despejos sem ordem

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RODOLFO BLANCATO DE BARROS DESPEJOS SEM ORDEM Histórias da periferia da Grande São Paulo São Paulo 2011

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Trabalho de conclusão de curso

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RODOLFO BLANCATO DE BARROS

DESPEJOS SEM ORDEM Histórias da periferia da Grande São Paulo

São Paulo

2011

Universidade de São Paulo

Escola de Comunicações e Artes

Departamento de Jornalismo e Editoração

Rodolfo Blancato de Barros

Despejos sem ordem: histórias da periferia da

Grande São Paulo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamen-

to de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e

Artes da Universidade de São Paulo para a obtenção do título

de Bacharel em Comunicação Social com ênfase em Jornalis-

mo

Orientador: Prof. Dr. Dennis de Oliveira

São Paulo

2011

Rodolfo Blancato de Barros

Despejos sem ordem: histórias da periferia da

Grande São Paulo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Jornalismo e

Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para a

obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo

Data de aprovação: ____ / ____ / ________

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Dennis de Oliveira (orientador)

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Nancy Nuyen Ali Ramadan Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

______________________________________________________________________

Ma. Cecilia Maria de Morais Machado Angileli Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

AGRADECIMENTOS

Esse trabalho não seria possível sem a ajuda dos moradores que me receberam

em suas casas, contaram suas histórias, forneceram documentos e atenderam às minhas

ligações em horas impróprias com toda boa vontade. Também agradeço aos militantes

do movimento de moradia que compartilharam seus valiosos conhecimentos sobre os

problemas habitacionais de São Paulo e me ajudaram a entrar em contato com os mora-

dores, especialmente Benedito Barbosa, sempre disposto a perder seu escasso tempo

com minhas solicitações. O texto se beneficiou da revisão criteriosa de Eduardo Pas-

choal, que também é o autor dos mapas nas aberturas dos capítulos. Outra pessoa a

quem devo muito é Beatriz Flausino, que forneceu o apoio do qual precisava quando as

coisas não davam certo, sempre me incentivando a continuar. Sou igualmente grato a

meus pais, Célia e Paulo, dois lutadores, que com seu exemplo me ensinaram mais do

que imaginam. E não poderia deixar de citar o professor Dennis de Oliveira, que aceitou

assumir a minha orientação de última hora e foi sempre presente e solícito.

RESUMO ABSTRACT

O presente trabalho é uma reportagem que

tem o objetivo de contar as histórias de

moradores de ocupações irregulares da

Grande São Paulo que foram despejados

ou estão ameaçados de despejo. O que se

observa nesses casos é que essas remoções

frequentemente desrespeitam direitos bá-

sicos dos cidadãos, violando normas jurí-

dicas nacionais e internacionais. Muitas

vezes, tais violações são perpetradas por

agentes do próprio Estado. O trabalho

também reflete sobre as razões econômi-

cas e sociais que geram assentamentos

nesses locais, discutindo como a situação

particular desses moradores reflete pro-

blemas urbanos que atingem não só São

Paulo, mas o Brasil inteiro.

Palavras-chave: despejos, habitação,

direitos humanos, direito à moradia,

Grande São Paulo.

The present work is a report with the ob-

jective of telling the histories of São Paulo

metropolitan area residents that live at

irregular occupations and have been

evicted or are under the threat of being

evicted. What is observed in such cases is

that evictions are often made violating

citizen’s basic rights, breaking national

and international laws. Many times these

violations are made by agents of the gov-

ernment itself. This work is also a reflec-

tion about the economic and social rea-

sons that leads people into living in such

places, debating how the particular situa-

tion of those inhabitants reflects urban

problems that affects not only São Paulo,

but Brazil as a whole.

Keywords: evictions, habitation, human

rights, right to housing, São Paulo metro-

politan area

SUMÁRIO

Agradecimentos ..................................................................................................................................................... 3

Resumo Abstract ................................................................................................................................................... 4

Apresentação .......................................................................................................................................................... 6

Um protesto............................................................................................................................................................. 9

À beira da rodovia .............................................................................................................................................. 17

Vila Mulford ...................................................................................................................................................... 18

Dois josés ........................................................................................................................................................... 20

A justiça .............................................................................................................................................................. 24

Cronologia de um despejo ............................................................................................................................. 27

Ano novo, vida nova ....................................................................................................................................... 33

Fugindo do aluguel .......................................................................................................................................... 37

O acordo.............................................................................................................................................................. 40

Na represa .............................................................................................................................................................. 43

Programa Mananciais ..................................................................................................................................... 44

Jardim Toca ....................................................................................................................................................... 47

Val e Geraldo .................................................................................................................................................... 57

Na serra ................................................................................................................................................................... 62

Audiências públicas ........................................................................................................................................ 63

Futuro melhor .................................................................................................................................................... 67

Pequena reflexão sobre o urbanismo paulistano .................................................................................. 72

Fotografias ............................................................................................................................................................. 79

Referências bibliográficas ............................................................................................................................... 89

6

APRESENTAÇÃO

7

A escolha do tema desse trabalho veio quase naturalmente para mim. Nos últi-

mos anos do curso de jornalismo na Universidade de São Paulo acabei fazendo algumas

reportagens sobre casos de despejo na cidade e conheci de perto as vítimas dessas ações.

Para entender melhor o que estava observando, fui obrigado a pesquisar sobre o tema e

descobri que, longe de serem casos isolados, essas situações eram bem comuns em todo

o país.

Confesso que esse não foi o primeiro tema que escolhi. Eu temia que a comple-

xidade do assunto, a dificuldade para me deslocar até os locais dos despejos – que ge-

ralmente acontecem na periferia da cidade – e a notória indisposição do poder público

para conceder entrevistas e dar informações sobre essas situações, que têm um grande

potencial de gerar propaganda negativa para os governos, seriam empecilhos muito

grandes para um trabalho que deveria ser feito em apenas seis meses.

Mas o tema fácil revelou-se difícil, porque era duro encontrar disposição para

apurar e escrever algo que parecia não ser relevante para ninguém – nem para mim. Os

seis meses passaram e eu não tinha um trabalho. Resolvi então, não sem algum medo,

encarar esse desafio e mudei meu tema. Acredito ter conseguido o que me propus a fa-

zer: contar histórias que mostram os resultados práticos do urbanismo segregador que

modelou as cidades brasileiras e, particularmente, a grande São Paulo.

A seguir contam-se histórias de moradores de três áreas periféricas da metrópo-

le que se viram envolvidos em processos de remoção. A primeira é sobre as ações de

reintegração de posse movidas pela Ecovias contra pessoas que ocupavam irregularmen-

te a beira da Rodovia dos Imigrantes, em Diadema. A segunda é sobre a intervenção da

Prefeitura no Jardim Toca, uma favela à margem da represa Billings, na Zona Sul da

capital paulista, que teve parte de seus habitantes despejados para a canalização de um

córrego. A última é sobre moradores da Zona Norte da cidade: faço o relato de duas

audiências públicas do trecho norte do Rodoanel e conto a história de alguns habitantes

da Ocupação Futuro Melhor, no Jardim Peri, que deve ser impactada no futuro pela cri-

ação de um parque linear. Também fiz uma espécie de introdução, relatando um protes-

to convocado pelo movimento de moradia da capital, no qual conversei com algumas

pessoas ameaçadas de despejo em outros locais da cidade.

Os despejos em questão aconteceram – ou estão planejados para acontecer – em

áreas ocupadas irregularmente por moradores de baixa renda, gente que foi parar nesses

locais geralmente por falta de opção: os assentamentos precários na periferia são, há

8

décadas, a válvula de escape para quem não tem condições de acessar o mercado imobi-

liário formal.

As áreas nas quais essas pessoas se alojaram são, na maioria das vezes, sem inte-

resse para o poder público ou para o mercado, e por isso a ocupação inicial não encontra

muita resistência. Mas em uma cidade cada vez com menos espaços livres, essa situação

pode mudar com o tempo, e não é raro que o projeto de um parque, uma rodovia ou um

empreendimento imobiliário esbarre em uma dificuldade incômoda: o que fazer com

essa gente que está no meio do caminho? É assim que surgem histórias como as conta-

das aqui.

Os despejos retratados aqui são, portanto, mais do que problemas pontuais: são

consequências da ausência de uma ordem urbanística inclusiva, que garanta o direito da

população pobre à moradia. O que acontece é o contrário: muitas vezes, o Estado pro-

move (ou, em alguns casos, permite que se promova) a remoção dos ocupantes sem res-

peitar seus direitos mais básicos, excluindo as pessoas atingidas dos processos de deci-

são que influem sobre seu destino. Em situações mais drásticas, não é sequer oferecida

uma alternativa habitacional, para que elas possam se estabelecer em outro lugar. E aí o

que se vê nos jornais é muita informação sobre a importância da intervenção, as discus-

sões no Legislativo, os custos para os cofres públicos, mas pouco interesse em saber

onde vão parar as pessoas removidas ou como elas chegaram ali. É essa a lacuna que

espero ter contribuído para preencher.

9

UM PROTESTO

10

São Paulo, 20 de setembro de 2011. O sol forte logo às 9 horas da manhã é um

anúncio de que o inverno paulistano está chegando ao fim. Faz calor no Pátio do Colé-

gio, local onde a cidade foi fundada, e a luminosidade dá ainda mais destaque à impo-

nente estátua no centro da praça, intitulada Glória Imortal aos Fundadores de São Pau-

lo. Na base da coluna de 15 metros de altura, indígenas de bronze carregam água e terra

em seus cestos. Ao lado, outros amassam o material para preparar a taipa que dará sus-

tentação à primeira edificação da cidade.

Passados 457 anos da fundação de São Paulo, o local é palco de uma manifesta-

ção contra os despejos, remoções e reintegrações de posse na cidade. Assim como os

índios do monumento de Alfredo Zani, muitos dos presentes construíram suas casas

com as próprias mãos. Agora, correm o risco de ver o trabalho de anos destruído. É gen-

te que vem de lugares distantes, espalhados pelos quatro cantos da Região Metropolita-

na, bairros como Jurubatuba (Zona Sul), Vila Nova Esperança (Zona Oeste), Jardim

Pantanal (Zona Leste), Jardim Paraná e Jaraguá (ambos na Zona Norte), entre outros.

O protesto foi convocado por diversas entidades que compõem o chamado “mo-

vimento de moradia” da Grande São Paulo. No carro de som, um dos militantes anuncia

os responsáveis pelo evento, uma salada de siglas que demora pelo menos dois minutos

para ser inteiramente proferida: CMP (Central dos Movimentos Populares), UMM

(União dos Movimentos de Moradia), MMRC (Movimento de Moradia da Região Cen-

tro), FLM (Frente de Luta pela Moradia), MDF (Movimento de Defesa do Favelado), e

por aí vai.

Chegam alguns ônibus com mais manifestantes, mas no total eles não devem

passar de duas centenas. Converso com Duília Domingues Simões, uma moradora do

Jardim Paraná que lamenta ter conseguido trazer apenas uma dúzia de pessoas. Ela se

mudou para o bairro depois de comprar um terreno em um loteamento clandestino, há

16 anos, quando ainda eram poucos os vizinhos. “Acompanhei esse bairro crescer”, diz

ela, que agora pode ter que sair dali por causa da construção do trecho norte do Rodoa-

nel.

É terça-feira, o que aumenta consideravelmente o “índice de abstenção” do ato,

mas mesmo assim há quem tenha perdido o dia de trabalho para participar. É o caso de

Emanuel da Paixão de Oliveira Simões, pedreiro que faltou ao serviço para estar ali,

junto com outros habitantes da favela Vila Nova Esperança, na Zona Oeste de São Pau-

lo. No local há dez anos, ele diz que comprou a casa em que vive de uma pessoa que

11

morava ali há 20 anos. Hoje, corre risco de ser despejado por ação da Companhia de

Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) – ironicamente, a empresa estadual

responsável pela construção de casas populares.

A ocupação está encravada em uma área de preservação ambiental, entre o Ro-

doanel Oeste e a rodovia Régis Bittencourt. Em 2004, a justiça determinou que a

CDHU, proprietária do terreno, desocupasse e limpasse a área – mas o texto da sentença

dá a entender que o juiz não sabia da existência de pessoas habitando o local. Em março

de 2011, funcionários contratados pela companhia como seguranças foram filmados

portando armas de fogo e as apontando para os moradores durante uma tentativa de de-

molir algumas das moradias do local1.

Emanuel diz que os empregados da empresa tentam constantemente remover os

moradores sem determinação judicial:

– Eles chegam, eles fazem uma ordem de despejo por conta deles mesmos. Não

trata com a gente que somos moradores. Só chega lá, taca a ordem de despejo e quer

jogar o pessoal na rua.

A Vila Nova Esperança, encravada na Serra da Cantareira, surgiu no final dos

anos 60, quando apenas 1% da população do município morava em favelas2. Nas déca-

das seguintes esse número cresceu, e muito: em 1991, a taxa era de 9,24%. Em 2000,

havia saltado para 11,12%3.

Esse movimento de criação e adensamento das favelas paulistanas coincidiu com

o declínio do modelo de urbanização característico da cidade entre as décadas de 1940 e

1970, o loteamento periférico. A dinâmica desse processo era mais ou menos assim: o

dono de um terreno na periferia dividia a terra em pequenos lotes, cortados por ruas

estreitas, e os vendia a preços modestos para a população pobre da cidade. Interessados

não faltavam: esse foi um período de intenso crescimento demográfico na cidade. Em

1940, a Região Metropolitana contava com 1,3 milhão de habitantes, número que pulou

para 8 milhões em 1970 e 15,5 milhões em 1980. Muitas vezes clandestinos, esses par-

celamentos criaram bairros inteiros sem infraestrutura adequada, com poucas áreas ver-

1 Grupo armado ameaça moradores em visita da CDHU. Folha Online, 03 mai. 2011. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/909256-grupo-armado-ameaca-moradores-em-visita-da-cdhu.shtml>. Acesso em 10 nov. 2011. 2 MARICATO, 1995, p. 27.

3 PASTERNAK, 2006, p. 187.

12

des, transporte público deficiente e escassos equipamentos públicos, tais como escolas,

creches, postos de saúde e hospitais4.

Em 1979, uma nova legislação foi aprovada para conter esse padrão de expansão

urbana sem qualidade habitacional, comum em todo país. A Lei Federal 6.766, também

conhecida como Lei Lehmann, que vigora até hoje, estabeleceu uma série de obrigações

para quem desejasse parcelar um terreno. Os lotes só podem ser vendidos depois da

aprovação de um projeto pela prefeitura local, não podem estar em áreas alagadiças ou

sujeitas a inundações, nem que possuam declividade superior a 30% - exceto em casos

específicos regulados pelos poderes municipais –, entre outras exigências. Quem des-

respeita essas normas está sujeito à prisão.

Alguns estudiosos, como Ermínia Maricato, professora da Faculdade de Arquite-

tura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), alegam que a Lei Leh-

mann, ao inibir o loteamento precário, indiretamente favoreceu um mal maior: o cres-

cimento das favelas. Ela diz que a nova legislação coincidiu com o fim do parcelamento

indiscriminado de terrenos na periferia e o aumento no número de favelados na cidade,

embora reconheça que a crescente escassez de terrenos baratos possa ter sido tão ou

mais determinante para esse processo do que a lei5.

O fato é que, cada vez mais, os pobres da Grande São Paulo foram sendo empur-

rados para os terrenos que estavam fora do jogo do mercado imobiliário, as chamadas

“áreas não edificantes”, em geral regiões de proteção ambiental. As margens de rios,

córregos e represas, assim como a Serra da Cantareira, por não terem valor para o mer-

cado, tornaram-se atrativas para as invasões. Como afirma Suzana Pasternak, também

professora da FAU, “um excesso de zelo conduz, paradoxalmente, a uma total ausência

de regras” 6

.

Se a irregularidade é a regra, é não a exceção, como lidar com essas ocupações?

O que se observa, na prática, é que o Estado atua de maneira ambígua. Ora reconhece

direitos a essas pessoas, como quando executa obras de infraestrutura urbana, instalando

redes de iluminação, água e esgoto, o que se tornou comum a partir da década de 80.

4 A bibliografia sobre esse tema é extensa. Alguns autores que abordam o assunto: MARICATO, 1995;

FIX, 2007; ABIK, 1998. 5 MARICATO, 1995, p. 47 a 49.

6 PASTERNAK, 2006, p. 179.

13

Em outros casos, nega a legitimidade das ocupações, como nos despejos realizados sem

negociação e sem a concessão de uma alternativa habitacional7.

O protesto segue. As pessoas se aglomeram em uma viela vizinha ao Pátio do

Colégio, em frente à Secretaria de Justiça, onde será recebida uma comissão de manifes-

tantes para uma reunião em que apresentarão suas reivindicações. É a primeira parada

de um itinerário que percorrerá o centro da cidade, passando também pelas sedes da

Secretaria Municipal de Habitação e do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Enquanto a comissão está dentro do prédio, militantes e moradores das comuni-

dades se revezam ao microfone, relatando os problemas que enfrentam e conclamando à

luta. Alguns são mais contidos, outros pregam uma revolta aberta:

- Nós temos que lutar de cabeça erguida, porque a moradia é um direito. E direi-

to a gente não pede, a gente vai lá e toma! – exclama um representante da Associação

Nacional dos Torcedores (ANT). A organização participava do ato por causa das obras

para a Copa do Mundo de 2014, que devem despejar milhares de pessoas nas cidades-

sede da competição.

Os grandes projetos públicos, aliás, são alguns dos que mais despejam gente no

país. Em São Paulo, especificamente, obras como o Rodoanel e a criação de parques

lineares são responsáveis por um deslocamento populacional sem precedentes na Região

Metropolitana. Entre 2006 e 2015, estima-se que 50 mil famílias serão removidas de

suas casas por causa de obras tocadas pelo poder público8.

Há uma vasta legislação garantindo o direito dessas famílias a uma moradia dig-

na. A Constituição coloca a habitação como um direito fundamental de todo cidadão

brasileiro e prevê o instituto do usucapião, pelo qual toda pessoa que ocupa um imóvel

particular, urbano ou rural, a pelo menos cinco anos, pode reivindicar sua propriedade.

Há também a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, criada pela Medida

Provisória nº 2.2209, que garante a posse ao ocupante de área pública que “até 30 de

junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até

7 ROLNIK, 1997, p. 181 a 187.

8 Projetos públicos em SP "expulsam" 165 mil pessoas. Folha de S. Paulo, 25 out. 2010, p. C-1.

9 A MP em questão, adotada em 4 de setembro de 2001, não foi transformada em lei pelo Congresso,

mas ainda se encontra em vigor, pois a Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, de-termina que “as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continu-am em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional”.

14

250 metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua

moradia ou de sua família”. A medida também determina que, caso os ocupantes habi-

tem área de risco ou de proteção ambiental, o poder público deve alocá-los em outra

região. Só que, na prática, essas leis quase nunca são aplicadas pelo Judiciário.

