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71 71 71 71 71 “DESINFORMAÇÃO”: DESIGN E SÓCIO-SEMIÓTICA ARTUR FREITAS Professor - Pós-Graduação da Escola de Música e Belas-Artes/EMBAP Professor - Pós-Graduação da Faculdade de Artes do Paraná/FAP [email protected] ROSANE KAMINSKI Professora - Desenho Industrial - UnicenP/Centro Universitário Positivo Professora - Pós-Graduação da Faculdade de Artes do Paraná/FAP [email protected]

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da Vinci , Curitiba, v. 3 , n. 1, p. 57-70, 2006 7171717171

ORLANDO P. RIBEIRO

“DESINFORMAÇÃO”: DESIGN E SÓCIO-SEMIÓTICA

ARTUR FREITASProfessor - Pós-Graduação da Escola de Música e Belas-Artes/EMBAP

Professor - Pós-Graduação da Faculdade de Artes do Paraná/[email protected]

ROSANE KAMINSKIProfessora - Desenho Industrial - UnicenP/Centro Universitário Positivo

Professora - Pós-Graduação da Faculdade de Artes do Paraná/[email protected]

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RESUMO

Ao estudar a relação entre signos visuais e contexto sócio-cultural, este artigo defendea existência de uma sócio-semiótica que se balize por uma noção ampliada de “índice”. Paratanto, recorre à análise de Desinformação – uma peça de design gráfico que consiste numafotonovela contracultural publicada em 1972, em pleno regime militar brasileiro.

Palavras-chave: Design e semiótica; imagem gráfica; signos visuais.

ABSTRACT

This article studies the relationship between visual signs and historic context and itdefends a socio-semiotics founded in an enlarged notion of index. With this purpose, thistext analyzes Desinformation – a countercultural photographic novel published in 1972, in themiddle of Brazilian military dictatorship history.

Key words: Design and semiotics; graphic image; visual signs.

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ARTUR FREITAS E ROSANE KAMINSKI

“DESINFORMAÇÃO”: DESIGN E SÓCIO-SEMIÓTICAARTUR FREITAS / ROSANE KAMINSKI

1 INTRODUÇÃO: POR UMA SÓCIO-SEMIÓTICA

Partindo sobretudo do território dos signos visuais impressos, este artigo tra-duz um duplo propósito: em sentido amplo, visamos contribuir para o alargamento danoção semiótica de “índice”, dentro de um viés de análise que propomos denominar“sócio-semiótica”, ou seja, de uma semiótica que tenha em conta tanto o domínio dalinguagem quanto o domínio sócio-cultural de enunciação e circulação dos signos. Aomesmo tempo, num âmbito mais restrito, pretendemos também demonstrar este viésde análise através de um exercício de apreciação de design gráfico situado no tempo eno espaço.

O objeto da análise é uma fotonovela chamada Desinformação, uma curiosa peçade design gráfico que, ao misturar fotografia, texto e desenho, guarda em seu discurso,sua apresentação visual e sua narrativa uma boa dose de ironia e bom-humor.Desinformação foi produzida em Curitiba, em 1972, e possui um sabor contraculturaltípico das publicações marginais que se espraiavam pelo Brasil no contexto repressivodos anos 1970. “Repressivo”, porque o regime político brasileiro era, desde 1964, umaditadura militar: um sistema de governo que, entre outras coisas, mantinha oficialmen-te a censura como um meio de restringir a informação que circulava pelos meios decomunicação. Portanto, em oposição ao rígido controle da censura, surgiram nesseperíodo muitas publicações pequenas (“nanicas”, como se dizia na época). Estas publi-cações situavam-se fora do registro da grande imprensa, e desta maneira circulavamtoda sua irreverência estética e ideológica com mais liberdade do que os grandes jor-nais ou revistas da época o podiam fazer. Desinformação, por exemplo, foi originalmentepublicada no número 1 (um) da revista curitibana Isso – publicação que não chegou ater segundo número.

