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Desigualdade, Qualidade de Moradia e Desenvolvimento Humano nos
Municípios Brasileiros
Dalson Britto Figueiredo Filho1
Renata Mendes Bezerra2
Lucas Emanuel de Oliveira Silva3
Resumo
Esse artigo estima o Índice de Qualidade de Moradia (IQM) para todos os municípios brasileiros
em três diferentes períodos (1991, 2000 e 2010). Em termos substantivos, discutimos como a
desigualdade, a qualidade habitacional e o desenvolvimento humano se relacionam, e,
principalmente, como se distribuem no espaço e no tempo. Metodologicamente, o desenho de
pesquisa combina estatística descritiva, multivariada e análise espacial para examinar dados
secundários disponibilizados pelo Atlas de Desenvolvimento Humano. Os resultados indicam que: (1) a qualidade de moradia no Brasil aumentou, pois o IQM nacional passou de 0,563 em
1991 para 0,652 em 2000 e atingiu 0,747 em 2010; (2) as regiões Norte (53,65%) e Nordeste
(56,56%) apresentaram os maiores crescimentos da qualidade de moradia, mas ainda
permanecem abaixo da média nacional; (3) São Paulo (0,788), Distrito Federal (0,783) e Santa
Catarina (0,772) são os estados com melhores níveis de qualidade habitacional, enquanto
Maranhão (0,420), Acre (0,404) e Amazonas (0,373) demonstram os menores; (4) existe
dependência espacial na distribuição do IQM, e (5) o Índice de Qualidade de Moradia se
correlaciona positivamente com o IDH-M, seguindo as expectativas teóricas. Com esse trabalho,
esperamos auxiliar na elaboração de políticas públicas habitacionais no Brasil.
Palavras-chave: índice de qualidade de moradia; desenvolvimento humano; municípios.
Abstract
This paper estimates a Household Quality Index (HQI) for all Brazilian municipalities during
three different periods (1991, 2000 and 2010). On substantive grounds, we discuss how
inequality, household quality and human development relate to each other, and mainly how they
vary across space and time. Methodologically, the research design combines descriptive
statistics, multivariate statistics and spatial analysis to examine secondary data from the Human
Development Report. The results suggest that: (1) household quality increased from 0,563 in
1991 to 0,652 in 2000 and reached 0,747 in 2010; (2) North (53,65%) and Northeast (56,56%)
showed higher increases in household quality, but they still remain below the national average;
(3) São Paulo (0,788), Distrito Federal (0,783) and Santa Catarina (0,772) are the states which
have better household quality, while Maranhão (0,420), Acre (0,404) and Amazonas (0,373) have the lower indexes; (4) there is spatial dependence in the distribution of the Household
Quality Index and (5) Household Quality Index has a positive correlation with HDI-M, following
theoretical expectations. With this paper we hope to help the conception of household public
policies in Brazil.
Keywords: household quality index; human development; municipalities.
1 Doutor e Professor Adjunto no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco -
UFPE ([email protected]). 2 Mestranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP, bolsista de pesquisa da Capes
([email protected]). 3 Graduando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
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The strength of a nation derives from the integrity of the home. Confucius
Uma casa não é uma mercadoria - quatro paredes e um teto.
É um lugar para viver com segurança, paz e dignidade, e um direito de todos os seres humanos. Raquel Rolnik
INTRODUÇÃO
O estabelecimento de uma política urbana efetiva é um dos principais desafios
enfrentados pelos legisladores e gestores governamentais. As dificuldades se tornam ainda
maiores com a limitação dos dados existentes. A falta de informações dificulta a
implementação de políticas públicas, já que seu próprio processo de elaboração depende do
conhecimento acurado da realidade (KHANDKER, KOOLWAL e SAMAD, 2010). Em
segundo lugar, inibe a produção de estudos em perspectiva comparada, restringindo a
difusão de práticas institucionais eficientes (GERTLER et al, 2011). Por fim, a escassez de
dados reduz a transparência das ações públicas, violando o princípio da publicidade4. Em
conjunto, esses obstáculos comprometem a efetividade das ações governamentais.