Independentemente do tempo de residência no local, as remoções promovidas

pelo poder público na Grande São Paulo geralmente seguem um roteiro parecido. Em

alguns casos as famílias recebem uma indenização – o chamado “cheque-despejo” –,

que pode ser de apenas R$ 5 mil ou de várias dezenas de milhares de reais, em alguns

projetos mais elaborados. Há também o bolsa-aluguel, também chamado de aluguel-

social, parceria-social ou por outros nomes – há vários programas desse tipo, tocados

por diferentes esferas governamentais. Basicamente, esses auxílios funcionam do mes-

mo jeito: paga-se uma quantia mensal para ajudar os despejados a arcar com a locação

de um imóvel. Outra política implementada pelos poderes públicos é a concessão de

cartas de crédito e habitações populares para os removidos. Às vezes, esses expedientes

são combinados. É bem comum, por exemplo, que enquanto as pessoas aguardem por

um apartamento em um conjunto habitacional, elas recebam uma ajuda de custo para

pagar o aluguel.

Isso é válido para os projetos públicos que demandam a remoção forçada das

famílias. Mas também são frequentes reintegrações de posse que deixam as pessoas

literalmente na rua. Nos casos de invasões recentes, essa é uma situação bem comum.

Nesses casos, é raro que o poder público forneça uma alternativa habitacional para as

famílias, nem no longíssimo prazo – no máximo, os despejados são atendidos pelas re-

des de assistência social do Estado, se alojando em albergues, o que muitas pessoas re-

jeitam por causa da precariedade das instalações e da pouca privacidade que possuem

ali. Afinal, os albergues são pensados para abrigar pessoas em situação de vulnerabili-

dade de forma transitória, não são uma alternativa habitacional propriamente dita.

Alguns dos manifestantes contam histórias de intimidação física, até mesmo ar-

mada, por gente contratada pelo poder público. É o que acontece no Jardim São Fran-

cisco, na Zona Leste da cidade, segundo relatos de moradores do local.

Em março de 2011, a Secretaria Municipal de Habitação anunciou que a favela –

a terceira maior de São Paulo, com 50 mil habitantes – seria urbanizada. O projeto prevê

a construção de habitações de interesse social, hospital, escola e um centro comunitário.

O sistema viário será reestruturado, com a pavimentação e arborização das ruas. Um

15

terreno ao lado da comunidade, onde até 1985 funcionou um aterro sanitário, se tornará

um parque10

.

As obras começaram em junho de 2011, realizadas por um consórcio composto

pelas empreiteiras EIT e Santa Bárbara. Junto, vieram as primeiras remoções.

A vereadora Juliana Cardoso, do PT, participou do ato e visitou o Jardim São

Francisco no dia anterior. Segundo ela, 25 casas foram derrubadas por empregados de

uma empresa terceirizada contratada pela Secretaria de Habitação para auxiliar na re-

moção dos moradores do local. Entre os funcionários, estaria uma figura já conhecida

no movimento de moradia. Francisco Evandro Ferreira Figueiredo ficou notório por

comandar a derrubada ilegal de habitações na Favela do Sapo, Zona Oeste, em 9 feve-

reiro de 2011. Evandro e outros funcionários de uma empresa terceirizada, acompanha-

dos de funcionários da Prefeitura e policias da Guarda Civil Metropolitana Ambiental,

demoliram 17 casas na comunidade sem ordem judicial. Há relatos de que Evandro teria

circulado armado pelo local11

.

A demolição de moradias na Favela do Sapo foi interrompida depois que mili-

tantes do movimento de moradia e parlamentares intercederam junto à Secretaria de

Habitação do município. Segundo o vereador Carlos Neder, da bancada do PT, a supe-

rintendente de habitação popular da Sehab, Elisabete França, teria admitido em uma

reunião testemunhada por dezenas de pessoas que Evandro era funcionário da BST

Transportes Aéreos e Motorizados, contratada para auxiliar nos despejos12

.

Apesar da denúncia do vereador, seis meses depois Evandro seria visto nova-

mente atuando em nome da Prefeitura, dessa vez no Jardim São Francisco. Segundo a

vereadora Juliana Cardoso, ele coordena as ações de despejo na favela:

- Eles se organizam em peruas. Três ou quatro peruas. Dentro dessas peruas tem

outros funcionários, que são terceirizados. E esse Evandro, que é terceirizado também,

comandando. Então eles já começam a mapear as casas, verificam onde as pessoas estão

10

Secretaria de Habitação apresenta plano urbanístico para a 3ª maior favela de SP. Site da Prefeitura de São Paulo, 13 abr. 2011. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/ index.php?p=43885>. Acesso em: 10 nov. 2011. 11

Em São Paulo, Favela do Sapo é despejada sem mandado judicial. Rede Brasil Atual, 26 fev. 2011. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/jornais/jba-sao-paulo/favela-do-sapo-e-despejada-sem-mandado-judicial>. Acesso em: 10 nov. 2011. 12

Íntegra da décima sessão ordinária do período adicional da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Disponível em <http://www.al.sp.gov.br/StaticFile/integra_sessao/010aSOPA110214.htm>. Aces-sado em 10 nov. 2011.

16

mais fragilizadas, ou quando não tem pessoa em casa porque está trabalhando. E aí ele

pega, pras pessoas que tão com ele, pode derrubar essa aqui. Eles entram com a marreta,

pega a marreta e vai batendo na casa, com qualquer coisa que tenha dentro. Derruba a

casa, e aí o que acontece: todos os pertences das pessoas ficam vulneráveis. E aí, quan-

do a pessoa chega em casa, não tem casa.

Para fugir da insegurança e da arbitrariedade, não há muitos caminhos. Um fi-

nanciamento imobiliário está fora de cogitação para a maioria dos moradores de ocupa-

ções irregulares, muitos dos quais não têm renda fixa. Restam os programas governa-

mentais de moradia para baixa renda, como as urbanizações de favelas promovidas pela

Prefeitura de São Paulo e os apartamentos da CDHU – nesse caso, o tempo de espera

pode ser inacreditavelmente longo.

Aurineide Ribeiro da Silva, moradora do Jardim Comercial, na Zona Sul de São

Paulo, era uma das participantes do protesto. Ela diz que vive de favor na casa de uma

amiga, com o filho adolescente. Conta sua história em um tom indignado, com gestos

espalhafatosos. Aponta para alguns moradores de rua deitados embaixo de uma marqui-

se e exclama: “se eu não tivesse amizade, eu estaria no meio deles também”.

Ela tenta um apartamento da CDHU há décadas, mas o máximo que conseguiu

foi ser sorteada como suplente.

- Eu fui sorteada como suplente na época do Fleury [Luiz Antônio Fleury Filho,

governador de São Paulo entre 1991 e 1995]. E até hoje não consegui o meu apartamen-

to. Porque eles preferem pessoas que estejam trabalhando e que ganhem bem. Se você

tem uma baixa renda, você não consegue pegar aquela chave. Até hoje eu tô esperando,

vivendo... Como se diz: se a gente compra um barraco, a Prefeitura, eles vêm lá e derru-

ba. O que que acontece: a gente perde aquela moradia. Então eu tô aqui, não com espe-

rança de ganhar nada, mas tô lutando por esses que ainda têm esperança.

A essa altura os manifestantes já estão em frente ao prédio do Ministério Público

do Estado de São Paulo, na Rua Riachelo, a última parada do protesto. Uma comissão

adentra o edifício para apresentar suas denúncias para o órgão, um ato simbólico. De-

pois as pessoas seguirão para suas casas, nos quatro cantos da cidade, onde continuarão

a batalha diária pela preservação de suas moradias.

17

À BEIRA DA RODOVIA

18

VILA MULFORD

Anoitece na Vila Mulford e o bairro tem um clima de cidade do interior. A chu-

va que caíra o dia todo resolveu dar um tempo e as vielas, antes desertas, agora se en-

chem de vida. É sábado, jovens se reúnem na frente dos botecos e dos mercados, riem

alto. Os garotos se arrumam enquanto sonham com as meninas que encontrarão na bala-

da, imaginam as peripécias que aguardam a madrugada para tomarem forma, as histó-

rias hilárias que serão relembradas com orgulho na escola ou no trabalho.

Os carros vão e vêm. Alguns moradores terminam de lavar seus quintais, en-

quanto os evangélicos botam a conversa em dia no caminho para o culto. As crianças

brincam e assistem ao movimento da gente adulta com curiosidade. Não sabem que es-

ses sábados irão se incorporar a suas memórias, serão para sempre parte integrante de

seus sentimentos mais ternos.

As ruas estreitas da Vila Mulford ficam a poucos minutos de caminhada do cen-

tro de Diadema, à beira da Rodovia dos Imigrantes, que corta a cidade de norte a sul. As

primeiras casas foram construídas ali há pelo menos 30 anos e o bairro, como tantos

outros da Grande São Paulo, é resultado de ocupações irregulares que foram se multipli-

cando com o tempo.

Quando quase todos os barracos de madeira já tinham dado lugar a casas de al-

venaria, a Prefeitura começou a transformar a favela em algo mais próximo a um bairro.

As ruas foram asfaltadas, as habitações ganharam rede de água e esgoto, os moradores

receberam auxílio governamental para realizar ligações de energia elétrica.

Eram quase cinco da tarde quando o Chevette de seu José estacionou em frente à

casa número 88 da Rua Tóquio. Outro automóvel bloqueava a entrada da garagem e o

impediu de guardar o carro, que ficou do outro lado da rua. Eu aguardara o homem por

pelo menos meia hora, mas contemplar a movimentação alheia fez o tempo passar mais

rápido. Ele abriu o portão que dá para uma escadaria ao ar livre, estreita e longuíssima,

que descemos para entrar em sua residência.

A casa tem apenas dois cômodos, não deve ter mais do que 40 metros quadra-

dos. O único quarto abriga uma cama de casal e duas beliches, onde dormem José, sua

mulher e três de seus quatro filhos – o mais velho já é casado e mora com a esposa. Ba-

nheiro e cozinha ficam do lado de fora. Me acomodo no sofá e começamos a entrevista.

19

Para José Marinheiro Neto o dia tinha sido de trabalho duro. Ele é pedreiro, tra-

balha por conta e estava empreendendo uma reforma na casa de um cliente de longa

data. É com orgulho que afirma sua competência no ofício, motivo pelo qual os contra-

tantes sempre voltam a pedir seus serviços depois de um tempo.

A maestria do trabalho de José Marinheiro foi reconhecida até pelos funcioná-

rios da demolidora que botou sua casa a baixo.

20

DOIS JOSÉS

José Marinheiro e seu cunhado, também José, conversam comigo sobre o despe-

jo das famílias da Vila Mulford, que completara um ano há poucos dias. Os dois eram

vizinhos e perderam suas casas junto com outras sete famílias do bairro, em agosto de

2010. Meses antes, um talude à beira da Imigrantes desmoronou e as habitações foram

interditadas pela Defesa Civil de Diadema.

Todas as habitações se encontravam dentro da chamada faixa de domínio da ro-

dovia, que compreende os terrenos a uma distância de até 100 metros do leito da estra-

da. Essa área é propriedade do Governo do Estado, e nenhuma edificação poderia ter

sido erguida ali. Na prática, a teoria é outra: em 2006, um estudo apontou que 1,2 mil

famílias residiam irregularmente às margens da rodovia, só na região de Diadema13

.

Muitos estão ali há décadas, como os dois josés.

Nenhuma casa foi atingida pelo deslizamento de terra, mas foi por pouco. O fa-

to motivou a Ecovias, empresa que tem a concessão da rodovia, a entrar com uma ação

de reintegração de posse na Justiça. A companhia, que obteve o direito de explorar co-

mercialmente a Imigrantes em 1998, é controlada pela holding EcoRodovias, cujas sub-

sidiárias cuidam da administração de estradas em três estados: São Paulo, Paraná e Rio

Grande do Sul. O acionista majoritário da EcoRodovias é o grupo C.R. Almeida, que

atua nas áreas de construção civil, engenharia química e logística.

Os executivos da C.R. Almeida, aliás, devem entender um pouco como se senti-

ram os moradores da Vila Mulford quando foram processados, já que a empresa tam-

bém é acusada de invadir uma área pública: desde a década de 1990, uma das compa-

nhias controladas pelo grupo responde na Justiça por ter supostamente grilado uma pro-

priedade de 4,7 milhões de hectares no Pará. É uma área na qual cabe a Holanda, o que

motivou a imprensa a chamar a Fazenda Curuá de “maior grilagem do mundo”. Em

novembro de 2011 o juiz Hugo da Gama Filho, da 9ª Vara Federal, em Altamira, deter-

minou que o registro da propriedade fosse cancelado. A empresa recorre da decisão14

.

13

Reintegração de posse em área da Ecovias atinge famílias do Núcleo Mulford em Diadema. Site da Prefeitura de Diadema, 11 ago. 2010. Disponível em: <http://www.diadema.sp.gov.br/cidadao/galeria-cultural/1-noticias/2954>. Acessado em: 10 nov. 2011. 14

Justiça cancela registro de fazenda com área equivalente à dos Países Baixos. Agência Brasil, 04 nov. 2011. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-11-04/justica-cancela-registro-de-fazenda-com-area-equivalente-dos-paises-baixos>. Acesso em: 10 nov. 2011.

21

Na ação que ajuizou contra os moradores da Vila Mulford, a Ecovias pedia a sa-

ída dos ocupantes e a demolição das construções, baseada na alegação de que as casas

corriam risco de desabamento. Foi o que aconteceu.

Hoje, os dois josés recebem auxílio aluguel da prefeitura, R$ 300 por mês. Há a

promessa de construir casas populares para abrigar os despejados, mas José do Carmo, o

cunhado, não acredita que elas sairão. Parece mais conformado, não há rancor em sua

fala. Sabia que era um invasor, correu o risco e se deu mal.

José Marinheiro se incomoda um pouco com o comentário. Ele lembra que mo-

ravam naquelas casas há mais de 20 anos, que o pai do cunhado chegou ali até antes,

quando os dois ainda eram adolescentes. “Invasão é o que fazem os sem-terra”, já eles

compraram os terrenos. José do Carmo discorda: ele até que tinha opção, até dava para

pagar um aluguel, mas resolveu ficar ali mesmo porque era mais fácil. Sobrava um pou-

co mais de dinheiro, dava pra aumentar a casa aos poucos.

Entra na cozinha a mulher de José do Carmo, e seu José aproveita a deixa para

fazer uma piada:

- Olha só pra ela, tem até cara de sem-terra!

- Todo nordestino tem cara de sem-terra, responde a mulher, com um quê de

amargura.

A nova casa de José do Carmo fica na mesma rua, a poucos metros de onde mo-

ra José Marinheiro. É mais espaçosa, mas não muito: são apenas três cômodos, mais um

banheiro. Na casa vivem, além dele, sua mulher e um casal de filhos. Aparentemente,

não falta dinheiro para suprir as necessidades da família – embora também não sobre.

José do Carmo tem emprego com carteira assinada, trabalha em uma fábrica de móveis

de São Bernardo do Campo, a Adresse.

A conversa toma um novo rumo, agora discutimos política. José Marinheiro diz

que o compromisso assumido pela CDHU de construir apartamentos em até dois anos

para as famílias despejadas não será cumprido. É algo típico do PSDB. Eles só falam,

prometem e não fazem. José do Carmo discorda novamente: isso é igual em todos os

políticos, a única diferença entre PSDB e PT é a origem social dos filiados. E o cresci-

mento econômico da última década? Agora os dois concordam: para eles, ambos na casa

dos 50 anos, as coisas só têm mudado para pior nos últimos tempos.

22

A proximidade das casas dos dois homens não é casual: além de cunhados, eles

são primos de segundo grau e nasceram na mesma cidade, Jucás, no Ceará (município

da região do Cariri, a 100 quilômetros de Juazeiro do Norte). José do Carmo veio pri-

meiro para o Sul, junto com o pai, quando ainda era criança. Era 1977. Em São Paulo, a

família foi abrigada pelo avô, que era caseiro de uma empresa.

José Marinheiro veio para São Paulo três anos depois, em 1980. Morou um tem-

po na Capital, trabalhava em uma marcenaria no Ipiranga, junto com um irmão. Quando

os dois foram demitidos, o jeito foi morar com o tio-avô, pai do pai de José do Carmo.

A casa não era pequena, mas, por maior que fosse, ainda faltaria espaço para tan-

ta gente: José do Carmo tinha dez irmãos. Por isso, em 1983, o pai dele se mudou para a

Vila Mulford, onde comprou um terreno e construiu um barraco de madeira. Com o

tempo, os filhos foram crescendo e muitos construíram suas casas ali perto.

Os dois josés ficaram por ali e seguiram o mesmo roteiro: compraram um terre-

no, ergueram seus barracos e depois foram reformando, acrescentando um cômodo de

cada vez, fazendo os móveis eles mesmos. A essa altura, já eram uma família só: José

Marinheiro estava namorando uma irmã de José do Carmo.

Maria das Dores era uma criança quando José Marinheiro a vira pela última vez,

no Ceará. Nunca poderia imaginar. Agora estava crescida, e os dois engataram um ro-

mance. O homem se diverte ao lembrar daquele tempo:

- Seu pai devia ter ficado puto! Além de dividir a casa, ele também me deu a fi-

lha!

Quando se casaram, em 1986, era a hora de arranjar um lugar só para eles. Um

dos cunhados tinha comprado um terreno vizinho à casa do pai. A área era grande, então

ele fez um acordo com José Marinheiro. Os dois dividiram o lote e ergueram seus barra-

cos ali.

Todos sabiam que a área era pública, só não sabiam de quem. José do Carmo diz

que no começo eles pensavam que a área era da Prefeitura, mas depois descobriram que

era do Estado. José Marinheiro diz que tinha esperança de receber uma concessão de

uso, como aconteceu em algumas áreas da prefeitura de Diadema, que deu a diversos

ocupantes de seus terrenos o direito de residir ali por 90 anos.

23

No começo a casa era feita de madeira, mas aos poucos foi se transformando,

crescendo. Pouco a pouco, bloco a bloco, ele construía novos cômodos para abrigar a

família, que aumentava. E assim, ao longo de 24 anos, surgiram uma cozinha, dois

quartos, outra sala, área de serviço, garagem. Há quem diga que era a casa mais bonita

da Vila Mulford.

- Chegava cinco horas e trabalhava até oito, nove horas. E fui fazendo assim.

Sábado, domingo. Nunca teve, assim, um tempo pra falar: não, hoje vou tirar uma se-

mana pra trabalhar aqui. Foi feito tudo nesses horários, horário de descanso.

O trabalho ainda não estava terminado. A última coisa que fez foi passar massa

corrida nas paredes, e ainda faltavam alguns retoques. O cálculo dele é que seria preciso

mais cinco anos para concluir o serviço, deixar a casa arrumada de vez.

Por duas décadas, José Marinheiro acreditou que viveria para sempre ali, e por

isso colocou todas as suas fichas naquela casa. Hoje elas estão na caçamba. Como não

acha que terá pique para fazer tudo de novo, deposita suas esperanças nos apartamentos

prometidos pelo poder público. Aos 51 anos, essa é a única aposta que pode fazer.

Hoje, as cinco pessoas da família se amontoam nos dois cômodos que alugam

por R$ 400 mensais. José Marinheiro continua sua rotina de trabalho, agora com mais

uma conta para pagar. Ele deixa escapar que é incomodado pela ideia de que tudo pode-

ria ser diferente se gastasse suas energias no estudo, e não na casa. Mas nada tira dele o

orgulho de ser um pedreiro competente, um pai que zelou por seus quatro filhos e tentou

dar a eles um lugar melhor para viver.