Uma hipótese conduz o desenvolvimento desta análise: buscamos compreenderesta fotonovela (composta de signos visuais) num viés sócio-semiótico, mas pensandona possibilidade de ampliar tal abordagem para outras espécies de signos. Este viés quedenominamos “sócio-semiótico” considera a linguagem (tanto a visual como as outras)como parte constitutiva de um contexto histórico. Dentro desta linha de raciocínio,supomos que a noção de “índice”, se devidamente ampliada, consiste numa importantecategoria de análise, tanto do ponto de vista material, quanto simbólico. Não pretende-mos, evidentemente, fazer aqui uma crítica extensa do conceito de índice, mas derecolocá-lo numa perspectiva favorável à interação entre “texto” e “contexto”. Num

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sentido tradicional, como se sabe, dentro das famosas tricotomias de Charles Peirce,um índice é um signo que surge conectado fisicamente ao seu objeto, é o vestígio ma-terial de uma determinada ação no tempo – assim como a fumaça é índice do fogo, oucomo a pegada é vestígio da ação de caminhar (PEIRCE, 2000, p. 73). Nesses casos arelação entre índice e objeto é uma relação de “motivação”, como diz Umberto Eco,em seu Tratado Geral de Semiótica, uma relação analógica (ECO, 1997, p.162). Ao contrá-rio das palavras, por exemplo, que são geradas de modo aparentemente arbitrário econvencional, um índice é criado através de uma ação física que deixa rastros.

Nesse sentido “tradicional”, os índices estão presentes nas imagens deDesinformação de pelo menos duas maneiras: como fotografia ou como desenho – evoltaremos a isso ao longo do texto. Mas há ainda uma outra possibilidade de se con-siderar um signo como um índice. Num sentido mais amplo – e é a essa ampliação quenos referíamos há pouco – é possível compreender um signo não apenas como índicede um determinado processo produtivo “físico”, mas também como “índice” da teiacultural da qual brotou. Nesses termos, um determinado “texto”, verbal ou visual, éentendido como um “vestígio” de uma “cultura”, ou seja, concordando com o antro-pólogo Clifort Geertz, como vestígio de um conjunto de “sistemas entrelaçados designos interpretáveis” (GEERTZ, 1978, p.24). A conexão “física”, aqui, seria ampliadapara o registro de uma conexão “simbólica”, evidentemente – mas essa ainda seria umaquestão de motivação, por assim dizer. Não obstante, essa ampliação da noção peirceanade “índice” estaria muito próxima da própria noção de “sintoma” cultural já propostapelo historiador da arte Erwin Panofsky.1

Propomos, portanto, que a noção de índice possa ser aplicada de maneira ampli-ada para abarcar essa conexão entre signos e culturas. Assim, a noção de índice talvezsurja como um expediente capaz de fazer avançar ainda mais a semiótica no sentido deuma análise rigorosa das relações entre texto e contexto – ou em outras palavras, dasrelações entre linguagem e história.

2 “DESINFORMAÇÃO” E SEU CONTEXTO DE PRODUÇÃO

Desinformação é um pequeno conto apresentado em doze quadros que ocupamuma página da revista Isso, cujo único número foi publicado em Curitiba, Florianópolise Porto Alegre em dezembro de 1972. O texto da fotonovela é de Nelson Padrella, afotografia de Kremer, e nas imagens observamos a participação de Luiz CarlosRettamozo, todos profissionais que, atuando em Curitiba nos anos 1970, transitavam

1O projeto iconológico de Panofsky prevê pelo menos três níveis de interpretação que variam conforme o grau decomplexidade hermenêutica adotado: em primeiro lugar, haveria uma história do estilo, que seria, em boa medida, umahistória formalista. Depois, haveria uma história dos tipos, como ele diz, que corresponderia às conhecidas análisesiconográficas, ou seja, às análises baseadas no conhecimento de fontes literárias. E, por último, em terceiro lugar,teríamos ainda uma história dos sintomas culturais: uma narrativa histórica baseada na interpretação dos conteúdossimbólicos mais profundos de uma dada cultura. Sob esse aspecto – e a argumentação é baseada em Ernst Cassirer – um“sintoma” cultural nada mais é do que uma representação que nos permite “ver” através dos olhos de um artista, deuma época – de uma Weltanschauung (visão de mundo), enfim. Cf: PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais.3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.

