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Diálogo teatral... Sensibilidades não modernas! Adaptado de: LATOUR, Bruno. Como terminar uma tese de sociologia: pequeno dialogo entre um aluno e seu professor (um tanto socrático). Cadernos de Campo. n. 14, dez. 2006. p. 341-352. A - Professora, estou achando difícil aplicar, devo dizê-lo, o Actor Network Theory (ANT) para o meu caso de estudo em organizações empresariais! P - Não admira, não é aplicável a qualquer coisa! A - Mas fomos ensinados… Quero dizer! Parecem quentes as coisas por aqui. Você está dizendo que... É realmente inútil? P - Poderia ser útil, mas só se não se "aplicar" para algo. A - Desculpe-me está jogando algum tipo de truque Zen aqui? Tenho de avisá-la: Eu sou apenas um doutorando na reta final, por isso não espere… P Desculpe, eu não estava tentando dizer nada esótico. Apenas que o ANT é, antes de tudo, um argumento negativo. Não diz nada de positivo em qualquer estado de coisas! A - Mas você sempre tem que colocar as coisas em um contexto, não é? P - Nunca compreendi o que significa contexto! Não. Um Quadro de referência faz um retrato aparentemente agradável, que pode direcionar melhor o olhar, aumentar o valor, mas não acrescenta nada à imagem. A moldura, ou o contexto, é, precisamente, a soma dos fatores que não fazem diferença alguma para os dados... Se eu fosse você, eu me absteria

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Page 1: Diálogo teatral Sensibilidades não modernas! - uel.br · complicados, dobrados, múltiplos e complexos, do que aquilo que os ^objetivistas, como você diz, gostariam de vê-los

Diálogo teatral...

Sensibilidades não modernas! Adaptado de:

LATOUR, Bruno. Como terminar uma tese de sociologia: pequeno dialogo entre um aluno e seu

professor (um tanto socrático). Cadernos de Campo. n. 14, dez. 2006. p. 341-352.

A - Professora, estou achando difícil aplicar, devo dizê-lo, o

Actor Network Theory (ANT) para o meu caso de estudo em

organizações empresariais!

P - Não admira, não é aplicável a qualquer coisa!

A - Mas fomos ensinados… Quero dizer! Parecem quentes as

coisas por aqui. Você está dizendo que... É realmente inútil?

P - Poderia ser útil, mas só se não se "aplicar" para algo.

A - Desculpe-me está jogando algum tipo de truque Zen aqui?

Tenho de avisá-la: Eu sou apenas um doutorando na reta

final, por isso não espere…

P – Desculpe, eu não estava tentando dizer nada esótico. Apenas

que o ANT é, antes de tudo, um argumento negativo. Não diz

nada de positivo em qualquer estado de coisas!

A - Mas você sempre tem que colocar as coisas em um

contexto, não é?

P - Nunca compreendi o que significa contexto! Não. Um Quadro

de referência faz um retrato aparentemente agradável, que

pode direcionar melhor o olhar, aumentar o valor, mas não

acrescenta nada à imagem. A moldura, ou o contexto, é,

precisamente, a soma dos fatores que não fazem diferença

alguma para os dados... Se eu fosse você, eu me absteria

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completamente dos quadros de referência. Basta descrever o

estado de coisas que você tem à mão.

A - Somente descrever! Desculpe a perguntar: mas isto não é

terrivelmente ingênuo? Este não é exatamente o tipo de

empiricismo, ou realismo, que todos nos advertem? Pensei

que o seu argumento era, como devo dizer? Mais sofisticado

do que isso.

P - Porque você acha que é fácil fazer uma descrição? Você deve

estar confundindo descrição, eu suponho, com clichês. Para

cada cem livros de comentários, argumentos, há apenas um

de descrição. Para descrever, é preciso estar atenta ao

concreto estado das coisas, para encontrar a maneira única e

adequada de contar uma determinada situação - Eu,

pessoalmente, sempre achei isso incrivelmente exigente.

A - Estou perdido aqui, disseram-nos que existem dois tipos de

sociologia, a interpretativa e a objetivista. Certamente você

não quer dizer que é uma objetivista?

P - Sim, por todos os meios!

