diálogos da arquitetura no cairo entre os séculos x e xiii: a

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LNGUAS ORIENTAIS

    PROGRAMA PS-GRADUAO EM ESTUDOS JUDAICOS E RABES

    REA DE CONCENTRAO: ESTUDOS JUDAICOS

    LYGIA FERREIRA ROCCO

    Dilogos da arquitetura no Cairo entre os sculos X e XIII:

    A Sinagoga de Ben Ezr e o contexto da cidade islmica

    Exemplar Revisado

    SO PAULO

    2014

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LNGUAS ORIENTAIS

    PROGRAMA PS-GRADUAO EM ESTUDOS JUDAICOS E RABES

    REA DE CONCENTRAO: ESTUDOS JUDAICOS

    Dilogos da arquitetura no Cairo entre os sculos X e XIII:

    A Sinagoga de Ben Ezr e o contexto da cidade islmica

    LYGIA FERREIRA ROCCO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Estudos Judaicos e rabes do Departamento de Letras

    Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno

    do ttulo de Doutor em Letras.

    rea de Concentrao: Estudos Judaicos.

    Orientador:

    Prof. Dr. Moacir Aparecido Amncio

    EXEMPLAR REVISADO

    De acordo do orientador

    Orientador: Prof. Dr. Moacir A. Amncio

    Ass.: ____________________________________________

    SO PAULO

    2014

  • Ao meu filho ENZO, que torna tudo especial.

  • Agradecimentos

    Desejo expressar a minha profunda gratido e apreciao ao meu orientador prof. Dr.

    Moacir Aparecido Amncio pelo seu apoio, pelas observaes, correes, indicaes de leitura

    e conselhos valiosos, e para com aqueles que apoiaram e acompanharam desde a minha

    dissertao de mestrado, at a finalizao desta presente pesquisa, ao prof. Dr. Mamede Mustafa

    Jarouche, pelo incentivo a esta pesquisa e ao prof. Dr. Andrea Piccini pela sua grande amizade,

    e pela generosidade com que compartilha o conhecimento sobre a arquitetura. A todos pela

    confiana depositada em mim nesses anos de pesquisa, pelas longas conversas e encontros.

    CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior), pelo

    apoio com o qual foi possvel a dedicao a esta pesquisa em tempo integral, e tambm a

    aquisio de material de pesquisa imprescindvel para o desenvolvimento de todo o tema.

    Ao Magia Elguibly com as indicaes e comentrios que foram fundamentais e que foi

    uma das sementes norteadoras desta tese, pela sua indicao fundamental para esta pesquisa, e

    os seus comentrios valiosos sobre o Cairo. E pela sua disponibilidade em me encontrar para

    conversarmos sobre o tema.

    Aos funcionrios da biblioteca do MAE-USP (Museu de Arqueologia e Etnologia) pela

    ajuda que foram fundamentais, atendendo a todas as minhas solicitaes de textos, livros,

    artigos, alm do apoio, das indicaes, das conversas e do carinho, simpatia e ateno que

    dispensaram s minhas necessidades, e a amizade que surgiu dessa convivncia diria nestes

    anos de pesquisa, a Diretora da Biblioteca Eliana Rotolo e de toda a sua equipe: Hlio Rosa de

    Miranda, Alberto Blumer Bezerra, Eleuza Gouveia, Gilberto Morais de Paiva, Ana Lcia de

    Lira Facini, Washington Urbano Marques Jnior, Marta dos Santos Vieira, Thiago Chaves

    Alexandre e aos estagirios que me gentilmente me atenderam.

    Meu agradecimento a Sofia Tels, diretora da Biblioteca Mehlmann da Universidade de

    Tel-Aviv pelo envio de artigos. Ao Roberto Bertazzoni, da Biblioteca Fondazione Bruno

    Kessler (FBK), em Trento (Itlia) pelo envio de material fundamental para minha pesquisa.

    Agradeo a toda equipe de Ps-Graduao e da secretaria do Departamento de Letras

    Orientais: Jorge, lvaro, Maribel, Iva, Luis e Patricia, e ao programa de Estudos Judaicos e

    rabe da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Sociais da Universidade de So Paulo

    (FFCLH-USP) pela oportunidade de desenvolver esta pesquisa no nvel de doutorado. Aos

    professores do programa de Hebraico e ao programa de rabe que foram receptivos e apoiaram

    toda a pesquisa, com o oferecimento de disciplinas relevantes ao aprofundamento do tema.

    Ao Rodrigo Pereira da Silva da UNASP-EC, por disponibilizar de momentos valiosos

    de seu tempo em Israel para procurar artigos na Biblioteca de Jerusalm. Ao Diego Raigorodsky

    pela traduo para o portugus dos artigos em hebraico.

  • profa. Dra. Arlene E. Clemesha e ao prof. Dr. Miguel Attie Filho pela oportunidade

    de realizar o estgio do PAE (Programa de Aperfeioamento de Ensino) em suas aulas da

    Graduao.

    Julia Maria de Paiva que desde nosso encontro no Cairo me encorajou e incentivou a

    aprofundar o estudo sobre a arquitetura e sobre a cidade islmica, e Patricia Rodrigues

    Loureiro e Silva, minha amiga-irm, Marisa Alves de Souza e Selma Daffr pelo encorajamento

    em todos estes anos de pesquisa, e a todas estas amigas que so to valiosas para mim, pelo

    importantssimo e fundamental auxlio nas questes prticas do cotidiano, e que me apoiaram

    nos momentos mais difceis, os quais no foram poucos, ajudando-me a super-los e seguir em

    frente. Dalva Pares Cunha pelos anos de amizade e pela sua sabedoria e gentileza que me

    serviram de modelo. Ao Alexandre, meu amigo irmo pela torcida, apoio, amizade e carinho.

    Beatriz, pela ateno, pelo imenso carinho e disposio que foram to importantes nestes

    ltimos seis anos, e Patricia pelo apoio.

    Aos meus avs e a meu pai (in memorian), minha tia Maria do Carmo Rocco, por

    terem aberto meus caminhos, pelo apoio financeiro nos momentos difceis e pelo incentivo aos

    meus estudos durante todos estes longos anos de formao, estudo e pesquisa. minha me

    pelos anos de formao, introduo ao universo da leitura e passeios aos museus e galerias.

    prima Marlene por sempre ter acreditado e pela grande ajuda que ofereceu nos momentos

    difceis.

    Aos amigos de tantos anos, que me acompanham, onde sempre encontro apoio, fora e

    estmulo: Gyngy Lukcs, Prola, Cristina, Mariana Szllzy, Mariangla N. Figueiredo, Carlos

    E. Figueiredo e D Vanir, Geraldo Mendes, Helena Andr, Lri.

    Ao meu filho Enzo, sempre presente, que faz tudo valer pena e compreensivo quanto

    s ausncias da me em suas brincadeiras nestes seus 6 anos de vida. A ele por simplesmente

    estar aqui ao meu lado.

    Isabelle Somma, por atender as minhas necessidades em Cambridge com os livros e as

    emocionantes conversas sobre o assunto em nossos encontros. Ao Rogrio Schlegel pelo apoio,

    leitura e comentrios e pela amizade. Ao Claudio W. Duarte pela amizade, sugestes de leitura,

    comentrios e pela grande generosidade. A Tatiana Souza pela disposio em trabalhar as

    imagens e pela amizade e deliciosas conversas.

    Aos meus amigos do Museu e USP pelas leituras, conversas, comentrios e dicas:

    Irmina, Isabel Catanio, Rodrigo de Lima, Cleberson Moura, Maria Ester, Viviana, Aline, La,

    Gustavo, Cida, Geraldo, Judite, Maurcio, Fillipo, Marta e a todos pelos agradveis encontros.

    s amizades que foram para alm dos espaos da Universidade: Lorena, Estevam, Juliana

    Duarte, Ximena, Daniela e Sheila.

    Valria Montanholli, Ricardo Sacco, Malu Dias, Rejane Elias, Tho, Dafner Barreto,

    Leonardo Capucci, Mrian, Augusto, Vanessa, Tatiane Almeida, Diego, Diana Mendes, Jos

  • Srgio, Katiucha, Lo, Daniela, Claudemir, amizades que se iniciaram nos corredores da Creche

    Central e ultrapassaram os jardins e as unidades da Universidade de So Paulo, pelos nossos

    encontros, almoos, passeios e todos os momentos deliciosos que passamos juntos. Rejane

    tambm pela ajuda com a traduo.

    E s amizades que se intensificaram para alm dos espaos dedicados aos nossos filhos:

    Marcelo Modolo, Clia Modolo, Juta, Jorge, Elosa, Luciano, Rita, Grace, Jussara, Z, Marcelo,

    Aline, Ruy, Jlia, Rose, Malu, Sergio, Renato e Bianca, todos queridos amigos que em vrios

    momentos ofereceram valioso suporte para a pesquisa no que se refere ao auxlio na dinmica

    das atividades e da logstica do dia-a-dia.

    Aos meus amigos da Vila Buarque: Eduardo Camargo, Ismar Leal, Regina Tirello,

    amizades que se intensificaram ao longo dos anos e ao Mrcio Prigo, Cato, Marcos, Moacir

    Simplcio, Carlos Marinho, Philippe, Cacau, Ded, Janana, Priscila, Mathias, Max, Robson, aos

    novos e pequenos ingressantes do grupo, Teo e Gabriel. Aos amigos da UMAPAZ/UNESP:

    Mrio, Lucila, Luciene, Paula e Will, Solange, Luana, Patrcia e todos que fizeram parte deste

    grupo que simbolizou um renascimento.

    s educadoras e funcionrios da Creche Central Coseas da Universidade de So Paulo,

    que estiveram nestes seis anos presentes na vida do Enzo, e com carinho atenderam as suas

    necessidades e contriburam para a sua formao, fazendo com que eu tivesse tranquilidade

    absoluta para me dedicar pesquisa. Pela amizade e pelos momentos inesquecveis de toda a

    convivncia: Josiane (Jos), Alexsandra, Irene, Adriana (Dri), Priscila, Telma, Lvia,

    Crispiniana, Hanna, Edinaura (Edi), Crismara, Juliana, Lenilda, Mrcia, Margareth, Ione, Isabel

    (Bel), D Ivoni, Delba, Dirlene, Sizino, Bruna, Anaizuede, Andrea, ngela, Marli, Martha,

    Fabiana, Everaldo, Rmulo, Miriane, Neime, Odair, Olindina, Beth, Maria Claudia, Eliene,

    Francinalda, Chiquinho, Nelita, Maria, Flvia, Janeide, Jorge, Gabriela, Elaine, Carla, Airton,

    Clio, Jos (Seu Z), Rodrigo, Rose, Cida, Thiago, Mait, Tas, Renata, Clio, Clio, Renata,

    Natlia, Denise e todas as educadoras e funcionrios que estiveram presentes na vivncia do

    Enzo neste espao que foi to especial para todos ns. E Dona Lucy pela simpatia e carinho.

  • PALAVRAS CHAVE

    Arquitetura Cairo Sinagoga Judasmo Isl Medievo

    RESUMO

    Nos estudos sobre as cidades islmicas, poucos so os que tratam dos edifcios

    que pertencem a outros grupos confessionais que no o dos muulmanos, no sentido de

    analis-los como agentes na evoluo da configurao urbana das cidades que estiveram

    sob governo islmico.

