descontinuidade e transconflitualidade: uma leitura do racionais mc’s

Upload: danubia-ivanoff

Post on 09-Jul-2015

246 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

O presente texto discute a transconflitualidade e as descontinuidades presentes nas letras das músicas do grupo de rap Racionais Mc’s, buscando desvelar os conflitos sociais, assim como esmiuçar seus atores e atrizes sociais a partir da análise das músicas tendo como orientação metodológica alguns temas que nos evidenciaria tanto os conflitos quanto os atores sociais.

TRANSCRIPT

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULOAlessandra Kelly Tavares Danubia Ivanoff Giovani Leonardo Schiavini

Descontinuidade e Transconflitualidade: uma leitura do Racionais Mcs

Texto apresentado para concluso da disciplina Sociologia VII ministrada pela Prof Leila Blass

So Paulo 2008

ApresentaoDeus fez o mar, as guas, as crianas, o amor. O homem criou a favela, o crack, a trairagem, as armar, as bebidas, as puta. Eu? Eu tenho uma bblia via, uma pistola automtica e um sentimento de revolta. Eu t tentando sobreviver no inferno Racionais Mcs

Partimos do pressuposto que a contemporaneidade origina nos meios sociais uma transformao na forma de lidar com o tempo e o espao. Esta pesquisa pretende por meio deste investigao promover uma reflexo sobre a transconflitualidade dos temas abordados pelo Racionais Mcs em suas msicas. Essa transformao carrega em si novos conflitos ainda pouco evidenciados pela pesquisa acadmica. Alm desse aspecto, consideraremos os atores sociais evidenciados pelas letras do citado grupo de rap para a compreenso da dinmica das relaes sociais no interior das periferias de So Paulo. Com esse fim usufruiremos da bibliografia do curso que realiza um panorama das principais questes da sociologia na atualidade, entre as quais est a questo do fazer sociolgico, as perspectivas metodolgicas e interpretativas e, principalmente, o surgimentos de novos elementos na dinmica da sociedade que por sua vez geram novos conflitos. Essa investigao ainda muito incipiente pretende materializar a complexidade do cenrio social e desses novos atores sociais. Deste modo, no seio dessa discusso est o universo analtico das cincias sociais e a possibilidade de novas interpretaes. A seleo do tema para investigao cientfica foi bastante conflituosa. Desde o incio buscvamos um tema que nos aproximasse do cotidiano dos sujeitos comuns, de seu universo simblico e de suas referncias, relacionado com a sociedade de massas e que, acima de tudo, lhe fizesse sentido, que nos fizesse sentido. Queramos um tema que nos fosse prximo e atual, queramos um tema que evidenciasse a voz desses sujeitos comuns, ou seja, queramos 2

um tema que tivesse vida em movimento e em transformao dialogando com seu tempo repleto de referncias, descontnuo e ps-linear. Aps vrias tentativas acompanhadas de perto pela professora Leila Blass, selecionamos as msicas dos Racionais Mcs como um campo de transconflitualidade presente no cenrio cultural que apresenta um contexto social repletos de conflitos que se interconectam atingindo uma conotao simblica e poltica. Deste modo, realizamos esta pesquisa. Introduo O presente texto pretende apresentar a transconflitualidade e as descontinuidades presentes nas letras das msicas do grupo de rap Racionais Mcs. A questo central do trabalho desvelar os conflitos sociais, assim como esmiuar seus atores e atrizes sociais a partir da anlise das msicas tendo como orientao metodolgica alguns temas que nos evidenciaria tanto os conflitos quanto os atores sociais. O principal motivo ou motivao deste trabalho consiste em trazer fenmenos da sociedade contempornea para o interior da discusso nas Cincias Sociais, tendo como norte a corrente da sociologia do cotidiano, assim como ponto de partida a noo do conceito de reflexividade de Giddens. Conceito este que consiste em refletir em torno dos conflitos, dilemas e paradoxos da sociedade contempornea e da prpria Cincias Sociais enquanto campo de inquietaes tericas-prticas. Assim, ver que os atores e atrizes sociais envolvidos no conflito so, num primeiro momento, os prprios integrantes do grupo Racionais MCs juntamente com os fomentadores do movimento hip-hop e, num segundo momento so os moradores da periferia. A delimitao dos atores e atrizes sociais a partir de caractersticas espaciais traz uma imensa complexidade aos conflitos, pois so agentes com objetivos, histrias e identidades distintas que se identificam por vivenciarem conflitos que perpassam o espao social da periferia. Deste modo, os atores e atrizes sociais sero demonstrados conforme a exposio dos conflitos tematizados e analisados atravs das letras, por exemplo, no que tange ao tema de discriminao social e racial os atores sociais sero o negro pobre em conflito com o branco rico ou nas palavras do grupo o playboy, e assim por diante.

