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Natal, v.17, n.28, jul./dez. 2010, p. 309-319 Gumbrecht, Hans Ulrich. Elogio da beleza atlética. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Marcos Silva * Este trabalho tem por objetivo apresentar em linhas gerais o livro mais recente do professor da Stanford University Hans Ulrich Gumbrecht, onde defende a existência de uma compleição estética, filosófica, inerente à performance atlética. Sua obra Elogio da beleza atlética, publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras em 2007, tem como proposta principal justificar a consagração e fascínio do esporte moderno em nossa sociedade. Seu autor tenta explicar em parte a paradoxal apatia e negligência freqüente do meio acadêmico em assumir a legitimidade estética frente à importância e impacto cultural do esporte. Para tanto, as perguntas que me parecem centrais em seu livro podem ser apresentadas assim: Por que as imagens ou lembranças esportivas provocam sensações tão intensas? E por que a “alta cultura” não compartilha ou acompanha a euforia popular à beleza atlética? Por que o esporte deveria ser tomado como assunto periférico? Gumbrecht restaura a cidadania intelectual do esporte com um trabalho de traços acadêmicos ao enfatizar a necessidade de pensarmos os fenômenos esportivos e sua centralidade crescente em nossas vidas. O autor do Elogio afirma que os acadêmicos não têm “disposição afetiva e tom de escrita” para tratar da beleza atlética, o que mostra uma incapacidade intrínseca de se concentrarem nos movimentos e não em aspectos exógenos ao esporte. Este é fundamento da crítica e a proposta mesma do livro: estimular a capacidade do espectador de considerar o esporte em toda a sua exuberância estética sem fazer menções a aspectos extrínsecos ou estranhos a ele. Com este trabalho pretendo, numa primeira parte, elogiar a iniciativa do elogio de Gumbrecht ao esporte e destacar seu livro como um * Doutorando Filosofia pela PUC-Rio, bolsista CAPES. E-mail: [email protected] Resenha recebida em 30.09.2010, aprovada em26.11.2010.

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  • Natal, v.17, n.28, jul./dez. 2010, p. 309-319

    Gumbrecht, Hans Ulrich. Elogio da beleza atltica. Trad. Fernanda Ravagnani. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    Marcos Silva* Este trabalho tem por objetivo apresentar em linhas gerais o livro mais recente do professor da Stanford University Hans Ulrich Gumbrecht, onde defende a existncia de uma compleio esttica, filosfica, inerente performance atltica. Sua obra Elogio da beleza atltica, publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras em 2007, tem como proposta principal justificar a consagrao e fascnio do esporte moderno em nossa sociedade. Seu autor tenta explicar em parte a paradoxal apatia e negligncia freqente do meio acadmico em assumir a legitimidade esttica frente importncia e impacto cultural do esporte. Para tanto, as perguntas que me parecem centrais em seu livro podem ser apresentadas assim: Por que as imagens ou lembranas esportivas provocam sensaes to intensas? E por que a alta cultura no compartilha ou acompanha a euforia popular beleza atltica? Por que o esporte deveria ser tomado como assunto perifrico? Gumbrecht restaura a cidadania intelectual do esporte com um trabalho de traos acadmicos ao enfatizar a necessidade de pensarmos os fenmenos esportivos e sua centralidade crescente em nossas vidas. O autor do Elogio afirma que os acadmicos no tm disposio afetiva e tom de escrita para tratar da beleza atltica, o que mostra uma incapacidade intrnseca de se concentrarem nos movimentos e no em aspectos exgenos ao esporte. Este fundamento da crtica e a proposta mesma do livro: estimular a capacidade do espectador de considerar o esporte em toda a sua exuberncia esttica sem fazer menes a aspectos extrnsecos ou estranhos a ele. Com este trabalho pretendo, numa primeira parte, elogiar a iniciativa do elogio de Gumbrecht ao esporte e destacar seu livro como um

    * Doutorando Filosofia pela PUC-Rio, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

    Resenha recebida em 30.09.2010, aprovada em26.11.2010.

