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1 DESPROFISSIONALIZAÇÃO JORNALÍSTICA: RECONTEXTUALIZAÇÃO DA PRÁTICA SOCIAL DE PRODUÇÃO INFORMATIVA APÓS A DERRUBADA DA EXIGÊNCIA DO DIPLOMA PARA EXERCÍCIO DO JORNALISMO MORAIS, Anielle Aparecida Fernandes de 1 MARTINS, Paulo Antonio Rodrigues 2 RESUMO O recrudescimento dos meios digitais e da participação brasileira na utilização da internet desencadeou, nos últimos anos, um significativo aumento da atuação de pessoas da sociedade civil como produtores de informação e como comunicadores sociais de questões públicas. Segundo um relatório divulgado em 2013 pelo ComScore, instituto de pesquisa americano, o Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de acesso à internet. A consolidação na web da chamada “blogosfera” e das redes sociais como veículos de informação apresentam-se como variáveis de um processo de reconfiguração da atividade de produção informativa na sociedade contemporânea (KELLNER, 2001). De fato, jornalistas, blogueiros e usuários de redes sociais guardam características conceituais díspares, no entanto, mais do que a caracterização exaustiva dos papéis exercidos por esses três atores sociais, interessa-nos compreender o alcance e os novos paradigmas da atividade de comunicar com a revogação, em 2009, da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) e do Decreto-Lei 972/69. O último impunha a necessidade de diploma e de registro profissional para o exercício do jornalismo no país. Em nosso estudo, preconizamos que a conjuntura instaurada após o evento apresentado, entre outras coisas, remonta o cenário da atividade de informar, desmaterializa a profissionalização da atividade jornalística, reconfigura os conceitos de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa, além de redesenhar novas formas de responsabilização civil e criminal por atos que excedem o direito de informar (RIZZARDO, 2013). PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Sociedade; Direito; Responsabilidade Civil; Responsabilidade Criminal. Introdução A produção, circulação e consumo de informação na contemporaneidade exige que voltemos nossos olhos para os processos profissionais que regem o exercício da atividade jornalística no Brasil. O jornalismo é, há muito tempo, objeto de estudo da antropologia, sociologia, linguística, psicologia e de outras áreas de conhecimento. O campo da comunicação, notadamente do jornalismo, apresenta-se como um lócus crucial para as teorizações que se preocupam com os problemas ideológicos e de mercado, que se transformam no dia a dia e no curso das relações socioculturais, políticas e econômicas da época em que se inscrevem. 1 Graduada em Comunicação Social/Jornalismo; Mestre em Letras; Professora dos Cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Faculdade Objetivo Rio Verde (GO). E-mail: [email protected] 2 Graduado em Direito; Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento; Professor do Curso de Direito da Faculdade Objetivo Rio Verde (GO). E-mail: [email protected]

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DESPROFISSIONALIZAÇÃO JORNALÍSTICA: RECONTEXTUALIZAÇÃO DA

PRÁTICA SOCIAL DE PRODUÇÃO INFORMATIVA APÓS A DERRUBADA DA

EXIGÊNCIA DO DIPLOMA PARA EXERCÍCIO DO JORNALISMO

MORAIS, Anielle Aparecida Fernandes de 1

MARTINS, Paulo Antonio Rodrigues2

RESUMO

O recrudescimento dos meios digitais e da participação brasileira na utilização da internet

desencadeou, nos últimos anos, um significativo aumento da atuação de pessoas da sociedade

civil como produtores de informação e como comunicadores sociais de questões públicas.

