deus e o diabo na terra do sol- entregue

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DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL (por Leandro Rocha Saraiva, para Enciclopédia de Cinema – Itaú Cultural) Deus e o diabo na terra do sol (1964) é o segundo longa metragem de Glauber Rocha, e junto com Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Os fuzis (Rui Guerra, 1964), compõe o tríptico central da primeira fase do Cinema Novo (aquela que vai da virada da década até o golpe militar). O Cinema Novo já era um movimento consolidado e em ascensão, com seus primeiros curtas, e mesmo alguns longas – entre eles Barravento (1962), filme de estréia de Glauber - tendo boa aceitação em festivais europeus. Mais que isso, o ímpeto contestador e politizado dos cinemanovistas agitava a discussão sobre cinema no Brasil, e começava a ter alguma repercussão internacional. A polêmica era forte, dado o confronto com o cinema de estilo clássico e acabamento industrial, que ganhara impulso com a Palma de Ouro de O pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962). Glauber Rocha, com 25 anos no momento do lançamento de Deus e o Diabo, era o reconhecido líder do movimento, exercendo desde o começo da década intensa atividade como crítico e articulador de projetos da geração em ascensão. Deus e o diabo consagrou essa liderança, dada a repercussão nacional e internacional do filme. De modo praticamente simultâneo ao filme, Glauber preparou e publicou Revisão Critica do Cinema Brasileiro, livro no qual passa em revista a história de nosso cinema, sob uma ótima muito própria, na qual a imparcialidade sede lugar à proposição, julgando o que veio antes dele pelos valores do que propõe como futuro revolucionário para o cinema brasileiro. A ação de Glauber para a fundação do Cinema Novo se completaria no ano seguinte (1965), com sua apresentação em Gênova, de seu celebre manifesto “Estética da fome” . Neste texto, Glauber recusa o elogio europeu ao Cinema Novo como “primitivismo” ou “surrealismo tropical”, e aponta a fome, a pobreza nacional, como raízes da violência simbólica de um cinema revolucionário feito a partir da precariedade de condições materiais. A violência contra a linguagem cinematográfica estabelecida é expressão da necessidade de violência contra o colonialismo, diz ele,

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Page 1: Deus e o Diabo Na Terra Do Sol- Entregue

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL(por Leandro Rocha Saraiva, para Enciclopédia de Cinema – Itaú Cultural)

Deus e o diabo na terra do sol (1964) é o segundo longa metragem de Glauber Rocha, e junto com Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Os fuzis (Rui Guerra, 1964), compõe o tríptico central da primeira fase do Cinema Novo (aquela que vai da virada da década até o golpe militar).

O Cinema Novo já era um movimento consolidado e em ascensão, com seus primeiros curtas, e mesmo alguns longas – entre eles Barravento (1962), filme de estréia de Glauber - tendo boa aceitação em festivais europeus. Mais que isso, o ímpeto contestador e politizado dos cinemanovistas agitava a discussão sobre cinema no Brasil, e começava a ter alguma repercussão internacional. A polêmica era forte, dado o confronto com o cinema de estilo clássico e acabamento industrial, que ganhara impulso com a Palma de Ouro de O pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962).

Glauber Rocha, com 25 anos no momento do lançamento de Deus e o Diabo, era o reconhecido líder do movimento, exercendo desde o começo da década intensa atividade como crítico e articulador de projetos da geração em ascensão. Deus e o diabo consagrou essa liderança, dada a repercussão nacional e internacional do filme. De modo praticamente simultâneo ao filme, Glauber preparou e publicou Revisão Critica do Cinema Brasileiro, livro no qual passa em revista a história de nosso cinema, sob uma ótima muito própria, na qual a imparcialidade sede lugar à proposição, julgando o que veio antes dele pelos valores do que propõe como futuro revolucionário para o cinema brasileiro. A ação de Glauber para a fundação do Cinema Novo se completaria no ano seguinte (1965), com sua apresentação em Gênova, de seu celebre manifesto “Estética da fome” . Neste texto, Glauber recusa o elogio europeu ao Cinema Novo como “primitivismo” ou “surrealismo tropical”, e aponta a fome, a pobreza nacional, como raízes da violência simbólica de um cinema revolucionário feito a partir da precariedade de condições materiais. A violência contra a linguagem cinematográfica estabelecida é expressão da necessidade de violência contra o colonialismo, diz ele, apropriando-se esteticamente do pensamento do argelino Franz Fanon (autor de Os condenados da terra).