As palavras dele são mais potentes do que qualquer coisa que eu poderia escre-

ver:

- Logicamente, eu poderia estar falando diferente se eu fosse uma pessoa bem

sucedida, se não estivesse na situação em que tô. Poderia até ser que eu pensasse dife-

rente. “Não, essas pessoas têm que lutar pelo lugar delas trabalhando”. O que muita

gente pensa é isso. “São uns vagabundos que invadem terra e não querem compromisso

com o trabalho”. Pelo contrário: se acompanharem o dia-a-dia da gente, eu trabalho

todos os dias da minha vida. Hoje eu tô trabalhando lá no Ipiranga. O que eu tô conse-

guindo, no momento, dá pra comer e pro combustível. Posso ter alguma culpa nisso, de

não ser bem sucedido, logicamente. Posso. Eu poderia ter buscado outros caminhos, ter

buscado melhores conhecimentos. Mas infelizmente, hoje, essa é a minha situação.

24

A JUSTIÇA

Todo verão, as chuvas nos lembram o absurdo de nossas cidades mal planejadas.

Em 2010, nove famílias da Vila Mulford sentiriam na pele as consequências desse des-

caso. No começo daquele ano, o talude que separava as habitações da Travessa Cuba e a

Rodovia dos Imigrantes desabou.

O buraco que se formou ficava a menos de um metro da casa mais próxima. Al-

guns dias depois do deslizamento, um funcionário da Defesa Civil de Diadema foi ao

local para averiguar se os habitantes corriam algum risco. Inicialmente, teria interditado

três habitações. Relatos dos moradores dão conta que depois de conversar com um fun-

cionário da Ecovias o homem resolveu interditar outras seis. Entre elas, estavam as ca-

sas dos josés.

Quando o barranco desmoronou, José Marinheiro já imaginava o que aconteceria

depois:

- Quando eu vi aquilo deslizando eu falei: “era tudo o que eles queriam”. Tudo o

que eles precisavam era de um motivo. Então aquele talude foi o suficiente pra eles fala-

rem que dali a 300 metros ia cair tudo.

Apesar da interdição, as pessoas se recusaram a deixar o local. A Ecovias deci-

diu então entrar na justiça para solicitar a saída dos ocupantes e a demolição das cons-

truções. A empresa moveu nove processos, um para cada casa que queria derrubar. Uma

consulta ao site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo mostra que oito ações

foram ajuizadas no mesma data, 22 de março. Na outra, consta como data de distribui-

ção o dia 19 de março.

Como os processos são distribuídos por sorteio, ficaram divididos entre as qua-

tro varas cíveis da comarca de Diadema. Mesmo assim, os entendimentos dos juízes

foram parecidos.

Carlos Gutemberg de Santis Cunha e Marisa da Costa Alves Ferreira considera-

ram que as casas corriam risco iminente de desabamento e ordenaram a saída das famí-

lias do local. No entanto, eles entenderam que as demolições não poderiam ser feitas

imediatamente, apenas depois da avaliação do mérito das ações.

25

Os juízes Antônio Luiz Tavares de Almeida e Érika Diniz inicialmente deram

provimento ao pedido de demolição, mas voltaram atrás depois que a defesa apresentou

um laudo da Prefeitura de Diadema que contradizia algumas das alegações da Ecovias.

Almeida proibiu a demolição até a decisão final. Érika pediu que um perito analisasse se

era realmente necessário destruir as moradias para realizar obras no talude.

A Ecovias recorreu às instâncias superiores, que em geral reformaram as deci-

sões a favor da requerente. As apelações dos despejados foram invariavelmente nega-

das. O processo de José Marinheiro foi julgado por Antônio Luiz Tavares de Almeida.

Em 5 de abril de 2010 ele decidiu que a família deveria desocupar o local:

Comprovou-se documentalmente que o imóvel está em situação de risco. Nesse

sentido reconhece-se a verossimilhança da alegação e o dano de difícil repara-

ção, caso ocorra algum sinistro. Concedo a tutela antecipada para que os réus

desocupem o imóvel em cinco dias, sob pena de reintegração forçada. Necessá-

rio o prazo para que providenciem o deslocamento para outro local, cujo ato se-

rá de incumbência da autora. Se o caso, os réus se utilizarão do Programa Auxí-

lio Moradia da Municipalidade (fls. 154).15

Sete dias depois, o juiz concluiu que não era necessário demolir a casa para rea-

lizar as obras de contenção da encosta:

A decisão que concedeu a tutela antecipada se embasou na situação de risco do

imóvel, conforme exposto na causa de pedir. Os réus intervieram. Anexaram

parecer técnico de engenheiro da Secretaria de Habitação da Prefeitura de Dia-

dema que, em parte, descaracteriza a alegação. A conclusão é a de que o imóvel

pode ser preservado contanto que se implementem as obras necessárias ( fls.

189/190 ). Assim, por cautela, mormente para a preservação da integridade físi-

ca dos ocupantes, sem prejuízo do cumprimento da medida judicial, com a rein-

tegração de posse, veda-se sob quaisquer circunstâncias que a construção seja

demolida até julgamento final. No mais, manifeste-se a autora, apresentando o

projeto e cronograma das obras16

.

A Ecovias recorreu. Em 14 de julho, a 9ª Câmara de Direito Público do TJSP

deu provimento ao agravo de instrumento interposto pela empresa. Os desembargadores

Oswaldo Luiz Palu e Paula Santos acompanharam o voto do relator Décio Notarangeli,

15

Copiado do andamento do processo 161.01.2010.006313-0, acessado a partir do sistema de busca do site do TJSP. 16

Ibidem.

26

que acatou o argumento de que só após a destruição das casas seria possível reconstruir

o talude. Em nenhuma parte da decisão é citado o laudo da Prefeitura de Diadema que

chegou a conclusões contrárias.

Em 23 de junho, o mesmo colegiado negara provimento a um agravo de instru-

mento da defesa. O relator do recurso foi o mesmo Décio Notarangeli. Para ele, os mo-

radores não teriam direito à posse do local, já que ocupam área pública, “o que não se

qualifica como posse na acepção jurídica do termo, mas mera detenção”. Ou seja: José

Marinheiro não teria direito de permanecer ali, nem que morasse há mil anos no local.

Não tinha jeito, as casas iriam a baixo, mais cedo ou mais tarde.

27

CRONOLOGIA DE UM DESPEJO

As famílias da Vila Mulford perderam suas casas a conta-gotas. Da queda do ta-

lude à demolição, foram cerca de seis meses de incerteza, repletos de sustos, alívios,

espera, medo. Em meio ano, a vida dessas pessoas mudou completamente. Aos proble-

mas cotidianos, as contas para pagar, o cuidado dos filhos, o trabalho, somou-se a luta

para manter de pé o abrigo de cada um.

No início de abril, foram expedidas as ordens judiciais que determinavam a saída

dos moradores das casas. Cada um se virou como podia. José Marinheiro teve cinco

dias para deixar o imóvel:

- Eu tive cinco dias pra procurar uma casa e saí numa boa. Ou do contrário eles

iam entrar, tirar as coisas e levar pro galpão deles. Sabe-se lá que jeito. Com certeza não

seria... Seria jogado lá de qualquer jeito. Até que, na última hora, a gente conseguiu essa

casa aqui. Eles trouxeram o caminhão, nós pusemos tudo dentro e descemos pra cá.

Segundo José do Carmo, eles ainda não sabiam que as casas seriam demolidas.

Os funcionários da Ecovias teriam informado apenas que eles sairiam para a reconstru-

ção do talude e depois retornariam. Ele também conseguiu uma casa rapidamente. O

imóvel estava desocupado para uma reforma, e quando o dono soube da situação deles,

resolveu alugar.

As pessoas deixaram o local nos primeiros dias de abril. Cerca de uma semana

depois, em 15 de abril, antes das 7 horas da manhã, os moradores acordaram com o ba-

rulho de marretadas: trabalhadores de uma empresa contratada pela Ecovias estavam

começando a demolir uma das casas, sem aviso prévio, sem ordem judicial – a justiça

havia determinado a reintegração de posse, mas ainda não a destruição das habitações.

Os moradores foram até o local para tentar de alguma maneira salvar suas casas. Um

militante do movimento de moradia foi consultado e sugeriu que eles entrassem nos

imóveis para inviabilizar o trabalho dos operários. Foi isso que eles fizeram, com suces-

so.

A essa altura, o movimento de moradia de Diadema já estava articulado com os

moradores e os ajudou na realização de protestos na Câmara Municipal e no fórum da

cidade. A prefeitura de Diadema, comandada pelo petista Mário Reali, e a bancada do

28

partido na Câmara Municipal também tiveram um papel ativo, negociando com o Go-

verno do Estado e a Ecovias por uma solução que evitasse a demolição das casas.

Em primeiro de maio, uma manifestação na Imigrantes chegou a paralisar com-

pletamente o tráfego da rodovia.

O ato conseguiu atrair a atenção da imprensa paulistana – antes, só os jornais lo-

cais, como o Diário do Grande ABC e o ABCD Maior, haviam noticiado o caso -, mas

não da forma que eles imaginaram. As notícias da Folha Online e do G1 citavam en

passant a reintegração de posse, sem nenhuma contextualização, focando apenas nos

transtornos gerados para o trânsito de veículos. No site Estadão.com.br, o episódio re-

cebeu o seguinte tratamento:

A Rodovia dos Imigrantes foi liberada, no sentido litoral, às 14 horas deste sá-

bado, com o encerramento de um protesto feito na altura do quilômetro 16, em

Diadema, região metropolitana de São Paulo.

A via chegou a ficar totalmente interditada por volta do meio-dia, quando a ma-

nifestação teve início. Em seguida, duas faixas foram liberadas e o trânsito pas-

sou a fluir pelas outras duas pistas. O motorista encontrou lentidão durante o

ato, a partir do quilômetro 16.

Cerca de 200 pessoas contrárias a uma reintegração de posse perto da via atea-

ram fogo em pneus. Os moradores foram retirados da área de risco há aproxi-

madamente 30 dias.17

Naquela tarde foi realizada uma reunião com o diretor-superintendente da Eco-

vias, Humberto de Souza Gomes, previamente articulada pela Prefeitura. Também par-

ticiparam do encontro vereadores da Câmara Municipal de Diadema e o secretário de

habitação e infraestrutura urbana do munícipio, Márcio Vale. O encontro acabou sem

grandes avanços.

A Ecovias não dava sinais de que recuaria, mas os moradores ainda tinham espe-

ranças, tanto que continuaram seu pequeno calvário de reuniões e protestos. Uma audi-

ência pública foi realizada em 8 de junho e contou com a presença do coordenador da

faixa de domínio da empresa, Fernando Arantes, que foi vaiado ao falar na tribuna.

17

Rodovia Imigrantes é liberada após protesto em Diadema. Estadão, 01 mai. 2010. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,rodovia-imigrantes-e-liberada-apos-protesto-em-diadema,545646,0.htm>. Acesso em 10 nov. 2010.

29

Nos bastidores, a Prefeitura tentava chegar a um acordo com a Ecovias, mas, a

essa altura, parecia difícil. Em 15 de julho, em pronunciamento na Câmara Municipal de

Diadema, o vereador Ronaldo Lacerda, do PT, já dava como certa a demolição das ca-

sas e alertava que um conflito de grandes proporções estava a caminho:

- Infelizmente, o que vai ocorrer é a demolição de nove residências. (...) Eu que-

ro deixar o meu protesto, e já foi falado hoje de manhã, na reunião dos vereadores, pelo

secretário jurídico, e eu quero reforçar aqui essa calamidade na nossa cidade, essa ação

truculenta da Ecovias e, consequentemente do Governo do Estado, porque nós tentamos

várias iniciativas políticas pra resolver essa questão pacificamente. E o que a gente teve

ontem numa reunião, inclusive com os movimentos e com as famílias, é que vai haver

resistência. Então é importante que todos os vereadores aqui... Nós vamos estar prepa-

rados, porque, lamentavelmente, nós vamos ter mais uma página triste na nossa cidade,

e isso deve ocorrer na semana que vem. Infelizmente, já temos notícia de reforço polici-

al, e a disposição das famílias é não deixar demolir as casas. E a Ecovias vai vir com

tudo pra demolir, e o confronto vai ser inevitável. Então eu quero deixar meu voto aqui

de solidariedade a essas famílias e falar que eu estarei enfileirando essa luta junto com

eles.

Propositalmente ou não, a fala de Ronaldo Lacerda, antigo militante do movi-

mento de moradia em Diadema, remetia a uns dos dias mais terríveis da história da ci-

dade. Em 11 de dezembro de 1990 uma reintegração de posse terminou em conflito ar-

mado, causando as mortes de duas pessoas e ferindo outras 47, entre elas o então verea-

dor Manuel Boni, líder dos ocupantes, que teve umas das mãos decepadas18

.

Da mesma forma que Lacerda, Boni havia declarado publicamente que um en-

frentamento trágico estava por vir. No dia 5 de dezembro daquele ano, afirmou à Folha

de S. Paulo que “ou o terreno vira um conjunto habitacional, ou vira um cemitério”19

. A

tragédia não se repetiu, mas a demolição não aconteceria sem resistência.

Na noite de 9 de agosto de 2010, uma segunda-feira, José Marinheiro estava fa-

zendo um serviço em Santos. Aproximadamente às 20 horas, ele recebeu uma ligação

da esposa informando que a polícia estava no bairro e a demolição seria feita no dia

seguinte. Ele parou o que estava fazendo e imediatamente subiu a serra.

18

Conflito entre polícia e invasores de terreno causa 2 mortes em Diadema. Folha de S. Paulo, 12 dez. 1990, p. C-1. 19

Painel. Folha de S. Paulo, 05 dez. 1990, p. J-2.

30

A estratégia da polícia era passar a noite ali para impedir que os moradores rea-

lizassem alguma ação que impedisse o trabalho da demolidora. O resultado foi o contrá-

rio do esperado: as ruas começaram a se encher de gente, os moradores protestavam. A

hostilidade e a tensão foram aumentando, até que a polícia dispersou as pessoas com

balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio.

No dia seguinte, veio o desfecho. Com proteção policial, a empresa contratada

para demolir as casas finalmente executou o serviço. Segundo os moradores, alguns

policiais os hostilizavam, provocavam. Outros estavam visivelmente sensibilizados,

chegaram a chorar.

Ironicamente, os encarregados de colocar abaixo as décadas de trabalho de José

Marinheiro elogiavam seu trabalho:

- “Muito bem feita, muito bem feita a sua casa. Você deve ter alguma microem-

presa, alguma coisa assim”. Eles acharam que eu tava ali, mas que eu não... que eu tava

ali para tirar proveito, que eu não precisava daquilo.

A crueldade da situação era expressada nesses pequenos gestos – voluntários ou

involuntários. Os moradores que estavam prestes a perder suas casas não puderam reti-

rar portas, janelas ou móveis que porventura ainda estivessem dentro das moradias. José

do Carmo perdeu a escrivaninha, a mesa e o rack da televisão, que haviam sido feitos

por ele, sob medida, e por isso não puderam ser transportados no dia em que saíram.

José Marinheiro teve mais sorte. Contou com a ajuda dos policiais para driblar a

vigilância e conseguiu retirar algumas das portas e janelas de sua casa.

- Isso foi tirado na raça, porque nem isso eles queriam deixar tirar. E eu consegui

isso com a ajuda de alguns policiais, que aos poucos me davam uma brecha pra eu en-

trar. Eu ia lá, derrubava uma, tirava, ia lá, levava pra fora. Daí a pouco vinham os caras

da Ecovias, falavam que não podia. Eu tinha que sair. Quando eles davam uma brechi-

nha eu ia lá, tirava de novo. E assim que eu consegui tirar algumas coisas que era possí-

vel aproveitar.

No dia seguinte, a prefeitura de Diadema soltou um comunicado em que decla-

rou surpresa com a derrubada das casas:

Apesar do processo de negociação que vinha sendo realizado, a Prefeitura de

Diadema não foi informada pelo Governo do Estado sobre a ação impetrada no

início do dia. A administração pública municipal lamenta o fato ocorrido e o

31

desrespeito manifestado pelos representantes do governo estadual frente ao Po-

der Executivo e às famílias que tiveram suas casas destruídas.

Não há justificativa para a realização da reintegração de posse sem o consenso

entre as partes envolvidas no processo de negociação que vinha sendo realizado

e intensificado nos últimos meses20

.

Na sessão ordinária de 12 de agosto, a primeira depois da demolição das casas, a

Câmara Municipal foi palco de uma discussão acalorada. Inicialmente, os vereadores

que discursaram adotaram um discurso parecido, repudiando a ação da Ecovias. Muitos

deles estiveram presentes durante a ação da polícia e no dia seguinte, acompanhando a

derrubada das moradias.

O presidente da casa na época, Manoel Eduardo Marinho, o Maninho, do PT, foi

o primeiro a tocar no assunto:

- Acho que não tinha necessidade. Não ia cair casa coisa nenhuma, acho que é

tudo uma fantasia criada pela Ecovias e por representantes da Artesp e do Governo do

Estado (...), sem atender à solicitação da Prefeitura, que apresentou um projeto no prazo

certo pra que se fizesse um compromisso com o PAC 2 do Governo Federal, como foi

feito com a Naval21

. O estado pura e simplesmente ignora isso. Trai a nossa consciência,

trai a inteligência do movimento e de nós, vereadores e vereadoras. Vai lá e descumpre

tudo o que pactuou.

Mesmo o vereador José Dourado, do PSDB, partido do governador do Estado,

lamentou a derrubada das casas sem uma alternativa habitacional para as famílias. Mas,

depois de uma fala inflamada de Zé Antônio, do PT, que responsabilizou com veemên-

cia o Governo do Estado pelo ocorrido, ele não se conteve e acusou a Prefeitura, há dé-

cadas nas mãos do Partido dos Trabalhadores, de fazer vista grossa com as ocupações

irregulares.

- Quando se trata da questão da irresponsabilidade, como foi dito aqui, do caso

das casas, não é responsabilidade só do Governo do Estado não, é responsabilidade do

município, que deixou as coisas acontecerem. Eu tô com um problema lá no Jardim Sa-

popema, que isso aconteceu em 1995. Em 1995 construíram umas casas em um lugar

20

Reintegração de posse em área da Ecovias atinge famílias do Núcleo Mulford em Diadema. Site da Prefeitura de Diadema, 11 ago. 2010. Disponível em: <http://www.diadema.sp.gov.br/cidadao/progra mas-e-projetos/1-noticias/2954>. Acesso em: 10 nov. 2011. 21

Referência à Favela Naval, que está sendo urbanizada pelo município.

32

que não deveria ter sido construído, as casas tão caindo agora. (...) Aquelas casas vão

cair, são 12 casas. E aí eu pergunto, Zé Antônio: é responsabiliadde de José de Filipo,

que deixou fazer? É responsabilidade de Mário Reali? Porque ele era o prefeito quando

fez, e a bomba tá estourando agora, na mão do Mário. Quem é, dos dois, que tem a res-

ponsabilidade de ter deixado aquilo acontecer?

As discussões na Câmara de Diadema ainda durariam muitos meses.

33

ANO NOVO, VIDA NOVA

Às seis horas da manhã de primeiro de janeiro de 2011, o balconista Marco Au-

rélio Vieira do Nascimento recebeu uma visita inesperada no sítio onde sua família fes-

tejara o ano novo. Era seu cunhado, que deveria estar a 160 km de distância, em Diade-

ma. Ele vinha para dar uma notícia urgente, que não conseguiu passar antes porque os

celulares não funcionavam no meio do mato.