Segundo um relatório divulgado em 2013 pelo ComScore, instituto de pesquisa americano, o

Brasil ocupa a quinta posição no ranking mundial de acesso à internet. A consolidação na web

da chamada “blogosfera” e das redes sociais como veículos de informação apresentam-se

como variáveis de um processo de reconfiguração da atividade de produção informativa na

sociedade contemporânea (KELLNER, 2001). De fato, jornalistas, blogueiros e usuários de

redes sociais guardam características conceituais díspares, no entanto, mais do que a

caracterização exaustiva dos papéis exercidos por esses três atores sociais, interessa-nos

compreender o alcance e os novos paradigmas da atividade de comunicar com a revogação,

em 2009, da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) e do Decreto-Lei 972/69. O último impunha a

necessidade de diploma e de registro profissional para o exercício do jornalismo no país. Em

nosso estudo, preconizamos que a conjuntura instaurada após o evento apresentado, entre

outras coisas, remonta o cenário da atividade de informar, desmaterializa a profissionalização

da atividade jornalística, reconfigura os conceitos de liberdade de expressão e de liberdade de

imprensa, além de redesenhar novas formas de responsabilização civil e criminal por atos que

excedem o direito de informar (RIZZARDO, 2013).

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo; Sociedade; Direito; Responsabilidade Civil;

Responsabilidade Criminal.

Introdução

A produção, circulação e consumo de informação na contemporaneidade exige que voltemos

nossos olhos para os processos profissionais que regem o exercício da atividade jornalística

no Brasil. O jornalismo é, há muito tempo, objeto de estudo da antropologia, sociologia,

linguística, psicologia e de outras áreas de conhecimento. O campo da comunicação,

notadamente do jornalismo, apresenta-se como um lócus crucial para as teorizações que se

preocupam com os problemas ideológicos e de mercado, que se transformam no dia a dia e no

curso das relações socioculturais, políticas e econômicas da época em que se inscrevem.

1 Graduada em Comunicação Social/Jornalismo; Mestre em Letras; Professora dos Cursos de Jornalismo e

Publicidade e Propaganda da Faculdade Objetivo – Rio Verde (GO). E-mail: [email protected] 2 Graduado em Direito; Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento; Professor do Curso de

Direito da Faculdade Objetivo – Rio Verde (GO). E-mail: [email protected]

2

Sob essa perspectiva, o presente trabalho pretende refletir sobre os aspectos conjunturais que

norteiam a profissionalização/desprofissionalização3 da atividade jornalística no Brasil,

especialmente após a revogação da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) e do Decreto-Lei 972/69.

Preconizamos um estudo sobre o impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal no que

concerne à derrubada da lei e do decreto mencionados anteriormente e que resultou na

dispensa de exigência de diploma para a prática do jornalismo no Brasil.

O estudo aqui realizado atravessa uma discussão sobre a instabilidade dentro do Direito no

que se refere às decisões relacionadas à prática de atos ilícitos no campo da produção de

informação. De maneira mais específica, partimos do entendimento de que as decisões de

âmbito jurídico relacionadas à prática do jornalismo refletem, de maneira pungente, a

instabilidade vivenciada pela própria profissão jornalística.

1. A profissionalização jornalística

As teorias que analisam o profissionalismo (Dubar, 2005), consideram que a existência de

uma profissão depende, crucialmente, do controle que esta profissão exerce sobre sua própria

base cognitiva (circunscrita, para nós neste trabalho, na esfera deontológica4). Para o

entendimento deste cenário, basta uma comparação com o Direito e a Medicina, profissões

regidas por códigos deontológicos, conselhos profissionais e códigos de ética.

O conhecimento abstrato, controlado pelos grupos profissionais, define uma profissão,

dimensiona novas problemáticas e afirma a legitimidade do campo profissional em questão

(DUBAR, 2005). No processo de aquisição, aprofundamento e certificação do conhecimento

abstrato, o conhecimento acadêmico e a formação científica em escolas especializadas

despontam como alguns dos critérios de afirmação social de uma profissão.

Conforme alerta Traquina (2005), a especialização de um campo profissional e sua

consequente diferenciação de outros campos profissionais implicam no domínio de uma

linguagem especializada e diferenciada em relação aos “não profissionais”. Desse modo, a

3 Neste trabalho, o termo desprofissionalização se filia ao conjunto de fatores que resultam na desintegração

social da profissão jornalística a partir, por exemplo, do fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício da

profissão, ocorrida em 2009, mediante decisão do Supremo Tribunal Federal. 4 Grifo nosso.