Deus e o diabo é a realização deste programa artístico. O filme narra a trajetória do vaqueiro Manoel (Geraldo del Rey) e de sua

mulher Rosa (Ioná Magalhães). O homem, reagindo à exploração por parte do proprietário do rebanho que conduz, que lhe nega o direito às rezes prometidas, mata o patrão. Na represália dos jagunços, sua mãe é assassinada, antes que ele seja capaz de matar os agressores.

Depois desta primeira explosão de violência, o casal busca refúgio junto ao grupo de seguidores do Beato Sebastião (Lídio Silva), personagem que sintetiza o messianismo nordestino, que teve em Antônio Conselheiro sua figura histórica mais marcante. A pregação de Sebastião anuncia a transformação do mundo – a célebre promessa de que “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão” – e o fim do sofrimento dos pobres.

O movimento preocupa os fazendeiros e a Igreja, e para eliminar a ameaça um matador de aluguel é contratado: Antônio das Mortes (Maurício do Vale). Provavelmente o mais intrigante dos personagens de Glauber, ele é contraditório e torturado, ligado ao sofrimento popular, mas a soldo dos poderosos. Na caracterização deste matador, a imaginação glauberiana se mostra mais mítica do que psicológica.

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Antônio das Mortes é mais que um homem, é a encarnação de forças históricas, talvez cósmicas.

Enquanto isso, na comunidade messiânica de Monte Santo, Manoel se torna o braço armado do líder, enveredando por um fanatismo que, apesar dos apelos contrários de Rosa, os conduz até o limite do sacrifício humano, de um bebê.

O ato desmesurado funciona como nova ruptura: Rosa explode em sua revolta contra essa nova dominação, e mata Sebastião. Ao mesmo tempo, Antônio das Mortes ataca a comunidade de Monte Santo e mata todos os fiéis, deixando vivos apenas Manoel e Rosa. A ação de Antônio tem as feições do mito: ele dizima o grupo sozinho, multiplicando sua figura na tela através da montagem.

Novamente o casal é jogado no mundo pela ação violenta. Vagam pela caatinga, guiados por Cego Júlio, cantador e aedo dessa epopéia, que se materializa como personagem neste momento da narrativa.

A última etapa de sua jornada começa quando encontram Corisco (Othon Bastos) , sobrevivente do massacre do grupo de cangaceiros de Lampião. Corisco e seu bando sabem que estão com seus dias contados, e é neste clima de desespero que Manoel e Rosa se juntam a eles. Sempre exasperado, Corisco associa reflexão e violência. Numa versão profana e agônica do milenarismo de Sebastião, o cangaceiro anuncia o fim do seu mundo, enquanto promove seus próprios rituais de sacrifício. Sua vitima, entretanto, é terrena: o bando invade uma fazenda e imola seu dono. A espiral auto-destrutiva coloca a todos numa espécie de transe, e novamente cabe a Rosa clamar pelo retorno à terra. Desta vez, entretanto, ela o faz não atacando o protagonista delirante, mas unindo-se física e amorosamente a ele, e agredindo ao marido, que resiste a abandonar a fé em prol da violência. Nesta história plena de alegorias, a mulher do povo é fecundada pela face violenta da revolta popular.

A ruptura final virá pelas armas de Antônio das Mortes. Num encontro com Cego Júlio, em frente ao sertão de Canudos e seus mortos, Antônio, que encarna a necessidade de superação histórica do messianismo e do cangaço, afirma que só uma guerra maior poderá libertar a terra “ do deus e do diabo”. Vai então em busca de Corisco, e confronto se dá no estilo dos duelos mitológicos, com o cangaceiro morrendo enquanto grita sua célebre divisa: “ mais forte são os poderes do povo!”.