- Era no meio do mato, em um sítio lá no meio do mato – conta Marco Aurélio.

Seis horas da manhã ele chegou lá chamando nós. Eu pensei que tinha morrido alguém

da família, né.

A notícia não era essa, mas não deixava de ser trágica: a casa de Marco Aurélio

tinha sido incendiada em plena virada do ano.

Naquela noite, um vizinho de Marco Aurélio, Carlos Alberto Dias Cerqueira,

planejava comemorar a passagem junto com os pais. Mas sua esposa não estava dispos-

ta e eles ficaram em casa com seus cinco filhos. Passados 15 minutos da meia-noite,

estavam no quintal, observando os fogos de artifício, quando perceberam que a casa de

um vizinho que havia viajado para Santos estava pegando fogo.

Junto com outros moradores, Carlos tentou apagar o incêndio, mas não sabia

como: desde a tarde do dia anterior o bairro estava sem água. Em menos de 10 minutos

o fogo já havia se alastrado até a casa dele, que só teve tempo de tirar o micro-ondas, o

botijão de gás e os documentos da família. Naquela noite, as chamas consumiram 18

moradias do Núcleo Barão de Uruguaiana, em Diadema.

Ao voltarem para a cidade, Marco Aurélio, sua mulher e seus dois filhos tiveram

que se abrigar na garagem de um vizinho. A família de quatro pessoas dividia o espaço

com uma cunhada de Marco Aurélio e seus cinco filhos. Já Carlos ficou de favor em

uma casa das redondezas.

Com a ajuda de amigos e parentes, os moradores começaram a reconstruir seus

lares poucos dias depois. Os desabrigados receberam madeira, cestas básicas, roupas e

até fogões, doados por vizinhos e associações comunitárias.

Marco Aurélio pegou um empréstimo para comprar os demais materiais de cons-

trução e, no final de janeiro, menos de um mês depois do incêndio, já tinha erguido uma

34

casa nova a partir do pouco que sobrou da antiga. Carlos começou a reconstruir a sua

logo no dia seguinte à destruição. Diz que virava as noites trabalhando, o que causou

algumas faltas ao serviço, e por isso perdeu o emprego.

Menos de um mês depois, no final de janeiro, muitas casas já tinham tomado

forma, e algumas famílias já estavam morando ali de novo. Carlos diz que tinha recebi-

do doações de eletrodomésticos e materiais de construção. O imóvel ainda não tinha

ligações de energia e água, mas a família já estava dormindo ali. Os banhos e as refei-

ções eles faziam nos vizinhos.

- Tava bonito já, pô. Faltava o contrapiso de um quarto, o meu, e faltava abrir

duas janelas. Só. Já tava morando, entendeu? Todo mundo morando, tava organizadinho

já.

O esforço deles não seria recompensado, pois em breve receberiam outra má no-

tícia: a Ecovias havia entrado na justiça para tirá-los dali. As casas que pegaram fogo

ficavam na faixa de domínio da Imigrantes, e a empresa entrou com uma ação de reinte-

gração de posse após o incêndio, alegando que havia risco iminente de desmoronamento

do talude onde estavam edificadas as casas – o mesmo argumento utilizado para retirar

os moradores da Vila Mulford cinco meses antes – e que a reconstrução das moradias

configurava uma nova ocupação. Os réus eram os moradores das 18 casas incendiadas

na virada do ano.

Carlos diz que ao receber a notícia ficou com a cabeça “a milhão”, pensando no

trabalho perdido, no que faria dali para frente:

- Chovendo, garoando, e nós ali, na luta, direto, dia e mais dia ralando. Tentando

correr contra o tempo pra levantar, pra todo mundo se aconchegar ali. Aí consegue uma

coisa, consegue outra. Consegui umas tábuas, consegui umas coisinhas. Aí quando você

pensa que vai ficar sossegado, outra bomba: vocês vão ter que sair dia dois de fevereiro,

a Ecovias ganhou.

A liminar autorizando a retirada das pessoas e a demolição das moradias foi de-

ferida em 16 de janeiro pela juíza Érika Diniz, da 1ª Vara Cível de Diadema. A defesa

dos moradores, a cargo da assistência judiciária gratuita do município, alegou que a área

não era de risco, mas em seu despacho a magistrada considerou que isso não entrava no

mérito da questão:

35

Ocorre, porém, que a ocupação da faixa de domínio da autora é indevida e tam-

pouco dá azo a eventual direito de usucapião, razão pela qual a tutela deve ser

antecipada para autorizar a requerida ao desfazimento das obras erigidas no lo-

cal. Ante o exposto, à vista do teor do laudo pericial, AUTORIZO a autora ao

desfazimento das obras construídas em sua faixa de domínio22

.

Na madrugada do dia primeiro de fevereiro, cerca de 110 policiais militares se

dirigiram ao local para executar a determinação da justiça. Não houve confronto com a

polícia, e os moradores deixaram as casas pacificamente. Pela segunda vez em menos

de um mês as 18 famílias estavam na rua.

A Prefeitura de Diadema novamente condenou a ação da Ecovias, alegando que

engenheiros e arquitetos do município visitaram o local e atestaram que não havia ne-

nhum risco para as famílias que ali residiam. Em nota divulgada em seu site, o municí-

pio acusou a concessionária de abandonar as negociações para dar uma solução habita-

cional aos moradores da faixa de domínio da Imigrantes23

.

Todas as pessoas despejadas tinham refeito, ou pelo menos começado a recons-

truir suas casas. Marco Aurélio voltara ao local há apenas cinco dias e teve que arranjar

uma moradia às pressas. Conseguiu um lugar ali perto, que alugou por R$ 500.

Carlos não tinha pra onde ir e acabou em um ginásio poliesportivo das redonde-

zas. Novamente sem casa, e agora desempregado – ironicamente, a empresa da qual ele

foi demitido prestava serviços para a Ecovias, fazendo a manutenção das instalações da

concessionária.

As pessoas que ficaram no ginásio usavam os vestiários para tomar banho e la-

vavam as roupas em um tanque de plástico levado por um dos desabrigados. A Prefeitu-

ra fornecia parte da alimentação e eles se revezavam para cozinhar e manter a limpeza

do local. A estrutura tinha goteiras, então tiveram que tapar os buracos.

Para Carlos, o pior era a falta de privacidade. Ele pôde retirar algumas das tá-

buas da antiga casa e improvisou um biombo no meio da quadra, mas mesmo assim

sentia falta de um espaço só para sua família.

22

Andamento do processo 161.01.2011.000320-1, consultado no sistema de busca do site do TJSP. 23

Nota à imprensa - Reintegração de posse em área da Ecovias atinge famílias do núcleo Barão de Uru-guaiana em Diadema. Site da Prefeitura de Diadema, 01 fev. 2011. Disponível em: <http://www.diade ma.sp.gov.br/cidadao/galeria-cultural/1-noticias/3578>. Acesso em: 10 nov. 2011.

36

- Um monte de gente, você não tem privacidade nenhuma. Um monte de compa-

nheiro do seu lado. Aí do lado da rua um monte de carro, barulho. Um monte de pessoal

usando droga.

Eles ficaram cerca de dois meses no ginásio. Nesse meio tempo, Carlos arrumou

um novo emprego, que paga R$ 750 por mês, então eles começaram a procurar casas

para alugar e reconstruir a vida. Um amigo do sogro falou de uma no bairro do Alva-

renga, em São Bernardo do Campo, que parecia promissora. Inicialmente, a dona do

imóvel recusou-se a alugar por causa das crianças, mas depois de alguma insistência ela

cedeu, e hoje eles pagam R$ 350 mensais para viver ali.

A casa, segundo Carlos, é boa. A única coisa que o incomoda é a distância: o

Alvarenga fica à beira da Billings, em área de proteção aos mananciais, a oito quilôme-

tros de sua antiga residência, e é bem menos dotado de comércio e infraestrutura públi-

ca.

- Lá só é vantagem porque os meninos vão de ônibus pra escola e vêm. Mas

mercado grande não tem, nem banco. Tudo coisinha pequeninha que tem lá. Tudo caro,

longe.

Assim como no caso da Vila Mulford, as 18 famílias do Núcleo Barão de Uru-

guaiana têm a promessa de que receberão o auxílio para pagar o aluguel até receberem

habitações populares. Por enquanto, eles voltaram à condição da qual tentaram fugir

ocupando ou comprando os terrenos na beira da rodovia.

37

FUGINDO DO ALUGUEL

As construções na faixa de domínio da Imigrantes foram geradas pela mesma

lógica que acarretou na ocupação de mananciais e áreas de proteção ambiental na Gran-

de São Paulo. Impossibilitadas de acessar o mercado formal de habitação pela pobreza,

as famílias construíram suas casas em áreas fora do circuito do mercado imobiliário,

contando com a conivência do poder público, que não cumpriu sua obrigação de fiscali-

zar.

É o caso da costureira Marinês Maria de Araújo Nascimento. Ela e o ex-marido

ocuparam um terreno no Núcleo Barão de Uruguaiana há seis anos, depois de passar 16

vivendo de aluguel. “O pessoal tava ocupando, aí a gente ocupou também”, explica ela,

sinteticamente.

Marinês sabia que o terreno era público, que não podia construir ali, mas diz que

a possibilidade de escapar do aluguel era atraente demais. Sempre que fala sobre a pos-

sibilidade de ser expulsa dali, desvia os olhos e diminui o tom de voz.

Outros moradores aparentam não ter muita noção de que são invasores e mais

cedo ou mais tarde terão que deixar o local. Savana Souza Oliveira, que chegou recen-

temente a Diadema - quando aconteceu o despejo morava há apenas sete meses na cida-

de – se mudou para lá sem saber que a casa onde vive é uma construção irregular.

- Eu não sei se isso aqui é da Ecovias, porque eles falam que é, depois eles falam

que não é. Aí ninguém sabe se é ou se não é.

Dona de casa, aos 22 anos já é mãe de dois filhos. Veio de Divisópolis, Minas

Gerais, onde conheceu o marido. Ele migrou antes, quando resolveu trocar a profissão

de motorista de ônibus, que exercia na terra natal, por uma oportunidade em uma loja na

cidade paulista, onde instala carpetes em carros. Por pouco, a casa deles não pegou fogo

na virada do ano – o incêndio chegou até a moradia vizinha.

À medida que se entrevistam os moradores do Núcleo Barão de Uruguaiana,

percebe-se que é quase impossível encontrar alguém que fuja do perfil de Marinês e

Savana: são quase todos migrantes, têm baixa escolaridade e fazem trabalhos manuais

pouco qualificados – um exército de empregadas domésticas e pedreiros. Não deveria

38

ser surpreendente, já que é exatamente o que dizem as estatísticas, mas impressiona

constatar na prática que há poucos, praticamente nenhum desvio desse padrão.

Valderice Antunes não foge à regra: empregada doméstica, estudou só até a pri-

meira série do ensino fundamental e tentou fugir do aluguel através da ocupação irregu-

lar e da autoconstrução.

Ela nasceu em Colorado, no Paraná (a 500 quilômetros de Curitiba), onde seus

pais tinham uma pequena propriedade rural. Arroz, feijão, milho, amendoim e outros

plantios alimentavam a família e rendiam algum dinheiro. Foi para Diadema com um

emprego certo, para trabalhar como empregada doméstica. Depois de algum tempo vi-

vendo na casa dos patrões, foi morar de aluguel com o primeiro marido, com quem teve

três filhos. Quando veio a separação, não teve como custear a locação de uma casa de

alvenaria.

- Aí é que eu comecei a morar em barraco, né. Eu mesma batalhei e consegui um

barraquinho – conta ela.

Daí em diante, perdeu as contas de quantas vezes trocou de residência. Chegou a

participar de ocupações promovidas por movimentos de moradia, mas a cada nova mu-

dança se deparava com um problema diferente: as enchentes, a violência, a distância dos

parentes do segundo esposo, falecido, que são sua família postiça – Valderice é filha

única e seus pais já morreram. Um dia, uma amiga contou que tinha uma vizinha que-

rendo vender seu barraco no Jardim Ruyce. E lá foi ela tentar de novo.

Isso foi há quatro anos. Ela investiu R$ 5 mil no barraco pequeno, feito de ma-

deirite, cujo teto não deve passar de 1,90 metro de altura. No verão a casa é quente, no

inverno é fria demais. E por causa do chamado “congelamento”, instituído pela Ecovias

e pelo governo municipal para impedir a expansão das ocupações, os moradores preci-

sam de permissão para executar quaisquer reparos nas residências.

- Se for pra bater um prego, a gente tem que pedir autorização pra eles. Eles vêm

com uma folha e assinam pra gente poder fazer alguma coisa - afirma Valderice.

O resultado é uma casa que parece desleixada: algumas tábuas estão podres, as

telhas têm buracos, uma janela quebrada foi substituída por filme plástico, que já não se

pode chamar de provisório.

39

Apesar dos pesares, Valderice acha que a vida ali é melhor do que nos últimos

lugares pelos quais passou. Quando se mudou para o Jardim Ruyce, ela sabia que havia

a chance de ser despejada, mas preferiu arriscar.

- Eu sabia que tava numa área da Ecovias, que mais cedo ou mais tarde ia sair.

Mas sempre ouvi falar que tinha projeto pra ir pra apartamento, etc e tal. Nós não que-

remos nada de graça, a gente sabe que hoje em dia ninguém dá nada pra ninguém. O

que a gente queria era um acordo.

O acordo viria, mas Valderice e os outros moradores da beira da Imigrantes ain-

da aguardam a solução.

40

O ACORDO

A ação de reintegração de posse contra os moradores da Vila Mulford, no início

de 2010, foi uma mudança na estratégia da Ecovias para lidar com as ocupações irregu-

lares em sua faixa de domínio no município de Diadema. Nos anos anteriores, segundo

o secretário de habitação e desenvolvimento urbano da cidade, Márcio Vale, até então

as duas entidades, juntamente com o governo do Estado, vinham cooperando para dar

uma solução negociada ao problema.

- A relação com a Ecovias, ela sempre foi uma relação respeitosa – diz o secretá-

rio. A ponto de, em 2006, a própria Ecovias ter contratado um estudo de consolidação

dessas famílias. A Ecovias fez o cadastro de todas as famílias, elas têm uma carteira

emitida pela Ecovias, e foi contratada uma empresa de gerenciamento técnico e social

pra acompanhar esse processo todo. Foi produzido um plano de intervenção. Então tudo

isso em conjunto com a Prefeitura à época.

Vale acredita que a concessionária começou a entrar com mais frequência na

Justiça para forçar uma ação do poder público nessas áreas.

- A impressão que nós temos é que a Ecovias resolveu tencionar e, tencionando,

tentar viabilizar algo, ou simplesmente remover mesmo... Ela tava indo à Justiça, tava

conseguindo o seu intento, que é jogar as famílias na rua, e isso se tornaria problema

dos governos.

Uma teoria corrente entre os moradores e o movimento de moradia da cidade é

que a companhia começou a acionar as famílias da justiça porque precisa desocupar as

margens da rodovia para pleitear uma renovação da concessão. O advogado Renato

D’Amico, da assessoria jurídica da empresa, nega essa versão. Ele diz que o contrato de

concessão expira apenas em 2024, e não há nenhuma cláusula que exija a entrega da

faixa de domínio livre de ocupações.

As obrigações da concessionária, segundo ele, são três: evitar novas ocupações,

impedir a ampliação das ocupações existentes e identificar possíveis áreas de risco,

agindo para evitar catástrofes.

O advogado diz que em todos os casos a ação judicial foi utilizada para cumprir

essas obrigações. Pergunto, abordando especificamente o caso da Vila Mulford, se não

41

seria razoável tentar uma solução negociadas com as pessoas – afinal, a empresa prega

em seu Código de Conduta Empresarial que possui “canais permanentes de comunica-

ção, diálogo e negociação” com as comunidades lindeiras às rodovias que administra.

- Não, por conta... Assim, qual que é a obrigação da Ecovias? É resolver a ques-

tão. E ali não tinha muito o que fazer. Até porque tinha que ser uma remoção imediata.

Uma remoção imediata. E tinha que tirar, porque o risco era iminente.

Para Márcio Vale, o discurso de cuidar das pessoas para evitar riscos é apenas de

fachada. No caso da Vila Mulford, um estudo realizado pela Secretaria de Habitação e

Desenvolvimento Urbano afirmava que não havia risco imediato para as edificações.

- A Ecovias tem know-how suficiente pra fazer a ação de mitigação do risco sem

a remoção das famílias das casas. Nós temos convicção disso. Porque já vimos a Ecovi-

as fazer isso. Se você for na Imigrantes, em direção ao bairro Demarchi, aqui em São

Bernardo do Campo, você verá um talude muito mais íngreme do que o que nós temos

na Mulford com, inclusive, recobrimento em concreto. Porque houve um deslizamento.

A diferença, a única diferença, é que sobre esse talude tem uma empresa. Não é popula-

ção pobre.

A conversa com o secretário deixa transparecer que havia uma tensão sobre

quem pagaria a conta do reassentamento das famílias.

- Não é razoável que o Estado e a Ecovias, sua concessionária, considerem que

esse é um problema municipal, que esse é um problema exclusivamente municipal. En-

tão nós sempre tratamos isso de uma maneira muito assertiva, buscando construir um

compromisso mútuo, mas afirmando sempre que há uma responsabilidade clara do Go-

verno do Estado, que tem políticas para atendimento desse tipo de demanda e não atua-

va em Diadema.

D’Amico, por sua vez, deixa claro que a Ecovias não está disposta a gastar para

resolver o problema:

- Isso [realocar os moradores] não é responsabilidade da concessionária. Isso é

responsabilidade do Estado e do Município. A Ecovias não tem, quando ela entrou na

concessão ela não assumiu essa obrigação. Essa obrigação não é dela. A obrigação dela

é a administração da rodovia.

42

Apesar das discordâncias e da troca de farpas, a empresa, a Prefeitura de Diade-

ma e o Estado, através da CDHU, chegaram a um acordo para resolver a situação. Em

30 de maio de 2011 as três partes assinaram um protocolo de intenções que teoricamen-

te porá fim ao problema.

O documento prevê a remoção de cerca de metade das moradias edificadas na

área de domínio da Imigrantes em Diadema, com a transferência dos moradores para

540 unidades habitacionais a serem construídas e financiadas pela CDHU. As restantes

seriam mantidas e urbanizadas. O financiamento das obras caberia integralmente à

CDHU, sendo a Prefeitura responsável por elaborar os projetos de urbanização e apre-

sentar terrenos para a construção das habitações.

As únicas obrigações da Ecovias são fiscalizar as áreas sob sua responsabilidade,

evitando ampliações e novas ocupações, e retirar uma ação de reintegração de posse

contra os moradores do Núcleo Barão de Uruguaiana – não a que causou o despejo de

18 famílias no início de fevereiro, mas outra, ajuizada em março, contra 53 ocupantes

da mesma área.

O prazo para a realização das ações previstas no protocolo é de dois anos. Már-

cio Vale diz que as partes estão cumprindo suas responsabilidades conforme o crono-

grama acertado. A Prefeitura indicou terrenos e definiu as diretrizes de elaboração dos

projetos. O Governo do Estado expediu um decreto de interesse social para fins de de-

sapropriação dos locais apontados pelo munícipio e está fazendo estudos para verificar a

viabilidade dos empreendimentos. Enquanto isso, os moradores despejados da Vila

Mulford e do Núcleo Barão de Uruguaiana simplesmente aguardam.