A - Você? Mas todos dizem que você é uma relativista! Você foi

citada como tendo afirmado que as ciências naturais ainda

não são objetivas… Assim, certamente você está mais para a

sociologia interpretativa, simulacros, multiplicidade de

pontos, do que qualquer outro.

P - Não tenho paciência para a realidade da sociologia

interpretativa, ou o que se pode chamar por esse nome. Não!

Pelo contrário, acredito firmemente que as ciências são

objetivas - o que mais elas poderiam ser? Eu simplesmente

digo que os objetos podem ser olhados como um pouco mais

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complicados, dobrados, múltiplos e complexos, do que aquilo

que os “objetivistas”, como você diz, gostariam de vê-los.

A - Mas isso é exatamente o que? Interpretação, argumentos

sociológicos, não?

P - Ah, não, não todos. Dizer o que o homem deseja, os sentidos

humanos, intenções entre humanos, etc. Introduzir alguma

"flexibilidade interpretativa", em um mundo de objetos

inflexíveis, de "puras relações causais", de " conexões

estritamente materiais". Isso não é de todo o que estou

dizendo. Todas as ciências foram inventando maneiras para

passar de um nível para o outro, de um quadro de referência

para o próximo, por amor de Deus: O que se chama

relatividade?

A - Ah! Então você é uma relativista!

P - Mas, naturalmente, o que mais eu poderia ser? Se eu quiser

ser uma cientista e chegar à objetividade, não posso deixar de

ter a possibilidade de viajar de um quadro de referência para

a próximo, sem esses deslocamentos, eu ficaria limitada ao

meu ponto de vista.

A - Então você associa objetividade com relativismo?

P - "Relatividade", sim, claro. Todas as ciências fazem o mesmo.

Nossa ciência (Estudos culturais das Ciências) também.

A - Mas qual é a nossa maneira de alterar a nossa posição?

P - Estamos no negócio de descrições. Todo o resto é negociação

e clichês. Inquéritos, sondagens; nós vamos lá, ouvimos,

aprendemos praticamos, tornamo-nos competentes,

mudamos nossa opinião. Realmente é muito simples: tudo

isso é chamado campo de trabalho. Um bom trabalho de

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campo sempre produz uma grande quantidade de novas

denominações.

A - Mas já tenho lotes de descrições! Estou afogando neles. Esse

é todo o meu problema. É por isso que eu estou perdido e é

por isso que eu pensei que seria útil esse ANT, não pode me

ajudar com essa massa de dados? Eu preciso de um quadro

de referência, meu orientador quer!

P - Meu Reino por uma moldura! Eu compreendo o seu

desespero. Mas não, ANT é bastante inútil para isso. Os seus

principais princípios são que os próprios atores fazem tudo,

incluindo os seus próprios quadros, as suas próprias teorias,

os seus próprios contextos, a sua própria metafísica, até

mesmo as suas próprias ontologias… Portanto, receio que o

caminho a seguir seria: mais descrições...

A - Mas descrições são demasiado longas. Eu tenho que dar

alguma explicação.

P – Eu vou te dizer, se a sua descrição precisa de uma explicação,

não é uma boa descrição, ponto final. Só más descrições

necessitam de uma explicação. É muito simples. O que se

entende por uma "explicação", na maioria das vezes? É

Acrescentar outro ator para fornecer aos já descritos, a

energia necessária para agir? Mas se tiver de acrescentar,

significa que a rede não funciona sozinha, e se os atores já

montados não têm energia suficiente para agir, então eles

não são "atores", mas meros intermediários, fantoches. Eles

não fazem nada, então eles não devem estar na descrição.

Nunca vi uma boa descrição necessitar de uma explicação.

Mas li incontáveis más descrições para as quais nada foi

acrescentado por um enorme acréscimo de 'explicações'!

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A - Isso é muito preocupante. Eu devia ter ouvido os outros

alunos quando me alertaram a não ir em frente com o ANT…

Agora você está me dizendo que eu não deveria sequer

tentar explicar nada!

P - Você pode mantê-las, se te faz bem, mas acredito que

explicar qualquer coisa não será mais que meros ornamentos.

Como regra geral, o contexto é simplesmente uma maneira

de parar a descrição quando você está cansado ou com

preguiça de ir adiante.