    Os estudos existentes sobre esses edifcios seguem sempre uma orientao em

    analis-los dentro de seus prprios elementos, ou seja, um edifcio cristo ou judaico

    dentro do seu prprio contexto que o de servir a sua prpria comunidade confessional.

    A tese mostra que a sinagoga um elemento que tambm constri e participa da

    dinmica da cidade, e seu estudo auxilia tanto na compreenso da urbe rabe-islmica,

    como tambm no entendimento da dinmica da sociedade entre os sculos X-XIII.

    Ao analisar a Sinagoga de Ben Ezr localizada no Cairo portanto no contexto da

    cidade islmica e no apenas sob seus aspectos estticos ou estilsticos, busca entender

    como o edifcio dialoga com a cidade no sentido da construo de suas territorialidades.

    E tambm, no sentido inverso: como a cidade e um tipo de linguagem islmica

    dialogam com o edifcio judaico.

    A grande extenso geogrfica conquistada pelo Isl produziu uma multiplicidade

    de formas e emprstimos e, ao mesmo tempo, devido facilidade de ir e vir das pessoas

    e as novas conquistas, forjou-se uma certa unificao na linguagem.

    As trocas e as assimilaes no s foram e so inevitveis, como fazem parte das

    relaes e convvio entre os grupos em qualquer momento. A Sinagoga de Ben Ezr foi

    desde a sua fundao, um elemento organizador do espao urbano ao seu redor,

    organizador da distribuio dos habitantes ligados comunidade judaica, no apenas da

    comunidade rabnica da palestina mas das outras comunidades judaicas babilnica e

    carata, entre os sculos X ao XIII. E desempenhou um papel de articulador de

    multiterritorialidades.

    Esta anlise vem ampliar o conhecimento acerca desse edifcio, e

    principalmente, das relaes entre as comunidades judaica, islmica e crist entre a

    conquista fatmida do Egito (969 E.C.) e o fim da dinastia aibida (1254 E.C.).

  • Key Words

    Architecture Cairo Synagogue Judaism Islam - Medieval

    ABSTRACT

    In studies of Islamic cities, there are few that deal with buildings that belong to

    other faith groups other than Muslims, in the sense of analyzing them as agents in the

    evolution of the urban configuration of the cities that were under Islamic government.

    The existing studies about these buildings always follows the line of analyzing them

    inside their own elements, in other words, a Christian or Jewish building within their

    own context, which is to serve its own confessional community.

    The thesis shows that the synagogue is an element that also builds and

    participates in the dynamics of the city, and its study helps both in the comprehension of

    the Arab-Islamic metropolis, but also in understanding the dynamics of society between

    the X-XIII centuries.

    By analyzing the Ben Ezra Synagogue in Cairo, located just in the context of the

    Islamic city, not only in its aesthetics or stylistic aspects, aims to understand how the

    building dialogues with the city in the sense of the construction of its territorialities.

    And also, in reverse: how the city and a kind of Islamic language dialogue with the

    Jewish building.

    The big geographic extension conquered by the Islam produced a multiplicity of

    forms and loans and, at the same time, due to the facility of coming and going of the

    people and the new conquests forged a certain unification in the language.

    The exchanges and the assimilations not only were and are inevitable, as they

    are part of the relations and living together among the groups at any time. The Ben Ezr

    Synagogue was since its foundation, an organizing element of the urban space around,

    organizer of the distribution of the inhabitants linked to the jewish community not only

    the rabbinic of Palestine but for others jewish communities babylonic and Karaite,

    between the X-XIII centuries. And it played a role of articulator of multiterritorialities.

    This analysis comes to enlarge the knowledge about this building, and mainly, of

    the relations among the communities Judaic, Islamic and Christian - between the

    Fatimid conquest of the Egypt (969 e.C.) and the end of the Ayyubid dynasty (1254

    E.C).

  • NDICE

    Pgina

    ndice de Figuras i

    Lista de Abreviaturas v

    Explicaes Iniciais vi

    Introduo 1

    Captulo 1 12

    1.1- CONSIDERAES GERAIS 12

    1.2 -OBJETIVOS, CONCEITOS E METODOLOGIA 18

    1.2.1 - Objetivo 18

    1.2.2 - Conceitos 24

    1.3 - CONCEITO DE CULTURA 32

    1.3.1 - Cultura e arqueologia 32

    1.4 - CULTURA MATERIAL 37

    1.4.1 - A Paisagem 37

    1.4.2 - Cultura Material e Arquitetura 41

    1.5 - HISTRIA 44

    1.6 - A TERRIORIALIDADE 49

    Captulo 2 55

    2.1 - DESENVOLVIMENTO HISTRICO 58

    2.2 - ORIGEM DA FORTALEZA DA BABILNIA 64

    2.3 - O EGITO ISLMICO 83

    2.3.1 - Fus (antes da conquista Fatmida) Contextualizao Histrica 83

    2.3.2 - Fus depois da conquista Fatmida 89

    2.4 - COMPOSIO DOS GRUPOS NO GOVERNO FATMIDA 98

    2.4.1 Comunidades (Aspectos Sociais) 106

    2.5 - AS COMUNIDADES JUDAICAS NO PERODO FATMIDA 110

    2.6 AS CIDADES: AL- FUS E AL-QHIRA 116

  • Captulo 3 123

    3.1 - A GUENIZ 124

    3.2 - AS COMUNIDADES CARATA E AS RABNICAS BABILNICA E

    PALESTINA

    129

    3.2.1 - Caratas 130

    3.2.2 - Rabanitas (Rabnicos) da Palestina e da Babilnia 134

    3.2.3 - Rabnicos da Babilnia 136

    3.2.4 - Rabnicos da Palestina 139

    3.3 -AS RELAES COM O GOVERNO ISLMICO 141

    3.4 - AS REDES DINMICA DA COMUNIDADE JUDAICA (SCULOS X-XIII) 150

    3.4.1 - A Organizao da Cidade e as Leis 150

    3.5 - WAQF FUNDAES PIEDOSAS 159

    3.5.1 -Waqf 159

    3.5.2 - A Configurao do Espao em torno da Sinagoga a partir das Doaes

    Piedosas

    163

    3.5.3 - Sobre as Restries Legais dos Waqfs 171

    Captulo 4 177

    4.1 - SINAGOGA 177

    4.2 - A SINAGOGA DE BEN EZR 178

    4.2.1 Localizao da Sinagoga A Fortaleza da Babilnia 179

    4.3 - QUESTES SOBRE A ORIGEM DO EDIFCIO 182

    4.4 - DESCRIO DO EDIFCIO SINAGOGA DE BEN EZR E AS

    CONSTRUES ADJACENTES

    190

    4.5 - CARACTERSTICAS TIPOLGICAS E ARQUITETNICAS DO

    EDIFCIO

    196

    4.6 - ELEMENTOS ARQUITETNICOS NO INTERIOR DO EDIFCIO 205

    4.7 - EVIDNCIAS ARQUEOLGICAS ANTERIORES RESTAURAO

    LEVANTAMENTOS PARA O PROJETO DE 1980

    211

    4.8 - HISTRIA DA CONSTRUO (DO EDIFCIO): EVIDNCIA TEXTUAL 214

    4.8.1 - A Sinagoga e a sua relao com a Comunidade As Evidncias Textuais 214

  • NDICE

    Pgina

    4.8.2 Descrio do Edifcio da Sinagoga no perodo Fatmida e Aibida e do seu Interior 229

    Concluso 238

    Apndice A Tabelas de Transliterao 250

    Apndice B Cronologia de Governantes Fatmidas e Aibidas 255

    Apndice C Glossrio 257

    Bibliografia 259

  • i

    NDICE DE FIGURAS

    Figura Descrio Pgina

    FIGURA I Mapa localizando Fustt com relao as outras reas do

    Cairo histrico

    4

    FIGURA II A Sinagoga de Ben Ezr depois da restaurao realizada

    na dcada de 1980

    7

    FIGURA 2.1 Os trs momentos da expanso islmica: (marrom) poca

    de Mohammed (622-632 EC); (laranja) os domnios

    durante o Califado Rashdun (632-661 EC); (amarelo) os

    domnios durante o Califado Omada de Damasco (661-

    750 EC). A segunda fase se inicia em 750 EC com o

    califado abssida e a partir desse momento se inicia a

    desfragmentao de um nico califado em vrios califados

    autnomos.

    59

    FIGURA 2.2 O curso dos canais romano e rabe atravs do Cairo.

    (mostra as principais vias modernas e a progradao

    (processo natural de ampliao das margens e praias,

    provocados pelos rios ou pelo mar) da margem oeste do

    Nilo com o decorrer do tempo.

    65

    FIGURA 2.3 Egito e o Oriente Mdio c. 110 E.C. 66

    FIGURA 2.4 Vista rea do Cairo Antigo. A Fortaleza da Babilnia est

    no canto esquerdo inferior. A mesquita de cAmr prxima a

    parte superior direita da foto.

    68

    FIGURA 2.5 O delta do rio Nilo e as ramificaes conforme o relato de

    Strabo. [depois de Said, 1981].

    69

    FIGURA 2.6 Seo transversal entre Ain El-Sira e o Rio Nilo. 70

    FIGURA 2.7 Principais rotas na direo norte-leste, da frica e Oriente

    Mdio em direo ndia.

    73

    FIGURA 2.8 Regio atravessa pelo canal do Nilo at o Mar Vermelho.

    Esboo feito por Posener que mostra a localizao encontrada

    de quatro stelas persas.

    74

    FIGURA 2.9 Localizao de Musturud e o canal que passa por esse local. 75

  • ii

    Figura Descrio Pgina

    FIGURA 2.10 Imagem que mostra a distncia entre Musturud e o Mar Vermelho.

    75

    FIGURA 2.11 Reconstruo axonomtrica da Fortaleza Romana da Babilnia e a entrada do Ammis Traianus por volta de 300 EC.

    [Alojamentos de Diocleciano: A topografia da Fortaleza

    Romana da Babilnida].

    76

    FIGURA 2.12 A Fortaleza da Babilnia no contexto do Cairo. Caractersticas

    topogrficas e urbanas da Margem Leste do rio Nilo no Cairo.

    80

    FIGURA 2.13 O local de al-Fus, al-cAskar e al-Qaic (depois de Bahat e

    Gabriel). Indica a entrada do Fumm al- Kalg.

    82

    FIGURA 2.14 Planta que apresenta al- Fus, al-Askar, al-Qataci, e outros

    elementos topogrficos da cidade. Indica a localizao das

    margens do Nilo desde a poca da conquista rabe at o perodo

    aibida. Retirado de Fouilles dal-Foustat de Bahgat Bey 1921.

    84

    FIGURA 2.15 Levantamento com os monumentos do Cairo Antigo. 88

    FIGURA 2.16 Mapa do Magrebe, primeira metade do sculo XI. 90

    FIGURA 2.17 Territrio do Governo Fatmida na primeira metade do sculo

    XI e depois o que restou no sculo XII [listrado].

    93

    FIGURA 2.18A Evoluo urbana de Fus entre 642 a 1250 (depois de Clerget). 96

    FIGURA 2.18B Os canais do Cairo na metade do sculo XIV. Toponmia,

    urbanizao e eixos de circulao. Fonte: Description de

    lgypte.