O foco deste trabalho repousa sobre a qualidade das condições habitacionais das
famílias brasileiras. Nosso objetivo é analisar a variação da qualidade da moraria nos
municípios brasileiros em 1991, 2000 e 2010. Metodologicamente, o desenho de pesquisa
combina estatística descritiva, multivariada e análise espacial para examinar dados
secundários disponibilizados pelo Atlas de Desenvolvimento Humano. Em particular,
utilizamos a técnica de análise de componentes principais para estimar o Índice de Qualidade
de Moradia (IQM) a partir de seis variáveis observadas: (1) % da população em domicílios
com água encanada; (2) % da população em domicílios com banheiro e água encanada; (3)
% da população em domicílios com densidade superior a 2 pessoas por dormitório; (4) % da
população em domicílios com coleta de lixo; (5) % da população em domicílios com energia
elétrica e (6) % de pessoa sem domicílios com abastecimento de água e esgotamento
sanitário inadequados.
Em geral, os resultados mostram que a qualidade de moradia melhorou no Brasil ao
longo do período analisado. O IQM nacional passou de 0,563 em 1991 para 0,652 em 2000
e atingiu 0,747 em 2010, o que representa um aumento de 32,68%. Todavia, a presença de
desigualdades regionais ainda é muito marcante. Por exemplo, as regiões Norte e Nordeste
4De acordo com o artigo 37, da Constituição Federal de 1988, os princípios que informam o funcionamento da
administração pública direta e indireta são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência
(BRASIL, 2014).
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possuem uma qualidade de moradia significativamente inferior às demais regiões e à média
nacional. Além disso, os resultados indicam a existência de uma dependência espacial na
distribuição do IQM, ou seja, municípios espacialmente próximos tendem a apresentar
condições habitacionais mais semelhantes do que unidades espaciais mais distantes.
O restante do artigo está estruturado da seguinte forma: a primeira seção discute
brevemente a qualidade da habitação no Brasil, a segunda descreve as principais
características do desenho de pesquisa, a terceira sumariza os resultados e, por fim, a quarta
apresenta as conclusões.
1. A DIMENSÃO QUALITATIVA DA HABITAÇÃO
No Brasil, mesmo com a redução na desigualdade de renda nos últimos anos
(HOFFMAN, 2010), as disparidades locais e regionais ainda permanecem elevadas (CHEIN,
LEMOS e ASSUNÇÃO, 2007; HOFFMAN, 2010; NETTO JÚNIOR e FIGUEIREDO,
2014). Por exemplo, a partir de dados de 1970 a 1995, Magalhães, Hewings e Azzoni (2005)
apontam que existe uma forte concentração regional de renda. A alta correlação espacial
indica que estados menos desenvolvidos estão rodeados por outros que compartilham a
mesma situação econômica. Ampliando essa ideia, Chein, Lemos e Assunção (2007),
analisando os dados dos censos de 1970 a 2000, explicam que a forte desigualdade
econômica ultrapassa as divisões administrativas do território. Eles identificam regiões
homogêneas ou “clubes de convergência” nos quais o desenvolvimento segue determinados
padrões (MAGALHÃES, HEWINGS e AZZONI, 2005).
Um problema decorrente da desigualdade de renda é o fato de que famílias pobres
geralmente vivem em regiões com menos acesso a serviços essenciais (AZONNI et al, 2000).