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    marco feliz no estudo filosfico das prticas esportivas. E num segundo momento, pretendo mostrar brevemente que, apesar de me parecer conseqente e adequada para muitos fins, a insistncia de Gumbrecht em tratar exclusivamente do esporte sobre o prisma esttico se mostra insuficiente para explicar todo o fascnio que ele nos provoca. Sua perspectiva no abrange, talvez propositalmente, outro fenmeno importante causador de nosso entusiasmo com as exibies de atletas profissionais: o evidente carter moral de suas atividades. Infelizmente o livro de Gumbrecht minimiza ou simplesmente descarta como desencaminhador para o entendimento do esporte a sua esfera moral (p. 32, 35, 38), portanto, perde, a meu ver, a abrangncia de seu elogio.

    * * * Acredito ser a grande contribuio do livro trazer dignidade acadmica aos jogos e aos esportistas profissionais modernos. O esporte merece e deve, sim, ser estudado sobre prismas sociolgicos, antropolgicos e tambm (por que, no?) filosficos. Em todas estas disciplinas podem-se revelar aspectos interessantes, sob o devido olhar generoso. O experimento intelectual de Gumbrecht se direciona ao porqu do esporte fascinar tanto, provocando este arrebatamento coletivo, este entusiasmo memorvel e irresistvel nas mais distintas platias, de distintas etnias e classes, de distintas culturas e naes. A resposta do autor do Elogio categrica: o que causa este prazer irrestrito e democrtico a experincia ou a eminncia da experincia esttica que proporciona. Esporte arte tanto como a dana ou o teatro so. Logo, deve ser admirado e estudado como arte, com todo seu esplendor e alcance filosfico, mesmo que no o percebamos usualmente assim. Gumbrecht vai alm. Afirma que o esporte a forma mais popular e intensa de contemplao esttica. Assim, justifica a admirao popular por eventos esportivos em estdios no raramente lotados e a necessidade recorrente de imortalizar movimentos de atletas em filmes, fotografias e quadros feitos como que para a melhor degustao dos seus movimentos e formas. Esta concepo parece explicar satisfatoriamente tambm seu inquestionvel e crescente apelo comercial em propagandas e produtos esportivos. Destaco em seu livro os exemplos histricos de eventos

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    esportivos que denotam uma grata erudio, inclusive, da biografia dos grandes atletas-heris consagrados pelo esporte. Pelo cansao que demonstra e confessa em relao ao tom supercerebral da fala e dos escritos dos acadmicos (p. 177) justifica-se em parte a sua escrita fluida e despretensiosa. Contudo, a falta de referncias e termos vagos como a maioria dos historiadores, os cronistas recentes ou os acadmicos em geral so usados com freqncia o que desaconselhvel mesmo para os leitores no-especializados. Mesmo depois da leitura da defesa da tese de Gumbrecht no sabemos ao certo (e talvez no precisemos saber) porque assistir a esportes captura de forma to irresistvel a ateno e a imaginao de tanta gente. Este fato eloqente e faz parte da prpria proposta do livro. Como algo banal que subitamente transformado em arte pelo artista atento, acontece tambm a transfigurao do atleta em heri pelo esporte. Seu livro tenta explicar de maneira mais detida e sistemtica esta transfigurao. importante notar que Gumbrecht no trata de uma legitimao terica de um prazer, mas procura entender um pouco melhor o fascnio. Assim, talvez possa intensificar o prazer esttico de assistir aos atletas em suas performances e permitir, tambm, que louvemos nossos heris do passado e do presente. O livro de Gumbrecht no trata, ento, de responder apatia acadmica em relao ao esporte com uma beno verborrgica que embora bem intencionada pudesse faz-lo distante de seu afeto evidente. Um livro que mostra este nvel de generosidade de olhar, de lirismo e de calor de descries, cheias de sugestes visuais, s poderia ser mesmo escrito por um f apaixonado. Tudo parece tentar corporificar suas agradveis lembranas de um passado solene de experincias estticas inesquecveis. Deste modo, a identificao do leitor com a letra do texto e com as idias de Gumbrecht quase automtica. O Elogio composto por quatro partes ou sees principais: Definies, Descontinuidades, Fascnios e Gratido. acompanhado de uma introduo e de uma seo final de agradecimentos afetuosos. Acredito que esta curta seo final completa o carter provocativo em relao aos trabalhos acadmicos tnica do livro porque parece substituir intencionalmente a tradicional seo de bibliografia predominante em