    97

    FIGURA 2.19 O Cairo Fatmida: al-Qhira. 104

    FIGURA 2.20 Principais rotas de comerciais entre os sculos IX ao XV. 105

    FIGURA 2.21 Mapa do territrio sob governo aibida (em laranja). 133

  • iii

    Figura Descrio Pgina

    FIGURA 3.1 Planta: Localizao do Cairo e Fayyum. 133

    FIGURA 3.2 Planta do setor sul da Fortaleza da Babilnia. Indica as sinagogas, as instituies e as casas medievais. Localizao dos

    edifcios por Menahem Ben-Sasson aps desenho elaborado por

    Kate Spence, Peter Sheehan e Charles le Quesne.

    175

    FIGURA 4.1 A Sinagoga de Ben Ezr antes da restaurao ocorrida na

    dcada de 1980 E.C.

    179

    FIGURA 4.2 Planta com os principais edifcios religiosos dentro da Fortaleza

    da Babilnia. (1) Igreja da Virgem [al-Adra]; (2) Mair Girgis

    [So Jorge]; (3) Igreja de Santa Brbara; (4) Ab Sargah (Santo

    Sergius); (5) Sinagoga de Ben Ezr; (6) Igreja Suspensa / Sitt

    Mariam [al-Muallaqa; muallaqt suspenso]; (7) Igreja Grega

    Ortodoxa de So Jorge

    180

    FIGURA 4.3 Planta do Cairo Antigo. Indica os edifcios existentes e as reas

    (cobertas) da Fortaleza Romana que permanecem no nvel do

    terreno ou que foram reveladas pela escavao. No centro da

    planta mostra o canal de Trajano. A entrada do canal entre as

    duas torres.

    183

    FIGURA 4.4 Reconstruo axonomtrica dos alojamentos romanos na rea

    leste da atual Sinagoga de Ben Ezr. Mostra a relao das

    construes romanas com a sinagoga, com a Igreja de Santa

    Brbara e outros edificaes medievais.

    187

    FIGURA 4.5 Maquete do Museu Copta que mostra o Cairo Antigo em 1930,

    com as trs longas fileiras de construes dos alojamentos da

    comunidade judaica.

    190

    FIGURA 4.6 Planta com levantamento do Egito em que mostra a relao do

    Cairo Antigo e a regio do rio. O levantamento foi realizado em

    1918. Apresenta os cemitrios prximos da fortaleza e da

    sinagoga.

    191

    FIGURA 4.7 Planta da superfcie das estruturas da Sinagoga de Ben Ezr com

    o Anexo II.

    193

    FIGURA 4.8 Fortaleza da Babilnia. Butler, The Ancient Coptic Churches of

    Egypt.

    194

    FIGURA 4.9 Vista do Cairo Antigo durante a segunda metade do sculo XIX.

    (Jullien).

    195

  • iv

    Figura Descrio Pgina

    FIGURA 4.10 Planta do piso trreo da Sinagoga de Ben Ezr. 197

    FIGURA 4.11 Reconstruo isomtrica do sculo XIX no interior da Sinagoga de Ben Ezr. Desenho Kate Spence, 1993.

    198

    FIGURA 4.12 Perspectiva axonomtrica da Sinagoga de Ben Ezr (SBE) antes

    da reconstruo de 1889.

    199

    FIGURA 4.13 Perspectiva axonomtrica da SBE conforme o ano de 1930. 199

    FIGURA 4.14 Elevao da fachada oeste da SBE. Desenho de Claire Daliers. 201

    FIGURA 4.15 Elevao da fachada sul da SBE. Desenho de Claire Daliers. 202

    FIGURA 4.16 Corte transversal da SBE. Vista leste. Desenho de Claire

    Daliers, Rodrigo Tapia e Anna-Paula Villela.

    203

    FIGURA 4.17 Hekhal da SBE. 207

    FIGURA 4.18 Vista geral, com a bim a frente. 207

    FIGURA 4.19 Intradorso da arcada da galeria feminina e o teto da nave da

    SBE.

    207

    FIGURA 4.20 Portas da cmara ao norte da arca. Mostra o antigo revestimento

    nas paredes imitando trabalho em cantaria.

    207

    FIGURA 4.21 Ptio da Sinagoga de Alepo com a bim externa. 235

    FIGURA 4.22 Mesquita de cAmr ibn al-

    cAs. Ptio Central com a fonte de

    abluo. Foto: Final do sculo XIX.

    236

  • v

    LISTA DE ABREVIATURAS

    Add. Adicional

    AIU Alliance Isralite Universelle, Paris.

    Antonin Antonin Collection, St. Petersburgo.

    Ar. rabe

    AS Sries Adicionais

    B.L. British Library

    Bodl. Bodleian Library (Oxford); Neubauer-Cowley, Catalogue of

    Hebrew MSS. at the Bodleian, vols. I e II.

    MS. Heb. Hebrew MSS. na Bodleian, Oxford.

    Chapira Chapira Collection

    DK David Kauffman Collection, Budapeste.

    El 2nd Enciclopdia do Isl, 2 ed. P.Bearman,T. Bianquis, C. E.

    Bosworth, E. van Donzel, e W. P. Heinrichs (Leiden, 2006)

    ENA Elkan Nathan Adler Collection, New York.

    MS. Adler Collection of Mr. E. N. Adler;

    Halper Halper Collection, University of Pennsylvania

    Heb. Hebraico

    IFAO Institute Franaise dArcheologie Oriental

    JNUL Jewish National and University Library, Jerusalem.

    JTS Jewish Theological Seminary

    J. Judeu-rabe

    Meunier Meunier Collection

    Misc. Miscellaneous

    Mosseri Jacques Mosseri Collection, Cambridge.

    MS (MSS) Manuscrito

    N.S. Nova Srie

    Or. Oriental MSS. no British Museum, London.

    P. Heid. Papyrus Collection of the University of Heidelberg.

    PER. Erzherzog Rainer Papyrus Collection, Viena.

    T.S. Taylor-Schechter Collection, Cambridge.

  • vi

    EXPLICAES INICIAIS

    A grafia na qual foram escritos os nomes dos indivduos da comunidade judaica

    segue a forma e convenes utilizadas no mundo islmico, segundo:

    O nome pessoal ism (ar.) (nome), o patronmico nasab (nome do pai), a kunya

    (pai de xxx), e nisba pessoal ou familiar (um especificador) que indicaria ou o lugar

    de origem, a profisso ou descendncia. Alguns indivduos tm mais que um nisba, e

    alguns indivduos ou famlias tambm carregam um laqab, ou apelido. A maioria das

    formas adotadas no texto na forma ism b. nasab, mas tambm foram adotadas

    variaes, seguindo o uso do autor da qual a fonte foi utilizada1.

    O b. o equivalente a ibn em rabe, que ben em hebraico e bar em

    aramaico, como exemplo: Ysuf b. Yaqb Ibn Awkal que significa, Ysuf cujo pai era

    Yaqb, e cuja famlia era Ibn Awkal, e que tambm pode ser apenas citado como

    Ysuf Ibn Awkal, ou seja, Ysuf da familia Awkal.

    Durante a idade mdia, muitos judeus no Oriente Mdio, eram conhecidos tanto

    por seus nomes em hebraico como em rabe, usualmente, eles utilizavam as formas em

    rabe.

    Para as cidades cujos nomes so mais familiares aos leitores em portugus,

    foram utilizadas as verses traduzidas. Para outros nomes, e tambm para indicar como

    foram citados pelos autores e fontes medievais, so apresentadas em sua forma

    transliterada, tambm acompanhados do artigo onde seu uso mais comum, como por

    exemplo al-Qhira, em alguns casos Fus e em outros al-Fus (de acordo com o

    contexto da fonte citada).

    Para a Peninsula Ibrica (Espanha) islmica so utilizadas as formas: Andaluzia

    (em portugus), al-Andalus (s vezes com ou sem o artigo al) e iqilliyya (Siclia)

    quando citada por algum texto medieval, al-Shm (Sria). Os nomes transliterados so

    utilizados quando no contexto dos textos e citaes medievais.

    As palavras rabes e hebraicas esto em itlico. Encontra-se um glossrio no

    apndice. As letras c

    ayn e hamza esto indicadas. Todas as datas so indicadas pela

    1 Jessica Goldberg, Trade and Institutions in the Medieval Mediterranean: The Geniza Merchants and their business world. Cambridge, 1969, pp. 31-50, 199-209, 247-288.

  • vii

    frmula E.C. (Era comum) pois todas as trs religies possuem calendrios especificos

    e diferentes.

    O apndice A contm as tabelas das transliteraes do rabe e do Hebraico.

    O apndice B inclui a tabela dos governantes fatmidas e aibidas.

    O apndice C contm um glossrio de termos.

  • 1

    INTRODUO

    Cheguei enfim cidade de Mir [Cairo], me de todas as cidades e

    sede do Fara, o tirano, senhora de amplas provncias e terras frteis, sem

    limites em sua multido de edifcios, inigualvel em beleza e esplendor, local de

    encontro daquele que vem e daquele que vai, o ponto de parada do debilitado e

    do forte. L existe o que voc escolher, do estudado ao simples, do srio e do

    alegre, do prudente ao tolo, do vil ao nobre, do alto ao baixo nvel, do

    desconhecido ao famoso; ela surge como as ondas do mar, com suas multides

    de gente, e mal as pode conter a despeito de seu posto em termos de posio e

    poder para prover. Sua juventude sempre nova, apesar da longevidade em

    dias, e o astro de seu horscopo no se move da casa da fortuna; sua capital

    conquistada [al- Qahira] subjugou as naes, e os seus reis tomaram pelo cabelo

    rabes e no rabes. Ela tem como sua possesso exclusiva o majestoso Nilo,

    que dispensa sua rea da necessidade de suplicar pela destilao [da chuva]; seu

    territrio uma jornada de um ms para um viajante apressado, de solo

    generoso, e oferecendo uma recepo calorosa a estranhos.1 (Traduo:

    Rogrio Schlegel).

    Entre todas as cidades do mundo, a cidade do Cairo est entre uma das mais

    famosas. Seu embrio, a Fortaleza da Babilnia, onde foram construdas vrias igrejas e

    sinagogas.

    As cidades nos territrios que foram governados pelo isl sempre tiveram os

    estudos de sua histria e de seu desenvolvimento urbano baseados em elementos e

    edifcios relacionados com o governo e/ou a comunidade muulmanos.

    1 I arrived at length at the city of Mir [Cairo], mother of cities and seat of Pharaoh the tyrant, mistress of

    broad provinces and fruitful lands, boundless in multitude of buildings, peerless in beauty and splendour,

    the meetingplace of comer and goer, the stopping-place of feeble and strong. Therein is what you will of

    learned and simple, grave and gay, prudent and foolish, base and noble, of high estate and low estate,

    unknown and famous; she surges as the waves of the sea with her throngs of folk and can scarce contain

    them for all the capacity of her situation and sustaining power. Her youth is ever new in spite of length of

    days, and the star of her horoscope does not move from the mansion of fortune; her conquering capital

    [al-Qahira) has subdued the nations, and her kings have grasped the forelocks of both Arab and non-Arab.

