diálogos entre cinema e as ideias de bakhitin

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Linguagem cinematográfica: diálogos entre cinema e as ideias de Bakhtin Logo quando surgiu o cinema, buscou-se provar que se tratava de uma sétima arte, ou seja, um meio de expressão artística, status já desfrutado por outras seis formas de arte, até então a literatura, a pintura, a música, a escultura, a dança e o teatro. Assim, para atingir tal escopo, ele precisava ser dotado de uma linguagem específica, diferente das demais formas de expressão artística existentes. Mas isso não se deu do dia para a noite, como queriam alguns. O processo de construção de uma linguagem cinematográfica aconteceu de forma progressiva. Isso porque, no início, o que havia era uma simples reprodução do real, o que, para muitos não constitui arte, não havendo, portando, a necessidade de uma nova linguagem. Apenas com a descoberta e desenvolvimento de procedimentos de expressões fílmicas, capazes de produzir uma experiência para além da mera visualização do real, é que se pôde falar em linguagem cinematográfica. Nesse ponto, o conceito bakhtiniano de “transfiguração estética” nos ajuda na compreensão do processo de formulação de uma linguagem artística que fosse própria da sétima arte. Para Bakhtin (2010), o acabamento estético só se dá no plano da criação por meio de uma linguagem que sirva de filtro entre o real e o estético. Nessa perspectiva, não há arte e, consequentemente, não há linguagem cinematográfica se não houver essa transfiguração, ou transformação estética do mundo real, caso em que não passará de mera reprodução da realidade. Uma vez detentora de uma linguagem própria, por meio da qual o cineasta pudesse se expressar, o cinema pôde se constituir enquanto arte, pois só por meio da linguagem é possível essa transfiguração estilística. No texto fílmico, esse processo ocorre por meio da mobilização de recursos próprios da linguagem cinematográfica, como angulação de tomadas, iluminação, cenário etc., os quais transformam a matéria-prima do cinema, a imagem do mundo visível, em elementos significativos para seu público. Sobre isso, Roberto Stam esclarece:

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Este trabalho traça um paralelo entre a teoria de linguagem de Bakhtin e os conceitos de linguagem do cinema.

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Linguagem cinematogrfica: dilogos entre cinema e as ideias de Bakhtin

Logo quando surgiu o cinema, buscou-se provar que se tratava de uma stima arte, ou seja, um meio de expresso artstica, status j desfrutado por outras seis formas de arte, at ento a literatura, a pintura, a msica, a escultura, a dana e o teatro. Assim, para atingir tal escopo, ele precisava ser dotado de uma linguagem especfica, diferente das demais formas de expresso artstica existentes. Mas isso no se deu do dia para a noite, como queriam alguns. O processo de construo de uma linguagem cinematogrfica aconteceu de forma progressiva. Isso porque, no incio, o que havia era uma simples reproduo do real, o que, para muitos no constitui arte, no havendo, portando, a necessidade de uma nova linguagem. Apenas com a descoberta e desenvolvimento de procedimentos de expresses flmicas, capazes de produzir uma experincia para alm da mera visualizao do real, que se pde falar em linguagem cinematogrfica. Nesse ponto, o conceito bakhtiniano de transfigurao esttica nos ajuda na compreenso do processo de formulao de uma linguagem artstica que fosse prpria da stima arte. Para Bakhtin (2010), o acabamento esttico s se d no plano da criao por meio de uma linguagem que sirva de filtro entre o real e o esttico. Nessa perspectiva, no h arte e, consequentemente, no h linguagem cinematogrfica se no houver essa transfigurao, ou transformao esttica do mundo real, caso em que no passar de mera reproduo da realidade. Uma vez detentora de uma linguagem prpria, por meio da qual o cineasta pudesse se expressar, o cinema pde se constituir enquanto arte, pois s por meio da linguagem possvel essa transfigurao estilstica. No texto flmico, esse processo ocorre por meio da mobilizao de recursos prprios da linguagem cinematogrfica, como angulao de tomadas, iluminao, cenrio etc., os quais transformam a matria-prima do cinema, a imagem do mundo visvel, em elementos significativos para seu pblico. Sobre isso, Roberto Stam esclarece: O cinema uma linguagem, no apenas em um sentido artstico metafrico mais amplo, mas tambm como um conjunto de 45

mensagens formuladas com base em um determinado material de expresso, e ainda como uma linguagem artstica, um discurso ou prtica significante caracterizado por codificaes e procedimentos ordenatrios especficos (STAM, 2003, p. 132). Em outras palavras, o cinema se constituiu como linguagem porque desenvolveu, ao longo de sua existncia, e continua desenvolvendo, cdigos prprios, bem como estilos que caracterizam o discurso cinematogrfico. O cinema passou a possuir uma sintaxe, por meio da qual se relacionam e se organizam os planos, as cenas e as sequncias. Alm disso, desenvolveu uma metalinguagem, com elevado potencial de significao. Assim, temos os diversos tipos de plano (o geral, de conjunto, americano, close etc.); os movimentos de cmera (travelling, panormica etc.); as angulaes (plonge, contre-plonge, etc.) e a montagem, cada um contendo uma carga semntica peculiar13. 13 Esses e outros elementos que compem a linguagem do cinema sero explicados no final deste captulo, na seo Os signos cinematogrficos e seus efeitos de sentido. Com isso, interessa-nos acentuar que as produes cinematogrficas so discursos, ou seja, formas de produo de sentidos, os quais recorrem a uma linguagem para se concretizarem; neste caso, a linguagem cinematogrfica. Assim sendo, em se tratando do texto flmico, essencial conhecermos os elementos que compem essa linguagem, e como ela se constitui em discurso, dentro de suas especificidades enquanto texto no verbal; de modo a nos constituirmos consumidores crticos e conscientes, sendo capazes de, a partir de uma compreenso ativa, oferecermos respostas, concordando, discordando ou negando, mas nunca assumindo uma posio de indiferena. E, enquanto produtor de discurso, o cinema possui seu prprio tato, categoria utilizada por Bakhtin para se referir ao processo regulador da dinmica social que se realiza entre os interlocutores da interao verbal. Processo esse que, no ato comunicacional, modula a voz e a expresso corporal do locutor, levando em conta as condies do interlocutor, com vistas a estabelecer condies discursivas favorveis ao projeto enunciativo do locutor (BRAIT, 2007). O Cinema tem seu prprio modo de modular e regular a interao com seus telespectadores. Por exemplo, a angulao, o enquadramento e outros recursos de sua linguagem podem sugerir essa ou aquela interpretao; podem estabelecer relaes de distanciamento, intimidade, companheirismo e, at mesmo, de dominao com seus interlocutores. 46