A - Mas isso é exatamente o meu problema: Para parar tenho

de concluir este Doutoramento. E você diz: "mais

descrições". Meus atores estão por todos os lados! Onde

devo ir? O que é uma descrição completa?

P - Agora sim uma boa pergunta! Porque é uma questão prática.

É como eu sempre digo: uma boa tese é a tese feita. Mas há

outra maneira de parar, do que por 'adicionamento de uma

explicação "ou" colocando uma moldura "...

A - Diga-me então.

P - Você pára quando tiver escrito 50.000 palavras, ou, como é

mesmo o formato aqui? Eu sempre esqueço.

A - Oh! Isso é realmente fantástico! Assim, a minha tese terá

acabado quando for preenchida… Tão útil, muito obrigado!

Sinto-me tão aliviado…

P – Fico contente que tenha gostado! É sério, você concorda que

qualquer método depende do tamanho e tipo de texto que

prometeu entregar?

A - Mas o limite textual não tem nada a ver com o método.

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P – Veja! E é por isso que não gosto muito das formas com que

os doutorandos são treinados. Escrever textos tem tudo a ver

com o método. Você escreve um texto de tantas palavras, em

tantos meses, com base em tantas entrevistas, tantas horas

de observação, de tantos documentos... O método depende

inteiramente do texto! Você não faz mais nada.

A - Claro que eu faço: Eu sei coisas, eu estudo, me explicam

coisas, me criticam, eu…

P - Mas todas essas metas grandiosas se concretizam através de

um texto, não é?

A - Claro, mas é um instrumento, um meio, uma maneira de

expressar-me.

P - Não há nenhuma ferramenta, nem meio, apenas mediadores.

Um texto é espesso. Isso é um princípio ANT, se houver.

A - Desculpe, professora, eu lhe digo que posso escrever em C, e

até mesmo C++, mas eu não estudei Derrida, semiótica...

essas coisas. Não acredito que o mundo é feito de palavras e

coisa e tal...Em que sentido essas coisas que você me diz vão

me ajudar a ser mais científico?

P - Dependendo da forma como ela é escrita, ou não, irá capturar

o ator-rede que você deseja estudar. O texto, em nossa

disciplina, não é uma história, e não é uma história bonita, é o

equivalente funcional de um laboratório. É um lugar para os

ensaios, experimentos e simulações. Dependendo do que

acontece na mesma, haja ou não haja um ator e exista ou não

exista uma rede a ser rastreada. E isso depende inteiramente

das precisas formas em que é escrito. Cada um novo tópico

requer uma nova forma de ser tratado por um texto. A

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maioria dos textos são simplesmente mortos. Não acontece

nada com eles.

A - Mas ninguém menciona “texto” no nosso programa. Fala-se

em "organizar os estudos”, não "escrever" sobre o assunto.

P - É o que estou a dizer-lhe: você está sendo mal treinado! Não

ensinam, nas ciências sociais, doutorandos a escrever os seus

doutorados. Sinto-me como uma velha repetindo sempre a

mesma coisa: "descrever, escrever, descrever, escrever…"

A - O problema é que não é isso o que o meu supervisor quer!

Ele quer que o meu caso seja generalizável. Ele não quer

"mera descrição". É por isso que estou começando a entrar

em pânico.

P - Você deve entrar em pânico apenas se os atores não

estiveram fazendo o que constantemente, ativamente,

reflexivelmente, obsessivamente fazem: eles também

comparam, também produzem tipologias, também desenham

padrões, também espalham suas máquinas, bem como as

suas organizações, as suas ideologias, os seus estados de

espírito. Por que você pensa que é o único a fazer coisas

inteligentes, enquanto os seus atores agiriam como um

bando de retardados? O que eles fazem para expandir,

relacionar, comparar, organizar é o que você tem para

descrever tão bem. Não se trata de outra camada que você

teria de adicionar à "mera descrição". Não tente uma

mudança de designação para a explicação: simplesmente vá

em frente com a descrição. As suas próprias idéias sobre o

que os outros fazem não têm interesse em relação à forma

como estes produzem e espalham as suas próprias empresas.