3

especialização significa autoridade e autonomia para aqueles que se dedicam a uma

determinada ocupação.

Greenwood (apud Traquina, 2004) elenca cinco atributos necessários à caracterização de uma

ocupação como profissão, a saber: 1) a existência de um corpo sistemático de teorias que

servem de base para a prática; 2) a preponderância de um sentimento de autoridade

profissional; 3) a ratificação pela comunidade da autoridade dos “agentes especializados”,

inclusive de seu poder de exigir controle sobre a admissão de novos profissionais; 4) a

existência de um código regulador de ética formal e também de um código informal; 5) a

existência de uma cultura profissional.

Informar é diferente de comunicar, embora a produção informativa seja um processo inscrito

dentro dos atos de comunicação. A comunicação sempre foi uma necessidade pessoal e social,

existente já em sociedades primitivas. À comunicação coube a função social de tornar mais

humanas as relações interpessoais, transmitir a ideia de comunidade para os seres humanos e,

além disso, estimular o intercâmbio de experiências sociais e culturais. Informar, por outro

lado, é um trabalho mais restrito à transmissão de dados, relatos e fatos reais. O trabalho de

informar requer, nessa perspectiva, o exercício de uma tarefa elaborada e de valores como

criatividade, planejamento, administração e avaliação do processo informativo. Requer,

portanto, um saber deontológico.

Os problemas da profissionalização jornalística perpassam, dentre outras coisas, o

reconhecimento/auto-reconhecimento, a legitimidade e a afirmação do poder de sua base

cognitiva e deontológica. A afirmação de que um jornalista que se intitula jornalista, mas não

escreve em um jornal, é, ainda assim, jornalista, deságua na conclusão de que basta escrever

no jornal para ser jornalista. Sobre a questão, Correia (2009, p. 5), assevera:

“Numa sociedade extremamente complexa, uma atitude desse gênero dificilmente

proporciona a emergência consistente de um saber reflexivo, isto é, um saber que questione

o saber estabelecido e, particularmente, interrogue as rotinas solidificadas (...) Outro risco é

o de tornar a discussão sobre a profissão, a gestão dos seus conflitos e a definição dos seus

instrumentos conceptuais e das suas práticas, algo que se torna erosivo para a própria

identidade da profissão por ser discutido em instâncias de poder e de saber que lhe são

alheias”.

4

A legitimidade de uma profissão se assenta também no esforço de seus profissionais para

reconhecerem instituições educacionais e formas de ensino para estandardização da base

cognitiva necessária ao exercício profissional. No caso do jornalismo no Brasil, assim como

ocorre em outros países, o surgimento de escolas de formação não esteve associado ao esforço

de profissionais de campo, mas de acadêmicos que decidiram aplicar ao domínio jornalístico,

domínios epistemológicos pré-existentes como, por exemplo, as Ciências Sociais e Humanas,

Letras e Humanidades e Ciências da Comunicação (BENEDETI, 2009).

Segundo Benedeti (2009), a forma como o jornalismo se institucionalizou nas sociedades

modernas, está relacionada com o seu papel democrático. Nesse curso, a atividade jornalística

ganha notoriedade e relevância social por: 1) proporcionar um espaço plural e com

abrangência de massa para o debate das questões de interesse público (fórum público

midiático); 2) produzir informações plurais voltadas para o interesse público.

A informação produzida pelo jornalismo também orienta, emociona, diverte, rompe

preconceitos e expõe curiosidades, além de informar. Essa relevância social exigiu do

jornalismo e da própria sociedade um esforço de normatização da atividade, no campo

profissional e legal, a fim de resguardar o interesse da coletividade (BENEDETI, 2009,

p.22).

Contudo, como afirma Traquina (2005) a história do jornalismo no ocidente tem sido um

processo de profissionalização, lento e difícil, no qual a procura de estatuto social e de

legitimidade por parte dos jornalistas constituem objetivos essenciais.

