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KENEDY, E; MARTELOTTA, M. E. T. . A visão funcionalista da linguagem no século XX. In: Maria Angélica Furtado da Cunha; Mariangela Rios de Oliveira; Mário Eduardo Toscano Martelotta. (Org.). Lingüística Funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A / Faperj, 2003, v. , p. 17-28. _______________________________________________________________________________________________ 17 1. A VISÃO FUNCIONALISTA DA LINGUAGEM NO SÉCULO XX Mário Eduardo Martelotta Eduardo Kenedy A lingüística do século XIX, em suas pesquisas de ordem eminentemente histórico-comparativa, deixou um importante legado teórico, sobretudo através dos neogramáticos e de lingüistas como Humboldt, Noreen e Svedelius (Malmberg, 1974). Entretanto, o surgimento da lingüística moderna é normalmente identificado com o aparecimento do Cours de linguistique générale de Saussure, em 1916. A partir daí, conforme propõem Dirven e Fried (1987), três noções básicas passaram a caracterizar a evolução da lingüística no século XX: sistema, estrutura e função. A noção de sistema deve-se a Saussure. De acordo com Benveniste (1976), a novidade da doutrina saussureana reside exatamente na visão de língua como sistema, que prevê uma prioridade do todo em relação aos elementos que o compõem. O termo sistema mais tarde foi substituído pelo termo estrutura: uma vez aceita a visão de que a língua constitui um sistema – um conjunto cujos elementos se agrupam num todo organizado – cumpre analisar-lhe a estrutura. Foi a tendência que se desenvolveu na lingüística a partir da publicação do Cours, tendo sua primeira expressão nos trabalhos do Círculo Lingüístico de Praga, a partir de 1928. O chamado estruturalismo foi, então, adquirindo novos adeptos, como os que fundaram a chamada Escola de Copenhague. Hjelmslev (apud Benveniste, 1976:98) define novamente o domínio da lingüística estrutural: Compreende-se por lingüística estrutural um conjunto de pesquisas que se apóiam numa hipótese segundo a qual é cientificamente legítimo descrever a linguagem como sendo essencialmente uma entidade autônoma de dependências internas ou, numa palavra, uma estrutura. A análise lingüística estava, então, restrita à rede de dependências internas em que se estruturam os elementos da língua. No que se refere ao Círculo Lingüístico de Praga, Fontaine (1978) aponta outras influências, além das provenientes de Saussure, que levaram os lingüistas a se dedicarem ao estudo da lógica interna do sistema da língua. Essas outras influências

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KENEDY, E; MARTELOTTA, M. E. T. . A visão funcionalista da linguagem no século XX. In: Maria Angélica Furtado da Cunha; Mariangela Rios de Oliveira; Mário Eduardo Toscano Martelotta. (Org.). Lingüística Funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A / Faperj, 2003, v. , p. 17-28. _______________________________________________________________________________________________

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1. A VISÃO FUNCIONALISTA DA LINGUAGEM NO SÉCULO XX

Mário Eduardo Martelotta

Eduardo Kenedy

A lingüística do século XIX, em suas pesquisas de ordem eminentemente

histórico-comparativa, deixou um importante legado teórico, sobretudo através dos

neogramáticos e de lingüistas como Humboldt, Noreen e Svedelius (Malmberg, 1974).

Entretanto, o surgimento da lingüística moderna é normalmente identificado com o

aparecimento do Cours de linguistique générale de Saussure, em 1916. A partir daí,

conforme propõem Dirven e Fried (1987), três noções básicas passaram a caracterizar a

evolução da lingüística no século XX: sistema, estrutura e função.

A noção de sistema deve-se a Saussure. De acordo com Benveniste (1976), a

novidade da doutrina saussureana reside exatamente na visão de língua como sistema,

que prevê uma prioridade do todo em relação aos elementos que o compõem. O termo

sistema mais tarde foi substituído pelo termo estrutura: uma vez aceita a visão de que a

língua constitui um sistema – um conjunto cujos elementos se agrupam num todo

organizado – cumpre analisar-lhe a estrutura. Foi a tendência que se desenvolveu na

lingüística a partir da publicação do Cours, tendo sua primeira expressão nos trabalhos

do Círculo Lingüístico de Praga, a partir de 1928. O chamado estruturalismo foi, então,

adquirindo novos adeptos, como os que fundaram a chamada Escola de Copenhague.