3

A principal fonte de informaes que possibilita a anlise dos conflitos tematizados, consiste no levantamento discogrfico do Grupo de Rap Racionais MCs. Por fim a anlise das principais msicas selecionadas, como deve parecer evidente, esto de acordo com as tematizaes explicitadas acima. Por fim, o repertrio terico abordado pelos conflitos figura a importante contribuio de Jos Machado Pais e sua proposta de uma sociologia da ps-linearidade. Nossa abordagem em cada tematizao visa uma leitura dos fragmentos soltos nos dado pelo repertrio terico do curso de sociologia VII, pelas letras dos Racionais e pela prpria realidade, desta forma, cada momento foi tomado em sua descontinuidade, no os impondo um sistema totalitrio. Histrico: Do Hip-Hop Norte americano ao Racionais Mcs A origem do movimento hip-hop remonta os anos 1960. Foi nos guetos norteamericanos da cidade de Nova Iorque que os grupos sociais mais desfavorecidos e subjugados como os negros e os latinos passam a ocupar as ruas como forma de reivindicao de espao tanto fsico quanto simblico, assim como a explicitao dos conflitos sociais promovidos pela desigualdade social prpria das grandes metrpoles que reproduzem o modelo capitalista urbano.No Brasil, o Hip Hop chegou nos incios da dcada de 80, atravs do break (dana) ,paradoxalmente trazido por agentes sociais pertencentes s camadas sociais mais ricas da sociedade. Alguns brasileiros que viajavam para o exterior ao retornarem para o Brasil introduziram o break nas danceterias dos chamados bairros nobres de So Paulo. Essa dana logo tornou-se num forte modismo entre os jovens de classe mdia. (CONTIER, 2005).

Embora o hip-hop e o rap tenham emergido sob uma perspectiva da mundializao da cultura o princpio que move o movimento hip-hop consiste na luta contra todas as formas de discriminao e opresso cometidas sobre as classes sociais das periferias metropolitanas, bem como a utilizao de uma linguagem denunciativa dos conflitos sociais que permeiam toda sociedade. Na passagem acima exposta do historiador Arnaldo Contier vemos uma contradio e at certa descontinuidade, ou seja, embora um dos aspectos do hip-hop/rap tenha sido introduzido por atores sociais das classes mais ricas, quem vai se apropriar enquanto forma de