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2Vindo do Rio Grande do Sul, Luiz Carlos Rettamozo chegou a Curitiba por volta de 1970, tendo em torno de vinte anos deidade, e logo conquistou um lugar de destaque nas artes plásticas, na cena underground e no circuito publicitário da capitalparanaense. Paralelamente às produções de materiais impressos de caráter contracultural, sua atuação profissional era bastantevariada, indo desde a produção de filmes em Super-8 e participação dos festivais de cinema de Curitiba, a criação de anúncios ecartazes quando trabalhava nas agências publicitárias (Lema e P.A.Z.), a direção de arte numa revista de porte considerável como aPanorama, até a participação em Salões de Arte e na Bienal de São Paulo. Já Nelson Padrella atuava simultaneamente comojornalista, artista plástico e artista gráfico, além de escrever contos e roteiros de filmes (entre eles, escreveu junto com Sylvio Backo roteiro do longa-metragem paranaense Lance Maior, em 1968, em que os diálogos da fotonovela Desinformação aparecem narradasnuma piada de mesa de bar). O fotógrafo Kremer, por sua vez, era sócio-proprietário da Zap Fotografias Ltda, empresa criada em1972, através da fusão da Zap de Francisco Kremer e da Tema Produções Fotográficas de Marcio César dos Santos.3Cf. KAMINSKI, Rosane. Imagens de revistas curitibanas: análise das contradições na cultura publicitária no contexto dosanos setenta. Curitiba, 2003. 212 f. Dissertação de Mestrado em Tecnologia, PPGTE. CEFET-PR.4“Aurático” em referência ao conhecido conceito de “aura” proposto por Walter Benjamin. Para o filósofo alemão, a “aura”,enquanto categoria estética, deveria dizer respeito ao hic et nunc (aqui, agora) específico de uma obra de arte, sua história deprodução, sua condição de autenticidade e originalidade. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas dereprodução. In: Walter Benjamin – coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1975, p. 13

nas áreas das artes plásticas, da publicidade, do jornalismo e até do cinema.2 Padrella e Rettamozo– assim como outros artistas e intelectuais curitibanos do período – apresentavam uma atuaçãoprofissional híbrida naquele momento, participando ao mesmo tempo dos espaços reservados àarte dita “culta” (como os Salões de Arte Paranaense e a Bienal Internacional de São Paulo) e dosnovos espaços de trabalho que iam surgindo com a expansão da indústria cultural nacional queocorria por aqueles tempos. Tal expansão tornava-se visível em Curitiba através de vários fatores,como: o crescimento da televisão como meio de comunicação de massa em nível nacional e local,o crescimento e a atualização tecnológica do parque gráfico curitibano e o fortalecimento de umacultura publicitária na cidade, evidenciada no aumento do número de agências publicitárias e dacrescente especialização de tarefas no interior destas agências, bem como da ampliação dos meiostécnicos à disposição dos profissionais da área.3 Para os produtores de imagens, tais espaços surgi-am como oportunidades de conquistar uma situação financeira mais estável e promissora. Isso nãosignifica, entretanto, que tais agentes simplesmente se rendessem à lógica da sociedade de consu-mo e abandonassem qualquer postura crítica em relação ao momento histórico. Pelo contrário,muitos deles aproveitavam justamente estes novos espaços por onde transitavam para utilizar osmeios técnicos na elaboração de produtos contestatórios ou irônicos – ou ironicamentecontestatórios, como é o caso da revista Isso.

E é nesse contexto que Desinformação será aqui entendida como um conjunto de índices quedizem respeito tanto ao seu próprio processo produtivo, quanto ao contexto sócio-cultural do qualemergiram.

3 FOTOGRAFIA E DESENHO COMO ÍNDICES

Num sentido tradicional, os índices visuais em Desinformação aparecem de duas maneiras:como fotografia e como desenho. É certo que, num sentido estrito, a fotonovela é índice namedida em que ela é o resultado da ação gráfica de depositar uma certa quantidade de tinta aderen-te sobre um papel. Nesses termos, ela é uma impressão, um conjunto de matéria fisicamenteassentada (impressa) numa página de revista. Mas consideremos agora a fotonovela antes de suapublicação efetiva – consideremo-la como um original, portanto. É nesse plano “aurático” e aindanão reprodutível que Desinformação se constitui por uma série de interferências manuais realizadassobre um conjunto de fotografias coladas num papel numa certa ordem.4