Hjelmslev (apud Benveniste, 1976:98) define novamente o domínio da lingüística

estrutural:

Compreende-se por lingüística estrutural um conjunto de pesquisas que se apóiam numa

hipótese segundo a qual é cientificamente legítimo descrever a linguagem como sendo essencialmente

uma entidade autônoma de dependências internas ou, numa palavra, uma estrutura.

A análise lingüística estava, então, restrita à rede de dependências internas em

que se estruturam os elementos da língua.

No que se refere ao Círculo Lingüístico de Praga, Fontaine (1978) aponta

outras influências, além das provenientes de Saussure, que levaram os lingüistas a se

dedicarem ao estudo da lógica interna do sistema da língua. Essas outras influências

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provinham do filósofo Husserl, e, principalmente da teoria da Gestalt1, que se deu

através de seu freqüente contato com o psicólogo alemão Karl Bühler.

A estreita relação com Bühler parece ter dado à lingüística de Praga uma feição

diferente das outras escolas estruturalistas européias. Nas palavras de Fontaine

(1978:40), ele foi o "avalista filosófico do aspecto funcionalista do estruturalismo

praguense", já que via a função como um elemento essencial à linguagem. Essa

concepção não pode ser atribuída a Saussure, que deixou de fora dos estudos

lingüísticos os aspectos relacionados à função, a partir do momento em que propôs a

distinção entre langue e parole, fazendo da primeira o objeto de estudo da lingüística.

Essa estratégia teórica retirou do âmbito dos estudos lingüísticos o interesse por

possíveis influências sofridas pela estrutura gramatical das línguas, provenientes de

aspectos pragmático-discursivos.

A noção de função é um pouco mais problemática, na medida em que vários

autores a utilizam para caracterizar suas análises, que nem sempre apresentam

características semelhantes. Segundo Nichols (1984), função é um termo polissêmico e

não uma coleção de homônimos. Todos os sentidos do termo de certa forma se

relacionam, por um lado, com a dependência de um elemento estrutural com elementos

de outra ordem ou domínio (estrutural ou não estrutural) e, por outro lado, com o papel

desempenhado por um elemento estrutural no processo comunicativo, ou seja, a função

comunicativa do elemento.

Os teóricos de Praga utilizaram a noção de função nesses dois sentidos. De

acordo com Nichols (1984), a escola de Praga praticou uma variante do que ela chama

função/relação, na medida em que focalizou a relação do elemento com o sistema

lingüístico como um todo. A noção de função como relação, tal como proposta por

Nichols (1984), prevê a relação de um elemento estrutural com ou dentro de uma

unidade estrutural maior. O status de função/relação se opõe ao status categorial, não

marcando esse último referência a uma ordem maior, mas simplesmente caracterizando

a entidade como um portador de propriedades.

Mas não é essa a marca do funcionalismo dos lingüistas de Praga. O que

caracterizou suas análises foi a adoção de uma noção teleológica de função. Para eles, a

língua deve ser entendida como um sistema funcional, no sentido de que é utilizada para

um determinado fim. Nas palavras de Fontaine (1978: 22), referindo-se ao Círculo

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Lingüístico de Praga, "... a intenção do locutor apresenta-se como a explicação ‘mais

natural’ em análise lingüística: essa intenção do locutor é que fundamenta o discurso."

Dessas informações, pode-se concluir que o chamado estruturalismo não foi

um movimento unificado, apresentando, ao contrário, aspectos distintos de acordo com

diferentes autores. Dirven e Fried (1987) propõem que as várias abordagens da

lingüística estrutural, herdeiras da concepção saussureana da linguagem, variavam

também de acordo com a ênfase que se dava para a significância da função em seus

modelos teóricos, podendo dividir-se em dois grandes pólos:

1- Pólo formalista - no qual a análise dá ênfase à forma lingüística, ficando sua função

num plano secundário.

2- Pólo funcionalista - no qual a função que a forma lingüística desempenha no ato

comunicativo tem papel predominante.

Essa visão bipartida das tendências da lingüística atual, embora passe por cima

de algumas divergências, é compartilhada por vários outros autores como Schiffrin

(1994), Kato (1998).