Embora não seja uma obrigação explicitada no acordo, a Ecovias não entrou

com novas ações de reintegração de posse em Diadema. Mas em outros munícipios ela

continua com a prática. Em São Bernardo do Campo, corre na justiça um processo con-

tra 53 réus que habitam a área de domínio da Anchieta, na região do quilômetro 24. Ini-

cialmente, a empresa conseguiu uma ordem para remover os moradores e demolir as

casas, mas o Ministério Público conseguiu caçar a liminar em 9 de junho. O processo

ainda corre na justiça.

43

NA REPRESA

44

PROGRAMA MANANCIAIS

Nas ruas tortuosas que margeiam a Represa Billings, é comum encontrar peque-

nos estabelecimentos que funcionam como imobiliárias, embora não tenham licencia-

mento para prestar esse serviço. Hoje em dia é difícil encontrar casas para alugar nesses

locais, em suas fachadas encontram-se apenas anúncios de venda. O mercado imobiliá-

rio local está tão aquecido que muitos proprietários se dão ao luxo de recusar inquilinos

que consideram “inadequados”, como pessoas com muitos filhos ou com emprego in-

formal. No Jardim Gaivotas, muitos procuram a associação de moradores local e pedem

ajuda para encontrar um lugar para morar.

Numa quarta-feira nublada de maio de 2011, o presidente da associação, Elito

Gonçalves Dias, o Litão, tentava acalmar uma mulher que estava sendo despejada da

casa alugada há cerca de um ano. A proprietária estava insatisfeita com os constantes

atrasos no pagamento e pediu a saída da inquilina. A mulher, que devia passar pouco

dos 30 anos de idade, vociferava que não conseguia casa para alugar, que um proprietá-

rio recusou-se a aceita-la porque ela não tinha trabalho fixo, que outro fez o mesmo por

causa de seus dois filhos, que iria matar a atual locatária se ficasse na rua. Ameaçava

denunciar a situação para a Record, a Globo, nas rádios, nos jornais. Mas os presentes

não sabiam como ajudá-la, pois o contrato de aluguel era verbal, e o pedido para deso-

cupar a casa já tinha sido feito há três meses.

O aquecimento do mercado (formal e informal) de imóveis da região tem vários

motivos, mas um deles é a demanda gerada por conta das remoções realizadas pelo Pro-

grama Mananciais, ou Programa de Saneamento Ambiental das Bacias do Alto Tietê,

criado em 2005 pelo Governo do Estado para reverter (ou pelo menos amenizar) a de-

gradação causada pela ocupação irregular das margens dos rios e represas da Grande

São Paulo.

Por décadas, as bordas das represas e rios da cidade foram povoadas sem plane-

jamento, o que resultou em um contingente de 2,2 milhões de pessoas vivendo em áreas

de proteção aos mananciais na Região Metropolitana de São Paulo24

. Boa parte dessa

24

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2007a, p. IX. Esse é o número total de moradores das chama-das Áreas de Proteção e Recuperação aos Mananciais (APRMs), estabelecidas pela lei estadual nº 9.866, de 28 de novembro de 1997. Isso não significa que todas essas casas estejam irregulares, já que a legis-lação permite a ocupação dessas regiões, desde que cumpridos certos requisitos. Já as margens das

45

população se alojou em favelas e loteamentos irregulares à beira dos cursos d’água, sem

saneamento básico adequado, o que aumentou de forma alarmante a poluição dos reser-

vatórios que abastecem a cidade.

Fornecer água para os quase 20 milhões de habitantes da metrópole é um desa-

fio. Parte do líquido que chega às torneiras da cidade viaja por mais de 80 quilômetros,

vindo de Bragança Paulista. Se os atuais reservatórios não forem preservados, a água

terá que ser buscada ainda mais longe, com custos altíssimos. E dentre as represas que

abastecem a população da cidade, Guarapiranga e Billings são as mais comprometidas –

em suas margens vivem cerca de 1,7 milhão de pessoas25

. Uma multidão, impossível de

ser completamente removida. A solução encontrada pelo poder público para resolver

essa equação complicada foi criar um programa que concentra seus esforços na urbani-

zação dos assentamentos precários da região, dotando-os de saneamento básico adequa-

do.

Essa é a filosofia do Programa Mananciais, uma iniciativa estadual realizada em

cooperação com as prefeituras de diversos municípios da Grande São Paulo. O financi-

amento das intervenções é feito com recursos dos participantes, do Governo Federal e

de empréstimos do Banco Mundial.

Mas um certo número de remoções é inevitável. Há casas em encostas íngremes,

que se debruçam sobre a água, sustentadas por algum capricho das leis naturais. Outras,

apesar de ocuparem lugares planos, estão literalmente dentro da represa: existem mora-

dias que se encontram abaixo do nível máximo do reservatório. De fato, há casos em

que pessoas construíram suas casas no período de seca e as viram ficar embaixo da água

no verão26

.

O que fazer com essas pessoas? Segundo o Marco Conceitual da Política de Re-

assentamento do programa, um documento exigido pelo Banco Mundial para a conces-

são do financiamento, ninguém ficaria na rua, pelo contrário:

O reassentamento em questão não se propõe a oferecer à população as mesmas

condições que esta possui atualmente, e sim, a lhe oferecer melhores condições

de habitação, em termos de condições sanitárias, cidadania, segurança, acesso a

represas e cursos d’água não podem ser ocupadas, a não ser em casos excepcionais, pois são protegidas pelo Código Florestal, uma lei federal, e pelas leis específicas da Billings e da Guarapiranga, estaduais. 25

Ibidem, p. 86. 26

FIX, 2001, p. 252.

46

serviços e valor da moradia, contribuindo em grande maneira para a melhora da

sua qualidade de vida em geral27

.

O documento, redigido em 2007, descreve as diretrizes a serem seguidas nos ca-

sos em que for necessário reassentar famílias residentes nas áreas sob intervenção do

programa e coloca quatro alternativas habitacionais para essas pessoas: “apartamentos

em conjuntos habitacionais em bairros bem localizados na cidade”, “unidades habitaci-

onais (em geral duas unidades sobrepostas) construídas na própria favela”, troca de mo-

radia – “a família a ser reassentada muda para uma casa de melhor qualidade, cujo mo-

rador muda para um apartamento financiado” – e a concessão de uma carta de crédito28

.

Tudo muito bonito. Mas, na prática, a teoria é outra.

27

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2007b, p. 26 28

Ibidem, p. 20

47

JARDIM TOCA

- Eu saí pra levar o meu pai no médico. Quando eu cheguei, minha casa tava

marcada. Não sabia o que que era, fui perguntar e eles falaram pra mim que era um be-

nefício pra gente. Eu disse: nossa, que bom, até que enfim que eles agora enxergaram a

gente como ser humano. Porque vários pedidos eu já dei pra Sabesp, pedindo água, pe-

dindo luz, porque nós não temos. Porque essa viela, a Toca, ela existe há uns 40 anos ou

mais. Então eu sempre pedia pra eles cadastrarem pra entrar correio, pra gente ter água,

pra gente ter luz, tudo legal. E eles nunca atenderam a gente. Aí eu fiquei feliz quando

eles me passaram isso, que foi o que a assistente social e um rapaz que tava fazendo a

prancheta lá falou.

Assim, destacado, descontextualizado, o depoimento de Ana Lúcia Gouveia So-

ares29

pode parecer parte de um comercial do governo que mostra os benefícios do pro-

grama tal, com gente simples sorrindo e agradecendo a deus – ou ao mandatário em

questão – pela graça alcançada. Mas a história não acaba aí.

O que ela e os moradores de aproximadamente outras 130 casas do Jardim Toca

– uma “filha” da favela Parque Cocaia I, no Grajaú, Zona Sul de São Paulo – descobri-

riam nos dias seguintes é que as suas moradias estavam sendo marcadas porque teriam

que ser demolidas para a realização das obras de canalização do Ribeirão Cocaia, que

corta a comunidade.

O projeto da Prefeitura é que essa obra seja apenas parte de uma intervenção

maior na região. O Ribeirão Cocaia é um dos afluentes da Billings, e a criação de um

parque linear em suas margens é planejada pela Prefeitura pelo menos desde 2004 – o

parque consta no Plano Regional Estratégico da Subprefeitura da Capela do Socorro,

promulgado naquele ano.

No entanto, os moradores das áreas adjacentes ao córrego – supostamente os

maiores beneficiados pela obra – só seriam diretamente contatados pelo poder público

em março de 2009. Alguns dias depois de ter sua casa marcada, Ana Lúcia recebeu a

visita de funcionárias do Consórcio EIT-Santa Bárbara, contratado pela Prefeitura do

29

As entrevistas com os moradores do Jardim Toca foram realizadas em março e abril de 2009, na época em que estavam ameaçados de despejo. As conversas com o coordenador do Programa Mananciais na Prefeitura, Ricardo Sampaio, e com o defensor público Carlos Henrique Loureiro também aconteceram nessa época.

48

município para fazer as obras. Elas fizeram um cadastro e informaram que ela teria que

deixar o local.

- Ela falou pra mim que nós não tínhamos direito nenhum, porque nós éramos

invasores. Eu falei pra ela o seguinte: que eu não era invasora porque eu tinha comprado

a minha casa. E eu tenho como provar. Ela disse: então vocês podem até ser preso por

cúmplice de invasor.

Segundo Ana Lúcia e outros moradores, as funcionárias convocaram todos os

cadastrados para uma reunião no canteiro de obras do consórcio. Lá, foram informados

que receberiam um cheque de R$ 8 mil para deixar as casas em dez dias – já havia até

um documento pronto para que assinassem. As “assistentes sociais” que falaram com

eles teriam pressionado as pessoas a aceitar a proposta, dizendo que quem não pegasse o

dinheiro corria risco de ser despejado sem nenhuma compensação.

Boa parte dos moradores acabou assinando o documento, do qual não ficaram

com cópia. Francisco Salete foi um dos que pegou o dinheiro e saiu dentro do prazo

dado pela empreiteira. Já idoso, com cabelos brancos e a voz rouca de quem fuma, ele

disse na época que ficou assustado com a possibilidade de sair sem nada.

- Eles falaram que ia derrubar, que ia derrubar por cima. Com dez dias, se não

saíssem, ia derrubar por cima. Então a gente, pra não acontecer isso... Não foi só eu e

ela aqui, muita gente vizinho da gente fez isso, alugou casa.

Com o dinheiro, ele e a mulher, Francisca, conseguiram uma casa por R$ 450

mensais. Uma despesa que eles diziam ser insustentável depois que o dinheiro da “inde-

nização” acabasse. Assim como a maioria dos despejados, Francisco não foi muito lon-

ge: estava morando no Jardim Eliana, bem pertinho dali – as duas comunidades fazem

parte do Distrito do Grajaú.

O despejo fez a família voltar à situação de 27 anos antes, em 1982, quando ele e

a mulher foram para o Jardim Toca. Como sempre, fugindo do aluguel. Como sempre,

comprando um terreno loteado irregularmente.

- Quando eu mudei pra cá a gente morava lá no Jardim Três Corações30

, a gente

morava de aluguel – relembra Francisco. Aí tava fazendo esses terreninhos e eu comprei

um terreno. Aí comecei a construir, e todo mundo tava construindo junto, né. No terreno

30

O Jardim Três Corações também fica no Distrito do Grajaú, embora seja mais afastado da margem da represa, bem próximo à Avenida Dona Belmira Marin.

49

eu construí minha casa, todo mundo construiu. E desse tempo pra cá a gente foi fazendo

nossa vida, a gente não sabia que ia acontecer... A gente gastou tudo o que tinha, traba-

lhando, né, e fazendo tudo o que tinha, a gente não esperava que ia acontecer isso com a

gente. Gastou tudo o que tinha, e agora tomaram tudo o que nós tinha aí. A minha casa

valia uns R$ 30 mil se fosse mais ou menos... no preço pra regular, pelo que nós gasta-

mos.

Um mês depois de deixarem a casa, Francisco e Francisca ainda frequentavam as

reuniões que os moradores do Parque Cocaia faziam aos fins de semana para discutir

como se opor à ação da construtora. A esperança era que, mesmo já despejados, ainda

pudessem conseguir alguma coisa: um dinheiro a mais para comprar um novo terreno

("ver se a gente arruma um terreninho pra construir, pra ver se a gente sai do aluguel")

ou até uma nova casa.

Com R$ 8 mil, o destino das famílias poderia ser apenas outro terreno irregular.

Maria Cristina da Silva foi uma das moradoras que não pegou o cheque, mas foi pesqui-

sar o que poderia comprar com aquele dinheiro e confirmou o que já imaginava: preci-

saria de muito mais para se mudar para um imóvel legal.

- Encontrei uma casa de R$ 40 mil. Encontrei muitas em favela, mas eu não que-

ro, por meus filhos. Tenho duas crianças pequenas. Encontrei até de R$ 80 mil, mesmo.

Mas eu tô esperando, porque se eles derem, por exemplo, mais R$ 7 mil, não é muito,

mas com oito são R$ 15 mil. Já dá pra dar uma casa melhor. Porque eu tenho duas cri-

anças pequenas, eu não vou pra qualquer lugar. (...) Pegando o dinheiro, eu pretendo dar

entrada numa casa que tenha escritura. Porque essa historinha de invasão, não dá.

Ela sabia que mais cedo ou mais tarde teria que sair da casa que construiu “sobre

a lama”. Na verdade, já desejava deixar o local, pois os transtornos causados pelas obras

no córrego tornaram a vida ali muito mais difícil. Além disso, as demolições foram tor-

nando a vizinhança cada vez mais deserta, o que aumentou a preocupação com a segu-

rança da família.

- Nós estamos aqui arriscando a vida. É ladrão roubando as coisas da gente, os

caminhões quebrando os fios. Queimou os meus eletrodomésticos aqui. Foi. Passou ali

com a caçamba levantada e saiu arrastando os fios. Deu curto e queimou meu micro-

ondas, queimou umas coisas.

50

Os moradores provavelmente ficariam ainda mais revoltados se soubessem que a

obra no Ribeirão do Cocaia poderia ser feita desalojando menos gente. A urbanista Si-

mone Aparecida Polli, que realizou pesquisas no local para sua tese de doutorado, afir-

ma que um projeto anterior previa um número menor de remoções:

Em março de 2007, a empresa Consórcio JNS-HagaPlan, contratada pela Sehab

para o planejamento das intervenções, elaborou estudos preliminares que apon-

taram para a urbanização do Jardim Cocaia I /Toca, com pouquíssimas realoca-

ções, relacionadas a casas próximas aos córregos que desembocam na represa e

para abertura de áreas de lazer. O valor estimado dos custos para o Parque Co-

caia I era de R$ 2 milhões, incluindo obras de drenagem, abastecimento de água

e urbanização.

Em março de 2008 esse projeto é revisto, ao que tudo indica, devido a uma dire-

triz constante no Plano Regional Estratégico de 2004, que inclui essa área no

Parque Linear do Ribeirão e Braço do Cocaia. Dessa forma, a empreiteira con-

tratada, o consórcio EIT-Santa Bárbara, elaborou novo projeto, que detalha a

implantação do parque linear com os equipamentos de lazer e arborização da

área. Essa solução desconsidera a ocupação existente, exigindo a remoção de

toda a favela do Parque Cocaia I/ Toca. No entanto, o projeto não especifica que

solução habitacional será adotada para as famílias desalojadas31

.

O caso do Jardim Toca chamou a atenção de algumas organizações de defesa da

moradia e dos direitos humanos, como o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente

(Cedeca) de Interlagos, que passou a auxiliar as famílias na interlocução com o poder

público. O caso também chegou à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que en-

trou com uma Ação Civil Pública para paralisar os despejos.

Nas 36 páginas da ação, o advogado Carlos Henrique Loureiro, do Núcleo de

Habitação e Urbanismo da Defensoria, pedia a imediata suspensão das obras no local e

a interrupção da “perturbação à posse dos integrantes desta Comunidade, particularmen-

te deixando de promover a oferta de qualquer promessa de recompensa pela desocupa-

ção”.

A alegação do defensor era que o projeto não contou com a participação dos mo-

radores da comunidade em sua formulação, direito garantido pelo Estatuto das Cidades,

que determina no inciso II do seu artigo segundo que a política urbana deve ter como

31

POLLI, 2010, p. 8.

51

uma de suas diretrizes a “gestão democrática por meio da participação da população e

de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação,

execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento ur-

bano”. Além disso, os moradores teriam direito à Concessão de Uso Especial para Fins

de Moradia32

, e a oferta de R$ 8 mil reais em troca de sua saída seria uma afronta a essa

prerrogativa.

Pessoalmente, o defensor Carlos Henrique Loureiro considerava o Programa

Mananciais uma iniciativa louvável, pois sua proposta é compatibilizar o direito à mo-

radia e o direito ao meio ambiente, dois aspectos que geralmente são tratados como

opostos pelos governos. Mas a situação do Jardim Toca, especificamente – a pressão

sobre os moradores, a ausência de diálogo e informação por parte da construtora e do

governo – era inaceitável para ele.

- A gente acompanha outras comunidades também – declarou o advogado na

época. Mas até o momento a gente não conhece uma intervenção tão grave quanto foi a

que ocorreu na Favela Cocaia I. Nós acompanhamos também outras comunidades que

estão instaladas em áreas de manancial, que foram eleitas para serem atendidas pelo

Programa Mananciais, mas até agora não houve outra intervenção muito grave da Pre-

feitura, e estamos tentando evitar que isso aconteça.

As preocupações do defensor não sensibilizaram o judiciário. Na primeira ins-

tância, o juiz Wanderley Sebastião Fernandes, da 6ª Vara da Fazenda Pública da Co-

marca de São Paulo, negou provimento ao pedido de Loureiro. Às 36 páginas da Ação

Civil Pública, ele respondeu com duas, nas quais a argumentação para refutar as preten-

sões da Defensoria estava condensada em dois parágrafos:

2. Se a área é pública, a princípio, a administração municipal tem o direito e o

dever de efetuar o saneamento, proteção ambiental e recuperação da qualidade

das águas em locais degradados de manancial hídrico das “Bacias Guarapiranga

e Billings”.

3. Em função disso, diante da supremacia do interesse público sobre o particu-

lar, como a petição inicial não veio instruída com nenhum documento viável

demonstrando a possibilidade de regularização ou de assentamento regular na

área ambiental, ausente o requisito da fumaça do bom direito, indefiro o pedido

de concessão de medida liminar.

32

A Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia é explicada no capítulo Um protesto.

52

Loureiro recorreu da decisão, mas o desembargador Torres de Carvalho, da Câ-

mara Especial do Meio Ambiente do TJSP, embora tenha sido menos lacônico que seu

colega da instância inferior – gastou três páginas para refutar a argumentação do recurso

-, não foi mais receptivo.

