devorador de almas - visionvox.com.br · não foi o bastante sem ruído para lobo, que sacu-diu a...

307

Upload: buitu

Post on 29-Aug-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

DEVORADOR DE ALMAS

MICHELLE PAVER

TRADUÇÃO DE DOMINGOS DEMASI

ROCCO

JOVENS LEITORES

UM

Torak não queria que fosse um presságio. Não que-

ria que fosse nada mais do que a pena de uma coruja caída na neve. Portanto, ele a ignorou. Esse foi o seu primeiro erro.

Silenciosamente, retornou às pegadas que seguia desde o amanhecer. Elas pareciam frescas. Tirou a mitene e sentiu-as. Não havia gelo embaixo. Sim, frescas.

Virando-se para Renn, mais acima da colina, ele ba-teu na manga e ergueu o dedo indicador, depois apontou abaixo para o bosque de faias. Uma rena, seguindo para o sul.

Renn fez sinal afirmativo com a cabeça, puxou uma flecha de sua aljava e encaixou-a no arco. Assim como Torak, ela era difícil de ser enxergada vestida com parca e perneiras de pele de rena descorada, o rosto lambuzado de cinza de lenha para mascarar seu cheiro. Assim como ele, ela estava faminta, tendo comido nada além de uma tira de carne seca de javali como refeição do dia.

Diferentemente dele, ela não vira a pena de coruja. Portanto, não diga a ela, pensou ele.

Esse foi o seu segundo erro. A poucos passos abaixo dele, Lobo farejava um pe-

daço de terra onde a rena raspara a neve para alcançar o líquen. Suas orelhas estavam empinadas, o pêlo prateado arrepiado de entusiasmo. Se sentisse a inquietação de To-rak, não demonstraria isso. Outra fungada, então ergueu o focinho, para captar a brisa carregada de odores, e o seu olhar âmbar tocou o de Torak. Cheira mal.

Torak inclinou a cabeça. O que você quer dizer?, per-guntou na fala de lobo.

Lobo contraiu os bigodes. Focinho ruim. Torak foi verificar o que ele encontrara e localizou

uma pequena gota amarela de pus na terra nua. Lobo dizi-a-lhe que a rena era velha, os dentes podres de tantos ve-rões mascando líquen arenoso.

Torak enrugou o nariz num breve sorriso de lobo. Obrigado, irmão de alcatéia. Então olhou de relance para Renn e seguiu morro abaixo o mais silenciosamente que permitiam as suas botas de couro de castor.

Não foi o bastante sem ruído para Lobo, que sacu-diu a orelha repreensivamente enquanto percorria a neve de forma tão silenciosa quanto fumaça.

Juntos, moveram-se devagar por entre as árvores adormecidas. Carvalhos negros e faias prateadas reluziam com a geada. Aqui e ali, Torak via o brilho carmesim das bagas do azevinho; o verde forte de um vigilante abeto de pé protegendo suas irmãs adormecidas. A Floresta fora silenciada. Os rios tinham sido congelados. A maioria das aves voara para o sul.

Exceto aquela coruja, pensou Torak. Ele soubera que era uma pena de coruja assim que

vira a sua parte superior peluda que amortecia o som do

vôo quando ela caçava. Se tivesse sido a cinza parda de uma coruja da floresta, ele não teria se preocupado, sim-plesmente teria dado a pena para Renn, que a usaria para emplumar flechas. Aquela pena, porém, era listrada de preto e castanho-alaranjado; sombra e chama. Isso disse a Torak que ela pertencia à maior e mais feroz das corujas: o bufo-branco. E encontrar um deles... isso era ruim.

O focinho negro de Lobo contraiu-se. Torak ficou instantaneamente alerta. Por entre as árvores, vislumbrou a rena, mordis-

cando barba-de-velho. Ouviu o esmagar de seus cascos, viu sua respiração enevoada, Ótimo, eles ainda estavam a favor do vento. Ele esqueceu a pena e pensou na carne suculenta e no nutritivo tutano.

Atrás dele, o leve rangido do arco de Renn. Ele en-caixou uma de suas flechas, percebeu que bloqueava a vis-ta dela e abaixou-se, apoiando-se em um joelho, visto que ela tinha a melhor pontaria.

A rena foi para trás de um pé de faia. Eles teriam que esperar.

Enquanto Torak esperava, notou um abeto, cinco passos mais abaixo. O modo como estendia os braços re-pletos de neve... alertando-o para que voltasse.

Ele apertou com força seu arco, fixou a vista na presa.

Uma lufada de vento agitou as faias à sua volta e as folhas do último verão roçaram como mãos secas, mortas.

Engoliu em seco. Sentia como se a Floresta tentasse lhe dizer algo.

Sobre sua cabeça, um galho deslocou-se e uma ra-jada de neve desabou com um sibilo. Ele olhou para cima. Seu coração deu um pulo. Um bufo-branco. Tufos de pe-

nas na cabeça parecendo orelhas tão afiadas quanto pon-tas de lanças. Enormes olhos alaranjados como sóis gê-meos.

Com um grito, pôs-se de pé. A rena fugiu. Lobo saiu em perseguição. A flecha de Renn passou raspando o capuz de To-

rak. O bufo-branco abriu as enormes asas e silenciosa-

mente voou para longe. — O que você fez? — berrou Renn furiosamente.

— Levantar-se desse jeito? Eu podia ter matado você! Torak não retrucou. Observou o bufo-branco ele-

var-se no azul impetuoso do céu de meio-dia. Mas bufos-reais, pensou ele, caçam à noite.

Lobo chegou saltando por entre as árvores e desli-zou até parar perto dele, sacudindo a neve e balançando o rabo. Não esperava alcançar a rena, mas divertiu-se com a perseguição.

Ao perceber a inquietação de Torak, esfregou-se nele. Torak ajoelhou-se, enfiou o rosto no denso, áspero cangote; inspirando o familiar odor de capim-cheiroso de Lobo.

— O que há de errado? — perguntou Renn. Torak ergueu a cabeça.

— Aquela coruja, é claro. — Que coruja? Ele piscou. — Você deve ter visto o bufo-branco. Chegou tão

perto que eu poderia ter tocado nele! Visto que ela parecia confusa, ele correu de volta

morro acima e encontrou a pena. — Aqui — ofegou, estendendo-a a frente. Lobo

achatou as orelhas e grunhiu. Renn colocou a mão sobre as penas de seu animal

de clã. — O que significa isso? — quis saber Torak. — Não sei, mas é ruim. Devemos voltar. Fin-

Kedinn saberá o que fazer. E, Torak — olhou para a pena —, deixe-a aqui.

Ele jogou-a na neve e desejou que nunca a tivesse segurado com a mão desprotegida. Um fino pó cinzento empoava sua palma. Limpou-a na parca, mas sua pele emi-tiu um bafejo de podridão que lhe lembrou o terreno dos ossos do Clã do Corvo.

Subitamente, Lobo deu um grunhido e empinou as orelhas.

— O que ele farejou? — perguntou Renn. Ela não dominava a fala de lobo, mas conhecia Lobo.

Torak franziu a testa. — Não sei. — O rabo de Lobo estava no alto, mas

não fornecia qualquer sinal de presa que Torak reconhe-cesse.

Presa estranha, disse-lhe Lobo e ele se deu conta de que Lobo também estava intrigado.

Um opressor senso de perigo abateu-se sobre To-rak. Ele soltou um urgente latido de alerta.

— Au! — Não se aproxime! Lobo, porém, corria vale acima em seu incansável

trote. — Não! — gritou Torak, seguindo aos tropeções

atrás dele. — O que foi? — perguntou Renn. — O que ele

disse? — “Presa estranha” — respondeu Torak.

Com crescente alarme, ele observou Lobo alcançar o cume e olhar para trás em sua direção. Tinha uma apa-rência magnífica: a densa pelagem de inverno, uma mistu-ra de cinzento e negro e ruço, o rabo peludo esticado pela emoção da caçada. Siga-me, irmão de alcatéia! Presa estranha!

Então ele desapareceu. Os dois foram atrás o mais depressa que consegui-

ram, mas estavam sobrecarregados com mochilas e sacos de dormir e a neve era funda, portanto tinham de usar seus sapatos de neve, o que os retardava ainda mais. Quando alcançaram o topo, Lobo não se encontrava em qualquer lugar à vista.

— Ele vai estar esperando pela gente — aventou Renn, tentando se tranqüilizar. Apontou para uma moita de choupo-tremedor. — Assim que chegarmos ali, ele se lançará contra nós.

Isso fez Torak sentir-se um pouco melhor. Ainda no dia anterior, Lobo se escondera atrás de um arbusto de zimbro e então saltara para fora, derrubando-o sobre um monte de neve, rosnando e brincando de morder até To-rak ser dominado pelas gargalhadas.

Chegaram ao choupo-tremedor. Lobo não saltou sobre eles.

Torak emitiu dois latidos curtos. Cadê você? Nenhuma resposta. Suas pegadas, porém, eram bastante claras. Vários

clãs caçavam ali e todos usavam cachorros, mas não havia como confundir as pegadas de Lobo com as de um ca-chorro. Cachorro corre a esmo, porque sabe que seu dono o alimentará, ao passo que um lobo corre com um propó-sito: precisa encontrar a presa ou morrer de fome. E, em-bora Lobo tivesse estado com Torak e o Clã do Corvo

durante as últimas sete luas, o menino nunca lhe dera co-mida, com receio de embotar suas habilidades de caça.

A tarde se foi e ainda seguiam a trilha deixada por ele: um trote em linha reta, no qual as patas traseiras cal-cavam as pegadas das patas dianteiras. O esmagar de seus sapatos de neve e o arranhar de sua respiração ecoavam pela Floresta.

— Estamos indo muito para o norte — alertou Renn. Eles estavam cerca de um dia de caminhada do a-campamento Corvo, que ficava a sudoeste, perto do rio Água Extensa.

Novamente, Torak latiu. Cadê você? Neve soltou-se de uma árvore e tamborilou sobre

seu capuz. O silêncio, após ela pousar, pareceu mais inten-so do que antes.

Enquanto ele observava o brilho extinguir-se em um cacho de bagas de azevinho, sentiu que o dia se trans-formava. A claridade já se esvaía do céu e sombras saíam furtivas detrás das árvores. Uma friagem rastejou para o interior de seu coração, pois ele sabia que começara a des-cida para a escuridão.

Os clãs chamam isso de tempo do demônio, por-que é no inverno, quando o grande touro Auroque se er-gue bem alto entre as estrelas, que os demônios escapam do Outro Mundo e esvoaçam pela Floresta, para causar destruição e desespero. Basta apenas um para corromper todo um vale e, embora os Magos mantenham vigilância, não são capazes de prendê-los. Demônios são difíceis de-ver. Nunca se consegue mais do que um vislumbre, e não se pode ter certeza de como parecem, pois sempre mu-dam, para melhor penetrarem em bocas adormecidas e possuírem corpos vivos. Ali eles se acocoram na escuridão

vermelha, sugando coragem e confiança; deixando as se-mentes da maldade e da discórdia.

Foi nessa ocasião, o tempo do demônio, que Torak soube que os presságios se tornaram realidade. Lobo não uivou em resposta porque não pôde. Porque alguma coisa acontecera com ele.

Visões de pesadelo lampejaram pela mente de To-rak. E se Lobo tivesse tentado abater sozinho um auroque ou um alce? Ele tinha apenas vinte luas de idade. Uma pata veloz pode matar um jovem lobo imprudente.

Talvez ele tivesse ficado preso em uma armadilha. Torak o ensinara a evitá-las, mas e se ele tivesse sido des-cuidado? Teria ficado preso. Incapaz de uivar com um laço apertado em volta de seu pescoço.

As árvores rangeram. Mais neve soltou-se abaixo. Torak colocou as mãos nos lábios e uivou. Onde... está... você?

Nenhuma resposta. Renn lançou-lhe um sorriso preocupado, mas em

seus olhos negros ele viu refletida a sua própria aflição. — O sol está descendo — disse ela. Ele engoliu em

seco. — Daqui a pouco, a lua vai subir. Haverá luz sufi-

ciente para rastrear. Ela concordou, indecisa, com a cabeça. Tinham dado mais alguns passos quando ela se vi-

rou de lado. -Torak! Bem ali! Quem quer que houvesse capturado Lobo o fizera

com a mais simples das armadilhas. Cavara um buraco e ó escondera com um frágil trançado de galhos cobertos de neve.

Isso não o teria contido por muito tempo, mas, na neve remexida em volta do buraco, Torak encontrou pe-daços de couro cru trançado.

— Uma rede — deduziu ele, incrédulo. — Eles ti-nham uma rede.

— Mas... não há espetos no buraco — observou Renn. — Deviam querer Lobo vivo.

Era realmente um pesadelo, pensou Torak. Vou acordar e Lobo vai surgir trotando por entre as árvores.

Foi quando ele viu o sangue. Um chocante salpico vermelho na neve branca.

— Talvez ele os tenha mordido — sugeriu Renn. — Espero que sim, tomara que tenha mordido a mão de-les!

Torak apanhou um tufo de pêlo ensangüentado. Seus dedos tremeram. Forçou a si mesmo a ler a neve.

Lobo se aproximara cautelosamente da armadilha, suas pegadas variando de trote em linha reta para cami-nhada, na qual as marcas deixadas pelas patas dianteiras e traseiras surgiam lado a lado. Mas, de qualquer modo, ele se aproximara.

Oh, Lobo, disse Torak silenciosamente. Por que não foi mais cuidadoso?

Então ocorreu-lhe que talvez a sua amizade com Lobo tivesse feito com que este passasse a confiar mais em gente. Talvez a culpa tivesse sido dele.

Olhou para a trilha pisoteada que levava ao norte. Gelo se formava nos rastros. Os captores de Lobo tinham uma boa vantagem sobre eles.

— Quantos conjuntos de pegadas? — quis saber Renn, bem atrás, já que Torak era de longe um melhor rastreador.

— Duas. As pegadas do homem maior ficam mais profundas quando ele corre.

— Então... ele está carregando Lobo. Mas por que o levaria? Ninguém faria mal a Lobo. Ninguém ousaria. — Tratava-se de uma rigorosa lei do clã que não se devia causar nenhum dano a qualquer um dos caçadores na Flo-resta.

— Torak — chamou ela, acocorando-se atrás de uma moita de zimbro. — Eles se esconderam aqui. Mas não consigo entender...

— Não se mexa! — alertou Torak. — O que foi? — Ali, perto de sua bota! Ela gelou. — O que... fez isso? Ele se agachou para examinar aquilo. Seu pai o ensinara a rastrear e ele achava que co-

nhecia cada pegada de cada animal da Floresta, mas aque-las eram as mais estranhas que ele já vira. Bem fracas e pequenas, como as de um passarinho — mas não eram. As pegadas traseiras pareciam minúsculas mãos tortas com cinco garras, mas não havia pegadas dianteiras, ape-nas marcas de dois buracos: como se a criatura andasse sobre cotos.

— Que presa estranha — murmurou Torak. Renn encontrou os olhos dele.

— Isca. Eles a usaram como isca. Torak levantou-se.

— Foram para o norte, na direção do vale Cabo-de-machado. Aonde poderiam ir dali?

Ela jogou os braços para cima. — Para qualquer lugar! Poderiam virar para o leste,

para o Lago Cabeça-de-machado, e seguir em frente o tempo todo até as Montanhas Altas. Ou virar de volta pa-ra o sul, para a Floresta Profunda. Ou para oeste, onde já estariam na metade do caminho para o Mar...

Vozes, vindo na direção deles. Agacharam-se atrás dos zimbros. Renn preparou

seu arco e Torak retirou do cinto sua machadinha de ba-salto negro.

Fossem quem fossem, não faziam qualquer tentati-va de caminhar furtivamente. Torak viu um homem e uma mulher, seguidos por um enorme cachorro arrastando um trenó no qual vinha estirado um corço morto. Um menino com cerca de oito verões precipitava-se ansiosamente adi-ante e, com ele, um cachorro mais jovem com um alforje de couro de veado preso à sua barriga.

O cachorro mais jovem captou o cheiro de Lobo em Torak, lançou-lhe um latido amedrontado e recuou correndo até o menino, que parou. Torak avistou a tatua-gem de clã entre suas sobrancelhas: três finos ovais pretos, como um permanente franzido de testa.

Renn respirou aliviada. — Clã do Salgueiro! Talvez eles tenham visto algo! — Não! — Ele puxou-a de volta. — Não sabemos

se podemos confiar neles! Ela encarou-o. — Torak, são Salgueiros! Claro que podemos. —

Antes que ele pudesse detê-la, Renn correu na direção do grupo, ambos os punhos sobre o coração em sinal de ami-zade.

Eles a viram e abriram um sorriso. Estavam voltan-do ao seu clã, no oeste, explicou a mulher. O rosto dela tinha cicatrizes, como lesões em casca de vidoeiro, o que a

distinguia como uma sobrevivente da doença do último verão.

— Vocês encontraram alguém? — perguntou Renn. — Nós estamos procurando...

— Nós? — indagou o homem. Torak levantou-se. — Vocês vieram do norte. Viram alguém? Os olhos do homem pestanejaram diante das tatua-

gens de clã de Torak e sua sobrancelha ergueu-se. — Ultimamente, não se encontram muitos do Clã

do Lobo. — Em seguida, para Renn: — Vocês são muito jovens para estar caçando tão distante de seu acampamen-to.

Renn conteve-se. — Nós dois temos treze verões de idade. E temos

permissão do Líder... — Vocês viram alguém? — interrompeu Torak. — Eu vi — disse o menino. — Quem? — berrou Torak. — Quem era? O me-

nino recuou, assustado com a fúria dele. — Eu... Eu fui procurar o Mordedor. — Apontou

para seu cachorro, que sacudiu ligeiramente a cauda. — Ele gosta de caçar esquilos, mas se perdeu. Então eu vi eles. Tinham uma rede e ela se contorcia. Então ele ainda está vivo, pensou Torak. Seus punhos estavam fechados com tanta força que as unhas penetravam nas palmas.

— Qual era a aparência deles? — perguntou Renn. O menino ergueu o braço acima da cabeça.

— Um homem enorme. E outro grande, com per-nas arqueadas.

— E as tatuagens de clã deles? — indagou Torak. — Peles de animais de clã? Qualquer coisa!

O menino engoliu em seco.

— Eles usavam capuzes, não vi o rosto deles. To-rak virou-se para o homem do Salgueiro.

— Pode levar uma mensagem para Fin-Kedinn? — Seja o que for — disse o homem —, você deve-

ria dizer-lhe pessoalmente. O Líder dos Corvos é sábio e saberá o que fazer.

— Não há tempo — alegou Torak. — Diga-lhe que alguém levou Lobo. Diga-lhe que vamos resgatá-lo.

DOIS

A noite trouxe uma geada de quebrar os ossos, o

que tornou as árvores brancas e deixou quebradiça a cros-ta de neve sob os pés.

Passava da meia-noite e Torak estava tonto de e-xaustão. Ele se forçou a prosseguir. A trilha dos captores de Lobo estendia-se como uma cobra sob o luar. Norte, sempre norte.

Com uma brusquidão de parar o coração, sete Ma-gos assomaram diante dele. Sombras esguias, chifrudas, cortaram seu caminho. Nós governaremos a Floresta, sussurra-ram em vozes mais frias do que neve carregada pelo ven-to. Todos tremem diante de nossa presença. Nós somos os Devora-dores de Almas...

Uma mão tocou seu ombro. Ele deu um berro. — O que foi? — perguntou Renn. Torak piscou. Diante dele, sete pés de vidoeiro res-

plandeciam com a geada. — Um sonho. — Sobre o quê? — Renn sabia algo sobre sonhos,

porque às vezes os seus se tornavam realidade. — Nada — disse Torak. Ela deu uma bufadela de

descrença. Continuaram a penosa caminhada, sua respira-ção fumegando no ar gelado.

Torak ficou imaginando se o seu sonho significava algo. Seria... Seria possível que os Devoradores de Almas esti-vessem por trás do desaparecimento de Lobo?

Mas o que poderiam querer com Lobo? Além do mais, não fora encontrado qualquer vestí-

gio deles. Desde a doença do último verão, Fin-Kedinn havia falado com cada clã da Floresta Aberta e enviara mensagens à Floresta Profunda e aos clãs do Mar e da Montanha. Nada. Os Devoradores de Almas tinham su-mido como um urso no inverno.

Mesmo assim... Lobo continuava desaparecido. Torak sentia como se caminhasse em meio a uma

nevasca de ignorância e medo. Erguendo a cabeça, avistou alto no céu o grande touro Auroque. Sentiu a maldade de seu frio olho vermelho e combateu uma crescente onda de pânico. Primeiro, ele perdera seu pai. Agora, Lobo. E se nunca mais visse Lobo? E se ele já estivesse morto?

As árvores rareavam. Diante deles, reluzia um rio congelado, ziguezagueado com pegadas de lebre. Em suas ribanceiras, as umbelas de cicuta mortas estendiam dedos espigados em direção às estrelas.

Uma manada de cavalos da floresta assustou-se e saiu em tropel através do gelo, e então virou-se para ob-servar. Suas crinas permaneceram esticadas como pingen-tes de gelo e, em seus olhos iluminados pelo luar, Torak vislumbrou um reflexo de seu próprio medo.

Em sua mente, viu Lobo com a aparência que tinha exatamente antes de sumir: magnífico e altaneiro. Torak o

conhecia desde que ele era um filhote. Na maior parte do tempo, ele era simplesmente Lobo: esperto, curioso e fe-rozmente leal. Às vezes, era o guia, com uma misteriosa certeza em seus olhos cor de âmbar. E era sempre um ir-mão de alcatéia.

— O que eu não entendo — disse Renn, interrom-pendo seus pensamentos — é por que levaram Lobo, afi-nal de contas?

— Talvez seja uma armadilha. Talvez eles queiram a mim, e não Lobo.

— Também pensei nisso. — Sua voz baixou de tom. — Talvez... quem levou Lobo está atrás de você porque — ela hesitou. — Porque você é um espírito er-rante, e querem o seu poder.

Ele hesitou. Odiava ser um espírito errante. E odi-ou o fato de ela ter dito aquilo em voz alta. A sensação foi a de ter uma casca de ferida arrancada.

— Mas, se estavam atrás de você — insistiu ela —, por que simplesmente não o levaram? Eram dois homens fortes, nós não seríamos páreo para eles. Então por que...

— Eu não sei! — estourou Torak. — Por que con-tinua com isso? Do que adianta?

Renn encarou-o. — Eu não sei por que levaram ele! — gritou ele. —

Não ligo se for uma armadilha! Eu só quero Lobo de volta! Depois disso, eles não se falaram. Os cavalos da

floresta haviam pisoteado os rastros e, por algum tempo, ficaram perdidos, o que pelo menos lhes deu uma descul-pa para se separarem. Quando Torak voltou a encontrar os rastros, eles tinham mudado. Para pior.

— Eles fizeram um trenó — observou. — Não há cachorros para puxá-lo, mas, mesmo sem eles, consegui-

rão ir muito mais depressa colina abaixo. Renn olhou para o céu. — Está nublando. A gente devia construir um abri-

go. Descansar um pouco. — Se você quiser, pode descansar, eu vou prosse-

guir. Ela colocou as mãos sobre os quadris. — Sozinho? — Se for preciso. — Torak. Ele também é meu amigo. — Ele não é apenas meu amigo — retrucou —,

mas meu irmão de alcatéia! Torak pôde perceber que a magoara. — E como — disse ela entre os dentes — deixar

de ver algumas coisas vai ajudar Lobo? Ele fitou-a. — Eu não deixei de ver nada. — Ah, não? Alguns passos atrás, um deles se sepa-

rou para seguir aquelas pegadas de lontra. — Que pegadas de lontra? — É disso que estou falando! Você está exausto! Eu

também! Ele sabia que ela tinha razão. Mas não queria admi-

tir. Em silêncio, encontraram um abeto vermelho der-

rubado por tempestade e cavaram a neve de sua base para criar um espaço de dormir provisório. Cobriram-no com galhos de abeto e usaram os sapatos de neve como pás para acumular uma grossa camada de neve. Finalmente, arrastaram mais galhos para dentro e colocaram por cima seus sacos de dormir de pele de rena. Ao terminar, tremi-am de fadiga.

Da bolsinha de iscas, Torak retirou seu trisca-fogo

e alguns pedaços de casca de vidoeiro e acendeu uma fo-gueira. A única madeira morta que ele encontrara fora a do abeto e por isso ela fumegava e cuspia. Ele estava e-xausto demais para se importar.

Renn torceu o nariz para a fumaça, mas não recla-mou. Retirou da mochila um rolo de lingüiça de sangue de alce e cortou-o em três, colocou um pedaço no telhado do abrigo para o guardião do clã e jogou outro para Torak. Ao enfiar a sua parte na bolsa de comida, ela apanhou sua machadinha e a pele de água.

— Vou até o rio. Há mais carne em minha mochila, mas não toque nos mirtilos secos.

— Por quê? — Porque — disse ela, irritada — estou guardan-

do-os para Lobo! Após ela sair, Torak forçou-se a comer. Depois rastejou para fora do abrigo e fez uma oferenda.

Cortou um cacho de seu comprido cabelo escuro, amarrou em volta de um galho do vidoeiro caído. Em se-guida, colocou a mão sobre a pele de sua criatura de clã: o pedaço esfarrapado de pele de lobo cerzido no ombro de sua parca.

— Floresta — disse ele —, ouça-me. Peço por cada uma de minhas três almas... pela minha alma-nome, minha alma-clã e minha alma-mundo... peço que cuide de Lobo e não deixe que ele se machuque.

Foi somente quando terminou que ele notou um cacho de cabelo vermelho-escuro amarrado a outro galho. Renn fizera a sua própria oferenda.

Isso fez com que ele se sentisse culpado. Não devia ter gritado com ela.

De volta ao abrigo, tirou as botas, meneou-se para dentro de seu saco de dormir e ficou deitado ali, olhando

a fogueira, sentindo o bolor da pele de rena e o penetrante cheiro amargo do abeto vermelho.

Bem longe, uma coruja piou. Não o familiar “ruuu-ruuu” de uma coruja cinzenta da Floresta, mas o grave “uu-ru, uu-ru, uu-ru” de um bufo-branco.

Torak tremeu. Ele ouviu as passadas de Renn triturando a neve e

gritou para ela: — Você fez uma oferenda. Eu também. Como

Renn não respondeu, ele acrescentou: — Desculpe por eu ter estourado com você. Foi

apenas... Bem. Desculpe. Ainda sem resposta. Ele ouviu seu triturar em direção ao abrigo — e

depois seguir para I parte de trás. Ele sentou-se. — Renn? As passadas pararam. Seu coração começou a martelar. Não era Renn. O

mais silenciosamente que pôde, ele meneou para fora do saco de dormir, calçou as botas e alcançou a machadinha.

As passadas chegaram mais perto. Fosse quem fos-se, estava apenas à distância de um braço, separado por uma frágil parede de abeto. Por um momento, houve si-lêncio. Então — bem alto na quietude — Torak ouviu uma respiração úmida, borbulhante.

Sua pele formigou. Pensou nas vítimas da doença do último verão. A luz assassina em seus olhos; o visgo contagiante em suas gargantas... Pensou em Renn, sozinha no rio. Rastejou em direção à entrada do abrigo.

Nuvens cobriam a lua e a noite era negra. Captou um cheiro de carne podre. Ouviu novamente a respiração borbulhante.

— Quem é você? — gritou ele na escuridão. A respiração parou. O silêncio era absoluto. O si-

lêncio de algo esperando no escuro. Torak arrastou-se para fora do abrigo e pôs-se de

pé, segurando a machadinha com ambas as mãos. Fumaça pinicava seus olhos, mas no período de uma pulsação ele vislumbrou uma enorme forma se misturando às sombras.

Um grito ressoou às suas costas — e ele virou-se para ver Renn cambalear por entre as árvores.

— Perto do rio! — ofegou ela. — Como fedia, foi horrível!

— Ele esteve aqui — disse-lhe. — Chegou perto. Eu o ouvi. Costas com costas, eles encararam a Floresta. O que quer que tivesse sido, sumira, deixando apenas um cheiro de carne podre e a temível lembrança da respiração borbulhante.

Dormir agora era impossível. Alimentaram a fo-gueira e sentaram-se juntos, esperando a alvorada.

— O que você acha que era? — perguntou Renn. Torak sacudiu a cabeça.

— Mas de uma coisa eu sei. Se Lobo estivesse com a gente, essa coisa jamais teria chegado tão perto.

Encararam o fogo. Com Lobo desaparecido, não haviam perdido apenas um amigo. Perderam alguém que os protegia de perigos.

TRÊS

Não ouviram mais nada naquela noite, mas, pela

manhã, encontraram pegadas. Enormes, parecidas com humanas — mas sem dedos do pé.

As pegadas em nada se pareciam com as de pés com botas dos homens que haviam capturado Lobo, mas seguiam pelo mesmo caminho.

— Agora são três — observou Renn. Torak não retrucou. Não tinham escolha, a não ser

segui-los. O céu estava carregado com a neve e a Floresta es-

tava repleta de sombras. A cada passo, temiam ver uma figura lançar-se na direção deles. Demônio? Devorador de Almas? Ou alguém do Povo Oculto, cujas costas são ocas como árvores apodrecidas...

O vento aumentou. Torak observou a neve se acu-mular nas pegadas e pensou em Lobo.

— Se o vento continuar aumentando, as pegadas não durarão muito.

Renn esticou o pescoço para seguir o vôo de um

corvo. — Se ao menos pudéssemos ver o que ele pode.

Torak deu uma olhada pensativa para a ave. Começaram a descida para o vale seguinte através

de um bosque de pés de vidoeiros. — Olhe — chamou Torak. — Sua lontra esteve

aqui antes de nós. — Apontou para uma fila de pegadas entrelaçadas e um longo e liso sulco na neve. Ela saltara para o declive e escorregara de barriga, como as lontras adoram fazer.

Renn sorriu e, por um momento, imaginaram uma lontra feliz deslizando na neve.

A lontra, porém, não alcançou o lago congelado ao pé da colina. A sotavento de uma grande pedra, vinte pas-sos acima da praia, Torak encontrou escamas de peixes espalhadas e uma tira de couro cru.

— Eles a capturaram — disse. — Por quê? — surpreendeu-se Renn. — Lontras

são Caçadoras... Torak sacudiu a cabeça. Aquilo não fazia sentido. Subitamente, Renn ficou tensa.

— Esconda-se! — cochichou, puxando-o para trás da pedra.

Por entre as árvores, Torak captou movimentos no lago. Uma criatura bufando, indo de um lado a outro, à procura de algo. Era muito alto, com a pele felpuda e uma juba emaranhada que quase arrastava no chão. Torak sen-tiu cheiro de carne podre e ouviu uma respiração úmida, borbulhante. Então a coisa se virou e ele viu um rosto i-mundo, caolho, tão áspero quanto casca de árvore. Ofe-gou.

— Não pode ser! — sussurrou Renn. Eles se entreo-lharam.

— O Caminhante! No outono antes do anterior, o caminho deles atra-

vessara o desse terrível velho maluco. Tinham tido sorte de escapar com vida.

— O que ele faz tão longe de seu vale? — murmu-rou Torak enquanto se encolhiam ainda mais atrás da pe-dra.

— E como vamos passar por ele sem sermos vis-tos? — sibilou Renn.

— Talvez... a gente não passe. — 0 quê? — Talvez ele tenha visto quem pegou Lobo! — Já esqueceu — disse ela, num cochichar furioso

— que ele quase nos matou? Que ele jogou a minha aljava no riacho e ameaçou quebrar o meu arco”? — Não ficou cla-ro o que ela considerava pior: a ameaça contra eles ou contra seu arco.

— Mas ele não quebrou, quebrou? — rebateu To-rak. — Ele deixou a gente ir. E, Renn. E se ele viu alguma coisa?

— Quer dizer que vai perguntar a ele, é isso? To-rak, ele é doido! O que quer que ele diga, a gente não pode acreditar nele!

Torak abriu a boca para retrucar... ...e a neve em volta deles explodiu.

— Devolva! — urrou o Caminhante, brandindo sua faca de ardósia verde. — Ela pegou o fogo dele! Ela enga-nou ele! O Caminhante quer de volta!

— O Caminhante enganou os enganadores — ber-rou, pressionando-os contra a pedra. — Agora têm de devolver ele!

Sua juba era um emaranhado de barba-de-velho,

seus membros esqueléticos tão retorcidos quanto raízes. Listras de muco esverdeado pendiam como trepadeiras de seu nariz quebrado e de sua podre boca desdentada.

Ele deixara sua capa sobre o gelo para enganá-los e estava nu, a não ser por uma tanga de couro endurecida pela sujeira, nos pés faixas bolorentas de trançado de fi-bras de casca de árvore, e um râncido gibão feito de pele de veado-vermelho, a qual ele arrancara da carcaça e se esquecera de limpar. A cauda, as pernas e os cascos balan-çavam-se loucamente enquanto agitava sua faca diante do rosto deles.

— Ela pegou! — gritou, sujando-os de muco. — Ela enganou ele!

— Eu... Eu não levei nada — gaguejou Renn, es-condendo o arco atrás das costas.

— Não se lembra de nós? — perguntou Torak. — Nunca roubamos nada!

— Ela não! — rosnou o Caminhante. — Ela! — Veloz como uma enguia, uma mão encardida surgiu e a-garrou Torak pelo cabelo. Sua cabeça foi puxada para trás, suas armas jogadas sobre a neve.

— A de lado — bafejou o Caminhante, atingindo-o com um fedor de fazer os olhos lacrimejarem. — Culpa dela que Narik esteja perdido!

— Mas nós não fizemos nada! — alegou Renn. — Largue ele!

— Machado! — cuspiu o Caminhante, fitando-a com seu olho injetado. — Faca! Flechas! Água! Na neve, depressa depressa depressa!

Renn fez como ele mandou. O Caminhante pressionou sua faca contra a tra-

quéia de Torak, impedindo-o de respirar.

— Ela dá seu fogo para ele ou ele corta a garganta do lobo do garoto! E ele vai fazer isso, se vai!

Manchas negras dispararam diante dos olhos de Torak.

— Renn — ofegou —, trisca-fogo... — Tome! — gritou Renn, remexendo em sua bolsa

de iscas de fazer fogo. Destramente, o velho agarrou a pedra e jogou To-

rak no chão. — O Caminhante tem fogo! — exultou ele. — Lin-

do fogo! Agora ele pode achar Narik! Esse seria o momento de fugir. Torak sabia e Renn

também. Nenhum dos dois se mexeu. — A de lado — arquejou Torak, massageando a

garganta. — Quem é ela? — perguntou Renn. O velho virou-se para ela, que se esquivou do açoi-

te de uma pata. — Mas o Caminhante é doido — escarneceu ele ─,

portanto quem vai acreditar nele? Agarrando uma das patas do veado, ele sugou o

couro supurado. — A de lado — murmurou. — Não sozinha, ah

não, ah não. Pernas tortas e pensamentos velozes. — Pi-garreou e escarrou, quase acertando em Torak. — Grande como uma árvore, esmagando os pequenos animais, os rastejadores e os corredores fracos demais para reagir. — Um espasmo de dor contorceu suas feições devastadas. — Pior — sussurrou —, a Mascarada. A mais cruel dos cru-éis.

Renn lançou um olhar horrorizado para Torak. — Mas o Caminhante segue — sibilou o velho. —

Ah, sim, ah, sim, ele ouve no frio. — Aonde eles vão? — perguntou Torak. — Lobo

ainda está vivo? — O Caminhante nada sabe de lobos Eles procuram

terras vazias! O Distante Norte! — Coçou as tatuagens cobertas de crostas em sua garganta. — Primeiro, você está com frio, depois não está. Então sente calor, depois morre. — Seu olho brilhou na direção de Torak e ele ar-reganhou os dentes. — Eles vão abrir a Porta!

Torak engoliu em seco. — Que porta? Onde? O velho gritou e socou a testa com o punho. — Mas onde está Narik? Eles o guardam e o guar-

dam e Narik está perdido! — Virou-se e foi cambaleando na direção do lago.

Torak e Renn trocaram olhares — então recolhe-ram suas armas e correram atrás dele.

Fora do gelo, o Caminhante recuperou a capa pelu-da e reiniciou a sua busca bufante. Uma das ataduras dos pés soltou-se e foi carregada pelo vento.

Torak trouxe-a de volta e retraiu-se. O pé do velho estava enegrecido, ulcerado pelo frio, era um toco sem dedos.

— O que aconteceu? O Caminhante deu de ombros. — O que sempre acontece quando se perde o fogo.

Ele mordeu seus dedos e ele cortou fora. — o que foi que mordeu ele? — indagou Renn. — Ele! Ele! — Socou o vento com os punhos. De repente, seu rosto modificou-se e, por um mo-

mento, Torak viu o homem que ele fora antes do acidente que levara o seu olho e o seu juízo.

— Ele nunca descansa, o vento, ou deixaria de exis-tir. É por isso que é furioso. É por isso que morde os de-dos do pé do Caminhante. — Estalou a língua. — Arre, o gosto é muito ruim! Nem mesmo o Caminhante conseguiu comer eles! Teve de cuspir tudo e deixar eles para as rapo-sas.

Torak sentiu o estômago se revirar. Renn tapou a boca com ambas as mãos.

— E agora o Caminhante vive caindo. Mas ainda procura por seu Narik. — Enfiou o nó do dedo na órbita vazia do olho.

Narik, pensou Torak. O camundongo que fora a adorada companhia do velho.

— Eles levaram Narik também? — perguntou, de-terminado a mantê-lo falando.

O Caminhante sacudiu tristemente a cabeça. — Às vezes, Narik vai embora. Ele sempre volta,

com nova pelagem. Mas não desta vez. — Nova pelagem? — estranhou Renn. — Sim, sim! — afirmou irritado o Caminhante!. —

Lemingue. Arganaz. Camundongo. Não importa o que seja, continua sendo o mesmo Narik!

— Ah! — fez Renn. — Entendi. Nova pelagem. — Só que, desta vez — disse o Caminhante, «.boca

retorcida pela aflição —, Narik não voltou! — Afastou-se cambaleando pelo gelo, uivando pela sua cria.

Quase com relutância, eles o deixaram e seguiram seu caminho para o interior da mata no outro lado do la-go.

— Ele vai se sentir melhor agora que tem fogo — comentou Renn baixinho.

— Não, não vai — contrapôs Torak. — Não sem

Narik. Ela suspirou. — Narik está morto. Uma coruja provavelmente o

comeu como refeição noturna. — Ou, então, outro Narik. — Ele encontrará um. — Ela tentou sorrir. — Um

com nova pelagem. — Como? Como pode rastrear um camundongo,

com um olho só? — Vamos. E melhor irmos embora. Torak hesitou. O sol estava baixando, a trilha desa-

parecendo rapidamente debaixo da neve soprada pelo vento. Entretanto, o Caminhante o comoveu. Aquele ve-lho maluco, fedorento, rabugento, encontrara uma cente-lha de afeto em sua vida: seu Narik, sua cria. Agora a cen-telha se perdera.

Antes que Renn pudesse protestar, Torak largou seus petrechos no chão e correu de volta para o lago.

O velho não ergueu a vista, nem Torak falou com ele. Baixou a cabeça e começou a procurar por sinais.

Não demorou muito para encontrar a cova de um lemingue. Localizou rastros de doninha e os seguiu até uma moita de salgueiros na margem. Ali ele se acocorou, à escuta dos leves ruídos de escavação com as garras que lhe diziam onde os lemingues se entocavam.

Com seus muitos buracos de entrada, como picadas de faca, o abrigo de inverno deles lhe lembrou uma ex-tremamente pequena lura de texugo. Examinando a neve, encontrou um buraco margeado com pequeninas setas de gelo de bafo congelado. Isso significava que o morador estava em casa.

Marcou o local com dois gravetos de salgueiro cru-zados e correu para buscar o velho.

— Caminhante — falou delicadamente. O velho fez meia-volta.

— Narik. Está bem ali. O Caminhante olhou-o de banda. Então seguiu To-

rak de volta aos gravetos cruzados. Enquanto Torak observava, ele ajoelhou-se e co-

meçou a limpar a neve com a delicadeza e a leveza de uma pluma, inclinando-se à frente para afastar com um sopro os últimos flocos.

Ali, enroscado em sua cova, sobre um caprichado leito de grama seca, encontrava-se um lemingue com mais ou menos o tamanho da palma de Torak: uma macia, pe-sada bola de pêlo negro e laranja.

— Narik — sussurrou o Caminhante. O lemingue despertou com um sobressalto, pôs-se

de pé e soltou um terrível sibilo para afugentar o intruso. G Caminhante arreganhou os dentes e esticou a

enorme mão encardida. O lemingue afofou o pêlo e sibilou novamente O Caminhante não se mexeu. O lemingue sentou-se e coçou vigorosamente a

orelha com a pata traseira. Em seguida, caminhou humil-demente com um gingado até a mão coriácea, enroscou-se e voltou a dormir.

Torak deixou os dois sem nada dizer. De volta à praia, Renn entregou-lhe suas armas e o

fardo. — Foi uma coisa boa a que você fez — comentou.

Torak deu de ombros. Em seguida, sorriu. — Narik cresceu um pouco desde que ele o viu pe-

la última vez. Agora é um lemingue. Ela deu uma risada.

Não tinham ido muito longe, quando ouviram o esmagar de neve e o resmungo irritado do Caminhante.

— Oh, não — exclamou Renn. — Mas eu o ajudei! — alegou Torak. — Presenteando? — rugiu o Caminhante. Com uma

das mãos, brandia a faca; a outra mantinha Narik apertado contra seu peito. — Eles acham que podem simplesmente presentear e ir embora? Eles pensam que o Caminhante es-queceu os antigos modos?

— Caminhante, a gente lamenta — disse Torak —, mas...

— Um presente pede uma retribuição! É assim que as coisas funcionam! Agora o Caminhante precisa retribuir!

Torak e Renn ficaram imaginando o que viria a se-guir.

— Gelo negro — resfolegou o Caminhante —, ur-sos brancos, sangue vermelho. Eles buscam o olho da ví-bora!

Torak prendeu a respiração. — O que é isso? — Ora, ele descobrirá — respondeu o Caminhante

—, as raposas dirão para ele. De repente, ele curvou-se como uma árvore que-

brada pelo vento e o olhar que deu para Torak foi pruden-te e repleto de tanta dor que perfurou as suas almas.

— Entrar no olho — sussurrou — é entrar na es-curidão! Talvez você encontre novamente a sua saída, me-nino lobo; mas, uma vez que tiver entrado, você nunca mais será inteiro. Isso manterá uma parte sua lá embaixo. Lá embaixo, na escuridão.

QUATRO

O Escuro rastejou sobre a Floresta, mas Lobo nem

sequer notou. Estava preso num Escuro só seu: de ira e dor e medo.

A ponta de seu rabo doía onde fora pisoteada du-rante a luta e a pata dianteira estava machucada da mordi-da da grande garra fria. Ele não conseguia se mexer, pois estava espremido cm uma estranha árvore deslizante que os sem-rabos arrastavam sobre o Frio Macio Brilhante. Não conseguia se mexer nem mesmo para lamber suas feridas. Estava achatado sob uma pele de veado enrolada que o pressionava com força para baixo. Era diferente de qualquer pele que ele já vira. Tinha uma porção de bura-cos, mas, de algum modo, conseguia ser mais forte do que um osso da perna de um auroque.

Os rosnados dentro dele lutavam para se libertar, porém havia mais pele enrolada em seu focinho e ele não conseguia soltá-los. Isso era o pior de tudo: não poder rosnar ou morder ou uivar. Doeu ouvir Alto Sem-rabo

uivar por ele e não ser capaz de uivar de volta. Nítido o terno dentro de sua cabeça, Lobo via Alto

Sem-rabo e a fêmea correrem atrás dele. Estavam chegan-do. Lobo sabia disso com tanta certeza quanto conhecia o seu próprio cheiro. Alto Sem-rabo era seu irmão de alca-téia e um lobo nunca abandona seu irmão de alcatéia.

Mas Alto Sem-rabo seria capaz de encontrar Lobo? Ele era esperto, mas não tão bom assim em encontrar, pois não era um lobo normal. Ah, ele tinha cheiro de lobo (como uma porção de outras coisas também) e falava co-mo lobo, embora não conseguisse atingir os ganidos mais altos. E tinha os claros olhos cinzentos e o espírito de um lobo. Mas se movimentava lentamente nas patas traseiras e era muito ruim em captar cheiros.

De repente, a árvore deslizante estremeceu e parou. Lobo ouviu o áspero latido da faia dos sem-rabos; então o esmagar do Frio Macio Brilhante quando começaram a cavar seu Covil.

Atrás dele, na árvore, a lontra acordou e iniciou um deplorável miado. Continuou sem cessar até Lobo querer sacudi-la em suas mandíbulas para fazê-la parar.

Ouviu um sem-rabo se aproximar por trás. Lobo estava espremido demais para se virar e olhar, mas captou o cheiro de peixe. A lontra parou de miar e começou a fazer ruídos de mastigar. Foi um alívio.

Poucos trotes adiante, o Brilhante Bicho-que-morde-quente rosnou ao ganhar vida. Lobo observou os sem-rabo se juntarem à sua volta.

Eles o intrigavam. Até agora. Lobo achava que co-nhecia sua espécie. Pelo menos sabia qual era a alcatéia com a qual Alto Sem-rabo corria, a alcatéia que cheirava a corvo. Mas aqueles — aqueles eram maus.

Por que eles o atacaram? Os sem-rabos não são i-nimigos dos lobos. Os inimigos dos lobos são ursos e lin-ces, que entram furtivamente nos Covis para matar crias de lobos. Não os sem-rabos.

Claro que Lobo já encontrara antes alguns maus e

mesmo os bons às vezes rosnavam e sacudiam as patas dianteiras quando ele chegava perto demais da carne deles. Mas atacar sem prevenir? Nenhum lobo de verdade faria isso.

Forçando ouvidos e olhos e focinho, Lobo obser-vou a alcatéia malvada se acocorar em volta do Brilhante Bicho. Girou os ouvidos espremidos para ouvir e farejou, na tentativa de classificar seus cheiros misturados.

A fêmea esguia cheirava a folhas frescas, mas sua língua era negra e pontuda como a de uma víbora e seu riso de banda era vazio como uma carcaça bicada por cor-vos.

A outra fêmea, a maior com as pernas traseiras tor-tas, era esperta, mas Lobo sentiu que estava insegura em relação ao seu lugar no bando e insegura de si mesma. Em sua sobrepele, havia um remendo de pele fedorenta. Era a pele da estranha presa que o havia atraído à armadilha.

O último na alcatéia era um homem enorme com um comprido pêlo desbotado sobre a cabeça e focinho e o bafo que fedia a sangue de abeto. Ele era o pior, pois gostava de machucar. Ele riu quando pisou na cauda de Lobo e cortou a parte polpuda de sua pata com a grande garra fria.

Foi esse pêlo-desbotado que agora se ergueu nas patas traseiras e veio em direção a Lobo.

Lobo soltou um rosnado abafado.

Pêlo-desbotado trincou os dentes e colocou sua grande garra perto do focinho de Lobo.

Lobo recuou. Pêlo-desbotado gargalhou ao sentir o medo de Lo-

bo. Mas o que significava aquilo? O focinho de Lobo

estava livrei Pêlo-desbotado soltara o focinho dele! Lobo aproveitou a chance e deu o bote... mas a pele

de veado o conteve e ele não conseguia colocar as mandí-bulas em volta dela para mordê-la e se soltar.

Em seguida veio a outra, a grande fêmea torta com o pêlo fedorento.

Pêlo-desbotado golpeou Lobo novamente, mas Pe-le-Fedorenta rosnou para ele. Pêlo-desbotado fez cara feia para mostrar a ela quem era o líder, e então afastou-se sor-rateiramente.

Acocorando-se ao lado de Lobo, Pele-Fedorenta enfiou um pedaço de carne de alce por um buraco da pele de veado.

Lobo ignorou-o. Será que esses sem-rabos pensa-vam que ele era estúpido? Pensavam que era um cachorro, que aceitava carne de qualquer um?

Pele-Fedorenta jogou as patas dianteiras para cima e foi embora.

Agora a fêmea de língua de víbora deixou o Bri-lhante Bicho e veio até Lobo. Agachando-se sobre as co-xas, ela falou suavemente com ele.

Mesmo sem querer, ele escutou. Sua voz lembrou-lhe um pouco a fêmea que era a irmã de alcatéia de Alto Sem-Rabo, cuja fala era aguçada e astuta, mas suave por baixo. Enquanto ouvia a fêmea de língua de víbora, sentiu pelo faro que ela não o temia; que estava curiosa.

Ele retraiu-se quando ela estendeu sua pata diantei-ra em direção a ele, mas não o tocou. Em vez disso, ele sentiu frieza em seu flanco. Seus bigodes tremeram. Ela lambuzava seu pêlo com sangue de alce!

O cheiro era tão deliciosamente de dar água no fo-cinho que isso afastou tudo o mais de sua cabeça. Após muito pelejar, ele torceu o corpo e começou a lamber.

Ele sabia que era estranho a fêmea ter feito aquilo e algo em sua voz deixava-o alerta, mas não conseguia pa-rar. O desejo por sangue o apanhou em suas garras, e a força do alce já percorria seus membros. Continuou lam-bendo.

Lobo estava ficando muito cansado. Havia uma né-voa negra em sua cabeça, e ele mal conseguia manter os olhos abertos. Sentia como se uma enorme pedra o esma-gasse.

Em meio à névoa, ele ouviu a suave, maliciosa risa-da da fêmea de língua de víbora e percebeu que ela o havia enganado. O sangue de alce com o qual ela o alimentara era ruim e agora ele mergulhava no Escuro.

A névoa ficou mais espessa. O medo apanhou-o em suas mandíbulas. Com uma última contração da men-te, ele enviou um uivo silencioso para Alto Sem-rabo.

CINCO

— Você está com medo? — perguntou Torak. —

Estou — respondeu Renn. — Eu também. Estavam parados na beira da Floresta, debaixo da

última — exatamente a última — árvore. Diante deles, estendia-se uma terra branca vazia sob um céu interminá-vel. Aqui e ali, um abeto mirrado resistia ao furioso ataque do vento, mas esse era o único sinal de vida.

Eles agora estavam mais ao norte do que já tinham estado os clãs da Floresta, com exceção de Fin-Kedinn, o qual, quando jovem, viajara até as terras congeladas. Nos dois dias desde o encontro com o Caminhante, eles havi-am atravessado três vales e vislumbrado o clarão do rio de gelo na base das Montanhas Altas — onde, no inverno anterior ao último, os Corvos haviam acampado e Torak saíra em busca da Montanha do Espírito do Mundo.

Ficaram parados, com o vento norte em seus ros-tos, encarando a trilha dos captores de Lobo: um talho brutal através da neve.

— Não creio que consigamos fazer isso sozinhos — arriscou Renn. — Precisamos de ajuda. Precisamos de Fin-Kedinn.

— Não podemos voltar agora — rebateu Torak. — Não há tempo. Ela ficou em silêncio. Desde o encontro deles com o Caminhante, Renn estivera estranhamente calada. Torak ficou imaginando se ela também estivera pensando no que o velho dissera. Pernas tortas e pensamentos velozes... a de lado... Grande como uma árvore... Isso provocara ecos em sua mente: ecos de Fin-Kedinn falando sobre os Devoradores de Almas. Mas ele não conseguia mencioná-los em voz alta. Não podiam ser eles. Por que teriam leva-do Lobo e não ele?

Portanto, afinal, tudo o que ele disse foi: — Lobo precisa de nós.

Renn não retrucou. Subitamente, Torak foi dominado pelo temor de

que ela desse meia-volta e o deixasse prosseguir sozinho. O temor foi tão intenso que o deixou sem fôlego.

Ele observou-a limpar a neve de seu arco e acomo-dá-lo no ombro. E preparou-se para o pior.

— Você tem razão — disse ela abruptamente. — Vamos. — Sem olhar para trás, ela deixou o abrigo das árvores.