1.1. O pólo formalista

O chamado pólo formalista caracteriza-se, em termos gerais, pela tendência de

analisar a língua como um objeto autônomo, cuja estrutura independe de seu uso em

situações comunicativas reais. Segundo Dirven e Fried (1987), a tendência para o pólo

formalista pode ser vista entre os lingüistas da chama Escola de Copenhague. A

Dinamarca tem forte tradição nos estudos da linguagem, com lingüistas como Rask,

Madvig, Noreen e Jespersen, mas foi com Hjelmslev, Uldall e, anteriormente, Br∅ndal

que a lingüística se tornou mais formal e abstrata. Nota-se nos trabalhos destes

lingüistas "um marcante interesse filosófico e, em particular, lógico" (Lepschy,

1971:61).

Hjelmslev propõe que a língua não deve ser vista como o reflexo de um

conjunto de fatos não lingüísticos, mas como uma "unidade encerrada em si mesma,

como uma estrutura sui generis" (Hjelmslev, 1975:3). Vista dessa forma a língua

apresenta um caráter abstrato e estático, já que é dissociada do ato comunicativo.

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O pólo formalista teve sua mais forte expressão no descritivismo americano

(Bloomfield, Trager, Bloch, Harris, Fries), mas foi aplicado mais rigorosamente nos

sucessivos modelos de gerativismo. Embora os estudos lingüísticos tenham sido

dominados pelo gerativismo, que vem mantendo uma forte tradição até os dias de hoje,

o pólo funcionalista permaneceu vigoroso. Abordagens gerativas alternativas, como a

semântica gerativa, ou a gramática dos casos podem ser vistas como um esforço, dentro

do paradigma formalista, de questionar algumas das propostas desse paradigma, através

de um ângulo semântico-funcionalista (Dirven e Fried, 1987).

1.2. O pólo funcionalista

O chamado pólo funcionalista caracteriza-se pela concepção da língua como

um instrumento de comunicação, que, como tal, não pode ser analisada como um objeto

autônomo, mas como uma estrutura maleável, sujeita a pressões oriundas das diferentes

situações comunicativas, que ajudam a determinar sua estrutura gramatical.

O pólo funcionalista também pode ser visto em algumas escolas lingüísticas

pós-saussureanas da Europa no século XX. Saussure influenciou mais de perto a

chamada Escola de Genebra, cujos principais representantes são Charles Bally, Albert

Sechehaye e Henri Frei. Enquanto Sechehaye limitou-se basicamente a discutir as idéias

de Saussure, Bally, nas palavras de Leroy (1982:94),

atacando o difícil problema da relação entre o pensamento e sua expressão lingüística, renovou

a estilística, definindo-a como o estudo dos elementos afetivos da linguagem e dedicando sua

atenção aos desvios que o uso individual (a fala) é levado a impor ao sistema (a língua).

Essa proposta baseia-se no fato de que não há separação intransponível entre

esses dois aspectos da linguagem, posição teórica por definição funcionalista. Por sua

vez, Frei notabilizou-se por sua análise referente aos desvios da gramática normativa,

que, segundo sua proposta, não são fortuitos, mas constituem tendências conseqüentes

da necessidade de comunicação, constituindo, portanto, uma rica fonte de estudos

lingüísticos. Frei se fez o promotor da lingüística de base funcional, que associa os fatos

lingüísticos a determinadas funções a eles relacionadas.

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Essa influência chegou até Martinet, que, de acordo com Mounin (1973),

manteve freqüente contato com os principais lingüistas de Praga, sobretudo com

Trubetzkoy, por quem foi bastante influenciado. Para Lepschy (1971:101), Martinet e

Jakobson são "os dois herdeiros mais importantes, no pensamento lingüístico

internacional, da Escola de Praga."

A herança saussureana deixa também suas marcas nas escolas de Londres, em

que, através de Halliday, se desenvolveu uma tendência de estudar as línguas de um

ponto de vista funcional. Mathiessen (apud Neves, 1997:58), afirma que a gramática

funcional de Halliday está baseada no "funcionalismo etnográfico e o contextualismo

desenvolvido por Malinowski nos anos 202, além da lingüística firthiana da tradição

etnográfica de Boas-Sapir-Whorf e do funcionalismo da Escola de Praga."

A tendência de analisar a língua de um ponto de vista funcional está também

presente no chamado grupo holandês. Reichling adotou a postura funcionalista,

influenciando a gramática de Dik3, que trabalha com uma concepção teleológica de

linguagem. Para Dik, o principal interesse de uma lingüística funcionalista está nos

processos relacionados ao êxito dos falantes ao se comunicarem por meio de expressões

lingüísticas.