    She has as her peculiar possession the majestic Nile, which dispenses her district from the need of

    entreating the distillation [of the rain]; her territory is a month's journey for a hastening traveller, of

    generous soil, and extending a friendly welcome to strangers. (GIBB, H. A. R. The Travels of Ibn

    Battuta, A.D. 1325 -1354. Translated with revisions and notes from the Arabic text edited by C.

    DEFREMERY and B. R. SANGUINETTI, Vol.1. Cambridge. 1958: 41)

  • 2

    Poucos so os estudos que tratam dos edifcios que pertencem a outros grupos

    confessionais que no o dos muulmanos no sentido de analis-los como agentes na

    evoluo da configurao urbana das cidades que estiveram sob o governo islmico. Os

    estudos que existem sobre esses edifcios seguem sempre a direo de estud-los dentro

    de seus prprios elementos, ou seja, um edifcio cristo ou judaico dentro do seu prprio

    contexto, que o de servir a sua prpria comunidade confessional.

    Analisaremos aqui uma sinagoga conhecida atualmente por Sinagoga de Ben

    Ezr, localizada na cidade do Cairo, dentro da Fortaleza da Babilnia.

    Afirmamos que a sinagoga um elemento que tambm constri e participa da

    dinmica da cidade, e que seu estudo auxilia tanto a compreenso da urbe rabe-

    islmica como tambm o entendimento da dinmica daquela sociedade entre os sculos

    X e XIII. Ela um edifcio que organiza o espao, e os grupos sociais e confessionais

    envolvidos deixam suas marcas nas construes e na configurao espacial do seu

    entorno.

    A importncia do estudo dessa sinagoga d-se pelo fato de ser uma das mais

    antigas sinagogas do perodo medieval2 e de estar no contexto de uma das mais

    importantes cidades islmicas daquela poca, com uma considervel populao tanto de

    judeus como de outras comunidades que ou habitavam a cidade ou usavam-na como

    rota para outros locais de destino ligando o norte da frica e a Andaluzia sia

    Central.

    Analisar uma sinagoga dentro da cidade islmica no analis-la apenas do

    ponto de vista esttico ou estilstico, mas tambm de como o edifcio dialoga com a

    cidade do ponto de vista da construo de suas territorialidades. E vice-versa: como a

    cidade e um tipo de linguagem islmica dialogam com o edifcio judaico.

    Para esse entendimento, necessrio levar em conta que a cidade islmica

    baseada nos valores socioculturais decorrentes da religio islmica, mas que no est

    limitada a smbolos e sinais, ou seja, no uma cidade que possui um padro ou forma

    preestabelecida, pois existem variaes no tempo e no espao.

    2 Deixaremos claro desde o incio que o termo medieval (adj.) aqui nesta pesquisa utilizado nos termos

    da historiografia ocidental. Para a historiografia do Ocidente, o perodo que se inicia no sculo V, com a

    queda do Imprio Romano do Ocidente, e termina no sculo XV. uma diviso clssica da Histria

    ocidental.

  • 3

    A cidade do Cairo construda sobre e entre camadas de fundaes anteriores.

    So cidades que, aps os sucessivos governos, entre os sculos VII e X, foram sendo

    fundadas a partir de um novo assentamento urbano prximo ao permetro da cidade que

    a antecedia, mas sem se desvincular dela at, no final do perodo aibida, ela se tornar

    uma nica, o atual Cairo.

    Os antigos componentes da cidade anterior convivem e tambm so

    ressignificados a cada novo assentamento urbano, seja no seu aspecto material uso de

    esplio de outras construes, por meio da manuteno de antigos edifcios sem a sua

    destruio ou mudana de uso , pela permanncia dos seus habitantes ou, ainda, pela

    permanncia do uso por antigos habitantes que se deslocaram para novos bairros e para

    novas cidades, mas que se mantm ligados cidade anterior, pois continuam

    frequentando-a e ativos com relao a congregaes ligadas ao seu edifcio religioso.

    Tambm os antigos moradores e as geraes seguintes podem, muitas vezes,

    continuar ligados s antigas reas por questes econmicas como, por exemplo, ter

    imveis de sua propriedade que precisam administrar ou lojas e outros estabelecimentos

    nos quais tanto podem exercer sua atividade profissional diariamente como podem ser

    apenas scios.

    E, por fim, a permanncia tambm se d pela tradio e vnculo que podem estar

    relacionados a lendas e histrias do local.

    No longo perodo no qual se desenvolveram as regies que foram conquistadas

    pelos muulmanos, foram includos diferentes grupos tnicos, que possuam diferentes

    culturas e diferentes religies: judeus, cristos, hindustas, budistas e zoroastristas, entre

    outros. Herdaram tambm instituies dos povos que habitavam anteriormente as terras

    ento conquistadas, como as dos imprios romano e sassnida, e, mais tarde, as dos

    bizantinos.

    Nesta mirade de culturas e regies conquistadas, na arquitetura e na construo

    das cidades, os novos governantes islmicos tambm adotaram desenhos e formas locais

    integrando e combinando-os com uma ampla gama de elementos provenientes de outras

    regies.

    A grande extenso geogrfica conquistada pelo isl produziu uma multiplicidade

    de formas e emprstimos e, ao mesmo tempo, devido facilidade de ir e vir das pessoas

    e tambm s novas conquistas, forjou-se uma certa unificao na linguagem.

  • 4

    As trocas e as assimilaes no s foram e so inevitveis, como fazem parte das

    relaes e do convvio entre os grupos em qualquer momento.

    A Sinagoga de Ben Ezr foi um elemento organizador de espao para a

    comunidade judaica, no s a rabnica da Palestina, mas as outras comunidades judaicas

    babilnica e carata , entre os sculos X e XIII. E desempenhou um papel de

    articulador de multiterritorialidades.

    necessrio, no caso do estudo de um edifcio localizado na cidade do Cairo, ou

    seja, dentro da cidade islmica, definirmos o que entendemos por cidade islmica.

    No primeiro momento, a cidade islmica aqui definida aquela que governada

    por indivduos que professam a f do isl. Em um segundo momento, aquela na qual

    amaioria da populao composta de muulmanos, o que ir ocorrer lentamente.

    Figura I: Mapa localizando Fustt com relao s outras reas do Cairo histrico. (Fonte:

    Bianca, Stephano; Antoniou, Jim; El-Hakim, Sherif; Lewcock, Ronald; Welbank, Michael. The

    Conservation of the Old City of Cairo. UNESCO, Paris. 1985)

  • 5

    As regies que estiveram sob o domnio de algum governo islmico, mesmo por

    um curto perodo, reconhecem na sua paisagem elementos que se denominam

    islmicos.

    Logo, o termo islmico no se resume a uma cidade ou a um elemento

    arquitetnico ou edificao, mas a uma cultura que opera sobre uma ampla rea

    geogrfica e que fornece um reconhecimento dos seus habitantes, sejam eles

    muulmanos, cristos ou judeus3, nos limitando aqui apenas aos denominados Povos

    do Livro, como veremos no decorrer deste trabalho.

    O perodo escolhido para a anlise, entre os sculos X e XIII, foi um perodo

    durante o qual parte das terras sob o domnio islmico estava sob o governo de trs

    califados poderosos diferentes e cujas populaes que viviam nestas regies dialogavam

    intensamente entre si, construindo dinmicas sociais e urbanas que iro no apenas

    desenhar a distribuio espacial na cidade como tambm marcar arquitetonicamente os

    edifcios com sua pluralidade cultural.

    A Sinagoga de Ben Ezr, como dito acima, localizada no Cairo e, portanto, no

    contexto da cidade islmica, foi desde a sua fundao um dos elementos organizadores

    do espao urbano no interior da Fortaleza da Babilnia; da distribuio dos habitantes

    ligados comunidade judaica; e, mais especificamente, da comunidade judaica rabnica

    palestina. Mas tambm foi uma ferramenta para a construo de territorialidades das

    comunidades que se distriburam no s na cidade, mas em uma ampla regio

    geogrfica. Por isso, o edifcio da sinagoga foi o objeto concreto, material e o suporte

    para o dilogo arquitetnico que ps em contato diversos grupos que foram os atores da

    sociedade naquela poca.

    Foi uma poca de grande circulao de pessoas e grupos por todo o mundo

    islmico4 e o que veio a se tornar o atual Cairo foi uma cidade que atraiu governantes

    de diversas regies.

    No sculo IX ocorreu a compra do edifcio da sinagoga, inaugurando

    oficialmente a presena judaica na cidade sob a gide do isl, durante o governo de

    3 Entendidos ento como o conjunto dos israelitas: judeus rabnicos, judeus caratas e samaritanos.

    4 O termo mundo islmico, que usamos aqui e quando for utilizado no decorrer deste trabalho, o a

    partir da definio de Hourani: Nos sculos IX ou X EC surgiu algo que era reconhecidamente um

    mundo islmico. Um viajante ao redor do mundo poderia dizer, pelo que via e ouvia, se uma terra era

    governada e povoada por muulmanos. Essas formas externas tinham sido levadas por movimentos de

    povos: por dinastias e seus exrcitos, mercadores cruzando os mundos do oceano ndico e do mar

    Mediterrneo, e artesos atrados de uma cidade para outra pelo patrocnio de governantes ou dos ricos.

    Em HOURANI, A., Uma histria dos povos rabes. Companhia das Letras, 2006:86.

  • 6

    Ahmd Ibn ln. No fim do sculo XIV, ocorreu a conquista de Crdoba pelos

    cristos, marcando mais um movimento de povos provocado por questes polticas.

    O edifcio anterior da atual sinagoga, segundo relatos histricos, era a igreja de

    So Michel, que foi vendida pelo patriarca copta aos judeus5. O edifcio da sinagoga

    ficou conhecido nos tempos medievais como kanisat al-shamiyyin6 (a sinagoga da

    comunidade judaica palestina no Cairo) e recebeu a denominao de Ben Ezr no

    perodo moderno, devido a uma lenda, registrada no sculo XV, que relaciona o profeta

    Ezr7 e os manuscritos da Tor que estavam com ele e que teriam sidos posteriormente

    guardados nessa sinagoga.

    Outra lenda seria que o rabino Avraham Ben Ezr8, rabino tambm de

    Jerusalm, teria sido o responsvel pela reestruturao da sinagoga no incio do sculo

    XII, embora no se saiba em que data ele realmente teria estado no Egito. Em muitos

    dos textos que comentam sobre o nome Ben Ezr, pelo qual a sinagoga passou a ser

    denominada, estas duas lendas se confundem.