Ele seguiu-a para as terras vazias. Assim que deixaram a Floresta, o céu os oprimiu e

o vento norte esfregou seus rostos com neve. Na Floresta, Torak sempre estivera ciente do vento

— como caçador, tinha de estar — mas, fora as tempesta-des, ele nunca fora uma ameaça, pois o poder da Floresta o refreava. Ali fora, nada era capaz de contê-lo. Era mais forte, mais frio, mais selvagem: um espírito maligno, invi-

sível, que viera atormentar aqueles intrusos insignificantes. As árvores tomaram-se menores e mais esparsas,

até encolherem para um ocasional pé de salgueiro ou de vidoeiro da altura do joelho.

Então... nada. Nenhum verde. Nenhum caçador. Nenhuma presa. Somente neve.

Torak virou-se e sentiu um choque ao ver que a Floresta diminuíra até se tomar um risco de carvão no ho-rizonte.

— É a extremidade do mundo — comentou Renn, erguendo a voz acima do vento. — Até onde isso vai? E se a gente cair?

— Se a extremidade do mundo fica adiante — de-duziu ele, então os captores de Lobo cairão primeiro.

Para sua surpresa, ela lhe deu um sorriso de dentes bem arreganhados.

O dia se esgotou. A neve era mais firme do que na Floresta, portanto não precisavam de seus sapatos de ne-ve, mas o vento norte soprava como cunhas baixas, duras, derrubando-os.

Então, subitamente, o vento amainou. Agora so-prava suavemente do nordeste.

A princípio, foi um alívio. Nesse momento, Torak se deu conta do que acontecia. Não conseguia ver seus pés. Estava parado em um rio de neve. Em volta de suas panturrilhas, compridas, fantasmagóricas correntes fluíam como fumaça, apagando a trilha.

— O vento está apagando as pegadas! — gritou ele. — Ele sabe que precisamos delas e por isso as está destru-indo!

Renn correu à frente para ver se o rastro estava mais claro. Jogou os braços para cima.

— Nada! Nem mesmo você conseguiria encontrá-las! — Quando Renn correu de volta, ele viu a expressão dela e seu coração se abateu. Torak sabia o que ela ia di-zer, pois ele mesmo estava pensando nisso. — Torak, isto é um erro! Não conseguiremos sobreviver aqui. Temos de voltar.

— Mas tem gente que vive aqui, não tem? — insis-tiu ele. — Os clãs do Gelo? Os Narvais, os Ptármigas, os Raposas-brancas? Não foi o que Fin-Kedinn disse?

— Eles sabem como. Nós não. — Mas temos carne seca e lenha. E podemos en-

contrar o nosso caminho pela Estrela do Norte. Podemos cobrir os olhos com trançado de fibras de casca de árvore para nos proteger do clarão e... há presas por ali. Tetraz. Lebre. Foi assim que Fin-Kedinn sobreviveu.

— E quando a lenha acabar? — perguntou Renn. — Tem aquele salgueiro de que falamos, o tipo que

só cresce até a altura dos joelhos, mas ainda se pode... — Consegue ver algum salgueiro por aqui? Está en-

terrado sob a neve! Seu rosto estava pálido e ele sabia que, por trás do que

ela disse, havia um temor ainda maior. Os clãs cochichavam histórias sobre o Distante Norte. Nevascas tão fortes que transportavam os seus gritos até o céu. Enormes ursos-branco maiores e mais ferozes do que qualquer um da Floresta. Nevadas que enterravam você vivo. E Renn co-nhecia nevadas. Quando tinha sete verões, seu pai se a-venturara pelo rio de gelo a leste do Lago Cabeça-de-machado. Ele nunca mais voltou.

— Não conseguiremos fazer isso sozinhos — disse ela. Torak esfregou a mão no rosto.

— Concordo. Pelo menos por esta noite. Vamos

montar acampamento. Ela pareceu aliviada. — Há uma colina ali adiante. Podemos cavar uma

caverna na neve. Ele concordou com a cabeça. — Depois, eu farei o que for necessário para en-

contrar o rastro. — O que quer dizer com isso? — indagou preocu-

pada. Ele hesitou. — Vou virar espírito errante. Ela ficou de queixo caído. — Torak. Não. — Escute. Desde quando vimos aquele corvo, te-

nho pensado nisso. Posso virar espírito errante dentro de um pássaro, tenho certeza. Posso ir bem alto no céu, en-xergar muito longe. Posso ver o rastro!

Renn cruzou os braços. — Pássaros voam. Você não. — Eu não precisaria — disse ele. — Minhas almas

estariam dentro do corpo do pássaro... digamos que fosse um corvo... eu veria o que o corvo vê. Sentiria o que ele sente. Mas continuaria sendo eu.

Ela caminhou em círculos e então o encarou: — Saeunn disse que você não está pronto. Ela é a

Maga do Clã. Ela sabe. — Eu fiz isso no verão passado... — Por acaso! E doeu! E você não conseguiu con-

trolar isso! Torak, suas almas podem ficar presas lá dentro, você pode nunca mais sair! Então, o que acontecerá com o seu corpo? O tal que ficará deitado na neve, com apenas sua alma-mundo mantendo-o vivo? — Sua voz era um guincho e havia dois borrões coloridos em suas boche-chas. — Você morrerá, é isso! Terei de ficar sentada na

neve e ver você morrer! Torak não podia argumentar, pois tudo o que ela

dizia era verdade. Então ele falou: — Preciso que você me ajude a encontrar um cor-

vo. Preciso de você para me ajudar a soltar as minhas al-mas. Vai ou não vai me ajudar?

SEIS

— Primeiro — disse Torak —, temos de atrair um

corvo. Esperou o comentário de Renn, mas ela dava ma-chadadas para fazer a caverna de neve, deixando bem cla-ro que não queria participar daquilo.

— Vi um ninho nos limites da Floresta — disse ele. A machadinha dela baixou e voaram nacos de neve.

— Fica distante um dia de caminhada — acrescen-tou ele —, mas eles podem estar pilhando mais aqui perto. E eu trouxe uma isca.

Ela deteve o próximo golpe no ar. — Que isca? De sua sacola, ele tirou um esquilo. — Eu o abati ontem. Enquanto enchia as peles de

água. — Você planejou isso — afirmou ela acusadora-

mente. Ele olhou de relance para o esquilo. — Hum. Eu achei que a gente pudesse precisar de-

le.

Renn retomou seu ataque contra a neve, batendo com mais força do que antes.

Torak pousou o esquilo a vinte passos de onde fica-ria o abrigo — para que, assim que sua alma-nome e sua alma-clã deixassem seu corpo, elas não tivessem de ir mui-to longe para entrar num corvo. Bem, era o que ele espe-rava. Não sabia se ia funcionar, pois nada sabia sobre ser um espírito errante. Ninguém sabia.

Sacou a faca, cortou a barriga do esquilo e ergueu-se para examinar o efeito.

— Não vai funcionar — gritou Renn. — Pelo menos estou tentando — rebateu ele. Ela enxugou a testa nas costas da mitene. — Não, o que eu quero dizer é que está fazendo er-

rado. Corvos são espertos demais para se deixar enganar por isso, vão ver que é uma armadilha.

— Ah — fez Torak. — Sim, claro. — Faça parecer que foi matança de um lobo. É isso

que eles procuram, uma matança. Ele concordou com a cabeça e se pôs a trabalhar. Renn deixou de lado a desaprovação e o ajudou.

Usaram o raspador dela feito de omoplata para retalhar o fígado do esquilo, misturaram-no com neve e o espalha-ram em volta para parecer sangue. A seguir, Torak cortou uma pata traseira e jogou-a para o lado, “para que pareces-se como se um lobo tivesse se afastado para comer em paz”.

Renn examinou a “matança”. — Melhor — disse ela. As sombras tomavam-se azuis e o vento rondara

para o norte, deixando uma leve brisa soprando flocos de neve sobre a carcaça. Torak disse:

— Os corvos devem estar voando para casa, para pernoitar. Se eles vierem, não será antes do raiar do dia.

Renn tremeu. — Não parece possível, mas, de acordo com Fin-

Kedinn, há raposas brancas por aí, portanto teremos de ficar acordados para afastá-las da carcaça.

— E não podemos acender uma fogueira, ou os corvos sentirão seu cheiro.

Renn mordeu o lábio. — Você sabe que não poderá comer nada? Para en-

trar em transe, terá de fazer jejum. Torak esquecera disso. — E você? —, Eu comerei quando você não esti-

ver olhando. Depois farei a pasta para soltar as suas almas. — Você tem o necessário? Ela bateu em sua algi-

beira de remédios. — Juntei umas coisinhas na Floresta. Os lábios dele se curvaram.

— Você planejou isso. Ela não retribuiu o sorriso. — Tive a sensação de que talvez precisasse. O céu

escurecia e poucas estrelas brilhavam. — Ao raiar do dia — murmurou Torak. Seria uma

longa noite. Torak aconchegou-se em seu saco de dormir e ten-

tou parar de tremer. Ele tremera a noite toda e estava far-to daquilo. Olhando através da fenda na caverna de neve, viu a lua semicomida reluzir. O alvorecer não estava muito distante. O céu era claro... e sem nuvens.

Em uma mitene, apertou um pedaço de casca de vidoeiro contendo a pasta de soltar a alma feita por Renn: uma mistura de gordura de rena e ervas com a qual deve-ria lambuzar o rosto e as mãos quando ela avisasse. Na outra, mantinha uma algibeira de couro cru amarrada com

tendão. Em seu interior, queimava sem chama o que Renn chamava de “poção-fumaça”. Ele perguntara o que havia dentro, mas ela disse que era melhor não saber, e Torak não insistiu. Renn tinha talento para Magia, a qual, por motivos que jamais mencionava, ela tentava ignorar. Prati-cá-la a deixava de mau humor. A barriga dele roncou e ela deu-lhe uma cutucada com o cotovelo. ele se conteve para não cutucar de volta. Estava com tanta fome que, se um corvo não aparecesse logo, ele seria capaz de comer o Uma fina linha encarnada acabara de surgir no levante, quando uma forma negra atravessou deslizando pelas es-trelas. Novamente Renn cutucou-o. — Já vi — sussurrou ele. Uma forma menor deslocou-se atrás da primeira: a fêmea do corvo. Ponta de asa com ponta de asa, eles roda-ram em volta do abate — então voaram para longe, Al-gum tempo depois, voltaram para outra ronda, voando um pouco mais baixo. Na quinta ronda, voaram tão baixo, que Torak ouviu suas batidas de asas: um forte e ritmado “wsh wsh wsh”. Observou suas cabeças virarem de um lado para o outro, esquadrinhando o terreno abaixo. Ficou contente por ter enterrado os petrechos perto da caverna de neve, que Renn fizera se parecer com um monte nor-mal, com apenas uma fenda para ar e observação. Os cor-vos são os mais espertos dos pássaros, com sentidos tão afiados quanto grama.

Fogo amarelo espirrou sobre a beira do mundo, mas os corvos continuavam circulando, vigiando dissimu-ladamente o “abate”. De repente, um deles recolheu as asas e desprendeu-se do céu. Torak despiu ambas as mite-nes, para estar pronto. Silenciosamente o corvo pousou na neve. Seu bafo fumegava enquanto se dirigia ao abrigo. A envergadura de suas asas era maior do que os braços esti-

cados de Torak e ele era completamente negro. Olhos, penas, pernas, garras, como a própria Pri-

meira Corva, que acordou o sol de seu sono invernal e foi queimada e tornada preta como castigo.

Esse corvo, entretanto, estava mais interessado no esquilo, do qual se aproximava com precaução, com pas-sadas tensas.

— Agora? — perguntou Torak, apenas movimen-tando OS lábios. Renn sacudiu negativamente a cabeça.

O corvo deu uma bicada experimental na carcaça. Então saltou alto no espaço, pousou — e voou para lon-ge. Verificava se o esquilo estava realmente morto.

Como a carcaça não se mexeu, ambos os corvos pousaram. Caminharam cautelosamente em direção a ela.

— Agora! — disse Renn, apenas movimentando os lábios.

Torak lambuzou-se com a pasta. tinha um cheiro ácido de verdura que pinicou seus olhos e fez a pele comi-char. Em seguida, abriu a bolsinha e sugou a poção-fumaça.

— Engula tudo — cochichou Renn em seu ouvido — e não tussa!

A fumaça era amarga, a ânsia de tossir quase irresis-tível. Ele sentiu a respiração de Renn em seu rosto.

— Que o guardião voe com você! Sentindo-se enjoado, ele observou o enorme corvo

pelejar para arrancar as vísceras congeladas. Uma dor agu-da pareceu arrancar suas próprias vísceras — e, por um momento, sentiu um acesso de pânico. Não, não, eu não Quero...

... e, de repente, ele estava arrancando as tripas do esquilo com seu possante bico, cortando deliciosos peda-

ços de carne congelada. Rapidamente, encheu seu papo; em seguida, bicou

um olho. Deleitando-se com sua escorregadia maciez na língua, abriu as asas e saltou para o vento e este o carregou para o alto, para a luz.

O vento era congelante e inimaginavelmente forte e seu coração se enchia de alegria à medida que ele o levava cada vez mais alto. Adorou a ondulante friagem sob suas penas, o cheiro de gelo em suas narinas e a furiosa garga-lhada do vento estridulando através dele. Adorou a facili-dade com que voava cada vez mais alto, girando e virando com uma mera inclinada de suas asas — adorou o poder de suas belas asas negras!

Um deslizante “wsh” — e sua fêmea estava a seu lado. Quando ela bateu as asas e girou no vento, lançou-lhe uma graciosa contração da cauda, convidando-o para dançar-no-céu. Ele deslizou para o seu lado e prendeu su-as garras geladas nas dela e, juntos, recolheram as asas e mergulharam.

Através do frio transbordante, correram em meio a uma mancha de penas negras e sol fragmentado, exultan-tes em sua velocidade, enquanto o enorme mundo branco avançava para encontrá-los.

Ao mesmo tempo, desprenderam suas garras e, com um estalido, ele abriu as asas e lançou-se ao vento e, agora, elevava-se novamente, elevava-se na direção do sol.

Com seus olhos de corvo, ele podia enxergar infini-tamente. Para o distante leste, a minúscula mancha de uma raposa-branca correndo pela neve. Para o sul, ficava o li-mite escuro da Floresta. Para oeste, ele avistou o gelo en-crespado do Mar gelado. Para o norte: duas figuras na ne-ve.

Com um grasnido, ele se pôs em perseguição. “Cark?”, fez sua fêmea surpresa. Ele afastou-se dela e a terra branca escorreu abaixo

dele. Ao se aproximar, arremeteu abaixo e, num instante

que ardeu para sempre em sua mente, captou todos os detalhes.

Avistou duas figuras se esforçando para rebocar um trenó. Viu Lobo preso ao trenó, incapaz de se mexer. Ao se esforçar para captar o menor movimento de uma pata, o mínimo tremular que lhe diria que Lobo ainda estava vivo, ele viu o homem maior parar, baixar o capuz de sua parca e afrouxar a gola do gibão para deixar sair o calor. Ele viu a tatuagem azul-negra sobre o osso esterno do homem: o forcado de três pontas para apanhar almas. A marca do Devorador de Almas.

De seu bico de corvo, emergiu um grasnido horro-rizado. Os Devoradores de Almas. Os Devoradores de Almas pegaram Lobo.

Ele voou mais alto e o sol o ofuscou. O vento deu uma furiosa guinada e o derrubou.

Sua coragem despedaçou-se como gelo fino. O vento guinchou triunfante. Uma dor aguda perfurou suas entranhas — e ele

era novamente Torak e estava caindo do céu.

SETE

Torak acordou na escuridão azulada da caverna de

neve, com a furiosa gargalhada do vento ressoando em seus ouvidos. Renn estava ajoelhada a seu lado, com a a-parência de assustada.

— Oh, graças ao Espírito! Passei a manhã toda ten-tando acordar você!

— A manhã toda? — murmurou ele. Sentia-se co-mo um pedaço de couro cru que fora surrado e raspado.

— É metade do dia — disse Renn. — O que aconte-ceu? Você andou aspirando neve e seus olhos reviraram na cabeça. Foi horrível!

— Caí — disse ele. A cada respiração, a dor golpe-ava suas costelas e cada articulação reclamava. Mas seus membros ainda lhe obedeciam; portanto, não havia ossos quebrados. — Eu me... machuquei?

Ela sacudiu negativamente a cabeça. — Mas almas também se machucam. Ele permaneceu deitado, encarando uma gotícula

prestes a cair do teto. Os Devoradores de Almas levaram Lobo. — Você viu o rastro? — perguntou Renn. Ele en-

goliu em seco. — Norte. Seguiram para o norte. Ela sentiu que ele

ocultava algo. — Assim que você entrou em transe — contou ela

—, o vento soprou. Parecia zangado. — Eu estava voando. Não deveria. A gota caiu na parca de Renn e perdeu-se no pêlo:

como uma alma que cai na terra. — Você não devia ter feito isso — disse ela. Erguendo-se dolorosamente sobre um cotovelo,

Torak olhou através da fenda. O vento soprava suave-mente, mas os fantasmagóricos dedos-neve estavam de volta.

— Não creio que o vento já tinha nos esquecido — comentou Renn.

Torak voltou a se deitar e puxou o saco de dormir para baixo do queixo. Os Devoradores de Almas levaram Lobo.

Não conseguia se forçar a contar a ela — pelo me-nos ainda não. Se Renn soubesse, talvez insistisse para que voltassem à floresta para pedir ajuda. Ela talvez fosse em-bora.

Ele fechou os olhos. — Mas quem são os Devoradores de Almas? — ele

perguntara certa vez a Fin-Kedinn. — Nem mesmo sei seus nomes,

— Poucos sabem — respondera Fin-Kedinn — e não falam deles.

— Você sabe? — indagara Torak. — Por que não me diz? É meu destino lutar contra eles!

— No devido tempo — fora tudo o que dissera o

Líder Corvo. Torak não conseguia entendê-lo. Fin-Kedinn o acolheu depois que seu pai fora morto e, muito tempo atrás, Pa e ele tinham sido bons amigos. Mas raramente falava do passado e apenas revelava o que achava que To-rak devia saber.

Portanto, tudo que Torak sabia era que os Devora-dores de Almas haviam conspirado para dominar a Flores-ta. Então seu poder fora destruído em um grande incêndio e eles passaram a viver em esconderijos. Desde então, dois dos sete haviam encontrado a morte — e, desse modo, de acordo com as leis do clã, seus nomes não podiam ser mencionados durante os cinco invernos seguintes. Um deles era o pai de Torak.

Bem fundo no peito, Torak sentiu a dor familiar. Pa se juntara a eles para fazer o bem; foi isso o que Fin-Kedinn lhe dissera. Era a isso que Torak se agarrava. Quando se tornaram maus, Pa tentara sair e eles se volta-ram contra ele. Durante treze invernos, ele fora um ho-mem caçado, criando seu filho separado dos clãs, sem mencionar seu passado. Então, no outono antes do últi-mo, os Devoradores de Almas enviaram o urso demônio que o matou.

Agora tinham levado Lobo. Mas por que Lobo e não Torak? Por quê? Por quê?

Por quê? Adormeceu ao som do gemido do vento. Alguém o sacudia, chamando seu nome. — O quê? — murmurou com a boca cheia de pêlo

de rena. — Torak, acorde! — gritou Renn. — Não podemos

sair! Desajeitadamente, ele se sentou o máximo que o teto baixo permitia. A seu lado, Renn pelejava para não entrar

em pânico. A fenda no abrigo sumira. Em seu lugar, havia uma

dura parede compacta de neve. — Estive cavando — explicou ela —, mas não

consigo atravessar. Estamos presos pela neve. Deve ter se acumulado durante a noite.

Torak percebeu que ela dissera “deve ter se acumu-lado”, em vez de “o vento fez isso, nos enterrando en-quanto dormíamos”.

— Cadê a minha machadinha? — perguntou. 1 O rosto dela contorceu-se.

— Lá fora. Ambas estão lá fora, onde as deixamos. Com o resto de nossas coisas.

Ele digeriu isso em silêncio. — Eu devia tê-las trazido para dentro — disse

Renn. — Não havia espaço. — Eu devia ter criado espaço. Eu devia ter pensa-

do nisso. — Você estava cuidando de mim, não foi culpa su-

a. Temos facas. Vamos cavar para sair daqui. Ele sacou sua faca. Fin-Kedinn a fizera para ele no

último verão: uma fina lâmina de tíbia de rena com encai-xes de lascas de sílex da espessura de folhas. Não fora fei-ta para cavar neve endurecida pelo vento. A faca de ardó-sia azul de Pa teria sido melhor; mas Fin-Kedinn alertara Torak para mantê-la escondida em sua mochila. Agora se arrependia disso.

— Vamos começar — falou, tentando parecer cal-mo.

Era apavorante cavar um túnel sem ter idéia de até onde teriam de ir. Não havia onde colocar a neve cavada,

a não ser para trás, portanto, não importava o quanto tra-balhassem arduamente, eles permaneciam presos no mesmo buraco apertado. As paredes gotejantes os com-primiam e sua respiração soava apavorada e sonora.

Após avançarem o equivalente a um braço de ho-mem, Torak largou a faca.

— Isso não adianta. Renn encarou-o. Seus olhos estavam enormes. — Tem razão. Um depósito de neve destes pode

ser interminável... Talvez a gente nunca consiga sair. Ele percebeu o esforço que Renn fazia para perma-

necer calma e achou que ela pensava em seu pai. Ele disse: — Em vez disso, vamos cavar em cima. Ela con-

cordou com a cabeça. Era muito mais difícil cavar em cima. Pedaços de

neve caíam nos olhos e escorriam pelo pescoço e seus braços doíam terrivelmente.

56 Trabalhavam costas contra costas, pisoteando a ne-

ve sob suas botas. Torak pressionava tanto a mandíbula que esta doía.

Gradualmente, a neve acima passou a se tomar um azul mais cálido.

— Renn! Olhe! Ela olhou. Febrilmente, martelaram com os cabos de suas fa-

cas. De repente, a neve quebrou como uma casca de ovo — e eles a atravessaram.

O clarão era ofuscante, o frio queimava seus pul-mões. Permaneceram parados com os rostos virados para cima, boquiabertos como filhotes de aves; saíram arras-tando-se e desabaram sobre a neve lá fora. Uma leve brisa arrepiou seus cabelos encharcados. O vento sumira.

Torak deu uma fraca risada. Renn continuou deitada de costas, encarando o va-

zio. Ao se sentar, Torak viu que seu abrigo fora soter-

rado sob um comprido morro íngreme que não existia na noite anterior.

— Nossas coisas — disse ele. — Cadê as nossas coisas? Com dificuldade, Renn pôs-se de pé.

Fora as facas e os sacos de dormir, tudo de que precisavam: arcos, flechas, machadinhas, comida, lenha, peles de água, peles de cozer — tudo — estava enterrado em algum lugar sob a neve.

Com exagerada tranqüilidade, Torak limpou suas perneiras.

— Nós sabemos onde está o abrigo. Vamos cavar uma vala em volta dele. Mais cedo ou mais tarde, vamos encontrá-lo. — Mas ele sabia tão bem quanto Renn que, se não encontrassem os petrechos antes de escurecer, tal-vez não sobrevivessem outra noite. Esse único erro pode-ria significar a morte deles.

Após tanto esforço em cavar em cima, era um golpe cruel ter de cavar embaixo e, assim que começaram, o ven-to retomou, jogando em cima deles ofuscantes e sufocan-tes nuvens de neve.

Torak começava a perder as esperanças, quando Renn deu um grito:

— Meu arco! Encontrei o meu arco! A tarde já chegava ao fim quando conseguiram en-

contrar tudo e os dois estavam exaustos, molhados de su-or e extremamente sedentos.

— Devíamos cavar uma cova — ofegou Renn — e esperar até amanhecer.

— Não podemos — alegou Torak. A necessidade de ir atrás de Lobo era preponderante.

— Eu sei — disse Renn. — Eu sei. Após comerem um pouco de carne seca e esvaziar

suas peles de água, amarraram tiras de trançado de casca de árvore sobre os olhos para se proteger da claridade — desagradavelmente cientes de que deveriam ter feito isso antes — e partiram, seguindo para o norte sob o sol que baixava.

A cabeça de Torak latejava e ele cambaleava de e-xaustão. Tinha uma incômoda sensação de que não devi-am fazer aquilo — que não pensavam direito —, mas es-tava cansado demais para decidir.

As vastas planícies deram lugar a colinas íngremes e vertiginosas cordilheiras azuis com neve soprada pelo ven-to. Em alguns lugares, elas formavam precárias arestas que se empinavam sobre eles como monstruosas ondas conge-ladas. E o vento norte soprando sempre. Furioso. Vinga-tivo. Insaciável.

Em meio à neve agitada, era difícil calcular distân-cias. Não parecia que tinham ido muito longe, mas quan-do Torak alcançou o cume de uma colina e olhou para trás, viu que a Floresta sumira.

Uma violenta rajada atingiu-o nas costas e ele caiu, rolando todo o caminho até o sopé.

Aos tropeções, Renn foi atrás dele. — Você devia ter usado a sua machadinha para in-

terromper a queda — murmurou enquanto o ajudava a se levantar. A machadinha ficara presa no cinto; não houvera tempo para tirá-la.

Daí em diante, caminharam com as machadinhas nas mãos.

Estavam cansados quando partiram, mas agora ca-da passo era um esforço. A sede voltou, no entanto a le-nha para derreter neve havia acabado. Sabiam que não deviam tentar comê-la, porém o fizeram assim mesmo. Ela formou bolhas em suas bocas e lhes provocou cãibra. E o vento continuava soprando: saraivando seus rostos com minúsculos dardos de gelo até suas bochechas racha-rem e seus lábios sangrarem.

Não pertencemos a isto aqui, pensou Torak melan-colicamente. Tudo estava errado. Nada era como deveria ser.

Em uma ocasião, ouviram o gluglu do lagópode surpreendentemente perto, mas, quando procuraram, a ave tinha desaparecido.

Uma outra vez, Renn avistou um homem à distân-cia; mas, quando chegaram perto, revelou-se ser um mon-te de pedras com fios de cabelos esvoaçantes e couro a-marrado a seus braços. Quem o fizera e por quê?

Seus gibões encharcados de suor faziam com que sentissem frio até os ossos e a neve se acumulava em suas roupas externas tornando-as pesadas e duras. Seus rostos arderam e depois ficaram dormentes. Algo do que o Ca-minhante dissera emergiu a memória de Torak. Primeiro, você está com frio, depois não está... O que viria depois disso?

Renn enrolou a manga e apontou para o céu. Ele se inclinou. Nuvens de um roxo acinzentado vinham agitadas

do norte. — Tempestade! — gritou ela. — Vamos nos man-

ter juntos! — Ela já tirava um rolo de corda de couro cru de sua mochila. Eles já tinham estado antes em uma tem-pestade de neve e sabiam como era fácil se separar.

— Precisamos cavar! — berrou ela, enquanto pele-java para amarrar em volta de sua cintura uma extremida-de da corda congelada.

— Onde? — berrou ele, amarrando à sua volta de-sajeitadamente a outra extremidade. A terra tornara-se no-vamente plana.

— Para baixo! — gritou ela. — Cavar para baixo! Um buraco na neve! — Bateu forte com os pés, à procura de neve mais firme, de repente, o chão se rompeu sob Renn e ela desapareceu.

— Renn! — berrou Torak. A corda em volta de sua cintura estalou ao se esti-

car, puxando-o para frente. Ele forçou o corpo para trás e enfiou os calcanhares no chão. Não conseguia enxergar nada — apenas o agitado caos branco —, mas podia sen-tir o peso dela na corda, puxando-o para baixo.

Debatendo-se, escorregando, ele deslizou inexora-velmente adiante — e tombou... a poucos passos de uma pilha de neve despedaçada.

A neve ergueu-se. Era Renn. Eles se sentaram, tremendo muito, mas ilesos. Esticando o pescoço, Torak viu que haviam atra-

vessado uma saliência. Sem saber, estavam caminhando em cima de uma frágil crosta sobre o ar rarefeito.

Para Renn, aquela foi a última flecha que derruba o auroque.

— Não posso continuar! — bradou, socando a ne-ve com os punhos.

— Temos de cavar! — berrou Torak. Mas sabia que era inútil. Ele mal tinha forças para erguer a machadi-nha.

Com uma última e enfurecida explosão de orgulho,

ele se pôs de pé cambaleante e gritou para o vento. — Está bem, você venceu! Desculpe! Eu nunca mais

ousarei voar! Desculpe! O vento guinchou. Formas terríveis voaram para

ele através da neve. Uma coluna retorcida rodopiou em sua direção e então se rompeu ao meio...

Subitamente a neve não pareceu se romper ao meio, mas se juntar. milhares de pequeninos flocos se agrupando, se amalgamando, para formar uma criatura diferente de tudo que ele já vira.

Tinha os olhos fixos de uma coruja e voou em sua direção através da brancura. A sua frente, ondulava uma silenciosa matilha de cães.

Torak estava exausto demais para sentir medo. A-cabou-se, pensou desanimado. Desculpe, Lobo. Desculpe por eu não ter podido salvá-lo.

Caiu de joelhos enquanto a criatura olhos-de-coruja baixava sobre ele.

OITO

A criatura olhos-de-coruja vociferou uma ordem e

os cães voltearam para parar. Sacando rapidamente uma comprida faca curvada, ela começou a cavar um buraco na neve com espantosa velocidade. Em momentos, Torak e Renn foram agarrados e jogados dentro dele e uma parede de neve foi baixada para seu topo.

Após a fúria do vento, o arquejo da respiração era sonora na escuridão. Torak ouviu o rangido de couro congelado; captou um odor râncido que lhe era estranha-mente familiar. Não conseguia enxergar Renn — a criatu-ra saltara entre os dois —, mas também estava infeliz de-mais para se preocupar.

Para sua surpresa, descobriu que não sentia mais frio, estava quente. Primeiro, você está com frio, pensou, depois não está; então sente calor, depois morre.

Descobriu que gostava da morte. Ela era graciosa-mente cálida e macia, como a pelagem de uma grande rena branca. Quis puxá-la para cima da cabeça e agasalhar-se totalmente...

Alguém o sacudia. Ele gemeu. Olhos de coruja fita-ram os dele, arrancando-o de sua adoravelmente cálida morte.

Percebeu um colarinho de pêlo endurecido pela ne-ve emoldurando um rosto redondo crestado pelo frio. Ge-lo recobria as sobrancelhas e a curta barba preta. O nariz achatado tinha uma tira escura tatuada de lado a lado, que Torak não reconhecia. Ele queria apenas retomar a morte.

A criatura rosnou. Então arrancou fora seus olhos. Torak percebeu que os olhos de coruja eram finos

discos de osso presos por uma correia. Os verdadeiros olhos do homem ficavam permanentemente semicerrados contra a claridade. Rapidamente, enrolou a manga de sua parca, apanhou uma faca de sílex e cortou uma veia de seu grosso e pardo antebraço.

— Beba! — bradou, pressionando-o contra os lá-bios de Torak. Uma quentura salgado-doce encheu a boca de Torak. Ele tossiu e engoliu sangue. Força e calor per-correram seu corpo: calor verdadeiro e não a quentura falsa da ulceração pelo frio. Com isso, veio a dor. Seu ros-to estava em chamas. Agulhas incandescentes perfuravam suas juntas.

Na escuridão, ouviu Renn. “Deixe-me em paz! Quero dormir!” Agora o homem mascava algo. Cuspiu na mão um grumo cinzento e empurrou-o por entre os den-tes de Torak.

— Coma! Era râncido e oleoso e ele reconheceu o gosto.

Gordura de foca. Era maravilhoso. O homem lambuzou mais gordura mascada sobre o

rosto de Torak. A princípio doeu — a palma do homem era áspera como granito —, mas espantosamente, em

pouco tempo, a dor tornou-se um suportável palpitar. — Quem é você? — murmurou Torak. — Depois — grunhiu o homem —, quando se es-

gotar a ira do vento. — Quanto tempo isso vai durar? — quis saber

Renn. — Um sono, muitos, quem sabe? Agora chega de

falar! Torak tem doze verões de idade e Pa está morto há

quase meia lua. Torak acabara de abater o seu primeiro veado e, pa-

ra manter Lobo quieto enquanto ele o esfolava, deu-lhe os cascos; mas o filhote cansou-se de brincar com eles e cor-reu para meter o focinho no que Torak fazia.

Torak está lavando a tripa do veado no riacho. Lo-bo agarra a outra ponta com a boca e a puxa. Torak puxa de volta. Lobo cai sobre as patas dianteiras e sacode o ra-bo. Uma brincadeira!

Torak fecha a cara. “Não, não é uma brincadeira.” Lobo insiste. Torak lhe diz firmemente em fala de lobo para largar — e o filhote obedece tão prontamente, que Torak cai de costas na água. Lobo lança-se sobre ele e a-gora estão chapinhando e Torak está gargalhando. Seu pai continua morto; mas ele não está mais sozinho. Encon-trou um irmão de alcatéia.

Ao se pôr de pé, o riacho está congelado. O inver-no tem a Floresta sob seu domínio. Lobo está crescido e saindo às pressas por entre as árvores resplandecentes — saindo às pressas com Pa.

“Voltem!”, grita Torak, mas o vento norte leva sua voz para longe. O vento é tão forte que ele mal consegue ficar de pé, mas não tem poder para afetar Lobo ou Pa.

Nem mesmo uma brisa agita OS longos cabelos negros de Pa; nem mesmo um sussurro franze a pelagem prateada de Lobo.

“Voltem!”, grita. Eles não conseguem ouvi-lo. Im-potente, Torak observa-os irem embora por entre as árvo-res.

Acordou com um sobressalto. A perda fez seu pei-to doer. Suas faces estão duras com lágrimas congeladas.

Estava enfiado em seu saco de dormir. Suas roupas estavam úmidas lá dentro e ele sentia tanto frio, que ultra-passara os limites da tremedeira. Ao se sentar, viu que não estava mais no buraco de neve, mas em um abrigo aboba-dado feito de blocos de neve. Em uma lamparina rasa de pedra, um pedaço de gordura triturada queimava com uma baixa chama laranja. Acima dela, pendia uma bexiga de foca com gelo derretido. Como estava silêncio lá fora, a tempestade passara. O estranho homem havia sumido.

— Tive um sonho terrível — murmurou Renn a seu lado. Seu rosto estava com crostas de feridas e bolhas; ha-via manchas escuras sob seus olhos.

— Eu também — disse ele. Seu rosto estava dolo-rido e doía falar. — Sonhei que Lobo...

O estranho homem rastejou para dentro do abrigo. Era baixo e forte e sua parca de pele de foca fazia com que parecesse ainda mais forte. Jogando o capuz para trás, revelou um rosto achatado emoldurado por um negro ca-belo curto com uma franja sobre a testa. Os olhos eram fendas negras de desconfiança.

— Vocês são do Distante Sul — afirmou acusado-ramente.

— Quem é você? — retrucou Torak. — Inuktiluk. Clã da Raposa-branca. Fui enviado

para encontrar vocês. — Por quê? — indagou Renn. O homem do Raposa-branca balançou a cabeça. — Olhem para vocês! Suas roupas então encharca-

das! Não sabem que não é a neve que mata, mas a umida-de? Tomem. Livrem-se delas e vistam isto. — Jogou-lhes duas trouxas com peles.

Estavam com tanto frio que nem discutiram. Seus membros estavam tão inúteis quanto gravetos e levaram uma eternidade para se despir. As trouxas revelaram ser sacos de dormir de pele de foca prateada revestidos com um saco interno de macia pele de ave com as penas para dentro. Eram tão quentes que eles se sentiram melhor quase que imediatamente; mas Torak se deu conta, alar-mado, de que o homem do Raposa-branca desaparecera, levando junto as roupas deles. Agora os dois estavam completamente sob seu poder.

— Ele nos deixou um pouco de comida — avisou Renn. Cheirou uma tira de carne congelada de foca.

Ainda em seu saco de dormir, Torak arrastou-se até a parede e espreitou através de uma fenda.

O que ele tomara por telhado do buraco na neve no qual foram abrigados para pernoitar era de fato um grande trenó, que agora se encontrava de pé. Seus patins eram maxilares de uma baleia, suas travessas a galhada de uma rena. Um embaraçado arnês desaparecia dentro de um macio montículo branco e dentro de cinco outros montí-culos um pouco mais distantes. Do meio de cada um, sur-gia uma fina coluna de vapor.

Inuktiluk assobiou e os seis montículos irromperam em seis enormes cães. Bocejaram e balançaram as caudas ao mesmo tempo que sacudiam fora a neve e Inuktiluk

deu tapinhas em seus focinhos enquanto desembaraçava os arnês e verificava suas patas atrás de cortes por gelo.

Com a unha do polegar, Renn forçou um pedaço de carne por entre os dentes.

— O Caminhante falou que “as raposas” nos diri-am como encontrar o Olho da Víbora. Talvez ele tenha se referido aos Raposas-brancas.

Torak também pensara a mesma coisa. — Mas podemos correr esse risco? — aventou. Ele

queria confiar em Inuktiluk, mas aprendera pelo modo mais difícil que um homem é capaz de fazer coisas boas e, ainda assim, ocultar um coração ruim.

— Tem razão — concordou Renn. — Não lhe di-remos nada. Não até sabermos se podemos confiar nele.

Inuktiluk virou as roupas deles pelo avesso e colo-cou-as sobre o trenó. Elas congelaram em momentos e ele arrancou o gelo delas com o lado sem fio de sua faca de neve. Em seguida, apanhou carne e jogou-a para os cães.

Cinco deles eram adultos, mas o sexto era um fi-lhote com cerca cinco luas. A parte polpuda de baixo das patas ainda não havia endurecido e ele usava botinhas de couro cru;. ele guinchou de prazer quando Inuktiluk o vi-rou de costas para verificar se elas estavam presas em se-gurança. Torak pensou em Lobo e o sonho voltou para obscurecer seu espírito. Falou a respeito para Renn. Então ele disse: — Lobo estava com Pa e Pa está morto. Portan-to terá sido o espírito de Pa que enviou o sonho? Estaria ele me dizendo que Lobo também está morto? — Ou tal-vez — deduziu Renn — não tenha sido o espírito do seu pai t tenha enviado o sonho para você, mas o de Lobo. Talvez ele esteja pedindo a sua ajuda. — Mas ele deve sa-ber que estamos indo atrás dele. Ela pareceu infeliz.

Torak pensava se aquele seria o momento de lhe contar sobre os Devoradores de Almas, quando Inuktiluk retornou.

— Vistam-se — ordenou rispidamente. Suas roupas estavam mais secas, porém desconfor-

tavelmente geladas. Não adiantou Inuktiluk olhá-los com evidente desaprovação.

— Vocês são magros demais. Para sobreviver no gelo, precisam ser gordos! Nem mesmo sabiam disso? Tudo no norte é gordo! Focas, ursos, pessoas! — Então perguntou-lhes que nomes usavam.

Eles trocaram olhares. Renn disse-lhes seus nomes e clãs. Inuktiluk pareceu surpreso ao saber que Torak era do Clã do Lobo.

— Isso toma a coisa pior — murmurou ele. — O que quer dizer? — indagou Torak. Inuktiluk

franziu a testa. — Não falemos disso aqui. — Creio que precisamos falar — insistiu Torak. —

Você salvou as nossas vidas e somos gratos. Mas, por fa-vor. Diga-nos por que estava à nossa procura.

O homem Raposa-branca hesitou: — Eu lhes direi isto. Três sonos atrás, uma de nos-

sas anciãs entrou em transe para observar os fogos da noi-te no céu e os espíritos dos Mortos lhe enviaram uma vi-são. Uma garota com cabelos da cor do salgueiro-vermelho, como o Espírito do Mundo no inverno, e um garoto com olhos de lobo. — Fez uma pausa. — O garo-to estava prestes a fazer um grande mal. Era por isso que eu tinha de encontrá-lo. Para evitar que trouxesse o mal para o povo do gelo.

— Não fiz nada de errado — disse Torak furiosa-

mente. Inuktiluk ignorou isso. — Quem são vocês? O que fazem aqui, um lugar ao

qual não pertencem? Como não responderam, ele enrolou os sacos de

dormir e preparou-se para sair. — Esfreguem mais gordura no rosto e tragam a

lamparina. Vamos partir. — Para onde? — perguntaram Torak e Renn ao

mesmo tempo. — Nosso acampamento. — Por quê? — indagou Renn. — O que vai fazer

com a gente? Inuktiluk pareceu ofendido. — Não vamos machucar vocês, não é nosso jeito!

Apenas lhes daremos uns petrechos melhores e os manda-remos para casa.

— Não pode nos fazer voltar — reclamou Torak. Para sua surpresa, Inuktiluk irrompeu numa garga-

lhada. — Claro que posso! Tenho todas as suas coisas

amarradas no meu trenó! Depois disso, não tiveram outra escolha a não ser

acompanhá-lo para o lado de fora. Ele já colocara seu visor de olho-de-coruja e agora

jogou um par para cada. Então apanhou um chicote de couro flexível com cerca de vinte passos de comprimento e, imediatamente, os cães começaram a uivar e estalar suas caudas, ansiosos para partir.

— Por que o trenó está voltado para o oeste? — perguntou Renn, apreensiva.

— É lá que fica o nosso acampamento — explicou Inuktiluk. — No mar de gelo, onde estão as focas.

— Oeste? — bradou Torak. — Mas precisamos ir

pára o norte! Inuktiluk virou-se para ele: — Norte? Duas crianças que nada sabem das pecu-

liaridades do gelo? Estariam mortos antes do próximo so-no! Vamos, entrem no trenó!

NOVE

O vento norte uivou sobre as colinas brancas e re-

bentou os arqueados pés de abeto nas planícies. Assobiou através dos confins setentrionais da Floresta e arrancou a neve dos barrancos do Cabo-de-machado, onde o Clã do Corvo montara acampamento. Teria acordado Fin-Kedinn — só que ele já estava acordado. Mal conseguia dormir desde que os Salgueiros lhe tinham entregue a mensagem de Torak.

Alguém levou Lobo. Vamos pegá-lo de volta. — Mas partiu apressadamente sem pensar! — co-

mentou o Corvo Líder. Com uma vara, atiçou a fogueira que reluzia na entrada de seu abrigo. — Por que ele não voltou e buscou ajuda?

— Por que não a garota? — observou Saeunn, com seu grasnido de corvo. Sem pestanejar, ela enfrentou os seus olhos de pura ira azul. Ela era o único membro do clã que ousava enfrentar seu aborrecimento.

Permaneceram sentados, em silêncio, enquanto a-cima deles o vento fazia o possível para despertar a Flo-

resta. A Maga Corvo cobriu com o manto os joelhos os-sudos e esticou as garras encolhidas para o fogo.

Fin-Kedinn deu outra atiçada — e um cachorro, que estivera pensando em se enfiar ali dentro, baixou a orelha e saiu furtivamente atrás de um outro abrigo.

— Não achava que ele fosse tão estouvado — disse Fin-Kedinn. — Seguir para o Distante Norte...

— Como sabe que foram para lá? — perguntou Sa-eunn; Ele hesitou.

— Um grupo de caça dos Ptármigas os viu à dis-tância. Contaram-me esta manhã.

Pensativamente, Saeunn alisou seu amuleto espiral com a unha tão pontuda e amarelada como chifre.

— Você quer ir atrás deles. Quer encontrar o filho do seu irmão e trazê-lo de volta.

O Corvo Líder passou a mão sobre a barba ruivo-escuro.

— Não posso arriscar a segurança do clã e levá-lo ao Distante Norte.

Saeunn estudou-o com a gélida imparcialidade de alguém que nunca sentiu afeto por qualquer ser vivo.

— Mesmo assim, você quer. — Acabei de dizer que não posso — retrucou ele.

Jogou fora a vara, contendo um estremecer. O vento a-cordara o velho ferimento em sua coxa.

— Então deixe isso para lá — afirmou Saeunn, en-colhendo os ombros como um corvo erguendo as asas. — A garota revelou ser voluntariosa e cabeçuda. Quanto ao garoto, ele permitiu que seus... sentimentos... — sua boca sem lábio contraiu-se — atrapalhassem.

— Ele só tem treze verões — alegou Fin-Kedinn. — Ele tem um destino — frisou a Maga friamente.

— A vida dele não lhe pertence, não pode arriscá-la por causa de um amigo! Ele não entende isso, mas entenderá. Quando falhar em encontrar o lobo, ele voltará e você poderá castigar ambos.

Fin-Kedinn fitou as brasas. — Eu vou adotá-lo — disse. — Eu devia ter con-

tado a ele. Talvez tivesse feito diferença. Talvez... ele ti-vesse me pedido ajuda.

Saeunn cuspiu no fogo. — Por que se preocupar? Deixe que ele vá! Deixe

que ele vá e procure o seu lobo!

DEZ

Lobo está no outro Agora, que é para onde vai

quando sonha. É capaz de correr mais depressa do que o veado mais veloz e derrubar sozinho um auroque; ainda assim, quando acorda, continua com tanta fome quanto se não tivesse abatido nada.

Dessa vez, ele é novamente um filhote. Está mo-lhado e sente frio e sua mãe e pai e irmãos de alcatéia es-tão caídos na lama imóveis e Sem-bafo. Foi o Molhado Ligeiro que fez isso. Passou rugindo, enquanto Lobo fazia uma exploração no alto.

Ergueu o focinho e uivou. Do outro lado do Molhado Ligeiro, vem um lobo,

vem salvá-lo! Lobo irrompe numa agitada boas-vindas. Em se-

guida, suas boas-vindas viram perplexidade. Aquele é um lobo tão estranho. Seu cheiro é de um macho semicresci-do, mas também cheira a outras criaturas, caminha sobre as patas traseiras e não tem rabo!

Entretanto, tem os claros, brilhantes olhos de um

lobo e algo em seu espírito atrai o dele. Encontrou um novo irmão de alcatéia. Um irmão de alcatéia que jamais o abandonará...

Lobo acordou com um estalido. Estava de volta à árvore deslizante, imprensado de-

baixo da detestável pele de veado, sacolejando sobre o Frio Macio Brilhante. Ansiou por aquele outro Agora, no qual era novamente um filhote sendo salvo pelo Alto Sem-rabo.

Sua cabeça doía e vomitara durante o sono, mas não conseguia se mexer para se lamber e se limpar. Sua pata ferida doía. Sua cauda pisoteada doía mais ainda.

Pele-Fedorenta se aproximou e jogou outro pedaço de carne — o qual Lobo ignorou. Sem parar, eles o arras-tavam, enquanto o Claro baixava e o Frio Macio Brilhante vinha flutuando do Alto.

Após algum tempo. Lobo farejou que eles haviam entrado na área de uma alcatéia de lobos estranhos. Isso significava perigo.

O grande macho com o pêlo desbotado afastou-se sozinho e a esperança saltou para o coração de Lobo. Tal-vez Pêlo-desbotado fosse tolo o bastante para atacar os lobos estranhos, estes se defenderiam e ele seria morto!

Muito depois, Pêlo-desbotado retornou — ileso. Sorria seu terrível sorriso e carregava um pequeno Covil de pele de veado que se retorcia e rosnava. Lobo farejou a fúria malcheirosa de um carcaju. Um carcaju? O que signi-ficava isso?

Mas não conseguiu pensar nisso por muito tempo, pois começava novamente a ficar cansado, e caiu no sono.

Uma grande coruja piou — e ele acordou. Sem sa-ber por quê, seu pêlo formigou de medo.

A coruja ficou em silêncio. Isso foi pior. Lobo estava agora completamente desperto. En-

quanto esteve dormindo, o Escuro viera e a árvore desli-zante havia parado. Os sem-rabos malvados estavam a alguns passos de distância, acocorados em volta do Bri-lhante Bicho-que-morde-quente. Lobo sentiu que espera-vam algo. Algo ruim.

Em volta dele, a estranha terra branca permanecia sem vento e silenciosa. Ele farejou uma lebre mordiscan-do botões de salgueiros a muitos trotes dali. Ouviu as mi-núsculas arranhaduras dos lemingues em seus Covis e o sibilar do Frio Macio Brilhante caindo, caindo.

Então, através do Escuro, ele ouviu um sem-rabo se aproximar. As garras contraídas de ansiedade. Seria o Alto Sem-rabo, que vinha salvá-lo?

Sua esperança rapidamente foi rasgada em pedaços. Não era o seu irmão de alcatéia. Era uma fêmea que Lobo não havia farejado antes. Soube que ela fazia parte da alca-téia malvada, pois viu os outros se erguerem nas patas tra-seiras para esperá-la. Sentiu o medo deles enquanto ela vinha deslizando pela brancura sibilante.

Era alta e muito magra e o pêlo desbotado de sua cabeça pendia à sua volta como minhocas. Sua voz era como o chocalhar de ossos secos, e seu cheiro era de Sem-bafo.

Os outros a cumprimentaram discretamente em fa-la de sem-rabo, mas, embora o escondessem. Lobo fare-jou o medo deles. Até mesmo Pêlo-desbotado sentia me-do. E Lobo também.

Agora ela se virou e veio na direção dele. Ele se contraiu. Seu próprio espírito se encolheu

diante do dela.

Ela se aproximou. Ele queria desviar o olhar, mas não conseguia. Havia algo terrivelmente errado com o ros-to dela. Era inexpressivo como pedra e não se mexia, nem mesmo o seu focinho se contraía quando ela falava. E seus olhos não eram olhos, mas buracos.

Lobo rosnou e tentou fugir, mas a pele de veado o manteve preso.

Agora ela se debruçou sobre ele e seu cheiro de Sem-Bafo o arrastava para o interior de uma névoa negra de solidão e perda.

Lentamente, ela levou a pata dianteira para perto de seu focinho.

Ela segurava algo — ele não podia ver o que era —, mas captou o cheiro daquilo que permanecera muito tempo nas profundezas da terra. Em seu rosto pálido, ele vislumbrou uma luz cinzenta e soube, com a

estranha certeza que às vezes lhe ocorria, que aquilo que ela carregava mordia tão ferozmente quanto o Bri-lhante Bicho-que-morde-quente. Só que aquilo mordia frio.

Seu rosnado tornou-se um ganido aterrorizado. Fe-chou os olhos e tentou pensar em Alto Sem-rabo vindo em sua direção através do Frio Macio Brilhante: vindo salvá-lo, exatamente como o fizera quando Lobo era um filhote.

ONZE

O trenó de Inuktiluk arremessava-se a oeste, levan-

do Torak e Renn na direção errada. Os únicos sons eram o ofegar dos cães e o roçar dos patins do trenó sobre a neve com uma crosta de gelo e um eventual suspiro de Renn quando subiram/uma ribanceira e o trenó inclinou-se violentamente para um lado a fim de evitar uma capo-tagem.

— Você não vai poder nos vigiar o tempo todo — disse Torak a Inuktiluk quando pararam para descansar à beira de um extenso lago congelado. — Mais cedo ou mais tarde, a gente vai fugir.

— E aonde iriam? — retrucou Inuktiluk. — Jamais chegariam ao norte, nem mesmo conseguiriam contornar o rio de gelo.

Os dois o encararam. — Que rio de gelo? — Fica a cerca de um sono daqui. Ninguém dos

clãs do Gelo que o atravessou sobreviveu. Torak sorriu.

— Nós já atravessamos um rio de gelo. Inuktiluk bufou. — Mas não igual a esse. — Então nós o contornaremos — disse Renn. Inuktiluk jogou as mãos para cima. Assobiou para o

cão-guia e começou a atravessar o lago. — Vamos atravessar a pé — avisou. — Caminhem

atrás de mim e façam exatamente o que eu mandar! Queimando de frustração, eles o seguiram — e lo-

go ficaram concentrados na difícil tarefa de simplesmente permanecer em pé.

— Mantenham-se no gelo branco — avisou Inukti-luk.

— O que tem de errado o gelo cinzento? — quis saber Renn, olhando um trecho dele à sua direita.

— É gelo novo. Muito perigoso! Se algum dia tive-rem de atravessá-lo, mantenham-se separados... e não pa-rem nunca!