A corrida final de Manoel e Rosa pelo sertão, antecedendo ao corte final, que salta par ao mar e realiza, imaginariamente, a profecia do Beato (o sertã virando mar), sintetiza em um movimento desesperado o vetor que conduz o filme.

Deus e o diabo desrespeita qualquer convenção realista. Sua alta teatralidade busca uma representação sintética da experiências histórica que, nos termos do filme, avançaria através de sucessivas rupturas com formas de consciência popular -messianismo e cangaço – que prefigurariam a libertação revolucionaria.

O esquema narrativo do filme combina, dialogicamente, formas eruditas e populares, associando uma filosofia dialética da História - que move os personagens de um modo que ultrapassa suas consciências imediatas-, com o explícito recurso à literatura de cordel.

Baseado em parcos recursos de produção, o estilo original que forma esta síntese conflitiva é agressivo e pulsante. Rompendo com o desenvolvimento equilibrado da trama, a narração avança aos saltos, e a mise-en-scène oscila entre momentos de acúmulo de tensão e vertiginosas e descontínuas explosões de violência, temática e formal, através de interpretações brechtianas, faux raccords, montagens verticais, quase sempre com uso da câmera na mão. A câmera de Glauber é tátil, documental, acompanhando de modo vertiginoso uma encenação fortemente teatralizada.

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Deus e o diabo teve uma recepção de crítica tão bombástica quanto seu estilo, constituindo-se como verdadeiro evento cultural já no primeiro momento. As principais analises contemporâneas ao lançamento foram reunidas no livro Deus e o Diabo na Terra do Sol, publicado pela Civilização Brasileira. Desde então, o filme é referência obrigatória em qualquer estudo do cinema brasileiro moderno. Desta fortuna crítica, destacam-se dois livro clássicos da crítica cinematográfica nacional: Brasil em tempo de cinema, de Jean Claude Bernardet (1967) e Sertão Mar – Glauber Rocha e a estética da fome, de Ismail Xavier (1983). O primeiro, centrado na interpretação sociologizante dos personagens dos filmes do período, toma Antônio das Mortes como a figura mais emblemática de toda aquele filmografia uma expressão da classe media brasileira, ambígua, dividida entre o povo e as oligarquias, opressora mas com esperanças de transformação.

Já o segundo, escrito quase 20 anos depois, é um estudo comparativo dos dois primeiros longas de Glauber Rocha cotejados com filmes nacionais seus contemporâneos, de estilo clássico. Deus e o diabo é analisado em detalhes formais, em seu movimento narrativo geral para, afinal, se chegar a interpretação do lugar deste filme, e da estética da fome, dentro da história cultural brasileira.

FICHA TÉCNICA

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)Direção: Glauber RochaRoteiro: Glauber Rocha e Walter Lima Jr.Fotografia: Waldemar LimaMúsica original: Sérgio RicardoMontagem: Glauber Rocha e Rafael Justo ValverdeElenco: Geraldo Del Rey (Manuel); Yoná Magalhães (Rosa); Maurício do Valle – (Antonio das Mortes); Othon Bastos (Corisco), Lídio Silva (Sebastião); Sônia dos Humildes (Dada); Marrom (Cego Julio); Antônio Pinto (Coronel); João Gama (Padre); Milton Roda (Coronel Moraes)

BIBLIOGRAFIA

AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. 3.ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.MONZANI, Josette. Gênese de Deus e o diabo na terra do sol. São Paulo / Salvador, Annablume / Fapesp / Fundação Gregório de Mattos / UFBA, 2006.ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963. (2.ed.ampl. São Paulo, Cosac & Naify, 2003.)ROCHA, Glauber. "Estética da fome", Revista Civilização Brasileira, n. 3, jul. 1965. Reproduzido em ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. São Paulo. Cosac&Naify, 2006. pp 63-67XAVIER, Ismail. Sertão mar - Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo, Brasiliense, 1983.

CÓPIAS

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Cinemateca BrasileiraCinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM-RJ)