4

transformao social sero as classes baixas. O movimento surge no conflito, ou seja, num contexto social de pobreza, violncia, racismo, excluso social, trfico de drogas, carncia de infra-estrutura e educao. sim um movimento que poderamos chamar contra-hegemnico. Segundo Boaventura de Sousa Santos o localismo globalizado consiste no processo pelo qual determinado fenmeno local globalizado com sucesso (p. 65). Embora sua anlise se refira em grande parte a desvendar o carter das globalizaes, me parece oportuno dizer aqui que para Boaventura a globalizao contra-hegemnica to importante quanto a localizao contra-hegemnica. O grupo de rap Racionais Mcs surge na dcada de 1980. Suas armas so suas manifestaes artsticas: o canto do rap, a instrumentao dos DJs, a dana do break dance e a pintura do grafite, manifestaes essas que demonstram uma forma de canalizar toda violncia nas partes mais pobres da sociedade. Segundo informaes da Wikipdia o Rap no Hiphop, a diferena que o hip-hop a cultura que rene os quatro elementos citados acima, j o rap consiste na fuso de apenas dois elementos: o DJ (disc jockey) e o Mc (mestre de cerimnias). Embora tenham interpretaes que os faam diferirem entre si, podemos afirmar que seus princpios ideolgicos so convergentes e complementares, embora tenhamos algumas descontinuidades que veremos no decorrer deste trabalho no que tange aos adeptos atores sociais constitutivo de todo esse movimento.O grupo de Racionais tem uma trajetria comum aos outros grupos de rap brasileiros que vem desde os anos 80. Segundo o historiador Arnaldo Darayai Contier autor de artigo O rap brasileiro e os Racionais Mcs foi juntamente com Nelson Triunfo, Thaide & DJ Hum, Mc/Dj Jack, Os Metralhas, Os Jabaquara Breakers, Os Gmeos, entre outros, que os Racionais iniciaram o movimento rapper no Brasil. Ainda segundo o historiador Contier, foi a partir da criao do Movimento Hip Hop Organizado (MH2OSP) que podemos visualizar o cunho embrionrio na formao dos Racionais, vejamos a passagem elucidativa do autor:Sob a gesto de uma prefeitura petista, que muito auxiliou a cultura hip hop como um dos eixos de sua poltica cultural, favoreceu a formao de muitos grupos.Em agosto de 1989, foi criado o MH2OSP(Movimento Hip Hop Organizado), por iniciativa de Milton Salles, scio do grupo Racionais Mc's (at 1995). O MH2OSP organizou esse movimento no Brasil, definindo as posses, as gangues e as suas respectivas atribuies. E, fundamentalmente, estruturou e organizou grupos de rap oriundos de faces que danavam o

5

break. Agora, o objetivo do movimento hip hop, tendo o rap como o ponto nodal incidia em transformar o MH2O num movimento de msica de protesto e de combate social..A partir dessa temtica bsica que motivou a formao do grupo Racionais MC 's. (CONTIER, 2005).

A nota de rodap do autor a respeito do conceito de posses afirma o seguinte: Posses: significa a reunio de dois ou mais grupos de rap, formando uma turma para desenvolver aes sociais na sua comunidade (CONTIER, 2005). Ou ainda segundo o autor Jos Carlos Gomes da Silva: As posses so associaes locais de grupos de jovens rappers que tm como objetivo reelaborar a realidade conflitiva das ruas nos termos da cultura e do lazer. (CONTIER,2005). Neste sentido j podemos detectar os atores envolvidos em se tratando de achar como e sob que circunstncias vieram a tornar efetivo o movimento do Rap. Vimos que foi sob uma gesto petista no eixo de sua poltica cultural e tambm sob influncia e iniciativa de Milton Salles que o grupo rapper Racionais triunfaram, juntamente com outros tantos. O ponto poltico ideolgico do Rap tem suas origens no Hip-Hop tradicional (quele que surge nos guetos norte-americanos ou se quiserem tambm aqueles que vieram pela mundializao da cultura, trazendo o break), mas tambm traado de maneira nica, no sentido de abarcar a realidade da periferia brasileira num contexto social peculiar e local, ou seja, em cada periferia das cidades. Assim como todo e qualquer movimento, quem os faz no que tange ao trabalho imaterial assim como o material, so os atores e atrizes inseridos a citao a seguir demonstrar um dos aspectos que constituem o ponto poltico ideolgico peculiar do movimento:Milton Salles admitia que a msica uma arma e est em todos os lugares. Se ela tem esse poder de mover esse sistema, ela tem tambm o poder de elucidar, Salles admitia que havia trazido essa proposta poltica para o rap. (CONTIER,2005)

No obstante, importante notar que o Rap tambm tem suas contradies e transconflitualidade: um relato de vida de um dos vrios moradores do Capo Redondo, que tivemos a oportunidade de conhecer, ajuda na compreenso da anlise ao que se refere ideologia e conduta que o movimento causa nas pessoas, o relato diz o seguinte:Se engana quem pensa que esse grupo a (referindo-se ao Racionais Mcs) querido e louvado aqui no Capo, chega de carro, todo cheio dos panos e

6

ainda quer conversar... com esse papo de comunidade... Ah! fal. (ajudante da oficina mecnica do Capo Redondo, idade 35, sexo masculino).