Disso, podemos concluir que, embora o cinema tenha uma linguagem com seus cdigos e mtodos prprios de significao, no se trata de um sistema fechado, com os sentidos prontos e acabados encerrados em seu sistema. O discurso cinematogrfico, evidentemente, no apresenta apenas uma significao, e sim modos de significao. Ora, modos indicam maneiras, isso quer dizer que o significado est por vir, indicando que existe a um trabalho de interpretao do enunciado imagtico. De qualquer maneira, a possibilidade de ler e compreender um texto flmico, embasado no conhecimento dos recursos prprios da linguagem do cinema, certamente habilitar o leitor a produzir sentidos mais fluentes. Entender o sentido das sombras produzidas pela manipulao de luzes e suas texturas, por exemplo, requer do telespectador uma leitura em nvel mais profundo. Isso enfatiza o fato de que uma leitura ativa de um texto flmico se efetiva tambm pela explorao dos recursos e estratgias da linguagem do texto cinematogrfico. verdade que a maioria de ns tem competncia suficiente para assistirmos a um filme sem precisarmos estudar a linguagem cinematogrfica, visto que a imagem em movimento parece ser compreensvel em si mesma. De fato, a leitura superficial do texto cinematogrfico, passvel de ser decodificado, pode ser feita por qualquer sujeito. Mas porque estamos insistindo aqui na necessidade de conhecer, minimante, a linguagem cinematogrfica e suas estratgias discursivas? A professora Roslia Duarte explica: (...) A maior parte de ns aprende a ver filmes pela experincia (...) e conversando com outros espectadores. (...) Mas isso no significa que devamos deixar o conhecimento da gramtica cinematogrfica para os especialistas. Ao contrrio, conhecer os sistemas de significados de que o cinema utiliza para dar sentido s suas narrativas aprimora nossa competncia para ver e nos permite usufruir melhor e mais prazerosamente a experincia com filmes (DUARTE, 2002, p. 38). Alm disso, segundo Brait (2006), no h outra forma de apreendermos o discurso seno pela materialidade da linguagem, por meio da qual ele se manifesta. Portanto, desenvolver uma competncia adequada para a apreenso do discurso cinematogrfico implica na compreenso do funcionamento de sua linguagem. Alm disso, referindo-se ao uso da stima arte como instrumento pedaggico, Duarte (2002) recomenda que esse uso seja de modo reflexivo e responsvel. Isso implica obter uma compreenso satisfatria dos elementos que compem o discurso flmico, 47

de modo a aprimorar nossas atividades de anlise e interpretao do texto cinematogrfico. Em busca dessa competncia, muitos pesquisadores, atualmente, recorrem a modelos de anlises baseados na semitica estrutural, nos quais o analista no precisa conhecer o processo scio-histrico em que est inserido o produto cultural a ser analisado. Basta que saiba decodificar o signo cinematogrfico (imagem, som, cor, movimentos, ngulos, enquadramento) por meio do processo analtico descritivo chamado decupagem14. Nessa perspectiva as imagens guardariam em si mesmas o poder de gerar os significados independentemente de sua origem e da forma em que so apresentadas. O problema, ao nosso ver, que essa ordenao analtico-mimtica, presente nesse modelo sistmico de anlise, produz interpretaes limitadas, no acrescenta muita coisa ao processo de ensino-aprendizagem por meio do cinema, uma vez que abre mo daquilo que promove o inesperado, o irrepetvel, o novo, qual seja, o scio-histrico. E mesmo abrindo mo desse elemento, fatores sociais externos acabam sendo determinantes na interpretao dos dados, ainda que os analistas dessa corrente no reconheam, talvez porque o processo fuja de seu controle e do pseudo rigor cientifico. Por outro lado, procuramos demonstrar em nossas anlises dialgicas do discurso cinematogrfico que a compreenso das formas expressivas prprias da linguagem cinematogrfica est vinculada necessariamente a uma leitura reflexiva e dinmica. E esse processo envolve, necessariamente, enunciadores e enunciatrios, os quais, juntos, negociaro o significado do enunciado. As ideias de Bakhtin introduzem nesse debate os aspectos sociais e culturais da linguagem, propondo uma abertura dos mecanismos de produo de sentido, superando a ideia de sistema fechado de cdigos lingusticos. Ao contrrio, ele aponta um horizonte de possibilidades significativas para alm de uma gramtica do filme. o que o leitor ver nas prximas sees, nas quais abordamos algumas categorias bakhtinianas, consideradas de capital relevncia para compreendermos a maneira pela qual os aspectos internos da linguagem cinematogrfica se articulam com os fatores externos e como a dimenso tica se articula com a dimenso esttica na produo de sentido.