1.2.1. O funcionalismo nos Estados Unidos

Como visto anteriormente, a lingüística norte-americana foi dominada por uma

tendência formalista, que se enraizou com Leonard Bloomfield e se mantém até hoje

com a lingüística gerativa. Entretanto, foi se desenvolvendo, paralelamente, uma

tendência para o chamado pólo funcionalista. Franz Boas não influenciou apenas o

descritivismo, principal tendência lingüística dos EUA, mas também a tradição

etnolingüística de Sapir e Whorf, assim como os trabalhos de Bolinger, Kuno, Del

Himes, Labov e muitos outros etno e sociolingüistas. Certamente, os últimos passos

dados por antigos gerativistas, como Langacker e Lakoff, que aderiram à gramática

cognitiva4, devem ser vistos como uma franca caminhada em direção ao pólo funcional

(Dirven e Fried, 1987).

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A lingüística cognitiva caracteriza-se por adotar alguns pressupostos contrários

à tradição formalista. Entre esses pressupostos está, por exemplo, a idéia de que a

significação não se baseia numa relação entre símbolos e dados de um mundo real de

vida independente, mas no fato de que as palavras e as frases assumem seus significados

no contexto, o que implica a idéia de que os conceitos são conseqüentes de padrões

criados culturalmente. Os cognitivistas propõem também que o pensamento é

conseqüente da constituição corporal humana, apresentando características derivadas da

estrutura e do movimento do corpo e da experiência física e social que os humanos

vivenciam através dele. Além disso, o pensamento é imaginativo, o que significa dizer

que, para compreender conceitos que não são diretamente associados à experiência

física, emprega metáforas e metonímias que levam a mente humana para além do que se

pode ver ou sentir. Sendo assim, a sintaxe não é autônoma, mas subordinada a

mecanismos semânticos que nossa mente processa durante a produção lingüística em

determinados contextos de uso.

Por outro lado, determinadas áreas de pesquisa, como a mudança lingüística e

crioulística5, pareciam indicar as limitações teóricas da gramática gerativa. Portanto,

lingüistas de formação gerativista foram buscando alternativas teóricas que abordassem

melhor os fenômenos por eles estudados. É o caso de Elizabeth Closs Traugott, que, em

função do seu interesse por fenômenos relacionados à mudança lingüística, passou a

adotar a teoria da gramaticalização, focalizando os aspectos semântico-pragmáticos da

mudança. Segundo essa teoria, as formas lingüísticas têm seus usos estendidos por

processos unidirecionais de mudança, motivados pelo uso e por fatores de ordem

cognitiva.

O termo funcionalismo ganhou força nos Estados Unidos a partir da década de

70, passando a servir de rótulo para o trabalho de lingüistas como Paul Hopper, Sandra

Thompson e Talmy Givón, que passaram a advogar uma lingüística baseada no uso,

cuja tendência principal é observar a língua do ponto de vista do contexto lingüístico e

da situação extralingüística. De acordo com essa concepção, a sintaxe é uma estrutura

em constante mutação em conseqüência das vicissitudes do discurso. Ou seja, a sintaxe

tem a forma que tem em razão das estratégias de organização da informação

empregadas pelos falantes no momento da interação discursiva. Desta maneira, para

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compreender o fenômeno sintático, seria preciso estudar a língua em uso, em seus

contextos discursivos específicos, pois é neste espaço que a gramática é constituída.

O texto que é considerado o pioneiro no desenvolvimento das idéias da escola

funcionalista norte-americana foi The origins of syntax in discourse: a case study of Tok

Pisin relatives, publicado por Gillian Sankoff e Penelope Brown em 1976. Neste

trabalho, as autoras fornecem evidências das motivações discursivas geradoras das

estruturas sintáticas de relativização do Tok Pisin, língua de origem pidgin de Papua-

Nova Guiné, ilha ao Norte da Austrália.

Em 1979, Talmy Givón, influenciado pelas descobertas de Sankoff, publica

From discourse to syntax: grammar as a processing strategy, texto programático da

lingüística funcional, explicitamente antigerativista, que afirma que a sintaxe existe para

desempenhar uma certa função, e é esta função que determina a sua maneira de ser.

1.2.2. Iconicidade, fala e pancronia

Uma maneira interessante de se compreender o espírito da lingüística funcional

norte-americana é observar a refutação, proposta por Givón (1995), em relação ao que

ele caracteriza como os três dogmas centrais da lingüística estrutural: a arbitrariedade

do signo lingüístico, a idealização relacionada à distinção entre langue e parole e a

rígida divisão entre diacronia e sincronia.