Este relato demonstra uma das contradies presentes na ideologia poltica do grupo em questo, medida que pregam serem contra a desigualdade social, contra o monoplio da cultura, contra a forma capitalista que no permite o acesso aos bens produzidos (geralmente pelas classes mais pobres), esto, eles mesmos, sendo legitimados pelo mesmo sistema que eles prprios criticam. medida que a cultura legitimada, o grupo de rap se destaca sobre todo o resto da periferia, a qual eles pretendem representar. A estratificao social se acentua, a lgica real da desigualdade social continua. Em contra ponto a fragilizao da conscincia de comunidade se reflete de maneira fragmentada e insuficiente, o que por um lado transfigura o conflito, no eliminando por completo, mas transformando-o. Foi a partir do ano de 1992 que o grupo passou a desenvolver trabalhos voltados para a comunidade perifrica, especificamente nas escolas, sob a forma de palestras sobre drogas, violncia policial, racismo etc., assim o grupo introduziu o elemento da msica como forma de transformao social, ou seja, como instrumento de resistncia e combate as desigualdades sociais entre outros conflitos. Embora o grupo se utilize de uma linguagem, por vezes agressiva, esto, na medida em que se apropriam das grias e linguagens tpicas da periferia, representando uma determinada realidade que at ento, ao contrrio de os moradores serem reconhecidos pela condio mesma de existncia eram recriminados por essa mesma sociedade que no os deram base educacional e de infra-estrutura. Um fato notvel de que no ano de 1994 no Vale do Anhangaba os Racionais foram presos sob a acusao de incitao violncia. Um velho ditado diz: No se resolve a violncia com mais violncia. Mas a questo que este fato denuncia um dos tantos conflitos presentes na periferia cujo tema consiste na violncia policial. Nesta perspectiva a contradio presente se d pelo fato de que medida que o grupo denuncia o conflito em questo, atravs de sua linguagem (mesmo que agressiva), so presos justamente sobre a acusao de incitar a violncia. nessa medida que o grupo de rap Racionais representam a realidade da periferia, pois refletem sobre os conflitos que permeiam tal realidade. A contradio diagnosticada, por vezes, arbitrariamente, se d sobre a forma da moralidade: no achamos certo combater a 7

violncia incitando mais violncia. Mas isso j est para o campo de juzos de valor, o que no cabe neste trabalho. Suas principais contradies verificam-se no interior da lgica capitalista de produo e consumo. Por mais que a vontade em combater o sistema esteja colocada de maneira evidente pela prpria conduta do grupo, as aes sejam elas por meio da msica ou pelo apoio comunidade em suas reivindicaes no eliminam os conflitos sociais por completo e, embora o grupo alcance um grande nmero de adeptos isto no leva a generalizaes consensuais no interior mesmo da comunidade perifrica, por isso dizemos um movimento com fragmentos. Mas por outro lado ao fomentarem o encontro da comunidade em torno de objetivos e reivindicaes comuns, promovem tambm uma rede de confiana prpria e peculiar ao contexto em que isso se desenrola. Essa rede de confiana, qual poderemos fazer meno ao conceito de confiana em Giddens, demonstra s Cincias Sociais um novo modo de sociabilidade e at de institucionalizao da cultura sobre a forma de comunidade local. medida que a comunidade estabelecida em torno de algo em comum, ou seja, em torno de reivindicaes comuns ao contexto social prprio periferia, cria-se uma rede de confiana que permeia uma nova ordem, desencadeando ou trazendo desdobramentos emergncia de novos conflitos. Por outro lado noo de transconflitualidade tambm percorre essa tica, no sentido de que o movimento do RAP perpassa, trespassa na tentativa de buscar algo em comum, de buscar reconhecimento, nas palavras de Boaventura: em torno da igualdade na diferena e da diferena na igualdade e at mesmo com uma configurao contra-hegemnica. Portanto, podemos concluir que a ideologia dos rappers: o rap politizado antes de tudo construda de acordo com os elementos e influncias que os circundam, de acordo com um contexto social e poltico prprio formando um universo simblico em partes abrangente, prprio da sociedade moderna e de massas, e simultaneamente, um universo simblico singular, visto os conflitos da periferia de So Paulo, e que tambm os atores e atrizes sociais peculiares so formados no interior dessa transconflitualidade. Compartilhando de instrumentos comuns faz com que o movimento seja um fenmeno de localismo globalizado. A sntese dessa particularidade pode ser observada na Msica Da Ponte pra C onde afirmam: Cada Favelado um universo em crise.