Torak e Renn entreolharam-se e aumentaram a dis-tância entre si.

Até mesmo o gelo branco foi polido pelo vento e se tornou uma escorregadela traiçoeira, e eles avançavam lentamente num aflito arrastar de pés. As botas de Inukti-luk pareciam se agarrar ao gelo, permitindo-lhe que se-guisse a passos largos adiante, e as afiadas garras dos cães revelavam ser o melhor de tudo; mas o filhote escorregava com suas botas de pele de foca, fazendo com que Torak se lembrasse dolorosamente de Lobo. Quando era um filhote, ele vivia tropeçando nas próprias patas.

— Qual é a profundidade do lago? — perguntou Renn. Inuktiluk deu uma risada.

— Isso não importai O frio a mataria antes que vo-

cê conseguisse gritar por socorro! Foi um alívio chegar à margem e subir para a neve

sólida. Enquanto Inuktiluk verificava as patas dos cães, Torak puxou Renn para um canto.

— Há mais abrigos adiante — cochichou — e a gente poderá tentar fugir!

— E ir para onde? — retrucou ela. — Como con-tornaremos o rio de gelo? Como encontraremos o Olho da Víbora? Admita, Torak, nós precisamos dele!

A terra tomou-se mais difícil de atravessar, com es-pinhaços denteados e ladeiras íngremes. Para ajudar os cães, eles saltavam, subiam correndo as ladeiras e pulavam de volta para o trenó, enquanto este disparava colina abai-xo e Inuktiluk diminuía sua velocidade fincando as pontas de um freio feito com galhada de rena.

O frio consumiu todas as suas forças, mas o ho-mem Raposa-branca era incansável. Visivelmente ele ama-va sua estranha terra gelada e parecia aborrecido pelos dois saberem tão pouco a respeito dela. Insistia para que eles bebessem freqüentemente, mesmo quando não esta-vam com sede e fazia com que carregassem suas peles de água dentro das parcas, para evitar o congelamento. Tam-bém fazia com que racionassem a quantidade de gordura que comiam ou com a qual lambuzavam o rosto.

— Vocês precisarão dela para derreter gelo! — dis-se. — Lembrem-se de que só terão tanta água se tiverem a mesma quantidade de gordura para derreter gelo!

Vendo sua expressões intrigadas, ele suspirou. — Para sobreviver, vocês terão que fazer como fa-

zemos. Seguir o I jeito das criaturas do gelo. O lagópode cava um abrigo na neve. Nós também. O êider reveste seu ninho com penas. Nós fazemos o mesmo com os nossos

sacos de dormir. Comemos a nossa carne crua, como o urso-branco. Tiramos a força e a resistência da rena e da foca, ao fazer as nossas roupas de suas peles. Esse é o jei-to do gelo. — Olhou com o canto do olho para o céu. — Acima de tudo, prestamos atenção ao vento, que dirige as nossas vidas.

Como se em resposta, este começou a soprar do norte. Torak sentiu no rosto o seu toque gelado e perce-beu que não era agradável.

Inuktiluk deve ter adivinhado seus pensamentos, pois apontou para a margem mais distante do lago, onde se encontrava um dos homens de pedra.

— Nós construímos aqueles para homenageá-lo. Mais cedo ou mais tarde, vocês terão de fazer uma ofe-renda.

Torak ficou preocupado com aquilo. No fundo de sua sacola ficava a faca de ardósia azul de Pa e, em sua algibeira de remédios, o chifre de remédios de sua mãe. Não conseguia imaginar ter de se separar de qualquer um deles.

Por volta do meio do dia, chegaram a uma terra si-nistra onde gigantescas placas de gelo balançavam louca-mente. Das profundezas, vinham ocos gemidos e estron-dos ecoantes. Os cães baixaram as orelhas e Inuktiluk se-gurou um amuleto de garra de águia cerzido à sua parca.

— Esta é a orla de gelo — disse ele em voz baixa —, onde o gelo da terra e o gelo do mar lutam por su-premacia. Precisamos atravessar rapidamente.

Renn esticou o pescoço para um espigão denteado que assomava acima.

— Parece até haver demônios aqui. O Raposa-branca lançou-lhe um olhar penetrante.

— Este é um dos lugares onde os demônios do Mar se aproximam da casca do nosso mundo. Ficam in-dóceis. Tentam sair.

— E conseguem? — perguntou Torak. — Às vezes um escapa por uma fenda. — É o mesmo na Floresta — disse Renn. — Os

Magos ficam de olho, mas alguns demônios sempre esca-pam.

Inuktiluk concordou com a cabeça. — Este inverno tem sido pior do que a maioria. No

Tempo Escuro, quando o sol estava morto, um demônio arremessou uma grande ilha de gelo contra o continente. Ela esmagou um abrigo do Clã da Morsa, matando quem estava dentro. Pouco depois, outro demônio enviou uma doença que levou o filho de uma mulher do meu clã. En-tão seu filho mais velho caiu no gelo. Procuramos, mas não o encontramos. — Fez uma pausa. — É por isso que precisamos mandá-los para o sul. Vocês trouxeram um grande mal!

— Não fomos nós que o trouxemos — protestou Torak.

— Nós o seguimos — justificou Renn. — Me digam o que vocês pretendem — insistiu o

Raposa-branca. Eles ficaram em silêncio. Torak sentiu-se mal, pois começava a gostar de I-

nuktiluk. Prosseguiram através das despedaçadas montanhas

de gelo. Finalmente, a costa de gelo deu lugar ao gelo mais plano, enrugado. Para surpresa de Torak, Inuktiluk ergueu os ombros e inspirou profundamente.

— Ah! Mar de gelo! Muito melhor! Torak não compartilhou seu alívio. O gelo adiante

parecia se curvar. Atônito, ele observou-o subir e descer suavemente, como a pele de uma enorme criatura.

— Sim — disse Inuktiluk —, ele se curva com a respiração da mãe Mar. Em breve, na Lua dos Rios Rugi-dores, começará o derretimento e este lugar se tornará mortal. Grandes rachaduras... nós as chamamos de racha-duras de marés... surgem sob os seus pés e o engolem. Mas, por enquanto, é um ótimo lugar para caçar.

— Caçar o quê? — indagou Torak. — Lá perto do lago, vi pegadas de lebre, mas aqui não há nada.

Pela primeira vez, Inuktiluk olhou-o com um ar de aprovação.

— Você percebeu elas? Eu não imaginava que um garoto da Floresta conseguisse. — Apontou para baixo. — Nossa presa está sob o gelo. Fazemos como o urso-branco. Caçamos foca.

Renn tremeu. — Ursos-brancos comem gente? — O Grande Viajante come qualquer coisa — ex-

plicou Inuktiluk, ao fincar a galhada no gelo para deter os cães. — Mas ele prefere foca.

É o melhor caçador que existe. Consegue farejar uma foca através de gelo da grossura do comprimento do braço de um homem.

— Por que você parou? — quis saber Torak. — Vou caçar — anunciou o Raposa-branca. — Mas... não pode! Não podemos parar para caçar! — Bem, e o que vão comer? — retrucou Inuktiluk.

— Precisamos de mais gordura e de carne para os cães! Isso forçou Torak ao silêncio; mas, por dentro, ele

ardia de impaciência. Fazia seis dias desde que Lobo fora levado.

Inuktiluk desamarrou seu cão-guia e lentamente caminhou pelo gelo. Em pouco tempo, o cão encontrou o que procurava.

— Um buraco de respiração de foca — disse baixi-nho Inuktiluk. Era pequeno: um montículo com um bura-co no topo com cerca de meio polegar de largura, as mar-gens sulcadas, onde a foca havia roído para mantê-lo aber-to.

Inuktiluk pegou no trenó um pedaço de pele de re-na e deitou-o no chão com o lado do pêlo sobre o gelo, a favor do vento em relação ao buraco.

— Para abafar o som das minhas botas, como nas patas peludas do urso-branco. — Colocou uma pena de ganso sobre o buraco. — Pouco antes da foca emergir, ela expira... e a pena se mexe. É quando preciso agir rápido. A foca engole apenas um pouco de ar antes de mergulhar novamente.

Fez sinal para que eles voltassem ao abrigo do tre-nó.

— Preciso ficar parado e esperar, como o urso-branco, mas, com essas roupas, vocês vão congelar. Prote-jam-se do vento e fiquem imóveis O menor tremor vai aler-tar as focas. — Ele se posicionou e ficou imóvel, com o arpão erguido.

Ao se agachar atrás do trenó, Torak começou a de-satar os nós que prendiam sua mochila aos patins.

— Que está fazendo? — cochichou Renn. — Vou dar o fora daqui — disse ele. — Você vem? Ela passou a desamarrar sua sacola. Estavam atrás de Inuktiluk, portanto conseguiram

colocar sobre os ombros suas mochilas e sacos de dormir sem ser vistos; mas, assim que se levantaram, ele virou a

cabeça. Não se mexeu nem falou. Apenas olhou. Desafiadoramente, Torak encarou-o. Mas ele não

se mexeu. Aquele homem abrira uma veia para salvá-lo. Era um caçador, como eles. E estavam para estragar sua caçada.

— Não podemos fazer isso — murmurou Renn. — Eu sei — retrucou Torak. Lentamente, baixaram

suas mochilas. Inuktiluk voltou sua atenção ao buraco de respira-

ção. De repente, a pena estremeceu. Com a velocidade de um gerifalte, Inuktiluk arre-

messou o arpão. A cabeça do instrumento deixou a haste e se enfiou como um pino na pele da foca. Com uma das mãos, ele içou a corda amarrada à cabeça e, com a outra, usou a haste do arpão desarmado para alargar o buraco de respiração.

Largando as mochilas, Torak e Renn correram para ajudar. Um tremendo puxão — e a foca estava do lado de fora e morta com uma pancada na cabeça antes de cair sobre o gelo.

— Obrigado — ofegou Inuktiluk. Eles o ajudaram a arrastar a brilhante carcaça prate-

ada para longe do buraco. Os cães agitaram-se para pegá-la, mas Inuktiluk os

silenciou com uma ordem. Ao retirar a cabeça do arpão do ferimento, ele o fechou, costurando-o com um osso fino a que chamava de “tampão de ferimento”, para não desperdiçar sangue. Em seguida, rolou a foca de costas e enfiou seu focinho no buraco.

— Para enviar suas almas à Mãe Mar, para que re-nasçam. — Tirou as mitenes e alisou a barriga branca com

pintas. — Obrigado, minha amiga. Que a Mãe Mar lhe dê um excelente novo corpo!

— Nós fazemos o mesmo na Floresta — comen-tou Renn. Inuktiluk sorriu. Ao cortar a foca no local exa-to, de enfiou a mão nas entranhas do animal e arrancou-lhe o fumegante fígado vermelho-escuro.

Atrás deles, ouviu-se um latido e viram uma peque-na raposa-branca sentada sobre o gelo. Era menor e mais gorda do que a raposa-vermelha da Floresta e observava Inuktiluk com inquisitivos olhos castanho-dourados.

Ele sorriu. — O guardião quer a sua parte! — Jogou-lhe um

pedaço, a raposa apanhou-o destramente e engoliu-o de uma vez só. Inuktiluk entregou pedaços do fígado a Torak e Renn. Ele era firme e doce e desceu facilmente goela abaixo. O Raposa-branca jogou os pulmões para os cães; mas Torak notou que eles apenas os farejaram e parece-ram agitados demais para comer.

— Tivemos sorte — disse Inuktiluk com a boca cheia de fígado. — Às vezes espero um dia inteiro para uma foca sair. — Ergueu uma sobrancelha. — Não sei se vocês teriam paciência de esperar tanto.

Torak pensou por um momento. — Quero lhe contar uma coisa. — Fez uma pausa.

Renn concordou com a cabeça. — Viemos ao norte para procurar o nosso amigo — prosseguiu. — Por favor. Tem que nos deixar ir.

Inuktiluk suspirou. — Sei que têm boa intenção. Mas precisam enten-

der que eu não posso fazer isso. — Por quê? — perguntou Renn. Do outro lado do trenó, os cães ganiam e forçavam

seus arreios. Torak foi ver o que os perturbava. — O que foi? — quis saber Renn. Ele não respondeu. Tentava entender a fala dos

cães. Comparada com a fala dos lobos, era muito mais simples, como o balbuciar de filhotes.

— Eles farejam alguma coisa — disse ele —, mas o vento sopra forte e não têm certeza de onde está.

— O que é que eles farejam? — perguntou Renn, alcançando seu arco.

Inuktiluk ficou de queixo caído. -Vocês... ele os entende? Torak não teve chance de responder. Um monte de

gelo à sua esquerda ergueu-se subitamente... e tornou-se um grande urso-branco.

DOZE

O urso-branco levantou a cabeça sobre o comprido

pescoço e sentiu o cheiro de Torak. Com um movimento sem qualquer esforço, empi-

nou-se sobre as patas traseiras. Era mais alto do que um homem de pé nos ombros de outro e cada pata tinha o dobro do tamanho da cabeça de Torak. Uma pancada quebraria sua espinha como um ramo de salgueiro.

Balançando a cabeça de lado a lado, ele semicerrou os duros olhos negros e farejou o ar. Avistou Torak para-do sozinho sobre o gelo;Renn e Inuktiluk movimentando-se para se abrigar atrás do trenó. Sentiu o cheiro da neve ensangüentada mais além deles e da carcaça semi-estripada da foca. Ouviu os cães uivando e retesando seus arreios na ânsia vã de atacar. Tomou conhecimento de tudo com a tranqüila facilidade de uma criatura que não conhecia o medo. A força do inverno estava em seus membros, a sel-vageria do vento em suas garras. Ele era invencível.

O sangue bramiu nos ouvidos de Torak. O trenó estava a dez passos dele. Era como se fossem cem.

Em meio ao silêncio, o urso baixou para as quatro patas e uma ondulação percorreu sua pesada pelagem branco-amarelada.

Não corra — Inuktiluk falou baixinho para Torak. — Caminhe. Na nossa direção. De lado. Não mostre suas costas. Com o canto do olho, Torak viu Renn encaixar uma flecha em seu arco; Inuktiluk segurava um arpão em cada mão. Não corra.

Mas suas pernas ansiavam por correr. Ele estava de volta à Floresta, correndo dos destroços do abrigo onde seu pai jazia moribundo, correndo do urso demônio. “To-rak!”, gritou Pa em seu último suspiro. “Corra!”

Reunindo cada migalha de força de vontade, Torak deu um passo trêmulo em direção ao trenó.

O urso-branco baixou a cabeça e fixou o olhar em Torak. Então — com um passo indolente e contido — caminhou lentamente entre ele e o trenó.

Torak balançou o corpo. O urso-branco não fazia qualquer som ao pousar

cada pata. Nem mesmo um estalido de garras no gelo. Nem sequer um cicio de respiração.

Praticamente sem saber o que fazia, Torak escorre-gou a mão para fora da mitene e tateou atrás da faca. Esta não se soltou de sua bainha. Ele puxou com mais força. Não adiantou. Ele devia ter ouvido o conselho de Inukti-luk e tê-la mantido dentro da parca. A bainha de couro havia se solidificado ao congelar.

— Torak! — chamou Inuktiluk baixinho. — Pegue! Um arpão voou pelo ar e Torak apanhou-o com uma das mãos. A fina ponta de osso parecia para lá de frágil. — Isso vai adiantar? — perguntou ele. — Não muito. Mas pelo menos morrerá como um homem.

O urso-branco bafejou um áspero “hssh” — e To-

rak vislumbrou um lampejo de garras amarelas e concluiu, com uma fria pontada de terror, que o arpão fora um erro. Esse urso não se deixaria intimidar;mas poderia ser incita-do ao ataque.

Ele captou um tremular de movimento. Renn le-vantava seu protetor de olhos para fazer pontaria.

— Não! — advertiu ele. — Só pioraria tudo Ela percebeu que ele estava com a razão e baixou o

arco. Mas manteve a flecha encaixada, pronta. Os cães latiam e mordiam seus tirantes. O urso-

branco girou a cabeça sobre o comprido pescoço e rugiu: um terrível estrondo reverberante que sacudiu o gelo.

O urso fez contato visual com Torak — e o mundo se desfez. Ele não conseguia ouvir os cães, não conseguia ver Renn ou Inuktiluk, não conseguia nem mesmo piscar. Nada existia além daqueles olhos: mais negros que o ba-salto, mais fortes que o ódio. Enquanto os fitava, ele sabia — ele sabia — que, para o urso-branco, todas as demais criaturas eram presas.

Sua mão na haste do arpão estava escorregadia com o suor. Suas pernas não se mexiam.

O urso movimentou suas grandes mandíbulas e ba-teu no gelo com a pata. A força da pancada estremeceu o chão até onde estava Torak. De algum modo, ele demar-cava o seu terreno.

Um urso da Floresta rosna se pretende apenas a-meaçar; mas, se está caçando de verdade, ele o faz com um silêncio mortal. O mesmo valeria ali no gelo?

Não.

O urso-branco saltou na direção dele. Torak viu a pele negra escoriada de seu focinho, a

comprida língua roxo-cinzento. Sentiu o bafo quente queimar suas faces...

Com espantosa agilidade o urso deu uma guinada — empinou — e socou o gelo com ambas as patas dian-teiras.

Os joelhos de Torak se curvaram e ele quase caiu. Agora o urso-branco afastava-se dele, aproximan-

do-se do trenó, golpeando-o para afastá-lo facilmente do caminho como se fosse casca de bétula. Inuktiluk mergu-lhou para um lado, Renn para o outro — mas, quando o trenó desabou no chão, atingiu-a no ombro e ela caiu com um grito, um braço preso debaixo de um patim, direta-mente no caminho do urso.

Torak arremessou-se adiante, agitando o arpão e gritando:

— Aqui estou eu! Ela não, eu! Eu! Inuktiluk, também, gritava e fazia gestos de espetar

com seu arpão — e, no instante em que o urso se virou em sua direção, Torak deu um puxão no trenó para tirá-lo de cima de Renn e agarrou seu braço, meio que arrastan-do-a para fora do caminho dele. Nesse momento, um dos cães rompeu seu tirante e voou para cima do urso. Uma enorme pata rebateu-o para longe, fazendo-o voar pelo espaço e pousar com um repugnante estalido no gelo. Quando Torak e Renn se jogaram no chão, o urso saltou por cima deles, mais interessado na carcaça da foca, e a-garrou a cabeça dela com suas mandíbulas. Em seguida, saiu correndo pelo gelo, carregando a foca com toda a facilidade como se fosse uma truta.

— Os cães! — gritou Renn. — Segure-os!

O filhote escondeu-se debaixo do trenó, mas os ou-tros estavam indóceis em sua volúpia por sangue e conti-dos apenas por seus tirantes — agora, forçando-os ao mesmo tempo, romperam-nos e saíram correndo em per-seguição, ignorando as ordens que Inuktiluk gritava. Os tirantes que os cães arrastavam se prenderam em suas bo-tas e Torak e Renn observaram horrorizados, enquanto ele era arrastado pelo gelo.

Os cães eram fortes e ligeiros, ligeiros demais para ser alcançados. Torak colocou as mãos nos lábios e latiu a ruidosa e brusca ordem que em fala de lobo significa: PAREM!

Sua voz fendeu como uma chicotada e os cães obe-deceram imediatamente, curvando-se com os rabos enfia-dos entre as pernas.

Longe dali, o urso-branco desapareceu por entre as colinas azuis.

Torak e Renn correram para onde Inuktiluk já esta-va sentado esfregando a testa.

Ele se recuperou depressa. Prendeu os tirantes no punho, sacou a faca e, com o cabo, desferiu golpes de cas-tigo nos cães, o que os fez guinchar. Em seguida, ofegan-do, fez para Torak um gesto de agradecimento com a ca-beça.

— Nós é que devíamos agradecer a você — disse Renn tremendo. — Se não tivesse distraído o urso...

O Raposa-branca sacudiu a cabeça. — Nós só estamos vivos porque ele nos deixou vi-

ver. — Virou-se para Torak. A desconfiança estava de volta ao seu rosto. — Os meus: cães. Você pode falar com eles. Quem é você? O que é você?

Torak enxugou o suor de seu lábio superior.

— Precisamos ir embora. Esse urso pode estar em qualquer lugar.

Inuktiluk examinou-o por um momento. Então re-uniu seus cães remanescentes, colocou sobre o ombro o corpo do morto e foi coxeando de volta para o trenó.

Torak largou seu arpão com um ressoar e curvou o corpo com as mãos apoiadas sobre os joelhos.

Renn massageou o próprio ombro. Ele perguntou se ela estava bem. — Dói um pouco — disse ela. — Mas pelo menos

não foi o braço que uso para disparar. E você? — Bem. Estou bem. — Então caiu de joelhos e

começou a vomitar. O sol declinante queimava com dourado o gelo a-

zul-escuro, enquanto os cães corriam na direção do acam-pamento Raposa-branca.

A noite caiu. A lua delgada saiu. Torak continuava

olhando o céu, mas nenhuma vez avistou a Primeira Ar-vore: os vastos e silenciosos fogos verdes que apareciam no inverno. Ansiava por isso como nunca antes; precisava de algum elo com a Floresta. Mas este não veio.

Passaram por escuras e denteadas colinas de gelo e ouviram estrondos e gemidos distantes. Pensaram em de-mônios martelando para se libertar. Finalmente, Torak avistou uma partícula de luz laranja. Os cães exaustos fare-jaram o lar e aumentaram a velocidade.

Ao se aproximarem do acampamento Raposa-branca, Torak viu um enorme abrigo de neve corcovado com mais três menores ligados a ele por pequenos túneis. Todos eram formados de blocos como favos e a luz bri-lhava através deles. Em volta, muitas pequenas corcovas

ganharam vida, espalhando neve e apregoando ruidosas boas-vindas.

Torak saltou rapidamente do trenó. Renn tremeu e esfregou o ombro. Estavam por demais entorpecidos de exaustão para se sentirem apreensivos com o que os a-guardava.

Inuktiluk insistiu para que sacudissem cada floco de neve de suas roupas e até mesmo retirou o gelo de suas sobrancelhas, antes de rastejar para a baixa entrada do tú-nel que fora construído em ângulo agudo, a fim de manter o vento do lado de fora. De quatro, Torak sentiu o amar-go fedor de óleo de foca queimando e ouviu um murmú-rio de vozes interrompido abruptamente.

Sob a luz da fumegante lamparina, ele viu pratelei-ras de ossos de baleia em volta das paredes, cheias de bo-tas e mitenes penduradas para secar; uma névoa resplan-decente de respiração gelada e um círculo formado por rostos redondos reluzindo a banha de foca.

Rapidamente, Inuktiluk contou ao seu clã como en-contrara os estranhos na tempestade e tudo o que aconte-cera desde então. Ele foi justo — mencionou que Torak o salvara de ser arrastado pelo gelo —, mas sua voz tremeu quando contou como o “menino-lobo” havia falado a lín-gua dos cães.

Os Raposas-brancas ouviram pacientemente sem

fazer perguntas e examinaram Torak e Renn com inquisi-tivos olhos castanhos, não muito diferentes dos daqueles de seu animal de clã. Não pareciam ter um líder, mas qua-tro anciãos se acotovelavam próximos à lamparina, em uma baixa plataforma de dormir com pilhas de peles de rena.

— São eles — guinchou uma mulher pequenina, o rosto escuro como um fruto de roseira brava enrugado pela geada. — São os tais que vi em minha visão.

Torak ouviu o acentuado inspirar fundo de Renn. Colocando ambos os punhos sobre o peito em sinal de amizade, ele se curvou diante da velha mulher.

— Inuktiluk disse que, em sua visão, me viram fa-zer maldade. Mas não fiz. E não farei.

Para sua surpresa, uma gargalhada percorreu o a-brigo e todos os quatro anciãos exibiram sorrisos desden-tados.

— Quem, dentre nós — disse a mulher —, sabe que mal faremos ou não? — Seu sorriso desvaneceu-se e sua testa enrugou-se de tristeza. — Eu vi você. Você esta-va para infringir a lei do clã.

— Ele não faria isso — afirmou Renn. A anciã não pareceu se incomodar com a interrup-

ção; simplesmente esperou para ver se Renn havia termi-nado e então voltou-se novamente para Torak.

— Os fogos no céu — disse ela calmamente — nunca mentem. Torak ficou aturdido.

— Não entendo! O que eu ia fazer? A dor contraiu o rosto idoso.

— Você estava para jogar uma machadinha em um lobo.

TREZE

— Atacar Lobo? — berrou Torak. — Eu jamais fa-

ria isso! — Eu também vi — deixou escapar Renn. — Em

meu sonho, eu vi isso! Ela não pôde evitar. Mas, assim que o disse, dese-

jou não ter dito. Torak a encarava como se nunca a tivesse visto an-

tes. — Eu nunca poderia machucar Lobo — afirmou

ele. — Não é possível. A anciã Raposa-branca abriu os braços. — Os Mortos não mentem. Ele abriu a boca para protestar, mas a velha falou

primeiro. — Agora descanse e coma. Amanhã, nós os envia-

remos para o sul e essa maldade passará. Renn pensou que ele fosse reagir, mas, em vez dis-

so, permaneceu calado, com aquele olhar obstinado que

sempre significava problema. Os Raposas-brancas agitaram-se ali em volta, apa-

nhando comida de nichos cortados nas paredes. Agora que seus anciãos haviam falado, eles pareciam contentes em preparar um banquete, como se Torak e Renn sim-plesmente estivessem ali por acaso, para uma noite de contação de histórias. Renn viu Inuktiluk regalar os de-mais com a história de como o urso-branco roubara sua foca, o que levou todos a soltarem sonoras gargalhadas.

— Não se preocupe, irmãozinho — gritou alguém —, eu consegui manter a minha, portanto ainda teremos o que comer!

— Por que você não me contou? — perguntou To-rak. Seu rosto estava tenso, mas ela podia ver que, por baixo da raiva, ele estava terrivelmente abalado.

— Eu ia contar — disse ela —, mas então você me contou o seu sonho e...

— Você acredita realmente que eu poderia machu-car Lobo?

— Claro que não! Mas eu vi isso. Você tinha uma machadinha. Estava parado sobre ele e ia atacar. — O dia todo ela carregara o sonho dentro de si. E não era do tipo comum que nem sempre significa o que parece; era do tipo com as cores berrantes, que ela tinha talvez a cada treze luas. Do tipo que se tornava realidade.

Alguém lhe passou um pedaço de carne de foca congelada e ela descobriu que estava esfomeada. Além da carne de foca, havia delicada pele de baleia com um reves-timento de gordura para mascar; bolinhas de brotos de salgueiro triturados das moelas de ptármigas e um delicio-so mingau doce de gordura de foca e amoras, o favorito dela. O abrigo vibrava com conversas e risadas. Os Rapo-

sas-brancas pareciam extremamente bons em esquecer suas preocupações e se divertir. Mas era desconcertante ter Torak sentado a seu lado num carrancudo silêncio.

— Discordar não vai nos ajudar a encontrar Lobo — observou ela. — Eu acho que devemos contar a eles sobre o Olho da Víbora...

— Pois eu não acho. — Mas, se eles souberem, talvez possam ajudar. — Eles não querem ajudar. Eles querem se livrar

de nós. — Torak, essa é uma boa gente. Ele virou-se para ela: — Boa gente pode sorrir e ser ruim por dentro! Eu

sei disso, eu já vi! Ela o encarou. — Não posso perdê-lo novamente — disse ele. —

Para você, é diferente. Você tem Fin-Kedinn e o resto do seu clã. Eu só tenho Lobo.

Renn piscou. — Você também tem a mim. — Não é a mesma coisa. Ela sentiu uma quentura elevar-se até as orelhas. — Às vezes — disse ela — eu me pergunto por

que ainda gosto de você! Nesse momento, uma mulher robusta chamou-a

para experimentar suas roupas novas — e ela se foi sem olhar para trás.

As palavras de Torak ressoavam em seus ouvidos enquanto ela rastejava por um túnel até um abrigo menor onde quatro mulheres cosiam. Para você, é diferente. Não, não é!, ela quis gritar. Não sabe que você e Lobo são os primeiros amigos que tive em minha vida?

— Sente-se a meu lado — pediu a mulher cujo nome era Tanugeak — e acalme-se.

Renn jogou-se sobre uma pele de rena e começou a arrancar pêlos.

— Raiva — comentou baixinho Tanugeak — é uma forma de loucura. E uma perda de resistência.

— Mas às vezes a gente precisa dela — murmurou Renn. Tanugeak deu uma risadinha.

— Você é igual ao seu tio! Ele também tinha raiva quando era jovem.

Renn sentou-se. — Você conhece Fin-Kedinn? — Ele veio aqui muitos verões atrás. — Por quê? Como você o conheceu? Tanugeak alisou a mão dela. — Você terá que perguntar a ele. Renn suspirou. Ela sentia terrivelmente a falta do

tio. Ele saberia o que fazer. — Essas suas visões — observou Tanugeak, exa-

minando o pulso de Renn. — Elas podem ser perigosas, você deveria ter marcas de luz para proteção. Estou sur-presa por sua Maga não ter cuidado disso.

— Ela queria fazer — alegou Renn —, mas eu nunca deixei.

— Deixe-me fazer. Eu também sou Maga. E preci-sará delas, eu acho. Você carrega uma porção de segredos. — Dirigindo-se a uma mulher que estava sentada afastada das demais, ela pediu objetos para tatuagem. Então, sem dar tempo a Renn para protestar, deitou o antebraço dela em seu vasto colo, esticou bem a pele e começou rapida-mente a picá-la com uma agulha de osso, pausando para mergulhar um pedaço de pele de gaivota em um copo

com tinta preta e esfregá-la nos furinhos. No início doeu, mas Tanugeak iniciou uma enfiada

de histórias para manter a mente de Renn afastada daqui-lo. Em pouco tempo, sua raiva se desfez, restando apenas a preocupação de que Torak pudesse fazer algo estúpido, como tentar escapar sem levá-la.

Ela sentia-se segura ali. Na plataforma de dormir, três crianças dormiam amontoadas, como filhotes de ca-chorros. Acima da lamparina de gordura, havia um bebê pendurado em uma bexiga de foca firmemente estofada com musgo. As mulheres conversavam e riam, decorando o ar com bafo congelado; apenas a que se sentava afasta-da, Akoomik, se mantinha em silêncio.

Quando uma modorrenta paz se instalou nela, Renn sentiu-se cuidada de um modo como nunca vivenci-ara antes: como se a espinhenta concha que criara em vol-ta de si para se proteger começasse a ser descascada deli-cadamente.

Tanugeak começou a tatuar o outro pulso e as mu-lheres mostraram as roupas novas de Renn, alisando-as com curtidas mãos morenas.

Havia perneiras externas e uma parca de um relu-zente prateado de pele de foca, à qual alguém costurara as penas de seu animal de clã. Havia um quente gibão e per-neiras internas de couro de êider, com as macias penas para ser usadas sobre a pele. Havia mitenes internas de pele de lebre e robustas mitenes externas; chinelos de pe-nugem de ptármigas para ser usados com macias meias feitas de pelagem de focas jovens. E, para proteção contra umidade, havia magníficas botas de couro de foca despe-lado, com um trançado em ziguezague feito de tendões, e excelentes solas pregueadas.

— Lindo — murmurou Renn. — Mas não tenho nada para lhes dar em troca.

As mulheres pareceram atônitas e então gargalha-ram.

— Não queremos nada em troca — disse uma. — Volte no Tempo Escuro — sugeriu outra — e

faremos um conjunto de roupas de inverno para você. Essas são apenas para a primavera!

Akoomik não participou da gargalhada enquanto guardava suas agulhas num pequeno estojo feito de osso. Renn notou nele pequenas marcas de dente e perguntou quem as tinha feito.

— Meu bebê — respondeu Akoomik. — Durante a dentição. Renn sorriu.

— Ele já passou da fase ruim? — Ah, sim — disse Akoomik com um tom de voz

que fez Renn se arrepiar. — Ele está bem ali. — Apontou para um compartimento recortado na parede, no qual ha-via uma pequena trouxa endurecida envolta em couro.

— Lamento — disse Renn. Também ficou com medo. Na Floresta, os clãs le-

vavam os Mortos para longe de seus abrigos, para que su-as almas não perturbassem os vivos.

— Nós mantemos os nossos Mortos com a gente — explicou Akoomik — para protegê-los das raposas.

— E para evitar que se sintam desprezados — a-crescentou Tanugeak como consolo. — Eles gostam de tagarelar tanto quanto a gente. Quando você vê uma estre-la andando muito depressa no céu, é um deles se prepa-rando para visitar seus amigos.

Renn achou essa idéia reconfortante, mas Akoomik beliscou a ponta de seu nariz para conter o pesar.

— Os demônios levaram sua respiração uma lua a-trás. Agora levaram também o meu filho mais velho.

Renn lembrou-se do que Inuktiluk dissera sobre o menino perdido no gelo.

— Meu companheiro morreu de febre na Lua do Longo Escuro — prosseguiu Akoomik. — Depois minha mãe sentiu a morte chegar e foi ao seu encontro, para que ela não tirasse comida dos mais jovens. Se o meu filho não voltar, eu não terei ninguém. — Seus olhos eram embaça-dos: como se uma luz tivesse sido apagada. Renn vira isso antes, em pessoas cujas almas estavam doentes.

Se eu perder Lobo, não terei ninguém. Finalmente ela entendeu o que Torak quis dizer.

Sua mãe morreu quando ele nasceu. Perdera o pai para o urso. Nem mesmo conhecera o resto de seu clã. Era mais sozinho do que qualquer um que ela conheceu. E, embora também tivesse perdido os pais, ela se deu conta de que, com Torak, assim como com Akoomik, o pesar ainda es-tava cru. Se ele perdesse Lobo...

Mais uma vez, ela se perguntou como conseguiria lhe contar sobre de que suspeitava.

— Pronto — anunciou Tanugeak, fazendo-a pular. Renn examinou os caprichados ziguezagues na par-

te interna dos pulsos. Eles a fizeram se sentir mais forte, mais protegida.

— Obrigada — disse ela. — Agora preciso encon-trar o meu amigo.

— Antes, pegue isto. — Tanugeak entregou-lhe uma algibeira feita com a pele escamosa de pés de gansos, sem a retirada das garras.

— O que tem aí? — perguntou Renn. — Coisas de que poderá precisar. — Ela inclinou-

se para mais perto. — Escute bem — falou baixinho. — Naquela noite, os anciãos viram algo mais no céu. Não temos certeza do que significa, mas tenho a sensação de que você talvez saiba. — Fez uma pausa. — Era um for-cado com três pontas, do tipo que um curandeiro usaria para apanhar as almas dos doentes. Mas esse parecia mau.

Os dedos de Renn apertaram-se na algibeira. — Ah! — fez Tanugeak. — Percebo que você an-

dou temendo isso. — Ela tocou a mão de Renn. — Vá. Encontre o seu amigo. Quando chegar a ocasião certa, conte-lhe os segredos que carrega.

Quando Renn voltou ao abrigo principal, os Rapo-sas-brancas haviam se acomodado para a noite. A maioria dormia abraçada uns aos outros, enquanto alguns poucos permaneciam sentados amaciando tendões entre os dentes ou dobrando botas endurecidas para torná-las usáveis pela manhã. Torak dormia profundamente em uma extremida-de da plataforma de dormir.

Renn entrou em seu saco de dormir, imaginando o que fazer. A visão das Raposas-brancas confirmara o que ela vinha temendo há dias. Os Devoradores de Almas ti-nham levado Lobo.

Temia contar a Torak. O quanto mais conseguiria agüentar?

Ela acordou com Inuktiluk sacudindo seu ombro. Todos os demais dormiam, mas através de uma

fenda no abrigo, ela viu que a lua estava baixa: a alvorada estava próxima. Torak havia sumido.

Sentou-se aprumada. — Ele espera lá fora — avisou Inuktiluk movimen-

tando apenas os lábios. — Siga-me! Silenciosamente seguiram o caminho para o abrigo

menor, onde Renn trocou suas roupas pelas novas e inusi-tadas.

O ar da noite cortava como uma faca, mas não ha-via vento. A neve cintilava no brilho tênue da lua agoni-zante. A crosta havia congelado, portanto tiveram de ca-minhar com todo o cuidado. Alguns cães se mexeram, ao captar o faro dos dois, e voltaram a cair no sono. Torak esperava. Assim como Renn, ele também estava com rou-pas novas: ela mal o reconheceu em sua parca prateada.

— Eles estão nos ajudando a fugir! — cochichou ele, os olhos brilhando de emoção.

— Eles quem? — sibilou Renn. — E por quê? Inuktiluk sumira no escuro e foi Torak quem res-

pondeu. — Eu contei tudo a ele. Você tinha razão, eles sa-

bem a respeito do Olho da Víbora! E há uma mulher... Akoomik? Ela vai nos dizer onde fica!

Renn estava atônita. — Mas... pensei que você não confiava neles. O

que o levou a mudar de idéia? — Você. — Deu-lhe um dos seus raros sorrisos lu-

pinos. — De vez em quando, eu ouço você. Inuktiluk acenava e então seguiram-no para leste

até chegarem a uma fenda no gelo. Renn avistou o escuro vislumbre de água e sentiu o cheiro penetrante do Mar.

Seguiram o canal que se alargava constantemente e então Torak tocou no braço dela.

— Olhe. Ela ofegou. — Um caiaque! Tinha três passos de comprimento e era robusta-

mente construído de pele de foca despelada, esticada so-

bre uma estrutura de ossos de baleia. Suas mochilas esta-vam caprichosamente acondicionadas em cada extremida-de e havia dois remos de duas pás pousados sobre ele.

— Este canal leva ao Mar aberto — informou I-nuktiluk. — Assim que o alcançarem, mantenham a terra à vista, mas fiquem longe da embocadura do rio de gelo.

— Você nos disse que ninguém jamais o atravessou — lembrou Torak.

O rosto redondo abriu-se num sorriso. — Mas muitos já remaram em volta dele! — Em se-

guida, o sorriso se apagou. — Cuidado com o gelo negro. É mais denso do que o branco e afundará vocês em pou-cos momentos. Se virem um pedaço na água é porque já passaram por vários sem perceber.

Renn ficou imaginando como iriam localizar gelo negro num Mar negro.

Torak ergueu seu remo, ansioso para partir. — Como encontraremos o Olho da Víbora? Akoomik emergiu das sombras e, com sua faca,

começou a entalhar marcas na neve. — Passado o rio de gelo, sigam a Estrela do Norte

— disse ela — cerca de um dia de remada daqui. Quando virem uma montanha com a forma parecida com três cor-vos empoleirados em um banco de gelo, aportem na baía abaixo dele e subam a elevação que espirala em volta de seu flanco noroeste.

— Mas o que é ele? — indagou Renn. — Como saberemos que o encontramos?

Ambos Raposas-brancas se arrepiaram e fizeram o sinal com a mão.

— Vocês saberão — afirmou Akoomik. — E que o guardião os salve — disse Inuktiluk —

se vocês se aventurarem no interior. — Ele ajudou-os a embarcarem no caiaque.

Torak manejou seu remo com toda a confiança, mas Renn sentia-se insegura. Não tinha muita prática com barcos.

— Por que vocês estão nos ajudando? — pergun-tou ela aos Raposas-brancas.

— Os anciãos não conhecem vocês como nós co-nhecemos — disse Inuktiluk. — Quando eu explicar, eles não ficarão zangados. Além disso — acrescentou —, se eu não os ajudasse, vocês fugiriam de qualquer maneira!

Akoomik examinou o rosto de Torak. — Você perdeu alguém. Eu também. Se você en-

contrar o que procura, talvez eu também encontre. Torak pensou por um momento, então remexeu

sua mochila e pressionou algo com a mitene. — Tome isto. Ela franziu a testa. — O que são? — Presas de javali. Eu tinha esquecido delas; mas

são especiais. Pertenceram a um amigo meu. Ofereça-as ao vento. Por nós dois.

Inuktiluk deu um resmungo de aprovação e os den-tes brancos de Akoomik se revelaram no primeiro sorriso que Renn a via dar

— Obrigada! Que o guardião acompanhe vocês! — E você também! — sussurrou Renn. Então partiram, talhando a água negra e em direção

ao Mar aberto, para encontrar Lobo.

CATORZE

Os estranhos lobos uivavam a muitos trotes de dis-

tância e, enquanto Lobo ouvia, sentia a mordida da soli-dão.

Soube que se tratava de uma grande alcatéia e que cada lobo modificava habilmente seu uivo para fazer pare-cer como se existissem ainda muito mais deles. Lobo co-nhecia esse truque; ele o havia aprendido quando andara com a alcatéia da Montanha.

Em sua cabeça, viu os lobos erguerem os focinhos alegremente para o Olho Branco Brilhante. Ele ansiava por uivar em resposta. Mas estava imprensado sob a mal-dita pele de veado. Uivar era apenas uma lembrança.

A árvore deslizante sacudiu enquanto os sem-rabos subiam uma elevação. Lobo forçou-se a ficar alerta, estar pronto para quando o seu irmão de alcatéia viesse. Mas se tomava cada vez mais difícil. A sede arranhava sua gargan-ta. A dor mordia sua cauda. Quando eles estiveram no Grande Molhado, nas terríveis peles flutuantes, ele adoe-cera. Sua barriga ainda doía.

Os outros animais não se sentiam melhor. A lontra se recolhera a um silêncio sem esperança, embora Lobo farejasse que ela ainda não era Sem-bafo. O lince e a rapo-sa — a quem Pêlo-desbotado capturara e prendera a outra árvore deslizante — não uivavam desde o Claro. Apenas o carcaju dava ocasionais rosnados furiosos.

A estranha alcatéia encerrou seu uivado e as colinas brancas cantaram em silêncio. Lobo sabia que agora os lobos estavam lambendo e fungando uns aos outros, de prontidão para a caçada. Antes que ele e o Alto Sem-rabo saíssem para caçar, sempre lambiam-fungavam e tocavam focinhos, embora, é claro, apenas Lobo sacudisse seu ra-bo.

A árvore deslizante virou na direção do vento e ele farejou montanhas se aproximando. Percebeu um arrepio de emoção percorrer os sem-rabos e deduziu que chega-vam ao final de seu demorado trote.

Pele-fedorenta veio trotar ao lado dele e enfiou um pedaço do Frio Macio Brilhante através da pele de veado. Desajeitadamente, Lobo pegou-o entre as mandíbulas a-pertadas e mastigou-o. Não tinha mais força de vontade para recusar o que lhe davam.

Mais adiante, Pêlo-desbotado falou com Língua de Víbora, os dois olharam para ele e irromperam nos lati-dos-uivos de gargalhada dos sem-rabos. A raiva mordeu sua barriga. Em sua cabeça, ele se soltou da pele de veado e saltou em cima de Pêlo-desbotado, rasgando sua gargan-ta para que o sangue esguichasse...

Mas apenas em sua cabeça. Ele estava ficando mais fraco. Mesmo se se soltasse, não teria força para derrubar Pêlo-desbotado. Ficou preocupado com o fato de que, quando Alto Sem-rabo e sua irmã de alcatéia finalmente

chegassem, ele estaria fraco demais para lutar a seu lado. À medida que o Claro fugia, uma montanha asso-

mava. O vento cessou. Lobo farejou que ali havia peque-nas presas e nenhum lobo. Seu pêlo formigou de medo.

A árvore deslizante sacudiu e parou. Ali, contra o flanco da montanha, um Brilhante Bi-

cho-que-morde-quente rosnava e, a seu lado — silenciosa e sem se mexer — esperava a tal Cara-de-pedra.

Ela permanecia com as patas dianteiras coladas ao lado do corpo e Lobo percebeu que, numa delas, segurava a coisa cinzenta que mordia frio. Estava totalmente imó-vel, contudo sua sombra projetada no flanco da montanha oscilava como asas espedaçadas.

Lobo não a vira nem sentira o seu cheiro desde quando ela surgira deslizando pela brancura sibilante. A-gora, um vislumbre de seu terrível rosto tornou-o nova-mente um filhote lamuriento.

Em silêncio, os outros sem-rabos deixaram as árvo-res deslizantes e foram se juntar a ela. Estavam com me-do, mas, como antes, escondiam uns dos outros o seu te-mor.

A tal Cara-de-pedra falou com a sua voz chocalhan-te e toda a alcatéia se acocorou em volta do Brilhante Bi-cho-que-morde-quente e começou a balançar para a frente e para trás. Para a frente e para trás, para a frente e para trás. Observá-los fazia Lobo ficar tonto, mas não conse-guia desviar a vista. Então iniciaram um baixo e constante rosnado que pulsava através de Lobo como as patas de uma rena galopando sobre terreno duro. E prosseguiu ininterruptamente, mais depressa, mais alto, até o seu co-ração bater dolorosamente no peito.

E então, da montanha, veio um cheiro de Escuro e

demônios correndo por cima dele como um Molhado Li-geiro invisível.

De repente, Cara-de-pedra ergueu a pata dianteira — a pata na qual segurava a coisa cinzenta que mordia frio. Então — enquanto Lobo olhava assombrado — ela enfiou a pata diretamente nas mandíbulas do Brilhante Bicho!

Paralisado de horror, ele viu Pele-fedorenta enfiar sua pata dianteira, em seguida Pêlo-desbotado e depois Língua de Víbora. Observou-os balançar para a frente e para trás, ainda dando aquele rápido e frio rosnado, com suas patas enfiadas bem fundo nas mandíbulas crepitantes do Bicho Brilhante.

Subitamente, deram um uivado triunfante — e ar-rancaram novamente suas patas.

Lobo não conseguia acreditar no cheiro que sentia! As patas dianteiras deles não fediam a carne que acabara de ser mordida pelo Bicho Brilhante! Seu cheiro era fresco e puro! O que eram esses sem-rabos que o Bicho Brilhante temia morder?

O medo subjugou Lobo: medo não apenas por si mesmo mas por seu irmão de alcatéia.

Alto Sem-rabo e a fêmea eram espertos e corajosos e tinham Longas Garras-que-voam-longe. Mas, se atacas-sem aqueles estranhos e malvados sem-rabos, eles seriam feitos em pedaços.

QUINZE

— O que é aquilo na água? — sussurrou Renn. —

Uma foca — disse Torak por cima do ombro. — Tem certeza? — Não. — Parece um urso-branco. — Se fosse um urso-branco a gente já teria sabido. Mas ela vira. Uma grande forma pálida deslizando

pela água negra por baixo do caiaque. — Inuktiluk me contou que há baleias brancas —

lembrou Torak. — Talvez tenha sido isso o que você viu. Para contrariedade de Renn, Torak não parecia a-

medrontado. Mas ele era melhor no manejo do caiaque e estava concentrado demais em encontrar Lobo para sentir medo.

A onda ergueu o barco e ela enterrou seu remo na água tentando não pensar no que havia lá embaixo. A Mãe Mar poderia afogá-los com uma pancadinha de sua barba-tana. Eles afundariam para o negro sem fundo, as bocas abertas em um grito que não tinha fim, e, quando os pei-

xes tivessem mordiscado seus ossos, deixando-os nus, o Povo Oculto os enrolaria para sempre em seus longos ca-belos verdes...

— Cuidado — bradou Torak —, está espirrando água em mim.

— Desculpa. Os braços dela doíam e, apesar do visor de olho-

de-coruja, sua cabeça latejava por causa do clarão. Eles haviam alcançado o Mar aberto pouco após o amanhecer e agora se encontravam em um lúgubre mundo de água verde-escura e flutuantes montanhas de gelo azuis. Para o leste, estendia-se a branca vastidão da orla; para o norte, o vasto caos despedaçado do rio de gelo.

— Devagar demais — murmurou Torak. Ganhan-do velocidade, guiou-os para trás de uma montanha flutu-ante.

— Acho que a gente não deve chegar muito perto — disse Renn.

— Por que não? Isso nos manterá protegidos do vento.

Renn se concentrou em suas remadas; No verde-claro sopé da montanha de gelo, três focas se aqueciam. Fixou os olhos nelas e disse a si mesma para não se preo-cupar.

Não adiantou. Ela estava preocupada. A necessidade de Torak de encontrar Lobo era mortificante,— começou a se perguntar aonde isso levaria. E ainda não lhe contara sobre os Devoradores de Almas.

Uma pequena montanha de gelo passou deslizando por eles em sua misteriosa jornada. Ela sentiu sua respira-ção congelante, ouviu o bater e o sugar do Mar entalhar uma caverna em seu flanco. A caverna era uma mancha

azul ovalada. Como um olho, pensou ela. — O Olho da Víbora! — exclamou subitamente. — Estive também pensando nisso — disse Torak.

— Não deve ter nada a ver com uma víbora de verdade, não há nenhuma delas tão distante assim no norte...

— ... e Inuktiluk disse: “se vocês se aventurarem no interior”.

Ele virou-se para ela, seus olhos de coruja tornan-do-o surpreendentemente estranho.

— Acho que sei o que ele quis dizer. — Eu também — concordou Renn. Ele tremeu. — Tomara que estejamos errados. Detesto cavernas.

Remaram em silêncio. Para se manter animada, Renn remexeu na mochila

atrás de comida. Os Raposas-brancas os haviam abasteci-do muito bem. Junto com meia pele de gordura, ela en-controu costelas de foca congeladas e lingüiças de sangue. Cortou duas fatias e deu uma a Torak. O sabor era areno-so e ela sentiu falta do gosto forte das bagas de junípero. Sentiu falta mais ainda dos Raposas-brancas.

— Me sinto mal em relação a eles — disse ela. — Por quê? — perguntou Torak com a boca cheia. — Eles nos deram tanto e a nossa retribuição para

eles foi fugir. — Eles iam nos mandar para o sul! — Mas todo esse material. Facas de neve. Lampa-

rinas. Peles de água melhores. Um novo trisca-fogo para mim e uma linda capa para o meu arco. Há até mesmo um estojo de reparos para o barco. — Ergueu um bolsa feita da barbatana de uma foca.

Torak não escutava. Ele baixara o remo e olhava fi-xamente à frente.

— O que foi? — indagou Renn. Adiante deles, na montanha de gelo, as focas havi-

am despertado. Renn estava intrigada. — Mas temos comida suficiente — cochichou. —

Não podemos parar agora para caçar. Ele ignorou-a. De repente, as focas escorregaram para fora do gelo

e mergulharam na água. No mesmo instante, Torak bai-xou o remo e gritou: “Vire! Vire!”, girando o barco violen-tamente para a esquerda. Uma aturdida Renn fez o mesmo e eles dispararam de lado — para longe do rastro da mon-tanha de gelo — no momento em que um despedaçante urro rompeu o céu e a montanha pendeu e se despedaçou dentro do Mar, enviando uma trovejante parede de água para o lugar onde eles tinham estado uma pulsação antes.

Ofegando, balouçaram para cima e para baixo. No lugar da montanha de gelo, erguia-se agora um lodo bran-co.

— Como você sabia o que ia acontecer? — pergun-tou Renn.

— Eu não sabia — disse Torak. — As focas sabi-am.

— Como você sabia que elas sabiam? Ele hesitou. — Elas sentem em seus bigodes. No verão passa-

do, eu virei espírito errante de uma foca. Lembra? Constrangida, Renn lambeu o sal de seus lábios. Ela

havia esquecido; ou não quisera se lembrar. Detestava ser lembrada do quanto ele era diferente.

Torak percebeu isso no rosto dela. — Vamos — disse ele. — Ainda temos um longo

caminho. Avançaram, evitando as montanhas de gelo. Renn

sentia a distância entre eles por causa de coisas não ditas. Em breve, ela teria de lhe contar.

O vento aumentou, soprando frio em seus rostos. No entanto, com suas roupas dos Raposas-brancas, Renn mal o sentia. A pele de foca a protegia do vento, porém era mais leve do que couro de rena, ao passo que as rou-pas de baixo de penas de êider a mantinham agasalhada, mas deixavam evaporar o suor, para que ela não ficasse gelada. O franzido de pêlo de cachorro em volta do capuz mantinha o seu rosto aquecido, mas nunca ficava obstruí-do com a respiração congelada, e suas mitenes internas tinham ranhuras nas palmas para que ela enfiasse os dedos para realizar tarefas mais complicadas como abrir algibei-ras. As roupas também eram lindas, o pêlo prateado relu-zindo ao sol. Entretanto, elas faziam Renn se sentir como uma outra pessoa.