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    trabalhos acadmicos por lembranas afetivas em tom bem ameno e pouco formal. Em sua introduo, Gumbrecht descreve casos exemplares que compem sua memria afetiva de eventos esportivos. Conta a estria de um menino fascinado com a violncia do hquei e o movimento de um goleiro slido de olhar fixo; com movimentos esquisitos e grotescos do sum, mesmo contra o cnone da beleza ocidental; com a coreografia e ritual dos lutadores; com o charme, beleza e graa de movimentos e concentrao de um velocista. L, descreve tambm, de memria, um time medocre de futebol, mas muito popular pelo fascnio que o goleiro extico, visto como heri pelas crianas, causava; desenha a transfigurao de derrotados de guerra em eufricos triunfantes pela presena de eventos esportivos como nas Olimpadas de Tquio 64 e na Copa do Mundo vencida pela desacreditada Alemanha em 54; descreve ricamente um belo gol marcado custa de sacrifcio e de leso do artilheiro; finalizando com a estria do pugilista Cassius Clay e suas frases de efeito, propagandas de si e sua hegemonia inapelvel no boxe. Em todos os exemplos, de esportes de naes variadas esta internacionalidade um acerto do autor , Gumbrecht tenta ressaltar que no precisa ser o melhor para que o atleta seja transfigurado pelo esporte aos olhos dos espectadores apaixonados (p.17), justamente por um necessrio distanciamento entre atleta e espectador, caracterstica da insularidade assumida pelo autor como nota definitria do fenmeno-esporte. Outro ponto importante a necessidade da presena fsica para o efeito esttico. Mesmo com suas lembranas adormecidas, s vezes elas surgiam com um impacto brusco, convencendo-o, com uma nostalgia gostosa, de que nada jamais fora to intenso ou estressante quanto aqueles momentos de presena fsica num evento esportivo (p.20). Isto de maneira que cada momento novo ressuscita o passado em seus smbolos mais complexos e poderosos, mesmo mostrando que o novo no ultrapassa a singularidade do antigo. O esporte ganha, ento, o papel de redimensionamento do presente, tornando-o mais complexo a medida que envolve o passado com uma aura que lhe confere glria e, s vezes, mais sobriedade. Esses so os dois aspectos de uma transfigurao que s o esporte capaz de produzir (p.20). Generosa e simetricamente, o esporte intensifica o presente, reavivando o passado.

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    Na seo de Definies, Gumbrecht prepara o terreno para sua tese. O autor descobre na obsesso da filosofia ocidental em enxergar alm de aspectos materiais, privilegiando o lado espiritual do mundo, o motivo central do esquecimento acadmico do esporte. Corpos e movimentos outrora minimizados so consagrados em seu trabalho. Pretende, pois, dar autonomia esttica ao movimento dos atletas sem remet-lo a sentidos externos. Escreve esporte como esporte e pelo esporte, tentando manter os olhos e a mente concentrados nos corpos dos atletas, em vez de abandonar o tpico do esporte para interpretar esses fenmenos como funo ou uma expresso de alguma coisa. (p. 35) A vontade de fixar esta idia atravs de um elogio vem da necessidade de manifestar sua gratido e entusiasmo por ter visto algo to belo. O seu experimento intelectual faz com que sua abordagem se compromisse com as formas da beleza atltica em vez de ceder ao impulso metafsico, a meu ver, inevitvel, de interpret-las. Acredito que ver o esporte como smbolo, talvez moral, no incompatvel com a viso esttica proposta por Gumbrecht. Talvez sejam at posturas complemetares. Esta crtica aparecer mais adiante. O autor do Elogio segue destacando que o seu trabalho tem sua raiz na gratido aos atletas pela epifania da forma de seus movimentos, ao mostrar tambm o que est por trs da beleza especfica do esporte. Para tanto, define esporte por uma sugesto wittgensteiniana de semelhana de famlia, porque ela deve nos permitir ver como esto relacionadas as vrias prticas que usualmente denominamos esporte permitindo inclusive sua vocao esttica. O ponto de vista desejvel para uma definio de esporte a perspectiva da presena em contraposio da esfera do significado, segundo o autor. Temos, ento, marcas importantes: a importncia dada ao corpo em detrimento da razo, contigidade s coisas do mundo, inscrio dos corpos em padres regulares e ritualsticos; possibilidade da violncia, do choque em potencial e da destreza em evit-lo; no dependncia de inovaes, todo seu incio um acontecimento em si; no incluso de lugar para ao ficcional e, finalmente, a consolidao de um paradigma de signo que coordena, no corpo, forma e matria. Alm disso, o esporte como a arte s acontece durante a performance competitiva (agon) que visa levar a atividade ao limite de excelncia (arete). Segundo Gumbrecht, a conjuno entre competitividade e superao encontra sua convergncia ideal no impulso esportivo.