A doutrina da arbitrariedade separa, no signo lingüístico, o significante do seu

correlato mental, o significado, deixando apenas os dois termos observáveis da equação:

o signo e seu referente, o que Givón caracteriza como uma triste caricatura da visão

positivista e behaviorista do significado como referência externa. Essa tendência parece

se dever ao fato de os estruturalistas (sobretudo os norte-americanos) tenderem a não

trabalhar com entidades mentais vagas e pouco acessíveis à análise empírica, chegando

mesmo a negar a existência de pensamento, ou qualquer estrutura mental organizada,

preexistente à linguagem.

Por outro lado, a própria noção de arbitrariedade do signo, pelo menos em sua

formulação mais radical, é questionável, de acordo com Bolinger (1975), para quem as

línguas são em parte arbitrárias, em parte icônicas – ou não-arbitrárias. Saussurre

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reconheceu que havia exceções ao seu princípio da arbitrariedade do signo lingüístico,

mas, segundo Ullmann (1977: 169), "desprezou-as por serem pouco importantes",

assumindo uma postura diferente, nesse aspecto, de lingüistas como Schuchardt e

Jespersen.

De fato, se a palavra for analisada isoladamente, ou seja, à maneira formalista

de observar a língua fora de seu contexto de uso, o que inevitavelmente emerge diante

da visão do analista é uma relação não necessária – arbitrária ou não natural – entre uma

estrutura sonora e um significado (ou um objeto referente). Entretanto, quando se muda

o foco de análise para uma abordagem voltada para o uso da língua, observa-se a

existência de mecanismos recorrentes, que refletem um processo mais funcional de se

criar rótulos novos para novos referentes.

Ocorre que, para criar novos rótulos, o falante não inventa arbitrariamente

seqüências novas de sons, mas tende fortemente a utilizar material já existente na

língua, estendendo o sentido de palavras, no que Ullmannn (1977) chama motivação

semântica (pé da mesa, coração da cidade), ou criando palavras novas, através dos

processos de derivação (apagador, leiteiro) ou composição (aguardente, pára-quedas),

utilizando um mecanismo que Ullmann (1977) chama de motivação morfológica. A

esses dois junta-se um terceiro mecanismo, chamado motivação fonética, caracterizado

pelas onomatopéias (cocorocó, tilintar), em que o som da palavra claramente imita a

coisa designada.

Esses três mecanismos têm em comum o fato de serem motivados no sentido

básico do termo: a palavra assume uma forma específica por um motivo determinado.

Assim a palavra pé, por exemplo, apresenta uma relação semântica com as partes da

mesa, destinadas à sua sustentação, ou o termo apagador se motiva no fato de tratar-se

de um instrumento utilizado para apagar o quadro, normalmente em uma sala de aula.

Esses mecanismos são mais comuns porque funcionam bem do ponto de vista

comunicativo e cognitivo, no sentido de que um processo baseado em decisões

puramente arbitrárias seria mais custoso para o falante e, sobretudo, para o ouvinte. Em

muitos casos, essa motivação se perde, quando a mudança semântica faz a palavra

afastar-se de suas origens.

No campo da sintaxe, os funcionalistas consideram mais aceitável a idéia da

não-arbitrariedade. Para citar um exemplo, quando narramos seqüências de ações como

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cheguei em casa, tomei um banho e fui dormir, não ordenamos as cláusulas

arbitrariamente, mas de acordo com a ordem em que elas ocorreram na realidade. Essas

tendências, que se manifestam paralelamente à arbitrariedade, refletindo algum tipo de

motivação, os funcionalistas chamam de iconicidade. Também são explicados pelo

princípio da iconicidade aspectos relacionados à extensão da sentença, assim como à

ordenação e à proximidade dos elementos lingüísticos que a compõem, dependendo de

fatores como complexidade semântica, grau de informatividade dos referentes no

contexto e proximidade semântica entre conceitos.