A tatuagens em ziguezague em seus pulsos também a faziam se sentir diferente e ela se perguntava por que Tanugeak as havia lhe dado. A Maga dos Raposas-brancas parecia saber de coisas sobre ela que Renn pensava que somente Saeunn e Fin-Kedinn sabiam; coisas que ela man-tinha escondidas em um canto bem fundo de sua mente. Foi, porém, o último presente que a deixou mais intrigada. A algibeira de pé de ganso continha um pó escuro que cheirava a fuligem e alga marinha. O que ela deveria fazer com aquilo?

— Olhe — disse Torak, interrompendo seus pen-samentos.

Ele os conduzira para bem mais distante no Mar e agora ela percebeu por quê.

A leste ficava o branco ofuscante do rio de gelo. Pi-cos denteados ascendiam acima de vertiginosos despe-

nhadeiros fendidos com rachaduras de um azul profundo. Renn ouviu um estrondo distante e viu um grande espigão se quebrar e se estatelar no Mar. Nuvens de gelo em pó dispararam para o céu. Uma onda verde avançou na dire-ção deles, sacudindo o caiaque.

Se estivéssemos mais perto, pensou ela, teríamos sido esmagados. Como meu pai.

— Tente não pensar nisso — disse baixinho Torak. Ela apanhou seu remo e golpeou a água. O sol estava baixo e o rio de gelo bem para trás de-

les quando, finalmente, vislumbraram a montanha. Er-gueu-se da terra branca morta: três picos perfeitos perfu-rando o céu, como corvos pousados no gelo.

Renn nunca vira nada tão solitário. Dois invernos atrás, seu clã viajara para a extremidade mais setentrional das Montanhas Altas e ela se sentira como se tivesse atin-gido a orla do mundo. Agora sentia-se como se tivesse caído de cima dela.

Torak também sentia o mesmo e enfiou a mão para fora da mitene a fim de tocar na pele de seu animal de clã.

Ao sul do flanco ocidental das montanhas, encon-traram a baía gelada que Akoomik desenhara na neve. Foi um alívio sair do caiaque, visto que suas pernas estavam duras. Mais uma vez, ficaram gratos aos Raposas-brancas. O barco era fácil de carregar e as ásperas solas das botas deles evitavam que escorregassem no gelo.

Para esconder o barco a sotavento de uma colina de neve, eles o emborcaram e o sustentaram sobre quatro forquilhas de madeira flutuante.

— Inuktiluk as chama de galhos de margem — dis-se Torak a Renn. — Podemos usá-los também para trans-formar o barco em um abrigo.

Renn sabia muito bem que não adiantaria sugerir que fizessem exatamente isso de imediato, visto que era meio da tarde e as sombras se tornavam roxas. Torak já esquadrinhava à procura de rastros.

Não demorou a encontrá-los: uma larga faixa de neve revolvida.

— Dois trenós — anunciou com um franzir da tes-ta. — Muito pesados e seguindo para a montanha. Rastros bem recentes. — Endireitou-se. — Vamos.

Renn arrepiou-se. De repente, sentiu os Devorado-res de Almas muito próximos.

— Espere — pediu. — Precisamos pensar sobre is-so.

— Por quê? — quis saber ele, impaciente. Ela hesi-tou.

— Uma das mulheres Raposas-brancas me disse al-go. Passei o dia todo querendo lhe falar.

— Sim? Ela baixou a voz até um cochicho. — Torak. São os Devoradores de Almas. Foram e-

les que levaram Lobo. — Eu... sei — disse ele. — O quê? Ele lhe contou o que vira quando estivera como

espírito errante com o corvo. — Mas... por que não me disse? — berrou ela. —

Sabia disso há dias! Ele fechou a cara e golpeou a neve com o calca-

nhar. — Eu sei que deveria, mas não podia arriscar. A-

chei que talvez você quisesse voltar para a Floresta. — A carranca ficou mais carregada. — Se você tivesse ido...

De repente, ela sentiu pena dele. — Eu suspeitava disso há dias, mas não fui. E não

irei agora. Seus olhos encontraram os dela. — Então... vamos. Ela engoliu em seco. — Sim. Vamos. Olharam o rastro dos Devoradores de Almas ser-

peando montanha acima. Renn disse: — E se isso for uma espécie de armadi-

lha? — Não me importa — murmurou ele. — E se eles tiverem ouvido boatos sobre um me-

nino do Clã do Lobo que é um espírito errante? E se pe-garem você e tirarem o seu poder, isso poderia colocar em risco toda a Floresta.

— Não me importa — repetiu. — Preciso encontrar Lobo!

Ela teve uma idéia. — Que tal um disfarce? — O quê? — Isso os despistaria do cheiro. E talvez fosse isso

o que Tanugeak também tinha em mente. Pelo menos, ela me deu aquilo de que precisamos.

Torak deu alguns passos e então virou-se na dire-ção dela.

— O que vamos fazer? Não demoraram muito para mudar de aparência.

Suas tatuagens de clã não foram um problema, pois suas bochechas ainda estavam tão empoladas por causa da tempestade que aquelas finas marcas mal apareciam. Renn preparou uma tintura ao misturar o pó de Tanugeak com

água e depois pintou com o dedo uma tira de Raposa-branca através do nariz de Torak. Também cortou seu cabelo na altura dos ombros com uma franja na testa. Ele era magro demais para se passar por um Raposa-branca realmente convincente, mas, com sorte, suas roupas oculta-riam isso.

Ela tingiu o próprio cabelo de preto, ao fabricar mais tintura, a qual também usou para escurecer o rosto. Em seguida, fez Torak transformá-la em uma Lebre da Montanha, pedindo que lhe pintasse a testa com uma tira em ziguezague com a coloração do sangue da terra de seu chifre de remédios.

Ele pareceu desconcertado. — Você não se parece mais com a Renn. — Ótimo — disse ela. — E você não se parece

com o Torak. Olharam um para o outro, os dois mais perturba-

dos do que gostariam de admitir. Então foram em frente, seguindo a trilha dos Devoradores de Almas.

Os trenós haviam sido arrastados para cima de uma elevação que serpeava em volta do flanco ocidental da montanha, exatamente como dissera Akoomik. À medida que subiam, as sombras ficavam mais carregadas, indo do roxo para o carvão. Freqüentemente paravam para ouvir, mas nenhum ser vivo se movia. Nenhuma águia circunda-va, nenhum corvo crocitava.

O ar ficava cada vez mais frio. O vento diminuía. Suas botas rangiam em meio ao silêncio.

Então — com assustadora rapidez — chegaram di-ante dos trenós, casualmente empilhados ao lado da trilha.

Após tantos dias seguindo a mais tênue das pistas, foi um choque encontrar sólidas estruturas de madeira e

couro. Isso, também, tornava sólidos os Devoradores de Almas.

Pressentindo que se aproximavam do fim, eles es-conderam suas mochilas e sacos de dormir na neve, a poucos passos dos trenós. Renn notou a dor que foi para Torak deixar para trás a faca de ardósia azul de seu pai.

— Mas é perigoso demais — disse-lhe ela. — Eles o conheceram e poderiam identificá-la.

Decidiram levar as peles de água que os Raposas-brancas haviam enchido para eles, um pouco de comida e facas. Renn também levou o seu arco e queria levar tam-bém as machadinhas, mas Torak achou arriscado demais para o disfarce de Raposa-branca.

Vinte passos após os trenós, a trilha rodeava um espigão — e eles pararam.

Acima, erguia-se a desolada montanha, iluminada de carmesim pelos últimos raios do sol. Em seu flanco, escancarava-se um buraco negro.

Névoa branca vazava da escuridão de uma caverna. Tentáculos pegajosos se estendiam para eles, fedendo a medo e demônios. A esperança fugiu. Se os Devoradores de Almas tivessem levado Lobo para lá...

Olhando por cima do ombro, Renn percebeu pela primeira vez a forma completa da montanha. Viu de que modo ela se erguia da neve como a cabeça de um animal gigante. Viu como o rio de gelo desenroscava-se de seu volume para leste, antes de torcer de volta e se perder no Mar.

Torak também vira. — Encontramos a Víbora — sussurrou. — Estamos pisando nela — cochichou Renn. Viraram-se de volta para a montanha: para o res-

plandecente buraco negro dividido pela pedra ereta. — E ali está o olho dela — disse ele. Torak tirou seu visor de coruja e enfiou-o em sua

algibeira de remédios. — Eles estão ali dentro — afirmou. — Posso sen-

tir. E Lobo também. Renn mordiscou o lábio inferior. — Precisamos pensar nisso. — Já pensei demais — rebateu ele. Agarrando seu braço, ela o arrastou para trás de

uma pedra fora de vista do Olho. — Não faz sentido entrar aí — disse ela —, a não

ser se tivermos certeza de que... de que Lobo ainda está vivo.

Ele não reagiu. Então — para seu horror — ele co-locou as mãos em volta da boca para uivar. Ela agarrou seu pulso.

— Está maluco? Eles vão ouvir! — E daí se ouvirem? Pensarão que sou um lobo! — Você não tem certeza disso. Torak, eles são De-

voradores de Almas! — Então o quê? — Há outro modo. — Enfiando a mão para fora

da mitene, ela tateou em volta da gola da parca e pegou o pequeno apito de osso de tetraz que ele lhe dera certa vez. Soprou nele e não saiu qualquer som, como sabiam que não sairia, — mas se Lobo estivesse vivo, ele ouviria.

Nada. Nem mesmo um bafejo de vento agitou o ar morto.

— Tente outra vez — pediu Torak. Ela tentou. Outra vez. E outra vez.

Nada ainda. Ela não conseguia encará-lo. Então — das profundezas da caverna — veio o

mais fraco dos uivos. O rosto de Torak iluminou-se. — Eu lhe disse! Eu lhe disse! O uivo foi demorado e vacilante e até mesmo Renn

conseguiu perceber sua miséria e sua dor. Ele se elevou... E desfaleceu.

DEZESSEIS

— Lobo! — gritou Torak, arremessando-se à frente. Renn puxou-o de volta. — Torak, não! Eles ouvirão você! — Não me importo, me largue! — Empurrou-a pa-

ra fora do caminho com tanta força, que ela saiu voando. Renn pousou de costas e os dois se entreolharam,

ambos chocados pela violência dele. Torak ofereceu a mão, mas ela se pôs de pé sem a-

juda. — Você não entende — ciciou ela num sussurro

furioso — que, se entrar na caverna, poderá seguir direto para as mãos deles?

— Mas Lobo precisa de mim! — E do que vai adiantar, se você se deixar matar?

— Ela o arrastou trilha abaixo, fora da vista do Olho. — Precisamos pensar! Ele está lá. Nós sabemos disso. Mas, se cometermos um erro, quem sabe o que poderá acontecer?

— Você ouviu o uivo — disse ele por entre os den-tes. — Sc não formos agora, ele poderá morrer.

Renn abriu a boca para protestar — então gelou.

Torak também tinha ouvido. O triturar de passadas subindo a encosta.

Ao mesmo tempo, eles mergulharam atrás dos tre-nós.

Croc! Croc! Croc! Sem pressa. Aproximando-se. Silenciosamente Torak sacou a faca. Atrás dele,

Renn enfiou as mãos para fora das mitenes e encaixou uma flecha no arco.

Um homem atarracado surgiu à vista. Estava cober-to por pele de foca malhada e carregava uma bolsa cinzen-ta de couro cru sobre um ombro. Um capuz cobria o seu rosto. Não portava armas que eles pudessem ver.

Enquanto Torak observava, a raiva o sufocou. Seus olhos ficaram vermelhos. Era um deles. Aquele homem levara Lobo.

Em sua mente, viu Lobo parado, imponente, no monte acima da Floresta, a pelagem pintada de dourado pelo sol. Ouviu novamente o uivo agonizado. Irmão de alca-téia Me ajude!

Croc, croc, croc. O homem estava quase no mesmo plano deles. Parou. Olhou por cima do ombro, como se relutasse em seguir adiante.

Foi demais para Torak. Praticamente sem saber o que fazia, ele deu um pulo para a frente, atingindo o ho-mem na barriga com uma cabeçada, fazendo com que se estatelasse na neve.

Ele caiu deitado sem fôlego, mas em seguida — com espantosa velocidade — rolou para o lado, arrancou a faca da mão de Torak com um chute e agarrou o seu capuz, torcendo-o para trás num violento golpe de estran-gulamento. Torak sentiu pernas fortes imobilizando seus braços, comprimindo a respiração em seu peito; sílex fu-

rando perigosamente sua garganta. — Eu não faria isso — disse Renn friamente. Ela

aproximou-se, sua flecha apontada para o coração do a-gressor.

Torak sentiu o aperto em suas costelas afrouxar. O capuz foi solto, a faca removida.

— Por favor — choramingou o agressor —, não me machuque. Com a flecha ainda pronta para disparar, Renn empurrou com a bota a faca de Torak para perto dele e então mandou seu prisioneiro se levantar.

— Não, não! — choramingou o prisioneiro, aga-chando-se aos pés dela. — Não devo olhar de frente o rosto do poder!

Torak e Renn trocaram olhares surpresos. O prisioneiro rastejou atrás da bolsa que deixara ca-

ir ao ser atacado. Torak ficou surpreso ao ver que não era um homem, mas um menino com cerca de sua idade, em-bora duas vezes mais forte. Exibia a tatuagem negra dos Raposas-brancas no nariz e seu rosto redondo reluzia com gordura de foca e suor de medo.

— Onde está ele? — perguntou Torak. — O que fizeram com ele?

— Quem? — lamuriou o menino. Ele viu a tatua-gem de Torak e ficou boquiaberto. — Você não é um de nós. Quem é você?

— O que está fazendo aqui? — disparou Renn. — Você não é um Devorador de Almas!

— Mas serei! — retrucou o menino com inespera-da ferocidade. — Eles prometeram!

— Pela última vez — disse Torak, avançando com sua faca —, o que vocês fizeram com Lobo?

— Fique longe de mim! — esganiçou o menino, ar-

rastando-se para trás como um caranguejo. — Se... se eu gritar, eles vão ouvir. Eles virão me salvar, todos os qua-tro! É isso que vocês querem?

Torak olhou para Renn. Quatro? — Fique longe de mim! — O menino avançou en-

costa acima. — Eu escolhi fazer isso. Ninguém pode me deter!

Ele parecia tentar se convencer. Isso deu a Torak uma idéia.

— O que você tem nessa bolsa? — perguntou, para manter o menino falando.

— Uma... uma coruja — gaguejou o menino. — Eles a querem para sacrifício.

— Mas a coruja é uma caçadora — afirmou Renn acusadoramente.

— E o lobo também — disse Torak. — E a lontra. O que os seus amos fazem ali? Conte para a gente, senão...

— Eu não sei! — gritou o menino, subindo ainda mais a encosta. À medida que o seguiam, o Olho surgia à vista.

— Os seus amos — perguntou Renn baixinho — falam de alguém que é um espírito errante? Diga a verda-de! Eu saberei, se você mentir!

— Um espírito errante? — Os olhos do menino arre-galaram-se. — Onde?

— Alguma vez eles falaram nisso? — interrogou Torak.

— Não, não, eu juro! — Ele agora suava demais e fedia a gordura de foca. — Eles vieram fazer um sacrifí-cio! E tudo o que eu sei, juro pelas minhas três almas!

— E, por causa disso, você infringiu a lei do clã a-panhando caçadores para sacrifício? — disse Renn. — Por

uma promessa vazia de um poder que nunca será seu? Embainhando a faca, Torak deu um passo na dire-

ção do menino. — Sua mãe quer você de volta — disse ele. Sua suposição foi correta. O corpo do menino aba-

teu-se. Renn ficou intrigada, mas Torak ignorou-a. Se ela tivesse uma leve suspeita do que ele pretendia fazer, teria tentado detê-lo.

— Vá embora daqui — disse ele ao menino. — Volte para Akoomik enquanto pode.

Terror e ambição travaram uma luta no rosto en-gordurado.

— Não posso — sussurrou ele. — Se você não for agora — disse Torak —, será

tarde demais. O seu clã vai torná-lo um pária. Você nunca mais o verá.

— Não posso — soluçou o menino. Das profundezas do olho, estrondeou uma voz: — Menino! Está na hora! — Vou facilitar as coisas para você — grunhiu To-

rak. Arrancando a bolsa da mão do menino, ele o empur-rou trilha abaixo. — Vá embora, vá! — Pendurou a bolsa no próprio ombro. — Renn, eu lamento, mas tenho de fazer isso.

A compreensão manifestou-se no rosto dela. — Torak... não... não vai dar certo, eles vão matar

você! Virando a cabeça, ele gritou a resposta para os De-voradores de

Almas: -Estou indo! Então correu trilha acima e entrou no Olho da Ví-

bora.

DEZESSETE

Após o lusco-fusco da encosta da montanha, a es-

curidão atingiu Torak como uma parede. — Feche os olhos — disse uma voz à sua frente.

— Deixe que a escuridão seja o seu guia. Torak teve tempo apenas de puxar o capuz para

baixo antes que uma figura avançasse em sua direção, car-regando uma crepitante tocha de pinheiro e piche.

Pela voz, achou que fosse um homem, mas, quando deu furtivamente uma olhadela por baixo de seu capuz, ele ficou surpreso ao ver que era uma mulher.

Ela era pesada e atarracada, com as pernas tão ter-rivelmente arqueadas que balançava quando andava. Suas feições destoavam do resto dela: pequenos olhos darde-jantes em um rosto pronunciado com um nariz parecendo um focinho. Orelhas pontudas que lembraram a Torak um morcego. Ele não reconheceu seu clã; a tatuagem es-pinhada em seu queixo lhe era desconhecida. O que atraiu o seu olhar foi o amuleto de osso em seu peito: o forcado de três pontas para apanhar almas.

— Você demorou muito — comentou a Devora-dora de Almas. — Conseguiu?

Ocultando o rosto, Torak ergueu a bolsa. Dentro, a coruja se debatia debilmente.

A Devoradora de Almas resmungou, então se virou e seguiu meneando mais para o interior da caverna.

Olhando para trás, Torak viu que o último vislum-bre da luz do dia estava muito distante. Pendurou a bolsa no ombro e foi atrás dela.

A Devoradora de Almas andava depressa, apesar das pernas arqueadas e, sob a luz bamboleante da tocha, ele captava apenas lampejos à medida que penetravam mais e mais. Paredes vermelhas encrespadas eram como um estômago de animal aberto. Um túnel tão lívido e en-roscado como entranhas. Impressões amarelas de mãos que cintilavam e então desvaneciam nas trevas. E sempre o ecoante pinga-pinga de água.

Ao cambalear adiante, ele se deu conta da loucura que fizera. Quando os Devoradores de Almas vissem Seu rosto, perceberiam que ele não era o menino Raposa-branca. Talvez, também, detectassem em suas feições al-guns traços de seu pai. Ou talvez já soubessem quem ele era e aquilo tudo era uma armadilha.

Desceram mais e mais. Uma impura quentura vaza-va das pedras e se grudava em seu rosto como teias de aranha. Um acre fedor penetrava furtivamente em sua garganta.

— Respire pela boca — murmurou a Devoradora de Almas.

Pa costumava lhe dar o mesmo conselho. Era terrí-vel ouvi-lo repetido pelo inimigo.

Acima, Torak viu finas folhas de pedras avermelha-

das pendendo como pedaços de peles ensangüentadas. Em suas dobras, criaturas invisíveis recuavam da luz.

Sua cabeça bateu em uma pedra e ele caiu, gritando de asco quando seus dedos mergulharam em um macio negrume fervilhante de finas minhocas cinzentas.

Uma mão forte agarrou seu braço e içou-o, colo-cando-o de pé.

— Calado! — disse a Devoradora de Almas. — Você vai assustá-los! — Então, para a escuridão: — Pron-to, pronto, meus pequeninos. — Como se em resposta, vieram os guinchos e o farfalhar de milhares de morcegos. — O calor os deixa atentos — murmurou a Devoradora de Almas. Pousando a mão sobre a parede, ela levou To-rak a fazer o mesmo.

Ele recuou. A rocha tinha a duradoura quentura de uma carcaça fresca. Ele conhecia a única razão para isso. O Outro Mundo.

— Sim, o Outro Mundo — confirmou a Devora-dora de Almas, como se tivesse ouvido seus pensamentos. — Por que você acha que percorremos todo este cami-nho?

Ele não ousou responder, o que pareceu irritá-la. — Não deixe os morcegos verem os seus olhos —

rosnou. — Eles são atraídos pelo brilho. Abruptamente, o túnel alargou-se para uma com-

prida e baixa caverna da cor de sangue seco. Esta tinha o lacrimejante fedor de um monte de esterco no alto verão e a garganta de Torak pareceu regurgitar.

Em seguida, ele esqueceu o cheiro. As paredes e-ram marcadas por pequenas covas, algumas bloqueadas com placas de pedra. Do interior de uma delas, Torak cap-tou o silvo de um carcaju.

Seu coração agitou-se. Onde havia um carcaju, tal-vez houvesse também um lobo.

Deu um baixo grunhido-ganido que Lobo com cer-teza reconheceria. SOU eu!

Nenhuma resposta. A decepção abateu-se sobre ele como uma onda. Se Lobo ainda vivia, não estava ali.

— Pare de gemer — vociferou a Devoradora de Almas — e continue em frente! Se você se perder aqui, nós jamais o encontraremos novamente.

Mais túneis, até a cabeça de Torak ficar girando. Ele se perguntou se a Devoradora de Almas escolhera de propósito um caminho serpeante para fazer com que ele perdesse o rumo. Por trás daquele rosto pronunciado, ele sentiu uma mente sagaz. Pernas tortas, pensamentos velozes. Foi isso o que dissera o Caminhante.

Emergiram numa enorme caverna... e Torak vaci-lou. Diante dele; assomava uma floresta. Uma floresta de pedra.

Moitas sombrias atingiam as alturas, à procura de luz solar que nunca encontrariam. Cachoeiras de pedra congeladas em um inverno sem fim. Enquanto Torak se-guia a balouçante luz da tocha, uma doentia quentura fez o suor brotar em sua testa. Ele ouviu um furtivo goteja-mento; vislumbrou poças imóveis e raízes retorcidas. Cap-tou clarões de figuras de pesadelo vestidas de pedra: al-gumas curvando-se sobre ele, algumas semi-ocultas em água. Quando olhou novamente, elas haviam sumido, mas ele sentiu sua presença: o Povo Oculto das Rochas.

A Devoradora de Almas conduziu-o a um maciço tronco de pedra esverdeada que parecia ter sido golpeado até se tornar um toco através de um ato de inimaginável violência. Ele ouviu movimento e percebeu que estava

sendo observado. Seu pé bateu numa raiz, ele tropeçou e caiu. Garga-

lhadas ecoaram pela caverna. — O que é isso, Nef? — perguntou a voz zombe-

teira de uma mulher. — Você nos trouxe finalmente o seu filho adotivo?

O coração de Torak começou a bater mais forte. Ele conseguira enganar uma Devoradora de Almas. Preci-saria de toda a sua habilidade para enganar os outros.

Rastejando ali mesmo onde caíra, ele passou a cho-ramingar.

— Não, não, não me faça olhar de frente o rosto do poder!

— Novamente isso? — rosnou Nef. — Ele nem mesmo ousa olhar para mim!

Torak sentiu uma nesga de esperança. Se ela não ti-nha visto o rosto do menino Raposa-branca...

Um dedo frio baixou até sua face, fazendo-o recuar. — Se não ousa olhar para Nef, a Maga Morcego —

sussurrou uma mulher em seu ouvido —, ele ousaria er-guer a vista para Seshru, a Maga Víbora?

Puxou para trás seu capuz e ele descobriu-se enca-rando o rosto mais perfeito que já vira. Olhos inclinados de lince de um insondável azul, uma boca de intimidadora beleza. Cabelos negros puxados para trás de uma alta testa branca revelavam uma linha negra de pontas de flechas, como as escamas de uma cobra.

Fascinado, porém sentindo repulsa, ele fez contato com o seu inigualável olhar, enquanto a Maga Víbora e-xaminava-o como um caçador avalia sua presa.

Suas adoráveis feições se imobilizaram com desdém — porém nada mais. Ela não sabia quem ele era.

— Ele é magro para um Raposa-branca — disse e-la. — Nef, você me decepciona. Conseguiu um mirrado para nós. — Seus dedos gelados deslizaram para dentro da gola da parca de Torak e ela sorriu. — O que é isto? Ele tem uma faca!

— Uma faca? — surpreendeu-se a Maga Morcego. A faca que Fin-Kedinn fizera para ele pendia, em

sua bainha, de uma correia em volta de seu pescoço. Ago-ra fora embora: erguida por sobre sua cabeça e jogada pa-ra Nef.

— Ele tem uma faca! — zombou a voz de um ho-mem tão sonora e grave como madeira do carvalho. Uma enorme figura assomou da escuridão e, antes que pudesse resistir, Torak foi agarrado e seus braços tão cruelmente torcidos que ele berrou.

Mais gargalhadas, atingindo-o com o lacrimejante cheiro forte de sangue de abeto vermelho.

— Eu deveria ficar assustado, Seshru? — zombou o homem. Em suas volumosas roupas de pele de rena, ele parecia encher toda a caverna. — Ele pretende ameaçar o Mago Carvalho?

Torak fitou um rosto tão duro quanto terra rachada pelo sol. A barba era uma moita cerrada, a juba um ema-ranhado da cor do ferrugem. Os olhos que se dirigiam aos dele eram de um ardente verde-folha.

— Ele pretende ameaçar? — repetiu o Mago Car-valho num tom de suave ameaça.

Torak sentiu-se tão indefeso quanto um lemingue encurralado por um lince.

— Thiazzi, deixe-o em paz — vociferou a Maga Morcego. — Nós precisamos dele vivo e não morto de medo!

A Maga Víbora arqueou seu alvo pescoço e garga-lhou.

— Pobre Nef! Sempre tão ávida em bancar a mãe! — O que você sabe sobre maternidade? — devol-

veu-lhe Nef. Os belos lábios de Seshru se afinaram. — Vamos ver o que ele nos trouxe, sim? — disse

Thiazzi, arrancando a bolsa da mão de Torak. Retirou uma pequena semicrescida coruja-branca e sacudiu-a até seus olhos escurecerem com o choque. Desde esse mo-mento, Torak odiou Thiazzi, o Mago Carvalho, que se divertia em atormentar criaturas menores do que ele.

A Maga Morcego também não pareceu gostar da-quilo. Bamboleando adiante, ela tirou a coruja do Mago Carvalho e enfiou-a de volta na bolsa.

— Também precisamos dela viva — murmurou. Então dirigiu-se a Torak, indicou-lhe uma tigela de casca de vidoeiro no chão e mandou que ele comesse.

Para sua surpresa, ele viu que a tigela continha uma tira de carne seca de cavalo e algumas avelãs.

— Vamos — apressou Seshru, com um curioso sorriso de lado. — Coma. Precisa conservar a sua força. — Seu olhar desviou-se para Thiazzi e Torak captou um indício de divertimento entre os dois.

Ele fingiu comer, mas sua garganta se fechara. Pa-recia que apenas um momento atrás estivera lá fora, na neve, com Renn. Agora se encontrava nos intestinos da terra com os Devoradores de Almas.

Os Devoradores de Almas. Eles haviam assombra-do seus sonhos. Haviam matado seu pai. Agora, finalmen-te, ali estavam eles: misteriosos, irreconhecíveis — contu-do mais reais do que ele jamais poderia ter imaginado.

Thiazzi, o Mago Carvalho, espreguiçava-se sobre as pedras, mascando sangue de abeto vermelho, que salpica-va sua barba com migalhas douradas. Ele poderia ser qualquer caçador da Floresta,— exceto pelo fato de tortu-rar por prazer.

Seshru, a Maga Víbora, movimentou-se para se re-costar nele: esbelta, elegante, sua túnica de maleável pele de foca brilhava como o luar num lago. O vazio de seu sorriso fez Torak se arrepiar. Quando ela umedeceu os lábios, ele vislumbrou uma pequena língua negra pontuda.

Nef, a Maga Morcego, era a que mais o intrigava. Seus olhinhos dardejaram suspeitosamente de Thiazzi pa-ra Seshru e ela pareceu inadequada em relação aos dois — e a si mesma.

Bem distante, uma coruja piou. O sorriso de Seshru vacilou. Thiazzi ficou imóvel. Nef murmurou baixinho e pôs a mão sobre a fosca

pele de animal de clã em seu ombro. A luz da tocha diminuiu. Com um sobressalto de terror, Torak viu um quarto

Devorador de Almas sentado nas profundezas da caverna — onde antes houvera apenas sombra.

— Vejam — sussurrou Seshru —, a Mascarada está vindo.

— Eostra — disse Thiazzi roucamente —, a Maga Bufo-real.

Nef apoiou-se num rebento de pedra e pôs-se de pé, içando Torak consigo.

A Mascarada, pensou Torak. Ele lembrou-se da dor no rosto do Caminhante. A mais cruel dos cruéis.

Em meio à escuridão, ele distinguiu uma grande

máscara cinzenta. Dela resplandeciam os olhos que não piscavam da maior das corujas. Penas de coruja cobriam a cabeça, da qual se erguiam duas pontudas orelhas de coru-ja. Compridos anéis de cabelos cinzentos pendiam de um manto emplumado. Apenas as mãos eram visíveis. As u-nhas eram curvadas e pintadas de azul, como as de um cadáver. A pele possuía o brilho verde-pálido de carne podre.

— Tragam ele para perto — disse uma voz tão ás-pera quanto um chocalho da morte.

Torak foi empurrado para adiante e forçado a se a-joelhar. Sentiu um bafejo de decomposição, igual ao chei-ro dos campos de ossos Corvo. O temor gelou seu cora-ção.

Com assustadora lentidão, a máscara de coruja cur-vou-se sobre ele e Torak sentiu uma intenção feroz e ma-léfica atacar sua mente.

Justo quando ele não conseguia mais agüentar, a máscara recuou.

— É satisfatório — disse. — Podem levá-lo. Torak expirou tremulante e arrastou-se de volta em

direção à luz. As tochas tremularam. Quando ele ousou olhar novamente, Eostra, a Maga Bufo-real havia sumido.

Entretanto, a mudança na caverna foi palpável. O Mago Carvalho e a Maga Víbora movimentavam-se com diligente determinação por entre as árvores de pedra, car-regando cestos e bolsas cujo conteúdo Torak não conse-guia ver.

— Venha, menino — chamou Nef. — Ajude-me a alimentar e a dar água às oferendas. Então você e eu fa-remos o primeiro sacrifício.

DEZOITO

O terror da presença de Eostra agarrava-se a Torak

enquanto ele seguia a Maga Morcego através da floresta de pedra. Nef entregou-lhe a bolsa que continha a coruja.

— Coloque isso ali — disse ela, indicando uma sa-liência perto do altar — e me siga.

Ao pousar a bolsa, Torak afrouxou um pouco a a-bertura, para dar algum ar à coruja. Nef guinchou melan-colicamente.

— Isso mostra que você tem receio de machucar um caçador. Terá de fazer bem pior, se quiser ser um De-vorador de Almas. — Apanhando uma tocha, ela seguiu por emaranhados de túneis. — Você terá de suportar o fardo da perversidade para o bem de muitos. Conseguirá fazer isso, menino?

— Sim — disse Torak, vacilante. — É o que veremos — disse Nef. — Diga-me.

Qual a sua idade? Ele pestanejou. — Treze verões. — Treze. — Sua testa enrugou-se. — Se fosse vivo,

o meu filho teria quinze. Por um instante, Torak quase sentiu pena dela. — Treze verões — repetiu a Maga Morcego. Com

o olhar distante, ela enfiou a mão em uma algibeira presa ao seu cinto e retirou um punhado de moscas mortas. Em seu ombro, a pele do animal de clã se agitou, esticou o pescoço e as abocanhou. — Pronto, minha beldade — murmurou ela. Pegou Torak olhando. — Vá em frente — falou —, deixe que ela cheire você.

Ele ofereceu o dedo. As orelhas pregueadas do morcego tremeram, delicadas como folhas novas, e ele sentiu a breve calidez de uma minúscula língua provando sua pele. Presa estranha, pensou. Imaginou como o morce-go andaria sobre a neve: as garras cavando, os cotovelos deixando pequenos rastros parecidos com tocos. Com uma pontada de dor, pensou em como o sempre curioso Lobo teria corrido para investigar.

— Ela gosta de você — rosnou Nef. — Estranho. — De repente, ela tomou novamente a dianteira e Torak teve de correr para acompanhá-la.

— Como foi que o seu filho morreu? — perguntou ele.

— De fome — disse Nef. — A presa fugiu de nos-sa parte da Floresta. Devemos ter feito algo para desagra-dar o Espírito do Mundo. — Sua carranca ficou mais car-regada. — Eu também quis morrer. Tentei, mas o Mago Lobo me salvou.

A menção de seu pai, Torak quase caiu. — Ele salvou a minha vida — disse Nef amarga-

mente. — Agora ele está morto e eu nunca poderei re-compensá-lo. Gratidão é uma coisa terrível.

Subitamente, ela agarrou as mãos de Torak e pres-

sionou-as contra a parede do túnel, esmagando-as debaixo das suas.

— É por isso que estamos aqui, menino, para fazer as coisas direito com o Espírito do Mundo! Depressa! Me diga o que sente!

Ele debateu-se, mas as mãos dela prendiam as suas. Debaixo das palmas, a pedra era pegajosa e morna. Bem no interior, ele sentiu algo se contorcer.

— Está vivo! — sussurrou. — O que você sente — declarou Nef — é a pele

que separa o nosso mundo do Outro. Há lugares debaixo da terra onde essa pele se mostrou fina.

Torak lembrou-se de uma caverna onde certa vez ele se aventurara a entrar. Perguntou se havia tais lugares na Floresta.

— Existe um — disse Nef. — Tentamos entrar, mas o caminho estava fechado.

— Por que precisam disso? — quis saber ele. — Por que estão aqui?

Os olhinhos se iluminaram. — Você sabe por quê. Ele umedeceu os lábios. — Mas... preciso saber mais se quiser ser um Devo-

rador de Almas. Nef inclinou-se mais para perto, envolvendo-o no

acre odor de morcego. — Primeiro, devemos encontrar a Porta — expli-

cou ela. — O lugar onde a pele é mais fina. Então deve-mos fazer o encanto para nos proteger do que virá adian-te. Finalmente — sua voz baixou para um murmúrio —, no escuro da lua... devemos abrir a Porta.

Torak engoliu em seco. Mais uma vez, ouviu a voz do Caminhante. “Eles vão abrir a Porta!”

— Mas... por quê? — sussurrou. — Por que vo-cês...

— Chega de perguntas! — vociferou Nef — Te-mos trabalho a fazer!

Seguiram apressados e, após algum tempo, emergi-ram na fedorenta caverna onde Torak ouvira um carcaju. Ele viu um rio, que não havia notado antes, se empoçando numa concavidade antes de sumir ao descer por uma fen-da. Ali perto, havia um balde de casca de vidoeiro e um saco, feito de um trançado de fibras de casca de árvore, com bacalhau seco.

Nef mandou que ele apanhasse ambos e a seguisse. Bamboleando até a primeira das concavidades, ela afastou um palmo a laje que a bloqueava. Jogou dentro um peda-ço de bacalhau, puxou uma pequena tigela de madeira de vidoeiro, encheu-a e voltou a empurrá-la para dentro.

Torak captou um brilho de olhos. Uma lontra: a tal cujo divertido deslizar pela neve ele rastreara na Floresta. Sua macia pelagem era um emaranhado só e ela recuou com medo deles. A pena que ele sentia de Nef se esvaiu. Se ela era capaz de fazer isso...

A Maga Morcego empurrou de volta a laje, deixan-do uma estreita abertura para entrada de ar e capengou até a concavidade seguinte. Lentamente seguiram seu cami-nho através da caverna. Torak viu uma raposa-branca en-roscada em um sono exaurido. Uma águia: toda ela penas em tufos e irado fitar amarelo. Um lince tão contido que não conseguia se virar. A fúria salivante de um carcaju.

Finalmente, em uma profunda cova quase comple-tamente vedada por uma enorme placa de pedra, ele vis-lumbrou o espantoso e inconfundível volume de um urso-branco.

— Esse aí recebe apenas água — avisou Nef, apa-nhando o balde e jogando um pouco dentro da cova. — Precisamos mantê-lo faminto;caso contrário, ficará forte demais.

O urso soltou um trovejante rugido e lançou-se contra a placa. Esta se manteve firme. Nem mesmo a for-ça de um urso-branco seria capaz de movê-la.

— Como vocês o capturaram? — indagou Torak. Nef bufou.

— Seshru tem uma certa habilidade com poções do sono. A força de Thiazzi tem sua utilidade.

Torak virou-se e percebeu o comprimento da ca-verna. Ele começou a se dar conta de que o que os Devo-radores de Almas faziam ia muito além de ameaçar Lobo.

— Caçadores — disse ele. — São todos caçadores. — Sim — concordou a Maga Morcego. — Onde está o lobo? Nef ficou imóvel. — Como você sabe que há um? Ele pensou depressa. — Eu o ouvi. Um uivo. A Maga Morcego cambaleou de volta por onde eles

tinham vindo. — O lobo será trazido amanhã, no escuro da lua.

Quando é a ocasião. Disfarçadamente, Torak olhou em volta para ver se

havia alguma concavidade ainda inexplorada. Novamente, Nef pareceu ler sua mente. — Ele não está aqui. Nós o mantemos separado

dos outros. — Por quê? Isso lhe valeu um olhar severo.

— Você faz muitas perguntas. — Eu quero aprender. O morcego no ombro de Nef se contorceu e ela o

observou alçar vôo e seguir veloz para o meio da escuri-dão.

— É por causa de Seshru — disse ela. — No verão passado, ela recebeu uma estranha mensagem de nosso irmão do outro lado do Mar. “O Lobo vive.” Não sabemos o que significa. Mas é por isso que mantemos o lobo sepa-rado.

Os pensamentos de Torak agitaram-se. Será que e-les sabiam de algo? Talvez não o bastante para imaginar que ele era um espírito errante, mas algo...

Ele se deu conta de que Nef o observava intensa-mente; então Torak fez a pergunta para a qual achava que já sabia a resposta.

— Todos esses animais. O que vão fazer com eles? — O que você acha que faremos? — Vão matá-los — disse ele. A Maga Morcego confirmou com a cabeça. — O sangue de nove caçadores é o mais formidá-

vel... o mais poderoso dos sacrifícios. Suas têmporas latejaram. As paredes da caverna pa-

reciam comprimi-lo. — Você diz que quer ser um de nós — disse Nef.

— Pois bem, isso começa agora. — Ergueu a tocha e To-rak percebeu que ela o levara em uma volta completa, de volta à floresta de pedra. Estava deserta. Os outros Devo-radores de Almas haviam sumido. Na saliência a seu lado, a coruja na bolsa continuava imóvel. Um sacrifício à espe-ra.

O ar ficou preso em sua garganta.

— Mas... você disse amanhã. No escuro da lua. — Para o encanto completo, sim. Mas, antes, preci-

samos encontrar a Porta... e, para isso, devemos nos prote-ger. O sangue da coruja fará isso. E nos ajudará a ouvir o que existe no interior

Pousando a tocha em uma fenda, ela alcançou a bolsa e retirou a ave. Com uma das mãos, ela a manteve abaixada. Com a outra, ofereceu o cabo de sua faca a To-rak.

— Tome — ordenou. — Corte a cabeça dela. Torak olhou para a coruja e a coruja olhou de volta

para ele: suja, trêmula de medo. Nef cutucou o peito dele com o cabo da faca. — É tão fraco assim que vai fracassar no primeiro

teste? Um teste... Ele então percebeu que tudo o que a Maga Morce-

go fizera levara àquilo. Ela pretendia descobrir se ele era o que ele fingia ser: um menino Raposa-branca determinado a entrar no mundo sombrio dos Devoradores de Almas.

— Mas isso não é presa — alegou ele. — Não va-mos comê-la. E não estamos caçando. Ela não teve chan-ce de escapar

Os olhos da Maga Morcego iluminaram-se com uma terrível certeza.

— Às vezes — disse ela — o inocente precisa so-frer para o bem de muitos.

Bem?, pensou Torak. O que isso tinha a ver com o

bem? — Pegue a faca — impôs Nef. Ele não conseguia respirar. O ar em seus pulmões

estava quente e pesado de crueldade.

— Vamos! — exigiu Nef. — Nós somos os Devo-radores de Almas, falamos pelo Espírito do Mundo! Está do nosso lado ou contra nós? Não há caminho do meio!

Torak pegou a faca. Ajoelhou-se e colocou a mão livre sobre a coruja. Nunca sentira algo tão macio quanto aquelas penas,— tão delicadas como os ossos frágeis que abrigavam o pequeno, acelerado coração.

Se ele se recusasse a fazer aquilo, Nef o mataria. E os Devoradores de Almas conseguiriam abrir a Porta e soltar sabia-se lá que horrores sobre o mundo.

E Lobo morreria. Ele inspirou fundo — silenciosamente, implorou

por perdão ao Espírito do Mundo — e baixou a faca.

DEZENOVE

— Está feito — disse a Maga Morcego. — Isso é o sangue? — perguntou o Mago Carva-

lho. — Claro. Mal ousando respirar, Renn encolheu-se para afun-

dar mais ainda em seu esconderijo: uma fenda úmida atrás de uma moita de rebentos de pedra. Onde estava Torak? O que haviam feito com ele?

Ela observou a Devoradora de Almas segurar uma tocha crepitante numa das mãos e um copo de chifre na outra. Sob a luz bruxuleante, a sombra de pernas arquea-das era imensa. Acima, milhares de morcegos agitavam-se.

— Cadê o menino? — quis saber o Mago Carvalho, tomando seu lugar diante do altar.

— Com as oferendas — disse a Maga Morcego. — Ele parece abalado. Seshru o está vigiando.

A pele de Renn formigou. — Quer dizer que está abalado, hein? — zombou o

Mago Carvalho. — Nef, ele é um covarde! Espero que

isso não afete o encanto. — Por que afetaria, Thiazzi? — rebateu a Maga

Morcego. — Ele veio a nós, ele se ofereceu. Servirá muito bem ao intento.

Que intento?, pensou Renn. Pelo que ela ouvira, o disfarce de Torak fora bem-sucedido; não sabiam quem ele era ou que se tratava de um espírito errante. Mas por que precisavam dele?

Ela também ficou imaginando quantos Devorado-res de Almas havia naquelas cavernas. Eram sete, quando foram todos eles banidos, dois agora estavam mortos e restavam cinco; mas o menino Raposa-branca mencionara apenas quatro. Onde estava o quinto?

Então ela esqueceu isso. A Maga Morcego pôs a tocha em uma fenda, mergulhou o dedo indicador no co-po e pintou uma linha de escuridão na testa. Fez o mesmo no Mago Carvalho.

— O sangue da coruja — cantou ela — para uma audi-ção mais aguçada.

— E para nos proteger daqueles que assolam o interior — entoou o Mago Carvalho.

Renn conteve um ofego. O sangue da coruja... Quer dizer então que a mataram, exatamente como dissera o menino Raposa-branca. Mas por quê? Matar um caçador enfurecia o Espírito do Mundo e causava má sorte a si próprio e ao seu clã.

Ao pousar a mão sobre um rebento, ela ficou sur-presa ao sentir uma repugnante quentura. Soube imedia-tamente o que era. O calor do Outro Mundo.

Para nos proteger daqueles que assolam o interior... Será que ele se referia aos demônios? Demônios do Outro Mundo?

Se ao menos ela tivesse seguido Torak imediata-mente! Mas, em vez disso, caminhara pela neve: furiosa com ele, discutindo consigo mesma. Quando se decidiu — escondera seu arco e descobrira sua coragem —, a ca-verna o tinha engolido.

Foi quando ouvira os passos ecoantes de um ho-mem. Ela mal tivera tempo de escorregar para dentro an-tes que ele assomasse da escuridão: enorme como um au-roque, o rosto oculto num emaranhado de cabelos e bar-ba. A tatuagem do Clã do Carvalho era evidente nas costas da mão. O cheiro de sangue de abeto vermelho pendia à sua volta como a névoa na Floresta.

Apavorada, ela o vira pressionar o ombro em uma placa de pedra cinco vezes o seu tamanho e empurrá-la através da entrada da caverna como se fosse um tabique de vime. Eles ficaram trancados ali dentro. Ela não tivera outra escolha a não ser segui-lo pelo emaranhado de tú-neis: temendo chegar perto demais, ou pior — ser deixada para trás, no escuro.

Finalmente eles emergiram na floresta de pedra. A sua volta, ela sentiu a presença de figuras sombrias obser-vando, à espera. Mesmo o pinga-pinga da água soava fur-tivo. O pior de tudo era o esvoaçar e o guinchar de milha-res de morcegos. Será que eles sabiam que ela estava ali? Contariam aos Devoradores de Almas?

Bisbilhotando entre dois rebentos de pedra, ela viu a Maga Morcego erguer sua tocha e acender as demais que estavam fixas em volta do altar. A luz das chamas treme-luziu — então, subitamente, abateu-se, como em home-nagem. Os morcegos silenciaram. O ar tornou-se mais pesado de maldade.

Renn tapou a boca com os nós dos dedos.

Um terceiro Devorador de Almas estava sentado na cabeceira do altar. Na penumbra, Renn distinguiu mantos de penas que pareciam crescer da própria pedra, — o me-donho aparato laranja de um bufo-real.

Por trás da máscara, falou uma voz arrepiante. — As almas. Me dêem as almas. A Maga Morcego colocou algo pequenino sobre o

altar e os mantos sombrios se movimentaram para cobri-lo. Renn deduziu que a Maga Morcego fizera alguma es-pécie de encanto de ligação e prendera as almas da coruja em suas penas.

— É satisfatório — disse a voz atrás da máscara. Renn pensou nas almas da coruja, apanhadas talvez

para sempre — nas garras da Maga Bufo-real. Ficou ima-ginando se algum dia ela escaparia, para adejar no céu à procura do abrigo da Primeira Arvore...

O medo deteve-se em seu coração enquanto ela ob-servava a Maga colocar algo escuro e curvo sobre o altar. Era o trisca-fogo do Caminhante: a garra de pedra que havia muito tempo ele tirara de uma caverna na Floresta.

Em seguida, o Mago Carvalho alcançou uma algi-beira e retirou um pequeno seixo preto com o brilho e a maciez de um olho.

— Este é a coruja — entoou ele enquanto o pousava ao lado do trisca-fogo. — O primeiro dos nove caçadores.

Os nove caçadores? Os dedos de Renn fecharam-se em volta de um fi-

no galho de pedra. Sentindo-se enjoada, ela observou o Mago Carvalho virar a algibeira. Mais seixos chocalharam sobre o altar.

A Maga Morcego escolheu um e colocou-o ao lado daquele que significava a coruja.

— Este — cantou — é a águia. Para a vista mais agu-çada.

— E para nos proteger daqueles que assolam o interior — entoaram os demais. Outro seixo foi colocado ao lado do segundo. E outro. E mais outro. Enquanto Renn ouvia, revelava-se a medonha extensão do iminente sacrifício.

— Este é a raposa. Para astúcia... — Este é a lontra. Para habilidade aquática... — Este é o carcaju. Para ira... — Este é o urso. Para força... — Este é o lince. Para habilidade de saltar... — Este é o lobo... Renn fechou os olhos. ...Para sabedoria... Baixou um silêncio. O nono seixo esperava para ser

colocado em seu lugar: para fechar o círculo de olhos que rodeava o trisca-fogo. A Maga Bufo-real estendeu uma garra para segurá-lo.

— Este — cantou ela — é o homem. Para crueldade. Homem. Os dedos de Renn apertaram mais a pedra. Final-

mente ela sabia por que os Devoradores de Almas deixa-ram o menino Raposa-branca se juntar a eles. E agora To-rak tomara o seu lugar

A pedra estalou. Os morcegos explodiram como uma nuvem esvoaçante, guinchante.

— Há alguém ali — berrou Nef, pondo-se de pé num salto.

— É o menino! — estrondeou Thiazzi. — Ele es-tava ouvindo!

Luz de tocha deslizou entre as árvores de pedra en-quanto os Devoradores de Almas procuravam pela caver-na.

Nervosamente, Renn planejou uma fuga; — mas, ao escolher o seu esconderijo, ela rastejara para longe de-mais do túnel. Não poderia voltar sem ser vista.

A luz chegava cada vez mais perto, querendo alcan-çá-la. Mais perto chegavam as pesadas passadas do Mago Carvalho.

Ela fez a única coisa que podia. Foi para cima. A fenda era denteada como um corte de machado e

ela ralou as palmas ao tatear à procura de apoio para as mãos. Ergueu a cabeça — não conseguiu ver nada — e escalou cada vez mais alto na escuridão.

As passadas estavam quase perto dela. Seus dedos encontraram uma saliência. Não havia

tempo para pensar Içou-se para ela, torcendo para que o farfalhar dos morcegos encobrissem o frenético roçar de sua botas.

Não era uma saliência, mas um túnel, ela encontrara um túnel! Era baixo demais para ficar de pé — ela bateu a cabeça —, caiu de quatro e seguiu rastejando.

O túnel virava para a direita, que bom, pois se ela conseguisse se enfiar, a luz não a encontraria. Mas era tão estreito que mal conseguia se espremer ali e o teto estava ficando mais baixo — ela tinha de rastejar de barriga e impulsionar o corpo adiante com os cotovelos.

Contorcendo-se como um lagarto, ela serpeou cada vez mais fundo. Ao virar a cabeça para olhar para trás, viu a luz amarela bruxuleando mais perto, quase tocando suas botas. Não estava longe o bastante, eles iam encontrá-la...

Com um tremendo esforço de deslocamento, ela empurrou o corpo em volta da curva — no momento exa-to em que a luz apanhou seus calcanhares.

Abaixo dela, um homem respirava pesadamente.

Emanava o cheiro penetrante de sangue de abeto verme-lho.

Ela mordeu com força o lábio inferior Então — do outro lado da caverna — o som aba-

fado de pés correndo. — Não foi o menino — ofegou a Maga Morcego.

— Ele esteve o tempo todo com Seshru! — Tem certeza? — disse o Mago Carvalho, a voz

assustadoramente perto. — Devem ter sido os morcegos — arriscou Nef. — Bem, de agora em diante — rosnou Thiazzi —,

é melhor ficarmos de olho. Sua voz afastou-se, levando a luz com ela. A escu-

ridão voltou a inundar. Fraca de alívio, Renn desabou sobre a barriga. Por

um longo tempo, permaneceu na escuridão, ouvindo os Devoradores de Almas andarem por ali e conversarem em voz baixa.

Finalmente, as vozes sumiram. Eles haviam deixado a floresta de pedra. Os morcegos esvoaçaram e então gra-dualmente fizeram silêncio. Ainda assim, Renn esperou, temendo uma armadilha.

Quando tinha certeza de estar sozinha, começou a se contorcer para trás, a fim de sair do túnel.

O capuz de sua parca prendeu no teto e ela deba-teu-se para frente na tentativa de se soltar — mas o túnel era tão baixo que ela não pôde avançar o suficiente para se livrar.

Irritada, tentou novamente. E outra vez. Tentou se contorcer de um lado para o outro. O túnel era estreito demais e isso não adiantou.

Permanecia deitada de barriga, pelejando para assi-

milar o que acontecera. Seus braços estavam cruzados de-sajeitadamente debaixo do peito. Sentia nos pulsos o tro-vejar de seu coração.

A verdade abateu-se sobre ela. Estava entalada.

VINTE

Ela pensou em gritar por ajuda, mas isso traria os

Devoradores de Almas. Pensou em ficar deitada ali naque-la fedorenta toca de doninha e morrer de sede. Uma mor-te rápida ou uma morte lenta. Essas eram as opções.