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    Em sua seo Descontinuidade, o autor pretende defender que no h continuidades na histria natural do esporte e que no h movimento de decadncia das prticas e jogos, onde uma autenticidade primordial tivesse sido gradativamente perdida. Aqui, a questo do porqu do esporte ser cada vez mais abrangente e importante em nossa poca respondida por uma procura cada vez maior e sistemtica de uma esfera de presena que nos afasta da hegemonia dos significados. Desta forma, Gumbrecht faz recortes idiossincrticos e parciais na histria para dar conta do seu elogio da beleza atltica. Entretanto, muitas vezes apesar de afirmar que se basearia centralmente na viso do espectador se concentra na anlise de fatores influentes nos praticantes, como revela os ttulos dos captulos desta seo: Semideuses, sobre atletas gregos; gladiadores, sobre os combatentes romanos; cavaleiros, jogadores da idade mdia; rufies, atores que representam esporte no comeo da idade moderna; esportistas, marcando o nascimento do esporte profissional; at chegar aos consumidores da segunda metade do sculo XX, se concentrando, finalmente, na figura do espectador, enfatizando os apelos comerciais crescentes vindos dos atletas cada vez mais midiatizados. Em sua seo Fascnio, Gumbrecht trata do ponto mdio entre a performance e o ato de julg-la. Fascnio se refere ao olhar que atrado pelo apelo de algo que percebido (p. 109). O autor traa, ento, uma tipologia de fascnios com o objetivo de captar a complexidade dos movimentos que apreciamos tanto. Os corpos esculpidos mostram a admirao do intelecto pela harmonia e engajamento fsico. O sofrimento do atleta faz com que conquistem amor e admirao dos espectadores que se identificam com os dramas representados. O estado de natureza dos movimentos gera a graa em v-los. A relao simbitica entre instrumentos e os corpos dos atletas ponto alto de muitos esportes. As formas personificadas, gerando complexidade, inovaes e ousadia marcam momentos de epifania. O timing dos atletas algo sem dvida admirvel: a possibilidade do movimento certo na hora certa numa fuso perfeita entre percepo e prtica. Gumbrecht termina esta seo sugerindo um programa com questes em aberto sobre o esporte. Como a que ele indica ser a mais difcil de ser respondida: por que o fascnio recente por esporte capitaneado grandemente por jogos com bola?

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    Na seo Gratido, tenta explicar o dilema moral de se perdoar o ex-atleta, que comete erros em sua aposentadoria, pela lembrana de seu auge esttico. Gumbrecht tenta, pois, explicar a convergncia entre espectador e atleta apesar da diferena bvia, e s vezes radical, de investimento corporal entre os dois. Distingue, ento, o espectador analtico do espectador que investe emocionalmente na sua comunho e identificao com outros espectadores e com os atletas. So dois espectros de possveis atitudes do pblico, afirma ele (p.150). Como v na esfera da presena a prpria possibilidade do esporte e conseqentemente do seu fascnio, afirma que para milhares de fs do passado, fazer parte da multido que assiste a um evento esportivo proporcionou a chance de uma imerso no universo da presena (p.151). Como sem a co-presena fsica no h o imprescindvel fenmeno da presena esportiva, necessrio, ento, uma dinmica de troca de energia: misto de tenso primordial e sensao triunfante. Acompanhar um evento esportivo ligado aos atletas e multido algo capaz de proporcionar alguns dos momentos mais emocionantes e viciantes de nossas vidas. (p.160) Eventos esportivos no precisam de explicaes tericas ou ganhos concretos para emocionar. Gumbrecht termina seu livro destacando que o esporte responsvel por um no muito bem definido sentimento de gratido para com os atletas que proporcionaram e proporcionam momentos de to especial intensidade. Os atletas, segundo o autor, permitem a abertura, a possibilidade de deixar ver acontecer o inesperado e surpreendente. Assim, se justifica, plenamente, o elogio da beleza esttica.