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Inicialmente, claro, as primeiras “imagens” dessa fotonovela são fotografias.Essas por sua vez são, em certa medida, índices dos objetos fotografados, pois possuem comeles uma conexão material, físico-química. Em que pesem todas as convenções que fazem simda fotografia uma linguagem, ou seja, uma série de expedientes que são antes de tudo escolhasformais5, a fotografia, enquanto procedimento técnico, possui uma conexão evidentemente

Figura 1 - Fotonovela DESINFORMAÇÃO. Padrella; Kremer; Rettamozo. Revista Isso, 1972.

5Cf. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1998.

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indicial com seus objetos. Ou seja, e para citar Vilém Flusser, a fotografia é, enquanto técnica,uma imagem produzida por aparelhos (FLUSSER, 1988, p. 33). Nesse plano, banheira, revis-tas, bananas e homens – todos os objetos fotografados, portanto – são objetos que, numdado momento, tiveram existência espaço-temporal efetiva, fatual. Nesse caso, as revistas, asroupas, as barbas e os cabelos são aqui tanto caracterizações visuais que reforçam uma certaintenção narrativa quanto, e isso é curioso perceber, uma série de índices que, estando emconexão “física” com os objetos retratados, nos trazem à vista uma conexão “simbólica” como universo cultural em questão. Vejamos um exemplo (e a partir de agora, nos referiremos aohomem com as bananas nos ouvidos como “Padrella”, e ao outro personagem como“Rettamozo”). O terno de Padrella, que na fotonovela surge como um contraponto às roupasdespojadas de Rettamozo, é um terno “existente”, ao menos naquele contexto. As roupas dos“personagens”, assim, querem representar exatamente aquilo que elas realmente são: roupasque simbolizam posições sócio-culturais determinadas numa mesma época. A fotografia des-sas roupas, portanto, é aqui tanto índice de roupas fatuais, que existiram no tempo e noespaço, quanto índices (sintomas) de diferentes posicionamentos culturais.

Em plenos anos 1970, os jovens brasileiros adotavam diferentes posturas diante dahistória. Aos militantes, o momento era de difícil repressão, pois se viviam os chamados“anos de chumbo”. Aos “pequenos burgueses”, para usar um vocabulário de época, restava odesejo de ascensão social em meio ao “milagre econômico brasileiro”. E, por fim, à turma dodesbunde, o rock, o psicodelismo, a liberação sexual e as drogas eram as alternativas maisusuais. Contudo, uma vez que a militância política estrita havia sido abafada pela repressão,não espanta que os protagonistas de Desinformação sejam estereótipos dos outros dois tipos dejovens. Padrella com sua barba bem cuidada e seu terno e gravata alinhados é o jovem “alie-nado”, sem senso político, individualista, que não escuta nem interage com o mundo.Rettamozo, por outro lado, de camiseta, calça jeans, longos cabelos e barba, é o jovem despo-jado, adepto da contracultura. Não é um jovem militante, por certo, pelo menos não noaspecto político organizado, mas isso não impede que ele se incomode com o inconformismoalheio.

Todos esses índices fotográficos, portanto, como vestimentas e barbas, são tambémíndices culturais. E não só porque representam tipos ideais de comportamentos da juventudebrasileira dos anos 1970, mas porque representam igualmente as contradições dos própriosautores dessa fotonovela. Como sujeitos históricos, Padrella e Rettamozo não eram simples-mente “burgueses” ou “militantes” ou “desbundados” – assim como ninguém o era porcompleto. É certo, tendo em vista o cabelo e a barba de Rettamozo nas fotos, que ele parece,à primeira vista, estar interpretando a si mesmo. E em certa medida ele provavelmente está.Mas, como publicitário, Rettamozo provavelmente dependia das engrenagens que movimen-tavam o próprio “milagre brasileiro”, pois a publicidade é parte indispensável à lógica dogrande mercado de bens de consumo. Sem contar que, como “militante”, Rettamozo tanto jáhavia se envolvido com o movimento estudantil quanto ainda publicava desenhos e cartunsque criticavam a censura oficial. Em outras palavras, Desinformação é índice não só das possí-veis posições ideológicas da juventude brasileira daquele período, como também é um vestí-gio de que os próprios jovens – aí incluídos os autores – não podiam simplesmente adotaruma dessas “posições” sem ter as demais em conta.