1.1. O saber jornalístico: de que conhecimento estamos falando?

Como outras atividades profissionais existentes no Brasil, historicamente, o jornalismo foi

consolidando critérios, valores e práticas para definir técnicas e procedimentos. Esses

parâmetros se constituíram e delinearam ao longo dos anos, em consonância não apenas com

as demandas dos públicos, mas também em congruência com aspectos comerciais e de

moralidade pública.

Dentro desse quadro de entendimento, destacamos, para efeitos de composição deste trabalho,

três procedimentos inerentes ao escopo de rotinas jornalísticas, o que também pode ser

entendido como o saber jornalístico. São eles: 1) valores-notícia; 2) news judgement, 3) saber

de procedimento.

5

O saber jornalístico está relacionado ao reconhecimento de acontecimentos que possuem valor

como notícia, a partir do que se denomina como critérios de noticiabilidade e valores-notícia

(Traquina, 2005). Sob tal prerrogativa, é considerada notícia aquilo que atende a um conjunto

de critérios que, embora sejam múltiplos e apresentem variações conforme o perfil das

organizações jornalísticas, se comportam como definições consensuais entre os jornalistas.

Os valores-notícia indicam a noticiabilidade dos fatos, isto é, são elementos que sugerem

aquilo que tem valor (o que é significativo, relevante, interessante) para se tornar notícia

(valor de seleção). Os valores-notícia ditam o que tem importância na elaboração de cada

notícia (valor de construção).

O news judgement, termo cunhado por Tuchman (apud Traquina, 1999), designa um

conhecimento sagrado ou a capacidade que o jornalista possui e que o diferencia das outras

pessoas/profissionais. Segundo o autor, o news judgement, na realidade, não é mais do que

uma habilidade profissional e como tal, está fundamentada em questões importantes para a

atividade profissional do jornalista. Essa não é uma habilidade secreta, mas assim como todos

os procedimentos profissionais, está restrita ao domínio do grupo profissional que a criou.

O saber de procedimento, por sua vez, associa-se à identificação e verificação dos dados

utilizados para a construção de relatos jornalísticos e ao conhecimento das regras que regem a

relação entre jornalistas e fontes de informação. Nesse caso, o que está em questão, é a

competência avaliativa e o rigor investigativo do jornalista para lidar com as informações que

manuseia no desempenho do seu trabalho.

1.2. Diploma para jornalistas: um impasse jurídico

Em contraste com o que foi dito até aqui, a respeito da incursão do conhecimento jornalístico

na sociedade contemporânea e a profissionalização da atividade, muitas incertezas, de ordem

jurídica, se apresentam em torno deste campo profissional. Tais incertezas resultam em um

estremecimento dos limites da profissão.

A constituição brasileira julga que liberdade de expressão e direito à informação são direitos

amplos. Com base nisso, o Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2009, extinguiu

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(por 8 votos contra 1) a obrigatoriedade de diploma para obtenção do registro de jornalista,

fragilizando potencialmente a regulamentação profissional do campo e tornando bastante

flexíveis as regras para a entrada no mercado de trabalho do jornalismo.

A decisão do STF atendeu ao Recurso Extraordinário 511.961, movido pelo Sindicato das

Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp) e pelo Ministério Público

Federal (MPF). Gilmar Mendes, designado relator do caso, entendeu que o Decreto-Lei

972/69, editado durante a ditadura militar, o qual impôs o diploma obrigatório, afrontava a

Constituição Federal de 1988.

Em julho de 2009, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) elaborou uma proposta de

emenda constitucional (PEC 33/2009) na tentativa de neutralizar a decisão do Supremo

Tribunal Federal. Em novembro de 2011, a PEC foi aprovada em primeiro turno no senado e,

em 6 de agosto de 2014, o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional emitiu

parecer favorável às Propostas de Emenda à constituição 33/2009 e 386/2009, que

determinam a exigência de diploma para exercício da profissão de jornalista.