    * * * Entretanto, ser que, a despeito do que assumido pela postura da presena de Gumbrecht, o desejo da comunho inclusive fsica com a compra de acessrios ou souvenires de atletas no tem nada a ver com a necessidade de internalizao de um modelo, ou um smbolo? Ser que o sofrimento do pugilista diante de uma adversidade que tanto inspira amor e fascnio no sugere, como viam os esticos, que o esporte pode ser tomado como uma imagem arquetpica ou exemplo privilegiado da vida? Este sentido de exemplaridade pode ser facilmente estendido do boxe para a maioria dos esportes, seno a todos. Gumbrecht critica Sneca (p. 79-80) por no acompanhar a viso de outros esticos em tomar as lutas e a

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    serenidade dos combatentes como um smbolo da vida. Ser que o autor do Elogio no comete o mesmo erro que condena ao fechar seus olhos propositadamente esfera do significado? Esqueceria, ento, de ver que o esporte, como um smbolo de vida, pode ser interpretado como um modelo tico. Desta forma, esporte poderia ser um fenmeno moral to direto e contundente quanto esttico. E ainda estaramos dentro de uma perspectiva claramente filosfica. Gumbrecht, no captulo dedicado aos esportes na Roma Antiga, aponta a possibilidade de se afirmar que os gladiadores poderiam ser tomados como metfora da existncia humana. Afirma ele: Nessa interpretao das competies de gladiadores, o combate em si, com a injustia inerente a ele, era apenas o primeiro ato uma precondio para a produo da hora da verdade. Demonstrar serenidade diante de tamanha incerteza poderia transfigurar o gladiador derrotado no verdadeiro heri do espetculo no o heri como semideus, mas um heri como smbolo da fora fsica necessria para enfrentar a fragilidade humana. (p.80) O que fao aproveitar o argumento contido na critica de Gumbrecht a Sneca e estend-lo, por ach-lo pertinente e razovel, para todo o esporte. Atletas no seriam semideuses, mas heris-smbolos de fora fsica e emocional para enfrentar a vulnerabilidade humana. Como conseqncia direta disso, o esporte alm de ser belo seria tambm moralmente inspirador, porque poderia ser entendido por seus praticantes e espectadores como uma metfora da vida. A postura da presena permite ver o horizonte esttico do esporte, mas impede a viso da significao moral evidente nas prticas dos atletas. Deste modo, na tipologia proposta por Gumbrecht, o fascnio pelo sofrimento dos atletas poderia ser visto como um fascnio mais primordial, porque revelaria no enfrentamento a superao tenaz do atleta das adversidades que o restringem e o coagem. O esporte revelaria um drama condensado de vida. Representaria um smbolo eficaz e direto da vida de todos. Os atletas admirados mostram um carter de perseverana que reconhecemos imediatamente como sendo a melhor atitude para triunfarmos sobre nossas (muitas) adversidades. Os atletas com suas belas performances mostram a necessidade de pelo corpo, em associao firme com a mente, e virtudes morais, como a tenacidade e coragem, ultrapassarmos nossos limites obstinadamente e triunfarmos. O atleta