A escolha de um banheiro como cenário das fotografias também é instigante. É umíndice do espaço privado de cada um, já que não existe espaço físico e arquitetônico mais

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privativo que este. Lá, Padrella parece estar imerso na sua individualidade confortável, iso-lado de tudo e de todos, ausente às angústias ou felicidades alheias: “cada um na sua” –aquele espaço parece ser seu. Pode tanto significar o reduto da sua casa, o isolamento em simesmo, o desejo de sentir prazer consumista de suas posses, quanto o progressivo afasta-mento dos indivíduos dos debates da esfera pública e a opção de muitos pelo silêncio e pelofechamento nos espaços privados, num momento histórico em que as discussões públicassofriam acirrado controle político. Com a chegada de Rettamozo, o sossego é interrompi-do. Há uma insistência pelo diálogo, primeiro de forma branda e depois com certaagressividade. Os quadros da segunda e da terceira linhas são mais “agitados” visualmente:é o momento do contato, do conflito. Na quarta linha, porém, o personagem que parece terse sentido importunado prefere se retirar, pondo um fim à tentativa do primeiro de estabe-lecer comunicação. Nos quadros que compõem esta linha, inclusive, o espaço físico já nãoé mais facilmente identificável como um banheiro.

Desinformação, entretanto, não é feita apenas de fotografias, e isso é parte de suariqueza expressiva. Toda a coluna central da história, assim como todos os textos e balõesda fotonovela, tudo isso foi efetivamente desenhado. As fotografias foram diagramadastendo em vista a seqüência da narrativa, mas a interferência dos desenhos sobre as fotos, etambém ao lado destas, faz de Desinformação um misto de fotonovela com história em qua-drinhos. Neste ponto, a noção de índice, mesmo no sentido tradicional, implica uma leituraum pouco diferente.

Num desenho, como numa pintura, cada traço, cada marca gráfica ou pictórica dei-xada na superfície é um registro da ação de uma mão, um vestígio de uma decisão artesanal,um índice autográfico. Assim, o “índice” num desenho possui uma conexão física com seuobjeto diferente daquela conexão que se considera numa fotografia. Numa foto, cada mar-ca impressa no papel fotográfico corresponde às marcas inversas do negativo que por suavez estão relacionadas aos estímulos luminosos captados pela objetiva da câmera. Em ou-tras palavras, os índices, numa fotografia, ainda guardam uma correspondência física comos objetos que foram fotografados e estão representados no papel fotográfico. Num dese-nho, ao contrário, a representação de uma cadeira, por exemplo, tem com uma cadeira realapenas uma tangencial correspondência icônica. Ou seja, o desenho não é afetado fisica-mente pelo objeto representado. Mas visto como um índice, o desenho tem por “objeto” aação de desenhar, o caminhar das mãos com uma caneta ou pincel sobre um suporte qualquer.E a decisão de interferir graficamente, ou melhor, “autograficamente” na fotonovela, não éisenta de significados.

As interferências gráficas, típicas da linguagem das histórias em quadrinhos, podemter sido feitas por Padrella, que entre outras coisas também era desenhista e pintor – masbem poderiam ter sido feitas pelo próprio Rettamozo, igualmente artista plástico e ilustra-dor. A engenhosa seqüência narrativa das colunas – fotografias nas laterais e desenho aocentro – guarda, na apresentação de índices expressivos diferentes, uma referência ideoló-gica com a contracultura do período; o que equivale a dizer que, a partir de índices distintos(autográficos ou fotográficos), temos acesso a certos índices simbólicos, culturais, “sinto-mas”. Adotar a linguagem estrita da fotonovela não deixa de ser uma forma de, pela paró-dia, ironizar esse gênero literário popular, tão em voga no período. Ao mesmo tempo queusar os recursos das histórias em quadrinhos e dos cartuns é algo que se refere a uma práticaexpressiva muito comum às publicações marginais daquele mesmo período – e basta lem-brar do Pasquim e suas charges políticas para ter isso em mente.