Carvalho afirmou que o pedido da Defensoria não dava detalhes do projeto nem

de como ele estava infringindo os direitos dos moradores, não especificou qual a área

que está sendo atingida pelas obras e tampouco demonstrou que seus habitantes teriam

direito à Concessão Especial para Fins de Moradia. Além dessas considerações sobre

supostas falhas na redação da ação, ele alegou que o procedimento de remover as famí-

lias em troca de alguns milhares de reais não seria abusivo em si:

O pagamento imediato de um auxílio de R$ 8.000,00 aos moradores que aderem

ao projeto não ofende direito, mas respeita sua vontade e, com base na solidari-

edade, lhes permite prosseguir a vida em outro local. Não são despejos forçados

com prazo de dez dias, como erradamente afirma a Defensoria e como errada-

mente comunicou a órgão internacional. Note-se que nenhum morador foi iden-

tificado. Não há prova inequívoca, sequer a fumaça do bom direito, de ofensa a

direito dos moradores.

O medo do defensor – justificado pelo destino de moradores como Francisco Sa-

lete – era exatamente quanto à natureza desse “outro local” no qual os despejados iriam

“prosseguir a vida”. As remoções, realizadas do jeito que estavam sendo feitas, só des-

locariam o problema da habitação precária, talvez para outra área de proteção ambiental,

realimentando um ciclo do qual a população pobre da cidade não consegue escapar.

- Ninguém quer ocupar área de proteção ambiental – diz Loureiro. Ninguém

quer, os pobres não querem. Eles sabem que o melhor seria se eles tivessem moradia em

outro local. Acontece que não tem, e não tem porque eventualmente o poder público não

oferece. Mas como moradia é uma necessidade absolutamente premente... Você não

pode deixar de morar, você precisa ter um local pra estabelecer o seu ponto de privaci-

dade, pra si e pra sua família. É absolutamente fundamental você ter moradia, você tem

que ter moradia em algum lugar. E esse local que sobrou, na disputa pelo espaço da ci-

dade, foi justamente nas áreas de proteção aos mananciais.

O coordenador do Programa Mananciais na Prefeitura de São Paulo, Ricardo

Corrêa Sampaio, concorda com o advogado nesse ponto. Ele também acredita que a

53

população que ocupou as margens das represas e cursos d’água não agiu por má fé, e

sim por necessidade. Mas a convergência de opiniões acaba aí.

Sampaio foi entrevistado em 9 de abril de 2009 na sede da Secretaria de Habita-

ção do município, que fica no Edifício Martineli, centro de São Paulo. Para ele, a insa-

tisfação das famílias é natural, mas não é justificada. É algo que acontece em toda obra

realizada pelo poder público em áreas de habitação consolidada: sempre há quem se

sinta prejudicado. Engenheiro, quase sempre exemplifica o que fala com analogias re-

cheadas de termos técnicos.

- Se você fizer uma pavimentação em uma área já consolidada, com as duas late-

rais ocupadas, quando você for estabelecer o grade definitivo da rua, o traçado final, vai

reparar que não agrada a 100%. Porque é impossível, em local consolidado, agradar a

100%. Alguns vão se sentir mais considerados, outros menos considerados. Mas, na

verdade, tecnicamente, a gente traça um meio termo, onde há o menor prejuízo poten-

cial pra cada ocupante daquelas casas. A verdade é essa. O que é possível ser feito, não

o que seria desejável.

Ele também negou que as famílias não tenham sido informadas previamente so-

bre as ações do programa.

- As famílias, especificamente do Cocaia, vêm sendo informadas há aproxima-

damente dois ou três meses, no trabalho social. Porque a metodologia executiva do pro-

grama, no âmbito Prefeitura de São Paulo, tem a equipe social e a equipe técnica, basi-

camente. E a equipe social, uma vez definidas as frentes de obra, as áreas que vão sofrer

a intervenção, vai ser feito todo um cadastro, toda uma conversação com a população. É

apresentado o projeto, é explicado e tratado com cada família, família por família, inde-

pendentemente da área que esteja. Não é dado tratamento genérico, mas sim família por

família, respeitando a especificidade de cada família.

Confrontado com os relatos dos moradores, que contavam uma história comple-

tamente diferente, Sampaio não recuava: “isso é o que vocês estão falando”. Não consi-

derava de forma alguma a possibilidade de que a tal metodologia executiva pudesse

estar sendo desrespeitada no Jardim Toca. Quando questionado sobre a indenização de

R$ 8 mil e o prazo de dez dias dado às famílias para saírem das casas, Sampaio disse

que se isso aconteceu foi porque as famílias negociaram e aceitaram o valor.

54

- Depende de cada caso. Uma vez negociado... Têm famílias, por exemplo, que

desejam voltar pra terra natal. Então São Paulo não é o sonho que eu pensei, eu quero

voltar pra minha origem. Então é dado um atendimento a ela, uma verba. (...) E isso

depende da família, depende do caso, da situação da família. Tem família que quer ficar.

Tem família que quer ficar aqui dentro da própria área. Tem família que sai removida

pra unidade habitacional, conjunto habitacional. Aliás, a CDHU é coexecutora do pro-

grama. Então ela vai fornecer unidades habitacionais também para o programa, para

atender essa demanda de reassentamento e remoção.

O programa que sai da boca do coordenador é aquele do Marco Conceitual da

Política de Reassentamento, não o que chegou aos moradores do Jardim Toca. Para

eles, a negociação só veio depois que as pessoas se uniram e exigiram uma proposta

melhor para saírem dali.

Além de se recusarem a deixar suas casas por R$ 8 mil, os moradores realizaram

protestos na frente do canteiro de obras e chegaram a fechar a Avenida Dona Belmira

Marin. Iniciou-se também a criação de uma associação para o bairro, englobando não só

os habitantes da Toca, mas de toda a região do Parque Cocaia I. Afinal, as remoções em

andamento eram só uma parte das previstas pelo Programa Mananciais.

Pessoas que não estavam imediatamente ameaçadas de despejo também partici-

param ativamente dessas ações. Maria Gorete Barbosa, moradora da Rua Doutor Nuno

Guerner de Almeida, era uma delas. A incerteza sobre o destino de sua casa a fez procu-

rar informações sobre o projeto, para saber exatamente quem iria sair, mas nas reuniões

com autoridades públicas das quais participou na época – inclusive com Ricardo Sam-

paio –, a única resposta que recebeu é que isso ainda não estava definido, já que o proje-

to final, que especificaria as demais intervenções na área, ainda não havia sido feito.

- Eles não mostram o que tem de projeto para nossa área, mas estão tirando as

famílias aos poucos para não reivindicarem seus direitos – reclamava Gorete. As pesso-

as não têm para onde ir, só tem aquele barraquinho para morar. Ela vai fazer o quê? A

gente nem sabe mais a quem recorrer.

Se a pressão organizada dos moradores não foi capaz de obter uma definição so-

bre o futuro de toda a comunidade, pelo menos mudou a postura dos funcionários do

Consórcio EIT-Santa Bárbara, que começaram a efetivamente negociar. Não de forma

individualizada, como preconizava a “metodologia” de Ricardo Sampaio, mas com uma

55

nova proposta geral: quem saísse receberia um apartamento da CDHU em um conjunto

já em construção no Jardim Mata Virgem, perto da divisa com Diadema – a 17 quilôme-

tros dali. O prazo era de até dois anos para a entrega do imóvel, mas nesse meio tempo

as famílias receberiam auxílio aluguel.

Dessa vez, as pessoas receberam um documento assinado pela Superintendente

de Habitação da Sehab, Elisabete França, no qual o munícipio se comprometia a pagar o

benefício até que o apartamento fosse entregue. A maioria aceitou a proposta, outros

preferiram pegar mais R$ 5 mil – além dos R$ 8 mil ofertados inicialmente – e procurar

outro local para morar.

Passados dois anos, a obra de canalização já está concluída, mas os moradores

que optaram pelo apartamento da CDHU ainda não receberam as chaves. Segundo Go-

rete, que ainda mora no Cocaia, o novo prazo dado para a entrega das casas é o final de

2012. Enquanto isso, as pessoas continuarão a receber o auxílio aluguel.

A saída dos habitantes da Toca significou também o fim das reuniões constantes

e da agitação que tomou o bairro no início de 2009. Hoje, Gorete diz que na última con-

versa que teve com representantes da Prefeitura foi informada que a licitação de uma

nova obra na comunidade já estava sendo preparada.

- A gente teve uma reunião lá na Habitação. Eles falaram que iam fazer uma lici-

tação pra ver qual a construtora que iria pegar aqui pra começar as obras aqui nessa par-

te. E até agora não veio nada, nem pras famílias que tá lá embaixo, lá nos barracos, nin-

guém falou nada.

Mesmo com o planejamento da intervenção já no estágio de licitação – o que

pressupõe a existência de um projeto bem delineado – ela não sabe exatamente quais

serão as obras, muito menos quais moradias serão removidas. Ou seja, mesmo depois do

conflito ocorrido dois anos antes, o “diálogo” com o poder público continua seguindo o

mesmo roteiro da desinformação e da não participação dos moradores.

As pessoas do Cocaia retomaram suas rotinas e, embora a maioria saiba que po-

de ter que sair no futuro, a ausência de uma ameaça imediata desmobilizou a todos. Mas

de vez em quando eles são lembrados da situação precária em que se encontram. Em

dezembro de 2009, 45 casas de outra parte da comunidade, conhecida como Vila Breji-

nho, ficaram em baixo d’água com a cheia da represa. Em algumas moradias, o nível do

alagamento atingiu um metro e meio.

56

Bethania de Souza Bomfim era uma das moradoras do Brejinho. Hoje recebe

auxílio aluguel da Prefeitura e, assim como os despejados da Toca, possui um documen-

to assinado pela Sehab que garante o pagamento até a ida para um conjunto habitacio-

nal. Ela e Gorete dizem que nesse caso também houve muita luta para conseguir esse

acordo: foi preciso muitas reuniões e uma manifestação em frente à Subprefeitura do

Campo Limpo.

Atualmente, ela vive em um imóvel no próprio Parque Cocaia. Apesar de estar

em uma casa melhor, em uma rua asfaltada, ela teme que um dia o aluguel deixe de ser

pago. Por isso, diz que preferia a situação anterior.

- Acho que se você tem moradia em algum lugar, não vai se mudar pra um local

como o Brejinho. Mas nem por isso eu queria sair da minha casa. Porque pelo menos

era minha.

O que Bethania passou em 2009, Valseny Bernarda de Souza teme viver no futu-

ro. Mesmo habitando uma parte mais consolidada da Favela, em uma casa de alvenaria,

ela diz que frequentemente pensa no que vai fazer se no futuro chegar sua vez de sair

dali – seja por causa de uma obra, uma enchente, um incêndio ou qualquer outro dos

desastres que rondam habitações precárias como a dela.

- E se eu tiver que procurar casa de novo? De vez em quando eu acordo de noite

pensando nisso. Meus filhos nasceram e cresceram aqui.

Embora não se sinta feliz com a situação atual, ela teme mais as mudanças que

viriam de uma intervenção do poder público: ter que mudar pra longe, passar a gastar

dinheiro com despesas como condomínio, água e luz, talvez voltar para o aluguel.

- A gente até concorda que eles façam. Se é pra melhorar, que melhore. Mas que

eles pensem também na melhoria das pessoas, não só na melhoria da represa.

57

VAL E GERALDO

Em uma das encostas da Billings vive Jaisvalda Nascimento Melo, que divide

um pequeno barraco com o marido e os quatro filhos. A casa de madeira, assentada em

uma laje de cimento que compensa a declividade do terreno, foi construída pelo esposo

Geraldo há 16 anos.

Jaisvalda – que prefere ser chamada de Val – e o marido vivem no Cantinho do

Céu, bairro localizado em uma das penínsulas da Billings, desde que chegaram na cida-

de. Depois de se mudar algumas vezes, em agosto de 1993 eles compraram o terreno

onde vivem hoje de um parente, por 12 mil cruzeiros reais.

No final dos anos 1980, a área onde hoje fica o Cantinho do Céu foi loteada ile-

galmente. Só na década seguinte o bairro foi dotado de infraestrutura urbana: as princi-

pais ruas foram pavimentadas, as casas ganharam energia elétrica, linhas telefônicas e

rede de esgoto em algumas. Até hoje o abastecimento de água é intermitente – é garan-

tido das 22 às 8 horas, mas nem sempre está disponível durante o dia33

.

Enquanto converso com a mulher, Geraldo entra e sai da casa, escuta a conversa,

curioso. Depois de alguns minutos, resolve participar também.

- Na época a gente morava na Rua Tucano, travessa da Bem-te-vi. Aí eu fui, ti-

nha um cunhado meu que tinha comprado isso aqui em um rolo com um cara chamado

Juracir, que tava loteando esses terrenos na época – conta Geraldo.

Ele é pedreiro, ofício que aprendeu com o pai quando ainda vivia em Pernambu-

co, onde nasceu. Ainda hoje exerce a profissão, mas apenas informalmente: há cinco

anos ele sofreu um acidente de trabalho no qual quebrou o fêmur e ganhou uma prótese

de platina – além do andar manco. O trabalho não era registrado em carteira e ele ficou

parado por meses, sem auxílio-doença, e não pôde se aposentar por invalidez. A maior

sequela do acidente, no entanto, foi a condenação à informalidade: é sempre reprovado

no exame médico admissional.

Ele conheceu Val durante uma temporada de trabalho na Paraíba, onde os dois

se casaram. Quando arranjou um emprego na capital paulista, veio com a mulher, que

também passou a ajudar no sustento da família, trabalhando como empregada domésti-

33

WERTHMANN, 2009, p. 66.

58

ca. A renda dos dois não era excepcional, mas foi suficiente para criar os quatro filhos

sem passar necessidades, principalmente quando a filha mais velha, que atualmente tem

18 anos, arranjou um emprego.

Mesmo após o acidente de Geraldo os ganhos da família eram suficientes para

alguns gastos supérfluos. O barraco de madeira, do tamanho de um apartamento peque-

no – tem 64 metros quadrados –, é bem equipado de eletrodomésticos: eles possuem

uma tevê de tela plana, telefone fixo e três celulares. Mas os ventos de hoje não são tão

favoráveis: todos os membros da família estão desempregados. A única renda vem dos

bicos que Geraldo consegue como pedreiro.

Desde que passou a morar ali, Val já recebeu três autos de interdição, o primeiro

deles datado de 1998. Nessa época, surgiram as primeiras propostas de pagamento para

que ela saísse de lá. Mas o valor oferecido era muito baixo, e como a casa não parecia

oferecer o perigo que viam os funcionários da Subprefeitura, eles foram ficando.

- Eles queriam dar R$ 2 mil em 1998. A gente não aceitou. Aí acabou que eles

entraram em acordo com a gente, ficamos. Então meu vizinho do lado esquerdo saiu, né,

por R$ 2 mil. Eu não. Fiquei por causa dos meus filhos, que era tudo pequeno. E até

hoje isso aqui é só intimação, interdição, e eu continuo aqui.

O projeto de urbanização do bairro começou a ser implementado pela Secretaria

de Municipal de Habitação em 2009, e prevê a instalação de rede de esgoto em todas as

residências, incrementar o acesso dos moradores a serviços de saúde, educação e em-

prego, além da criação de novas áreas de lazer. Pretende-se também remover as famílias

das áreas de proteção legal, que compreende os 50 metros adjacentes ao leito da Billings

– o que significaria a remoção de cerca de 6 mil dos 30 mil moradores do bairro34

.

A Prefeitura da cidade se vangloria das ações realizadas no Cantinho do Céu, re-

petindo à exaustão que o projeto foi destaque na Bienal de Arquitetura de Veneza em

2010. No dia 23 de outubro daquele ano, o prefeito Gilberto Kassab e o governador do

Estado na época, Alberto Goldman, vistoriaram as obras do local. Na ocasião, Kassab

elogiou as “maravilhas” que o projeto levaria ao bairro:

- O Complexo Cantinho do Céu é um conjunto de obras que beneficia milhares

de famílias da região, e, mais do que isso, milhões de brasileiros que moram em São

Paulo e precisam ter suas casas abastecidas com esta água, que será preservada por con-

34

Ibidem, p. 40 e 68.

59

ta desses investimentos. Infelizmente, nas últimas décadas, o poder público deixou de

lado esta preocupação e acabou acontecendo nas regiões dos mananciais algo lamentá-

vel, que foi uma invasão descabida, prejudicando a qualidade de vida das pessoas que

moravam aqui, pois não tinham saneamento, não tinham equipamentos públicos e nem

condições mínimas de higiene35

.

Em 2009, quando o consórcio Schahin-Carioca, responsável pelas obras do Pro-

grama Mananciais no bairro, começou a negociar com os moradores, veio uma nova

proposta para que a família deixasse o local.

- Eles vieram tipo numa pesquisa, né – afirma Val. Falou que tava tirando as

pessoas e dando intimação pra estar saindo do lugar. Porque tava indenizando o lugar, e

fosse pra empresa Schahin pra receber da Prefeitura, da assistente social, porque eles

tavam pagando.

Dessa vez, o valor oferecido era R$ 25 mil, e quase todos os vizinhos aceitaram

sair. Ela mesmo começou a procurar uma casa para comprar e achou uma por esse valor

na Rua Francisco de Zurbaran, no Jardim Noronha, cerca de quatro quilômetros ao sul

do Cantinho do Céu, também em região de proteção aos mananciais. Só que, quando

Val foi ao canteiro de obras do consórcio, a oferta não estava mais de pé. Segundo ela, a

justificativa era que a Prefeitura tinha cortado a verba, então por enquanto eles não po-

diam pagar os moradores.

Passados dois anos, a família mora praticamente sozinha em uma rua que já foi

cheia de barracos. Das construções vizinhas, restam apenas o piso e a base das paredes.

Depois que um casa ao lado foi demolida, começaram a surgir rachaduras e infiltrações

na moradia de Val e Gilberto. Um movimento contínuo, porém lentíssimo, do solo sob a

laje gerou uma enorme rachadura no chão da cozinha. Não é preciso ser um especialista

para perceber que é questão de tempo antes que a casa deslize para dentro da Billings.

Em 2010, as funcionárias do consórcio – são sempre mulheres que falam com

eles – voltaram a negociar com os moradores. Mas a oferta tinha baixado: eram R$ 18

mil, pegar ou largar. Depois aumentou para R$ 23 mil, mas não passou disso. Dessa vez

havia uma opção caso ela não quisesse o dinheiro: auxílio aluguel e a promessa de um

apartamento em um conjunto habitacional no futuro.

35

Prefeito e governador vistoriam obras de urbanização do Complexo Cantinho do Céu no Grajaú, Zona Sul. Site da Prefeitura de São Paulo, 23 out. 2010. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/ portal/a_cidade/noticias/index.php?p=41113>. Acesso em: 10 nov. 2011.

60

Nesse meio tempo, os aluguéis e o preço das casas da região só subiram. Val diz

que saiu novamente à caça de imóveis para comprar, mas os valores estavam incrivel-

mente mais altos: agora, para conseguir uma casa do mesmo tamanho da que achou há

dois anos é preciso desembolsar entre R$ 35 mil e R$ 50 mil, segundo ela.

As conversas com os representantes do consórcio são sempre tensas, e ela diz

que já chegou a ser ameaçada pelas assistentes sociais:

- É, falou assim: “se você não quiser ir pra bolsa aluguel e não aceitar os 23 mil,

eu sinto muito, a senhora vai ser removida. Eles vão chegar lá, vão te tirar, vai ser re-

movida e vão levar vocês para um abrigo”. Eu falei pra ela: “se você colocar eu e meus

filhos num abrigo, eu me mato”. Eu falei pra ela que eu não quero. Eu não vou criar

meus filhos num abrigo. Eu moro ali na favela, mas é meu. Eu não pago aluguel pra

ninguém. Entendeu? E eu falei pra ela que pra um abrigo eu não vou. Se ela me colo-

casse num abrigo ou levasse meus filhos, eu me matava.