Por exemplo, Silva e Resende (2005), ao estudar o caso da região Nordeste, sugerem que o
nível de renda por habitante apresenta uma correlação positiva com o acesso a serviços
básicos (educação, saúde, água encanada, etc.). Isso significa que a baixa renda nos
municípios nordestinos está associada à falta de acesso aos serviços públicos. Em nível
nacional, Gonçalves (1998) analisa a distribuição do déficit habitacional5 tanto por nível de
5 Calculado a partir da inadequação, rusticidade e coabitação nos domicílios, com dados da PNAD. Atualmente, a metodologia oficial é definida pela Fundação João Pinheiro (FJP). O déficit é calculado a partir da soma de
quatro componentes: domicílios precários (soma dos domicílios improvisados e dos rústicos), coabitação
familiar (soma dos cômodos e das famílias conviventes secundárias com intenção de constituir um domicílio
exclusivo), ônus excessivo com aluguel urbano e adensamento excessivo de domicílios alugados (FJP, 2013).
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renda quanto por unidades da federação. Os resultados seguem as previsões da literatura: o
déficit habitacional afeta diretamente a população de baixa renda e também as regiões mais
pobres do país (Norte e Nordeste). As conclusões em relação ao déficit se assemelham aos
perfis de acesso aos serviços de água e esgoto (GONÇALVES, 1998).
Como explicam Chein, Lemos e Assunção (2007), entre 1970 e 2000, houve um
aumento no acesso da população a serviços de abastecimento de água, rede de esgoto e
energia elétrica. Mas, segundo eles:
As diferenças observadas entre as regiões mais desenvolvidas e menos
desenvolvidas são enormes. Os resultados mostram que o processo de melhoria
nos indicadores econômicos entre 1970 e 2000 ocorreu de forma a manter grande
parte do diferencial já existente em 1970. As exceções se referem aos indicadores
de posição ocupacional e acesso a serviços públicos de iluminação elétrica. Os
indicadores de renda, educação e acesso a demais serviços públicos preservam a
diferença observada em 1970, quando não a ampliam (CHEIN, LEMOS e ASSUNÇÃO, 2007, p.303).
No âmbito urbano, Torres (2004) identifica alguns elementos que explicam o impacto
da segregação residencial sobre a perpetuação da pobreza. Um dos problemas de residir em
áreas mais pobres é a “má qualidade residencial” que oferece riscos ambientais e de saúde
aos moradores, seja pela falta de acesso a serviços públicos (água, saneamento, coleta de
lixo, etc.) e de infraestrutura urbanística, ou pelo risco de inundação ou deslizamentos. Outro
problema é o efeito causado pela vizinhança, pois “[...] o isolamento social presente nas
áreas segregadas tende a contribuir significativamente para a redução das oportunidades das
famílias residentes nesses locais” (TORRES, 2004, p. 41).
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) define a
moradia adequada como sendo, dentre outros requisitos, o acesso a serviços e infraestrutura
como: água potável, saneamento básico, abastecimento de energia elétrica, coleta de lixo,
instalações sanitárias, etc6. Esses critérios se baseiam nas definições do Comitê sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (UNITED NATIONS, 1991), que defendem que o
acesso à moradia adequada faz parte do conjunto dos direitos humanos. A falta de serviços
básicos e instalações sanitárias reduz a qualidade de vida, uma vez que aumenta a
vulnerabilidade individual e comunitária a doenças e epidemias (UN-HABITAT, 2009;
RIBEIRO e ALMEIDA, 2012; ALVES e CAVENAGHI, 2005).
6 Para maiores informações sobre adequação de moradias e sobre normas e legislações brasileiras e
internacionais, ver: Direito à moradia adequada. Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos
Humanos, 2013. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/promocao-e-
defesa/publicacoes-2013/pdfs/direito-a-moradia-adequada>.
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O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica os domicílios como
adequados quando eles atendem às seguintes condições7: “[...] até dois moradores por
dormitório; abastecimento de água por rede geral de distribuição; esgotamento sanitário por
rede geral de esgoto ou pluvial, ou por fossa séptica; e lixo coletado, diretamente por serviço
de limpeza ou em caçamba de serviço de limpeza” (IBGE, 2012, p. 34). Quando um
domicílio apresenta uma ou até três das características mencionadas acima, ele é classificado
como semiadequado, e na ausência completa desses requisitos, a moradia é inadequada.