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Na página que contém Desinformação, enfim, as sugestões de sons e de fala, por exemplo, sãoexpressas através da inserção de textos à mão, seguindo os códigos das histórias em quadrinhos. Acoluna central diferencia-se das outras duas pelos contrastes gerados em preto- e-branco, sem qual-quer gradação tonal – sendo que o preto torna-se progressivamente predominante, do quadro supe-rior para o inferior. Esta faixa central de quadrinhos não representa visualmente a imagem física dospersonagens, apenas balões de fala, grafemas e onomatopéias. O espaço gráfico de cada quadro évalorizado pelas diferentes disposições de regiões escuras e claras. Prevalecem formas orgânicas nes-tas composições, sugerindo um dinamismo que busca integrar os quadros desenhados com os qua-dros fotografados. A exceção aparece no quadro que mostra a palavra “FIM”, em letras retas e semserifas, produzindo um aspecto estático e “definitivo”. As palavras destes quadros desenhados sãovistas primeiro em sua materialidade gráfica, e por meio delas surgem associações ao tom de voz dopersonagem que fala, alterado a cada quadro. As regiões brancas dos quadros e dos balões sãoassociáveis ao sujeito que chega no ambiente e tenta manter contato com o outro. As regiões negrassão associáveis ao silêncio em que se encontra o personagem que está com os ouvidos fechados parao mundo exterior. Num âmbito simbólico, é como se este contraste preto/branco pudesse sugerir oembate entre as subjetividades dos dois personagens, e a ausência de gradações insinuasse a falta deinteração. Assim, a faixa central (observada verticalmente), completamente desenhada, é especial-mente significativa na peça, tanto que a sinalização de “fim” foi ali colocada sobre um herméticoquadro negro chapado – um índice agudo da “não-comunicação”.

Por outro lado, ao misturar todos esses meios de expressão – a fotonovela, os quadrinhos e ascharges – Desinformação desponta também como índice da própria atuação midiática e poética dessesautores que, envolvidos com a contracultura, quer dizer, envolvidos com a oposição a qualquer formade “cultura” hegemônica, criavam formas híbridas de expressão que condiziam com o hibridismo desua própria atuação social.

Nesse sentido, naquele momento de fortalecimento da chamada “indústria cultural”, nãohavia simplesmente o mundo da reprodutibilidade técnica, com a fotografia, mas também o desenhoe com ele o gesto poético autográfico pessoal, artesanal e aurático. Não apenas a seriedade da grandearte ou a coerência racional do mundo da técnica, mas a ironia evidente do chiste, da blague, dasbananas nos ouvidos, do diálogo absurdo, dos homens vestidos numa banheira. E, por fim, nãoapenas a alienação da publicidade, do consumismo, da desinformação e dos prazeres mesquinhos,mas a denúncia bem-humorada disso tudo.

4 CONCLUINDO: “DESINFORMAÇÃO” COMO SINTOMA CULTURAL ECOMO PÁGINA IMPRESSA

Desinformação está dividida em doze quadros de igual tamanho, dispostos em três colunasverticais e quatro linhas horizontais. Neles, a narrativa pede uma leitura linear e coerente, da qualparticipam dois personagens masculinos que se encontram num banheiro.

Inicialmente Padrella, que possui uma banana enfiada em cada ouvido, está sentado dentrode uma banheira, lendo uma revista. Impassível, ele não interage com o outro personagem que seaproxima. Quando Rettamozo entra em cena, tenta avisá-lo sobre as bananas nos ouvidos. O ho-mem da banheira demora a perceber que o recém-chegado está tentando comunicar-se com ele, equando o faz, avisa: “desculpe, não ouço nada... estou com duas bananas enfiadas nos ouvidos”. Aausência completa de comunicação é transformada em piada.