Estava ensopada de suor e as paredes do túnel ex-peliam de volta o odor de seu medo. Não conseguia mais ouvir o pingar da água; apenas sua áspera respiração e um estranho e irregular “tum-tum-tum” que acompanhava as batidas de seu coração.

Era o seu coração, deduziu: o seu coração ecoando na rocha, enquanto batia contra suas costelas.

De repente, ela se tornou horrivelmente consciente do imenso peso de pedra que pressionava sobre seu cor-po, da total impossibilidade de movimentos. A terra a en-golira. E precisava apenas de uma ligeira contração para esmagá-la como a um piolho.

Ninguém jamais saberia. Ninguém jamais encontra-ria seus ossos para depositá-los no campo de ossos Corvo. Ninguém colocaria nela Máscaras da Morte para manter

juntas as suas almas. A escuridão depositava-se em seu rosto como uma

segunda pele. Fechou os olhos. Abriu-os. Não fez dife-rença. Arrastou a mão debaixo do corpo e levou-a até o nariz. Não conseguiu ver o dedos. Eles não existiam. Ela não existia.

Não conseguia ar suficiente. Deu uma respiração profunda de estremecer o corpo... e a rocha se contraiu, apertando-se à sua volta.

Entrou em pânico. Arranhando, debatendo-se, ge-mendo, afogando-se em um mar negro de terror. Desfale-ceu, exausta, pressionando a boca contra a pedra inflexível para conter o choro.

No fundo da terra, não existe o tempo. Não há ve-rão. Não há inverno. Não há lua. Não há sol. Existe ape-nas o escuro. Renn estava deitada ali havia tanto tempo que não era mais Renn. Sobre ela passaram invernos intei-ros. Ela se tornou parte da rocha.

Ouviu demônios gargalhando do outro lado. Luzes cintilaram. Olhos vermelhos a olhavam fixamente, che-gando cada vez mais perto. Ela estava morrendo. Em bre-ve, suas almas se dispersariam e ela se tornaria um demô-nio: guinchando e tagarelando no infindável coração do Outro Mundo, odiando e desejando todas as coisas vivas.

Agora, porém, vinham mais luzes: minúsculos fer-rões de um verde brilhante que emitiam uma luz trêmula e dançavam, afastando os olhos vermelhos. Havia um zuni-do em seus ouvidos, um zunido de...

Abelhas? Ela despertou com um espasmo. Abelhas? No in-

verno, em uma caverna no Distante Norte? O zunido estava mais perto e era certamente de a-

belhas. Embora não conseguisse enxergá-las, podia senti-las roçar suas bochechas. O que eram elas? Uma mensa-gem de seu guardião de clã? Os espíritos de seus ances-trais? Ou um truque dos demônios, esperando atrás da rocha?

Mas elas não pareciam más. Fechando os olhos, a-calmou-se e escutou o zunido das abelhas...

É a Lua da Corrida do Salmão, os pés de abrunhei-ros estão em flor e as abelhas zunem. Renn tem oito ve-rões de idade: caça com Fin-Kedinn, ansiosa para experi-mentar o novo e belo arco que ele fez para ela. Pára na ribanceira para admirar sua reluzente curva dourada e os botões de abrunheiro caírem como neve de inverno e se prenderem nas crinas dos cavalos da floresta que se en-contram nos baixios.

Quando desvia a vista do arco, ela fica surpresa em ver que Fin-Kedinn atravessou o rio e segue em frente. Ao se apressar, rola da ribanceira e se esparrama na água atrás dele.

As éguas não gostam de ela se aproximar tanto de suas crias. Mostram o branco dos olhos, prontas para es-coicear.

Renn não tem medo, mas, para evitá-las, chapinha mais para o fundo e a lama suga suas botas. Ela está presa.

Entra em pânico. Desde que seu pai morreu, ela tem pesadelos nos quais se sente aprisionada. E se os ca-valos a pisotearem? E se o Povo Oculto do rio a puxar para baixo?

De repente, a luz do sol é obscurecida e Fin-Kedinn está parado acima dela. Seu rosto é impenetrável como sempre, mas nos olhos azuis há um vislumbre de risada.

— Renn — diz ele calmamente —, há uma solução para isso. Mas, se não usar a cabeça, não vai encontrá-la.

Ela pestaneja. Olha para baixo. Então — balançan-do-se — livra-se das botas.

Rindo, seu tio a ergue bem alto com os braços. E agora ela gargalha também e dá risadinhas agudas enquan-to ele a balança para baixo em uma vertiginosa arremetida para arrancar suas botas da lama. Ainda rindo, ele a coloca sobre os ombros, vadeia até a ribanceira e, em volta deles, os botões flutuam, as abelhas zunem...

As abelhas ainda zuniam, mas ela não conseguia mais vê-las porque estava de volta à toca de doninha. A lembrança de Fin-Kedinn foi como um raio de luz na es-curidão. Seus dedos tocaram o protetor de punho de ar-dósia polida. Ele o fizera para ela quando a ensinara ã dis-parar flechas.

— Há uma solução — sussurrou ela. — Use a ca-beça...

Sua respiração diminuiu de intensidade. O peito não arfava mais. As paredes não pareciam apertar tanto quanto antes.

Claro!, pensou. Não inspire tão fundo e não ocupará tanto espaço!

Manter a respiração superficialmente foi uma pe-quena vitória e isso a animou enormemente. Ela ainda não estava morta. Se ao menos houvesse algum modo de se tornar ainda mais estreita.

Talvez fosse possível. Sim! Por que não pensou nis-so antes?

Lentamente — dolorosamente — soltou o braço direito e estendeu-o à frente o máximo que pôde. Em se-guida, inclinou de volta o ombro esquerdo. Agora estava

realmente mais estreita, pois não bloqueava o túnel de frente, mas enviesada.

O próximo bocado seria mais difícil. Dobrando o braço direito sobre a cabeça, tentou segurar a parca. Er-rou. Tentou novamente e agarrou o capuz. Puxou-o. Era piedosamente frouxo: Tanugeak dissera-lhe que os Rapo-sas-brancas o faziam assim porque roupas frouxas são mais quentes. Como uma cobra mudando de pele, Renn contorcia-se e puxava, contorcia-se e puxava — e, final-mente, a parca deslizou por sobre sua cabeça.

Parou, ofegando, e as abelhas zuníram vertiginosa-mente.

Agora, o gibão de pele de ave. Este era mais difícil — não havia capuz para agarrar —, porém, sem a parca, ela conseguia se mover com mais facilidade.

O alívio quando o gibão saiu foi avassalador. Por um tempo, ela permaneceu arfando, sentindo o suor gelar sua pele, segurando as roupas amontoadas diante de si. Agora, porém, ela descansava por um motivo. Vestida apenas com as perneiras, tinha só a metade do tamanho de antes e podia deslizar pelo túnel como uma enguia. Po-dia voltar à floresta de pedra e encontrar Torak e Lobo.

Começou a se contorcer para trás, mas suas pernei-ras prenderam numa ponta. Isso não a deteve por muito tempo, mas, para sua surpresa, o zunido das abelhas to-mou-se tão feroz quanto o de vespas. O que queriam di-zer? Não queriam que ela voltasse?

Esticando a mão para a escuridão diante de si, sen-tiu ar frio formigar seus dedos nus. Não era simplesmente o frio de suor secando, era uma corrente de ar frio. E, se era frio, devia estar vindo de fora.

Empurrando-se com os dedos dos pés, ela avançou

pelo túnel. Ele se inclinava íngreme para cima, mas agora ela tinha mais espaço para se contorcer, era mais fácil, e podia agarrar saliências que se projetavam das pedras e continuar puxando o corpo para a frente.

Ainda assim, ela hesitava. Se fosse adiante — aonde quer que aquilo a levasse — significaria deixar Torak para trás. Não podia fazer aquilo. Precisava alertá-lo de que ele era o nono caçador do sacrifício.

Entretanto, se voltasse, ela se veria novamente na caverna dos Devoradores de Almas e, mesmo se conse-guisse escapar deles e, de algum modo, encontrar Torak — mesmo se conseguissem resgatar Lobo e encontrar o caminho através dos túneis até a entrada da caverna —, como é que sairiam, visto que estava bloqueada por aquela enorme placa de pedra que apenas Thiazzi conseguia afas-tar?

Mordiscou o lábio pensando o que faria. Fin-Kedinn costumava dizer que, quando as coisas

davam errado, a pior coisa que se podia fazer era não fazer nada. “Ás vezes, Renn, você tem de fazer uma opção. Talvez seja a certa, talvez não. Mas é melhor do que não fazer nada.”

Renn pensou por um momento. Então passou a se contorcer para a frente.

VINTE E UM

Na floresta de pedra, os Devoradores de Almas se

preparavam para encontrar a Porta. Nef bamboleava por ali, mergulhando tochas em

piche e colocando-as no lugar, ao mesmo tempo em que seu morcego voava acima dela. As veias nas têmporas de Thiazzi inchavam enquanto ele arrastava pedras para um círculo em volta do altar. Seshru guarnecia três máscaras com olhos feitos de pele de tripa de foca para enxergar no Outro Mundo. De Eostra, não havia sinal.

Torak temia a volta da Maga Bufo-real — contudo, ele precisava disso também. Precisava ter certeza de que todos os quatro Devoradores de Almas estivessem ali, na caverna, antes de poder dar uma escapada e procurar Lo-bo. Até lá, teria de ser um aprendiz de Devorador de Al-mas: moer sangue da terra numa placa de pedra, enquanto o sangue da coruja endurecia em sua testa.

Após ele tê-la matado, Nef colocara as mãos pesa-das em seus ombros: “Muito bem. Você acabou de dar o primeiro passo para se tornar um de nós.”

Não, não dei, dissera-lhe Torak em sua mente. Mas ele sabia o que Renn teria dito: “Onde isso vai

parar, Torak? Até onde você irá?” Ele lembrou-se de uma discussão que tivera com

Fin-Kedinn, quando implorara ao Líder Corvo que o dei-xasse ir atrás dos Devoradores de Almas. Em vão.

“Seu pai tentou combatê-los”, dissera Fin-Kedinn, “e eles o mataram! O que faz você pensar que seria mais forte do que ele?”

Na ocasião, Torak ficara furioso com a recusa do Líder Corvo, mas agora entendia o que havia por trás da-quilo. Não era apenas a maldade dos Devoradores de Al-mas que Fin-Kedinn temia. Era o que havia no interior do próprio Torak.

Certa vez, o Líder Corvo lhe contara a história do primeiro inverno que existiu. “O Espírito do Mundo tra-vou uma terrível batalha com o Grande Auroque, o mais poderoso dos demônios. Finalmente, o Espírito do Mun-do arremessou do céu o demônio em chamas,— mas, quando caiu, o vento espalhou suas cinzas e uma minús-cula mancha se fixou no tutano de cada criatura da terra. O mal existe em todos nós, Torak. Alguns reagem a ele. Alguns o alimentam. Será sempre assim.”

Torak pensou nisso agora: uma pequenina semente negra em seu tutano, esperando para explodir em vida.

— Traga-me o sangue da terra — ordenou Seshru, assustando-o. — Depressa. Está quase chegando o mo-mento.

Ele ergueu a pesada placa e levou-a para o altar. Quanto tempo mais demoraria para ele escapar e

procurar Lobo? O plano que Torak inventara era perigoso — podia

até mesmo matá-lo —, mas foi o único que ele conseguiu imaginar. Primeiro, teria de voltar ao túnel fedorento onde eram mantidas as “oferendas”; então, teria de chegar o mais perto que ousasse do urso-branco e aí...

— Ponha aqui — mandou Seshru. Ele fez o que lhe foi ordenado e começou a voltar...

mas a mão fria dela agarrou o seu punho. — Fique. Observe. Aprenda. Ele não teve outra escolha a não ser se ajoelhar a

seu lado. Ela havia pintado a máscara com cal, deixando-a

com um branco brilhante. Em seguida, mergulhou o dedo indicador em uma pasta feita de suco de amieiro e sangue da terra e avermelhou a boca. Seu dedo movimentava-se em lentos círculos que deixavam Torak tonto. Enquanto olhava, o rosto ganhou vida. Os lábios escarlates reluziram com saliva. A cabeleira de capim seco farfalhou e cresceu.

— Não toque — sussurrou a Maga Víbora. Ele ar-remessou-se para trás com um grito.

Os Devoradores de Almas agitaram-se com garga-lhadas. Brincavam com ele; faziam com que se sentisse um deles por algum motivo próprio.

— Você quer saber por que fazemos isso — disse Nef, adivinhando a pergunta que havia em sua mente.

— Por que vamos abrir a Porta? — murmurou Se-shru. — Por que vamos deixar sair os demônios?

— Para governar — disse Thiazzi, aproximando-se para ficar ao lado dela. — Para unificar os clãs e governar.

Torak umedeceu os lábios. — Mas... os clãs governam a si mesmos. — Que benefícios isso traz a eles? — rosnou Nef.

— Você nunca se perguntou porque o Espírito do Mundo

é tão instável, tão imprevisível? Por que algumas vezes ele manda presas e outras vezes não? Por que mata uma cri-ança doente, mas poupa outra? Por que os clãs não vivem como deveriam!

— Eles têm diferentes modos de sacrifícios — dis-se Thiazzi —, de mandar seus Mortos na Jornada. Isso desagrada ao Espírito do Mundo.

— Não há qualquer ordem nisso — frisou Nef Thi-azzi ergueu-se até sua altura total.

— Nós conhecemos o modo verdadeiro. Nós mos-traremos a eles.

— Mas, para fazer isso — disse Seshru prendendo Torak com seu olhar impenetrável —, precisamos ter po-der. Os demônios nos darão isso.

Ele tentou desviar a vista, mas os olhos dela segura-ram os seus.

— Ninguém consegue controlar os demônios — disse ele. A gargalhada de Thiazzi ecoou pela caverna.

— Você está errado. Se ao menos soubesse o quan-to!—

— Os erros que outros cometeram no passado — disse Seshru — foi porque quiseram fazer mais do que eram capazes. O nosso irmão que se perdeu convocou um demônio e o prendeu num grande urso. Foi uma magnífi-ca loucura.

Magnífica?, pensou Torak. Essa loucura custara a vi-da de seu pai. Nef bamboleou na direção dele.

— Os demônios que nós convocaremos — decla-rou ela — serão tantos quanto os morcegos que escure-cem a lua...

— ... tantos quanto as folhas na Floresta — estron-deou o Mago Carvalho. — Inundaremos a terra com ter-

ror! — E, depois disso... — a Maga Víbora estendeu as

mãos, depois puxou-as em sua direção, como se agarrasse um prêmio invisível —, nós os chamaremos de volta e os demônios cumprirão nossas ordens, porque nós... e ape-nas nós... possuímos o que os força a fazerem as nossas vontades.

Torak encarou-a. — Do que você está falando? A linda boca se cur-

vou. — Ah! Você verá. Torak olhou de Nef para Seshru e desta para Thiaz-

zi. Seus rostos estavam iluminados pelo fervor. Ao mesmo tempo em que ele tramava o resgate de Lobo, eles anda-ram acalentando um plano para dominar a Floresta.

— Devoradores de Almas, as pessoas nos chamam — disse Thiazzi. Ele cuspiu uma migalha de sangue de abeto vermelho.

— Um nome idiota — afirmou Nef. — Mas útil — murmurou Seshru com seu sorriso

de lado —, se as mantêm temerosas. Hesitante, Torak colocou-se de pé. — Eu... preciso ir — anunciou ele. — Devo vigiar

as oferendas. — De quem? — disse Thiazzi, bloqueando seu ca-

minho. — O Olho está fechado. Nada pode entrar. — Nem sair — completou Seshru. Torak engoliu em seco. — Um deles pode escapar. A Maga Víbora lançou-lhe um olhar zombeteiro. — Ele quer fugir da gente. — Eu lhes disse que ele era um covarde — escar-

neceu Thiazzi. — Tome. — Nef estendeu um pedaço de raiz preta

murcha. — Pegue. Coma. — O que é isso? — perguntou Torak. Seshru umedeceu os lábios, revelando sua lingüinha

pontuda. — Fará você entrar em transe. — Isso faz parte de ser um Devorador de Almas

— informou Thiazzi. — É o que você quer. Não é? Todos os três o observavam. Torak pegou a raiz e colocou-a na boca. Era doce,

mas, no fundo, tinha um gosto apodrecido que o fez en-gasgar.

Eles o tinham apanhado numa armadilha. Primeiro a coruja. Agora aquilo. Onde isso ia parar? Como conse-guiria encontrar Lobo?

VINTE E DOIS

Havia uma névoa negra na cabeça de Lobo e isso

lhe dizia que o Alto Sem-rabo não viria salvá-lo nunca, nunca, nunca.

Algo tinha acontecido. Ele deve ter se tornado pre-sa de um Molhado Ligeiro ou foi atacado por sem-rabos malvados. Caso contrário, já teria chegado.

Enquanto caminhava pelo minúsculo Covil fedo-rento. Lobo sacudiu a cabeça para se livrar da névoa, mas só conseguiu bater o focinho numa pedra. O Covil ficava muito distante de todos os outros animais e era tão pe-queno que ele dava apenas um único passo antes de ter de dar meia-volta e retornar. Passo, meia-volta. Passo, meia-volta.

Ele ansiava por correr. Em seus sonos, trotava coli-na acima e descia para vales; rolava sobre samambaias, agitando as patas e rosnando de prazer. Às vezes saltava tão alto que atingia o Alto e mordia o Olho Branco Bri-lhante. Sempre que acordava, porém, estava de volta ao Covil fedorento. Ele podia uivar, se tivesse disposição pa-

ra uivar. Mas do que adiantaria? Ninguém o ouviria, exce-to os sem-rabos malvados e os demônios.

Passo, meia-volta. Passo, meia-volta. A fome roia sua barriga. Na Floresta, quando pas-

sava muito tempo sem fazer um abate, a fome aguçava seu focinho e orelhas e colocava impulso em seu trote que o mandava voando por entre as árvores. Mas essa fome era tão ruim que nem mesmo doía.

Aquele movimento ritmado o estava deixando ton-to, mas ele não conseguia parar, embora ficasse mais insu-portável a cada passo. Seu rabo estava muito, muito pior. Ele tentara lambê-lo melhor, mas seu gosto não se parecia mais com ele e não tinha o seu cheiro. Cheirava como presa Sem-bafo, que ficava deitada na Floresta por muitos Claros e Escuros. O gosto dela era ruim. A ruindade o deixava doente. Ele podia senti-la penetrar em seu corpo, corroendo sua força.

Passo, meia-volta. Passo, meia-volta. Ele estava bem fundo, nas tripas da terra e longe de

todos os outros animais. Sentia falta da lamúria da lontra e da fúria do carcaju; sentia falta até mesmo do rosnado idi-ota daquele urso idiota. Entretanto, ele não estava sozi-nho. Seus ouvidos ressoavam com o guinchar dos morce-gos e o tagarelar dos demônios. Podia senti-los atrás das pedras, ouvir o arranhar de suas garras. Havia tantos. Era um tormento não ser capaz de atacar: morder e pressionar e dilacerar, como pretendia fazer. Caçar demônios, ele fo-ra feito para isso.

Passo, meia-volta. Passo, meia-volta. Foram os demônios que colocaram a maldade em

seu rabo; eram os demônios que sopravam a névoa negra para dentro de sua cabeça. Por sua causa, ele começara a

ver e ouvir coisas que não estavam ali. Às vezes, via Alto Sem-rabo acocorado a seu lado. Certa ocasião, ouvira o fino e agudo uivo que a fêmea fazia quando colocava em seu focinho o osso de tetraz.

Agora, superando os guinchos dos morcegos e o arranhar dos demônios, ele captou um novo som, um verdadeiro. Dois sem-rabos se aproximavam: um peque-no, outro pesado.

Por um momento, a esperança pulou. Seriam Alto Sem-rabo e a fêmea?

Não. Não era o seu irmão de alcatéia vindo para salvá-lo. Eram os sem-rabos malvados. Língua de Víbora e Pêlo-desbotado.

Sabendo que estava fraco demais para lutar. Lobo ficou agachado no Covil. Ouviu a cobertura fazer seu ruí-do ao ser arrastada e viu a pasta de casca de árvore ser baixada para o chão. Ele abocanhou a umidade. Havia apenas o suficiente para acordar a sede, mas não o sufici-ente para mandá-la de volta para dormir.

Mas... o que era aquilo? Outro cheiro estava preso à sobrepele de Língua de Víbora. Um cheiro puro e bem-amado: o cheiro de Alto Sem-rabo!

A alegria de Lobo logo transformou-se em terror, ao se dar conta de que aquilo só podia significar uma coi-sa. Os sem-rabos malvados tinham capturado seu irmão de alcatéia!

Ele enlouqueceu. Ganindo, jogou-se contra a pare-de do Covil. Ergueu o focinho para uivar, mas patas fortes agarraram sua cabeça. Ele se contorceu — tentou morder —, mas estava fraco demais e elas eram muito fortes. Mais uma vez, o maldito pedaço de casca de árvore foi preso em seu focinho.

Mais uma vez, ele estava impedido de uivar.

VINTE E TRÊS

A floresta de pedra crescia diante dos olhos de To-

rak. Troncos de pedra atiravam-se para cima com estalidos de estilhaços. Galhos quebradiços esticavam-se com o es-pasmódico estremecimento de dedos quebrados.

Ele fechou os olhos mas continuou vendo aquilo. Ficou imaginando se não seria o “olho interior” do qual Renn lhe falara: o tal que se usa para Magia. Desejou fe-rozmente que ela estivesse agora com ele.

A raiz negra sabia a doce e podre em sua boca. Po-dia senti-la arrancando suas almas, embora ele só a tivesse mascado por um instante e, depois, a tivesse escondido debaixo da língua. Sentia-se tonto e enjoado, porém muito mais alerta do que jamais estivera em sua vida.

Observou os Devoradores de Almas rodearem o al-tar. Do mesmo modo como a floresta de pedra, eles havi-am mudado e estavam irreconhecíveis. A Maga Morcego soltou um rosnado com seu focinho enrugado ao mesmo tempo que abria suas asas coriáceas para sombrear a ca-verna. O Mago Carvalho elevava-se acima das árvores de

pedra, seu latido-rosnado estrondeando enquanto ele brandia dois chocalhos feitos de dentes e caveiras. A Maga Víbora resplandecia, com inexpressivos olhos feitos de tripa, através de uma sibilante cabeleira de serpentes.

Somente a Maga Bufo-real permanecia inalterada, como se enraizada em pedra.

Esquecido nas sombras, Torak hesitava. Estava na hora de escapar: de ir atrás de Lobo. Mas a raiz negra o mantinha seguro em uma teia invisível. Ele não conseguia se mexer.

Os sons chegavam a ele muito mais aguçados do que antes. Ouvia cada gotejar das árvores de pedra, cada guincho dos morcegos, cada vibrar de úmidas línguas de cobras. Ele conhecia o motivo e esse conhecimento o dei-xava enjoado. O sangue da coruja aguçara sua audição.

Odiando-se por não fazer nada, observava a Maga Víbora rodopiar, rodopiar, agitando violentamente sua cabeça de cobra em círculos atordoantes. Uma serpente passou resvalando pelo seu rosto. Ele captou o amarelo de seu fitar fendido, o negro trovejar de sua língua.

De repente, a Maga Víbora deslocou-se para o altar e mergulhou ambas as mãos em uma pedra oca — em seguida, retirou-as, escorrendo vermelho. Agitando-se, oscilando, ela deslizou até o fundo da caverna e fixou as palmas na rocha.

O Mago Carvalho e a Maga Morcego ladraram em êxtase.

Torak ofegou. Quando a Maga Víbora saltou para longe, as im-

pressões de suas mãos fumegaram. A mancha vermelha corroía a pele entre seu mundo e o Outro.

Finalmente ele entendeu o significado nas impres-

sões amarelas de mãos que vira de relance ao caminhar para o interior das cavernas. Elas tinham sido feitas por alguém que tentava encontrar a Porta.

E agora, acima do silvo de serpente e do chocalhar de dentes e ossos — acima dos gemidos da própria terra —, Torak ouviu um som que fez os seus joelhos cederem e sua nuca fervilhar, como se uma aranha estivesse cor-rendo através dela. Um som que sugou a esperança do tutano e parou o coração de medo: um bafo áspero, malig-no, desagradável.

Demônios. Demônios no outro lado da rocha, an-siando para ser soltos.

Horrorizado e indefeso, ele olhava os Devoradores de Almas rodopiando, cantando. O que deveria fazer? Precisava encontrar Lobo. Precisava evitar que eles mer-gulhassem o mundo em terror.

A Maga Víbora segurava o trisca-fogo do Cami-nhante e o batia na rocha, parando de vez em quando para ouvir. Mais rápido ficaram os chocalhos. Mais rápidos fi-caram os “tap-tap-tap” da garra preta de pedra.

A cabeça de Torak girou. Tentou se mexer, mas a teia invisível o mantinha em seu poder.

Tap-Tap-Tap. Entre os braços estendidos da Maga Víbora, a rocha

começou a se mexer. Torak pestanejou. Devia ter sido apenas o bruxule-

ar da luz da tocha... Não. Aconteceu novamente: como uma mão em-

purrando para cima por baixo de uma pele bem esticada. Forçando para cima por baixo da pedra.

Dessa vez, não havia como se equivocar. Atrás da rocha — no fervilhante cais do Outro Mundo —, os de-

mônios pelejavam para abrir caminho. Cabeças lisas, cegas pressionavam e esticavam a rocha. Bocas cruéis se escan-caravam e sugavam. Garras selvagens arranhavam. A pa-rede da caverna se curvava, frágil como uma folha de ape-nas um dia. Não conseguiria por muito mais tempo conter tal apetite terrível, insaciável.

A Maga Bufo-real levantou-se e ergueu um braço e Torak viu que ela segurava uma maça preta de carvalho encimada por uma pedra ígnea.

Os Devoradores de Almas interromperam sua dan-ça. “A opala de fogo”, sussurraram.

Aturdido e fascinado, Torak caiu de joelhos — e a opala de fogo encheu a caverna com luz vermelha. Era o calor empolador da mais ardente brasa. Era o clamoroso encarnado de sangue fresco sobre a neve. Era o fulgor do mais inflamado poente e o resplendor do Grande Auro-que no extremo inverno. Era beleza e terror, êxtase e dor — e os demônios o queriam. Seus uivos sacudiam a ca-verna enquanto se lançavam contra a rocha, duplicando o frenesi em seu ataque violento.

Torak balançou. Esse era o poder secreto dos De-voradores de Almas. Com isso, manobrariam os demônios à sua vontade.

“A opala de fogo”, sussurravam eles, enquanto a Maga Bufo-real mantinha a maça no alto e, em volta dela, as árvores de pedra agitavam-se em um vento silencioso.

Enquanto Torak observava, o Mago Carvalho e a Maga Morcego rangeram os dentes até voar saliva negra e a Maga Víbora plantou suas mãos fumegantes sobre a ro-cha e jogou a cabeça para trás e gritou:

— A Porta... foi... encontrada! Ela recuou cambaleante e Torak viu sobre a rocha

que ela completara um grande círculo de impressões com as mãos — e, no interior do círculo, os demônios estavam prestes a arrombar para fazer a travessia.

Nesse momento, a Maga Bufo-real baixou a opala de fogo, envolveu-a com seu manto e a luz escarlate foi extinta. A rocha esticada saltou para trás. Os uivos dos demônios ficaram reduzidos a um furioso ofegar.

— A Porta foi encontrada — sibilou a Maga Víbo-ra e desabou no chão, desfalecida.

A teia invisível que mantinha Torak rompeu-se. Ele se pôs de pé e correu.

VINTE E QUATRO

Torak correu pelos túneis, esfolando os nós dos

dedos e arranhando as canelas. Tropeçou e a tocha que apanhara na floresta de pedra balançou loucamente. En-quanto se endireitava, uma asa coriácea passou flutuando pelo seu rosto. Ele conteve um grito e prosseguiu camba-leando.

Por duas vezes, pensou ter ouvido o som de passos, mas, quando parou, captou apenas o seu próprio eco. Du-vidava de que os Devoradores de Almas o tivessem segui-do. Não havia necessidade disso. Aonde ele iria? O Olho da Víbora estava trancado.

Ele arrancou o pensamento de sua mente e correu. Fragmentos do que testemunhara passavam diante

de seus olhos. Os focinhos dos demônios pressionando, pelejando para abrir a Porta. A terrível beleza da opala de fogo.

Não podia acreditar que a pedra o mantivera retido por tanto tempo. Que feitiço ela lançara que o fizera es-quecer Lobo? Teria sido assim com o seu pai? Atraído

pela curiosidade, pela sua fatal necessidade de saber — até ser tarde demais.

Tarde demais. O terror o dominou. Talvez fosse tarde demais para Lobo.

Ao correr, ele cuspiu a raiz negra e, com os dentes, dividiu-a em dois; enfiou uma metade em sua algibeira de remédios e mastigou a outra. O gosto de podre lhe deu vontade de vomitar, mas forçou-se a engolir. Não havia tempo para hesitação. Ele tinha visto o que a raiz fizera com os Devoradores de Almas. Agora teria de trabalhar para ele.

Com alarmante rapidez, os primeiros espasmos ata-caram. Agarrando a barriga, ele cambaleou pelo túnel das oferendas, enfiou a tocha numa fenda e caiu de quatro.

Vomitou, cuspindo fora um bocado de bile negra. Seus olhos moviam-se sem parar, o túnel girava. Suas al-mas começavam a pressionar para se soltar.

Ainda vomitando, rastejou até a cova que mantinha o urso-branco. Captou o som de patas peludas sobre pe-dra.

A memória emergiu das trevas e o prostrou. Um poente azul de outono na Floresta. Seu pai rindo do grace-jo que ele acabara de fazer. Então, das sombras, o urso...

Não!, disse a si mesmo. Não pense em Pa, pense em Lobo! Ache Lobo.

Tremendo, rastejou para mais perto e pousou a tes-ta ardente na pedra, olhando pela estreita abertura entre o chão e a laje que cobria a cova.

Olhos cruéis o olharam de volta. Um rosnado es-tremeceu a rocha. Seu ânimo diminuiu. Mesmo faminto e enfraquecido, o urso-branco era todo-poderoso. Suas al-mas deviam ser fortes demais.

Mais espasmos o agitaram. Vomitou... ... e, subitamente, estava preso na cova, olhando

com os olhos semicerrados o doloroso clarão de luz. Sen-tia-se quente, terrivelmente quente. Acima dele, o corpo frágil de um menino o importunava com o enlouquecedor cheiro de carne fresca. O cheiro-sangue era tão forte que suas garras doíam enquanto ele dava um passo e voltava e dava outro passo.

Captou o murmúrio distante de vozes-homem e, por um momento, sua mente desviou-se do cheiro-sangue e ele trincou os dentes. Conhecia aquelas vozes. Eram os malvados que o haviam apanhado no gelo.

Ao se lembrar do lar perdido, uma dor entorpece-dora percorreu seu corpo. Eles o tinham roubado do seu lindo e frio Mar, onde as baleias-brancas dormiam e as suculentas focas nadavam; o vento fiel que nunca falhava em soprar o cheiro-sangue para seu focinho. Eles rouba-ram o seu gelo, o seu interminável gelo que o escondia quando caçava e o levava aonde quer que desejasse ir, que era tudo o que ele queria. Eles o trouxeram para aquele terrível lugar quente, onde não havia gelo,— onde o chei-ro-sangue estava por toda a parte, mas nunca ao alcance.

Rugiu ao pensar como agarraria as cabeças dos malvados e as esmagaria contra suas mandíbulas! Cortaria suas barrigas e se banquetearia com suas entranhas fume-gantes e sua doce, escorregadia banha! Como o bater do Mar, o desejo-sangue ressoava pelo seu corpo e ele rugiu até as pedras balançarem. Ele era o urso-branco e não te-mia nadai Tudo, tudo era presa!

Bem dentro do tutano do urso-branco, as almas de Torak lutavam para obter o domínio. O espírito do urso era o mais forte que ele já encontrara. Nunca antes fora

tão engolfado pelos sentimentos de uma outra criatura. Com tremenda força de vontade, ele dominou — e

o urso-branco parou de se enfurecer com os malvados e mudou para os cheiros-sangue: a atormentadora teia de rastros de odores que levavam para a escuridão lá fora, como as marcas de arrasto após ele ter puxado uma morsa pelo gelo.

Próximo — enlouquecedoramente próximo — ele farejou sangue de lince e lontra, morcego e menino; carca-ju e águia. Mais distante, farejou lobo.

O cheiro era mais fraco do que os outros e macula-do por uma maldade que ele não entendia — mas, para um urso capaz de farejar uma foca através do gelo mais grosso, era fácil localizar.

A trilha levava abaixo pelas trevas e virando para o lado de sua pata agressora — então novamente acima, pa-ra onde o ar cheirava mais frio. Eles pensaram ter sido espertos ao esconder o lobo, mas ele o encontraria. E, quando se libertasse e matasse todos os outros, também mataria o lobo. Ele o agarraria com as mandíbulas e o sa-cudiria até quebrar sua espinha...

Não!, gritou silenciosamente Torak. Por um momento, o grande urso vacilou e, no pal-

pitante tutano de seus ossos, as almas de Torak lutavam para escapar. Ele farejara o bastante. Seu plano dera certo. Sabia onde os Devoradores de Almas haviam escondido Lobo.

As almas do urso eram forte demais. Ele não conseguia sair.

VINTE E CINCO

Renn irrompeu da toca de doninha e caiu de cabeça

na neve. Após o calor das cavernas, o frio foi uma facada em seus pulmões. Ela não se importou. Rolou o corpo e, deitada sobre as costas nuas, encarou acima a nevasca de estrelas.

Bem lá de cima veio o crocito de um corvo. Ofe-gou um fervente agradecimento — e seu guardião de clã crocitou de volta, advertindo-a de que ainda não havia acabado.

Seus dentes rangiam. Ela perdia calor depressa. Pondo-se de pé, descobriu que não conseguia encontrar sua parca, gibão ou mitenes, que ela empurrava à sua fren-te através do buraco.

Após uma busca cada vez mais desesperada, Renn caiu sobre elas. Embrulhou-se nas roupas e elas a aquece-ram em instantes. Deu graças à habilidade das mulheres Raposas-brancas.

Acima dela, as estrelas brilhavam fracamente, en-quanto nuvens corriam pelo céu. Nem sinal da Primeira

Arvore. E nada de lua também. Nada de lua? Certamente não poderia ser já o escuro

da lua. Sim, poderia. Com um tremor, ela se deu conta de

que não fazia idéia de quanto tempo ficara no subterrâ-neo. Olhou o sombrio volume da montanha. Torak e Lo-bo estavam em algum lugar lá dentro, destinados ao sacri-fício no escuro da lua. Que era agora.

Tinha de encontrá-los. Tinha de voltar lá para den-tro.

Depois que seus olhos se acostumaram à luz das es-trelas, Renn deu-se conta de que não reconhecia os arre-dores. Diante dela, a toca de doninha era um círculo de escuridão e ela não conseguia ver a pedra ereta nem o O-lho da Víbora; apenas montículos de neve e negras facha-das de pedra. Pelo que lhe constava, devia estar do outro lado da montanha.

Nervosa, seguiu em frente o seu caminho — trope-çou — e caiu pesadamente num monte de neve.

Um monte de neve muito duro, com algo sólido embaixo.

Ajoelhou-se e começou a cavar. Um caiaque. Não. Dois caiaques: ambos maiores

do que aquele que os Raposas-brancas lhes deram e guar-dados com remos, arpões e corda. Os Devoradores de Almas haviam pensado em tudo. Sacando a faca, ela cor-tou o bojo de cada um dos barcos. Pronto. Vamos ver agora até onde irão!

Do interior da montanha, veio um rugido. Renn correu para a toca de doninha. Novamente: o

inconfundível rugido de um urso-branco. Ela lembrou-se do canto sanguinário dos Devoradores de Almas. Um urso

para força. Os rugidos silenciaram. Ela se esforçou para escu-

tar, mas da escuridão vinha apenas um cálido afluxo de fedor de morcego. Imaginou Torak, sozinho contra os poderosos Devoradores de Almas. Tinha de encontrá-lo.

Pensou rápido. Em seu caminho através da toca de doninha, ela havia escalado sempre para cima. Isso signifi-cava que agora estava num lugar mais alto da montanha do que aquele em que estivera de início.

— Portanto, agora, para baixo! — gritou. Correu, mergulhando em montes de neves, emer-

gindo do outro lado, mas seguindo para baixo, sempre para baixo.

Com rapidez de tirar o fôlego, ela deu a volta em um contraforte — e lá estavam a pedra ereta e o Olho da Víbora. Nunca imaginou que ficaria tão feliz em vê-los.

O Olho estava fechado, bloqueado pela laje que o Mago Carvalho colocara diante dele. Mas talvez ela conse-guisse empurrá-la apenas o suficiente para rastejar para dentro.

Colocou o ombro contra a placa e pressionou-a. Foi o mesmo que tentar deslocar a própria montanha.

Emanava vapor pelo canto inferior da laje, onde es-ta não se ajustava exatamente à entrada da caverna. Renn tentou se espremer pela brecha. Seria grande o bastante para Lobo, mas era alguns dedos mais estreita do que ela.

Ao ficar parada diante do Olho, a verdade lhe ocor-reu tão furtiva quanto a neve. Só havia um caminho para se voltar para dentro. O caminho que ela usara para sair.

— Não posso — sussurrou. Sua respiração rodopi-ou lugubremente na penumbra.

Correu de volta trilha acima e parou ofegante dian-

te da toca de doninha. Era mínima. Uma boca minúscula, cruel, esperando para a engolir.

Jogou a cabeça para trás. — Não posso! O luar atingiu-a fortemente no rosto. Ela piscou. Estava errada. Não era o escuro da lua.

Ainda não. Ali — cavalgando acima das nuvens — estava a mais fina das luas prateadas: o próprio último bocado que o Urso do Céu ainda não apanhara. Só lhe restava um dia. E também para Torak e Lobo.

Ao fitar acima a pura e serena luz branca, Renn sentiu-se tomada por uma coragem renovada. A lua era a eterna presa: eternamente em movimento pelo céu, eter-namente apanhada e comida, mas sempre renascendo, sempre iluminando fielmente o caminho para caçadores e presas — mesmo no inverno mais intenso, quando o sol está morto. O que quer que aconteça, a lua sempre volta. E ela também deveria voltar.

Antes que pudesse mudar de idéia, desceu correndo a trilha até onde estavam os trenós dos Devoradores de Almas, onde ela e Torak haviam escondido suas coisas. Felizmente não caíra mais neve e sua mochila foi encon-trada com facilidade.

Primeiro, engoliu alguns bocados de gordura de fo-ca, o que a acalmou um pouco. Então, colocou mais gor-dura em sua algibeira de comida, para Lobo e Torak, enfi-ou a machadinha no cinto e abarrotou na algibeira de re-médios o resto do que ela achou que poderia precisar. Em seguida, correu de volta para a toca de doninha.

A respiração cortava dolorosamente seu peito à medida que arrancava a parca e o gibão por cima da cabe-ça até ficarem o mais compactadamente possível. O suor

em sua pele congelou instantaneamente, mas ela ignorou isso enquanto amarrava as cordas de suas mitenes em vol-ta da trouxa de roupas, depois amarrou em seus tornoze-los a outra extremidade, de modo a arrastá-las atrás de si. Permitiu-se uma olhada final à lua e murmurou uma rápi-da prece de agradecimento.

O vento queimava como gelo, mas a imunda cali-dez da toca de doninha era pior. Ao rastejar pela escuri-dão, o pânico cresceu em sua garganta. Ela o sufocou de volta.

Você já fez isso, disse a si mesma. Pode fazer no-vamente.

Baixou a cabeça e começou a rastejar. Ela nunca soube quanto tempo levou para encon-

trar o caminho de volta para dentro. Outra vez na toca de doninha que sempre encolhia, outra vez através daquela estreiteza final de parar o coração — e então a saída na floresta de pedra, onde — espantosamente — não havia qualquer Devorador de Almas por perto: apenas um bru-xuleio de luz de tocha e um sombrio círculo vermelho de impressões de mãos na parede, o que a deixou aflita de medo.

Algo — talvez o seu guardião de clã pairando longe acima — a guiou por entre caminhos tortuosos e curvas e descidas bruscas, até ela topar com um cheiro fétido e a luz incerta de uma tocha gotejante.

Ela estava em um túnel baixo com paredes cor de sangue e pequenas cavernas ramificando-se delas, bloque-adas por placas de pedra. Detrás das lajes, ela captou o arranhar de garras e adivinhou que era ali que as “oferen-das” estavam confinadas.

— Torak? — sussurrou.

Nenhuma resposta,— mas o arranhado parou. — Lobo? Nada ainda. Tateando com as mãos, avançou pela

penumbra. A tocha apagou-se, mergulhando-a na escuridão —

e ela tropeçou em algo caído no chão. Parou, sem fôlego, à espera de um desastre. Como

este não veio, ela retirou as mitenes para investigar. Sua mão tocou a maciez de uma pele de foca. Era um corpo, vestido com parca de pele de foca, caído no chão.

— Torak? — sussurrou. Silêncio. Ele estava dormindo ou... Temendo o que poderia descobrir, ela se aproxi-

mou mais. Se ele estivesse morto. Sua mente vacilou. As almas dele deviam estar se

atropelando na escuridão: furiosas, aturdidas, incapazes de permanecer juntas sem as Máscaras da Morte. Sua alma de clã talvez tivesse se afastado, deixando para trás um de-mônio. Um pensamento terrível, de que seu amigo talvez pudesse ter-se voltado contra ela.

Não. Ela não acreditava naquilo. Levando a mão para mais perto, ergueu-a para onde achou que deveria estar o rosto dele — e sentiu um leve calor Respiração. Ele estava vivo!

Abruptamente, recolheu a mão. Talvez não fosse To-rak. Talvez fosse um Devorador de Almas.

Cautelosamente, ela tocou no cabelo. Denso, curto, com uma franja na testa. Um rosto fino, sem barba; mas com crostas de feridas, que poderiam ser de queimaduras de frio. Parecia Torak. Mas, se estivesse enganada...

Teve uma idéia. Se fosse Torak, ela encontraria uma cicatriz na panturrilha esquerda. No verão passado, Torak

fora ferido por um javali, o corte fora pessimamente cos-turado e ele se esquecera de retirar os pontos. No final das contas, ela teve de fazer isso por ele, Torak ficara impaci-ente, os dois deram uma cabeçada e acabaram caindo na gargalhada.

Deslizando a mão por dentro da bota, ela percorreu a pele. Sim. Debaixo dos dedos encontrou as quentes e lisas saliências de uma cicatriz.

Tremendo de alívio, agarrou-o pelos ombros. — Torak! Acorde! Ele estava pesado e não reagia. Ela sibilou em seu ouvido. — Pare com isso! Acorde! O que havia de errado com ele? Teriam lhe dado

uma poção para dormir? — Quem está aí? — bradou uma mulher rudemen-

te. Renn gelou. Um leve brilho de luz de tocha surgiu no fim do

túnel. — Menino? — chamou a mulher. — Onde está

você? Responda! Desenfreadamente, Renn tateou no escuro atrás de

um lugar para se esconder. Seus dedos encontraram a borda de uma placa que bloqueava uma das covas, mas era pesada demais, ela não conseguia movê-la. Procure outra. Depressa.

O som de passos chegou mais perto. A luz de tocha ficou mais brilhante.

Renn encontrou uma laje que conseguiu mover, empurrou-a — silenciosamente, silenciosamente —, rastejou para dentro dela e fechou-a.

Uma fina linha de luz surgiu através da brecha que

restou. Ela prendeu a respiração. Os passos pararam. Quem quer que fosse, estava

perto. Ela virou a cabeça contra a luz, para o caso de sen-

tirem que ela estava olhando, e fixou o olhar cegamente na escuridão.

Do fundo do esconderijo, um par de olhos amare-los olhou de volta para ela.

VINTE E SEIS

No período de uma horrorizada pulsação, Renn

vislumbrou um bico afiado o bastante para fender a barri-ga de uma baleia; garras capazes de erguer uma cria de rena até um ninho de águia no cume de uma colina.

Recolhendo as pernas, ela se encolheu contra a ro-cha. A cova era minúscula: mal havia espaço para as duas. Suas armas eram inúteis. Ela imaginou garras velozes co-mo um relâmpago dilacerando seu rosto e suas mãos, os Devoradores de Almas olhando sua carne devastada e de-pois terminando o que a águia começara.

— Menino! — chamou a Devoradora de Almas do outro lado da placa de pedra.

A águia curvou suas enormes asas e fixou os olhos em Renn. Ela ouviu o raspar de uma tocha sendo presa em uma fenda; o leve guincho de um morcego.

— Aí está você — disse a Maga Morcego. Renn gelou. — Menino! Acorde! — Ah, você o encontrou — falou outra mulher um

pouco mais distante. Sua voz era baixa e musical, como o murmúrio de água escorrendo sobre pedra.

A pele de Renn formigou. — Não consigo acordá-lo — disse a Maga Morce-

go. Para surpresa de Renn, ela pareceu preocupada. — Ele ingeriu muita raiz — comentou a outra

zombeteiramente. — Deixe-o aí. Só precisaremos dele amanhã.

A águia abriu as asas o máximo que pôde, fazendo Renn recuar. Recuar para onde? Não tinha para onde ir. Ela tentou se fazer menor ainda e uma bolota da águia foi triturada sob sua palma.

As Devoradoras de Almas silenciaram. Teriam ou-vido?

— O que você está fazendo? — perguntou a Devo-radora de voz suave.

— Virando-o de bruços — respondeu a Maga Morcego. — Não posso deixá-lo dormir de costas. Se es-tiver enjoado, poderá sufocar.

— Ora, Nef, por que se preocupar? Ele não vale... — calou-se.

— O que foi? — quis saber Nef — Eu sinto algo — disse a outra. — Almas. Sinto

almas, no ar à nossa volta. Silêncio. Novamente, o leve guincho agudo. Renn

pestanejou. O fedor de visgo fazia seus olhos lacrimejarem e seu nariz escorrer. Tentou não fungar

— Seu morcego também as sente — observou a de voz suave.

— Quieta, minha beldade — sussurrou a Maga Morcego. — Mas almas de quem? Será que alguma das oferendas morreu?

— Não creio — murmurou a outra. — É mais co-mo... Não, não parece ser uma delas.

— Mesmo assim, é melhor verificarmos. O terror instalou-se em Renn como uma cobertura

de gelo. — Segure a minha tocha — pediu a Maga Morce-

go, a voz diminuindo à medida que ela se afastava. Renn ouviu o raspar de pedra a alguns passos dali e,

em seguida, o feroz sibilar de um carcaju. — Bem, ele não está morto ainda! — disse rindo a

de voz suave. A Maga Morcego bufou ao arrastar a laje de volta.

Outra laje foi afastada, mais perto do esconderijo de Renn. Ela ouviu o guinchado de uma lontra.

Uma por uma, as Devoradoras de Almas verifica-ram as oferendas, chegando cada vez mais perto de onde ela se acotovelava. Sua mente agitou-se. Não havia saída. Se Renn saísse correndo, elas veriam. Se ficasse onde esta-va, seria apanhada como uma doninha numa armadilha. Ela teria de evitar que as duas olhassem lá dentro. Se não evitasse, estaria morta.

Uma raposa regougou na cova ao lado da dela. Es-tavam quase em cima dela. Pense.

Só havia uma coisa a fazer. Fechou os olhos bem apertados, cruzou os braços

sobre o rosto e chutou a águia. A ave soltou um “clec-clec-clec” ensurdecedor e

Renn sentiu um arrepio nos pulsos quando garras fizeram um corte da largura de um cabelo em sua pele.

Do outro lado da laje, as Devoradoras de Almas pararam.

A águia sacudiu-se furiosamente e começou a alisar

com o bico as penas eriçadas. Renn agachou-se com os braços sobre o rosto, sem

conseguir acreditar que estava ilesa. — Não é preciso verificar essa aí — observou a

Maga Morcego. — Mas parece que está novamente com fome.

— Ora, deixe-a para lá! — berrou a outra, impaci-ente. — Deixe o menino, deixe todos eles! Eu preciso de descanso e você também! Vamos embora!

Sim, vão!, implorou Renn em silêncio. A Maga Mor-cego hesitou.

— Você tem razão — concordou ela. — Afinal de contas, eles só viverão mais um dia.

O som de suas passadas recuou pelo túnel. Renn pendeu o corpo aliviada. Com as pontas dos

dedos, acompanhou as tatuagens em ziguezague nos pul-sos e novamente viu o rosto redondo e sagaz de Tanuge-ak. Você precisará delas, eu acho.

Só depois de algum tempo, quando a águia come-çou novamente a ficar inquieta, Renn teve coragem de se mexer. Ao esfregar as pernas dormentes para voltar a sen-ti-las, ouviu alguém se mexer do outro lado da laje.

— Você já pode sair — sussurrou Torak. Ele ainda não conseguia acreditar que era realmente

ela. — Renn? — murmurou. — Graças ao Espírito, você acordou! — Com os

cabelos sujos de preto, ela parecia estranhamente desco-nhecida. Mas era mesmo Renn: mostrando seus pequeni-nos dentes afiados num vacilante sorriso e dando-lhe de-sajeitadas pancadinhas no peito.

— Renn... — repetiu. A tontura o dominou e ele

fechou os olhos. Ele queria lhe contar tudo. Sobre ter sido espírito errante do urso-branco e ser apanhado. Ter ouvi-do o uivo de Lobo — uivando dentro de sua cabeça — e libertar-se do urso. Acima de tudo, queria lhe contar o quanto foi incrível, o quanto foi maravilhoso ela ter segui-do caminho pela escuridão e tê-lo encontrado.

Mas, ao tentar, a amarga bile subiu pela sua gargan-ta e tudo o que ele conseguiu dizer foi:

— Vou... vomitar. Ficou de quatro e vomitou e ela ajoelhou-se a seu

lado e segurou seu cabelo para trás. Quando acabou, ela ajudou-o, cambaleante, a ficar

de pé. Ao se aproximarem da luz da tocha, ela viu o rosto dele pela primeira vez.

— Torak, o que aconteceu com você? Seus lábios es-tão pretos! Há sangue em sua testa!

Ele recuou ao toque dela. — Não, está... manchado. — O que aconteceu? — repetiu ela. Torak não conseguiu coragem para lhe contar. Em

vez disso, falou: — Eu sei aonde levaram Lobo. Vamos. Mas, ao cambalear túnel abaixo, ela o segurou. — Espere. Há algo que preciso lhe contar. — Fez

uma pausa. — Os Devoradores de Almas. Eles não estão atrás de Lobo. Eles querem sacrificar você também!

Então contou-lhe uma história, que o deixou no-vamente enjoado, sobre uma cantoria que ela ouvira na floresta de pedra.

— Trata-se de um encanto que lhes dará grande poder e os protegerá dos demônios.

Seus joelhos fraquejaram e ele se apoiou na parede.

— Os nove caçadores. Eu os ouvi falar nisso, mas nunca pensei que... — Com um olhar zangado, ele agarrou a tocha. — Vamos. Não temos muito tempo.

Renn pareceu intrigada. — Mas... Lobo não está aqui com os outros? — Não. Eu lhe conto enquanto caminhamos. Sua cabeça desanuviava depressa e, enquanto a

conduzia através dos túneis — tentando lembrar as trilhas de odores cheiradas pelo urso e parando para escutar qualquer som de perseguição —, ele lhe falou da mensa-gem vinda do outro lado do Mar, o que motivara os De-voradores de Almas a manterem Lobo separado. Em se-guida, contou-lhe o que testemunhara nas cavernas. A descoberta da Porta. O plano dos Devoradores de Almas para inundar a terra com terror. A opala de fogo.

Mais uma vez, Renn deteve-se. — A opala de fogo? Eles encontraram a opala de fo-

go? Ele encarou-a. — Você sabia a respeito disso? — Bem... sabia. Mas não muito. — Por que não me contou? — Nunca pensei que... — Ela hesitou. — É algo

que você ouve em histórias, se... se cresce em um clã. — Conte-me agora. Renn chegou mais perto e ele sentiu a respiração

dela em sua face. — A opala de fogo — sussurrou — é a luz do olho

do Grande Auroque. É por isso que os demônios são atra-ídos para ela.