8

Religiosidade Para a reconstruo de um conflito com tantas interfaces e interdependncias preciso considerar elementos de natureza local e sua relao com influncias e foras de unidades maiores. No que toca a religiosidade como elemento constitutivo das letras dos Racionais Mcs no pode ser diferente, assim como a sociologia da religio apresentou por diversas vezes, nos meios populares se pratica, produz e reproduze uma religiosidade em outros termos, propriamente mais prximo e cotidiano. Exatamente no seio da religiosidade popular que possvel a produo de artigos culturais propostos como contestatrio que usufruam de vastos elementos do cristianismo sem representar ou propor uma propaganda ou apelo religioso. Nesses meios os elementos do cristianismo so transfigurados em metforas de identificao, precedente histrico, rebelio e transformao que evidenciam a compreenso do mundo desses atores. No obstante, nas letras dos Racionais Mcs a religio configura uma linguagem e simultaneamente uma postura tica diante da realidade, esta postura surge em recortes e de modo fludo distante da carter que possuem nas religies. Se a linguagem surge devido a partilha do mesmo universo simblico e da interao cotidiana com os smbolos religiosos por meio da vivncia popular a postura tica fluda esta relacionada com a descontinuidade prpria da modernidade que desvencilha todos os tipos de ordens tradicionais e proporciona uma alterao na percepo dos sentidos. Nesse sentido afirma Giddens: Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as transformaes envolvidas na modernidade so mais profundas que na maioria dos tipos de mudana caractersticos dos perodos precedentes. Sobre o plano extensional serviram para estabelecer formas de interconexo social que cobrem o globo; em termos intensionais elas vieram a alterar algumas das mais ntimas e pessoais caractersticas de nossa existncia cotidiana. (GIDDENS, p.14). Mesmo com a transformao da percepo da religio pelo indivduo fica evidente, no caso das letras dos Racionais, uma postura tica de adaptao. Deste modo, em alguns momentos pode-se visualizar a descrio de Richard Sennett de homo faber,ou seja, o homem criador, institudo da capacidade da mudana de si e do mundo e, conseqentemente, de uma forma de religiosidade que institu no homem no somente essa capacidade, mas esse dever.

9

Assim como j apresentado, os contedos so vasto, descontnuos e por vezes contraditrios em todos os temas, principalmente no que cabe a religiosidade. Em alguns momentos a postura assumida pelos membros e nas letras do grupo segue a caracterizao de Richard Sennett de homo faber. Quando assumida essa postura tica diante da realidade da periferia, o grupo coloca-se a disposio ou no dever de usufrurem de sua capacidade, a msica, para transformar a sociedade. Contudo, isso no exclui a postura religiosa mais tradicional, de inspirao catlica, de moldagem da vida pessoal tendo como base a vida de Cristo, tambm descrita por Richard Sennett em A Corroso do Carter. Essa segunda postura no se d por meio do campo religioso, ou seja, no simboliza uma virtude religiosa que visa a salvao espiritual, na maioria das vezes os personagens bblicos so apresentados como exemplos ou precedentes histricos da atualidade. Um outro aspecto a ser salientado consiste na materializao dos elemento religiosos no campo social e na transformao dos mesmos em alegorias que retratam por um lado o confronto entre o bem e o mal e, por outros, os conflitos sociais. Desta forma, estabelecida uma correlao entre consumo e capitalismo com a figura demonaca e criminosos, pobres e moradores da periferia com as figuras sagradas. Nesse sentido ilustrativo o lbum Sobrevivendo no Inferno, alis inferno, no ttulo do lbum, remete ao caos social das periferias, uma alegoria que caracteriza e concede um julgamento de valor a determinada realidade. A msica Captulo 4 Versculo 3 evidencia pelo ar proftico a primeira postura, de capacidade transformadora, mas indica em suas letras com mais relevncia a segunda postura, mais tradicional de afastamento e imitao da vida crist.Irmo o demnio fode tudo ao seu redor pelo rdio, jornal, revista e outdoor. Te oferece dinheiro, conversa com calma, contamina seu carter, rouba sua alma. Depois te joga na merda sozinho, transforma um preto tipo A num neguinho Minha palavra alivia sua dor, ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor.1

1

Captulo 4 Versculo 3. In: Sobrevivendo no Inferno.