A - Mas, se eles são reprimidos, negados, silenciados?

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P - Nada sobre a terra lhe permite dizer que eles existem, sem

trazer na prova de sua presença. Essa prova poderá ser

indireta, exigente, complicada, mas que precisa. Se é

invisível... são invisíveis. Se eles fazem outras coisas para

mover-se, e você pode documentar esses movimentos, então

eles são visíveis.

A - Professora! A prova! O que é uma prova assim? Isso é

terrivelmente positivista?

P - Espero que sim, sim.

A - Mas se eu não acrescentar nada, simplesmente vou repetir

o que dizem os agentes.

P - Qual seria a validade de acrescentar coisas a entidades

invisíveis que atuam sem deixar qualquer rasto e não fazem

diferença a qualquer estado de coisas?

A - Mas tenho de fazer os atores aprender algo que não sabiam;

se não, por que eu iria estudá-las?

P – Vocês! cientistas sociais. Se você estivesse estudando

formigas, em vez de ANT. O que você esperaria? Formigas

para aprender algo de seu estudo? Claro que não. Elas sabem,

não é? Elas são as professoras, você é quem aprende com

elas. Você explica o que elas fazem para si mesmo, para seu

próprio benefício, ou para outro entomologista, não para

elas, que não se importam nem um pouco. O que faz você

pensar que um estudo é sempre feito para ensinar as coisas

para as pessoas a serem estudadas?

A - Mas isso é toda a idéia das ciências sociais! É por isso que

estou aqui: eu tenho de prestar algumas reflexivas

compreensões para o povo…

P -… Que é claro, antes de você, nunca refletiram!

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A - De certo modo, sim! Não? Eles fizeram coisas, mas não sei

por quê… O que há de errado com isso?

P - O que está errado!? A maior parte do que os cientistas sociais

chamam de "reflexividade" é apenas redigir perguntas

totalmente irrelevantes para as pessoas que pedem outras

perguntas para as quais o analista não tem a mínima idéia de

uma resposta! Reflexividade não é um patrimônio que você

transporte com você, só porque você está no doutorado!

Você e seus informantes têm preocupações diferentes -

quando se cruzam é um milagre, e milagres, caso você não

saiba, são raros…

A - Mas se eu não tenho nada a acrescentar ao que os agentes

dizem, não vou poder ser crítico. Ora! Não te entendo, num

momento você é um ingênuo realista voltando-se ao objeto,

e logo depois você diz que tenho de escrever um texto que

nada acrescenta, mas simplesmente descreve as trilhas do

seus famosos "atores próprios". Isto é totalmente apolítico!

Nenhuma crítica importante que eu possa ver.

P - Diga-me, mestre Debunker (iconoclasta, desenganador), como

vai se tornar um ”crítico astuto” sobre seus atores? Estou

ansiosa por ouvir.

A - Só se eu tiver um quadro de referência. Isso é o que eu

estava procurando ao vir aqui, mas obviamente ANT é

incapaz de dar-me algum.

P - E estou bastante satisfeita por ele não… Este quadro seu,

presumo eu, está oculto aos olhos dos seus informadores, e

será revelado pelo seu estudo?

A - Sim, com certeza. Esse deve ser o valor do meu trabalho,

pelo menos assim o espero.

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P - Bom para você… O que você está me dizendo é que, em seus

seis meses de trabalho de campo, pode por si, apenas por ter

escrito algumas centenas de páginas, produzir mais

conhecimento do que os 340 engenheiros e o pessoal que foi

estudar?

A - Não 'mais' conhecimento, mas, talvez, diferente. Sim,

espero. Caso contrário porque exatamente estaria me

esforçando? Não é por isso que estou neste negócio?

P - Não estou certa do porque você está nesta empreitada, mas a

forma como você quer produzir um conhecimento diferente

do produzido por eles, é toda a questão.

A – Isso é uma piada, o que estou fazendo aqui? Lutando para

que esse tipo de quadro seja viável para mim…

P - Mas é desejável? Veja, o que você está realmente me dizendo

é que os atores em sua descrição não fazem diferença

alguma. O que significa que eles não são os intervenientes:

eles simplesmente conduzem a força que vem através deles.