Os constantes ataques políticos à Lei de Imprensa contribuíram, e continuam a contribuir,

para disseminar dúvidas a respeito dos limites de ação para os jornalistas. As transformações

das relações de trabalho, a falta de unidade da categoria e as mencionadas incertezas jurídicas,

têm desestabilizado as fronteiras que ajudam a configurar a profissão de jornalista no país. Há

ainda outro fator agravante: os muitos impactos e transformações que o jornalismo vem

passando nas últimas décadas por conta de avanços tecnológicos.

No escopo desses acontecimentos, vale ressaltar um caso curioso. Embora o STF tenha

julgado inconstitucional a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão no Brasil,

o mesmo órgão publicou, em 11 de outubro de 2013, um edital de concurso público para a

função de ‘Analista Judiciário – Comunicação Social’, cujos requisitos para investidura no

cargo eram: “Diploma, devidamente registrado, de curso de nível superior de graduação em

Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, fornecido por instituição de ensino

superior reconhecida pelo MEC e registro na Delegacia Regional do Trabalho”.

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Embora tenha julgado inconstitucional a obrigatoriedade do diploma para exercício do

jornalismo, para a Suprema Corte, o cumprimento de atividades relacionadas à produção de

informação, dentro do órgão, deve ser exercida, ainda, por alguém tecnicamente preparado,

portanto, um profissional.

2. A responsabilização jurídica de profissionais e não profissionais no âmbito virtual

No campo da comunicação social, o direito à liberdade de expressão e à honra, assegurados

pelo artigo 5º da Constituição Federal, podem entrar em colisão, notadamente, quando

profissionais da comunicação expressam suas opiniões nos meios midiáticos mais

tradicionais. Em um ambiente institucionalizado coexistem filtros e moderadores eficazes,

denominados como conselhos editoriais que contribuem, sobremaneira, para evitar, ou pelo

menos minimizar, a prática de atos ilícitos relacionados à ofensa e à imagem de fontes e

personagens de narrativas jornalísticas.

O conselho editorial perpassa, entre outras coisas, a consideração, no ato de produção

jornalística, dos valores-notícia, do news judgement e do saber de procedimento, tal como

apresentado no item 1.1 deste trabalho. Os três elementos ditam aquilo que é noticiável ou não

dentro da perspectiva deontológica da atividade prática do jornalismo.

Por outro lado, a decisão do STF, que dispensou a exigência do diploma para a prática da

atividade jornalística no Brasil, promoveu a abertura para o exercício pleno da manifestação

de ideias e opiniões em nosso país. Não obstante, também facilitou o exercício abusivo de

direitos e a propagação de ofensas e inverdades pelos não profissionais da área de

comunicação.

No Brasil é ainda incipiente a regulamentação jurídica que prevê punição, tanto a

profissionais quanto aos não profissionais, para atos ilícitos praticados no ambiente virtual.

Alguns avanços puderam ser percebidos nos últimos anos no campo do Direito, em direção à

responsabilização dos atores incumbidos de produção informativa ilícita em veículos

informativos institucionalizados e/ou na rede mundial de computadores.

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Exemplo disso, no âmbito civil, foi a aprovação do Marco Civil da Internet (Lei nº

12.965/14), em abril de 2014, cuja promessa é contribuir para a responsabilização de

provedores e produtores de informações levianas e inverídicas.

No que diz respeito ao âmbito penal, a Lei 12.737/2012, mais conhecida como Lei Carolina

Dieckmann, foi sancionada em novembro de 2013 e passou a tipificar como crime a conduta

de:

Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante

violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir

dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou

instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. Pena: 03 (três) meses a 01 (um) ano de

detenção. (LEI 12.737/2012)

A responsabilidade civil é regulada nos arts. 186 e 927, do Código Civil brasileiro.

Basicamente, todo aquele que comete ato ilícito (contra a lei civil) e cause dano (material e/ou

moral) a outrem é obrigado a reparar o prejuízo. A responsabilização civil acarreta uma

condenação sempre patrimonial e consiste no pagamento de uma indenização à vítima pelos

danos sofridos. (RIZZARDO, 2009)

Entretanto, as penas atribuídas para os crimes descritos nesta lei são relativamente brandas, o

que não têm inibido algumas pessoas de cometerem ilegalidades na esfera de produção

informativa.