10

Primeiramente, cabe ressaltar a identificao realizada de dois fenmenos sociais como a figura do demnio. Por um lado o demnio a sociedade capitalista que estica o consumo, por outro consiste na prpria mdia caracterizada como veculo de propagao da ideologia dominante. Um outro aspecto a idia que esse demnio (sociedade de consumo) usa e apropria-se do indivduo e o abandona, ou seja, no se responsabiliza. Na irresponsabilidade da sociedade sobre esses atores que consiste a crtica da msica, pois esse negro tipo A seduzido e esticado ao consumo, mas punido individualmente. Na msica o rap representa o outro lado, o mensageiro do Senhor que segundo a prpria letra alivia a dor desses irmos, mas o movimento no possui sentido nico ao ponto que as palavras aliviam a dor, as mesmas palavras iluminam a alma do agente transmissor, evidenciando uma postura religiosa mais proftica. A atitude religiosa tradicional de imitao da vida de Cristo, sofre profundas alteraes nos meios populares, mais propriamente nas periferias, nesses meios aproximar-se da vida de Cristo significa aproximar Cristo de sua prpria vida. Assim, Cristo pode representar um jovem da periferia, um criminoso ou um cantor de rap, h essencialmente nesse fenmeno uma representatividade do sofrimento e da salvao.Verme sai da reta, a lgrima de um homem vai cair. Esse o seu B.O para a eternidade. Quem diz que homem no chora, t bom, falou! no vai pra grupo no, irmo Ai! Jesus Chorou2

Neste trecho fica evidente a relao de proximidade entre a vida do ator retratado com a de Jesus Cristo. Para construir essa relao de semelhana utilizado o recurso da comparao entre fragilidade do homem tido como o mais forte, Cristo, diante do sofrimento e dos jovens que esto pensando em entrar no crime. Essa msica para referir-se ao crime usa a gria grupo que significa a formao de um coletivo organizado com a finalidade de cometer delitos. Na mesma msica num outro trecho afirmado:

2

Jesus Chorou. In: Nada como um dia aps o outro.

11

Cristo que morreu por milhes, mas s andou com doze e um fraquejou. Periferia: corpos vazios e sem ticas lotam os malotes rumo a cadeira eltrica. Eu sei, voc sabe o que frustrao, mquina de fazer vilo.3

A fraqueza do traidor de Cristo transportada para uma outra dimenso que consiste precisamente na contemporaneidade, o cenrio social de segregao e privao moldam ou auxiliam na produo desses corpos que so caracterizados como vazios e sem tica. A concepo dos Racionais parte dos elementos sociais como frustrao, ambio, consumo e status para estabelecer um sistema moral de idoneidade e lealdade. Um outro aspecto que o trecho salienta a encenao do sofrimento de Cristo na atualidade, pois todos que foram trados de algum modo reencena o sofrimento ancestral. A letra da msica Jesus Chorou consiste numa construo potica cinematogrfica. A msica inicia-se com um dilogo de dois amigos, no qual comunicado ao Mano Brown, integrante do grupo, afirmaes pejorativas que foram feitas sobre sua personalidade por um conhecido distante. Esse conhecido exatamente um dos representados culturalmente pelos Racionais, ou seja, um jovem da periferia da zona sul. O ocorrido entristece e revolta Mano Brown, pois este acredita que tais afirmaes consiste numa traio, j que toda sua busca consiste em representar tais atores sociais. Ice Blue, outro membro do grupo, diante da situao consola Mano Brown com a seguinte frase: Lave o rosto na gua sagrada da pia. Nada como um dia aps outro dia.Nesse trecho se remonta a idia do batismo, ou seja, da limpeza dos pecados, contudo este batismo dado em outros termos. Existe uma referncia ao distanciamento das instituies, pois este batismo realizado sem lderes religiosos e na gua da pia. O consolo tambm dado pelo desconhecimento do futuro, alis em inmeras letras reafirmado o ditado popular, O Amanh pertence a Deus. O cenrio social que as letras das msicas dos Racionais pretendem explicitar consiste numa multiplicidade fragmentada. Assim, a realidade tida em fragmentos e os atores sociais dos conflitos se confundem, por um lado os membros do grupo so os atores sociais, por outro, so os jovens da periferias e seu capital simblico. No obstante, a religiosidade marca intensamente os conflitos sociais e constitui uma linguagem que3