Portanto, meu caro estudante, você tem desperdiçado o seu

tempo descrevendo pessoas, objetos, sites que não são nada,

com efeito, mas passivos intermediários, uma vez que eles

não fazem nada sozinhos. Seu tempo no campo de pesquisa

foi simplesmente desperdiçado. Você deveria ter ido

diretamente para a causa.

A - Mas isso é o que a ciência é! Apenas isso: encontrar as

estruturas escondidas que explicam o comportamento dos

agentes que achavam estar fazendo algo, mas, na realidade,

são simplesmente porta-vozes de outra coisa.

P - Então você é um estruturalista! Fora do armário! Finalmente!

Porta-vozes! É o que você chama de atores?! E você quer

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fazer Actor-Network Theory, ao mesmo tempo! Isso é esticar

os limites do ecletismo para bastante longe!

A - Por que eu não posso fazer as duas coisas? Certamente se

ANT tem qualquer conteúdo científico, tem de ser

estruturalista.

P - Você pode dizer-me que tipo de ação um porta-voz tem em

uma explicação estruturalista?

A - Sim, naturalmente: ela desempenha uma função, que é tão

importante quanto a estrutura lhe permitir! Se eu

compreendi corretamente. Qualquer outro agente da

mesma posição seria forçado a fazer o mesmo…

P - Então, um porta-voz, por definição, é totalmente substituível

por qualquer outro?

A - Sim, é isso o que estou dizendo!

P - Mas isso é também o que é tão idiota e que faz com que seja

radicalmente incompatível com ANT: um ator que faz

diferença, no meu vocabulário, não é um ator em tudo. Um

agente, se palavras têm algum significado, é exatamente o

que não é substituível por qualquer outra pessoa, é um

acontecimento único, totalmente irredutível a qualquer

outro.

A - Então você está me dizendo que o ANT não é uma ciência!

P - Não é uma ciência estruturalista, isso é certo.

A - "Sistemas de transformações", que é exatamente o que se

diz por estruturalismo!

P - Você não parece entender o abismo que existe entre o

estruturalismo e o ANT. A estrutura é apenas uma rede em

que você tem apenas informações muito incompletas. Não

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me diga que é mais científica. Se eu quiser ter atores na

minha conta, eles têm de fazer as coisas, a não ser porta-

vozes; eles têm que fazer a diferença. Se eles não fazem

qualquer diferença, deixe-os.

A- Você e suas histórias… memoráveis histórias, que é que você

quer fazer? Estou falando de explicações, do conhecimento,

de crítica de ponta, não de escrever scripts para novelas do

canal 4!

P - Você quer que seu pacote de “algumas centenas de páginas”

faça a diferença, não? Pois bem, você tem que ser capaz de

provar que a sua descrição daquilo que as pessoas fazem,

quando levadas de volta para elas, faz uma grande diferença

para a maneira como elas estavam fazendo as coisas. Será

isto o que você chama ser um crítico de ponta?

A - É, acho que sim... sim.

P - Mas, então, você deve concordar que precisa dizer o que

fazer para dotá-los do conhecimento do que é irrelevante e

do que é relevante naquilo que eles (os atuantes) fazem,

porque são muito genéricas?

A - Claro que não, eu estava falando de causas reais.

P - Mas então eles não fazem muito, porque, eles não teriam

nenhum outro efeito que não o de ser porta-vozes da

realidade, um Outro ator? É o que se chamaria: a função, a

estrutura, etc... Então, eles não seriam realmente atores, mas

marionetes. Bem, você está fazendo os atores serem nada: na

melhor das hipóteses, eles poderiam acrescentar algumas

pequenas perturbações ao concreto mundo das coisas.

A - …

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P - Agora você tem que me dizer o que é politicamente tão

importante ao transformar aqueles que estudamos em

infelizes 'actless' , porta-vozes de funções escondidas que

você, e somente você, pode ver e detectar?

A - Hmm, você tem uma forma de transformar as coisas de

cabeça para baixo… Veja! Se os atores se tornam

conscientes das determinações impostas a eles... Suas

consciência não se torna mais reflexiva? Eles podem tomar o

destino nas suas próprias mãos. Eles tornam-se mais

esclarecidos, não? Em caso afirmativo, gostaria de dizer que

agora, finalmente, em parte graças a mim, sim, há mais

atores agora, estou convencido disso.