Ele fez contato visual com ela e, na impenetrável escuridão, viu duas pequeninas tochas bruxuleantes.

— Então, quem a empunha — deduziu ele — os

controla. Ela confirmou com a cabeça. — Desde que a opala não toque em terra ou pedra,

os demônios serão servis e cumprirão as ordens de quem a conduzir.

Ele lembrou-se do brilho encarnado na floresta de pedra.

— Mas era tão bonito. — O mal pode ser bonito — declarou Renn com

surpreendente frieza. — Não sabia disso? Ele ainda tentava absorver tudo aquilo. — Quanto tempo tem isso? Quando isso...? — Ninguém sabe. — Mas agora foi encontrada — murmurou ele. Ela umedeceu os lábios. — Quem tem a opala? — Eostra, a Maga Bufo-real. Mas, depois que en-

contraram a Porta, ela desapareceu. Ficaram em silêncio, ouvindo o esvoaçar de morce-

gos acima e um distante gotejar de água; imaginando o que mais entulharia a escuridão.

Foi Torak quem falou primeiro: — Vamos. Estamos quase chegando. Novamente, Renn ficou intrigada. — Como você sabe aonde ir? Ele hesitou. — Apenas sei. Escalaram mais alto e, finalmente, chegaram a uma

pequena caverna úmida onde um sujo córrego marrom empoçava, antes de desaparecer abaixo em um buraco ecoante. A seu lado, havia um balde de casca de vidoeiro, com uma algibeira de fibras de casca de árvore tecidas,

contendo alguns pedaços esfarelados de bacalhau. Num canto, encontraram o que parecia ser uma concavidade, coberta por um resistente tabique de vime com pesos de pedras. O coração de Torak disparou. Ele sabia — sabia — que Lobo estava na cova.

Passando a tocha para Renn, ele rolou as pedras pa-ra longe e empurrou o tabique para o lado.

Lobo se encontrava numa minúscula cova fedoren-ta apenas um pouquinho maior do que ele. Estava doloro-samente magro: os ossos dos quadris salientavam-se agu-damente. De seu pêlo emaranhado, erguia-se um fedor de podridão. Ele estava deitado de barriga com a cabeça so-bre as patas, completamente imóvel, e, por um terrível momento, Torak achou que estivesse morto.

— Lobo! — chamou baixinho. A grande cabeça prateada contraiu-se, mas os olhos

âmbar estavam baços. — O focinho dele — sussurrou Renn —, olhe o

focinho! Estava amarrado com uma tira de couro cru, cru-

elmente apertada. A raiva queimou no peito de Torak. — Eu cuidarei disso — disse ele entre os dentes.

— Me dê a sua faca. Saltando para a cova, ele cortou a amarra.

Irmão de alcatéia — falou num trêmulo grunhido-ganido —, sou eu! O rabo de Lobo nem mesmo se contraiu.

— Torak — chamou Renn apreensiva. — Irmão de alcatéia — repetiu Torak, com mais insistência. — Torak! — gritou Renn. — Saia!

Os lábios de Lobo recuaram num rosnado e Torak, cambaleante, se pôs de pé. No instante anterior ao do sal-to de Lobo, Torak agarrou a borda da cova e içou o corpo

— ao mesmo tempo que Renn segurava sua parca e o pu-xava com toda a força. Ele saiu a toda velocidade e os dois empurraram de volta o tabique e a pedra para cima da co-va no momento em que Lobo saltou para cima e chocou-se contra ela com um ruído surdo.

Renn cobriu a boca com ambas as mãos. Torak olhou para ela, chocado. — Ele não me reconheceu — falou.

VINTE E SETE

Lobo saltou para cima do estranho sem-rabo semi-

crescido, mas o Covil fechou-se e ele caiu de costas na pedra.

A maldade em seu rabo não o deixaria descansar. Ele rodou até suas patas traseiras tremerem tanto que pre-cisou se deitar. Seu pêlo parecia quente e esticado e havia um zumbido em seus ouvidos. A névoa negra machucava sua cabeça.

De cima, vinha o uivo-e-ganido dos estranhos sem-rabos. Atônito, ele tremeu as orelhas. Ele conhecia aquelas vozes. Ou achava que conhecia. Mas, embora esses sem-rabos soassem familiares, o cheiro deles era totalmente er-rado. A fêmea cheirava a peixe-cão e águia e o macho — que soava como Alto Sem-rabo — fedia igual aos malva-dos e ao grande urso branco. Era ou não era Alto Sem-rabo? Lobo não sabia. Não conseguia desembaraçar isso em sua cabeça.

Mesmo assim, não muito tempo atrás, ele havia cap-tado o cheiro de seu irmão de alcatéia, tinha certeza disso.

Ele o captara na sobrepele da fêmea de língua de víbora e, embora ela tivesse amarrado o odioso couro de rena em seu focinho, ele Uivara por seu irmão de alcatéia, Uivara por ele dentro de sua cabeça. E, por um momento — o da mais rápida mordida —, ele ouvira uma resposta; e o som dos toscos e belos uivos de seu irmão de alcatéia fora co-mo um delicado sopro bafejando seu pêlo.

Então a névoa negra se fechara novamente e os be-los uivos mudaram para os grosseiros rugidos de um urso. Estou furioso!, rugira o urso. Furioso! Furioso! Como todos os ursos, esse não era bom de falar, por isso continuou di-zendo a mesma coisa várias e várias vezes.

Um arrastar acima dele. Luz ferroou seus olhos. Então o bolo de casca de vidoeiro balançou diante de seu focinho e parou. Indiferentemente, ele lambeu o molhado.

Os estranhos sem-rabos olhavam para ele. Farejou sua confusão e medo. Agora o macho semicrescido incli-nou-se para baixo, quase no limite de uma mordida, emi-tindo suaves grunhidos-ganidos.

— Irmão de alcatéia! Sou eu! Essa voz... tão familiar. Tão suavizante para a cabe-

ça dolorida de Lobo, como a sensação da lama fria em patas feridas.

Mas talvez Lobo estivesse no outro Agora, o tal para onde ele ia em seus sonos. Talvez, quando acordasse, esta-ria novamente naquele Covil fedorento.

Ou talvez fosse outro truque dos sem-rabos malva-dos.

Novamente o macho se inclinou. Lobo viu o pêlo curto em sua cabeça: muito mais curto do que o de Alto Sem-rabo. Mas também viu um adorável rosto achatado e reluzentes olhos de lobo.

Confuso, Lobo farejou a pata sem pêlo que se a-proximou dele. Cheirava um pouco como Alto Sem-rabo — seria ele? Lobo devia lambê-la ou mordê-la?

Lobo soltou um rosnado de advertência e Torak recolheu a mão.

— Ele não reconhece você — disse Renn. Os punhos de Torak se fecharam. — Mas vai. — Olhou para a minúscula, esquálida

cova. Os Devoradores de Almas pagariam por aquilo. Não se importaria se levasse o resto da vida, ele os caçaria e os faria pagar pelo que fizeram a Lobo.

— Quanto tempo nós temos? — perguntou Renn, puxando-o de volta para o presente. — Onde estão os Devoradores de Almas?

Ele sacudiu a cabeça. — Estamos fora do alcance da voz da floresta de

pedra e, pelo que disse Seshru, eles devem estar descan-sando. Não creio que venham aqui até... até amanhã, quando abrirem a Porta. Mas isso é apenas um palpite.

Renn assentiu sombriamente. — Uma coisa é certa. Dessa maneira, não iremos

muito longe com Lobo. Ele precisa de comida e remédios. Depressa.

Abrindo sua algibeira de comida, ela retirou um pe-daço grosso de gordura de foca e jogou-o no poço. Lobo caiu sobre ele e o engoliu sem mesmo mastigar.

— Ainda bem que você pensou em trazer comida — comentou Torak.

— Ainda não acabei — murmurou Renn. Puxou o cordão da tigela de casca de vidoeiro, encheu-a com pe-quenas pelotas escuras de sua algibeira de comida e bai-xou-a de volta para a cova. O focinho negro de Lobo con-

traiu-se. Ele se pôs de pé e cheirou-as. — Mirtilo — disse Renn. Pela primeira vez em dias, Torak sorriu. Então seu

olhar voltou para Lobo e seu sorriso se desfez. — Ele vai melhorar, não vai? Viu-a pelejar para colocar no rosto um sorriso en-

corajador. — Mas... Renn — hesitou —, não pode ser tão ru-

im assim. Apanhando a tocha crepitante, ela ergueu-a so-bre a cova.

— Veja o rabo dele! Lobo deu um rosnado feroz. Não se aproximei Torak

gelou. A ponta da peluda cauda prata estava suja de san-gue seco, mas não foi isso que o deixou aflito de medo. Era a viscosa carne preta-esverdeada que se mostrava em algumas partes. Carne fedendo a podre.

— É a doença do enegrecimento — disse Renn. — Está envenenando-o. Os vermes da doença estão co-mendo-o por dentro.

— Mas, assim que o levarmos para a neve lá fora, ele vai melhorar...

— Não, Torak, não. Temos de parar isso agora ou será tarde demais.

Ele sabia o que aquilo significava e não queria en-frentar. — Deve haver algo que você possa fazer. Afinal, você conhece Magia!

— Se houvesse, não acha que eu já teria feito? To-rak, isso o está matando! Você sabe disso! — Ela olhou em seus olhos. — Só há uma coisa a fazer. Temos que cortá-la fora!

-Você sabe que estou certa — repetiu Renn, mas

ela pôde ver que Torak não escutava. Temerosamente, ela olhou por sobre o ombro. Até

então, não houvera sinal dos Devoradores de Almas. Dirigiu-se de volta a ele. — Você confia em mim? — perguntou. — O quê? — Você confia em mim? — Claro que confio! — Então deve saber que falo a verdade! Agora diga

para ele. Diga para Lobo que temos de fazer isso para ele melhorar.

Torak hesitou; então, lentamente, baixou para den-tro da cova, exprimindo-se bem baixinho em fala de lobo.

Lobo ergueu a cabeça e deu um rosnado de alerta.

Para o horror de Renn, Torak ignorou-o. Ele se acocorou, mantendo os olhos firmes, mas o olhar brando.

Os pêlos do pescoço de Lobo estavam eriçados, as orelhas achatadas para trás.

De repente, ele deu o bote, mordendo o ar a um palmo do rosto de Torak. O choque das grandes mandí-bulas ecoou pela caverna.

Torak colocou a cabeça ainda mais perto e fungou nos lábios negros.

Lobo continuou rosnando, encarando Torak com olhos cada vez mais sombrios e ameaçadores.

Torak recuou e se pôs de pé. — Ele não entendeu — disse inexpressivamente. — Por que não? — Eu... Eu não consegui um meio de dizer; de falar

para ele que isso o deixaria melhor Porque, em fala de lo-bo, não existe futuro.

— Ah — fez Renn. Lentamente, ela retirou a machadinha do cinto: a

machadinha que ela sabia — por causa do conhecimento que às vezes lhe ocorria — que iria precisar

— Tome. Torak não reagiu. Ficou olhando para a machadi-

nha. — Vamos apenas... cortar a ponta — disse ela. —

Mais ou menos o tamanho do seu polegar. — Ela engoliu em seco. — Torak. Tem de fazer isso. Ele é seu irmão de alcatéia.

Ele apanhou a machadinha. Sopesou-a. Lobo ergueu a cabeça, então deitou de lado, os

flancos ofegantes. Torak segurou suas pernas e levantou a machadinha. Renn sentiu um enjôo. Era a visão do ancião Raposa-branca. Lentamente, Torak baixou a machadinha.

— Não consigo — sussurrou. Ergueu a vista para ela, os olhos brilhando. — Não consigo.

Após momentos de hesitação, Renn desceu para a

cova. Havia espaço apenas para ficar de pé ao lado dele. Ela tomou a machadinha de sua mão. Lobo lançou-lhe um olhar tenso e recuou os lábios para lhe mostrar seus temí-veis dentes;

— Devíamos amarrar seu focinho — sugeriu a meia-voz.

— Não — disse Torak. — Ele vai morder! — Não! — disse ele furiosamente. — Se eu amarrar

agora o seu focinho, achará que não sou melhor do que os Devoradores de Almas! Se eu não amarrar... se eu confiar nele para não me morder... então talvez... talvez... ele con-

fie em mim e deixe que nós o ajudemos. Por um momento, ficaram se encarando. Ela viu

convicção em seu rosto e sentiu que ele havia se decidido. — Não deixarei que ele morda você — afirmou,

colocando-se entre ela e as mandíbulas de Lobo. Quando Torak se ajoelhou, Lobo ergueu a cabeça e farejou seus dedos, depois voltou a baixá-la.

Com a mão esquerda, Torak alisou o pêlo macio a-trás das orelhas de Lobo, soprando e grunhindo baixinho. Sua mão direita passou delicadamente pelo flanco de Lo-bo, depois pelo seu quadril. Ao chegar à base da cauda, o focinho de Lobo contraiu-se num rosnado. A mão de To-rak continuou — lentamente — cauda abaixo. Lobo rugiu até seu corpo inteiro sacudir. Torak gelou.

Então seus dedos avançaram um pouco mais, até quase chegarem na podridão da ponta. Sua mão fechou-se sobre o rabo, mantendo-o para baixo.

Com ofuscante velocidade. Lobo deu um bote e agarrou o outro punho de Torak com as mandíbulas. Seus dentes se apertaram em volta do osso, mordendo a pele sem perfurá-la: prontos para esmagar.

Renn prendeu a respiração. Certa vez, ela vira Lobo quebrar o fêmur de um alce. Ele poderia facilmente rom-per o pulso de Torak com a mesma facilidade com que quebraria um graveto.

Os enormes olhos âmbar de Lobo estavam fixos nos de Torak: esperando para ver o que ele faria.

O rosto de Torak reluzia com o suor quando fez contato visual com Lobo.

— Prepare-se — falou para Renn. Ela ajeitou os dedos gelados em volta do cabo da

machadinha. Torak não tirava os olhos dos de Lobo.

— Faça — disse ele.

VINTE E OITO

O rabo de Lobo ainda doía, mas agora era um fe-

rimento limpo e a maldade tinha sumido. A névoa negra também se fora, junto com as últimas de suas dúvidas. Aquele macho semicrescido era mesmo Alto Sem-rabo. Tinha sido a névoa negra que o deixara cego para seu ir-mão de alcatéia e o fizera pegar com as mandíbulas a sua pata dianteira. Se você me machucar, dissera-lhe Lobo com os olhos, eu mordo. Mas o olhar de Alto Sem-rabo fora firme e verdadeiro e, de repente, Lobo lembrou-se do tempo em que era um filhote, sufocou-se com um osso de pato, e Alto Sem-rabo agarrou sua barriga e a apertou. Lobo sen-tiu-se tão insultado, que se virou para morder, mas Alto Sem-rabo continuou apertando e o osso de pato disparou para fora do focinho de Lobo — então ele entendeu. Alto Sem-rabo o estava ajudando.

Foi por isso que Lobo deixou que a irmã de alcatéia cortasse seu rabo com a grande garra de pedra. Foi por isso que ele não mordeu a pata de seu irmão de alcatéia. Porque eles o estavam ajudando.

Agora tudo acabou e a irmã de alcatéia encostou-se

na lateral do Covil, Ofegando, enquanto Alto Sem-rabo sentou-se com a cabeça nas patas, tremendo-se todo.

Lobo foi cheirar o pedaço de rabo caído no chão: o pedaço de rabo que fora Lobo, mas que agora não passava de um bocado de carne ruim, que não valia a pena ser comido. Então focinhou Alto Sem-rabo debaixo do quei-xo para pedir desculpa por ter ficado cego para quem ele era e Alto Sem-rabo fez um estranho ruído de engolir em seco e enterrou seu focinho no cangote de Lobo.

Depois disso, as coisas melhoraram. A irmã de alca-téia deu mais mirtilos a Lobo e deliciosos pedaços escor-regadios de gordura de peixe-cão e ele sentiu sua força correr de volta. Alto Sem-rabo sentou-se ao lado dele, co-çou seus flancos e a irmã de alcatéia mergulhou a ponta cortada de seu rabo numa lama fina que cheirava a mel e samambaias molhadas. Lobo deixou-a fazer isso, porque sabia que ela o fazia ficar melhor.

Colocando o focinho entre as patas, ele fechou os olhos e dedicou-se completamente à coçação de seu irmão de alcatéia e à maravilhosa lama fria que afugentava o res-to da maldade.

Lobo recuperou-se com uma velocidade que sur-

preendeu e gratificou Renn. Seu pêlo já parecia mais liso e o focinho perdera

aquele aspecto insensível, desagradável. Na ponta do rabo — agora um polegar mais curto do que antes —, o feri-mento tinha um cheiro limpo e fresco. Para surpresa de Renn, Lobo deixara que ela fizesse um curativo com um ungüento de salgueiro e ulmária em gordura de foca mas-

cada. Ele até mesmo deixou que ela o envolvesse em fi-bras de casca de árvore trançadas, as quais ele fez uma débil tentativa de comer.

Foi Torak quem não conseguiu olhar; ele pareceu incapaz de suportar a simples visão do ferimento, como se sentisse mais dores do que o próprio Lobo.

— Ele está realmente melhorando — observou Renn, para tranqüilizá-lo. — Creio que lobos saram mais depressa do que a gente. Você se lembra do último outo-no, na Lua dos Veados Berrantes, quando ele foi atrás de amoras e cortou a orelha? Três dias depois, não havia nem a crosta da ferida.

— Eu tinha me esquecido disso. — Ele forçou um sorriso. — E o seu ungüento também ajuda.

— Ele fica cada vez mais forte com o passar do tempo — observou ela, fechando sua algibeira de remé-dios. —Acho que devíamos...

Um morcego esvoaçou acima e, ao mesmo tempo, eles pararam para ouvir.

Nada. Três vezes durante o dia — esse estranho dia sub-

terrâneo que mais parecia noite —, Torak tinha voltado à floresta de pedra, roubado uma tocha recém-umedecida e se certificado de que os Devoradores de Almas ainda dormiam em seu transe. Mas eles não podiam contar com isso por muito tempo.

— Devemos tirá-lo da cova — disse Renn. — Po-demos fazer uma funda com os nossos cintos e içá-lo. Se ele nos deixar.

— Ele deixará. Você disse que Thiazzi bloqueou a entrada da caverna?

— Sim. Tomara que a gente consiga afastá-la.

— Nós teremos que afastá-la. Essa é a única saída. — Não, não é. — Com relutância, ela lhe contou

sobre a toca de doninha. Normalmente, ele faria questão de saber tudo a

respeito, inclusive por que ela não lhe contara isso an-tes,— mas, em vez disso, ele pareceu distraído. Ela se per-guntou se ele estava preocupado com a mesma coisa que começara a preocupá-la.

Renn observou-o focinhar o cangote de Lobo. Este agitou a orelha e os dois trocaram um daqueles olhares reveladores que a faziam se sentir deixada de lado; ela, po-rém, não se preocupava mais com isso, estava simples-mente agradecida por Torak ter seu irmão de alcatéia de volta.

— O sangue de nove caçadores — disse ele subi-tamente. — Isso é para protegê-los dos demônios, não é mesmo, quando abrirem a Porta?

Ela fez que sim. — Estive também pensando nisso. Mesmo para os

Devoradores de Almas seria incrivelmente difícil manter a Porta aberta por mais que algumas batidas do coração. Mas isso será o suficiente.

Imaginaram demônios espalhando-se como uma enchente negra sobre a neve. Através do gelo. Em direção à Floresta.

— E a opala de fogo — continuou Torak — lhes dará o controle deles, assim que os demônios saírem.

— Sim. Ele alisou o flanco de Lobo e este balançou o rabo em agradecimento, tomando o cuidado para não batê-lo.

— Como essa pedra pode ser destruída? — per-guntou-se Torak. — A marteladas? Jogada no Mar?

Os dedos dela apertaram-se contra a algibeira de remédios.

— Não é tão simples assim. Só se poderá roubar o seu poder enterrando-a debaixo de terra ou pedra. E — hesitou... — ela precisa de uma vida. Uma vida enterrada junto com ela. Caso contrário, não será abrandada.

Torak pousou o queixo nos joelhos e franziu a tes-ta.

— Quando coloquei as Máscaras da Morte em meu pai — confessou ele, surpreendendo-a —, não fiz isso muito bem. Especialmente não aqui, para a alma-clã. — Tocou seu esterno. — Ele tinha uma cicatriz, de onde cortara fora a tatuagem de Devorador de Almas.

Renn engoliu em seco. — Não pude voltar e endireitar as coisas para ele

— prosseguiu. — Juntar seus ossos, colocá-los para des-cansar no terreno dos ossos do Clã do Lobo... onde quer que fosse... porque, desde então, de modo ou de outro, tenho combatido os Devoradores de Almas. — Fez uma pausa. — Eu o deixei porque ele me mandou fazer isso. Porque ele sabia que o meu destino era combater os De-voradores de Almas. Não creio que agora consiga dar as costas a esse destino.

Renn não disse nada. Era isso o que ela temia. Desejou desesperadamente que eles conseguissem

encontrar o caminho de saída daquelas cavernas horríveis, recuperar seu caiaque e voltar para os Raposas-brancas. Depois Inuktiluk poderia levá-los para a Floresta, em seu trenó puxado por cachorros, então estariam novamente com Fin-Kedinn e tudo estaria acabado. Ela, porém, sabia que isso não iria acontecer.

Torak ergueu a cabeça e seus olhos cinzentos eram

firmes. — Não se trata mais de salvar Lobo. Não posso

simplesmente ir embora e deixar que eles abram a Porta. — Eu sei — disse Renn. — Sabe? — Seu rosto estava aberto e vulnerável.

— Porque eu não posso fazer isso sozinho. E não posso pedir a sua ajuda. Você já fez demais.

Isso a aborreceu. — Eu sei, tão bem quanto você, o que devemos fa-

zer! Precisamos nos certificar de que Lobo seja libertado e depois... — prendeu a respiração — depois precisamos evi-tar que eles abram a Porta.

VINTE E NOVE

Após algum esforço, eles conseguiram içar Lobo da

cova e seguir em frente. Seu caminho os conduziu pelo túnel das oferendas, onde se sentiram aliviados por não encontrar qualquer sinal dos Devoradores de Almas, em-bora estes tivessem estado ali recentemente. O buraco que continha o lince estava vazio.

Torak ficou imaginando o que Lobo quis dizer ao soltar um baixo e urgente “uff”!

— Esconder! — sussurrou ele, mas Renn sabia o suficiente de fala de lobo para reconhecer o alerta e já es-tava se arrastando para a cova do lince. Torak empurrou a placa fechando-a e, um instante depois, o morcego de Nef passou a um triz de seu rosto.

— Menino? — chamou Nef da outra extremidade do túnel. — Onde você está?

Torak olhou de relance para trás dele, onde estava Lobo, cujos olhos âmbar brilhavam sob a luz da tocha. Se Nef o visse...

Enquanto a Maga Morcego coxeava na direção de-les. Lobo virou-se e se fundiu com a escuridão. Torak ex-pirou aliviado. Não deveria ter duvidado de Lobo. Se ele não quisesse ser visto, não deixaria que isso acontecesse.

— Estou aqui — disse ele, pelejando para manter a voz calma.

— Por onde você andou? — vociferou Nef. Esfregando o rosto, ele tentou parecer cansado. — Eu estava dormindo. Aquela raiz... minha cabeça

dói. — Claro que dói! É preciso ser forte para ser um

Devorador de Almas! Para temor de Torak, ela parou bem do lado de fo-

ra do esconderijo de Renn e apoiou a mão na pedra. Ele se afastou um pouco, na esperança de que ela o

seguisse. Não seguiu. Após apoiar sua tocha na parede, ela ficou de cócoras.

— Forte — repetiu ela, como se para si mesma —, é preciso ser forte. — Abriu as mãos e olhou-as. Estavam escuras de sangue.

— O lince — disse Torak. — Você o matou. O sa-crifício começou.

Enquanto Nef mantinha as mãos sujas diante de si, seus punhos se cerraram.

— Tinha de ser feito! Os poucos precisam sofrer pelos muitos! Torak umedeceu os lábios.

Precisava se livrar da Maga Morcego antes que ela descobrisse Renn. Contudo...

— Vocês não precisam fazer isso — disse ele. Nef ergueu a cabeça com um solavanco.

— O sacrifício. A Porta. — O quê? — rosnou a Maga Morcego.

— Eles são demônios. — Aí é que está a beleza disso! Demônios não sa-

bem a diferença entre certo e errado! Podemos dobrá-los à nossa vontade! Não percebe? Essa é a nossa chance de fazermos as coisas direito! Impor os modos do Espírito do Mundo!

— infringindo a lei do clã? Nef encarou-o. De repente, pôs-se de pé, apanhou

a tocha e levou-a para perto do rosto dele: tão perto que ele ouvia o chiar crepitante da resina de pinheiro.

— Você era um covarde — disse ela —, rebaixan-do-se, choramingando... mas não é mais. Por que ocultou a sua verdadeira natureza?

Torak não respondeu. Ela baixou a tocha. — Ah, mas isso interessa agora? Uma porção de escuridão atravessou a luz e pousou

no ombro dela. Enquanto a observava alisar o macio pêlo do morcego, Torak pensava como podia ela acariciar seu animal de clã e, ainda assim, manchar o seu espírito com perversidade.

— A abertura da Porta está próxima — anunciou Nef. — Você tem trabalho a fazer. Leve as oferendas para a floresta de pedra.

Ele a encarou. — Quer dizer... — Nós vamos matá-las. Vamos matar todas elas! Ele engoliu em seco. — Aonde... Aonde você vai? — Eu? — bradou Nef. — Eu vou cuidar do lobo! — O que você estava pensando? — sussurrou Renn,

após a Maga Morcego ter desaparecido. — Discutir com uma Devoradora de Almas? Comigo bem ali, prestes a ser

descoberta? — Pensei que poderia fazê-la mudar de idéia — a-

legou Torak. — Torak, ela é uma Devoradora de Almas! Renn tinha razão; mas ele não queria admitir.

— Vamos — disse ele bruscamente. — Quando descobrir que Lobo’ sumiu, ela dará o alarme. Precisamos libertar as oferendas e dar o fora daqui!

Rapidamente, aguçando os ouvidos para captar pas-

sos, eles seguiram pelo túnel, afastando pedras e libertan-do os prisioneiros. A raposa e a lontra fugiram no instante em que houve uma brecha suficiente para se espremer por ela. A águia lançou-lhes um olhar ofendido, movimentou as asas sujas e sumiu no meio da escuridão. O carcaju era uma trouxa que emitia raiva por todos os lados e teria ata-cado os dois, se Lobo não tivesse emergido das sombras e cuidado de tudo.

— Fiiu! — ofegou Renn. — Isso é que é gratidão! — Acha que eles vão encontrar a saída? — indagou

Torak. Ela fez que sim. — Há uma brecha entre a laje e a boca da caverna.

Eles conseguirão passar por ali. -E Lobo? — E grande o bastante para ele. Mas não para nós.

E não creio que a gente possa contar com o fato de poder arrastar aquela laje.

— Então... teremos de usar a toca da doninha. O sangue fugiu do rosto dela.

— Se tivermos a chance. Ficaram em silêncio. Não haviam imaginado qual-

quer plano para deter os Devoradores de Almas, a não ser seguir para a floresta de pedra e fazer — alguma coisa.

As garras de Lobo causavam estalidos enquanto ele trotava até o fim do túnel e então parou bruscamente. O-lhou para a cova do urso-branco.

Pressentindo algo, Torak foi investigar. O que ele viu fez seus joelhos se curvarem.

— Nós teremos uma melhor chance do que esses dois — disse ele.

— O que quer dizer? — perguntou Renn. Afastou-se para o lado para ela poder ver. Os Devoradores de Almas haviam abatido e esfola-

do o urso, deixando no buraco a fedorenta carcaça fume-gante. Haviam feito o mesmo com o lince e depois joga-ram seu corpo sobre o do urso.

Renn recuou para se apoiar na parede da caverna. — Como puderam fazer isso? Deixaram os dois para

apodrecer. Isso é maldade, pensou Torak. É essa a aparência

do mal. Morto, o urso-branco parecia pateticamente me-nor, o coração de Torak se apertou de dó.

— Que suas almas encontrem o caminho de volta para o gelo. murmurou. — Que elas estejam em paz.

— Torak... — A voz de Renn parecia lhe chegar de muito longe. Está na hora. Precisamos ir. Precisamos evi-tar que eles abram a Porta.

Na floresta de pedra, o ritual da Abertura já havia começado.

Quando Torak se agachou em meio às sombras na entrada caverna, seu espírito vacilou. Lobo tremeu encos-tado nele. Renn mantinha-se firme.

As árvores de pedra estavam salpicadas de encarna-do. Uma acre fumaça negra serpeava do altar, onde os

Devoradores de Almas haviam feito uma oferenda de seus cabelos. O Mago Carvalho e a Maga Víbora rondavam as trevas empunhando forcados de três pontas, rechaçando as almas vingativas dos caçadores assassinados. Ambos estavam irreconhecíveis em suas máscaras com olhos cru-éis, os lábios pintados salpicados com espuma negra. Am-bos estavam nus até a cintura, cobertos apenas com uma reluzente pele viscosa.

A Maga Víbora vestia o couro do lince: a cabeça boquiaberta encaixada na sua, a pele macia agitando-se em suas costas enquanto ela brandia o trisca-fogo do Cami-nhante.

O Mago Carvalho tornara-se o urso-branco. Com as mãos enfiadas nas patas dianteiras, ele contornava os rebentos de pedra, sibilando, cortando o ar com sua gar-ras.

Somente a Maga Bufo-real estava inalterada. Enrai-zada na pedra, ela encarava a parede onde as impressões de mãos vermelhas marcavam a Porta Suas mãos de cadá-ver cobriam a maça na qual estava assentada a opala de fogo.

Com um supremo esforço, Torak sacudiu-se para se livrar do encanto O que quer que fizessem, teriam de fazer depressa. A qualquer momento, Nef daria o alarme

— As tochas — cochichou ele no ouvido de Renn. — Não consigo ver mais do que três. Se conseguirmos apagá-las, então....

Renn não se mexeu. Parecia não conseguir tirar os olhos dos Devoradores de Almas.

— Renn! — Ele sacudiu seu ombro. — As tochas! Precisamos fazer algo!

Ela arrastou o olhar para longe

— Tome — sussurrou ela. — Pegue a minha faca. Eu ficarei com A minha machadinha

Ele concordou com a cabeça — A toca da doninha. Onde é que fica? — Ali, atrás daquele rebento esverdeado Há uma

grande fenda, você terá que subir por ela.... — Está bem Nós temos de ser capazes de alcançá-

la quando chegar a hora De repente, ele se ajoelhou e apertou o rosto contra

o focinho de Lobo Este deu uma leve sacudida com o ra-bo e lambeu a orelha dele.

— Ele encontrará a outra saída — disse Torak a meia-voz, ao se endireitar — Tem uma melhor chance do que a gente.

— E antes disso? — perguntou Renn — Como vamos detê-los? Torak encarou os rodopiantes, sibilantes Devoradores de Almas.

— Veja se consegue apagar as tochas enquanto eu os mantenho falando..

— Enquanto você o quê? Antes que ela pudesse detê-lo, ele se pôs de pé e sa-

iu para a luz. Com espantosa rapidez, o lince e o urso-branco giraram c olharam para ele com inexpressivos o-lhos feitos de tripa.

— O nono caçador chegou — anunciou o Mago Carvalho numa voz tão grave quanto a de um urso.

— Mas suas mãos estão vazias — ciciou a Maga Víbora. — Era para ele trazer a águia, o carcaju, a lontra, a raposa.

As garras da Maga Bufo-real pressionaram em volta da cabeça da maça.

— Por que essa falha?

Torak abriu a boca para falar, mas não saiu qual-quer som. O que Renn estava fazendo? Por que as tochas continuavam queimando?

Desesperadamente, ele buscou algum meio de pe-gar a opala de fogo e evitar que eles abrissem a Porta — de conseguir o impossível.

Um grito ecoou pela caverna — e Nef apareceu bamboleando.

— O lobo sumiu! — berrou ela. — Foi o menino, eu sei que foi! Ele soltou o lobo! Soltou todos eles!

Três cabeças mascaradas viraram-se na direção de Torak.

— Soltou? — disse a Maga Víbora com assustadora delicadeza. Torak recuou.

A Maga Morcego bloqueou seu caminho. O Mago Carvalho limpou a espuma negra dos lábios pintados e disse:

— “O Lobo vive.” Foi essa a mensagem de nosso irmão do outro lado do Mar. Nós nos perguntamos o que ela significava.

— Então surgiu um menino — disse a Maga Víbo-ra. — Um menino que usava tatuagens dos Raposas-brancas, mas não parecia um deles. Senti almas no ar em volta de mim. Perguntei-me o que significava isso.

A mão de Torak apertou a faca. Mas as tochas ain-da queimavam e os Devoradores de Almas ainda o manti-nham cercado.

— Quem é você? — indagou o Mago Carvalho. — O que é você? — questionou a Maga Víbora.

TRINTA

Alto Sem-rabo ficou cercado. Corajosamente, ele os

enfrentou, segurando a grande garra, mas, contra três sem-rabos bem crescidos, ele não tinha chance alguma

Lobo baixou a cabeça e rastejou adiante. Os malva-dos não o ouviram. Não sabiam que ele estava ali

Girando um ouvido, escutou os passos furtivos da fêmea a pouca distância de um ataque Um chiado e aquela parte do Covil ficou escura, ótimo Ela o estava ajudando. Lobo conseguia enxergar no escuro, mas os malvados não

Alto Sem-rabo disse algo desafiador na fala dos sem-rabos c o pêlo-desbotado que fedia a urso soltou uma gargalhada cruel. Então outra parte do Covil ficou escura E mais outra

De repente, Pele-fedorenta e Pêlo-desbotado pula-ram para cima de Alto Sem-rabo. Ele não se desviou rapi-damente o suficiente — isso não importava —, Lobo era mais veloz do que qualquer um deles Com um rosnado, saltou sobre Pêlo-desbotado, derrubando-o no chão, e enfiou seus dentes na pata dianteira dele. Pele-desbotada

rugiu. Ossos foram triturados. Lobo saltou para longe, engolindo a carne sangrenta.

Ao correr, suas garras escorregaram na pedra e ele quase caiu, bamboleando enquanto se endireitava, pois seu recém-cortado rabo não lhe dava tanto equilíbrio quanto antes. Precisava tomar cuidado, pensou, enquanto corria pelo escuro para ajudar seu pobre e cego irmão de alcatéia, que ainda tentava se livrar de Pele-fedorenta.

Não muito longe, a irmã de alcatéia segurava na pa-ta um galho brilhante, estreitando os olhos como fazem os sem-rabos quando não conseguem enxergar.

Enquanto isso, a Língua de Víbora não ficara para-da. Encontrara seu caminho por entre as árvores silencio-sas e passara pela tal Cara-de-pedra na entrada do Covil, onde ela raspava uma garra na pedra, silvando e ganindo de um modo que fez o pêlo de Lobo se arrepiar de medo. Ele ouviu a algazarra dos demônios. Ele não sabia o que ela pretendia fazer, mas sabia que precisava detê-la.

No entanto... Alto Sem-rabo precisava dele! Em sua cegueira, ele estava cambaleando na direção de Pele-fedorenta!

Lobo hesitou. Decidiu de um estalo... e saltou para ajudar o seu

irmão de alcatéia, chocando-se com seu corpo para tirá-lo do caminho da malvada. Alto Sem-rabo escorregou, endi-reitou-se e agarrou o cangote de seu irmão de alcatéia. Lobo conduziu-o através das árvores para um lugar segu-ro.

Mas era tarde demais para deter Língua de Víbora. Seus ganidos cresceram até chegar a gritos de arrepiar o couro, ao mesmo tempo que abria bem as patas dianteiras — e, de repente, na rocha, uma enorme boca se escanca-

rou. Cara-de-pedra deu um uivado triunfante que perfu-

rou os ouvidos de Lobo como um osso lascado. Então ela levantou bem alto a pata dianteira. O Covil se encheu com o duro clarão cinzento do Brilhante Bicho-que-morde-frio — e os demônios saíram aos borbotões.

Alto Sem-rabo largou o cangote de Lobo e caiu de joelhos. A irmã de alcatéia largou o galho brilhante e co-briu as orelhas com as patas. Lobo recuou tremendo para junto de Alto Sem-rabo enquanto o terror dos demônios agitava seu pêlo.

Ele sabia que tinha de atacá-los — era o que pre-tendia fazer —, mas havia tantos! Escorregando, arreme-tendo-se, precipitando-se por cima uns dos outros em sua fome pela fria luz cinzenta. Lobo viu suas presas gotejan-tes e seus cruéis olhos brilhantes. Havia tantos... Mas, de repente, ele farejou raiva.

A fêmea sem-rabo sacudira fora o seu medo e ros-nava com raiva!

Perplexo, Lobo observou-a apanhar o galho que a-inda brilhava e jogá-lo contra Língua de Víbora. Ele a a-tingiu em cheio nas costas — quando atirava alguma coi-sa, a fêmea raramente errava — e Língua de Víbora uivou furiosa. Suas patas dianteiras afastaram-se da pedra e a Rocha escancarada fechou-se com um estrondo.

Mesmo em tão pouco tempo, porém, os demônios tinham vazado dela e, agora, a floresta de pedra estava repleta deles: enxameando em volta do Brilhante Bicho-que-morde-frio. E Cara-de-pedra o levantava bem alto, forçando-os a fazerem o que ela queria. E Lobo sentiu que nem Alto Sem-rabo, nem a fêmea, nem ele mesmo ousavam atacá-la, pois sabiam que ela era a própria mal-

dade de todas as maldades. Ele estava errado. O ataque da irmã de alcatéia havia estimulado Alto

Sem-rabo e agora ele latiu para ela e ela virou-se e jogou-lhe sua grande garra: a tal com a qual morderam parte do rabo de Lobo.

Alto Sem-rabo agarrou-a com uma das patas, então correu na direção de Cara-de-pedra — na direção dos demônios!

O terror deteve as patas de Lobo, mas ele amava demais o seu irmão de alcatéia para abandoná-lo agora. Juntos, atravessaram a névoa do medo. Então Alto Sem-rabo recuou sua pata dianteira e lançou a grande garra — não contra Cara-de-pedra, não contra os demônios, mas contra um fino rebento de pedra que se elevava em cima.

Que Alto Sem-rabo esperto! O tronco estalou — balançou — e desabou. Os demônios gritaram bem alto e escorregaram para longe, como formigas dos cascos de um auroque, e Cara-de-pedra foi derrubada e o Brilhante Bicho voou de sua pata dianteira e deslizou estrepitosa-mente pelo chão — e sua luz fria foi engolida pelo Escu-ro.

Ao mesmo tempo, os demônios uivaram. Estavam livres! Agora se espalhavam pelo Covil como um grande Molhado Ligeiro, e Lobo se escondeu com Alto Sem-rabo numa moita de pedra, o coração rebentando com terror e desespero enquanto os demônios passavam velozes por ele.

Já podia sentir os sem-rabos malvados brigando en-tre si, culpando uns aos outros pela perda do Brilhante Bicho-que-morde-frio. Apenas Lobo viu a irmã de alcatéia topar com ele, apanhá-lo e escondê-lo no pedaço de pele

de cisne que pendia de seu pescoço. Então ela agarrou Alto Sem-rabo pela pata dianteira

e o arrastou, sob o fraco brilho do galho, em direção a um Covil menor, mais ao alto, ao lado do Covil principal; um Covil estreito como um túnel de doninha, através do qual escorria o límpido e frio cheiro do Alto.

Com uma pontada. Lobo se deu conta do que eles pretendiam fazer. Eles pretendiam seguir por um caminho que ele não podia tomar. Seu rabo baixou quando os viu descascarem suas sobrepeles e se prepararem para ir.

Alto Sem-rabo ajoelhou-se. Vá!, disse a Lobo. En-contre a outra saída! Encontre a gente no Alto! E Lobo sacudiu o rabo para tranqüilizá-lo, pois sentiu seu irmão de alcatéia preocupado, sua relutância em deixá-lo.

Então eles sumiram e Lobo girou uma pata e cor-reu do Covil, seguindo o límpido e frio cheiro do Alto.

Torak estava perdido num interminável túnel de rastejar e ofegar e mais rastejar. Aquele terrível, terrível buraco. Como Renn conseguira, não uma, mas três vezes?

Era noite quando eles caíram exaustos sobre a ne-ve. Uma noite ventosa no escuro da lua, com apenas o brilho das estrelas na neve para iluminar o caminho — e nenhum sinal de Lobo.

Pelo menos, ainda não, disse Torak a si mesmo. Mas ele conseguirá. Se existe alguém que consegue, esse é Lobo.

Após o calor das cavernas, o frio era impiedoso e os dentes deles batiam demais para poderem falar, en-quanto pelejavam para desatar suas trouxas de roupas e vesti-las apressadamente.

— A opala de fogo — ofegou finalmente Torak. — Eu a vi cair... bater na rocha. Isso significa que os demô-

nios estão livres! Renn concordou de leve com a cabeça. Sob a luz

das estrelas, seu rosto estava pálido e os cabelos negros faziam-na parecer uma outra pessoa.

— Você viu onde ela caiu? — perguntou Torak. — Algum deles apanhou?

Ela abriu a boca... então negou com a cabeça. — Vamos — murmurou —, precisamos chegar ao

caiaque antes que eles saiam! Ele não sabia se ela se referia aos Devoradores de

Almas ou aos demônios. Não perguntou. Andando com dificuldade pela neve, seguiram ca-

minho contornando o espigão. O Olho da Víbora estava fechado, mas quando o alcançaram, Torak vislumbrou uma pequena, pálida figura deslizar para fora de uma bre-cha e se afastar correndo. Seu coração disparou. A raposa branca encontrara a saída!

Virou-se para Renn e viu que ela sorria. Pelo menos alguém havia escapado.

Enquanto observavam, viram a sombra veloz do carcaju — que, pela primeira vez, estava mais interessado em fugir do que morder qualquer um. Em seguida, emer-giu a águia: desajeitadamente sobre a neve, até abrir as asas e se elevar no céu.

— Vá em segurança, minha amiga — desejou Renn baixinho. — Que seu guardião voe com você!

Então veio a lontra: parou um momento para ar-remessar um olhar penetrante para Torak, antes de dispa-rar montanha abaixo. E finalmente — quando Torak tor-nava-se nervoso de aflição — Lobo.

Ele pelejou para se espremer pelo buraco, mas, as-sim que saiu, simplesmente sacudiu-se e desceu saltitando

em direção a eles, a língua pendendo, tão despreocupada-mente como se fugisse de demônios das cavernas todas as noites de sua vida.

Ao chegar perto de Torak, ergueu-se ligeiramente sobre as patas traseiras, colocou as dianteiras nos ombros de Torak e cobriu o rosto dele com molhados beijos de lobo.

Alheio a Devoradores de Almas — alheio a demô-nios —, Torak fungou-o e lambeu-o de volta. Então, jun-tos, desceram até os trenós e Lobo ficou correndo em cír-culos, enquanto eles rapidamente apanhavam suas coisas.

Desceram correndo a montanha, com Lobo paran-do para que eles o alcançassem. Na entrada da baía gelada, ele ajudou-os a encontrarem o caiaque enterrado sob uma camada recente de neve.

Quando, porém, o caiaque foi colocado na água e rapidamente carregado com o material deles, e após Renn e Torak terem tomado seus lugares. Lobo recusou-se a pular para dentro dele.

— Não consegue forçá-lo? — gritou Renn. Condoído, Torak segurou as duas orelhas de Lobo

e o teimoso abriu as pernas. — Não — disse ele. Soltou um suspiro. — Ele de-

testa caiaques. E melhor que siga por terra. Nunca o pega-rão.

— Tem certeza? — perguntou Renn. — Não! — vociferou Torak. — Mas é o que ele

pretende fazer! – Claro que ele não tem certeza. Mesmo na Floresta,

a vida de um lobo solitário é curta... mas aqui, no gelo? Não houve nem tempo de dizer adeus. Enquanto

Lobo permanecia parado, olhando abaixo para ele, os o-

lhos dos dois se encontraram brevemente; mas, antes que Torak conseguisse falar, Lobo já havia se virado de costas e saído apressado, uma listra prateada correndo sobre a neve.

O sol estava justamente coroando a montanha quando manobraram o barco e seguiram para o sul, sul-cando a água com seus remos. Felizmente, o vento estava por trás deles e, portanto, tomaram velocidade.

Quando se encontravam fora do alcance de uma flechada, Torak virou.

— Olhe — chamou Renn. A encosta da montanha até então estava escura,

mas, perfeitamente contra a neve cinzenta, Torak viu uma sombra mais escura ainda despejando-se ladeira abaixo.

— Demônios — disse ele. Renn encarou-o e a tristeza que havia em seus o-

lhos era mais negra do que o Mar. — Fracassamos — anunciou. — Os demônios es-

tão à solta no mundo.

TRINTA E UM

Bem distante, na extremidade mais norte da Flores-

ta, o sol ergueu-se sobre as Montanhas Altas. Em volta do acampamento Corvo, pés de vidoeiro agitaram-se inquie-tos como se sonhassem.

— Demônios — declarou Saeunn, acocorando-se sobre uma esteira de salgueiro para ler as brasas. — Vejo demônios vindo do Distante Norte. Uma maré negra, a-fogando tudo que se encontra em seu caminho.

Apenas Fin-Kedinn a escutou. A caça fora boa e o resto do clã dormia, as barrigas cheias de veado-vermelho assado e papa de sorva; mas o Líder Corvo e sua Maga haviam ficado a noite toda sentados na entrada de seu a-brigo, enquanto as estrelas esmoreciam e o céu se tornava cinzento, e em volta deles a Floresta dormia no silente esplendor de uma intensa nevada.

— E não pode haver dúvida? — indagou Fin-Kedinn. — É obra dos Devoradores de Almas?

Enquanto a Maga Corvo olhava as brasas, as veias de sua cabeça calva palpitavam como minúsculas cobras.

— O espírito do fogo nunca mente. Uma brasa estalou. Neve caía continuamente do pé

de abeto vermelho acima deles. Fin-Kedinn olhou para cima — e ficou completamente quieto.

— Nós viemos para muito longe ao norte — co-mentou Saeunn. — Se ficarmos aqui, não haverá nada en-tre nós e os demônios!

— E Renn e Torak? — lembrou Fin-Kedinn, os olhos fixos no abeto.

— E o clã? — rebateu Saeunn. — Fin-Kedinn, de-vemos ir para o sul! Precisamos seguir para a Água Exten-sa, procurar refúgio na Pedra do Guardião! Lá, eu poderei elaborar encantos para nos proteger, colocar linhas de proteção em volta do acampamento.

Como Fin-Kedinn não respondeu, ela disse: — Você tem que dar um basta no que anda plane-

jando. O Líder Corvo levou de volta seu olhar para a Ma-

ga. — E o que eu ando planejando? — indagou ele

numa voz tranqüila que faria qualquer outro membro do clã empalidecer.

Saeunn era destemida. — Não pode nos levar ao Distante Norte.

— Ora, eu não levaria você, Maga. Providenciaria para que ficasse aqui, na Floresta...

— Não estou pensando em mim, mas no clã, como você bem sabe!

— Eu também. — Mas... — Chega! — Com um gesto cortante com a palma,

ele interrompeu a conversa. — Quando eu lhe disser co-

mo fazer Magia, você poderá me dizer como comandar! Novamente, ele ergueu a cabeça e, dessa vez, não

falou com Saeunn, mas com a criatura que o olhava de cima para baixo do pé de abeto: o bufo-real com as ore-lhas emplumadas e o feroz olhar laranja, que permanecia observando. Olhando.

— Não levarei o clã para fora da Floresta — disse Fin-Kedinn sem baixar a vista. — Juro pelas minhas al-mas.

O bufo-real abriu suas enormes asas e deslizou para o norte.

TRINTA E DOIS

Torak e Renn seguiam a uma boa velocidade e, por

algum tempo, o alívio por terem escapado das cavernas animou seus espíritos. Foi bom sair para a luminosidade do gelo e do Mar e do céu; ouvir os breves uivos tranqüi-lizadores de Lobo vindos do leste — Eu estou aqui! Eu estou aqui! — e uivar de volta em resposta.

— Eles nunca nos pegarão agora! — berrou Renn. Ela contou a Torak que cortara os caiaques dos

Devoradores de Almas e ele riu. Lobo estava livre e eles seguiam de volta para a Floresta. Devoradores de Almas e demônios pareciam estar bem distantes.

Então, de repente, o dia mudou. Nuvens rígidas es-cureceram o céu. Neblina emergiu sorrateiramente do Mar. A cabeça de Torak doía de fadiga. O remo pesava em suas mãos.

— Precisamos descansar — sugeriu Renn. — Se não descansarmos, vamos emborcar ou bater numa mon-tanha de gelo.

Ele concordou com a cabeça, exausto demais para

falar. Foi necessária toda a força deles para tirar o caiaque

da água e arrastá-lo através do rio de gelo até o abrigo de uma colina de gelo; colocá-lo sobre galhos de margem e colocar neve comprimida sobre ele como um abrigo im-provisado.

Enquanto trabalhava, Torak lembrou-se da súbita imobilidade que dominara a Maga Víbora. “O que é vo-cê?”, perguntara. Ela sentira as almas dele no túnel das oferendas, quando estas retornavam ao seu corpo; talvez ela tivesse adivinhado que ele era um espírito errante. De bem longe, veio o sonoro “u-hu, u-hu” de um bufo-real. Renn fez uma pausa, as mitenes repletas de neve. Seu ros-to estava tenso.

— Eles estão atrás de nós. — Eu sei — disse Torak. “U-hu, u-hu”. Ele vasculhou o céu, mas viu apenas névoa. Renn já

havia entrado no abrigo e ele estava sozinho no gelo. Os sons chegavam a ele de um modo anormalmente alto: o gemido do vento, o estrondo distante do desabamento de gelo. Sua cabeça doía, seus olhos ardiam. Até mesmo o abrigo e a colina de gelo estavam estranhamente embaça-dos.

Com o canto do olho, captou movimento. Virou-se. Algo pequeno e escuro, indo rapidamente de aresta

a aresta. Sua boca ficou seca. Um demônio? Desejou que Lobo estivesse ali. Mas não ouvira um

uivo desde o meio da tarde. Desembainhando a faca de seu pai, ele foi investi-

gar. Nada atrás da colina de gelo. Mas ele tinha visto. Embainhou a faca e rastejou para o abrigo. Renn já

estava aconchegada em seu saco de dormir. Ele não lhe contou o que vira.

Estavam exaustos demais para socar gordura para a lamparina ou para forçar goela abaixo mais do que alguns pedaços de carne de foca congelada. Renn pegou no sono instantaneamente, mas Torak ficou acordado, pensando naquela forma escura indo rapidamente de aresta a aresta.

Os demônios estavam lá fora. Podia senti-los en-fraquecendo seus espíritos, extinguindo coragem e espe-rança.

E a culpa é sua, pensou. Você fracassou e, agora, eles estão à solta. Foi tudo por nada.

Acordou sentindo o corpo duro e dolorido. Os o-lhos pareciam como se alguém tivesse esfregado areia ne-les. Não conseguia pensar em um só motivo para se levan-tar. Os demônios estavam à solta. Não adiantava reagir.

Lá fora, Renn andava pela neve. Por que ela tinha de fazer tanto ruído? Com certeza sabia que cada triturar de suas botas cravava mais um pingente de gelo em sua cabeça.

Para protelar sua ida lá fora, ele verificou o que res-tou de seus apetrechos. Na pressa de ir embora, deixara para trás sua machadinha e seu arco, mas a pele de água continuava em volta do pescoço, as algibeiras de iscas de fazer fogo e de remédios, em seu cinto, e a faca de Pa se-gura em sua bainha.