O auxílio aluguel não é uma opção, na opinião do casal. Geraldo ainda está con-

victo que eles podem continuar ali, que é possível reformar o barraco e evitar um desli-

zamento:

- O que eu vou ter que fazer é arrumar uns pontaletes e fazer daqui uma chácara.

Porque eu não vou sair. Vou pra onde? Vou pegar meus filhos e fazer o quê? Vou fazer

que nem muitos aí que pega, vai pagar aluguel? E depois? Depois tô na rua, meu amigo,

e aí? Não, não aceito. Vou dar um jeito aqui de ir fazendo uma coisa, fazendo outra, e

ficando. Mas com esse valor, não. Se não, eles mesmos vão e compram uma casinha,

onde eles acham que é o certo, e dá pra nós. Pronto.

Val rejeita o auxílio aluguel tanto quanto o marido, mas não compartilha da es-

perança dele. Quando começa a falar das rachaduras, das infiltrações, é perceptível o

desespero em seu tom de voz.

Além da enorme rachadura no chão da cozinha, há outras nas paredes dos quar-

tos e dos corredores. Infiltrações e goteiras são vistas em todo o teto da casa. A solução

encontrada por eles para não viver em uma gruta foi improvisar impermeabilização com

filme plástico, o que não funciona muito bem: após uma chuva, a película cria “barri-

gas” de água que precisam ser drenadas.

Ela sabe que está em uma situação em que perderá de qualquer jeito: se continu-

ar ali, mais cedo ou mais tarde viverá uma tragédia. Se aceitar o pagamento do consór-

61

cio ou o auxílio aluguel, não sabe se terá uma moradia no futuro. É entre esses dois pe-

sadelos que Val se equilibra, tentando negociar para conseguir sair dali em uma situação

mais vantajosa. Um jogo perigoso, que não se faz sem angústia: a mulher não consegue

conter o choro quando comenta como se sente com a situação.

- Eu não durmo à noite, tomo seis calmantes e não durmo a noite inteira. Preo-

cupada, principalmente em dias que chove. Porque depois que eles me tiraram a minha

vizinha, prejudicou a minha cozinha. Então eu fiquei assustada. E tá descendo tudo. No

que vai descendo o piso da cozinha, tá descendo o quarto dos meus filhos. Aqui tá tudo

em risco. E eles não querem saber de entrar de acordo comigo. E eu preciso dessa quan-

tia, pelo menos R$ 40 mil pra poder eu tá saindo daqui.

62

NA SERRA

63

AUDIÊNCIAS PÚBLICAS

Na entrada da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, duas filas organi-

zavam a entrada das pessoas, uma para os homens e outra para as mulheres. Um policial

anuncia:

- Gente, não pode entrar com nenhum líquido, quem estiver com garrafa d’água

tem que jogar fora.

Os que entravam eram revistados, o que causou a reprovação de uma colega:

- Ontem, na audiência pública do Haddad, não tinha isso. Só estão revistando

porque é o pessoal da Zona Norte.

As pessoas vinham da Brasilândia, Jardim Peri, Cachoerinha, Guarulhos. Gente

que se deslocou dezenas de quilômetros para acompanhar a audiência pública sobre o

trecho norte do Rodoanel, convocada pelos parlamentares de oposição da casa. O audi-

tório Paulo Kobayashi transbordava gente, e os apelos da mesa para que as pessoas em

pé acompanhassem a discussão em uma sala próxima, onde seria transmitido em um

telão, não surtiam efeito. Após uma breve briga com o equipamento de som, começaram

os trabalhos.

As autoridades do Governo do Estado e da Dersa não compareceram à audiên-

cia, assim como o prefeito Gilberto Kassab. Sem a presença daqueles que deveriam de-

fender o projeto perante a população, o evento transformou-se em uma manifestação

contra a realização do trecho norte do Rodoanel. Na bancada, se revezavam militantes

do movimento de moradia, moradores das regiões atingidas pela obra e parlamentares

dos partidos que haviam convocado a reunião: PT, PCdoB e PSOL. Grande parte dos

discursos, se não a maioria, questionava a própria necessidade da obra, denunciando o

impacto sobre o meio ambiente e as populações pobres da região. Mesmo quem não

estava diretamente ameaçado de despejo temia pelo futuro de seus bairros, que seriam

cortados ao meio pela rodovia.

O teor das falas não causaria surpresa a quem acompanha projetos desse tipo. Os

deputados da oposição se revezavam na mesa para criticar a obra. Para Olimpio Gomes

(PDT), a obra “só privilegia as empreiteiras”. José Zico Prado (PT) seguiu a mesma

linha: “agora sabemos porque o Governo e a Dersa escolheram esta proposta de traçado.

64

Porque é um traçado que passa na área dos pobres, com menor custo para desapropria-

ção. Mas nós não vamos aceitar este traçado que passa na cabeça dos pobres”. Simão

Pedro (PT) manteve o roteiro, afirmando que a rodovia tem um “traçado excludente e

discriminatório, que causará problemas sociais e ambientais”. A cada frase de efeito,

eram ovacionados pelos presentes.

A construção do trecho norte do Rodoanel deve causar a remoção de cerca de

4,1 mil imóveis nos municípios que serão cortados pela estrada, segundo estimativa da

Dersa - inicialmente esse número era menor, 2,7 mil, mas a empresa alterou a estimativa

em junho de 2011. Desses 4 mil, aproximadamente a metade é de ocupações irregula-

res36

.

Na época da audiência pública, talvez por sorte, talvez por conhecerem o históri-

co de obras desse tipo, muitos dos participantes já previam que o número iria aumentar.

O advogado Benedito Barbosa, mais conhecido como Dito, há décadas militante do

movimento de moradia paulistano, foi um dos que apostou na inflação das remoções:

- O Estudo de Impacto Ambiental diz que só 1,8 mil famílias serão atingidas.

Mas a gente sabe que pelo menos 20 mil pessoas serão atingidas pela obra. (...) Bairros

inteiros serão segregados, cortados ao meio.

Dito também mostrou preocupação com o impacto da obra no preço da terra,

pois a rodovia traria junto o aumento da cobiça sobre os terrenos da região e, conse-

quentemente, a especulação imobiliária.

Mesmo a necessidade da rodovia era questionada. Por que não gastar esse mon-

tante em transporte público? A estimativa é que a obra consuma R$ 6,5 bilhões37

, mais

do que a implantação dos 12,8 km da linha 4 do metrô paulistano, que custará cerca de

R$ 5,4 bilhões38

. E o Governo do Estado investiu apenas R$ 5,95 bilhões na expansão

do metrô entre 2008 e 2010, quando o previsto era R$ 9,58 bilhões39

.

36

Rodoanel Norte agora removerá 4.100 imóveis. Estadão, 9 jun. 2011. Disponível em: <http://www. estadao.com.br/noticias/impresso,rodoanel-norte-agora-removera-4100-imoveis,729978,0.htm>. Aces-so em: 11 nov. 2011. 37

Dersa publica edital de pré-qualificação para obras do Trecho Norte do Rodoanel. Site da Dersa, 14 set. 2011. Disponível em <http://www.dersa.sp.gov.br/noticias/default.asp?cod=111&pg=1>. Acesso em 11 nov. 2011. 38

Esse valor inclui o custo da primeira fase, já entregue, que é de R$ 3,8 bilhões, mais o da segunda fase, para a qual o Governo do Estado já captou financiamento e custará R$ 1,58 bilhão. 39

Em latas de sardinha. Carta Capital, 08 out 2011. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/ blog/politica/em-latas-de-sardinha/>.

65

- É pra isso que nós queremos gastar R$ 5 bilhões? Nós podemos falar não à ro-

dovia e sim ao meio ambiente – afirmou uma moradora da Zona Norte que foi ao micro-

fone.

Eram mais ou menos as mesmas críticas que se faziam na época a algumas obras

do Governo Federal, nas mãos do PT. Algumas semanas antes, a Organização dos Esta-

dos Americanos (OEA) solicitara a interrupção do licenciamento da usina de Belo Mon-

te, no rio Xingu, argumentando que as comunidades indígenas da região não haviam

sido devidamente consultadas sobre a obra. E o próprio trecho norte do Rodoanel tem

financiamento do Governo Federal – aproximadamente um terço do valor da obra será

custeado com verbas federais.

Mas a aparente hipocrisia dos parlamentares não passava pela cabeça de nin-

guém, ou pelo menos não incomodava a ponto de suscitar qualquer manifestação públi-

ca. Era o jogo jogado. O importante, para quem estava ali, era juntar forças para barrar,

ou ao menos tornar menos nociva, a continuação de um projeto que causaria imensos

transtornos para as populações atingidas por sua execução.

Cerca de um mês depois, em 27 de maio, outra audiência pública foi realizada,

por iniciativa da Câmara Municipal de São Paulo. Nesta, participaram representantes do

governo municipal e da Dersa.

Em sua apresentação, o diretor de relações institucionais da companhia, Hermes

Silva, explicou como se realizariam as desapropriações e remoções necessárias para a

realização da obra. No caso dos imóveis regulares, esse processo seria feito de acordo

com a legislação. Já os que vivem em residências irregulares teriam que receber “um

tratamento diferente de quem é dono do imóvel”, mas o executivo ressaltou que “esse

tratamento não é muito diferente”.

Ele afirmou que os moradores de imóveis irregulares seriam cadastrados e inde-

nizados de acordo com o valor das benfeitorias realizadas, gerando indenizações de R$

15 mil a R$ 200 mil. No caso de comerciantes, o cálculo incluiria uma compensação por

lucros cessantes. Se o valor da indenização for considerado baixo pelo morador, seria

oferecida uma alternativa habitacional subsidiada, construída em parceria com a CDHU.

Hermes garantiu que as casas seriam construídas na própria região e estariam concluídas

antes da inauguração da rodovia, prevista para 2014. Enquanto esperam pela construção

66

das habitações, os moradores seriam beneficiados com um auxílio para pagar o aluguel,

no valor de R$ 480.

O diretor também afirmou que os equipamentos públicos, como escolas e postos

de saúde, por exemplo, não seriam extintos pelas obras. Os que estivessem no caminho

do Rodoanel seriam reconstruídos em outros locais, sempre com a conta paga pela De-

ras. O que ele se esqueceu de falar é que, como a empresa é pública, o gasto recairá so-

bre o contribuinte de qualquer jeito.

Quando começaram as falas da população, surgiram questionamentos em relação

aos destinos de famílias deslocadas por conta de outras obras da Dersa, como os trechos

oeste e sul do Rodoanel e o prolongamento da Avenida Jacu Pêssego. Alguns acusaram

a companhia de expulsar moradores de suas casas em troca de indenizações irrisórias,

de R$ 5 mil. Hermes garantiu que nada disso aconteceu, e que o menor valor pago foi

de R$ 10,2 mil, no caso de famílias que ocuparam terrenos “da noite para o dia”, em

busca da indenização. Para os moradores com mais de um ano de residência nos locais,

a compensação mínima teria sido de R$ 18 mil.

Como exemplo de remoção bem realizada, Hermes citou um conjunto habitacio-

nal construído para abrigar os deslocados pelo trecho oeste da rodovia. Um conjunto

planejado com participação ativa dos próprios moradores, organizados em uma coopera-

tiva. Duas mulheres que participavam da audiência não aguentaram e começaram a lan-

çar questionamentos em direção à tribuna. Elas eram da diretoria da cooperativa citada

pelo executivo, e argumentavam que diversos pontos acordados com a Dersa haviam

sido desrespeitados.

Hermes se incomodou com a interrupção e pediu que as mulheres aguardassem o

término da sua fala para se manifestar. O pedido não foi atendido e o homem foi ficando

mais irritado, até que chegou um momento em que não conseguiu se conter:

- Vocês moravam em uma área em que não eram donos de nada e agora são pro-

prietários das suas casas. Só falta passar a escritura. É questão de tempo. Isso vai acon-

tecer.

67

FUTURO MELHOR

Era uma madrugada fria quando Maria de Lurdes de Souza Silva e seu marido

ergueram uma barraca de lona no descampado às margens do Córrego do Bispo, no ex-

tremo norte de São Paulo. A data era 27 de abril de 1996.

Eles não estavam sozinhos. Eram centenas de famílias que, nos meses anteriores,

participaram de reuniões do movimento de moradia no Jardim Guarani e no Jardim Vis-

ta Alegre, também na Zona Norte. Maria de Lurdes diz que um dia um dos participan-

tes falou sobre aquele local e propôs que eles construíssem casas ali. Alguns moradores

da região haviam sido beneficiados por habitações populares na área da Avenida Gene-

ral Penha Brasil, no Jardim Peri, e o objetivo deles era pressionar o poder público para

conquistar o mesmo benefício.

Alguns concordaram, outros não. Na época, a família de Maria de Lurdes passa-

va por dificuldades. Ela, empregada doméstica, estava desempregada. Os filhos mais

velhos do casal, que antes ajudavam a pagar as contas, tinham todos deixado o lar. Dos

seis, sobraram apenas as duas menores, que na época tinham 12 e 15 anos. Só o marido

colocava dinheiro em casa, e o aluguel pesava mais do que nunca.

Por isso eles começaram a frequentar as reuniões, e quando surgiu a chance de

se livrar do aluguel, não hesitaram, mesmo sem saber direito como funcionaria aquilo.

Maria de Lurdes conta que, na época, achava que tudo estaria resolvido algumas sema-

nas depois da ocupação.

- Alguns falaram: quem trabalhar, que peça umas férias, uns 15 dias de licença

enquanto a gente resolve. Aí, no meu caso, é a primeira vez que eu tô participando desse

negócio, dessa moradia de favela, né. Eu achava que dentro de 15 dias eu já resolvia, já

passavam a terra pra gente e a gente já começava a construir. No meu modo de enten-

der, eu achava que dentro de 15 dias já tava tudo resolvido. Eu achava assim, mas é

muito diferente. Já faz 15 anos que eu estou aqui.

Era uma noite fria, a da ocupação. Garoava fino, e as pessoas se reuniram por

volta das dez horas da noite em uma igreja do Jardim Vista Alegre para acertar os últi-

mos detalhes – o movimento era apoiado pela Pastoral da Moradia da região. O padre da

paróquia orou com os presentes e eles se foram. Aproximadamente à uma da manhã,

68

sob uma garoa fina, cerca de 150 famílias entraram no terreno. A primeira coisa que

fizeram ali foi construir um abrigo de madeira para proteger as crianças do frio e da

chuva. Depois, cada uma das famílias ergueu sua barraca de lona para passar o resto da

noite.

- Eu dormi no chão... Eu dormi com uma lona em cima e a água pingando em

cima da gente – relembra Dona Maria.

O primeiro conflito surgiria já antes o sol raiar. Às quatro da manhã, a polícia

apareceu e tentou retirá-los dali. Eles resistiram, como resistiriam a pelo menos outras

três tentativas de reintegração de posse nos 15 anos seguintes. Em semanas, as barracas

deram lugar às primeiras casas de madeira, erguidas às escondidas, por baixo da lona,

para tapear a fiscalização da Prefeitura, que tentava impedir a consolidação das habita-

ções. Assim nasceu a Ocupação Futuro Melhor, batizada assim pelos moradores. Já os

vizinhos começaram a chamar o local de Favela dos Sem Terra, uma alusão às tendas de

lona que abrigavam as pessoas no início.

Mais gente foi chegando, e a população da área aumentou rapidamente. Cremil-

des Jesus da Silva foi uma delas. O irmão dela foi um dos “pioneiros” da ocupação e

chamou o pai, que morava em Juazeiro do Norte, para se estabelecer ali. Foi assim que

Nena, como ela gosta de ser chamada, chegou a São Paulo.

- No dia 15 de junho nós chegamos aqui em São Paulo. (...) Naquela época nós

tínhamos que pedir licença pro presidente da associação. Se ele deixasse, nós podia fa-

zer ou não. Como meu irmão tinha ocupado, meu irmão Zeca, que foi um dos primeiros

que chegaram aqui, aí fez. Fez a casa onde nós moramos até hoje.

A associação em questão foi criada para que os ocupantes se ajudassem mutua-

mente e representa-los nas negociações com o Estado. No começo, era ali que eles to-

mavam banho e faziam as refeições.

Foram feitas reuniões e mais reuniões com a Prefeitura e a CDHU, mas sonha-

dos predinhos nunca vieram, e hoje as aspirações dos moradores são outras. A atual

presidente da Associação Futuro Melhor, Eliana Takeko Tanashiro de Araújo, diz que a

luta da entidade é pela urbanização da favela – nome que eles não gostam de usar, mas

que vira e mexe escapa durante a conversa.

- Hoje nós temos que trabalhar com o quê, com a urbanização – afirma Eliana.

Se é que a gente vai ficar aqui nessa área. Então a gente tem essa dúvida. O mais queri-

69

do por nós é a certeza. Que falassem: é certeza, vocês vão ficar, ou vocês vão pagar xis

por mês, enfim. Isso a gente gostaria de ter concreto.

Eliana também chegou à área poucos meses depois da ocupação inicial. Na épo-

ca, o marido havia sofrido um acidente e estava sem trabalhar, preso à cama.

- Eu tava sendo despejada também, de onde eu morava, pelo fato de não ter con-

dições de pagar. Ou eu pagava o aluguel, ou alimentava meus filhos, ou dava medica-

mento pro meu marido. Foi quando eu conheci uma amiga minha que mora aqui. Inclu-

sive, ela já faleceu também. Ela que falou: Eliana, por que você não tenta conseguir

também uma moradia pra você? E eu vim, com a cara e a coragem. (...) Eu realmente já

estava na rua. Peguei meus filhos, meu marido, e viemos pra área, morar debaixo de

lona. E aguardando que no mês seguinte, ou no outro mês, fosse coisa rápida de ser re-

solvida. E na verdade não foi. Aí a gente começou a construir nosso barraquinho. E tô

aqui até hoje, porque eu gosto do lugar.

A casa dela ainda é de madeira, assim como as de Dona Maria e Nena. Mas mui-

tos já construíram em alvenaria, principalmente depois que a comunidade foi atingida

por uma série de incêndios: foram três entre agosto de 2005 e junho de 2006, que no

total destruíram cerca de 100 casas e mataram duas crianças. Dona Maria começou a

construir a sua no início de 2011.

Hoje, a Ocupação Futuro melhor possui aproximadamente 1,5 mil imóveis, e

mais pessoas chegam a cada dia. Nena, que tem uma pequena mercearia na garagem de

casa, diz que quase todo dia é consultada por pessoas que procuram casas para comprar

ou alugar ali. Muitas vezes, diz ela, é gente que foi despejada de outros locais da cidade

e usa a indenização que recebe – geralmente menos de R$ 10 mil – e se muda para outra

ocupação irregular:

- Eles tiraram agora mesmo um pessoal do Jardim Peri pra construir a Avenida

Nova. A Avenida Nova do Peri. Tiraram o pessoal da Avenida Nova, uns pegaram apar-

tamento, outros pegaram cinco mil. Que que o pessoal fez com cinco mil? Pulou pra cá.