A inadequação está presente naqueles domicílios que não possuem condições
desejáveis de habitação, mas isso nem sempre significa que seja necessária a construção de
novas unidades habitacionais (FJP, 2013). O acesso a serviços básicos tem impacto na saúde
e qualidade de vida das famílias, e é uma das dimensões centrais da adequação das moradias.
Mas o número de moradores por dormitório é também um fator crucial para garantir
condições habitacionais adequadas às famílias. Isso porque a densidade domiciliar
representa o espaço de que cada morador dispõe dentro de sua casa, e é fundamental para a
saúde física e mental dos habitantes (VETTER, 1981; UN-HABITAT, 2009).
Nesta seção, discutimos alguns pontos centrais acerca da dimensão qualitativa da
habitação e das desigualdades no acesso a serviços básicos. O principal objetivo desse
trabalho é analisar a variação da qualidade habitacional nos municípios brasileiros ao longo
do tempo e do espaço.
2. METODOLOGIA
O Quadro 1 sumariza as principais características do desenho de pesquisa com objetivo
de facilitar a replicabilidade dos resultados (KING, 1995).
Quadro 1 - Desenho de pesquisa
População Todos os municípios brasileiros
Técnicas Estatística descritiva, análise de componentes principais, análise espacial e
correlação
Variáveis
População em domicílios com água encanada; (2) % da população em
domicílios com banheiro e água encanada; (3) % da população que vive em
domicílios com densidade superior a 2 pessoas por dormitório; (4) % da
população em domicílios com coleta de lixo; (5) % da população em domicílios
7A Fundação João Pinheiro (FJP) analisa a inadequação das moradias com base em quase as mesmas variáveis
utilizadas pelo IBGE. Mas a diferença básica entre essas duas definições é que a metodologia da FJP leva em
consideração a inexistência de unidade sanitária domiciliar exclusiva (ausência de banheiro ou sanitário de uso
exclusivo no domicílio). A moradia é classificada como inadequada quando possui uma ou mais inadequações
(FJP, 2013).
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com energia elétrica e (6) % de pessoas em domicílios com abastecimento de
água e esgotamento sanitário inadequados
Fonte Atlas de Desenvolvimento Humano
Fonte: elaborado pelos autores (2015).
A população de interesse são todos os municípios brasileiros durante três diferentes
períodos: 1991, 2000 e 2010. Tecnicamente, combinamos estatística descritiva, análise de
componentes principais, análise espacial e correlação de Pearson. Em particular, reduzimos
a dimensionalidade de seis variáveis observadas e criamos o Indicador de Qualidade de
Moradia (IQM). As variáveis são as seguintes: (1) % da população em domicílios com água
encanada; (2) % da população em domicílios com banheiro e água encanada; (3) % da
população que vive em domicílios com densidade superior a 2 pessoas por dormitório; (4)
% da população em domicílios com coleta de lixo; (5) % da população em domicílios com
energia elétrica e (6) % de pessoas em domicílios com abastecimento de água e esgotamento
sanitário inadequado. Todos os dados foram coletados no site do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por meio do Atlas de Desenvolvimento Humano
no Brasil8. Os dados foram obtidos em formato .csv (comma separated values) e importados
para serem analisados no Statistical Package for Social Sciences (SPSS, versão 20).
3. RESULTADOS
A Tabela 1 mostra o acesso a serviços básicos bem como a evolução da densidade
domiciliar no Brasil ao longo do período analisado.