O cabo parecia curiosamente quente. Talvez isso fosse um presságio. Talvez devesse perguntar a Renn. Mas isso só lhe daria uma chance para se vangloriar sobre o

quanto ela sabia mais do que ele. O pensamento encheu-o com uma raiva irracional.

Quando não conseguiu mais colocá-la de lado, ras-tejou para fora.

Da noite para o dia, o bafo do Espírito do Mundo engolira o mundo. O gelo — o Mar — ele carregara tudo. O vento se fora. Sem ele, o frio não era tão perfurante,— mas o estrondo de gelo se rompendo estava próximo.

Era só o que nos faltava, pensou Torak. O derreti-mento está chegando.

— Você está com uma aparência terrível — dispa-rou Renn. — Seus olhos... você devia ter usado o seu vi-sor de neve.

— Eu sei — rosnou Torak. — E por que não usou? A voz dela era tão dissonante. Ela vivia lhe dizendo

o que fazer. E ela, é claro, usara seu visor o dia todo, por-que ela nunca esquecia nada.

Num silêncio irritante, eles demoliram o acampa-mento e carregaram o caiaque para a beira do gelo; então voltaram para apanhar suas coisas.

— Ainda bem que pensei em cortar os caiaques de-les —vangloriou-se Renn — ou, a esta altura, eles já teri-am nos alcançado.

— Barcos podem ser consertados — disse Torak desagradavelmente. — Você não os retardou por muito tempo.

Ela colocou as mãos nos quadris. — Suponho que você acha que eu deveria ter feito

um trabalho melhor. Pois não tive tempo, eu precisava salvar você!

— Você não me salvou! — vociferou Torak.

Ela bufou. Para lhe dar motivos para bufar, ele lhe contou por

que os Devoradores de Almas estavam vindo atrás deles: sobre agir como espírito errante e sobre Seshru sentindo suas almas.

Ela ficou boquiaberta. — Você andou agindo como espírito errante? E não

me contou? — E daí? Estou contando agora. Ela ficou em si-

lêncio. — De qualquer modo, você está enganado — afir-

mou ela. — Eles não estão nos seguindo por causa disso. — Ah, não? Por que tem tanta certeza? — É por causa da opala de fogo. Eu a peguei. É

por isso que estão atrás da gente. — Por que não me contou? — berrou Torak. — Estou contando agora. Não houve tempo antes. — Houve tempo bastante — gritou ele. — Não grite comigo! — gritou Renn. Ele sacudiu a

cabeça. — Então não são apenas os Devoradores de Almas

que estão atrás de nós, são os demônios também! — Eu disfarcei a pedra — disse ela defensivamen-

te. — Eu tinha ervas e coloquei-a em uma algibeira de pé de cisne que Tanugeak me deu.

Ele abriu os braços. — Ah, isso resolve tudo! Como você pôde ser tão

tola? — Como você pôde? Foi você quem andou bancan-

do o espírito errante! A voz dela ressoou pelo gelo. O silêncio que se se-

guiu foi mais alto. Eles ficaram se entreolhando, o peito

arfando. Torak passou a mão pelo rosto, como se tivesse a-

cabado de acordar. — O que estamos fazendo? — disse ele. Renn sacudiu a cabeça para clareá-la. — São os demônios. Eles estão fazendo a gente

brigar. — Ela hesitou. — Acho que podem farejar a opala de fogo. Ou... senti-la.

Ele concordou com a cabeça. — Deve ser isso. — Não, não, falo sério, eu sei que eles podem. —

Prendeu o lábio inferior nos dentes. — Ouvi ruídos à noi-te.

— Que tipo de ruídos? Ela tremeu. — Fiquei acordada para fazer vigília. Então ouvi

Lobo. Ele uivava, do jeito como faz antes de ir caçar. De-pois disso, os ruídos sumiram.

Ele deu alguns passos, depois voltou para perto de-la.

— Precisamos nos livrar da pedra. — Como? Teríamos de enterrá-la em terra ou pe-

dra... e não há nada disso aqui, só gelo! Os dois se encararam, desanimados. Renn abriu a boca para falar... ... e um estrondo ensurdecedor rompeu o ar e, ao

mesmo tempo, fina linha negra ziguezagueou pelo gelo à distância de uma mão de suas botas.

Ela olhou para seus pés. O gelo ergueu-se subitamente e ela cambaleou para

trás. A linha negra era agora um canal de água da largura da pá de um remo.

— Uma rachadura de maré — observou Torak, a-tônito.

O tempo pareceu ficar mais lento. Ele percebeu que estava sobre o gelo firme — o lado que continha o barco e suas provisões —, ao passo que Renn estava do outro lado: o lado que se quebrava.

— Pule — falou para ela. A massa de gelo flutuante oscilou. Ela firmou as

pernas para evitar uma queda. — Pule! — gritou. O rosto de Renn estava lívido por causa do choque. — Não posso. E tarde demais. Ela tinha razão. A brecha já tinha mais de dois pas-

sos de largura. — Vou pegar o barco — disse ele. Correu pelo ge-

lo em direção ao caiaque — tropeçou — cambaleante, colocou-se novamente de pé. Por que ele não conseguia enxergar direito? Por que tudo demorava tanto?

Estava quase para alcançar o barco, quando este sa-cudiu — balançou — e escorregou graciosamente para fora do gelo, para o Mar. Com um grito, ele arremeteu em sua direção — mas as ondas o sugaram, deixando-o fora de alcance. Ele uivou de raiva — e Mãe Mar salpicou água salgada em seus olhos, rindo dele.

TRINTA E TRÊS

O gelo deu outro solavanco, fazendo com que o ju-

ízo de Torak retomasse. Teria de se afastar da beirada ou seria o próximo.

A névoa era tão densa que ele mal conseguia enxer-gar ou seus olhos estariam piorando? Mesmo aquela luz fraca parecia agulhas quentes perfurando seu crânio

Em meio a um borrão, procurou o restante de seu equipamento. Além do que estava com ele, havia uma faca de neve, os sacos de dormir e nenhuma comida Ele pen-sou ter-se lembrado de ver Renn guardar uma bolsa de comida no caiaque e torceu para que estivesse errado, tor-ceu para que ela a tivesse levado. .

Os sacos de dormir? Ele estava com os dois? Oh, Renn. Pelo menos, ela estava com seu arco, mas .. Deteve-se. Ela estava com a opala de fogo. Os de-

mônios iriam atrás dela. — Torak! — A voz de Renn era amortecida pela

névoa.

Ele se levantou — e ficou horrorizado ao ver o quanto ela havia flutuado para longe.

— Torak! Ele correu para a beirada do gelo, mas estava impo-

tente, só pôde ver o Mar carregá-la para longe e o bafo do Espírito do Mundo se fechar em volta dela

Então nada mais restou a não ser o silencio. Ao se recordar agora de como tinha gritado com

ela, ele ardeu de vergonha. Levar a opala de fogo fora a coisa mais corajosa que Renn poderia ter feito. Então ela ficara acordada a noite toda, de vigília.

— E tudo o que eu pude fazer foi gritar — disse ele, desgostoso. A névoa rodopiou diante de seus olhos, dissolvendo-se em uma calcinante mancha vermelha. A mancha vermelha não se desfez. Ele não conseguia enxer-gar.

— Cegueira pela luz refletida da neve — disse ele bem alto... e a névoa estendeu dedos gelados para sua gar-ganta. Ele nunca se sentiu tão vulnerável.

Torak fez a única coisa que podia. Colocou as mãos nos lábios e uivou.

Lobo não veio. Nem enviou um uivo em resposta. O que devia significar que ele se encontrava fora do alcan-ce da audição — e conhecendo a audição de Lobo, isso era realmente muito distante.

Novamente Torak uivou. E outra vez. Silêncio. Nada de vento. Apenas o insidioso lamber

do Mar e a horrível, expectante calma. Imaginou figuras escuras saltando de aresta a aresta. Sentiu que não estava sozinho.

— Vão embora daqui — sussurrou para os demô-nios. Pensou ter ouvido uma gargalhada.

— Vão embora! — gritou, agitando os braços. Mais gargalhadas.

Com um soluço, caiu de joelhos. Lágrimas formiga-ram seus olhos. Furiosamente tentou afugentá-los.

Se Renn estivesse aqui, teria apanhado sua algibeira de remédios.

Aquilo acendeu uma minúscula centelha de cora-gem. Tirando as mitenes, tateou atrás de sua própria algi-beira, localizou algumas folhas de sabugueiro pelo cheiro e as mastigou. Elas formigaram terrivelmente quando ele as pressionou contra os olhos, mas disse a si mesmo que a-quilo estava lhe fazendo bem.

Então teve outra idéia. Encontrou o chifre de re-

médios de sua mãe e sacudiu na palma um pouco de san-gue da terra em pó.

Subitamente o ar à sua volta estalou de tensão. Tal-vez os demônios não gostassem de sangue da terra.

Misturando o pó branco com saliva e formando uma pasta, ele desenhou na testa o que achou ser a marca da mão — lembrando-se tarde demais que, antes disso, deveria ter esfregado a testa para limpar o sangue da coru-ja. Não sabia se isso faria com que não funcionasse. Só sabia que se faz a marca da mão para se proteger e ele precisava de toda a proteção possível.

Pelejou para ficar de pé e, dessa vez, ouviu um chi-ado e o arranhar de garras. Talvez eles estivessem enco-lhendo de volta diante da marca de poder.

— Vão embora daqui — disse ele, trêmulo. — A-inda não estou morto. Nem Renn.

Silêncio. Ele não sabia se estavam ouvindo ou zombando. De quatro, encontrou os sacos de dormir e

prendeu-os às costas;então enfiou a faca de neve no cinto. Forçou-se a pensar. O derretimento estava chegando, por-tanto ele teria de ir mais para o interior. Depois seguir em frente e procurar Renn.

No dia anterior, a corrente e o vento os tinham le-vado para o sul. O gelo flutuante também levara Renn para o sul.

— Direção sul — falou alto. E podia ser que o gelo flutuante tivesse ficado preso em gelo firme e ela tivesse encontrado o caminho para terra firme.

Mas onde era o sul? Deu alguns passos, mas continuava cambaleando.

O gelo era irregular, com todas aquelas arestas... Arestas. O vento sopra a neve, criando as arestas.

E sopra principalmente do norte! — Obrigado! — gritou. Agradeceu também a Inuk-

tiluk, por tê-lo aconselhado a fazer uma oferenda. O vento deve ter gostado daquelas presas de javali ou não o estaria ajudando agora.

Apalpando com as mitenes, ele sentiu a forma das arestas. Então aprumou-se e ergueu os ombros.

— Não estou morto ainda — falou para os demô-nios. — Não estou morto ainda! — gritou.

Partiu para o sul. Era um avanço agonizantemente lento. Às vezes ele

ouvia um triturar chocalhante e o gelo do mar pinoteava sob seus pés. Ele sondava o caminho com a faca de neve. Mas, se atingisse uma área de gelo fino, talvez fosse tarde demais.

O que dissera Inuktiluk? Gelo cinzento é gelo novo, mui-to perigoso... Mantenha-se no gelo branco. Isso não adiantava muito, visto que ele não conseguia enxergar; visto que seu

passo seguinte talvez o levasse para o gelo fino ou para o interior de uma rachadura de maré.

Continuava pelejando. O frio minou sua força e ele começou a se sentir fraco com fome. Não fazia idéia de como iria conseguir comida, se não tinha arpão, arco, vi-são.

Após algum tempo, ouviu aproximar-se o som de asas. O céu era um borrão rosado, ele não conseguiu nem mesmo distinguir um borrão mais escuro voando em sua direção.

Corujas voam silenciosamente, portanto não podia ser o bufo-real, e aquelas batidas de asas tinham um ritmo forte e constante que ele reconhecia.

“Vush, vush, vush.” O corvo voou baixo para ins-pecioná-lo. Então, com um curto e sonoro crocitar, voou para longe.

A barriga dele contraiu-se. Aquele crocitar soara abafado, como se o corvo tivesse comida no bico. Talvez ele tivesse encontrado uma carcaça e voava para esconder seu alimento. Talvez voltasse para apanhar mais.

Não demorou muito, ele o ouviu retomar. Concen-trou-se para escutar. Correu na direção dele.

Justamente quando perdia as esperanças, ouviu o latido de uma raposa branca e os sonoros crocitos de cor-vos em um local de abate. Came! Pela algazarra, devia ha-ver uma porção deles, portanto devia ser uma grande car-caça. Talvez uma foca.

Seu pé bateu em algo duro e ele caiu. Os corvos ir-romperam para o céu em meio a um feroz estrépito de asas e a raposa branca soltou curtos latidos que pareceram suspeitosamente como risadas.

Torak procurou às apalpadelas o que o fizera tro-

peçar. Não era uma aresta formada pelo vento, mas um lisa elevação de gelo, duas vezes o tamanho de sua cabeça. Intrigado, encontrou outra, um pouco mais adiante. Então mais delas, em uma linha curva dupla.

Seu coração começou a bater mais forte. Não eram elevações de gelo. Eram pegadas. Pegadas de um urso-branco. Inuktiluk lhe contara como o peso dos ursos comprimia a neve com força, depois o vento soprava a neve que havia em volta, deixando o relevo de perfeitas impressões de patas.

Em sua mente, Torak viu a foca aquecendo-se ao sol ao lado de seu buraco de respiração, alheia ao urso que espreitava na direção do vento. Silenciosamente o urso se aproxima sorrateiro, escondendo-se atrás de cada aresta e elevação de gelo. Ele é paciente. Sabe esperar. Finalmente a foca mergulha num cochilo. O urso concentra-se para o ataque silencioso... A foca está morta antes de perceber o que a atacou.

Na carcaça, os corvos retomaram ruidosamente o seu banquete, tendo aparentemente decidido que Torak não representava qualquer ameaça.

Eles não estariam se alimentando se o urso ainda estivesse por perto — estariam? Torak estava desesperado para acreditar nisso. E, pelo som, havia muitos corvos, como também a raposa,— o que significava que o urso deixara bastante carne. Inuktiluk dissera que, quando a caça era boa, ursos-brancos levavam apenas a gordura e deixavam o resto.

Mas e se ele ficasse novamente com fome? E se ele o estivesse espreitando naquele exato momento?De repente, os corvos irromperam céu acima. Algo os amedrontara.

A respiração de Torak martelava no peito. Enfiou a

mão na parca e retirou a faca de seu pai. Imaginou o grande urso caçando-o: colocando as

enormes patas peludas silenciosamente sobre o gelo. Ele se pôs de pé. O silêncio era ensurdecedor. Pre-

parou-se e esperou que a Morte Branca viesse em sua di-reção.

Lobo derrubou-o de costas na neve e cobriu seu rosto com lambidas-fungadas.

Lobo adorava surpreender seu irmão de alcatéia. Não importava a freqüência com que o fazia, Alto Sem-rabo nunca sabia que ele estava vindo e Lobo nunca se cansava daquilo: o espreitar — o ataque — o tombo de costas.

Agora, num êxtase de brincar-morder e açoitar-rabo — com sua cauda recém-encurtada, com a qual se acostumava rapidamente — ele trepou em seu irmão de alcatéia. Estava tão feliz que seria capaz de uivar! Todos os pensamentos em demônios e sem-rabos malvados e lobos estranhos foram afugentados. Após ficar amassado e preso por tanto tempo, estava livre para se esticar e sal-tar e trotar! Para sentir o Frio Macio Brilhante sob suas patas e o vento frio em sua pelagem! E brincar com o seu irmão de alcatéia!

Como sempre costumava acontecer quando Lobo o emboscava, Alto Sem-rabo ficava igualmente zangado e alegre. Mas Lobo sentiu que, dessa vez, ele também estava sofrendo.

Cadê a irmã de alcatéia? Ela estava com Alto Sem-rabo quando partiram na pele flutuante. Será que ela se perdeu no Grande Molhado?

E Alto Sem-rabo estava estranhamente desajeitado. Após sua primeira saudação alegre, ele fez uma investida

sem jeito para o focinho de Lobo, errou e tentou lamber a sua orelha. O que era estranho. Agora sua pata dianteira avançou e golpeou com força o seu focinho. Lobo ficou assustado. Ele não fizera nada de errado.

Baixando com as patas dianteiras, ele pediu a Alto Sem-rabo para brincar.

Alto Sem-rabo o ignorou. Lobo deu um ganido magoado e lançou um olhar

interrogativo para seu irmão de alcatéia. Alto Sem-rabo arregalou os olhos — isso mesmo,

arregalou — para além de Lobo. Lobo começou a ficar preocupado. Arregalar os o-

lhos daquela maneira devia significar que Alto Sem-rabo estava extremamente descontente. Talvez Lobo tivesse feito algo errado sem saber.

Então ele teve uma idéia. Trotando até o peixe-cão abatido e afugentando os corvos, ele mordeu um pedaço de couro, correu de volta com ele, jogou-o aos pés de Alto Sem-rabo e ficou olhando-o, na expectativa. Pronto! Vamos brincar de jogar-e-pegar!

Alto Sem-rabo não fez nada. Nem mesmo pareceu saber que o couro estava ali.

Lobo chegou mais perto. Alto Sem-rabo esticou a pata dianteira e, desajeita-

damente, tocou seu focinho. Lobo examinou o adorado rosto sem pêlo. Os be-

los olhos de lobo estavam enrugados, fechados e escor-rendo molhado. Delicadamente, Lobo farejou-os. Cheira-vam errado. Deu-lhes uma lambida experimental.

Alto Sem-rabo engoliu em seco e enterrou o rosto no cangote de Lobo.

De repente, Lobo entendeu. Pobre, pobre Alto

Sem-rabo. Ele não conseguia enxergar. Para tranqüilizá-lo, Lobo esfregou-se em seu om-

bro, cobrindo sua sobrepele com confortante cheiro de Lobo. Em seguida, empurrou a cabeça por baixo da mão peluda de Alto Sem-rabo.

Sem-rabo ergueu-se instavelmente sobre as patas traseiras e Lobo esperou até ele estar pronto, depois ca-minhou adiante tão lentamente quanto um filhote recém-nascido.

Ele cuidaria de Alto Sem-rabo. Ele o guiaria até o peixe-cão abatido e esperaria pacientemente enquanto ele comia — porque ele ainda era o lobo líder e, portanto, devia comer primeiro. Então, depois que Lobo também tivesse comido, ele conduziria Alto Sem-rabo na busca pela irmã de alcatéia.

TRINTA E QUATRO

Na Floresta, a chegada da primavera é recebida

com alegria; no Distante Norte, ela é temida. Agora Renn entendia por quê. Uma montanha de gelo, saída da nebli-na, flutuou até ela — balançou e estrondeou no Mar, en-viando uma onda que sacudiu o gelo flutuante no qual ela se abrigara. Jogou-se no chão e esperou o balanço diminu-ir.

Mais adiante, duas enormes placas se chocaram: a maior triturando a menor, forçando-a para baixo. Poderia ter sido eu, pensou Renn.

Ela não fazia idéia de aonde o Mar a levava. Não conseguia ver nenhuma terra. Apenas neblina e gelo as-somando em água negra letal. O ruído do derretimento estava por toda a sua volta. O gotejamento e o gorgolejo de água derretida. O ranger e o triturar de gelo.

Seu gelo flutuante tinha cerca de vinte passos de largura e ela permanecia agachada no meio, olhando a borda que a Mãe Mar roía gradualmente. O vento gemia e, apesar do visor dos Raposas-brancas, seus olhos lacrime-

javam com o frio. À distância, mas se aproximando, ela ouviu a voz trovejante do rio de gelo.

Ficou imaginando o que faria sem um saco de dormir, quando a noite chegasse. Lembrou-se de uma his-tória que Tanugeak lhe contara de como sua avó sobrevi-vera a uma tempestade de neve. “Ela tirou as mitenes e sentou-se nelas, para evitar que o frio viesse de baixo; em seguida, enfiou os braços na parca e curvou-se à frente, pousando o queixo sobre os joelhos, para que, se adorme-cesse, não caísse.”

Renn fez como fizera a avó de Tanugeak e sentiu-se mais aquecida; — mas ela não corria perigo de adormecer. Precisava ficar de vigília, para o caso de a neblina clarear e ela poder vislumbrar a margem. Precisava se proteger dos Devoradores de Almas em caiaques. E demônios.

A fome e a sede a atormentavam, mas estava de-terminada a não tocar em suas provisões. Provisões! Um pedacinho de carne de foca congelada e uma bexiga de água pendurada por uma tira de couro em seu pescoço. Tentou não pensar na bolsa de comida que acondicionara no caiaque momentos antes de aquilo acontecer; do mes-mo modo, ela tentava não pensar no demônio.

Ele estava ali, no gelo flutuante, ela pôde senti-lo. Mas captara apenas um escuro tremeluzir, um retinir de garras.

Essa coisa teria se aproximado mais se ela não ti-vesse apagado de sua testa a “tatuagem” de Lebre da Montanha e pintado a marca da mão, lembrando-se de acrescentar as linhas do poder emanando do dedo médio. Também pensara em acrescentar Marcas da Morte; mas ainda não.

Na algibeira de pé de cisne, a opala de fogo pulsava

com fogo frio sobre seu esterno. Jogá-la no Mar seria uma saída covarde. Quem sabe o mal que aquilo poderia causar lá embaixo? E não havia terra ou pedra onde enterrá-la.

Um súbito grasnado de gansos acima. Enfiando os braços nas mangas, ela retirou o arco de seu suporte de pele de foca.

Tarde demais. Ficaram fora de alcance. — Burra! — repreendeu-se. — Você devia estar

pronta! Devia estar pronta o tempo todo! Sentou-se e esperou que aparecessem mais presas.

Observou até seus olhos arderem. Finalmente sua cabeça começou a pender.

O demônio estava tão perto que ela conseguia sen-tir o cheiro dele. Sua língua saiu vibrante para provar a respiração dela. Seu olhar penetrante a atraía para baixo em direção a uma borbulhante chama negra...

Com um grito, sacudiu o corpo e acordou. — Afaste-se de mim! — gritou. Uma revoada de gaivotas alçou vôo de uma monta-

nha de gelo próxima. Ela tateou atrás de seu arco, mas as gaivotas sumiram.

Em algum lugar atrás dela, o demônio soltou uma gargalhada cacarejante.

— Haverá mais gaivotas — disse a ele. Teria de ha-ver mais gaivotas. Nenhuma apareceu.

Sua mão rastejou até a algibeira de remédios. Den-tro, aninhado em minguante suprimento de ervas, estava o seixo no qual Torak, no verão passado, pintara sua tatua-gem de clã; ficou imaginando se ele ao menos sabia que ela o tinha guardado. E ali estava o apito de osso de tetraz para chamar Lobo. Ela desejou soprá-lo. Mas, mesmo se ouvisse, ele não conseguiria nadar para tão longe. Ela ape-

nas o colocaria em perigo. Seus pensamentos vaguearam para o outono ante-

rior, quando Torak tentara ensiná-la a uivar, para o caso de ela perder o apito. Renn não conseguira ficar séria e ele ficou zangado e foi embora; mas, quando ela tentou cha-má-lo de volta com um uivo, este pareceu tão estranho que ele chorou de tanto rir.

Agora ela tentou um uivo vacilante. Não foi alto o bastante para chamar Lobo, mas fez com que ela se sen-tisse um pouco melhor.

Se viessem mais gaivotas, ela deveria estar pronta. Verificou o emplumado de sua melhor flecha com ponta de sílex, então apanhou em sua algibeira de costura todos os pedaços de linha de tendão, juntou-os com nós e amar-rou o fio na haste da flecha. A seguir, lubrificou o arco e a corda do arco, esfregando-os com a carne de foca, resis-tindo à tentação de devorar o pedaço. Enquanto agia, ela parecia ver as mãos ásperas de Fin-Kedinn cobrindo as suas. Ele fizera aquele arco para ela e este mantivera não apenas a resistência do teixo com o qual fora feito, mas também algo da força de Fin-Kedinn. Claro que não a de-cepcionaria.

Com a flecha encaixada e pronta, ela empurrou o visor para a testa e acomodou-se para esperar.

Atrás dela, o demônio arranhava o gelo para distraí-la. Seus lábios contraíram-se. Pode tentar! Fin-Kedinn a ensinara a se concentrar. Quando caçava, nada podia dis-traí-la; como Torak quando rastreava.

À distância, ouviu os estranhos gritos relinchantes de airos. Vinham em sua direção.

Dúvidas inundaram sua mente. Eles estão longe de-mais, a linha não é comprida o suficiente. Suas mãos estão congela-

das, não conseguirá disparar direito... Ela ignorou o demônio e concentrou-se nas presas.

Elas voavam baixo, como fazem os airos, batendo o ar com suas negras asas curtas. Renn escolheu um e fi-xou o olho nele, aguardando as rajadas de vento.

A flecha voou reta e o airo estatelou-se no mar. Com um grito de triunfo, Renn içou a linha.

Seu disparo pegara apenas na cauda e a ave se deba-tia. Murmurando agradecimentos e louvores, ela enfiou a mão por baixo da asa e manteve o coração entre seus de-dos, para fazê-lo parar. Então cortou as asas e deu uma à Mãe Mar e outra ao vento, em agradecimento por eles a-inda não a terem matado. A cabeça, ela a jogou para a ex-tremidade do gelo flutuante, para seu guardião de clã, e agradeceu ao seu arco, removendo um pouco da gordura.

Finalmente, abriu a barriga, retirou o quente peito púrpura e enfiou na boca. O gosto era oleoso e esplêndi-do. A força do airo tomou-se dela.

Depenou a carcaça, guardando as penas para em-plumar flechas e amarrou-a ao cinto. O demônio havia fugido. Renn cuspiu um pedacinho do airo e sorriu. Obvi-amente, ele a preferia faminta e infeliz do que bem alimen-tada e desafiadora.

Um Corvo arremeteu para baixo, apanhou a cabeça do airo e voou para longe. Renn sentiu uma pontada de orgulho. O corvo é uma das poucas aves resistente o bas-tante para invernar no Distante Norte. Ela tinha orgulho de ser seu descendente, um membro de seu clã.

Puxando o capuz para trás, esfregou neve no cabelo para limpar os últimos vestígios da tintura negra de Tanu-geak. Era novamente ela. Renn do Clã do Corvo.

Ela tentava com tanta perseverança localizar a costa que quase a deixou passar.

Num instante, o gelo flutuante girava lentamente; no outro, houve uma batida que quase a derrubou no Mar e ele rangeu e parou.

Novamente de pé, ela viu que estivera procurando na direção errada. Seu gelo flutuante chocara-se contra uma mixórdia que formava um banco de gelo. Então a neblina se foi e o rio de gelo assomou acima dela.

O gelo flutuante estava entalado do mesmo modo que sua extremidade norte. Diante dela estendia-se uma luminosa extensão de gelo do mar e, mais além, uma faixa de sombrias colinas denteadas que se abrigavam sob os vastos rochedos azuis do rio de gelo.

Se ela conseguisse atravessar o banco de gelo, se conseguisse alcançar aquele gelo do mar...

Mas e depois? Bastava o rio de gelo fazer um mo-vimento brusco e os rochedos cairiam sobre ela e a esma-gariam como a um besouro.

Pensaria nisso depois. No momento, tinha de ir pa-ra a margem.

Pendurando o arco no ombro, deixou o gelo flutu-ante e trepou no banco de gelo. Este balançou assustado-ramente e ela teve de saltar para o pedaço seguinte e o seguinte, mantendo-se sempre no gelo branco e não pa-rando nunca, como lhe ensinara Inuktiluk. O banco de gelo estava repleto de buracos — um passo em falso e ela cairia no Mar. Renn suava quando chegou ao que sentiu ser o gelo do mar.

Curvou o corpo, aturdida demais para se sentir ali-viada. Era difícil manter o corpo ereto, visto que suas per-nas ainda sacudiam ao ritmo do Mar.

Para o sul, vindo do interior do rio de gelo, ela ou-viu batidas. Sinistros gemidos tormentosos. Endireitou-se.

O vento assobiava sobre o gelo. O frio era tão in-tenso que suas pestanas grudaram uma na outra. Sua mão rastejou até as penas do animal de clã. Aquele lugar não parecia nada bom. Aquele frio intenso. Aquelas colinas denteadas ao pé dos rochedos, tão mergulhadas em som-bras que pareciam quase negras.

Com um sobressalto, deu-se conta de que não eram sombras que as faziam parecer negras, não podia ser, os rochedos estavam voltados para o poente e o sol baixo brilhava diretamente neles. Aquelas colinas eram negras. E, em seu centro, escancarava-se um abismo. Um abismo de gelo negro.

Sentiu-se estranhamente atraída para aquilo. Cambaleando pelo gelo do mar, ela seguiu em dire-

ção às colinas negras. A medida que se aproximava, o gelo sob suas botas ficava negro: gelo negro quebradiço que estalava a cada passo.

Parou para apanhar um pedaço e o esmagou em sua mitene. Ele derreteu, deixando nada além do que partícu-las negras. Olhou para sua palma. Aquelas partículas ne-gras... não eram gelo, mas pedra. Pedra, de alguma monta-nha soterrada, pulverizada pela força do rio de gelo.

Sua mão caiu para o lado e água gotejou tristemente da mitene. Agora entendia por que o Mar a conduzira até ali, ao baixo-ventre do rio de gelo. Ela fizera o impossível. Encontrara um meio de enterrar a opala de fogo na pedra.

Mas a única vida que podia dar era a sua própria.

TRINTA E CINCO

Por baixo da mitene, Torak sentiu Lobo ficar impa-

ciente. Esperava ardentemente que o cheiro da trilha que Lobo captara fosse a de Renn, mas não podia ter certeza. Grande parte da fala de lobo não era em voz, mas em ges-tos: um olhar, uma inclinação da cabeça, um sacudir das orelhas. Como estava cego, era muito mais difícil saber o que Lobo dizia. E, embora a visão de Torak estivesse vol-tando lentamente. Lobo ainda era apenas um borrão cin-za-escuro.

O vento também estava impaciente, gemendo em seus ouvidos e puxando com força sua parca. Vozes agu-das, fracas, o alcançaram no limite da audição. Demônios? Espiões dos Devoradores de Almas? Ou Renn pedindo ajuda?

Lobo parou tão abruptamente, que Torak quase ca-iu sobre ele. E sentiu tensão em seus ombros; o baixar de sua cabeça quando ele farejou o gelo. O coração de Torak quase parou. Outra rachadura de maré. Eles já haviam a-travessado três e não estava se tornando nem um pouco

mais fácil. Sem demora, com uma torção, Lobo soltou-se da

mão de Torak... e saltou. Torak ouviu o cicio de patas pousarem na neve, depois um latido de incentivo. Venha!

Torak desatou os sacos de dormir e as costelas de foca que cortara da carcaça e jogou-os na direção da som-bra que era Lobo. Tranqüilizou-se ao ouvir um baque sur-do em vez de água espirrando.

Agora, a parte mais difícil. Não conseguia distinguir a fenda e esta poderia ter de um palmo a dois passos de largura. Era arriscado demais ajoelhar-se e sentir sua borda com as mitenes; seu peso poderia quebrar a borda. Ele teria de pular e confiar que Lobo — que conseguia saltar três passos com facilidade — lembrasse que seu irmão de alcatéia não conseguia.

Outro latido e um ganido impaciente. Venha! Torak inspirou fundo... e saltou. Pousou em gelo duro, balançando loucamente. Lo-

bo estava ali para firmá-lo. Ele apanhou suas coisas, então pôs a mão no cangote de Lobo e os dois partiram.

No meio da tarde e a despeito das impacientes cu-tucadas de Lobo, ele precisou descansar. Enquanto Lobo corria em círculos aflitos, ele se aconchegava no gelo e retirava carne das costelas da foca. Sua visão melhorava continuamente e agora já conseguia enxergar a carne. Bem, conseguia distinguir um borrão vermelho-escuro contra o borrão rosado do gelo. Tateou atrás de seu visor de olho-de-coruja e colocou-o.

Para sua surpresa, Lobo rosnou baixinho. Talvez ele não gostasse de visores. — O que há de errado? — murmurou Torak, can-

sado demais para falar lobo.

Outro rosnado: não hostil, mas inquieto. Talvez não fosse o visor. Talvez ele não gostasse que Torak tives-se trazido a carne: um chamariz para qualquer urso-branco numa extensão de dois dias de caminhada. Mas ele não tivera escolha. Diferentemente de Lobo, ele não podia devorar meia foca e depois ficar dias sem comer.

Uma cutucada impaciente com o focinho. Vamos! Torak suspirou e se pôs de pé. O dia chegou ao fim e ele sentiu o frio aumentar

quando o sol baixou. De repente, não conseguiu dar mais nenhum passo. Encontrou uma colina de gelo e talhou um abrigo tosco, revestiu-o com um dos sacos de dormir e rastejou para o interior do outro.

Lobo também rastejou para dentro e deitou colado a ele: um calor maravilhosamente pesado. Pela primeira vez em dias, Torak sentiu-se seguro. Com Lobo a seu la-do, nenhum demônio ou Devoradores de Almas ou urso-branco chegaria perto. Ele adormeceu com minúsculas cócegas de bigodes em seu rosto.

Acordou no escuro — e nada de Lobo. Ele sabia que não havia dormido muito e, quando

rastejou para fora, viu um vasto céu negro resplandecendo de estrelas.

Ele viu! A cegueira causada pela luz refletida na neve passara!

Ficou parado, o rosto virado para cima, absorvendo as estrelas.

Enquanto observava, uma enorme lança de luz ver-de riscou o céu. A seguir, uma chuva de flechas jorrou acima e, subitamente, raios de luz verde agitaram-se pela escuridão: tremeluzindo, dissolvendo-se, reaparecendo silenciosamente.

Torak sorriu. Finalmente. A Primeira Arvore. Ela crescera das trevas do Início, levando vida para todas as coisas: rio e pedra, caçador e presa. Freqüentemente ela retornava, no extremo do inverno, para iluminar corações e incitar coragem. Torak pensou em Pa e ficou imaginan-do se ele completara a Jornada da Morte e encontrara o caminho seguro em direção a seus galhos. Talvez agora mesmo estivesse olhando para baixo para ele.

À distância, um bufo-real piou. A pele de Torak arrepiou. Então, muito mais perto, ouviu uma escorregadela

no gelo. Agachou-se e sacou a faca. — Largue — ordenou Thiazzi. — Cadê a opala de fogo? — Não está comigo. Um soco na cabeça fez com que ele voasse. Ao

pousar, seu peito bateu com força na elevação de gelo. — Onde está? — berrou o Mago Carvalho, dando-

lhe um puxão e colocando-o de pé. — Não está... comigo! O enorme punho baixou novamente... mas Nef

cambaleou para frente e agarrou o braço dele. — Precisamos dele com vida ou jamais a encontra-

remos. — Vou arrancar isso dele! — rugiu o Mago Carva-

lho. — Thiazzi — gritou Seshru. — Você não conhece

a própria força! Vai matá-lo! O Mago Carvalho rugiu para ela, mas baixou o pu-

nho e deixou Torak cair. Ele caiu ofegante, tentando compreender o que es-

tava acontecendo. Com Lobo inexplicavelmente sumido, eles deviam ter se aproximado sorrateiramente à noite. A alguns passos dali, ele viu dois caiaques pousados sobre o gelo, os cascos remendados com pele de foca. Não conse-guiu ver Eostra; mas, a dez passos de distância, havia um bufo-real empoleirado em uma presa de gelo, cravando nele seus aterradores olhos laranja.

Ao observar as obscuras formas dos Devoradores de Almas, Torak sentiu a discórdia entre eles: fios de ten-são se esticavam entre os três como uma teia de aranha.

Claro, pensou. Eles não completaram o sacrifício, portanto não estão totalmente protegidos dos demônios. Ficou imaginando se podia tirar vantagem disso.

— Revistem-no — disse a Maga Víbora. — Tem de estar — em algum lugar.

Thiazzi e Nef agarraram a parca de Torak e a puxa-ram por cima de sua cabeça, depois rasgaram seu gibão e o resto das roupas, até ele ficar nu e tremendo no gelo.

O Mago Carvalho teve um malicioso prazer em fa-zer uma lenta revista: sacudiu mitenes e botas, quebrou em duas a faca de neve, esvaziou o chifre de remédios de Torak, de modo que o precioso sangue da terra foi sopra-do para longe pelo vento.

— Não está aqui — concluiu Nef, surpresa. — Ele a escondeu — disse Seshru. Aproximando-se, ela exami-nou o rosto de Torak e sua língua pontuda vibrou do lado de fora para umedecer seus lábios. — Estas tatuagens são do Clã do Lobo. “O Lobo vive.” Quem é você?

— J-Já lhe disse — gaguejou. — A opala de fogo não está comigo. Nef curvou-se para olhar a faca de Pa.

— Vista-se — disse para Torak, sem olhar para ele. Sem jeito e com frio, ele colocou as roupas e então arras-

tou-se na direção do que havia sobrado de suas coisas. Sua algibeira de iscas de fogo estava vazia e o chifre de remé-dios de sua mãe perdera a tampa; mas, num canto de sua algibeira de remédios, encontrou o pedaço que restava da raiz negra dos Devoradores de Almas. Enfiou-o para den-tro da mitene e fechou a mão em sua volta. Não sabia por quê, mas sentia que talvez precisasse daquilo.

Bem a tempo. Thiazzi agarrou seus punhos e amar-rou-os juntos com um pedaço de corda de couro cru. A amarração ficou cruelmente apertada e Torak deu um gri-to. O Mago Carvalho gargalhou. Nef agitou-se, mas não fez qualquer movimento para detê-lo.

Torak notou que a mão esquerda de Thiazzi estava fortemente enfaixada com pele de gamo manchada de sangue e lhe faltavam dois dedos. Ótimo, pensou ele sel-vagemente, pelo menos Lobo conseguiu sua vingança.

— Onde você conseguiu isto? — interrogou Nef

com a voz alterada. Estava parada, completamente imóvel, olhando para a faca em suas mãos. A faça de Pa.

Torak levantou o queixo. — Era do meu pai — declarou com orgulho. Um silêncio baixou sobre os Devoradores de Al-

mas. O bufo-real girou a cabeça e olhou fixamente. — Seu... pai — disse Nef chocada. — Ele era... o

Mago Lobo? — Sim — confirmou Torak. — O homem que sal-

vou a sua vida. — O homem que nos traiu! — exclamou Thiazzi.

Torak lançou-lhe um olhar de puro ódio. — O homem que descobriu o que vocês eram! O

homem que vocês assassinaram!

— O filho dele — sussurrou Nef. Sua testa enru-gou-se. — Qual... qual é o seu nome?

— Torak. — Torak — repetiu a Maga Morcego. Seus olhos

procuraram os dele e Torak pôde ver que, pela primeira vez, ela o viu não simplesmente como “menino”, o nono caçador do sacrifício, mas como Torak, o filho do Mago Lobo.

— O Lobo vive — disse novamente a Maga Víbora. Os lábios curvados em um sorriso de lado. — Então é esse o significado. Que decepção.

O Mago Carvalho chegara ao limite de sua paciên-cia. Empurrando Seshru para o lado, ele agarrou Torak pelo cabelo, torceu sua cabeça para trás e pressionou uma lâmina contra sua garganta.

— Diga onde escondeu a opala de fogo ou corto sua garganta! Torak encarou os olhos verdes e viu que ele falava sério.

Pensou depressa. — Está com a menina — ofegou. — O espírito er-

rante. — Que menina? — desdenhou Thiazzi. — Um espírito errante?— disse Nef roucamente. To-

rak lançou um olhar para Seshru. — Ela sabe — disse ele. — Ela sabe e não contou

para vocês. Thiazzi e Nef olharam para a Maga Víbora. — Você sabia? — perguntou Thiazzi acusadora-

mente, soltando Torak com tal força que ele caiu de joe-lhos.

— Ele está inventando — alegou Seshru. — Não percebem? Ele está tentando nos jogar uns contra os ou-

tros. — Estou falando a verdade! — berrou Torak. En-

tão, para Nef e Thiazzi: — Vocês sabem que havia uma menina comigo, devem ter visto as pegadas!

Eles viram. Ele pôde perceber pelos seus rostos. Nef virou-se para Seshru.

— Houve um momento, nas cavernas, quando vo-cê sentiu almas. Mas não nos disse o que era.

— Ela sabia — reafirmou Torak. — Ela sentiu o espírito errante, sentiu as almas caminhando livremente entre corpos. — Um plano se formava. Um plano deses-perado, mortal, que colocaria tanto ele quanto Renn em perigo. Mas ele não conseguia pensar em outra saída. Com a voz bem alta, falou:

— A menina é um espírito errante. Ela está com a opala de fogo.

— Leve-nos até ela — disse Nef — É um truque — gritou Seshru. — Ele está nos

enganando! — O que ele pode fazer com a gente? — rugiu

Thiazzi. — Se me deixarem viver — prometeu Torak —, eu

os levarei à opala de fogo. Juro pelas minhas três almas. Silenciosamente Seshru deslizou na direção de To-

rak e levou seu rosto para bem perto do dele. A respiração dela esquentou sua pele. Ele se sentiu afogar naquele fitar inigualável.

Lentamente ela retirou sua mitene e levantou a ca-beça.

Ele recuou. Os lábios perfeitos se curvaram num sorriso Seus

dedos gelados esfregaram a testa dele até apagar a marca

de mão. — Você não precisará mais disso — murmurou ela.

Um comprido dedo indicador acariciou sua bochecha: delicadamente, mas fazendo com que ele sentisse o gume de sua unha. — Seu pai tentou nos enganar — disse a meia-voz — e o matamos. — Inclinou-se mais para perto e cochichou em seu ouvido: — Se você me enganar, cui-darei para que nunca fique livre de mim.

Torak engoliu em seco. — Eu os levarei à opala de fogo. Juro. Nef enfiou a faca de Pa em seu cinto e olhou para

Torak com uma estranha, inexplicável, expressão. — Co-mo?

— O lobo — disse Torak, movimentando a cabeça em direção às marcas de patas que seguiam para o sul a-través do gelo. — Devemos seguir as pegadas do lobo.

TRINTA E SEIS

Lobo sentia-se como se estivesse sendo rasgado em

pedaços. Ele tinha de encontrar a irmã de alcatéia. Tinha de salvar Alto Sem-rabo dos malvados. E tinha de tocar os demônios de volta para Debaixo. Mas não podia fazer isso sozinho, necessitava de ajuda. Só conseguiu pensar em um modo de obtê-la. Esse modo podia ser perigoso: a coisa mais perigosa que um lobo solitário podia realizar. Mas ele tinha de tentar.

Sem parar, trotou pelo Escuro reluzente. No Alto, o Olho Branco Brilhante se escondia, mas seus muitos filhotes derramavam sua luz sobre a terra.

Enquanto Lobo corria, pensou em Alto Sem-rabo e sentiu uma nova pontada de preocupação. Será que seu irmão de alcatéia entenderia por que ele desapareceu? Es-peraria pela sua volta ou cometeria o erro de sair e cair presa do Grande Molhado?

Era terrível demais pensar nisso, portanto Lobo tentou se perder nos sons e odores trazidos pelo vento. As furtivas arranhaduras de uma tetraz branca agasalhando-se

mais fundo em sua toca. Os rosnados do Grande Frio Branco adiante. O pronunciado cheiro familiar da irmã de alcatéia.

Lobo foi em frente, seguindo seu cheiro. Ele sabia que precisava encontrá-la antes de ir pedir ajuda contra os demônios, embora não soubesse por quê; apenas sentia isso em sua pelagem, com a certeza que às vezes lhe ocor-ria.

Correu uma longa, cintilante encosta acima e fez uma pausa no topo. Lá embaixo. Ela dormia lá embaixo, no escuro.

Um novo cheiro agrediu seu focinho, eriçando o pêlo e fazendo as garras tremerem. Demônios. A ânsia de caçá-los percorreu ardente seus membros. Mas ainda não. E não sozinho.

Girando sobe uma pata, ele desceu correndo a en-costa, pelo mesmo caminho por onde viera — então par-tiu para procurar ajuda.

O Escuro se dissipava e, incansavelmente, ele voava sobre o Frio Macio Brilhante. Chegou a uma terra devas-tada, onde salgueiros atordoados chocalhavam folhas se-cas ao vento. Reduziu para um trote.

As marcas olfativas do lobo líder eram frescas, for-tes e abundantes. Isso disse a Lobo que, recentemente, os lobos estranhos haviam feito uma matança e a alcatéia não estava muito distante.

Manteve-se próximo às marcas olfativas, que diriam aos lobos estranhos que ele entrara propositadamente em seu território e estava ali porque queria. Esperava que isso os deixasse mais curiosos do que furiosos, mas não tinha certeza. Não sabia que espécie de lobos eles eram ou — o mais importante — que tipo de lobo era seu líder. Lobos

protegem ferozmente seus territórios, raramente permi-tindo a entrada de um lobo solitário, e apenas raramente uma alcatéia permite que um estranho ande com eles, co-mo Lobo andara com a alcatéia da Montanha e Alto Sem-rabo com a alcatéia dos sem-rabos que cheiravam a corvo.

As marcas olfativas ficavam mais fortes, mais perto umas das outras. Agora não demoraria muito.

Não demorou. Os lobos brancos vieram correndo por entre os

salgueiros com uma velocidade que tomou até mesmo Lobo de surpresa. Constituíam uma grande alcatéia e, co-mo os lobos da Floresta, corriam em fila nas pegadas do líder; mas eram ligeiramente mais baixos do que os lobos da Floresta e mais corpulentos. Lobo achou que pareciam muito, muito fortes.

Lobo ficou totalmente imóvel, esperando que eles se aproximassem. Seu coração revirava-se no peito, mas ele manteve a cabeça e a cauda erguidas. Não devia pare-cer que estava com medo.

Eles se aproximaram sobre o Frio Macio Brilhante. O líder olhou por cima do ombro e a alcatéia se es-

palhou, formando um círculo em volta de Lobo. Em silêncio, eles pararam. Suas pelagens brilhavam,

seus hálitos vagueavam como névoa. Seus olhos cintila-vam prateados.

Lobo prendeu a própria respiração, para que isso lhe desse uma aparência tranqüila.

Tensamente, o lobo líder caminhou na direção dele. Suas orelhas estavam empinadas, a cauda erguida e o pêlo eriçado ao máximo.

Lobo baixou as próprias orelhas, mas apenas ligei-ramente. Sua pelagem estava eriçada, mas não tanto quan-

to a do líder, e sua cauda estava só um pouquinho baixada. Alta demais e ele pareceria desrespeitoso; baixa demais, pareceria fraco.

Implacavelmente, o líder passou por ele: orgulhoso demais para fazer contato visual.

Lobo virou a cabeça e um bigode para o lado e des-lizou o olhar para baixo e para longe.

O lobo líder chegou mais perto, até ficar a uma pa-ta de distância do focinho de Lobo.

Mal ousando respirar, Lobo permaneceu em seu lu-gar. Viu as cicatrizes no focinho do líder e a ponta de uma orelha mordida. Era m lobo que travara muitas lutas e vencera.

O lobo líder deu outro passo e farejou debaixo da cauda de Lobo, depois a casca atada à ponta. Recuou bruscamente, contraindo intrigado as orelhas. Então levou seu focinho para perto do de Lobo. Perto, mas sem tocar; respirando seu cheiro.

Lobo, também, inspirou fundo, provando o forte, doce odor do líder, enquanto, em volta deles, os lobos brancos esperavam em silêncio.

O líder ergueu a pata dianteira e tocou o ombro de Lobo.

Lobo retesou-se. O momento seguinte seria decisivo. Ou eles o aju-

dariam — ou o fariam em pedaços.

TRINTA E SETE

Após uma péssima noite em um abrigo de neve ca-

vado às pressas, Renn sentou-se para esperar a alvorada. Sua última alvorada. Não parava de dizer isso em sua ca-beça, para que se tomasse realidade.

Ela sabia que, na noite passada, deveria ter tido co-ragem para acabar com tudo, mas não teve. Precisava ver o sol uma última vez.

A noite foi tranqüila. Nada, a não ser o vento agita-do e um estrondo ocasional enquanto o rio de gelo muda-va de posição durante o sono. As estrelas nunca parece-ram tão distantes e tão frias. Ela desejou ouvir vozes. Gente, raposa, qualquer um. “Fome de voz” é como os clãs do norte chamam isso: quando você está sozinho no gelo e anseia por vozes muito mais do que calor ou carne; porque você não quer morrer sozinho.

Não era justo. Por que ela deveria mergulhar no gelo com os demônios? Ela queria ver Torak novamente e Fin-Kedinn e Lobo.

— O que você quer não interessa — disse em voz

alta —, é assim que são as coisas. — Sua voz soou estri-dente, como a de Saeunn.

Acima do rio de gelo, surgiu um corte de um rubro intenso: um ferimento no céu.

Ela observou o rubor se dissolver em laranja, de-pois em um amarelo fulgurante. Chega de desculpas. Le-vantou-se. As Marcas da Morte estavam duras em sua pe-le. A opala de fogo pesava em seu peito. Pendurando no ombro seu arco fiel, partiu em direção aos rochedos.

Começou a nevar. Flocos brancos salpicavam o ge-lo negro, uma sinistra inversão de como deviam ser as coi-sas. O gelo era todo denteado. Ela teve de pelejar pelo caminho sobre altas arestas e fendas sem fundo. Um es-corregão e seria engolida, sem esperança de escapar. E ela precisava ir mais adiante, até o abismo negro logo abaixo dos rochedos. Seria ali que exporia a opala de fogo e con-vocaria os demônios. Seria ali que ela os conduziria para as trevas abaixo.

Um gemido ensurdecedor e, ao sul, parte da face do rochedo desabou. Grandes nuvens geladas em movimento atingiram seu rosto. Nada era capaz de resistir ao poder do rio de gelo. Nem mesmo demônios.

Ela limpou a parca e foi em frente. Era metade do dia, quando se aproximou da escu-

ridão sob os rochedos. Sob a forte nevada, pôs-se de pé em um cume, encarando abaixo o corte na barriga do rio de gelo.

Ali, pensou ela. Ali, a pedra seria enterrada para sempre.

Torak andara a noite toda, seguindo as pegadas de Lobo sob a bruxuleante luz da lamparina dos Devorado-res de Almas. Atrás dele, Nef e Thiazzi arrastavam-se com

os caiaques nos ombros; à frente ia Seshru, a lamparina em uma das mãos, a corda que amarrava os punhos dele na outra. De vez em quando, ele sentia a presença de Eos-tra, embora em nenhum momento a tivesse visto,— mas, ao olhar de relance para cima, lá estava a forma sombria de um bufo-real movimentando-se sob as estrelas.

Seu peito doía, os pés se arrastavam. Forçou-se a continuar em frente. Nada importava, exceto encontrar Renn. Rangendo os dentes contra a dor, torceu os punhos para que o couro cru ferisse sua carne. Tinha de deixar uma trilha de sangue. Isso fazia parte do plano.

Chegou a alvorada. Sob a luz cinzenta, a terra era corcovada e ameaçadora. Ele sentiu que eram seguidos. Ou Lobo tinha voltado ou seu plano estava funcionando — mas ainda era cedo demais.

Seshru deu um solavanco na corda, causando um forte tranco em Torak.

Fingindo cambalear, ele caiu de joelhos e esfregou na neve o pulso sangrando.

— De pé! — vociferou Seshru dando um puxão que o fez berrar.

— Escutem só ele choramingar — zombou Thiaz-zi. — Como aquele lobo quando pisei em seu rabo. Cho-ramingando como um filhote.

Você pagará por isso, pensou Torak enquanto se le-vantava cambaleante. Não sei como, mas pagará.

Aproximava-se a metade do dia. Começou a nevar. Através da brancura que caía, Torak distinguiu uma com-prida colina baixa. Mais além dela, ouviu o estrondear do rio de gelo; distante, ao sul, no próprio limite da audição, o uivar de lobos.

Seshru atingira o topo da colina. Seu rosto, com o

visor de olhos estreitados, era inexpressivo como uma máscara e sua língua negra sacudiu-se do lado de fora para provar o ar. Ela sorriu.