Idem, ibidem.

12

representa por meio de metforas o cotidiano da periferia, um universo simblico extenso e inconstante, visto o crescimento das igrejas evanglicas na regio. A formao religiosa dos Racionais e de grande parte dos jovens da periferia deve-se em parte pela freqncia inconstante nos cultos e missas, pela convivncia com familiares e vizinhos e pelos ditados populares. Essa formao religiosa informal e descomprometida no possibilita que identifiquemos o grupo como catlicos, evanglicos ou mesmo agnsticos Os trechos que seguem so bastante ilustrativos sobre essa questo da formao religiosa, alm de evidenciar os elementos religiosos como uma linguagem.O senhor meu pastor... Perdoe o que o seu filho fez morreu de bruos no salmo 23. Sem padre, sem reprter Sem arma, sem socorro.4 Se s de pensar em matar j matou. Eu prefiro ouvir o pastor: -Filho meu, no inveje o homem violento e nem siga nenhum de seus caminhos... 5 Mais em So Paulo Deus uma nota de 100. 6

So inmeros os elementos resgatados da realidade para a construo de um discurso de identificao dos distintos atores sociais, no caso da religiosidade so resgatadas diferentes concepes de Deus e das instituies, isso possibilita uma identificao entre os distintos atores. Esses elementos no seguem uma linearidade nem coeso geral, so por vezes elementos alegricos, metforas, snteses, crenas ou escolhas faz sentido no interior de uma letra, mas no conjunto das msicas ou lbuns so incoerentes. Nesse ponto cabe retomar as contribuies de Anthony Giddens sobre a descontinuidade e de sua relao com a modernidade. Segundo Giddens, descontinuidade constitui um fenmeno da modernidade de formao de uma nova relao entre tempo e4

Dirio de Um Detento. In: Sobrevivendo no Inferno. Jesus Chorou. In: Nada como um dia aps o outro. Vida Loka II. In: Nada como um dia aps o outro.

5

6

13

espao, ou seja, ritmo de mudana das instituies, qualitativamente esse fenmeno se expressa em extenso e intensidade. Esse fenmeno prprio da modernidade representa uma alterao na forma de lidar com as concepes generalizantes e totalizadoras. Ento, os indcios de falta de coeso do discurso dos Racionais representam um dilogo com seu tempo e com suas referncias, j que o cenrio social do qual fazem parte, a sociedade moderna, propicia esse contato com inmeros cdigos e smbolos que agem na formao desses sujeitos sem representar uma identificao generalizante ou totalizadora. Assim, os pontos de identificao entre os diferentes atores e as letras das msicas se do pela tangente. Ou seja, se identificam com o discurso pelo conhecimento dessa forma de lidar com o mundo, pela crena nessa forma, pela a formao familiar e educacional ou mesmo pela identificao com sua prpria histria de vida. Sobre essa ltima forma de identificao a msica Vida Loka II presente no lbum Nada Como Um Dia Aps o Outro constitui um bom exemplo.O promotor s um homem Deus o juiz, Enquanto o Z povinho apedrejava a Cruz, um canalha fardado cuspiu em Jesus. Aos 45 do segundo arrependido salvo e perdoado Dimas o bandido (...) Eu digo glria, glria Sei que Deus t aqui, e s quem, s quem vai sentir7

Para alm das figuras religiosas que constituem metforas de justia e sociedade, existe uma identificao social, pois a ltima frase s quem vai sentir constitui uma excluso de alguns sujeitos e formao de um universo, aquele que sente, esse universo constitudo pelos atores dos quais o grupo se v como representante e parte, as comunidade perifricas.