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A visível contradição entre o título da fotonovela, o fato de o personagem estar lendouma revista (aparentemente buscando informar-se), e o fato de estar fechado à comunicaçãocom o outro personagem, torna-se bastante sintomática numa época em que, de um lado, cres-ciam técnica e economicamente os veículos comunicacionais, e de outro, aumentava a censura aesses mesmos veículos. É ainda possível ter em conta que há, nas mãos de Padrella, um exem-plar da revista Playboy, o que pode ser interpretado como um índice tanto da revoluçãocomportamental do período, como da colonização cultural norte-americana.6

Padrella e Rettamozo eram amigos pessoais do poeta Paulo Leminski e compartilhavamcom ele uma certa visão de mundo comum, uma visão que prezava pelas conquistas da cultura“de elite” na mesma medida em que se abria ao universo da cultura pop, midiática, reprodutiva,massificada. Produtos como uma revista Playboy, por exemplo, que poderiam significar tantorebaixamento à cultura de massa quanto uma forma de subserviência ao imperialismo norte-americano, eram contudo admitidos num viés, digamos, mais positivo, embora criticamentepositivo. Para Leminski, produtos como esse deveriam ser deglutidos antropofagicamente, enão necessariamente absorvidos de modo passivo.7 É possível, então, imaginar uma posiçãodiferenciada para os dois personagens da história perante o mesmo produto, associando a cadaum deles um tipo de postura (política e cultural). Depois do diálogo – ou melhor, do não-diálogo – o homem com bananas nos ouvidos sai da banheira carregando sua revista Playboy.Seu lugar será ocupado, então, pelo outro personagem, que aparece no último quadro deitado nabanheira, também observando uma revista aberta em suas mãos. Padrella aqui é o pequeno-burguês individualista preocupado apenas com seu mundo privado: uma banheira, uma Playboye o silêncio inabalável e confortável de sua voluntária introspecção – representa a passividade. Osegundo personagem, por sua vez, inconformado com a “desinformação”, talvez não leia suarevista de modo tão passivo – muito embora, em substância, sua atitude final não seja diferenteda de Padrella: depois da falha na comunicação, e mesmo depois do “fim”, resta a leitura denossas revistas em nossas banheiras pessoais.

Com isso, Desinformação, através de um simples expediente narrativo, parece nos sugeriruma interpretação que justamente leve em consideração a leitura efetiva que fazemos da própriafotonovela. Em nossas “banheiras pessoais”, a introspecção da nossa própria leitura – mesmo que“criticamente positiva”, como se disse –, surge como um contraponto à idéia de ação, de militânciapolítica, de mobilização social; como um contraponto portanto a todas as patrulhas ideológicasdaquele e de nosso tempo. Nesses termos, na exata medida em que é um índice possível dosdebates culturais brasileiros dos anos 1970, Desinformação também é um retorno ao seu ponto deorigem, um índice no sentido estrito: uma simples página impressa de revista que, como tal, pede-nos um sentido, um uso e, como agora, uma interpretação.

6Esta ambigüidade de sentidos que emergem da presença de um exemplar da revista Playboy nesta peça gráfica deve-se a uma duplaimplicação que envolve este periódico: por um lado, tal revista é um produto da “indústria cultural” norte-americana que difunde valoresoriundos daquele país, mas por outro é um periódico cujos conteúdos mantêm íntima relação com uma série de mudançascomportamentais que se tornaram manifestas em fins da década de sessenta, entre as quais o abandono dos “rituais do namoro para fazeramor em favor de ‘fazer sexo’, e a substituição dos maridos e esposas por ‘companheiros’ mais ou menos permanentes”. Cf. BATZELL,Digby. Contracultura. In: Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.7Em 28 de setembro de 1975, em entrevista ao Diário do Paraná, Leminski diz: “Como dizem os poetas concretos, a cultura brasileira éperiférica pois é um setor da cultura latino-americana que, por sua vez, é um pequeno setor da cultura do Terceiro Mundo. Então, ou vocêestá colonizado ou você está atrasado, se recusar as informações de fora. Um dos nossos intelectuais da Boca Maldita, dito engajado, serecusa a aprender o idioma inglês porque, se assim o fizer, acredita, ficará a mercê de revistas como Playboy, Newsweek, Times etc... Eleescolheu o atraso, preferindo ser topeira. Eu optei, estrategicamente, por ser colonizado. Falo várias línguas, principalmente o inglês. Ouseja, eu sou antropofágico”. (In: VAZ, 2001, p. 168).

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ARTUR FREITAS E ROSANE KAMINSKI

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