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    transfigurado em heri porque encarna, por algum instante, um smbolo de superao e triunfo sobre si e outros. Conjugando esta esfera moral com a esttica de Gumbrecht, poderamos ter no esporte um fenmeno complexo de convergncia inesperada (e bem-vinda!) entre esttica e moral, entre belo e bom. Infelizmente, Gumbrecht descarta a significao moral do esporte na sua explicao do fascnio. Entretanto, ao assumirmos o atleta como modelo moral ganhamos alguns predicados interessantes naturalmente atribudos aos esportes: superao, disciplina, garra, tenacidade, abnegao, concentrao, triunfo, solenidade... Como se explicaria, fazendo uso exclusivo do prisma da esttica, por que o simples envolvimento de atletas com drogas causa mais comoo popular que os abusos recorrentes de artistas? Por que saber que um artista produziu uma obra sob o efeito de drogas no deslegitima sua obra como o doping de atletas deslegitima de maneira irrevogvel seus feitos? Como responder estas questes sem fazer meno a uma natural e intuitiva expectativa de exemplaridade moral dos atletas que, a meu ver, no passa pela esfera esttica? Talvez, assim possamos tambm explicar a aproximao, destacada por Gumbrecht, cada vez maior entre atleta profissional e o espectador praticante amador de esportes. O carter imitativo apresentado pelos fs parece indicar a tentativa de reproduo, em algum grau, da fora e exemplaridade moral dos atletas. Acredito que amadores no praticam esporte somente para ficarem belos ou saudveis, ou mesmo por estarem exclusivamente influenciados pela indstria dos planos de sade ou pelo esprito do consumismo, como chega a sugerir Gumbrecht, mas para tentar tambm absorver ou internalizar, em parte, as virtudes morais dos atletas. Ser um pouco mais como eles. Ser uma espcie de atleta da vida tambm, um heri de si mesmo. Seguindo este raciocnio poderamos aprender na prtica do esporte o que falta na letra fria das escrituras religiosas: honestidade, hombridade, respeito, dignidade, esprito coletivo e solidrio, redeno. No isto que se pretende em projetos sociais para promoo do esporte em comunidades carentes? No este o papel esperado do esporte na recuperao fsica e moral de ex-viciados em drogas? E no isso que se enxerga no rosto esqulido, quase indigente, de um atleta no fim de um percurso exaustivo, mesmo que no ganhem, mesmo sem destaque? Acredito que atletas parecem fascinar a todos com sua transfigurao repentina em heris pela

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    sua natural exemplaridade moral em desafiar seus limites conscientemente, i.e., com pleno domnio e percepo de suas capacidades fsicas e mentais. Destaco inclusive uma espcie de ideal de pureza, estranho nossa contemporaneidade, na obrigatria recusa de substncias que possam aumentar ou afetar seu desempenho natural o que, por seu turno, parece ser a razo de aditivos ilegais ou psicotrpicos serem terminantemente inadmissveis, justificando desde advertncias ou reviso de resultados a banimentos irrevogveis de competies oficiais. A resposta pergunta lapidar e necessria muito bem posta pelo livro de Gumbrecht a respeito do que tanto nos fascina no esporte, pode, claro, se dirigir tambm esttica, mas, como tentei defender, pode ser moral tambm. O que nos fascina tanto na performance do atleta pode ser a sugesto de um drama condensado ou exemplo arquetpico da superao de limites externos e internos ao longo de um trajeto. As regras do esporte mutatis mutandis exercem um smbolo coercitivo imprescindvel na composio de jogos, assim como as regras sociais e leis naturais, inerentes vida humana, nos restringem tambm. De mais a mais, os atletas tentam super-las a partir delas, consciente e diligentemente, como nos deveramos. Aqui est o ponto. O prazer de acompanhar a biografia esportiva de um atleta pode estar em incutir esperana e otimismo no espectador na sua tentativa de superao de seus prprios resultados e limites. H algo de herico na tentativa de superao de concorrentes e de si mesmo, mesmo malogradas. Talvez, por isso, em muitos casos atletas so celebrados mesmo em suas derrotas. Muitas vezes, e isto o que tendemos usualmente a identificar como esprito esportivo, o esporte no trata especificamente de vitrias e derrotas ou excelncia de movimentos (o aludido arete). Aprendemos que podemos ganhar mesmo perdendo se e somente se tivermos tentado com afinco e hombridade. Talvez, o esporte possa no fim ter menos a ver com competio ou excelncia de resultados, como defende Gumbrecht, que com a sugesto de superao fsica e moral. Apesar de adversidades bvias e muitas vezes intransponveis, podemos ter foras morais para super-las, mesmo que acabe no conseguindo. Em um ltimo exemplo, ser que esta no justamente a leitura bvia, e certamente pretendida pelos seus organizadores e praticantes, na promoo ao fim de cada Olimpadas de uma Para-Olimpadas? Penso ser

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    notvel que Gumbrecht no seu Elogio tenha esquecido os eventos esportivos, cada vez maiores e mais bem organizados, constitudos por atletas (heris tambm) portadores de deficincias fsicas ou mentais. evidente que o apelo destes eventos mais moral que esttico. Reiterando: o esporte, portanto, pode funcionar como um modelo tico facilmente entendido e visto como melhor para a vida de qualquer um que tenha dificuldades, em maior ou menor grau, ou seja, serve como metfora moral clara, direta, popular. Afinal, somos todos torcedores.