    Com base nos trabalhos j realizados sobre a comunidade judaica no isl do

    perodo medieval9, nos relatrios das escavaes mais recentes realizadas na rea da

    Fortaleza da Babilnia10

    , de estudiosos da histria islmica, da arquitetura e da arte,

    pretendo fazer um retrato da sociedade islmica na construo dos seus espaos urbanos

    e dos elementos envolvidos nesta ao, pois a distribuio dos espaos na planta de um

    5 REIF, Stefan C. A Jewish Archive from Old Cairo: The History of Cambridge University's Genizah

    Collection. Curzon, 2000. 6 Kannisat al-shmiyyn se refere a uma das principais comunidade judaicas do Egito. Existiam duas

    importantes congregaes judaicas em Fustt, uma palestina (Kannisat al-shmiyyn) e a outra babilnica

    (Kannisat al-irqiyyn). Existiam duas congregaes em muitas das maiores comunidades judaicas no

    Egito, e poucas nas menores (aquelas que possuam um nmero mais reduzido de judeus na cidade). Mais

    de 90 nomes de cidades, vilas e aldeias com populaes judaicas so mencionados nos documentos

    gueniz. Palestinos e babilnios formaram a comunidade denominada Rabinato judaico. Os caratas

    formaram um grupo distinto. Estes ltimos rejeitam as tradies rabnicas do judasmo talmdico e

    aceitam apenas a Bblia como fonte para as leis religiosas. A data de seu estabelecimento no Egito

    desconhecida, mas no sculo X eles j formavam um grupo numeroso, e muitos deles pertenciam elite

    mais rica de mercadores e oficiais da burocracia do governo. O casamento entre os membros da

    orientao rabnica e da carata era frequente no Egito nesta poca, mas se tornou menos comum no final

    da idade mdia. (Fonte: The Cambridge History of Egypt, Vol. 1 [Islamic Egypt, 640-1517]; Carl F.

    Petry, Cambridge University Press, 1998) 7 Tambm Ezr, o escriba, ou Ezr, o sacerdote (480440 AEC).

    8 Erudito e escritor, nascido em 1092-1093 EC. Provavelmente, pertence a um ramo da famlia Ibn Ezr,

    qual Moses ibn Ezr pertencia. 9 Entre eles, os estudos de S. D. Goitein, Yaacov Lev e Jacob Mann feitos no sculo XX; os estudos mais

    recentes feitos principalmente por Marina Rustow e outros autores que sero citados no decorrer deste

    trabalho e na bibliografia final. 10

    Que, confrontados com as afirmaes feitas em estudos anteriores realizados no incio do sculo XX, as

    modificam, pois os novos dados obtidos a partir de escavaes e o intenso estudo sobre os documentos da

    Gueniz do Cairo modificam afirmaes anteriores.

  • 7

    edifcio, ou em uma cidade, o resultado das relaes espaciais e sociais que so

    ordenadas de maneira a distinguir os lugares, o que em um primeiro momento feito

    atravs da linguagem e depois atravs dos espaos construdos. Os edifcios, alm de

    proporcionarem o abrigo bsico, desempenham o papel de codificar os esquemas e os

    lugares sob a forma fsica e simblica.11

    Figura II: A Sinagoga de Ben Ezr depois da restaurao realizada na dcada de 1980. (Fonte: Lambert,

    Phyllis. 1994, p. 33).

    Concordamos com Ibn Khaldun12

    que afirma que a cidade o produto de

    pessoas e edifcios, engenharia, cultura e arquitetura, administrao e economia13

    .

    11

    Rocco, Lygia F. A mesquita de Ibn ln como representao da herana arquitetnica rabe. Estudo

    da Mesquita de Ibn ln como monumento sntese das caractersticas rabes e das transferncias de

    elementos arquitetnicos entre os povos no rabes. Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Lngua, Literatura e Cultura rabe junto ao Departamento de Letras Orientais da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do

    ttulo de Mestre em Letras. So Paulo, 2008. p. 03. 12

    cAbd al-Rahman Ibn Khaldun nasceu na Tunsia em 1332 e faleceu no Egito em 1406. Historiador e

    estudioso de diversas reas do conhecimento. Suas principais obras so Al-tarif bIbn Khaldun, obra

    autobiogrfica, e o conhecido al-Muqaddimah (Prolegmenos da Histria Universal), na qual faz uma

    anlise poltico-social sobre as populaes nmades e sedentrias; sobre as civilizaes, o poder, os

    Estados, as formas de governo e das instituies, as cidades e as sociedades rurais; sobre as cincias e as

    artes. Asabiyyah (esprito de parentesco, entendido como laos de solidariedade) o termo usado por Ibn

    Khaldun para descrever os vnculos de coeso entre os indivduos de um grupo e que formam uma

    comunidade. 13

    Ibn Khaldun, citado em KHALIL, Ahmed Mohammed. Cairo: An Analytical Case Study of an Arab-

    Islamic City. The University of Texas at Arlington, Dissertation for the Degree of Master of Architecture.

    UMI Dissertation Information Service, 1990:12.

  • 8

    Hassan Fathy descreve a cidade como um ambiente civilizado composto pelo

    homem para representar a cultura de um povo como um grupo e revelar sua

    personalidade () a cidade uma forma cultural, social e econmica no espao14

    .

    As fontes estudadas para a pesquisa foram: jornais eletrnicos, manuscritos

    disponibilizados digitalmente pela Universidade de Cambridge, peridicos, artigos,

    relatrios e livros, e relatrios de escavaes realizadas no Cairo Antigo. Para esta

    anlise, so utilizados os documentos encontrados na gueniz Sinagoga de Ben Ezr,

    que o conjunto de documentos e manuscritos conhecidos como Gueniz do Cairo, e os

    documentos encontrados nas proximidades do cemitrio de al-Bastn.

    A gueniz uma espcie de sala de armazenagem ou depsito de uma sinagoga

    ou local sagrado; um lugar utilizado especificamente para guardar os livros e artigos

    que versam sobre temas religiosos, sendo proibido, de acordo com as crenas judaicas

    que possuem paralelos com os costumes coptas e muulmanos, se desfazer dos escritos

    que contm a palavra de Deus.

    Na Gueniz do Cairo, cartas pessoais, contratos legais ou qualquer texto que

    continha uma invocao a Deus foram preservados. Acrescenta-se que nela foram

    encontradas obras inteiras de poetas medievais, alm de outros documentos (ver

    captulo 3). Por este motivo, o local constitui importante fonte documental egpcia para

    o estudo das relaes entre as comunidades daquele perodo. H. Hirschfel15

    (Hirschfel,

    apud Goitein, 1955:76) afirmava no comeo do sculo XX que em torno de 12 mil

    documentos encontrados nas escavaes foram escritos em rabe, embora a maioria

    estivesse em caracteres hebraicos, na linguagem conhecida como judeu-rabe16

    . Hoje,

    14

    Fathy, Hassan. What is a City? Artigo apresentado pelo autor na Universidade de al-Azhar no Cairo

    em 1967. Traduo do rabe em: Hassan Fathy, James Steele (London, England: Academy Editions,

    1988; New York St. Marias Press, 1988), p. 122. 15

    Hirschfeld, Hartwig. Jewish Quarterly Review XV (1903), p. 167. (Fonte:

    http://archive.org/stream/jewishquarterly03montgoog#page/n183/mode/1up acesso: dez. 2011). 16

    Considerado um etnoleto, e nesta pesquisa no ser aprofundado. Para isso, ver Benjamin H. Hary, em

    Multiglossia in Judeo-Arabic: Judeu-rabe tem sido falado e escrito em vrias formas pelos judeus por

    todo o mundo de lngua rabe desde antes do advento do isl at os dias atuais. (...) So cinco os

    principais perodos do judeu-rabe: judeu-rabe pr-islmico, judeu-rabe primitivo (entre os sculos

    VIII/IX e X), judeu-rabe clssico (do sculo X ao XV), judeu-rabe tardio (do sculo XV ao XIX) e

    judeu-rabe moderno (sculo XX). Algumas caractersticas so nicas ao judeu-rabe: o uso dos

    caracteres hebraicos em vez dos caracteres rabes; diferentes tradies da ortografia judeu-rabe;

    elementos da gramtica e do vocabulrio hebraicos e aramaicos; e traduo literal ou direta do hebraico.

    O etnoleto contm elementos do rabe clssico, componentes dialetais, elementos pseudocorrigidos e a

    padronizao destes elementos. (...) A lngua tambm um excelente exemplo do fenmeno de idiomas

    em contato, uma vez que o ponto de encontro para o rabe clssico. Benjamin H. Hary, em

    Multiglossia in Judeo-Arabic: with an edition, translation and grammatical study of the Cairene Purim

    scroll. Brill, 1992, xiii.

  • 9

    sabe-se que a quantidade muito maior que a levantada na poca do comentrio de

    Hirschfel.

    Goitein comenta que Grohmann17

    , em sua publicao From the World of Arabic

    Papyri, estimava que nas colees de gueniz conhecidas por ele existissem por volta de

    16 mil papiros e 33 mil pedaos de papel escritos em caracteres rabes. Isto retrata a

    intensidade do convvio na sociedade islmica entre muulmanos e judeus durante

    aquele perodo. Esses documentos compem uma srie de registros relativos s

    operaes de vrias espcies entre as comunidades judaicas, crists e muulmanas.

    Tambm foram utilizados relatos da literatura narrativa, pois muito do que se

    conhece sobre o Cairo nos aspectos urbano e arquitetnico daquela poca provm das

    descries literrias dos viajantes, embora o material literrio produzido pelos viajantes,

    inclusive os documentos da gueniz, ilustrem os aspectos sociais e os eventos polticos,

    sobre as informaes referentes totalidade do tecido urbano, as questes

    arquitetnicas, as de circulao, como os grupos e comunidades se distribuam no

    espao e construram suas territorialidades no tecido urbano. Esses dados necessitam ser

    localizados no espao geogrfico, pois o conceito de territorialidade est vinculado ao

    conceito de territrio na sua dimenso material. Esta dimenso fundamental para a

    anlise proposta nesta pesquisa, que a organizao da cidade e sua evoluo durante

    um determinado perodo de tempo.

    A transformao e o desenvolvimento urbano do Cairo esto diretamente

    relacionados ascenso do isl e seus desdobramentos, e a rea onde hoje o Cairo foi

    uma das primeiras fundaes urbanas promovidas pelos muulmanos.

    Durante todo o seu desenvolvimento, sempre existiram diversas comunidades

    religiosas na cidade judeus, muulmanos e cristos , embora hoje, depois da criao

    do Estado de Israel, a populao judaica tenha diminudo drasticamente, por razes que

    no sero analisadas aqui, pois excederiam o objetivo da pesquisa.

    Por fim, ser mostrado, a partir da anlise do desenvolvimento urbano da cidade

    do Cairo, da anlise do edifcio da sinagoga e do entorno, delineadas a partir das

    informaes obtidas nos documentos, que a cidade depende como qualquer outra cidade

    de seu meio ambiente para se construir e extrair sua identidade.

    17

    GROHMANN, Adolf, From The World Of Arabic Papyri, 1952, Royal Society of Historical Studies,

    Al-Maaref Press: Cairo.

  • 10

    Mas as comunidades aqui estamos falando das comunidades confessionais e

    dos grupos a que pertencem exercem influncias que no so especificamente

    islmicas, desempenhando um papel que determina a forma do ambiente urbano, pois os

    processos sociais modelam o espao, e as formas so renovadas e at suprimidas para

    dar lugar a outras formas que atendam s necessidades novas da estrutura social 18

    ,

    promovendo um dilogo entre o material e o simblico.

    Esta anlise vem ampliar o conhecimento acerca deste edifcio e,

    principalmente, das relaes entre as comunidades judaica, islmica e crist entre a

    conquista fatmida do Egito (969 E.C.) e o fim da dinastia aibida (1254 E.C.).