— Os demônios estão vindo. Nef largou o caiaque e cambaleou colina acima.

Quando ela arrancou o seu visor, Torak ficou chocado ao ver como ela envelhecera no transcorrer de uma noite.

— Ali — indicou a Maga Morcego. — Ela está ali embaixo, na sombra dos rochedos.

Renn parou a vinte passos do abismo, a sotavento

de um cume de gelo negro. Escorregando as mãos para fora das mitenes, reti-

rou de dentro da parca a algibeira de pé de cisne. Seus de-dos tremiam tanto, que ela fez várias tentativas para abrir a algibeira, mas finalmente conseguiu e a opala de fogo rolou para sua palma. Ficou ali apática, inerte; estranha-mente mais pesada do que quando ela a carregava na bol-sinha e tão fria, que queimava sua pele.

Você não pode mais deter isto, pensou. Mesmo se qui-sesse.

A neve caía mais densa, gelando sua palma, mas a opala de fogo permanecia intocada.

Bem no interior da pedra, cintilou uma faísca rubra. A faísca ardeu em uma chama. Pura. Firme. Linda...

Fechando os olhos, Renn fez com os dedos uma gaiola em torno dela. Quando olhou novamente, ela ainda reluzia: luz rubra sangrando através de sua carne.

Neve rodopiou em seu rosto. Debaixo de suas bo-tas, o gelo negro estremeceu. Ela ergueu a mão e manteve a opala de fogo no alto.

O rio de gelo ficou em silêncio. O vento ficou re-

duzido a um sussurro. Esperando para ver o que aconte-ceria.

A princípio, foi apenas um farfalhar distante: um murmúrio de apetite e ódio no vento. Então aumentou para uma algazarra roufenha que perfurou seu crânio e abateu seu ânimo. Os demônios estavam vindo.

Uma flecha despedaçou o gelo à distância de um palmo de sua cabeça.

— Não se mexa! — gritou a voz de um homem. Torak mal reconheceu Renn. Seu cabelo ruivo flutuava como uma chama em

meio à neve rodopiante e seu rosto branco estava rigida-mente belo enquanto mantinha erguida a opala de fogo. Não parecia mais com sua amiga, parecia o Espírito do Mundo no inverno: uma mulher com galhos nus verme-lhos de salgueiro como cabelos, que caminhava sozinha pela neve, infligindo terror em todos que encontrava.

— Não se mexa! — bradou novamente o Mago Carvalho.

— Nós atiraremos! — alertou a Maga Morcego. — Você não pode escapar! — berrou a Maga Víbo-

ra, encaixando outra flecha em seu arco. — Voltem! — gritou Renn. E deu um passo na di-

reção da beira do abismo, a dez passos atrás dela. — Há fendas por toda a minha volta e, se atirarem, perderão a pedra para sempre!

Os Devoradores de Almas gelaram. Ela estava a trinta passos deles, bem ao alcance de uma flecha; mas o risco era grande demais.

Desesperadamente Torak deu um puxão na corda que amarrava seus pulsos atrás, mas não conseguiu se li-

vrar da trava; Thiazzi martelara a estaca bem fundo no gelo.

Pensando depressa, enfiou a mão para fora da mi-tene, abriu o punho e largou a raiz negra no gelo, em se-guida se contorceu para alcançá-la com os dentes. Torceu para que não a tivesse largado tarde demais, para que seu plano funcionasse contra todas as desvantagens e...

Uma sombra voou sobre Torak. — Renn — gritou ele. — Acima de você! Ela já tinha visto. Quando o bufo-real arremeteu

em sua direção com as garras esticadas, Renn reagiu com sua faca e mandou-o gritando de volta ao espaço.

— Não se aproximem! — alertou severamente os Devoradores de Almas. — Vocês não podem me deter!

— Renn, não faça isso — berrou Torak. — Não pu-le!

Ela parecia tê-lo visto pela primeira vez. Seu rosto

se contraiu e voltou a ser Renn novamente. — Torak! Não posso... Seus olhos se arregalaram horrorizados quando ela

avistou algo atrás de Torak — e ele virou-se e viu, através da brancura rodopiante, uma corrente negra correndo so-bre o gelo como a sombra de uma nuvem.

Demônios. Por um momento, ele pôde apenas observar a escu-

ridão varrer em sua direção. Então curvou a cabeça, colo-cou a raiz na boca e mascou — sentiu ânsias de vômito e forçou-se a engolir.

— Renn — gritou ele. — Não pule! — Não pule! — gritou Torak. E Renn hesitou.

Através da neve, ela viu-o ajoelhar-se sobre o gelo negro: amarrado a uma estaca, o capuz puxado para trás do rosto machucado. Os Devoradores de Almas estavam em ambos os lados de Torak, ele não tinha qualquer chan-ce — e, ainda assim, por um momento, a esperança a fez hesitar. Ele parecia tão seguro.

Mas os demônios chegavam mais perto e os Devo-radores de Almas avançavam para cair sobre ela.

Renn viu Torak balançar e observou horrorizada o sangue fugir de seu rosto, os olhos rolarem para cima e ele desabar de frente sobre o gelo.

Levante-se!, disse-lhe ela silenciosamente. Faça algu-ma coisa, qualquer coisa, apenas deixe-me saber que con-tinua vivo!

Ele permanecia imóvel. Acabou-se, pensou ela, descrente. Só restei eu. Seus dedos apertaram-se em volta da opala de fogo

e ela recuou para mais perto do abismo.

TRINTA E OITO

A bile era mais amarga na boca de Torak enquanto

ele permanecia caído de cara na neve. Com o que restava de sua força, virou a cabeça e

viu Renn recuar na direção do abismo e os Devoradores de Almas avançando para ela. Então os demônios passa-ram rugindo por cima dele. Torak sentiu sua ânsia pela opala de fogo e seu terror pelos lobos que os caçavam: os lobos brancos do norte e o lobo cinzento da Floresta, que os perseguiram incansavelmente através da neve e que agora vinham correndo pelo gelo, impelindo todos eles à sua frente.

“Lobo...”, Torak tentou dizer, mas seus lábios não se mexeram. Cãibras retorciam suas entranhas. O enjôo o atacava em ondas.

Pouco antes de mergulhar na escuridão, ele viu a Maga Víbora se virar, a boca frouxa de terror. Ali, na beira do gelo firme: um enorme urso-branco explodiu do Mar..

... e agora surgia sobre o gelo, sacudindo a água do pêlo. Saltou na direção dos malvados e eles tremeram di-

ante do urso, seu terror entregue ao vento. A Maga Víbora hesitou com uma flecha encaixada

em seu arco. Olhou do urso para o corpo abatido de To-rak e seu rosto se contorceu de fúria.

— O menino! O menino é o espírito errante! Com uma varrida da pata, o urso a fez sair voando

aos gritos e pousar em um mole amontoado sobre o gelo. Ele correu sobre a chocante escuridão, absorvendo os cheiros que fluíam no vento em sua direção. A fúria do Mago Carvalho, o terror de Renn. Diante dele, a Maga Morcego fugiu, os demônios se dividiram como um rio. Seu rugido encheu o céu, seu urro despedaçou o gelo. Ele era invencível!

Torak sentiu como sua a fúria do urso-branco; sen-tiu sua sede de sangue inundá-lo como uma enchente en-carnada. Lutou para dominá-la...

Perdeu. A ânsia assassina rugiu através dele, a ânsia que o

conduzira enquanto seguia a trilha de sangue na neve. Fa-ria uma carnificina naquelas presas: os malvados que ousa-ram invadir o seu gelo, a menina com o cabelo flamejante! Ele se banquetearia com seus corações quentes, macios, mataria todos!

Diante dele, o malvado com o cabelo claro brandiu uma frágil arma. Com desprezo, ele a afastou com uma patada, deleitando-se com o uivo aflito do abatido.

A presa choramingou e se contorceu. Ele avançou para o abate...

...e um grande lobo cinzento saltou na sua frente. Ficou encarando-o, os lábios recuados sobre as presas, rosnando.

O urso revelou sua ira com um urro. Recuou e martelou o gelo com as patas dianteiras, girou a cabeça e rugiu para o lobo.

O lobo mantinha-se firme no lugar, sem medo. Seus olhos âmbar estavam cravados nos do urso: firmes e fortes como o sol. Perfuraram as trevas das almas do urso e encontraram Torak. Viram suas almas, chamaram por ele. Com um agonizante solavanco, ele se livrou da sede de sangue — ele conhecia Lobo e conhecia-se novamente. Arrancou as almas do urso-branco à sua vontade.

Thiazzi ainda estava agachado diante dele: o braço

quebrado, sua arma perdida. Torak hesitou. Ali estava um Devorador de Almas

à sua mercê: para ser morto com um único movimento de suas terríveis mandíbulas. Agora, porém, não era mais a sede de sangue do urso que o impelia, mas a dele. Ele faria a matança — com o poder do maior dos caçadores sob seu comando. E ele queria matar. O Mago Carvalho tortu-rara Lobo, tentara matar Renn e caçara seu pai até a mor-te. Oh, como ele queria matar!

Mas os olhos âmbar de Lobo estavam cravados ne-le e, de repente, Torak se deu conta de que, se matasse agora os Devoradores de Almas, então, verdadeiramente, ele teria se tornado um deles.

Com um rugido ensurdecedor, ergueu-se novamen-te sobre as patas traseiras, assomando sobre o Mago Car-valho. Com um urro, baixou-se com um estrondo, socan-do o gelo e fazendo voar fragmentos negros. Ele — não — iria — matar!

No instante em que desistiu da matança, avistou Renn cambalear na beira do abismo, preparando-se para

saltar. Viu a Maga Morcego coxear até ela, arrancar de sua mão a opala de fogo e empurrá-la para longe da borda, com tanta força que ela saiu voando.

Então a Maga Morcego virou-se com um olhar de amargo triunfo e gritou para o corpo de Torak estendido no gelo:

-A dívida foi paga! Diga a seu pai quando encontrá-lo! A dívida foi paga!

Ela jogou-se no abismo e os demônios deram um uivo de rendição e saltaram atrás dela. O rio de gelo ge-meu, o gelo negro desabou, fechando o abismo para sem-pre — e a luz da opala de fogo foi extinta.

TRINTA E NOVE

Torak acordou no gelo, deitado de costas. Sua ca-

beça girava e ele se sentia enjoado. Mas os últimos flocos de neve caíam delicadamente sobre seu rosto e o céu tinha uma luminosidade que lhe dizia que os demônios haviam sumido.

Renn estava sentada a seu lado, a cabeça sobre os joelhos. Ela tremia.

— Você está bem? — murmurou ele. Ela se aprumou. Estava muito pálida e havia uma

Marca da Morte em sua testa que ele não notara antes. — Hum-hum — mentiu. — E você? — Ele fechou

os olhos e visões rodopiaram em sua cabeça. A Maga Morcego na beira do abismo. O Mago Carvalho curvado diante dele: ele, o urso-branco, determinado a matar...

— Os Devoradores de Almas se foram — disse Renn. — Pegaram os caiaques e fugiram. Pelo menos, creio que foi o que fizeram. — Contou-lhe como se arras-tou para um lugar seguro, pouco antes de o gelo desabar e que, quando as nuvens de neve clarearam, a Maga Víbora

e O Mago Carvalho haviam desaparecido. Do mesmo modo, o bufo-real e os lobos brancos.

Torak abriu os olhos. — Onde está Lobo? — Não foi muito longe. — Ela arrancou um pêlo

de sua mitene. — Ele me ajudou a encontrar você. Eu não conseguia enxergar na neve, então eu o ouvi uivar. Foi horrível. Pensei que ele estivesse lamentando sua morte.

— Desculpe — murmurou Torak. — A Maga Víbora — disse ela com um nó na voz.

— Ela sabe que você é um espírito errante. — Sim. — Então agora todos sabem. — Sim. Ela olhou além do gelo e tremeu. — O que a Maga Morcego quis dizer com “A dívi-

da está paga”? Ele contou como, certa vez, seu pai evitara que a

Maga Morcego se matasse. — Ah — fez Renn. Então colocou algo pesado na

mão dele. — Isto é para você. Era a faca de ardósia de Pa. — Quando ela me empurrou de lado — contou

Renn —, deve ter enfiado isso no meu cinto. Só senti muito depois.

Os dedos de Torak se fecharam em volta do cabo. — Ela não era de todo má — murmurou. — Não

o tempo todo. Renn olhou para ele. — Ela era uma Devoradora de Almas! — Mas fez o melhor que pôde para pagar o que

fez.

Ele pensou nas almas da Maga Morcego, presas no gelo negro com os demônios. E lembrou-se da pequena sombra escura que vira se erguer do ombro de Nef pouco antes de ela pular. Nef mandara embora seu adorado mor-cego para que ele não morresse com ela.

— Era você, não? — disse Renn em voz baixa. — O urso-branco. O seu espírito errante penetrou no urso-branco.

Ele olhou em seus olhos, mas nada disse. — Torak, pode ser que nunca consiga sair! Você

pode ficar preso para sempre! Dolorosamente, ele se ergueu, apoiando-se num co-

tovelo. — Não havia mais nada que eu pudesse fazer. — Mas... — Você era a única que arriscava tudo, que estava

pronta para dar a vida para manter a opala de fogo enter-rada. Isso foi tão corajoso... Eu não me imagino fazendo isso.

Ela fez uma careta e arrancou mais pêlos da mitene. Então deu de ombros.

— Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Silêncio entre eles. Renn apanhou um punhado de

neve e apagou a Marca da Morte de sua testa. Em seguida, começou a limpar as feridas dos punhos de Torak.

— E se não tivesse vindo nenhum urso-branco? — perguntou ela. — O que você teria feito?

— Eu faria o espírito errante entrar em Thiazzi — disse ele sem hesitação — ou em Seshru. Eu não deixaria você morrer.

Ela pestanejou. — Você salvou a minha vida. Se não tivesse...

— Lobo nos salvou — afirmou Torak. — Ele ca-çou os demônios. Evitou que eu matasse Thiazzi. Ele sal-vou todos nós.

Como se o tivessem chamado. Lobo surgiu trotan-do pelo gelo, escorregou, endireitou-se com um habilido-so rodopio do rabo encurtado e deslizou até parar em meio a um amontoado de neve. Em seguida, lançou-se sobre Torak e deu-lhe uma minuciosa lambida de rosto de cima a baixo.

Subitamente Torak desejou enterrar a cabeça no cangote de Lobo e gritar até romper seu coração: pela Maga Morcego, por si mesmo e, de um modo intrincado, pelo seu pai.

— Tome — disse Renn, segurando um pedaço de carne de foca. Ele a cheirou, pegou a carne e tentou se sentar, mas a dor no peito o fez se retrair.

— Você está ferido? — indagou Renn. — Não, eu apenas caí. Machuquei o peito. — Quer que eu dê uma olhada? — Não — disse ele rapidamente. — Estou bem. Ela pareceu intrigada. Então deu novamente de

ombros e foi levar o pedaço de carne para o guardião do clã. Quando voltou, deu outro pedaço a Lobo e guardou o último para si mesma. Eles comeram em silêncio, obser-vando o sol mergulhar na direção Mar. O vento sumira e o rio de gelo dormia. A tarde estava tranqüila. Torak ob-servou um corvo solitário atravessar o vasto céu branco — e, de repente, se deu conta fortemente do quanto esta-vam longe da floresta. Olhou para Renn e percebeu que ela pensara a mesma coisa.

Ela disse: — Não temos comida, não temos gordura e não

temos um caiaque. Como, em nome do Espírito, vamos voltar para casa?

Foi assim que Fin-Kedinn e Inuktiluk os encontra-ram quando vieram do sul em seus caiaques: Torak e Renn abraçados no gelo, com Lobo de pé ao lado deles, de guarda.

QUARENTA

Após aquele primeiro atordoante momento, Renn

deu um soluço estrangulado e se jogou nos braços de seu tio. Ele permaneceu parado sobre o gelo e a abraçou e ela respirou o seu cheiro de couro de rena e Floresta.

Ele pegara emprestado um caiaque com o Clã da Águia-marinha, contou a ela, e se manteve nos cursos en-tre recifes e a costa até alcançar o acampamento dos seus velhos amigos, os Raposas-brancas.

— E o resto do clã? — quis saber ela, limpando o nariz na manga dele.

— Está na Floresta. — Na Floresta? Então você... — ... vim sozinho. Achei que precisavam mais de

mim. Agora ela estava deitada, o corpo enroscado, no

caiaque dele, maravilhosamente aquecida sob um saco de dormir feito de pele de rena branca. Torak estava no bar-co de Inuktiluk e Lobo os acompanhava caminhando pelo gelo.

Após algum tempo, ela falou para as costas de Fin-Kedinn:

— Ainda não entendi. Os Devoradores de Almas. Torak disse que eles queriam tomar todos os clãs iguais, mas nós somos iguais. Todos nós vivemos pelas mesmas leis.

Fin-Kedinn virou a cabeça. — Vivemos? Diga-me. Durante o tempo em que

esteve no Distante Norte, você viveu de quê? De foca? Ela fez que sim. — E o que as focas comem? Ela arfou. — Peixes! Elas são Caçadoras. Não tinha pensado

nisso. Fin-Kedinn desviou para evitar um grande pedaço

de gelo negro. — Os clãs do gelo vivem do mesmo modo que os

ursos-brancos. Têm de fazer isso ou não sobreviveriam. Alguns clãs do Mar também fazem isso. Na Floresta, é diferente. É isso que os Devoradores de Almas querem mudar.

Renn ficou pensativa. — Eles disseram a Torak que falavam pelo Espírito

do Mundo. — Ninguém fala pelo Espírito do Mundo — afir-

mou Fin-Kedinn. Depois disso, não falaram novamente. Fazia um dia

nublado e o céu estava pesado de neve. Gaivotas giravam acima. Uma raposa trotou pelo gelo, farejou Lobo e fugiu, Renn observava o remo de Fin-Kedinn cortar a água, rin-do quando estes roçavam seus dedos. Então eles sumiram e ela estava sozinha numa montanha alta e olhos verme-

lhos vinham em sua direção do meio das trevas... Ela gri-tou.

— Renn — falou suavemente Fin-Kedinn. — A-corde. Ela comprimiu os olhos contra a luz.

— Eu tive um sonho. O Líder Corvo estabilizou o barco enfiando a ex-

tremidade do remo em uma correia transversal, então se virou para olhá-la.

— Os Devoradores de Almas — disse ele calma-mente. — Você chegou perto deles, não?

Ela conteve a respiração. — Antes eles eram apenas sombras, mas agora eu

os vi. Thiazzi. Eostra. A Maga Morcego... Seshru. Os dois trocaram olhares. Então Fin-Kedinn disse: — Quando chegarmos à Floresta, conte-me tudo.

Aqui não. Ela concordou com a cabeça, aliviada. Não queria

ainda falar sobre aquilo. Não queria trazer aquelas coisas de volta.

Fin-Kedinn apanhou o remo e continuaram em frente.

Inuktiluk emparelhou o seu barco com o deles. To-rak estava sentado atrás dele e Renn tentou fazer contato visual, mas ele não olhou para ela. Com o cabelo curto e franja, ele parecia perturbadoramente estranho.

Ele andara muito calado desde a batalha no gelo. No início, ela achava que era por causa do que ele devia ter testemunhado nas cavernas. Agora se perguntava se havia algo mais; algo que ele não lhe contara.

Pouco depois, ela disse a Fin-Kedinn: — Não acabou, não é mesmo?

Novamente o Líder Corvo virou-se para olhá-la. — Nunca acaba — disse ele. Lobo estava preocupado porque Alto Sem-rabo es-

tava preocupado. Então agora, nas profundezas do Escu-ro, Lobo decidiu enfrentar o Covil branco dos sem-rabos que cheiravam como raposas e se certificar de que seu ir-mão de alcatéia estava seguro.

Felizmente todos os cães tinham sido levados para caçar e Lobo pôde rastejar para o interior do Covil sem ser farejado. Uma confusão de cheiros atingiu seu nariz: rena, peixe-cão, sem-rabo, raposa, mirtilo; mas não foi difícil encontrar seu irmão de alcatéia entre eles.

Alto Sem-rabo dormia enroscado em sua pele de rena, costas com costas com sua irmã de alcatéia. Ele franzia a testa e se contorcia; Lobo sentiu a intensidade de sua preocupação. Alto Sem-rabo tentava tomar uma deci-são sobre alguma coisa. Estava apavorado. Não sabia o que fazer. Mais do que isso, Lobo não entendia.

Como, porém, seu irmão de alcatéia parecia seguro com os outros sem-rabos. Lobo voltou sua atenção para outros cheiros interessantes no Covil. A bexiga de um peixe-cão era intrigante — até mordê-la e ela esguichar molhado nele. Então encontrou uma bola de pele pendu-rada e tocou-a com a pata. Ela gorgolejou. Observando seu interior, ficou espantado em ver um pequeno filhote sem-rabo olhando para ele. Lobo lambeu seu nariz e ele soltou um guincho de contentamento.

A seguir, Lobo foi cheirar a carne de peixe-cão que pendia de um galho no meio do Covil. Em volta dele, os sem-rabos bafejavam em seus sonos. Esticando o pesco-ço, pegou a carne delicadamente com as mandíbulas e pu-xou-a para baixo. Estava para ir embora, quando captou

um brilho de olhos. De todos os sem-rabos, o lobo líder da alcatéia dos

corvos era aquele que Lobo mais respeitava. Só que esse sem-rabo tinha o sono leve e acordava tão freqüentemente quanto um lobo normal. Ele estava acordado agora.

Lobo baixou as orelhas e sacudiu o rabo esperando que o lobo líder não tivesse notado a carne em suas man-díbulas.

O lobo líder tinha notado. Ele não rosnou. Não precisou. Ele simplesmente cruzou as patas dianteiras so-bre o peito e olhou para Lobo. Lobo entendeu, largou a carne e deixou o Covil. Novamente no Escuro, ele encon-trou um lugar para ficar no Frio Macio Brilhante e se en-roscou. Agora tinha certeza de que Alto Sem-rabo estava seguro, pelo menos por enquanto, pois o líder da alcatéia dos corvos o protegia.

A clareira na Floresta estava incandescente com luz

de fogueira e inebriante com os odores de fumaça e carne assada. Gordura chiava no fogo. “A primeira fogueira de verdade”, observou Renn, “que tivemos em meia lua!”

Após o obscuro bruxuleio das lamparinas de gordu-ra dos Raposas-brancas, foi maravilhoso poder se estorri-car diante de uma grande e apropriada fogueira Corvo. Um pinheiro inteiro era queimado no meio da clareira, suas chamas pulando mais alto do que um homem era capaz de saltar, suas brasas quentes o bastante para cha-muscar suas sobrancelhas se você chegasse muito perto.

Muitas pessoas haviam se juntado aos Corvos nas ribanceiras do Cabo-de-machado para festejar a volta dos viajantes do Distante Norte e a derrota dos demônios. Todos trouxeram comida. Os Javalis, um lado inteiro de

um cavalo do mato, que assaram num buraco, para evitar a amável discussão sobre se galhos de abeto vermelho ou de pinheiro davam um sabor melhor. Os Lontras, delicio-sos bolos viscosos de oxicoco e farinha de junco, como também um guisado de sabor estranho de cogumelos do brejo secos e pernas de rãs, de que ninguém gostou muito, exceto eles mesmos. Os Salgueiros, pilhas de arenques salgados e várias peles com sua famosa e potente bebida fermentada feita de mirtilo e os Corvos providenciaram grandes rolos de lingüiça feita com tripa de auroque re-cheada com uma deliciosa mistura de sangue, ervilha me-dulosa e avelãs socadas.

Com o transcorrer da noite, todos se tornaram co-rados e tagarelas. Cachorros corriam de um lado para o outro, agitados, e as árvores que permaneceram acordadas se inclinaram para perto do fogo para aquecer seus galhos e ouvir as conversas.

Torak não bebeu tanto quanto os outros, pois não queria que suas almas perambulassem. Fez o melhor que pôde para participar das brincadeiras e das histórias sobre caçadas, mas sabia que não era muito bom nisso. Mesmo antes do Distante Norte, ele não se enturmara realmente e agora isso ficava mais difícil. As pessoas olhavam para ele e cochichavam.

— Dizem que ele esteve com os Devoradores de Almas por dias — sussurrou uma menina Javali para sua mãe.

— Shi! — ciciou a mãe. — Ele pode ouvir! Torak fingiu que não ouviu. Sentou-se num tronco

perto do fogo, observando Fin-Kedinn cortar nacos do cavalo e colocá-los em tigelas, — Renn torcer o nariz ao pescar uma perna de rã de sua tigela e, dissimuladamente,

dá-la a um cachorro que aguardava. Ele se sentia apartado de todos. Eles não sabiam o que ele escondia e Torak não sabia como lhes dizer.

De todos, apenas Inuktiluk parecera fazer alguma idéia do que o atormentava. Quando estiveram juntos, no gelo, na última manhã deles no Distante Norte, o caçador Raposa-branca se virará para ele e dissera: “Você tem bons amigos entre os Corvos. Não se apresse em deixá-los quando estiver de volta à Floresta.”

Torak ficara espantado. O quanto Inuktiluk sabia ou adivinhava?

O rosto redondo abrira-se em um sorriso com um toque de tristeza. “A mim me parece que você é como urso-negro, que surge uma vez em mil invernos. Talvez nunca encontre paz. Mas fará amigos ao longo do cami-nho. E muitas terras conhecerão o seu nome.” Então ele colocou ambos os punhos sobre o coração e se curvou. “Cace bem, Torak. E que seu guardião o acompanhe.”

Na clareira, a comida cedeu lugar à cantoria e à nar-ração de histórias. De repente, Torak não agüentou mais. Quando ninguém estava olhando, ele escapou para o seu abrigo.

Jogando-se sobre a esteira de salgueiro, olhou para a fogueira na Entrada do abrigo pensando no que fazer.

— Qual é o problema? — perguntou Renn, fazen-do-o saltar. Ela estava parada do outro lado da fogueira. Ele achou que ela parecia tão assustada quanto ele pensa-va.

— Não está pensando em ir embora — disse ela. Ele hesitou. — Se eu for, eu lhe direi primeiro. Apanhando um graveto, ela atiçou o fogo.

— Do que você tem medo? — O que quer dizer com isso? — Há alguma coisa, posso sentir. Ele não respon-

deu. — Está bem — disse ela, jogando o graveto para

longe. — Vou adivinhar. Nas cavernas, você tinha sangue na testa. Disse que o pintaram. Foi isso... eles fizeram vo-cê tomar parte no sacrifício?

Foi um ótimo palpite, mas não o certo. Ele, porém, resolveu seguir com aquilo.

— Sim — confirmou, — A coruja. O primeiro dos nove caçadores. Eu a matei.

O rosto de Renn perdeu a cor. O coração de Torak quase parou. Como ela se sen-

tiria se soubesse o resto? Mas ela se recuperou depressa e forçou um dar de

ombros. — Afinal de contas, eu emplumo minhas flechas

com penas de coruja. Se bem que não mate uma para pe-gá-las, espero até achar uma coruja morta ou alguém me trazer uma. — Ela se deu conta de que falava depressa demais e pressionou os lábios. — Nós podemos ajeitar isso, Torak. Há meios de purificar você.

— Renn... — Você não precisa ir embora — disse com pre-

mência. — Isso não adiantará nada. Visto que ele não respondeu, ela insistiu. — Pelo menos espere até falar com Fin-Kedinn.

Jure que não irá embora enquanto não falar com Fin-Kedinn.

Seu rosto era tão franco e esperançoso. Ele jurou.

Quando Renn foi embora, ele pousou a cabeça nos joelhos. De repente, estava de volta ao gelo, com as mãos amarradas às costas. Seshru corria o dedo pela sua boche-cha. “Você nunca ficará livre de mim”, sussurrou em seu ouvido. Então ele sentiu o forte aperto de Thiazzi em seu ombro, forçando-o para baixo, e Seshru perfurava seu pei-to com uma agulha de osso, esfregando uma fedorenta tinta preta feita de ossos de caçadores mortos e o sangue dos Devoradores de Almas.

“Essa marca”, disse a meia-voz, “será como a ponta do arpão sob a pele da foca. Um movimento brusco e ela o arrastará, não importa o quanto você se debata...”

Abrindo a gola de seu gibão, Torak pôs o dedo na crosta de ferida sobre seu esterno. Ficou imaginando se seria capaz de mostrar aos Corvos — os Corvos, que con-fiavam nele — aquela marca em seu peito. O forcado de três pontas para apanhar almas.

A marca do Devorador de Almas.

QUARENTA E UM

Fin-Kedinn acordou Torak antes do amanhecer e

mandou-o ajudar a verificar as linhas de pescas. Ao sair do abrigo, ele encontrou Renn esperando seu tio. Ele sabia, pelos rostos dos dois, que ela contara ao Líder Corvo sua conversa da noite anterior.

Nada foi dito enquanto seguiam caminho por entre a Floresta adormecida. A neblina era espessa no vale;— ao longo da ribanceira, os galhos nus dos amieiros formavam uma delicada névoa roxa. Torak avistou Lobo ziguezague-ando entre as árvores. O único som era o Cabo-de-machado, que borbulhava ruidosamente sob o gelo que ainda encrostava suas margens.

Chegaram à parte plana, pantanosa do vale, onde o rio se alargava em charcos. Era através desses charcos que cordas de casca de árvore trançada estavam estendidas, com linhas com iscas deixando rastros na água.

A pescaria foi boa e em pouco tempo tinham pe-quenas pilhas de percas e bremas. Fin-Kedinn agradeceu aos espíritos das presas, então enfiou a cabeça de um pei-

xe na forquilha de um abeto para o guardião do clã. Depois disso, atiçaram uma fogueira adormecida

debaixo de um velho carvalho e iniciaram o trabalho, que causava dormência nos dedos, de destripar e escamar os peixes. Após cada peixe ser limpo, era enfiado pelas guel-ras em uma linha pendurada no carvalho, bem distante do alcance de Lobo.

Uma brisa surgiu. O carvalho adormecia profun-damente para senti-la, mas os pés de faia suspiraram e a-mieiros chocalharam seus pequeninos cones negros, taga-relando mesmo no sono.

Uma doninha em sua pelagem branca de inverno ergueu-se nas patas traseiras para cheirar o vento. Lobo empinou as orelhas e disparou em perseguição a ela.

Fin-Kedinn observou-o partir. Então virou-se para Torak e disse:

— Eu lhe falei certa vez do grande incêndio que dispersou os Devoradores de Almas.

Renn ficou paralisada com um peixe na mão. Torak retesou-se.

— Eu me lembro — retrucou ele cautelosamente. Raspa, raspa, raspa, prosseguiu a faca de chifre de

veado de Fin-Kedinn, espalhando escamas de peixe. — Seu pai o provocou — disse ele. A boca de Torak ficou seca. — A opala de fogo — informou o Líder Corvo —

era o centro do poder dos Devoradores de Almas. Seu pai a tomou. Ele a despedaçou.

Renn largou seu peixe. — Ele despedaçou a opala de fogo? — Então provocou o grande incêndio — disse Fin-

Kedinn. Fez uma pausa. — Um Devorador de Almas

morreu nesse incêndio. Morreu ao tentar apanhar um pe-daço da opala de fogo.

— O sétimo Devorador de Almas — murmurou Renn. — Andei pensando nisso.

Torak olhou para o calor vermelho das brasas e pensou em seu pai. Seu pai, que provocara o grande in-cêndio.

— Quer dizer então que meu pai não fugiu sim-plesmente.

— Ah, ele não era covarde — afirmou o Líder Corvo. — Era esperto também. Fez parecer que ele e sua companheira também morreram no incêndio. Então fugi-ram para a Floresta Profunda.

— A Floresta Profunda — repetiu Torak. No verão anterior, ele atingira seus limites. Lem-

brou-se das densas sombras sob as discretas árvores vigi-lantes. — Eles deviam ter ficado lá. Estariam seguros.

Com sua faca, Fin-Kedinn atiçou o fogo. Sob a luz cintilante, suas feições pareciam esculpidas em granito.

— Sim, eles deviam ter ficado com o povo de sua mãe. Deixá-lo foi sua ruína. — Olhou para Torak. — Mas eles foram traídos. O irmão de seu pai soube que continu-ava vivo. Daí em diante, os dois foram caçados. E sua mãe — inspirou profundamente —, sua mãe, se tivesse ficado, não colocaria em risco seu povo. Por isso, eles partiram. — Novamente, atiçou as brasas. — No verão seguinte, você nasceu.

— E ela morreu — completou Torak. O Líder Corvo não disse nada. Ele olhava o passa-

do, seus olhos azuis luzentes de dor. Torak virou a cabeça e olhou os vidoeiros que esti-

cavam seus galhos nus para o céu frio.

Lobo voltou, com a perna dianteira de uma lebre pendurada nas mandíbulas. Chapinhou no baixio, jogou a perna da lebre para cima, em seguida deu um salto espeta-cular e apanhou-a em pleno ar.

— A opala de fogo — disse Renn. — Você disse que ela foi feita em pedaços.

Fin-Kedinn alimentou o fogo com mais madeira. — Diga-me, Renn. Quando você a segurou, qual

era o tamanho dela? Torak contorceu-se, irritado. O que isso importava

agora? — Do tamanho de um ovo de pata — respondeu.

Ela prendeu a respiração. — Era apenas um pedaço! O Líder Corvo confirmou com a cabeça. — O pedaço de onde esse saiu era do tamanho do

seu punho. Houve um silêncio. Lobo continuava na margem,

devorando tranqüilamente a perna da lebre. Até mesmo os amieiros pararam de falar.

Torak disse: — Quer dizer que a pedra que se foi junto com a

Maga Morcego era apenas um pedaço. Podem existir mais?

— Existem mais — afirmou o Líder Corvo. — Pense, Torak. Há, pelo menos, mais uma que é do nosso conhecimento. Os Devoradores de Almas do outro lado do Mar devem ter tido uma, para ter feito o urso demônio que matou seu pai.

Torak pelejou para absorver isso. — Quantas mais no total? — Não sei — disse Fin-Kedinn. — Três — disse Renn em voz baixa. — Havia três.

Eles olharam para ela. — Três olhos vermelhos no escuro. Eu os vi em

meu sonho. Um levado pelo Mar. Outro pela Maga Mor-cego. E um... — parou. — Onde está o terceiro?

Fin-Kedinn abriu os braços. — Não sabemos. Torak ergueu a cabeça e observou os galhos retor-

cidos acima dele. Bem no alto — tão alto que não havia percebido até agora —, viu uma bola de visco. O carva-lho, deu-se conta, não estava dormindo, afinal de contas. Ali, acima dele, estava seu pequeno coração verde, sempre atento. Ficou imaginando que segredos ele saberia. Saberia a seu respeito? Teria visto a marca em seu peito?

Enfiando a mão dentro da parca, tocou a crosta da ferida. Essa marca por si só, colocava em perigo todos à sua volta, do mesmo modo como as tatuagens de raios de Renn a protegiam. E, em algum lugar da Floresta, ou no Distante Norte, ou além do Mar, os três Devoradores de Almas restantes tramavam: para encontrar o último peda-ço da opala de fogo; para encontrá-lo, Torak, o espírito errante...

— Renn — disse Fin-Kedinn, fazendo um movi-mento brusco. — Volte para o acampamento e conte a Saeunn sobre a opala de fogo.

— Mas eu quero ficar aqui — protestou Renn. — Vá. Preciso falar a sós com Torak. Renn bufou e levantou-se. De repente, Torak sentiu que era terrivelmente im-

portante falar com ela, antes que se fosse. — Renn — disse ele, puxando-a para o lado e fa-

lando a meia-voz para que Fin-Kedinn não ouvisse —, preciso que você saiba de uma coisa.

— O quê? — perguntou, irritada.

— Há coisas que eu ainda não lhe contei. Mas con-tarei.

Para sua surpresa, ela não revirou os olhos com impaciência. Remexeu na correia de sua aljava e olhou zangada.

— Ora, está bem — murmurou. — Todo mundo tem segredos. Até mesmo eu. — Em seguida, animou-se. — Isso quer dizer que você vai ficar?

— Não sei. — Devia ficar. Ficar com a gente. — Eu não me encaixo. Ela bufou. — Eu sei disso! Mas também não se encaixa em

qualquer outro lugar, não é mesmo? — Então deu-lhe o sorriso em que exibia todos os seus dentes, pendurou o arco no ombro e saiu por entre as árvores.

Por algum tempo, depois que ela se foi, nem Torak nem Fin-Kedinn falaram. O Líder Corvo espetou uma grande brema num graveto e colocou-a para assar nas bra-sas, enquanto Torak permanecia sentado, pensativo.

— Coma — disse Fin-Kedinn finalmente. — Não estou com fome. — Coma. Torak comeu — e descobriu que estava esfomeado.

Acabou com quase toda a brema antes de perceber que o Líder Corvo comera só um pouco.

Era a primeira vez em que estavam sozinhos desde que Fin-Kedinn os resgatara do gelo. Torak limpou a boca na manga e perguntou:

— Você está zangado comigo? Fin-Kedinn limpou sua faca na neve. — Por que eu deveria estar zangado?

— Porque fui procurar Lobo sem sua permissão. — Você não precisa de minha permissão. Você é

quase um homem. — Fez uma pausa e então acrescentou secamente: — E é bom que comece a agir como um.

Isso machucou. — O que eu deveria fazer, deixar que os Devorado-

res de Almas sacrificassem Lobo? Deixá-los cobrir a Flo-resta com demônios?

— Deveria ter voltado e procurado minha ajuda. Torak abriu a boca para protestar, mas o Líder

Corvo o silenciou com um olhar. — Você sobreviveu por sorte, Torak. E porque o

Espírito do Mundo quis. Mas a sorte acaba. O Espírito do Mundo desvia seus favores para outra parte. Você precisa ficar com o clã.

Torak permaneceu teimosamente calado. — Diga-me — pediu Fin-Kedinn. — Que rastros

consegue ver à sua volta? Torak olhou para ele. — O quê? — Você me ouviu. Intrigado, Torak disse-lhe. As marcas dos profun-

dos e morosos cascos de um auroque. Uma quantidade de buracos quase invisíveis, cada qual com uma pilha de ex-crementos de animais congelados no fundo, onde alguma tetraz amontoara para lhe fazer companhia.

Fin-Kedinn assentiu. — Seu pai lhe ensinou bem. Ele lhe ensinou a ras-

trear porque, com isso, aprende-se a ouvir: permanecer aberto ao que a Floresta lhe diz. Mas, quando ele era jo-vem, nunca escutava ninguém. Estava convencido de que tinha razão. Rastrear, ouvir — esse era o dom de sua mãe. — Fez uma pausa. — Talvez, ao lhe ensinar a rastrear, seu

pai tentava evitar que você cometesse os mesmos erros que ele cometeu.

Torak pensou a respeito. — Se partir agora — prosseguiu Fin-Kedinn —,

enfrentará três Magos de enorme poder. Você não terá a mínima chance.

Na ribanceira. Lobo havia terminado a perna da le-bre e agora sacudia o rabo para sua alma-nome na água. Fin-Kedinn observou-o.

— Um jovem lobo — disse ele — pode ser impru-dente. É capaz até mesmo de achar que pode derrubar sozinho um alce, mas esquece que basta apenas um coice para matá-lo. Entretanto, se ele tiver o bom senso de es-perar, viverá o bastante para derrubar muitos. — Virou-se para Torak. — Não estou mandando você ficar. Estou pedindo.

Torak engoliu em seco. Fin-Kedinn nunca lhe pedi-ra nada antes. Inclinando-se em sua direção, o Líder Cor-vo falou com uma incomum delicadeza.

— Algo o perturba. Diga-me o que é. Torak quis dizer. Mas não conseguiu. Finalmente,

murmurou: — A faca que você fez para mim. Eu a perdi. La-

mento. Fin-Kedinn leu a evasiva em seu rosto e suspirou. — Farei outra para você — prometeu. Com a ajuda

de seu cajado, ele se levantou. — Vigie a pescaria. Vou subir a colina para verificar as armadilhas. E, Torak... Haja o que houver de errado, é melhor você ficar aqui, com pessoas que... com seus amigos.

Quando ele se foi, Torak permaneceu junto à fo-gueira. Podia sentir a tatuagem dos Devoradores de Almas

arder através da parca. Você nunca ficará livre de nós... No baixio, Lobo encontrara uma nova presa: a car-

caça avariada de um corço que se afogara riacho acima e que agora passava flutuando lentamente. Lançou-se sobre ela, que afundou com o peso dele, levando-o para o fun-do. Ele emergiu, arrastou-se para a margem, sacudiu a á-gua do pêlo e tentou novamente. Mais uma vez, o veado afundou. Após a terceira tentativa. Lobo sentou-se, ganin-do baixinho. Um corvo sobrevoou a carcaça e riu dele.

Talvez a Maga Víbora estivesse com a razão, pen-sou Torak. Talvez eu nunca me livre dela.

Sentou-se mais aprumado. Mas ela nunca ficará livre de mim. Vocês agora sabem quem eu sou, disse ele silen-ciosamente aos

Devoradores de Almas, mas eu também sei quem são vocês. Eu sei com quem luto. E não estou só. Posso contar aos Corvos o que aconteceu. Eu contarei a eles. Não hoje, mas em breve. Posso confiar neles. Fin-Kedinn saberá o que fazer.

A brisa soltou um amontoado de neve dos galhos acima e, no mesmo instante, o sol saiu e transformou os flocos cadentes em pequeninos pedaços de arco-íris.

Lobo veio trotando pela ribanceira, trazendo o fresco, frio odor do rio. Eles tocaram os focinhos. Num impulso, Torak puxou para baixo a gola de sua parca e mostrou a Lobo a tatuagem de Devorador de Almas. Lo-bo deu-lhe uma cheirada e uma lambida, então afastou-se para farejar as escamas de peixe ao redor da fogueira.

Ele não se importou, pensou Torak, surpreso. Com uma nova sensação de esperança, ele olhou à

sua volta, Havia sinais de primavera por toda a parte. Pe-nugentos amentilhos prateados irrompiam dos pés de sal-

gueiro. A luz do sol brilhava nos agudos brotos de reben-tos de faia, empurrando-se através da neve em volta de seus pais.

Lembrou-se da oferenda na noite em que Lobo fo-ra levado. Ele pedira à Floresta para proteger Lobo. Ela o atendera. Talvez agora ela também o protegesse.

Perto do meio da tarde, Fin-Kedinn retornou, car-regando três galinhas do mato e uma lebre. Não olhou para Torak, mas este pôde perceber a tensão em seu rosto quando ele foi até o carvalho e começou a desamarrar as linhas com os peixes.

Torak levantou-se e passou a ajudar. — Quero ficar — disse ele. Os olhos azuis de Fin-Kedinn cintilaram. Pressio-

nou os lábios em um sorriso. — Ótimo — falou. — Isso é muito bom. Então colocou a mão sobre o ombro de Torak, a-

pertou-o e eles seguiram juntos de volta para o acampa-mento.

UMA PALAVRA SOBRE LOBO

No início de Irmão Lobo, Lobo tinha três luas de i-

dade. No início de Devorador de Almas, ele tem vinte luas e aparenta ser um lobo adulto, mas não o é, não em termos de experiência.

Quando andou com a alcatéia da Montanha do Es-pírito do Mundo, ele obteve parte das habilidades de caça de que precisaria para sobreviver, mas ainda tem muito a aprender.

E, embora dentro em breve venha a ser fisicamente capaz de gerar filhotes, não o fará por uns tempos. Muitos lobos só conseguem uma fêmea e iniciam uma família quando têm três anos de idade ou mais. Até então, agem freqüentemente como babás de seus irmãos e irmãs me-nores, cuidando deles, enquanto o resto da alcatéia está fora caçando.

Porque o peito de Lobo é estreito e suas pernas, compridas e finas, ele pode, com facilidade, andar rapida-mente sobre a neve profunda. Suas grandes patas agem

como sapatos de neve, permitindo-lhe correr sobre uma crosta de gelo, onde os ásperos cascos de um veado po-dem afundar facilmente.

Por ser inverno, o pêlo de Lobo é muito mais gros-so do que era em Espírito Errante, o que o faz parecer ainda maior. Sua pelagem tem duas camadas: a curta e fofa sub-pelagem, que aprisiona o ar e o isola do frio, e os compri-dos e ásperos pêlos de guarda, que o protegem de chuva, neve e arranhadores arbustos de junípero.

E por causa dessa formidável pelagem de inverno que Lobo pode enfrentar o Distante Norte sem sentir frio como Torak e Renn.

Diferentemente deles, Lobo tem uma resistência incrível. Até mesmo o seu andar é duas vezes mais veloz do que o de Torak (a não ser que ele ande propositada-mente devagar para deixar que Torak emparelhe), mas, na maioria das vezes, ele prefere o trote: um passo belo, flui-do, flutuante, que ele é capaz de manter por horas. E sua corrida, é claro, é muito mais veloz do que a de Torak.

Alguns dos sentidos de Lobo são muito melhores do que os de Torak, ao passo que outros são mais ou me-nos semelhantes. Não sabemos muita coisa sobre o senti-do do paladar de um lobo, embora saibamos que sua lín-gua pode sentir os mesmos tipos de sabores que nós: sal-gado, doce, amargo e azedo. Mas sabemos como Lobo saboreia carne, ou água, ou sangue.

Considera-se que a vista de um lobo é praticamente semelhante à nossa, embora ele seja melhor em distinguir tonalidades de cinzento e em enxergar no escuro. Tam-bém parece ser melhor em perceber movimentos — o que é útil para caçar na Floresta — e imagina-se que lobos não enxergam cores, pelo menos não tão bem quanto nós.

O sentido de audição de Lobo é melhor do que o de Torak. Ele pode ouvir sons que são agudos demais pa-ra Torak captar e suas grandes orelhas ajudam-no a apre-ender sons bem fracos. Isso explica em parte por que nem mesmo Torak jamais será capaz de apreender todas as su-tilezas da fala de Lobo ou se expressar tão bem quanto um lobo de verdade: porque ele não consegue reproduzir ou ouvir os agudíssimos latidos e ganidos, como Lobo. O sentido de olfato de Lobo é muito mais sensível do que o de Torak. Não se sabe exatamente o quanto, mas, a se jul-gar pelo número de receptores olfativos em seu comprido focinho, calcula-se que deve ser de mil a um milhão de vezes melhor.

Como todos os lobos, Lobo comunica-se através

da fala de lobo: uma altamente complexa combinação de sons, movimentos e odores.

Torak conhece mais disso do que nós, mas cientis-tas e observadores de lobos aprendem cada vez mais com o passar do tempo.

Quando usa a sua voz, Lobo não uiva simplesmen-te. Ele pode fazer todo tipo de outros ruídos, inclusive latidos, grunhidos, chiados, ganidos, rugidos e rosnados.

Ele também usa movimentos: desde grandes gestos, como empurrar com o corpo ou sacudir as patas, a deslo-camentos mais sutis dos olhos, focinho, orelhas, pêlos da

nuca, corpo, cauda e pelagem. Ele também usa seu cheiro para se comunicar, des-

pejando-o ou esfregando-o contra uma marcação (ou To-rak) — de um modo que nem mesmo Torak entende to-talmente.

E, é claro, quando quer dizer algo, pode ser que Lobo não use apenas um som, movimento ou cheiro, mas uma complexa combinação de vários deles, que muda de-pendendo de com quem ele fala ou de seu estado de âni-mo. Desse modo, se ele quiser rir para Torak, pode baixar a cabeça e achatar as orelhas, franzir o focinho e balançar a cauda, ao mesmo tempo que gane, pressiona com o fo-cinho e dá pequenas mordidas/cócegas no rosto e nas mãos de Torak. Tudo isso apenas para dizer alô!

Michelle Paver 2006

NOTA DA AUTORA O mundo de Torak é o de seis mil anos atrás: após

a Idade do Gelo, mas antes da expansão da agricultura na parte dele do mundo, quando o noroeste da Europa era apenas uma vasta Floresta.

As pessoas do mundo de Torak pareciam exata-mente como você ou eu, mas seu modo de vida era muito diferente. Elas não tinham escrita, metais ou a roda, mas não precisavam disso. Eram esplêndidos sobreviventes. Conheciam tudo sobre animais, árvores, plantas e pedras da Floresta. Quando queriam algo, sabiam onde encontrar ou como fazer.

Elas viviam em pequenos clãs e muitos deles se movimentavam bastante: alguns ficavam em acampamen-tos por apenas poucos dias, como o Clã do Lobo,— ou-tros, por toda uma lua ou uma estação, como os Clãs do Corvo e do Salgueiro; ao passo que ainda outros perma-neciam parados um ano inteiro, como o Clã da Foca. Por-tanto, alguns dos clãs mudaram de lugar desde os aconte-cimentos de Espírito Errante, como você verá no mapa modificado.

Quando eu pesquisava para Devorador de Almas, passei algum tempo em uma floresta coberta de neve nos contrafortes dos montes Cárpatos, na Romênia. Tive bas-tante sorte de ver pegadas de lobos, javali, veado, lince, texugo e muitos outros (embora, para meu grande alívio, os ursos ainda estivessem hibernando). Também observei corvos sobre uma carcaça e, por intermédio do meu guia, aprendi a forjar uma matança a fim de atrair essas aves muito inteligentes.

Para aprender sobre trenós puxados por cães, co-nheci alguns desses animais na Finlândia e, novamente, na Groenlândia, onde eles me levaram em várias divertidas (e congelantes) corridas pelo gelo. Para compreensão das vidas dos clãs do Gelo, estudei as habilidades tradicionais dos inuítes da Groenlândia e do norte do Canadá: seu modo de caçar, suas casas de neve e suas esplêndidas rou-pas de pele. Foi na Groenlândia que vivenciei em primeira mão o poder do vento e do gelo e — em uma memorável caminhada solitária — o terror de avistar um urso polar a distância.

Para chegar mais perto de ursos polares, fui a Churchill, no norte do Canadá, onde os observei descan-sar e brincar, de dia e à noite. É um privilégio ficar cara a cara com um urso polar e fazer contato visual com um animal a quem os inuítes do noroeste da Groenlândia chamam de pisugtooq, o Grande Perambulador. Creio que sempre serei assombrada pelo olhar daqueles medonhos, mas estranhamente inocentes, olhos escuros.

Quero agradecer a Christoph Promberger, do Car-pathian Large Carnivore Project da Transilvânia, por compartilhar parte de seu conhecimento sobre rastrea-mento, lobos e corvos; ao povo de Churchill, Manitoba, por me ajudar a chegar perto de ursos polares; ao povo do leste da Groenlândia, por sua hospitalidade, franqueza e bom humor; ao UK Wolf Conservation Trust, por alguns momentos estupendos com alguns lobos maravilhosos, e ao sr. Derrick Coyle, o Yeoman Ravenmaster da Torre de Londres,1 por compartilhar seu extenso conhecimento 1 Guarda responsável pelo bem-estar dos corvos da Torre de Lon-dres. (N. da T.)

sobre alguns corvos especiais. Como sempre, quero agra-decer ao meu agente, Peter Cox, por seus infalíveis entusi-asmo e apoio, e à minha maravilhosa editora, Fiona Ken-nedy, por sua imaginação, envolvimento e compreensão.

Michelle Paver

2006

Devorador de Almas é o terceiro livro das Crônicas das Trevas Antigas, que narram as aventuras de To-rak na Floresta e além e sua missão para derrotar os Devoradores de Almas. Irmão Lobo é o primeiro li-vro e Espírito Errante, o segundo. Haverá seis livros no total.

Esta obra é distribuída gratuitamente pelo Grupo Viciados em Livros para proporcionar o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler, co-mo os deficientes visuais. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condená-vel em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade são a mar-ca do compartilhamento, portanto distribua este livro livremente. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o ori-ginal, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras. Se quiser outros títulos nos procure: http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros ou escreva para o e-mail [email protected] Será um prazer recebê-lo em nosso grupo. Se o autor não concordar com a distribuição desta obra neste formato entre em contato conosco e não a distribuiremos no nosso grupo.

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros?hl=pt-BR