Outro dogma estruturalista se refere à idealização associada à distinção entre

langue e parole. Com essa dicotomia, Saussure estabeleceu uma diferença entre o que é

geral e o que é individual e, conseqüentemente, entre o que é essencial e o que é

acidental, ou entre o que é regular e o que é fortuito. Para o trabalho do lingüista,

importavam somente os fatos relativos à langue, sendo dispensada atenção diminuta à

fala individual. Tal perspectiva muito pouco difere da lingüística gerativista, no que se

refere à distinção entre competence e performance. Ambas as concepções priorizam a

língua em detrimento da fala, considerando esta não mais que mera manifestação das

possibilidades de um sistema independente.

O posicionamento funcionalista em relação a esse aspecto consiste em dar um

novo relevo ao discurso individual, passando a compreendê-lo como nível gerador do

sistema lingüístico. Este, por sua vez, é definido à maneira de um corpo moldável e em

constante transformação. Nesse sentido, não há como separar a langue da parole: o

acidental ou casual que caracteriza o discurso passa a ser a gênese do sistema, que, por

sua vez, alimenta a discurso. A proposta de Lichtenberk (1991), segundo a qual existe

uma relação simbiótica entre discurso e gramática, é um ótimo exemplo dessa

concepção de linguagem.

A dicotomia sincronia vs. diacronia, compreendida como dois eixos

separados e não-intercambiáveis, é o terceiro dogma estruturalista a ser revisto pelo

funcionalismo. Para Saussure, os princípios e as considerações da análise sincrônica e

da análise diacrônica não se confundem e devem restringir-se a seu domínio específico

de aplicação. Ou seja, o trabalho sincrônico lida com fenômenos do sistema que não têm

relação necessária, sendo, por vezes, incompatível com o trabalho diacrônico.

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Entretanto, pesquisas em gramaticalização têm demonstrado que, ao lado de

fenômenos que mudam com o tempo, existem determinados aspectos que parecem se

manter ao longo da trajetória das línguas. Em outras palavras, existe um conjunto de

processos de mudança que atuam com relativa regularidade sobre os elementos

lingüísticos, estendendo-lhes o sentido. De uma perspectiva histórica, esses processos

podem dar a impressão de uma seqüência de mudanças ocorridas no tempo e, de uma

perspectiva sincrônica, o que se observa é um conjunto de polissemias coexistindo.

A tendência que se percebe do funcionalismo norte-americano a partir dos

trabalhos sobre gramaticalização (Heine et alii, 1991, Traugott e Heine, 1991, Hopper e

Traugott, 1993) é focalizar os mecanismos que geram a mudança como sendo

alicerçados em fatores comunicativos e cognitivos. Nesse sentido, pode-se dizer que o

funcionalismo tende a adotar uma concepção pancrônica de mudança (Saussure,

1916/1973), observando não as relações sincrônicas entre seus elementos ou as

mudanças que se observam nesses elementos e nas suas relações ao longo do tempo,

mas as forças cognitivas e comunicativas que atuam no indivíduo no momento concreto

da comunicação e que se manifestam de modo universal, já que refletem os poderes e as

limitações da mente humana para armazenar e transmitir informações.

Para resumir a visão funcionalista da linguagem, é interessante o grupo de

premissas com que Givón (1995) caracteriza essa concepção:

• a linguagem é uma atividade sócio-cultural;

• a estrutura serve a funções cognitivas e comunicativas;

• a estrutura é não-arbitrária, motivada, icônica;

• mudança e variação estão sempre presentes;

• o sentido é contextualmente dependente e não-atômico;

• as categorias não são discretas;

• a estrutura é maleável e não rígida;

• as gramáticas são emergentes;

• as regras de gramática permitem algumas exceções.

1 Ver Koffka (1935) 2 Ver Macedo (1998)

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3 Ver Neves (1997) 4 Salomão (1999) admite que a ênfase na acessibilidade da linguagem a seu uso aproximaria o enfoque cognitivista à tradição funcionalista, mas acrescenta que as análises funcionalistas da costa oeste americana e dos grupos centralizados por Halliday e Dik na Europa, ainda influenciados pela tradição estruturalista apresentam as seguintes características: (i) mantém o foco no significante; (ii) não desenvolvem a importância do contexto, reduzindo-o a um conjunto de variáveis inorgânicas; (iii) propõem, de um modo geral, uma abordagem estática do significado. 5 Área de investigação de crioulos, línguas que se desenvolveram historicamente de um pidgin. Em poucas palavras, o pidgin é uma forma relativamente simplificada de falar que se desenvolveu através do contato de grupos lingüísticos heterogêneos. Ex: Tok Pisin (língua de Papua-Nova Guiné, Ilha ao Norte da Austrália).