P - Bravo, bravíssimo! Portanto, você é o ator de alguns agentes

plenamente determinados, acrescidos da função de porta-

vozes, acrescidos de um pouco de perturbação, acrescidos de

alguma consciência, desde que lhes sejam esclarecidos por

cientistas sociais? Horrível, simplesmente horrível… E as

pessoas querem fazer ANT! Depois de ter reduzido os atores a

meros porta-vozes, você deseja “generosamente” trazer para

os pobres homens a reflexivilidade que tinham antes e que

você retirou por tratá-los de uma maneira estruturalista!

Magnífico! Eles eram atores antes que você viesse com a sua

"explicação", não venha me dizer que este é o seu estudo!?

Ótimo trabalho estudante! Bourdieu, não poderia ter feito

melhor…

A - Você pode não gostar muito de Bourdieu, mas pelo menos

ele era um verdadeiro cientista, e ainda melhor, ele era

politicamente relevante.

P - Obrigado. Tenho estudado as ligações entre a ciência e a

política durante cerca de trinta anos, por isso não me intimido

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facilmente com palestras de que a ciência é "politicamente

relevante".

A - Argumentos de autoridade não vão intimidar-me, portanto,

seus trinta anos de estudos não fazem nenhuma diferença

para mim...

P - Touché… Mas, a pergunta era: "O que posso fazer com ANT?“.

Eu lhe respondi: nenhuma explicação estruturalista! Os dois

são totalmente incompatíveis. Para o ANT você tem atores

em potencial e eles não são atores de tudo; ou você estrutura

com seu quadro de referência uma descrição-explicativa dos

agentes que estão fazendo virtualidades reais, o que exige

muito textos específicos, conexões mil com aqueles que quer

estudar. Exige muitos protocolos específicos para trabalhar.

Acho que isto é o que você chama “crítica de ponta" e de

"relevância política".

A - Então, o que devo fazer? Rezar por um milagre? Sacrificar

uma galinha?

P - Você está confundindo ciência com maestria. Diga-me, você

pode imaginar um único tópico em que, por exemplo,

Bourdieu critica a sociologia ou a ciência?

A – Não! Mas não posso imaginar um único tema a que se

aplicaria ANT!

P – Maravilha! , você está certo, é exatamente o que eu acho…

A - Isso não foi concebido como um elogio.

P - Mas vou tomá-lo como uma verdade!

A – Me desculpe, posso educadamente fazer uma observação?

Para toda a sua extremamente sutil filosofia da ciência, terá

ainda de dizer-me como escrever um...

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P - Você estava tão ansioso para adicionar tabelas, contexto,

estrutura às suas "simples descrições"...

A - Mas qual é a diferença entre um bom e um mau texto ANT?

P - Essa é uma boa pergunta! Finalmente! Resposta: O mesmo

que entre um bom e um mau laboratório. Nem mais, nem

menos.

A - Pois bem, muito obrigado… Foi agradável você falar comigo.

Mas penso que depois de tudo, em vez de ANT… Eu estava

pensando em usar a teoria do sistema de Luhmann... Ou

talvez eu vá usar um pouco de ambos.

P -…

A - Você gosta de Luhmann não?

P – Deixaria de lado todos os "quadros subjacentes", se eu fosse

você!

A - Mas, a sua espécie de 'ciência', ao que me parece, significa

violar todas as regras de formação na área das ciências

sociais!?

P - Eu prefiro quebrá-las e seguir meus atores… Como você disse,

sou, ao final, de uma ingenuidade realista... Uma positivista.

A - Uma vez que ninguém parece compreender o que é ANT por

todo o campus, você poderia escrever um guia sobre ele;

certificar-se de que os nossos professores sabem o que é, e

depois, se é que posso dizer, não quero ser mal educado…

Mas eles poderiam não tentar forçar-nos em direção a ele…

Se você entende o que eu quero dizer…

P - É realmente assim tão mau? Um..., um... Guia? Por que veio a

mim, então?

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A - Nessa última meia hora, tenho de confessar! Estive

pensando a mesma coisa…