Tabela 1 – Cobertura de serviços básicos e densidade domiciliar (%)
Variável
1991 2000 2010 Diferença
(2010-1991) Média Desvio-
padrão Média
Desvio-
padrão Média
Desvio-
padrão
Água encanada 53,39 31,82 66,67 29,16 85,60 14,72 60,33
Banheiro e água
encanada 47,66 30,84 62,66 30,93 80,87 21,71 69,68
Densidade
domiciliar >2 51,18 14,93 38,14 14,92 25,13 13,00 -50,89
Lixo 50,62 34,72 79,20 25,59 94,05 11,05 85,80
Energia elétrica 69,57 26,06 86,61 17,03 97,19 6,02 39,70
Água/esgotamento
inadequados 17,24 24,21 13,47 15,60 9,20 12,84 -46,63
Fonte: elaborado pelos autores (2015) com base nas informações disponíveis no Atlas de Desenvolvimento Humano.
8 O Atlas de Desenvolvimento Humano oferece uma quantidade significativa de dados em diferentes níveis espaciais de agregação (estadual, regiões metropolitanas, municipal e unidades de desenvolvimento humano)
e por dimensões distintas (demografia, educação, renda, trabalho, etc.). Além de bastante amigável, a
plataforma permite a consulta desagregada a diferentes níveis geográficos e indicadores sociais. A ferramenta
também permite a elaboração de mapas, visualização de rankings e a disponibilização dos perfis analíticos.
Ver:<http://www.atlasbrasil.org.br/2013/>.
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Ao se considerar as variáveis de forma desagregada, observa-se que as condições
habitacionais estão melhorando ao longo do tempo9. Por exemplo, em 1991, 69,57% da
população vivia em domicílios com fornecimento regular de energia elétrica. Em 2010, esse
percentual passou para 97,19%, ou seja, um aumento de 39,7%. Similarmente, no que diz
respeito ao percentual da população vivendo em domicílios com banheiro e água encanada,
observa-se um crescimento de 69,68%, passando de 47,66% em 1991 para 80,87% em 2010.
Em 1991, cerca de 50% dos brasileiros não contavam com coleta de lixo em suas residências.
Os dados de 2010 apontam que a cobertura chegou a 94,05%, ou seja, um crescimento de
85,8%. Em contrapartida, os percentuais de água/esgoto inadequado e densidade domiciliar
maior do que dois habitantes por dormitório sofreram reduções de 46,63% e 50,89%,
respectivamente.
Em termos substantivos, esses indicadores ajudam a compreender diferentes aspectos
das condições habitacionais no Brasil. Para os propósitos deste trabalho, no entanto, é
importante estimar em que medida essas variáveis podem ser sintetizadas em um Índice de
Qualidade de Moradia (IQM), que facilita a comparação no tempo e espaço. Para esse fim,
optamos pela análise de componentes principais, já que essa técnica permite reduzir uma
grande quantidade de variáveis a um número menor de componentes (COSTELLO e
OSBORNE, 2005; TABACHNICK e FIDELL, 2007)10.
O IQM varia entre 0 e 1, e, quanto mais próximo de 1, melhor é qualidade habitacional
observada em um determinado município11. A Tabela 2 mostra a variação do Índice de
Qualidade de Moradia (IQM), entre os anos de 1991, 2000 e 2010.
Tabela 2 - Estatística descritiva do IQM nacional por ano
1991 2000 2010 Diferença %
(2010-1991) Média Desvio
padrão Média
Desvio
padrão Média
Desvio
padrão
0,563 0,163 0,652 0,149 0,747 0,119 32,68
Fonte: elaborado pelos autores (2015) com base nas informações disponíveis no Atlas de Desenvolvimento Humano.
9Algumas políticas governamentais influenciaram no aumento da cobertura serviços básicos ao longo do
período analisado. No entanto, está fora do alcance desse trabalho enumerar cada uma dessas políticas e os
seus resultados. 10Os fatores/componentes são combinações lineares das variáveis observadas que explicam/representam a variação das variáveis originais (HAIR et al., 2009). Dessa forma, a análise fatorial é particularmente adequada
tanto como técnica de redução de dados quanto como ferramenta para mensurar fenômenos que não são
diretamente observáveis (ZELLER e CARMINES, 1980). 11Originalmente, o indicador é estimado de forma padronizada, ou seja, tem média zero e desvio padrão igual
a um. Para facilitar a interpretação, optamos por normalizar o IQM entre 0 e 1.