O que essas pessoas não sabem, ou relevam, é que podem ser despejadas de no-

vo em poucos meses. A Prefeitura possui um projeto para transformar as áreas lindeiras

ao Córrego do Bispo em um parque linear, um dos nove que o munícipio quer criar na

borda do Parque Estadual da Serra da Cantareira. O objetivo é fazer uma espécie de

70

barreira para a expansão urbana, que continua a invadir a serra40

. Essas áreas verdes

também ajudariam a impedir que o Rodoanel Norte se torne um atrator de novas ocupa-

ções. Em 2007, o prefeito Gilberto Kassab assinou o decreto nº 48.585, que declarou a

utilidade pública de uma área de 1,2 milhão de metros quadrados (145 campos de fute-

bol) à beira do curso d’água, o primeiro passo para a desapropriação.

Durante a audiência pública sobre o Rodoanel Norte ocorrida em 27 de maio, na

Câmara Municipal, o secretário municipal do verde e do meio ambiente, Eduardo Jorge,

fez uma exposição sobre o projeto do parque do Córrego do Bispo. Na ocasião, ele

afirmou que a área do entorno será urbanizada, mas as conversas com a CDHU e a Se-

cretaria da Habitação do município pouco avançaram:

- Aqui em baixo passa o Córrego do Bispo, teria que haver um processo junto

com o CDHU e a Secretaria da Habitação para reurbanizar a área e verticalizar com

apartamentos para liberar a população que está em área de risco. Mas é um processo que

estamos discutindo há mais de quatro anos com o Governo Estadual, Secretaria Munici-

pal de Habitação e CDHU.

Enquanto o poder público não define o destino dos moradores da Futuro Melhor,

eles tentam conversar com as autoridade, buscando influir no processo, mas as negocia-

ções parecem não sair do lugar. Segundo Eliana, os interlocutores são sempre diferentes

e nunca sabem muito sobre o projeto.

- É sempre assim: quando a Prefeitura tá, a Habi Norte tá, o Verde não tá. Enfim,

nunca tá completo. Já chegamos a sentar com todos na mesa, mas não foi nada definido.

Hoje, a gente tem reuniões, aí, com a Habi Norte, com a Habitação, só que não temos

nada concreto. É só “a gente vai ver”, “a gente tá vendo”, então não temos nada concre-

to ainda.

O medo de Dona Maria, Eliana e Nena é que elas sejam despejadas por alguns

poucos milhares de reais, como aconteceu com muitos moradores removidos para a cri-

ação do Parque Linear do Córrego do Canivete, ali perto, no Jardim Damasceno. Para a

realização da obra, 547 famílias foram removidas, das quais 190 foram para conjuntos

40

Prefeitura de São Paulo preserva borda da Cantareira. Site da Prefeitura de São Paulo, 17 fev. 2009. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=28280>. Aces-so em 10 nov. 2011.

71

habitacionais. As outras 357 receberam entre R$ 5 mil e R$ 8 mil41

. Algumas dessas

pessoas, por sinal, são hoje vizinhas delas.

Dona Maria, mesmo cética, ainda acalenta a possibilidade de deixar a “cidade

ilegal”:

Tem hora que me dá uma esperancinha, mas tem hora que eu não tenho mais es-

perança. É muito tempo, né? Cada tempo que a gente começa uma luta com eles é uma

história. Quando passa aquele tempo e a gente volta lá, eles lá dizem que não sabem de

nada. Já tem mudado de diretor, tem mudado de tudo, de presidente, tem mudado de

tudo. Aí aquele já não sabe de nada. A gente vai contar a mesma história. Aí, quer dizer,

começa tudo de novo. Fica tudo difícil. (...) Mas eu ainda tenho esperança. Acho que

vou morrer aqui mesmo, mas eu tenho esperança de conseguir uma coisa melhor, ainda.

41

Remoções na Serra da Cantareira. Caros Amigos, 04 ago. 2011. Disponível em: <http://carosamigos. terra.com.br/index/index.php/artigos-e-debates/1842-remocoes-na-serra-da-cantareira>. Acesso em 11 nov. 2011.

72

PEQUENA REFLEXÃO SOBRE O URBANISMO

PAULISTANO

73

Percebi que chegaram novas pessoas para a favela. Estão maltrapilhas e as faces

desnutridas. Improvisaram um barracão. Condoí-me de ver tantas agruras reser-

vadas aos proletários. Fitei a nova companheira de infortúnio. Ela olhava a fa-

vela, suas lamas e suas crianças paupérrimas. Foi o olhar mais triste que eu já

presenciei. Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da

vida42

.

O relato acima foi escrito por Carolina Maria de Jesus, uma moradora da extinta

Favela do Canindé que ganhou notoriedade nos anos 1960 com a publicação de seus

diários no livro Quarto de Despejo, no qual ela narra seu dia-a-dia como catadora de

lixo, uma rotina marcada pela luta incessante para conseguir um pouco de dinheiro para

alimentar a si e a seus filhos.

Carolina nasceu em Minas Gerais, no ano de 1914, e estudou somente até a se-

gunda série do primário. Migrou para São Paulo, onde inicialmente trabalhou como em-

pregada doméstica, mas ficou desempregada quando estava grávida do primeiro filho e

foi forçada a se mudar para a favela.

Desde a publicação de Quarto de Despejo já se passaram mais de 50 anos, mas

as histórias dos moradores entrevistados para essa reportagem são assustadoramente

parecidas com a de Carolina. Quase todos, se não a totalidade, são migrantes, e quando

chegaram a São Paulo começaram a construir suas vidas em uma moradia alugada. Al-

guns chegaram às ocupações irregulares como Carolina, durante um período de dificul-

dade econômica. Outros buscavam uma vida melhor, com mais dinheiro para suprir

outras necessidades da família.

Essas pessoas estão longe de ser uma exceção: por décadas os espaços da cidade

vêm sendo ocupados de forma irregular, resultando em milhões vivendo em cortiços,

favelas, encostas de morro, beiras de represa. Não é preciso entrar em detalhes: qualquer

habitante de São Paulo sabe disso por experiência, porque vê e ouve. O que nem todos

sabem é que as raízes desse problema continuam presentes nos dias atuais: apesar da

pujança econômica da última década, o número de habitações precárias não diminuiu na

Região Metropolitana.

Nos últimos dez anos, o Brasil teve uma melhora significativa no padrão de vida

da população mais pobre. Em 2001, 22,3% da população vivia com menos de dois dóla-

42

JESUS, 2007.

74

res por dia, número que caiu para 9,9% em 2009, segundo dados do Banco Mundial43

. O

PIB per capita subiu de US$ 2.812,30, em 2002, para US$ 10.710,10 em 2010. A desi-

gualdade econômica – uma marca registrada do país, a ponto de o historiador Eric

Hobsbawn ter apelidado o Brasil de “monumento à desigualdade” – também caiu, em-

bora de forma bem mais modesta: o índice de Gini foi de 0,59, em 1999, para 0,54 em

200944

.

Apesar dos indicadores econômicos positivos, no campo da habitação a evolução

foi menos impressionante. O déficit habitacional do país, calculado pelo Ministério das

Cidades, passou de 5,8 milhões de moradias, em 2000 para 5,5 milhões em 2008 – co-

mo porcentagem do total de domicílios, a queda foi de 13,1% para 9,5%45

. Na Região

Metropolitana de São Paulo, o desempenho é pior: o déficit aumentou em números ab-

solutos. Em 2000 eram 430 mil domicílios inadequados na urbe (8,6% do total), número

que subiu para 510 mil oito anos depois (8,2%).

Em um artigo publicado na Revista Novos Estudos, do Cebrap, os pesquisadores

Jeroen Klink, da UFABC, e Raquel Rolnik, da FAU-USP, chegam a uma conclusão

semelhante: o crescimento não foi acompanhado de uma melhora significativa nos pa-

drões habitacionais da população mais pobre. Eles compararam o dinamismo econômi-

co dos municípios com a precariedade das habitações, medida através do acesso a água

potável, esgotamento sanitário, iluminação elétrica, entre outros índices. O resultado é

que, embora esse padrão tenha melhorado de uma forma geral, os municípios menos

dinâmicos e mais afastados dos centros urbanos mais ricos, no sul e sudeste, tiveram um

desempenho pior.

Como explicar essa disparidade entre o desempenho da economia e a melhoria

das condições de moradia da população? Para os autores, a culpa é do modelo de finan-

ciamento habitacional, que continua o mesmo, baseado no crédito para aquisição de

unidades novas e não conseguiu atingir a parcela mais necessitada da população, com

43

As estatísticas foram consultadas no site do Banco Mundial, que possui uma plataforma completa e muito simples para consulta e análise de estatísticas. 44

O índice de Gini, desenvolvido pelo estatístico italiano Corrado Gini nos primeiros anos do século XX, é um coeficiente utilizado para demonstrar o grau de desigualdade econômica presente em um grupo de pessoas. Um índice de Gini igual a um representa uma sociedade na qual um indivíduo concentra toda a riqueza. Se o índice for zero, isso significa que a riqueza está dividida igualmente entre os membros do grupo. 45

MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2007.

75

renda entre zero e três salários mínimos – faixa onde se concentra 90% do déficit habi-

tacional. Nas palavras deles:

De acordo com a lógica da produção do espaço urbano e regional brasileiro, as

condições de urbanização são compradas no mercado, como veremos adiante.

Mas, num sistema de acumulação que não reproduz os custos da força de traba-

lho, e com um Estado que apresenta capacidade de investimento em urbaniza-

ção limitada e quase inexistente regulação do mercado imobiliário e da terra ur-

bana, o mercado não acompanha o crescimento econômico da cidade, produzin-

do cidades sem urbanidade46

.

O que acontece, portanto, é que o mercado não oferece alternativas para essas

famílias, e, como a capacidade governamental para provê-las com moradia adequada é

limitado, as nossas cidades continuam condenadas a conviver com um grande número

de assentamentos precários e irregulares. Para Ermínia Maricato, professora da FAU-

USP, mesmo um governo bem intencionado tem dificuldades para conduzir a produção

de habitação de interesse social em massa.

- Produzir novas moradias pra quem vai pra cadastro, ou pra quem tá recebendo

aluguel, é muito demorado e muito caro. Então você tem que encontrar terreno, o que

não é fácil na cidade de São Paulo, e, principalmente, encontrar terreno próximo de on-

de as pessoas estavam. Que seria o ideal pra garantir que as crianças continuem nas es-

colas, as pessoas continuem no trabalho, a vizinhança continue funcionando, porque

tem um papel importante. Então você tem que encontrar um terreno, terreno próximo,

tem que elaborar um projeto de arquitetura e urbanismo. Tem que também pagar o ter-

reno. Tudo bem, pode desapropriar. Tem depois que fazer uma licitação de uma obra, e

aí tem que fazer a obra. A obra de construção de moradias não demora menos de um

ano. Um ano é, assim, um prazo ultrarrápido. Então eu tô falando mais ou menos em

dois anos, se tudo correr bem, se a Prefeitura não perder o interesse, se ela tiver muito

envolvida, se tiver recurso. Enquanto isso, você tem áreas de risco caindo, você tem

outros incêndios, você tem enchente, tem manifestações, precisa tirar gente de lugar

onde está. Enfim, a capacidade de uma prefeitura agir, mesmo que ela tenha muita boa

vontade, vou insistir, ela é pequena diante do tamanho do problema habitacional e urba-

no brasileiro.

46

KLINK, 2011, p. 101.

76

O maior problema, para Ermínia, é que o Estado geralmente prioriza os investi-

mentos em obras de infraestrutura urbana nas áreas privilegiadas das cidades. É o que

acontece em São Paulo, onde o grosso dinheiro público vai para obras viárias e inter-

venções em bairros nobres.

- Todos os governos, todos os partidos ficam colocando dinheiro na construção

de uma nova centralidade. Que saiu da Luz, do Anhangabaú, da Paulista, da Faria Lima,

e tá indo lá pra Berrini. É assim que se faz, é um investimento que chove no molhado.

Quer dizer: ele caminha na direção do interesse do capital imobiliário, das grandes em-

preiteiras, dos ricos e do automóvel. E isso tudo tá ligado também, essas obras todas, ao

financiamento de campanha. Essa é a lógica. E é óbvio. Por exemplo, pra citar uma coi-

sa que não tá lá naquele lado: a ampliação da Marginal Tietê, que é um crime do ponto

de vista da sustentabilidade da cidade, que foi iniciada no governo Serra passado. É ab-

solutamente inócuo. É uma obra absurda, porque já é um absurdo você impermeabilizar

a margem dos rios, que ainda por cima foram retificados. E agora, em vez dos carros

pararem com seus escapamentos abertos em quatro pistas, eles estão em oito. Mas o

custo daquela obra é bárbaro, e é pro automóvel andar. Não é contra enchente, não é pra

resolver problemas de moradia social, não é. Aumenta a impermeabilização do solo,

portanto é pró-enchente. Não é pra resolver problema de esgoto, ou os problemas serís-

simos de coleta de lixo na cidade. É uma obra rodoviarista, como a maior parte. Como a

ponte, como os túneis que o Maluf fez, como o túnel que a Prefeitura tá falando em fa-

zer ali, a partir daquela área da Berrini. Enfim, você tem uma máquina de concentração,

de segregação e de desigualdade. O investimento ele é todo regressivo, ele é todo pra

aprofundar a desigualdade.

Para o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Polis, a solução para essa situação

só é possível com a aplicação de medidas para direcionar a atuação do mercado para a

produção de moradias para uma população mais pobre.

- O poder público, sozinho, de fato não consegue financiar toda a política urba-

na, toda a política habitacional necessária para atender todas as demandas – afirma Na-

kano. A gente vai ter que direcionar uma parte da atuação do mercado para atender es-

sas demandas também. Por exemplo, a lei nacional que o Chile aprovou e exige que, de

todo empreendimento imobiliário produzido pelo mercado para a classe média, 5% tem

que ir para habitação de interesse social em local pré-definido pelo poder público. Qual-

quer país no mundo que conseguiu resolver o déficit habitacional fez isso, porque é as-

77

sim que você consegue acessar terra para produzir moradia social. Senão ela é toda cap-

turada pelo mercado.

A legislação brasileira já possui alguns mecanismos para fazer isso. O Estatuto

das Cidades permite a cobrança do IPTU progressivo para imóveis que estejam sendo

subutilizados por seus donos, a fim de combater a especulação imobiliária. Uma casa

desocupada em uma Zona Especial de Interesse Social, por exemplo, pode ter o valor do

imposto aumentado anualmente, até o limite de 15% do valor do imóvel. Se em cinco

anos o proprietário não der uso ao local, o poder público pode desapropriá-lo, pagando

em títulos da dívida pública.

Outra forma de coibir a especulação imobiliária é a contribuição por melhoria,

prevista no Código Tributário Nacional. É comum que obras públicas valorizem os

imóveis da área em que é realizada, por isso a lei permite que o Estado cobre dos pro-

prietários uma taxa proporcional à valorização obtida.

Mas esses mecanismos são pouco aplicados. Nakano diz que essa foi uma des-

coberta dolorosa dos militantes e acadêmicos envolvidos com o urbanismo: depois de

muito lutar para aprovar novas regulamentações, eles viram que isso não valia nada se

ninguém as executasse.

- A gente achava que bastava aprovar uma lei inovadora, que garantisse direitos,

que regulasse o mercado. A gente achava que bastava ter um grupo progressista no go-

verno, ter uma estrutura institucional no Governo Federal, como o Ministério das Cida-

des, que vai implementar uma política nacional de desenvolvimento urbano. Só que tem

uma estrutura política que vem sendo montada durante décadas, uma estrutura partidária

e de eleições, de caminhos para se chegar ao poder, que bloqueia tudo isso.

A grande dificuldade, acredita o urbanista, é que essas ações tem que ser imple-

mentadas pelos políticos, que estão submetidos à pressão das grandes empreiteiras,

construtoras e, pior, são financiados por elas. Nakano fala sobre tudo isso com a amar-

gura de quem já fez parte do executivo e não conseguiu realizar as transformações que

desejava. Ele foi gerente de projetos da Secretaria Nacional de Programas Urbanos, um

órgão do Ministério das Cidades, e lá viu de perto o mecanismo que barra as ações pro-

gressistas no campo da política urbana.

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- Isso exige a desmontagem de um processo que a gente tem hoje aqui no Brasil,

que é um processo político-eleitoral mesmo. Porque as campanhas eleitorais, tanto no

nível local quanto no nacional, são cada vez mais financiadas por esses agentes que se

beneficiam de uma lógica de investimento no espaço urbano que favorece os negócios,

só. Não é para resolver os problemas urbanos. Então as empreiteiras, as construtoras, as

incorporadoras, as pequenas construtoras, os pequenos incorporadores, os pequenos

empreiteiros, são muitas vezes aqueles que apoiam determinados candidatos. As maio-

res empresas são aquelas que financiam as campanhas. Então você tem aí uma autorida-

de, um prefeito, um governador do Estado, um presidente da República que se elegem

com base nesses financiamentos. Na hora que ele vai formular as políticas e definir as

formas de distribuição dos investimentos públicos, ele vai estar sob influência desses

interesses. Então quando ele vai distribuir os recursos pelo país, ou quando um governo

local vai distribuir os recursos pelos bairros, pela cidade, o critério vai ter influência

desses agentes que estão viabilizando a chegada dele ao poder. Então, pra gente mudar

isso, a gente vai ter que mudar essa lógica partidária, eleitoral e de financiamento das

políticas urbanas e habitacionais.

Resta o enigma de como combater uma máquina movida a interesses tão podero-

sos. Enquanto essa fórmula não vem, os pobres de São Paulo – e do Brasil – continuam

a lutar contra a opressão com a única arma que têm: a mobilização de seu imenso con-

tingente.

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FOTOGRAFIAS

No protesto contra os despejos em São Paulo, manifestante empunha a bandeira da Cen-

tral de Movimentos Populares em frente a um prédio abandonado.

80

Manifestantes se reúnem em frente ao prédio da Secretaria da Justiça

Na Vila Mulford, a grama cresce no local que um dia foi a casa de José Marinheiro

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Das nove casas demolidas na Vila Mulford, sobraram apenas as paredes

Da janela da nova casa de José do Carmo é possível ver um pedágio da Imigrantes

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José Marinheiro posa para foto no corredor que dá acesso a sua nova casa

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Maria Gorete Barbosa na Favela Parque Cocaia I

Gorete anda pelas vielas da comunidade

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Bethânia posa em frente ao terreno onde um dia ficou a sua casa, no Brejinho

Valseny Bernarda de Souza e um de seus filhos em casa

85

Em sua casa no Cantinho do Céu, Jaisvalda mostra um dos três autos de interdição que

recebeu desde que se mudo para lá, em 1993

86

Val segura o contrato de compra do terreno onde construiu sua casa

As rachaduras no chão da cozinha evidenciam que a casa de Val está “escorregando” para

dentro da represa

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No Cantinho do Céu, uma casa resiste solitária à remoção pelo Programa Mananciais

Público lota o auditório Paulo Kobayashi, na Assembleia Legislativa, para acompanhar

audiência sobre o trecho norte do Rodoanel

88

Deputados se acomodam na mesa do auditório para dar início à audiência pública

Da esquerda para a direita: Dona Maria, Eliana e Cremildes posam em frente à sede da

associação de moradores da Ocupação Futuro Melhor

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