    A estrutura desta anlise foi organizada em quatro captulos:

    O primeiro captulo trata da metodologia e dos conceitos. O estudo optou por

    construir um modelo de estrutura que analise a Sinagoga de Ben Ezr a partir do aspecto

    da sua configurao espacial e de sua relao com a cidade, de maneira a entender a sua

    transformao espacial e as relaes sociais envolvidas na dinmica da construo do

    espao no perodo analisado e, assim, demonstrar que a arquitetura e sua insero no

    espao urbano so um dos meios pelos quais as relaes de convvio e trocas so

    expressas.

    No captulo 2, esta pesquisa mostra a evoluo histrica da cidade do Cairo at o

    perodo aibida e sua contextualizao dentro da histria geral do isl. So apresentadas

    as informaes obtidas dos mais recentes relatrios arqueolgicos e confrontadas com

    as concluses feitas antes dessas ltimas escavaes. So apresentadas as camadas

    histricas sobre as quais a cidade se desenvolveu at o sculo XIII e descrito o contexto

    urbano e a localizao da Sinagoga de Ben Ezr. Ser descrita a fortaleza da Babilnia,

    a sua formao histrica e os primeiros edifcios religiosos que se concentravam dentro

    da Fortaleza.

    O captulo 3 trata mais especificamente das comunidades judaicas, a rabnica

    babilnica, a rabnica palestina e a carata, e sua dinmica de convivo assim como

    questes com o governo islmico. Tambm so analisadas informaes obtidas a partir

    da documentao relacionada s fundaes piedosas judaicas.

    18

    BISSIO, Beatriz. O mundo falava rabe: a civilizao rabe-islmica clssica atravs da obra de Ibn

    Khaldun e Ibn Battuta. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2013: 24.

  • 11

    O captulo 4 descreve o edifcio da Sinagoga de Ben Ezr e fornece informaes

    sobre os acontecimentos histricos envolvendo a sinagoga e como as dinmicas de

    territorialidade e multiterritorialidade se materializaram no edifcio.

  • 12

    Captulo 1

    1.1 - Consideraes Gerais

    Para o desenvolvimento das cidades so necessrios a unio e o

    desenvolvimento dos seguintes fatores e condies: os hbitos (ou maneiras de viver); a

    natureza das relaes sociais, pois um forte senso de organizao social faz que a cidade

    se mantenha coesa em momentos de crise; as tradies; a religio, que orienta

    politicamente em muitos casos as comunidades assentadas no local; o desenvolvimento

    tcnico; e os fatores naturais e geogrficos.

    Podemos afirmar que a arquitetura e o urbanismo so expresses materiais de

    valores culturais, relacionados com as crenas e as suas particularidades sociais e

    polticas, e com a prpria viso de mundo da sociedade para o qual se constri. Essas

    expresses podem ser vistas tambm como o resultado das tradies e prticas dirias

    de um grupo social em particular, de uma comunidade ou de vrias comunidades, no

    caso das regies do isl e, como mostramos nesta pesquisa, do Cairo, de diferentes

    comunidades confessionais ou de uma sociedade no sentido mais amplo, e que

    corresponderiam aos valores e princpios adotados por tais grupos.

    Pode-se afirmar que existe uma relao bastante direta entre o que as pessoas

    acreditam e o que elas constroem1. A influncia poltico-religiosa no contexto histrico

    do Cairo um elemento importante, pois tanto os grupos, muulmanos, cristos e

    judeus, desempenharam um papel importante nas questes polticas internas como

    tambm, pelo seu poder e pela riqueza, a cidade se tornou o centro regional assim como

    tambm disputava, com outros locais (Crdoba e Bagd), o poder do imprio islmico.

    As tradies so um conjunto de regras e saberes que orientam o comportamento

    da sociedade e tambm o espao no qual esta sociedade se desenvolve. Em todos os

    locais onde o islamismo se propagou, as suas manifestaes visuais iro variar de

    acordo com as tradies locais. O mesmo serve para qualquer outro grupo confessional

    que viva sob o governo islmico; neste caso, teremos a participao de trs elementos

    1 ROCCO, opus cit., 2008: 33.

  • 13

    concomitantemente: a adequao aos preceitos do grupo governante, as tradies locais

    e as orientaes internas da comunidade ou grupo em questo. A religio islmica, em

    terras nas quais ou professada pelo governo ou pela maioria da populao,

    desempenha um papel dominante na vida da cidade.

    O conceito do termo cidade islmica ou cidade muulmana foi criado entre

    1920 e 1950 pela Escola Orientalista da Arglia, por William e Georges Marais, e

    depois por Roger le Tourneau, superados depois por Jean Sauvaget e Jacques Weulersse

    da Escola de Damasco. Nessa poca, a Frana j possua uma grande tradio nos

    estudos do urbanismo islmico e tambm era uma poderosa fora colonial nas terras do

    Magrebe e do Levante.

    a partir da viso extica (e colonial) que o termo islmico tornou-se adjetivo

    para as cidades que foram governadas pelos muulmanos a partir do surgimento desta

    religio. O Isl mencionado em relao s instituies, s organizaes da vida

    poltica, s atividades econmicas e sociais, e com a estrutura fsica das cidades e

    tambm da tipologia das suas habitaes. No caso do uso do termo pelos orientalistas,

    ele utilizado para contrapor a cidade do Isl em relao s cidades construdas na

    antiguidade. A primeira seria desordenada, catica, ilegvel enquanto a segunda seria

    ordenada, legvel2.

    A cidade no sentido weberiano3 possui os seguintes elementos encontrados

    concomitantemente, os quais na cidade islmica nem sempre so encontrados

    conjuntamente, e que se caracterizam da seguinte maneira: (1) fortificaes, e nem todas

    as cidades criadas pelo isl so cidades fortificadas; (2) formas urbanas distintas de

    associao, e nas cidades islmicas os bairros se organizavam por associaes tribais em

    sua maioria, mas no configurando um desenho urbano diferenciado entre eles. As

    associaes podiam ocorrer por laos tnicos, religiosos ou de profisses; (3) mercados

    cada cidade islmica tinha seu mercado e, em alguns casos, vrios mercados,

    dependendo tambm do tamanho da cidade; (4) uma corte que administrava uma lei

    parcialmente autnoma, o que no ocorria no caso das cidades islmicas, pois o governo

    central as governava por meio de seus representantes administrativos, que faziam parte

    2 RAYMOND, Andr, The Spatial organization of the city, em The city in the Islamic World, Vol. 2,

    edit. por Salma K. Jayyusi [et al.], Brill, 2008:49. 3 STILLMAN, Norman A., "The Jew in the Medieval Islamic City". In: Daniel Frank, ed., The Jews of

    Medieval Islam: Community, Society, and Identity (New York, 1995): 3-13.

  • 14

    de uma burocracia imperial centralizada cuja sede do poder estava localizada bem

    distante desses aglomerados urbanos espalhados por uma ampla rea geogrfica.

    E, por fim, (5) a existncia de ao menos uma autonomia parcial e independente

    das entidades religiosas. Como ser mostrado, os judeus tinham um certo grau de

    autonomia para resolver as questes internas da comunidade, mas no mbito da cidade e

    do imprio estavam sujeitos lei islmica.

    No exclusivamente devido ao isl que as cidades medievais do Oriente Mdio

    no se encaixam no modelo de cidade estabelecido por Weber, que era a cidade

    medieval europeia, mas a religio islmica contribuiu para o estabelecimento de um

    sistema legal e social que diferenciasse as cidades sob o seu domnio das da Europa que

    no estava sob o domnio dos muulmanos.

    A cidade europeia medieval se desenvolve de maneira diferente da cidade

    islmica no mesmo perodo, e esta ltima no pode ser reduzida ao modelo

    estereotipado na forma: mesquita, palcio, mercado e bairros que se desenvolvem em

    uma distribuio concntrica em torno da mesquita. O Cairo um exemplo de cidade

    que se desenvolve a partir de vrios ncleos embrionrios que, na sua expanso, foram

    se intersectando: al-Ftt e al-Qhira e as diferentes comunidades distribudas em

    grupos dispersos pela cidade, embora existissem diversos pontos de concentrao que

    construram suas prprias territorialidades no tecido urbano.

    Como em qualquer lugar, os comportamentos e construes so o resultado de

    tradies. E essas tradies podem mudar ou podem enrijecer com a insero de um

    elemento novo e diferente em seu interior, principalmente se esse novo elemento

    muito diferente do elemento receptor e tambm mais forte.

    Braudel afirma: No h uma s sociedade, brilhante ou primitiva, que no seja

    tocada em toda a sua espessura por contgios e intruses culturais, que, na verdade,

    nada deixam fora de seu alcance, nem os humildes detalhes da vida cotidiana, nem os

    pices da vida intelectual. Toda a sociedade , portanto, cultura, quer consideremos o

    rs do cho, quer os andares superiores da vida. Do mesmo modo, toda a sociedade

    civilizao4.

    As populaes que formaram o amplo conjunto dominado pelo imprio islmico

    ficaram expostas a diferentes tradies daquele perodo. O que intensificou esses

    contatos foi a facilidade de se percorrer essas regies que estavam de certa maneira sob

    4 BRAUDEL, Fernand. Gramtica das Civilizaes. Martins Fontes, 1989: 347.

  • 15

    uma nica religio e com um idioma em comum, o rabe, apesar do processo de

    islamizao e de arabizao de todas as regies conquistadas ter sido lento e ter se

    efetivado no decorrer de muitos anos.

    Ibn Khaldun comentou que (...) as condies de construo so diferentes

    segundo de que cidade se trate. Cada centro urbano segue um procedimento conhecido

    dentro da competncia tcnica de seus habitantes, que responde ao clima e s diferentes

    condies de sua populao em relao com sua riqueza ou pobreza5( Khaldun apud

    BISSIO, 2013:241).

    Podemos afirmar que as sociedades humanas so construes culturais cujas

    razes esto mergulhadas na histria. Uma mesma cultura rene aqueles que

    compartilham dos mesmos cdigos; isto facilita as alianas e as camaradagens;

    maneiras de se alimentar, de comer, de sentar, ritmos e horrios. (...) cada indivduo est

    vinculado a outro em uma rede complexa de relaes. (Claval, 2007: 110)

    O isl era, e ainda , a religio dominante no Cairo e, por isso, desempenhou um

    papel modelador no processo de construo da cidade e de seus edifcios. A religio

    islmica orienta as sociedades onde ela a religio adotada pela maioria da populao,

    no s nas questes poltico-sociais, mas na distribuio dos grupos nas cidades e,

    consequentemente, na maneira como os edifcios principais e as habitaes vo se

    distribuindo na malha urbana.

    A coeso social das vrias comunidades confessionais envolvidas na dinmica

    da cidade produziu uma distribuio orgnica na malha urbana, na qual a relao dos

    edifcios e dos espaos reflete esses laos sociais de seus habitantes, como ocorre dentro

    da fortaleza da Babilnia, onde esto localizadas muitas igrejas e sinagogas. Embora o

    isl seja dominante, outros grupos religiosos minoritrios tambm organizaram o espao

    da cidade.

    E, como afirma Bissio (2013:31), o principal vnculo entre as diferentes partes

    do espao sempre foi o fato de seus membros partilharem da mesma f 6

    ; isso servia

    tanto para os muulmanos como para os judeus e os cristos. E para alm desses trs

    grandes grupos, ou seja, internamente, todos esses grupos tinham suas divises sectrias

    5 Ibn Khaldun citado em BISSIO, Beatriz. O mundo falava rabe: a civilizao rabe-islmica clssica

    atravs da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2013: 241. 6 Que faziam parte da umma, que a comunidade de todos os muulmanos.