Em sua decisão, o STF considerou o jornalismo uma ocupação na qual liberdade de expressão

e liberdade de profissão têm a mesma natureza. Baseado na ideia de que em um país

democrático não deve haver regulamentação prévia da liberdade de expressão, o tribunal

supremo decidiu que não deve existir nenhum tipo de regulamentação estatal na profissão de

jornalista. No jornalismo, especificamente, a profissão é relacionada à liberdade de expressão,

imperando, portanto, o princípio constitucional de não interferência do Estado no setor.

Alguma interferência seria caracterizada como censura e crime contra a liberdade de

expressão no país. Essa é a opinião dos magistrados (NASCIMENTO, 2011).

As disputas judiciais em torno da obrigatoriedade do diploma para o exercício legal da

profissão refletem, de um lado, a relação da profissão com o Estado e com o mercado e, de

outro lado, as complexas práticas sociais que se inserem/modificam com as tecnologias e as

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oportunidades de manifestação de opinião. Via de regra, no Direito, as decisões proferidas

dialogam com costumes sociais enraizados e amadurecidos. Isso revela que quanto mais

regulares forem as práticas, tanto mais definidas e maduras serão as regras do jogo e o tipo de

verdade jurídica que elas criam. Para o Direito, é mais importante estabelecer uma verdade

controlável, uma vez que esta verdade possibilita a pacificação das relações sociais.

Ora, com a instabilidade vivenciada pela profissão ao longo de 13 anos e a crescente

desvalorização do saber deontológico daqueles que informam, o Estado de Direito não

conseguiu, por força de sua dificuldade de jurisdicionar relações sociais instáveis (temerárias),

construir uma verdade jurídica que seja capaz de estabelecer paradigmas claros na distinção

da responsabilização de profissionais e não profissionais da área jornalística. Contudo, a

aprovação do Marco Civil e da Lei Carolina Dieckman, citadas anteriormente, evidenciam a

construção de relações jurídicas mais previsíveis e seguras. Entretanto, constitui-se ainda

como um processo em formação.

A instabilidade replicada no Direito, fruto da própria instabilidade da prática profissional

jornalística, tende a perdurar até o momento em que a pacificação social não estiver

comprometida. Em 2013, a Polícia Federal e o Ministério Público registraram mais de 240 mil

crimes virtuais no Brasil (Rodrigues, 2014), número expressivo para um país onde a

popularização do uso da internet ocorreu há pouco mais de uma década. Em 2013, o instituto

de pesquisa americano, ComScore, divulgou um relatório informando que o Brasil já

ocupava, naquele ano, a quinta posição no ranking mundial de acesso à internet.

Na ausência de uma legalidade específica, os tribunais têm estendido a responsabilidade

tradicional dos profissionais para os não profissionais. Os internautas não profissionais

(proprietários de blogs ou de páginas em redes sociais) podem assumir responsabilidades civis

e criminais quanto ao conteúdo do que é divulgado em suas plataformas, devendo, por esta

razão, exercer um policiamento de suas próprias opiniões, além de uma filtragem do conteúdo

produzido por terceiros. No curso dessas discussões, emerge a seguinte questão: Um código

deontológico, consistente e iluminado pelo saber reflexivo do jornalismo, não seria o

instrumento necessário para prevenir e inibir ilícitos de ordem de produção informativa?

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À medida que as plataformas de informação deixam de ser veículos de expressão e opiniões

individuais ou de pequenos grupos e se constituem como uma instituição social, eles passam a

compartilhar valores profissionais, princípios éticos e, principalmente, responsabilidades. A

principal atividade desenvolvida por um jornalista, no sentido estrito do termo, é a apuração

criteriosa de fatos, que são então transmitidos à população segundo critérios éticos e técnicas

específicas que prezam a imparcialidade e o direito à informação.

