, principalmente nessa ocasião; devido à guerra.

Consegui mais uma vez por meios escusos os documentos necessários, os quais naquela época era muito fáci l se obter e me abalei para Santos, na véspera

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...da chegada do vapor. Apresentei-me na capitania do porto,

registrei-me e fui para a agência dos vapores espanhóis que davam o nosso posto.

Por coincidência havia falta de um “moço de convés” para aquele navio e o tal emprego já estava assegurado, devendo apenas esperar a chegada do referido navio, que atracaria no dia seguinte pela manhã.

Alegre e satisfeito por me ver logo longe de tudo que me aborrecia, saí pelos bares e cafés tomando gelados pois fazia um calor tremendo.

Lá pelas quatro horas da tarde uma dor de dente já me fazia sofrer um pouco.

Aquilo foi apertando; a dor se irradiava pelo rosto todo, calafrios e suores apareceram e meu corpo já não sustinha-se normalmente.

Entrei numa farmácia e pedi um remédio. O farmacêutico notou pela minha fisionomia que algo de mal poderia me acontecer se não tomasse

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...o remédio imediatamente. Aconselhou que eu fosse me deitar logo, antes que uma pneumonia ou coisa pior me matasse.

Procurei um hotel depois de tomar o remédio, deitei-me só acordando no dia seguinte, às dez horas da manhã.

Ao chamar o porteiro para pedir alguma coisa o mesmo desconheceu-me por completo em virtude da enorme inchação do meu rosto que me desfigurava.

Não houve outro meio; fui obrigado a retornar para São Paulo, onde por alguns dias fiquei acamado com uma séria intoxicação.

Dias depois li no jornal o navio Leon XIII fora torpedeado pelos alemães nas alturas das canárias.

E assim, perdendo um emprego, desvanecido de ver terras longínquas, escapei de um naufrágio onde fatalmente encontraria a morte.

X X X

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CARREIRA INTERROMPIDA

Depois das minhas maluquices, vivia eu na

minha terra natal lá pelo ano de 1915, uma

boemia malandra entre folguedos num clube

dançante onde todas as noites deixava uma

parcela dos meus sapatos.

Trabalhava apenas aos domingos raspando

as caras dos caboclos num salão de barbeiros de

um amigo ganhando o suficiente para as minhas

pequenas despesas.

Como sempre o “Velho” não se conformava

com a minha vadiação, pelo que mais uma vez fui

recambiado para São Paulo e novamente

trabalhando entre as grades de balcão, vivia

pensando sempre nas aventuras passadas e

impacientemente na espera do meu futuro.

Es tudar não quer ia ma is

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...pois nunca tive inclinação para pedagogia, carreira que meus tios teimavam que eu abraçasse.

Meus primos e tios já vinham cursando a escola normal e eu rebelde e teimoso sacrificava quem sabe um futuro promissor.

Os dias corriam como sempre quando um fato interessante deu-se nessa ocasião.

Estava eu uma tarde atarefado no balcão de loterias pertencente aos tios e aonde mais uma vez vinha trabalhando, tentando vender dois bilhetes que se achavam encalhados, cujos números 20002 e 19.999 ninguém queria.

Um português bem vestido, nosso freguês, namorava ambos bilhetes pela grade sem saber o qual levaria.

Um dos meus tios ao fechar o movimento do jogo do bicho descera para tomar café. Ao passar pelo guichê vendo os dois bilhetes encalhados, pede um. Tomei

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...logo o 20.002 para lhe dar quando o português me pede. Eu naturalmente recusei pelo que meu tio mandou que eu o desse. Não obedeci ficando nesse impasse em grande discussão até que o português soltando uma praga saiu furioso.

Eu por minha vez recebi os maiores desaforos do tio que pegando os dois bilhetes sai louco de raiva, xingando-me.

Daí a minutos chega o telegrama e o 20.002 fora premiado com 50 contos.

O ambiente mudou. No dia seguinte fui mandado matricular-me num ginásio para os preparatórios finais para a escola de medicina, o meu sonho efêmero.

Dois anos são passados sem nenhum incidente que viesse emperrar o brilho dos meus estudos, porquanto já vinha freqüentando a Universidade de São Paulo.

Estávamos em Junho de 1917. As férias do frio me garantiriam um descanso junto aos meus pais

A noite de 13 daquele mês que in ic iou uma das fases mais a t r ibu ladas

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...só sei que ao regressar para São Paulo o meu juízo não regulava bem. Ficava guardado no meu cérebro a imagem de um ser que transtornou por completo a minha carreira e que me fez muito sofrer

Pois bem: este capítulo ficará para mais tarde, porquanto, o que me interessa é uma maluquice minha igual a outra que já relatei em capítulo anterior.