  • 16

    internas e as consequentes disputas entre eles, que aparecem na malha urbana e na

    distribuio de edifcios, como tambm nas prprias edificaes.

    Nos edifcios, esses contatos e trocas se manifestaram, s vezes, na distribuio

    das plantas e, outras, no uso de elementos construtivos ou em objetos, mobilirio e na

    decorao, cada um em maior ou menor grau, entre judeus, cristos e muulmanos.

    O resultado das conquistas islmicas para a comunidade judaica que vivia na

    regio foi a forte urbanizao provocada pela expanso do isl. E a comunidade judaica

    acompanhou esse processo de urbanizao, abandonando em sua maior parte as reas

    agrrias.

    O Cairo na poca dos fatmidas retratava essa rea geogrfica que pode ser

    considerada o encontro de culturas que estavam mergulhadas em uma longa histria e,

    com os contatos provocados pelas ondas migratrias incentivadas pelo isl, que

    formaram uma rede de relaes na construo de territorialidades na malha urbana da

    cidade, repercutindo tambm na arquitetura de seus edifcios. Esses contatos

    desenvolveram novas prticas que modelaram o espao tanto no seu aspecto material

    como no social.

    No sculo X, os judeus j tinham se tornado uma comunidade marcadamente

    urbana e com um elevado grau de organizao comunal (Stillman apud Frank, 1995:8),

    tanto local como internacionalmente. A rede formada por essa organizao foi o

    elemento da construo das multiterritorialidades e das territorialidades na cidade do

    Cairo.

    Nas fontes judaicas, encontramos tanto o termo povo israelita, para se referir

    comunidade em seu conjunto, e Israel, ou seja, a nao em si e seu povo denominado

    israelita, como os termos judeu e judaico, utilizados no mesmo sentido que o

    anterior. Goitein afirma que a designao da comunidade judaica como congregao

    sagrada (do hebraico qahal qadosh) o equivalente do bblico reino dos sacerdotes e

    do povo sagrado (Ex. 19:6)7.

    Nesta pesquisa, utilizaremos os termos comunidade judaica e judeu pelas

    seguintes razes: a primeira que as diversas comunidades judaicas que existiam

    naquela poca disputavam entre si a conquista de seus membros. As disputas ocorriam

    7 xodo 19:6. E vs sereis o meu reino sacerdotal, e uma nao santa. Eis aqui o que tu hs de dizer aos

    filhos de Israel. Bblia Sagrada. Traduo de Padre Antnio Pereira de Figueiredo. Livraria Editora

    Iracema, s/d.

  • 17

    entre a rabnica da Babilnia e a rabnica da Palestina, e os diferentes grupos rabnicos e

    os caratas e samaritanos8. Todos esses grupos participavam da dinmica social,

    religiosa, poltica e urbana da sociedade muulmana. A disputa no interior desses

    grupos judaicos reflete-se na Sinagoga de Ben Ezr e tambm no conjunto de edifcios

    que compem o complexo dessa sinagoga. Nas cidades com apenas uma sinagoga,

    existia uma nica comunidade no local ou se houvesse indivduos de outra comunidade,

    no havia em nmero suficiente para fundar outra congregao; nessa situao, esses

    indivduos coexistiam na sinagoga existente. Mas, como no caso do Cairo, onde

    existiam trs grandes comunidades (babilnica, palestina e carata), a vida da

    comunidade se dividia entre as suas respectivas sinagogas.

    A segunda razo da adoo de judaico, e no de israelita, est relacionada s

    fontes consultadas. A maioria dos estudos e trabalhos que tratam dos judeus nas terras

    rabe-islmicas no perodo medieval produziu suas pesquisas em lngua inglesa e

    francesa, jew/jewish e juif respectivamente; ento, com base nessa terminologia, foram

    utilizados os termos judeu e judaico em vez de israelita, que no retrataria as

    diferenas desses grupos na poca estudada.

    8 A questo dos samaritanos no ser tratada aqui neste trabalho, pois eles tiveram um papel muito

    pequeno em Fus no perodo analisado e principalmente no que concerne sinagoga de Ben Ezra.

    A origem dos samaritanos problemtica. Os samaritanos, hoje reduzidos a algumas centenas de

    indivduos, identificam-se como descendentes dos hebreus bblicos, numa linha de tradio. Alguns

    historiadores afirmam que a origem dos samaritanos est ligada s tribos do norte de Israel, pois apenas

    um nmero pequeno de habitantes teria sido deportado para a Assria. Logo, estes samaritanos seriam

    chamados de verdadeiros israelitas, que seriam os guardies da lei de Moiss. Outra vertente afirma que

    a origem dos samaritanos est relacionada aos cativos que os assrios transferiram da Babilnia, Cuthah,

    Avva, Hamath e Sepharvaim para repovoar regies do norte de Israel, e que em Israel estes cativos

    continuaram a adorar os dolos que eram de suas cidades de origem, e foram considerados os ancestrais

    dos samaritanos e tambm considerados pagos. E uma terceira teoria, que combina estas duas anteriores,

    afirma que o exlio assrio das dez tribos no teria sido total, que um significativo nmero de israelitas

    teria sido deixado para trs e, simultaneamente, os assrios teriam trazido um grupo de exilados para a

    regio que teria sido o reino israelita do norte. Assim, esses grupos teriam formado o povo denominado

    samaritano (Alan David Crown. The Samaritans. Tbingen: Mohr, 1989. p. 1).

  • 18

    1.2 OBJETIVOS, CONCEITOS E METODOLOGIA

    1.2.1 Objetivo

    A anlise da Sinagoga de Ben Ezr entre os sculos X e XIII mostra que no

    foram exclusivamente os edifcios oficiais islmicos, mesquitas e palcios, mas tambm

    os edifcios de outros grupos confessionais, que construram a cidade, e a sinagoga um

    exemplo desta dinmica urbana.

    Aqui, importante definir o termo islmico, pois a sinagoga de Ben Ezr no

    s est dentro de uma cidade qual agregamos o adjetivo islmico, mas tambm o

    edifcio como sendo um edifcio religioso judaico s passa a existir aps a conquista do

    Egito pelos muulmanos. Logo, islmico neste trabalho utilizado em relao aos

    acontecimentos e s obras elaboradas aps o advento da religio islmica9, relacionada a

    uma cultura ou civilizao na qual a maioria da populao, ou o elemento

    predominante, professa a f do isl. E que, como afirma Oleg Grabar, o ponto

    importante que islmica na expresso arte islmica no comparvel palavra

    crist ou budista na arte crist ou na arte budista. Existem diversos edifcios

    construdos para judeus e para cristos e por judeus e cristos que contm elementos

    arquitetnicos e decorativos que o estudo da histria da arte caracteriza como sendo

    islmicos. Os contatos culturais so vias de assimilaes e trocas, e esto presentes na

    Sinagoga de Ben Ezr.

    Para o entendimento do complexo de edifcios da sinagoga e do prprio edifcio

    religioso e de como esses elementos contribuem para a sua arquitetura, os conceitos de

    territorialidade e multiterritorialidade, a partir da perspectiva elaborada por Haesbaert10

    ,

    so devidamente apropriados para entender o processo da formao de novas

    territorialidades pelas comunidades rabnicas judaicas que construram o espao no qual

    a Sinagoga de Ben Ezr era o centro organizador, entre os sculos X e XIII, e mediante

    essa anlise, mostrar a caracterstica multicultural da cidade do Cairo e como ela se

    apresenta na arquitetura.

    9 Professada pelo profeta Muhammad por volta de 615. O calendrio islmico inicia em 622 EC, data em

    que ocorreu a fuga do Profeta com seus seguidores para Yarib (atual Medina), na Arbia Saudita. 10

    HAESBAERT, Rogrio. O mito da desterritorializao: do fim dos territrios multiterritorialidade.

    7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

  • 19

    A observao, por ser realizada ao longo de um perodo de aproximadamente

    trs sculos, est dentro do que Braudel denomina de ampla narrativa da histria,

    como veremos mais frente.

    O estudo da histria da arquitetura do Oriente Mdio aps o surgimento da

    religio islmica est fortemente impregnado dos conceitos e preconceitos do Ocidente

    em relao ao Oriente, num discurso e numa prtica denominados por Edward

    Said11

    de orientalismo, tema desenvolvido por ele em obra de mesmo nome.

    O orientalismo, segundo Said (2007), um conjunto de diversas prticas

    desenvolvidas principalmente pelos povos ocidentais, no qual o objeto principal a

    construo acadmica, poltica e doutrinria em relao aos povos orientais. O que

    demonstrado por Said que nem o termo Oriente nem o conceito de Ocidente tm

    estabilidade ontolgica; ambos so constitudos de esforo humano parte afirmao,

    parte identificao do Outro.

    As noes como modernidade, democracia e os temas aqui abordados

    relacionados histria da arte e da arquitetura, noes como medieval, gtico,

    renascimento e barroco, no so de modo algum conceitos consensuais e equivalentes s

    formas ocorridas no Oriente Mdio.

    Mesmo que os conceitos aplicados no Ocidente sejam utilizados nos estudos

    relacionados ao Oriente, isto no ocorre sem consequncias ou isoladamente e sem

    influncias externas, fato este que oposto posio dos adeptos de polarizaes

    territoriais redutivas do tipo Isl versus Ocidente. Este no isolamento seria

    equivalente a falar dos sistemas abertos das novas teorias arqueolgicas. As frmulas

    redutivas equivalem ao mesmo que pensar o Ocidente e o Oriente como sistemas

    fechados. Said prope a desconstruo dessas frmulas redutivas e abre a discusso para

    um contexto amplamente situado na histria, na cultura e na realidade socioeconmica,

    como tambm o fazem as teorias arqueolgicas no evolucionistas e o estudo da histria

    atravs da histria de longa durao, das permanncias e das mudanas lentas.

    As abordagens reducionistas agrupam grupos e pessoas sob nomes falsamente

    unificadores inventam identidades coletivas para grupos de indivduos que, na

    realidade, so muito diferentes uns dos outros. Deve-se ter o cuidado tambm de no

    incorrer no extremo oposto, pois por meio dos contatos, ao mesmo tempo em que os

    11

    SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como inveno do Ocidente. Traduo: Rosaura Eichenberg.

    So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

  • 20

    grupos se aproximam, tambm conservam suas diferenas, como ser mostrado ao

    longo desta tese.

    A histria arquitetnica islmica apenas recentemente comeou a reconsiderar

    alguns de seus mais arraigados pontos elaborados a partir do modelo eurocntrico como

    a questo da progresso linear, mas, por outro lado, passou a colocar a autonomia

    cultural como um ponto importante no seu estudo, o que ocorre dentro de um contexto

    histrico de reafirmao nacional. Os estudos que afirmam exclusivamente uma

    autonomia cultural da criao de uma arquitetura exclusiva so desconstrudos neste

    trabalho, pois mostramos que a arquitetura e a forma urbana trazem em seu interior os

    contatos culturais que so seus elementos construtivos.