3. Caso Guarujá Alerta: a informação produzida por não profissionais

O aproveitamento jornalístico da internet como meio de difusão permitiu o aparecimento de

atividades parajornalísticas5 (como a produção de blogs e páginas em redes sociais) que têm

produzido um forte impacto no modo como se pensa a profissão. A internet transformou as

condições de agendamento e de seleção da informação e destronou o jornalista do seu papel

de detentor do procedimento que versa sobre ‘como agir para conseguir uma notícia ou lidar

com uma fonte’.

Em maio de 2014, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi linchada por moradores motivados

por falsos alertas e denúncias inverossímeis publicadas a partir de uma fanpage chamada

"Guarujá Alerta", hospedada no perfil do Facebook. O perfil circulou um retrato falado de

uma mulher que sequestrava crianças para ritual de magia negra. A imagem divulgada no

retrato falado era, na verdade, de uma acusada de sequestro no Rio de Janeiro. Fabiane foi

confundida com a mulher, espancada e morreu dois dias depois do ocorrido.

A página, com mais de 55 mil seguidores, é uma referência na região como prestadora de

serviço para a população local. Uma visita ao “Guarujá Alerta” revela que se trata de uma

página de avisos de interesse geral, denúncias e boatos, com pretensão a jornalismo.

A divulgação do fato foi feita pela primeira vez em 25/04/2014, conforme mostra a figura 1,

abaixo:

5 Termo defendido por Correia (2009).

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Figura 1

Em apenas oito dias, o post recebeu 130 comentários e outros 765 compartilhamentos dos

seguidores do perfil. Abaixo alguns comentários extraídos do post, conforme pode ser visto

nas figuras 2, 3 e 4 disponibilizadas a seguir:

Figura 2

Figura 3

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Figura 4

Observa-se, tanto no conteúdo publicado pelos administradores da página, quanto nos

comentários subsequentes ao post, sinais de irresponsabilidade e ignorância das regras básicas

do jornalismo, desconhecimento, portanto, do saber jornalístico, tais como os valores-notícia

mencionados aqui mesmo neste artigo. No post é possível observar a mensagem: “Se é boato

ou não, vamos ficar alertas”, evidenciando a infringência do princípio básico do jornalismo de

que, em caso de dúvida, deve-se optar pela não publicação e partir para a investigação. A

escrita dos comentários demonstra a falta de acuidade ou reflexão, condição facilitada pela

fantasia do tempo real, do imediatismo e do julgamento imediato.

A socióloga Ariadne Lima Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da

Universidade de São Paulo, constatou, em pesquisas realizadas durante três décadas, uma

coincidência marcante: os linchamentos se repetem logo após um caso de grande repercussão

na mídia (DANTAS & GUANDELINE, 2014). Sobre a relação de crimes cometidos por uma

coletividade, ela afirma, ainda, que o noticiário intenso sobre um determinado caso acaba

deflagrando uma espécie de epidemia de eventos semelhantes, como por exemplo, formas de

suicídio.

A digitalização da produção informativa é mais um desafio que solicita ao jornalismo e aos

jornalistas um especial cuidado na compreensão do lugar de onde fala: a análise das condições

de enunciação implica não apenas o nível tecnológico e o saber técnico da escrita. A

transformação estrutural da economia e da sociedade se traduziu em uma frenética aquisição

de competências performativas (de saber tecnológico) em detrimento de competências

reflexivas (CORREIA, 2009). Neste sentido, há uma concepção de que a profissão jornalística

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se alimenta da prerrogativa de que basta saber operar a ferramenta da escrita, associada ao

saber tecnológico, para se tornar jornalista.

3.1. A ausência do filtro jornalístico na página “Guarujá Alerta”

Páginas como o “Guarujá Alerta” prestam um serviço à sociedade, dando voz aos que não têm

voz, com reclamações sobre problemas diários da cidade. Contudo, elas falham quando se

propõem a prestar um serviço jornalístico porque trabalham com a tentação da afirmação e

não da verificação. Trabalha-se, assim, com a tentação do sensacionalismo. O grande

equívoco destas páginas que pretendem colaborar com a produção de conteúdo é quando elas

saem da esfera da informação e passam a comunicar fatos (sem verificação e critérios).