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Na comparação entre 2010-1991, observa-se um incremento de 32,68% nesse
indicador. Ou seja, as condições de moradia melhoraram significativamente no Brasil
durante o período observado. Analisando por região, também pode-se perceber uma
evolução do IQM ao longo do tempo, conforme o Gráfico 1.
Gráfico 1 - IQM por região e por ano
Como mostra a Tabela 3, as regiões Norte (53,65%) e Nordeste (56,56%) apresentaram
os maiores aumentos do IQM no período entre 1991 e 2010. Ao considerar a análise de
variância (ANOVA), observa-se que todos os resultados são estatisticamente significativos
(p-valor<0,001). Ou seja, as médias do IQM por ano são diferentes para as regiões do Brasil.
Tabela 3 – Estatística descritiva do IQM por região e por ano
Região
1991 2000 2010 Diferença %
(2010-1991) Média Desvio
padrão
padrão
Média Desvio
padrão Média
Desvio
padrão
Norte 0,384 0,093 0,434 0,121 0,590 0,157 53,65
Nordeste 0,419 0,107 0,531 0,099 0,656 0,099 56,56
Centro-Oeste 0,585 0,103 0,695 0,099 0,800 0,058 36,75
Sudeste 0,672 0,111 0,750 0,082 0,814 0,048 21,13
Sul 0,686 0,085 0,764 0,059 0,831 0,030 21,14
F1991 = 2.125,95 (p-valor<0,001); F2000 = 2.508,87 (p-valor<0,001); F2010 = 1.710,14 (p-valor<0,001)
Fonte: elaborado pelos autores (2015) com base nas informações disponíveis no Atlas de Desenvolvimento Humano.
O próximo passo é analisar a variação do IQM por unidade da federação. Como
esperado, os estados do Norte e Nordeste apresentam valores mais baixos de qualidade de
moradia, quando comparados às demais regiões. O Gráfico 2 ilustra essas informações.
Fonte: elaborado pelos autores (2015) com base nas informações disponíveis no Atlas de Desenvolvimento Humano.
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Gráfico 2 – IQM médio por unidade da federação
Por fim, analisamos também a variação espacial do IQM. Apesar do Nordeste ter
apresentado o maior crescimento percentual, nossos resultados sugerem que: (1) existe uma
grande variabilidade na distribuição espacial da qualidade da moradia no Brasil; (2) a região
Nordeste e, principalmente, a região Norte apresentam níveis mais baixos de qualidade de
moradia e (3) a distribuição do IQM é espacialmente dependente, ou seja, unidades espaciais
mais próximas tendem a apresentar níveis de qualidade de moradia mais semelhantes do que
municípios mais distantes. Isso quer dizer que, por exemplo, os municípios com baixo nível
de qualidade de moradia estão rodeados por municípios com baixo IQM, e municípios com
alta qualidade de moradia estão rodeados por outros municípios com alto IQM. Em
particular, observamos um índice de Moran de 0,692 em 1991, 0,746 em 2000 e 0,733 em
2010. Todos apresentam significância estatística após 999 permutações12. O Mapa 1 ilustra
a distribuição do IQM por município durante o período analisado.
12 Tecnicamente, o cálculo do índice de Moran foi realizado a partir do software Geoda, utilizando uma matriz
de vizinhança do tipo rainha. Ver Anselin (2005).
Fonte: elaborado pelos autores (2015) com base nas informações disponíveis no Atlas de
Desenvolvimento Humano.