    Podemos afirmar que foi mediante as migraes que ocorreram os intensos

    contatos sociais e comerciais entre o Oriente Mdio e o Ocidente. Foi essa proximidade

    de povos e, mais do que isto, a sua convivncia em uma mesma rea geogrfica que

    permitiram, entre outras coisas, a influncia de expresses da cultura desenvolvida nas

    terras governadas pelo isl, na arquitetura e na arte em geral.

    Os mtodos de investigao utilizados aqui permitiram compreender e estruturar

    os vrios alinhamentos que se afirmaram e reafirmaram-se em combinaes diversas e

    flexveis no domnio da arquitetura e do urbanismo islmico em toda a sua longa

    histria.

    Mesmo que os movimentos ocorridos na arte e na arquitetura raramente

    correspondam ao momento no qual ocorreram as mudanas polticas, para facilitar a

    localizao cronolgica, o consideramos como sendo uma nomenclatura de apoio para

    situ-lo em relao histria geral mundial; portanto, no deve ser totalmente

    descartado.

    Algumas mudanas ou incorporaes nos edifcios e na malha urbana, at

    mesmo o surgimento de novas cidades, foram consequncia do ascenso de novos

    governantes muulmanos, fundando novas estruturas polticas no territrio, como no

    caso da fundao das cidades de Fus, Kufa e Bagd. Em muitos casos, esses novos

    governantes trouxeram de sua regio de origem os construtores que iriam incorporar a

    sua prpria linguagem aos edifcios j existentes, sempre que isso fosse possvel.

  • 21

    As primeiras geraes de historiadores da arte islmica mostraram-se, segundo

    Nasser Rabbat (2005)12

    , bem conservadoras com relao aos limites e s fronteiras

    culturais e histricas. Adotaram uma cronologia linear, iniciada com a mesquita do

    Profeta em Medina, seguindo paralelamente a evoluo dos conceitos e a definio de

    tipos da arquitetura e da arte ocidentais, utilizando-se, na maioria das vezes, dos

    mesmos termos para representar alguns elementos, como, por exemplo, a existncia de

    um gtico-islmico, e afirmando que essa arquitetura fracassou com a chegada da era

    colonial no Oriente Mdio.

    Como afirma Flood13

    , aqueles que estudam a histria da cultura visual

    normalmente o fazem com relao a um perodo ou cultura especficos, e os vinculam a

    parmetros nos quais raramente os seus objetos de estudo conseguem se inserir

    totalmente. Os artefatos, os edifcios e at as cidades conseguem abarcar em parte esses

    parmetros onde os governantes e as dinastias no o conseguem, mas esses objetos

    mudam de mos como resultado do comrcio, da diplomacia, da guerra; nesses

    processos de troca, eles so remodelados, reinterpretados e reinventados, e o edifcio

    Sinagoga de Ben Ezr tambm est inserido nesse processo.

    Com as pesquisas j existentes relativas ao Cairo antigo, e com as novas

    abordagens desenvolvidas aqui, abre-se um novo entendimento da diversidade cultural

    dos povos que viviam sob a gide do isl, e tambm tem-se uma ferramenta para o

    estudo das genealogias heterogneas e as qualidades hbridas que possuem qualquer

    arquitetura, pois a histria da arte ocidental engendrou uma estrutura que

    discursivamente controlou a intricada rede de convenes epistemolgicas e culturais

    que produziram e usaram o conhecimento histrico arquitetnico e artstico.

    Mostraremos que a convivncia entre grupos de crenas diferentes no

    necessariamente se traduz em formas diferentes de se expressar arquitetonicamente, e

    que as territorialidades so muito mais permeveis do que uma rpida olhada assim o

    supe.

    A partir do uso metodolgico de vrios conceitos construdos pela histria da

    arte e da arquitetura ocidentais e pelo orientalismo se props a elaborao de uma

    12

    NASSER Rabbat, Toward a Critical Historiography of Islamic Architecture , in Repenser les

    limites: l'architecture travers l'espace, le temps et les disciplines, Paris, INHA ( Actes de colloques ),

    2005 [En ligne], mis en ligne le 28 octobre 2008. Acesso: jan. 2012. URL: http://inha.revues.org/642 13

    FLOOD, Finbarr B. The Medieval Trophy as an Art Historical Trope: Coptic and Byzantine "Altars" in

    Islamic Contexts. In: Muqarnas: An Annual on the Visual Culture of the Islamic World, XVIII, E.J. Brill,

    2001. pp. 41-72.

  • 22

    estrutura histrica dinmica e adaptvel que no dependa nem de modelos emprestados

    nem de fronteiras polticas e culturais proscritas, ou seja, uma ferramenta alm desses

    modelos.

    A cultura, em sua elaborao orgulhosa como sistema de enquadramento de

    identidade, est comeando a perder sua primazia como o fator determinante para reas

    de especializao no campo da histria da arquitetura; assim, uma definio de cultura

    aqui se faz importante como veremos no decorrer deste captulo, pois vemos que a

    noo de cultura difere tanto nas vrias linhas da arqueologia como nas de outras

    disciplinas devemos esclarecer qual vamos adotar.

    Novos mtodos e novas abordagens esto sendo elaborados para dar conta da

    fluidez com que as ideias, as tcnicas, as pessoas e os materiais cruzaram todo o tipo de

    fronteiras por toda a histria, para criar o que basicamente uma abordagem

    multicultural do estudo da arquitetura e das cidades. Cito a pesquisa desenvolvida por

    Andrea Piccini14

    sobre o Batistrio de Florena como um exemplo desse tipo de

    abordagem. Nesse trabalho, Piccini (2009) mostra como foi que atravs das migraes

    ocorreram os intensos contatos sociais e comerciais entre o Oriente Mdio e o Ocidente,

    e como os elementos arquitetnicos foram compartilhados em decorrncia desse trnsito

    de pessoas.

    Foi esse fluxo15

    de povos, e, mais do que isso, a sua convivncia em uma mesma

    rea geogrfica, que permitiu, entre outras coisas, a influncia de expresses da cultura

    islmica na arquitetura e na arte em geral. Tais migraes no apenas provocaram

    transformaes sociais e econmicas, mas tambm influenciaram no uso de novos

    objetos do cotidiano, nas roupas, porcelanas e cermicas (PICCINI, 2002).

    Devido aos contatos provenientes de lugares distantes entre si, entre os sculos

    X e XIII, importante definir o conceito de rea geogrfica, ou reas geogrficas, para o

    entendimento do contexto histrico e cultural. Nas reas geogrficas aqui delimitadas

    so apresentadas algumas das condies iniciais, a conquista islmica do Egito e a

    fundao da cidade de Fus e sua conexo com a regio onde surgiu o isl, e as reas

    extremas do sistema16

    , para o entendimento da relao das redes com a sinagoga. Essa

    ampla viso vital para o entendimento do edifcio da Sinagoga de Ben Ezr e do seu

    14

    Piccini, Andrea. Arquitetura do Oriente Mdio ao Ocidente: a transferncia de elementos

    arquitetnicos atravs do Mediterrneo at Florena, AnnaBlume, 2009. 15

    Fluxos e fixos na ptica de Haesbaert, onde no h dicotomia entre fixao e mobilidade. 16

    O sistema a ampla rea geogrfica governada pelo isl.

  • 23

    entorno, desde o perodo de sua fundao aps a compra do edifcio17

    e sua relao com

    a cidades al-Qhira e al-Fus, e no apenas com a malha urbana de Fus.

    A Sinagoga de Ben Ezr tambm o instrumento que serve de ferramenta para

    se entender tanto a histria social do Egito islmico, entre os sculos IX ao XIV18

    , como

    as relaes de trocas e contatos com outros grupos: cristos-coptas, judeus vindos da

    regio do Levante e Mesopotmia, judeus originrios da Andaluzia e a prpria

    comunidade muulmana local convertida ao islamismo e dos territrios ocupados pelos

    abssidas e omadas, como de outros grupos muulmanos provindos de outras regies.

    Apesar da classificao da arquitetura islmica, principalmente a do perodo

    conhecido como Isl Clssico19

    , se utilizar algumas vezes da sequncia dinstica da

    histria poltica islmica, ou seja, a arquitetura abssida, tulnida, fatmida, esse recurso

    foi aqui utilizado para facilitar o estudo dentro da histria geral da arquitetura e do

    urbanismo islmico. uma nomenclatura derivada dos estudos ocidentais da arte

    citados anteriormente, e ser demonstrado que tal nomenclatura no mostra, quando

    utilizada exclusivamente, a evoluo e a continuidade autnomas dos movimentos

    artsticos e arquitetnicos e que no corresponde diretamente s mudanas polticas

    ocorridas na regio, pois muitos grupos dinsticos existiam concomitantemente.

    Os estudos feitos por meio da periodizao dinstica supervalorizaram o papel

    dos patronos reais em detrimento de outras partes envolvidas, como a dos construtores e

    dos usurios. Foram os movimentos populacionais, as questes de cunho religioso, os

    grupos confessionais e tribais, os pontos artsticos e estruturais comuns, e as inovaes

    tecnolgicas que tiveram um efeito mais profundo sobre a arquitetura e sobre a

    organizao da malha urbana do que qualquer mudana meramente dinstica20

    .

    Esses patronos so tambm importantes como veremos no caso das fundaes

    das primeiras cidades. Mas internamente, dentro da malha urbana dessas mesmas

    cidades, outras foras so to importantes quanto as dos seus fundadores oficiais, e o

    que mostramos neste trabalho.

    A Sinagoga de Ben Ezr, um edifcio religioso judaico, analisado dentro do

    contexto da cidade islmica, tambm uma ferramenta que mostra que as periodizaes

    17

    Questo controversa que ser discutida no captulo sobre o edifcio. 18

    O recorte da pesquisa entre os sculos X e XIII, embora quando necessrio esse limite seja

    extrapolado. 19

    Entre os sculos VIII e XII, segundo Rosalie H. de S. Pereira, em O Isl clssico: itinerrios de uma

    cultura. Org.: Rosalie Helena de Souza Pereira. So Paulo: Perspectiva, 2007:20. 20

    Embora as mudanas dinsticas tenham sido fundamentais na fundao de novas cidades.

  • 24

    e os limites cronolgicos e geogrficos so flexveis e apresentam sobreposies de

    linguagens, de tipologias de plantas e tambm de dinastias e realidades socioculturais.

    Levar em considerao essas sobreposies mais adequado anlise histrica da

    arquitetura desse perodo nas reas governadas pelo isl, pois mostra a qualidade

    multicultural dessa arquitetura que no possui um modelo ou referncia cultural nicos,

    que serviram de inspirao para os edifcios mais emblemticos dessa arquitetura, como

    as grandes mesquitas, igrejas, sinagogas, edifcios oficiais do governo, nem para os

    mais simples, da sua arquitetura vernacular.

    No desenvolvimento da malha urbana, na construo de novos edifcios,

    diferentes tenses esto presentes e agindo, como a tenso entre a populao local e os

    recm-chegados muulmanos e no muulmanos ou os muulmanos de vrias partes

    das regies governadas pelo isl, grupos de outras orientaes religiosas coptas,

    judeus. Isto s para citar os grupos de orientao religiosa monotesta. So muulmanos

    e no muulmanos produzindo objetos.

    1.2.2 - CONCEITOS

    Ao analisar o stio histrico a