Obviamente é necessário saber como funcionam as ferramentas digitais, mas interessa não

perder de vista para que servem, quando se utilizam e porque se utilizam essas ferramentas

(saber de procedimento do jornalista). As competências técnicas e tecnológicas não

dispensam o saber humanístico e a competência crítica, elementos que são diferenciadores do

saber universitário e devem integrar o saber jornalístico.

Eugênio Bucci, estudioso das questões éticas do jornalismo, em entrevista ao programa

Observatório da Imprensa, de 13 de maio de 2014 (Linchamento e Mídia, 2014), afirmou que

atualmente, toda pessoa tem poder de mídia, ainda que ela não seja jornalista. O problema,

segundo ele, é que muitos que têm poder de mídia, não aprenderam a ter responsabilidade de

mídia.

A internet reduziu drasticamente o papel dos filtros na transmissão de notícias e informações.

A proliferação de não profissionais que publicam na rede, demonstra a ausência de

intermediários com responsabilidade pela filtragem das notícias. Para o jornalista e professor

Fernando Molica, ao contrário do que muitos pensam, “a internet não é um veículo, ela é, sim,

um mural em que você pode escrever qualquer coisa”. (LINCHAMENTO E MÍDIA, 2014)

3.2. A responsabilização do não profissional no ambiente virtual

Ao divulgar o retrato falado que resultou no linchamento de Fabiane Maria de Jesus, por fim

considerada inocente, o não profissional e administrador da página, pode ter cometido crime

de calúnia. Ao divulgar o boato e publicar imagens (desenhos) de uma mulher que estaria

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cometendo crimes naquela região, o internauta responsável pelo espaço virtual promoveu

sensibilização social, gerando a sensação de insegurança e revolta em muitos moradores.

Nesse caso, o internauta não pode ser responsabilizado pelo crime de homicídio, ao divulgar

as referidas informações. Comprovar o dolo, a intenção de matar, é extremamente difícil e

temerário (incerto); sequer há culpa, uma vez que não é possível demonstrar que aqueles

boatos foram a causa principal da morte. Os mecanismos jurídicos tradicionais, assim, acabam

oferecendo liberdades incontroláveis aos não profissionais.

Este cenário demonstra que caso a atividade de produção de informação fosse designada

exclusivamente a atores que detém conhecimento a respeito de uma apuração criteriosa de

fatos transmitidos à população, segundo critérios que prezam pela imparcialidade, o crime de

homicídio poderia ter sido evitado.

4. Considerações Finais

Diante das discussões produzidas ao longo deste artigo, é possível tecer algumas conclusões.

A área do jornalismo incutiu, desde a primeira decisão que extinguiu a obrigatoriedade do

diploma em jornalismo, um cenário de instabilidade social que culminou em alguns

desdobramentos, a saber: 1) a desprofissionalização do jornalismo como uma área de saber

reflexivo; 2) o recrudescimento de não profissionais exercendo a atividade jornalística sem o

devido conhecimento deontológico e ético da profissão; 3) a instabilidade nas decisões

jurídicas a respeito de ilícitos relacionados à produção informativa, fruto da instabilidade

profissional que vive o jornalismo.

A análise efetivada a respeito da página “Guarujá Alerta” evidencia a problemática discutida a

respeito das questões acima mencionadas. O responsável pela página, que não possui

formação em jornalismo, desprovido de um saber reflexivo que norteia a produção e a

divulgação de informações públicas, gerou, de maneira leviana, a comoção social e a sensação

de perigo iminente oferecido por uma pessoa inocente.

Essa condição demonstra a fragilidade da área jornalística que se deu, a priori, pela apressada

aquisição de competências técnicas em detrimento de competências reflexivas. E, nesse

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contexto, a decisão final do Supremo Tribunal Federal resultou em uma zona de incertezas e

instabilidades nas relações sociais, profissionais e jurídicas.

5. Referências Bibliográficas

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