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Mapa 1 – Distribuição do IQM nos municípios brasileiros entre 1991, 2000 e 2010
(a) 1991 (b) 2000 (c) 2010
Fonte: elaborado pelos autores (2015) com base nas informações disponíveis no Atlas de Desenvolvimento Humano.
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Para testar a robustez do nosso indicador, optamos por estimar o nível de correlação entre o
Índice de Qualidade de Moradia (IQM) e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM).
Com base na teoria, espera-se uma associação positiva entre os dois indicadores, pois, como vimos
anteriormente: 1) as famílias mais pobres geralmente vivem em regiões com menos acesso a serviços
essenciais (AZONNI et al, 2000). Isso implica que o nível de renda por habitante se correlaciona
positivamente com o acesso a serviços básicos (educação, saúde, água encanada, etc.) (SILVA,
RESENDE, 2005), e 2) a falta de serviços básicos e instalações sanitárias reduz a qualidade de vida
nos domicílios, tornando os indivíduos e a comunidade mais vulneráveis a doenças e epidemias (UN-
HABITAT, 2009; RIBEIRO e ALMEIDA, 2012; ALVES e CAVENAGHI, 2005). Como o IDH-M
é uma medida composta pela longevidade, educação e renda no município, é possível esperar que os
municípios com maior qualidade de moradia (IQM) estejam associados a municípios com maior IDH-
M e vice-versa. O gráfico 3 ilustra a correlação entre IQM e IDH-M por ano.
Gráfico 3 - Correlação entre IQM e IDH-M
Os resultados corroboram a expectativa teórica: a correlação entre o IQM e o IDH-M é positiva
e estatisticamente significativa para os três períodos analisados. Em 1991, a correlação é de 0,895 e
o coeficiente de determinação de 0,808. Em 2000, a correlação é de 0,854 e o coeficiente de
determinação de 0,761. Por fim, em 2010, a correlação é de 0,795 e o coeficiente de determinação de
0,633. Em suma, isso quer dizer que os indicadores variam no mesmo sentido. Com base nisso, temos
r = 0,895 r = 0,854 r = 0,795
p-valor<0,001 p-valor<0,001 p-valor<0,001
r2 = 0,808 r2 = 0,761 r2 = 0,633
Fonte: elaborado pelos autores (2015) com base nas informações disponíveis no Atlas de Desenvolvimento Humano.
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evidências de que o IQM é um indicador válido para mensurar a qualidade das condições
habitacionais nos municípios brasileiros.
4. CONCLUSÕES
Constatamos nesse trabalho que, como previsto na literatura, as regiões mais pobres têm menos
acesso a serviços básicos, e, por consequência, possuem uma menor qualidade de moradia e menores
IDH-M.
Os principais resultados indicam que no período entre 1991 e 2010, o IQM nacional passou de
0,563 em 1991 para 0,747 em 2010, o que representa um aumento de 32,68%. No entanto, esse
acréscimo médio não significa que as todas regiões brasileiras conseguiram alcançar níveis
semelhantes de qualidade de moradia.
Embora as regiões Norte (53,65%) e Nordeste (56,56%) tenham apresentado os maiores
crescimentos da qualidade da moradia, elas ainda possuem níveis de IQM mais baixos do que as
demais regiões do Brasil e do que a média nacional. Ou seja, mesmo crescendo mais e mais rápido,
as regiões Norte e Nordeste ainda precisam de mais investimentos para serem equiparadas as outras
regiões.
Observou-se também que o IQM está positivamente correlacionado com o IDH-M, ou seja, em
geral, quanto maior o desenvolvimento humano do município, melhor será sua qualidade de moradia.
Por fim, mesmo com todos os avanços conquistados ao longo desses vinte anos, ainda é possível
melhorar muito a qualidade de moradia nos municípios brasileiros. As diferenças regionais
permanecem muito marcantes, e mesmo nas regiões onde o IQM é mais elevado, ainda há um longo
caminho para tornar a qualidade de moradia adequada e universal.
REFERÊNCIAS
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