______ Como estudante vivia sempre em contato com colegas em reuniões sociais e mesmo por necessidade de estudos.

Numa dessas reuniões descobri em casa de uma colega, uma antiga namorada que tempos atrás conheci em minha terra.

Sua família morava em Sorocaba e ela, como afilhada do pai de minha colega, vivia com os mesmos.

Reatando a nossa velha amizade, vivíamos flanando pelos cinemas, passeios,etc..

As coisas por casa não andavam boas,

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...pois os tios sabendo das minhas aventuras amorosas na minha terra e, pela correspondência que eu vinha recebendo de alguém já estavam apoquentando a idéia.

Um dia interceptando uma carta enviada pela pequena, um dos meus tios foi as minhas ventas com palavrões e ameaças que não suportei.

No dia seguinte abandonei para sempre sua casa, os meus estudos e fugi para Sorocaba à procura de emprego.

Incrível mas é verdade. Fui encontrar naquela cidade a minha pequena de São Paulo.

Um mês depois tornava-me noivo com aquiescência do próprio pai que prometeu nos auxiliar.

Sem futuro, pensando na outra pequena, um dia desmanchei o noivado e abalei desta cidade para nunca mais voltar.

Maluquices de rapaz que decerto não tinha as molas cerebrais no devido lugar.

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BODAS DE PRATA

Bodas de Prata equivalem a vinte e cinco

anos de união entre um casal que, depois desse

tempo tão longo deveria gozar as delícias de uma

paz espiritual no caminhar para uma velhice

descansada e rodeados pelos filhos e netos.

X X X

Depois das maluquices por mim praticadas, o

casamento veio trazer um pouco de juízo à minha

cabeça forçado também pela vida de caserna

onde por quase cinco lustros permaneci, criando

durante esse tempo os meus filhos que hoje são

para mim motivo de orgulho pelo meu trabalho,

perseverança e paciência nos meus sofrimentos e

atribulações.

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Infelizmente não me foi dado ainda o

descanso que almejava porquanto ainda venho

assiduamente trabalhando e cumprindo uma outra

missão que o destino reservou para a minha

velhice.

Respeitemos pois os desígnios que nos

foram impostos e caminhemos impávidos para o

fim da nossa existência.

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RENDENDO HOMENAGEM

Ao encerrar estes capítulos, onde procurei

gravar numa linguagem simples e sincera alguns

fatos verídicos da minha infância e juventude, o fiz

não com intuitos vaidosos, mas apenas para que

ficasse na memória dos meus netinhos as

lembranças das diabruras do avô.

X X X

Todo o indivíduo que recebe um favor ou

uma graça, devera ser agradecido. Neste

particular não posso deixar de agradecer em

primeiro lugar os meus inesquecíveis e

pranteados progenitores que embora eu não

merecesse, deram-me uma educação acima da

qual deveria receber.

Só mesmo a paciência, o amor e o espírito

de d isc ip l ina de meu que, est r ibado nos

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...seus velhos preconceitos plantou a poder de chibatadas as sementes de algumas virtudes que parece existir em mim.

A minha lembrada mãezinha, o meu anjo

tutelar que com o seu grande amor, tirou-me

sempre de grandes dificuldades. Que com o seu

chinelinho aplicou-me muitas e muitas chineladas

quando embirrado eu as merecia.

Ao meu querido avô e padrinho que sempre

sonhou fazer de mim alguém na vida, por

conhecer o meu temperamento vivo e inteligente.

Aos meus tios que me facilitaram os meios

para a minha educação escolar onde aprendi

alguma coisa que tem me facilitado viver.

A todos rendo essa homenagem tardia

partida do fundo do meu coração.

Para finalizar o meu pleito de homenagem,

n ã o p o d e r i a d e i x a r d e i n c l u i r u m a

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...cousa inanimada, um objeto que tornou-se me verdadeiro amigo de todas as horas.

Refiro-me à “Dourada”, uma cinta de couro

que segura as calças de meu pai por muitos anos.

A ela devo, quem sabe, parte da minha

educação.

Foi ela talvez que arrancou de dentro de mim

certos vícios que tentaram me escravizar.

Foi ela enfim, que me atemorizava quando

pretendia fazer uma diabrura.

Hoje passado mais de meio século ainda

tenho a impressão das suas lambadas pelas

minhas costas, das quais me recordo com

satisfação.

Recordações... velhas recordações me

fazem viver

Santo André, 2 de Junho de 1951