7

Idem, ibidem.

14

Contudo, a imagem religiosa guarda tambm a submisso do sujeito diante de uma situao social que em sua aparncia indica no ter soluo. Essa postura religiosa caberia na concepo marxista que concebe a religio como consolo num mundo sem consolo, esperana num mundo sem esperana. Essa esperana ou consolo consiste na relao entre os atores e a sociedade que passa a ser intermediada por Deus, assim como a letra Mgico de OZ em que o refro faz referncia a essa relao: Queria que Deus ouvisse minha voz e transformasse aqui no mundo mgico de OZ8. Um outro rico exemplo dessa relao est na msica Da Ponte Pra C que apresenta uma sntese dessa forma de pensamento.Senhor, guarda meus irmos nesse horizonte cinzento. Nesse Capo Redondo frio sem sentimento. Os manos sofrido e fuma um sem d guela o estilo favela, e eu respeito por ela.9

Nessa msica fica evidente o consolo da figura religiosa por um lado e, por outro, que o respeito concedido ao espao, favela, em suas inmeros conflitos. Por fim, cabe salientar que no existe predominncia de nenhuma forma de concepo religiosa. No interior das letras figuram formas antagnicas e descontinuas que simbolizam um conflito que permeia distintos aspectos sociais, que representa a transconflitualidade do cenrio social das periferias de So Paulo. Desta forma, os elementos religiosos contribuem para a formao de inmeras formas de identificao dos atores da periferia com o grupo Racionais Mcs. Desigualdade Social So muitos os conflitos nos quais nos deparamos em nossa sociedade, os altos ndices de desigualdade social, criminalidade, uso de drogas, ausncia dos servios pblicos e outros marcam as periferias de So Paulo. Nesse tema trataremos desigualdade em inmeros aspectos que toca tanto a distribuio de renda quanto o acesso aos meios de comunicao. No Brasil a desigualdade social uma das maiores do mundo. Por esses acontecimentos existem jovens vulnerveis hoje principalmente na classe de baixa renda, pois8

Mgico de OZ. In: Sobrevivendo no Inferno. Da ponte pra C. In: Nada como um dia aps o outro.

9

15

a excluso social os torna cada vez mais suprfluos e incapazes de ter uma vida digna. Muitos jovens de baixa renda crescem sem ter estrutura na famlia devido a uma srie de conseqncias causadas pela falta de dinheiro sendo: briga entre pais, discusses dirias, falta de estudo, ambiente familiar precrio, educao precria, ms instalaes, alimentao ruim, entre outros. Os produtos mercadolgicos em constantes e aperfeioados mtodos de marketing, o consumismo acentuado nas relaes sociais, trazem descompassos e grandes conflitos sociais. A educao pblica com seus excedentes e burocratizaes, a escola e a priso como uma instituio de controle social, com baixa taxa de humanizao das relaes, formando um transbordante exrcito de reserva que vislumbram o universo do desemprego, do mercado paralelo, das prises. A maioria seno todas as letras dos Racionais MCs perpassam essa temtica, a letra fim de semana no parque demonstra o cenrio do conflito da desigualdade social, a passagem que diz sobre o neguinho no porto do clube vendo tudo do lado de fora demonstra uma realidade chocante em que pode-se visualizar a olho nu a desigualdade social, ou seja, a prpria arquitetura hbrida de belas casas e clubes de concreto e outras feitas de madeira um grande exemplo disso... Em meio a isso parece mesmo que nos encontramos num beco sem sada. Movimentos como o do Rap, tm como caracterstica explicitar esses conflitos. Na letra dos Racionais MCs: beco sem sada vemos a forte presena das noes de o quanto a msica ajuda na insero num mundo mais confortvel em contra partida um mundo desumano, a letra diz:s vezes eu paro e reparo, fico a pensar qual seria meu destino seno cantar, um rejeitado (...) A sarjeta um lar no muito confortvel, o cheiro ruim, insuportvel. O viaduto o reduto nas noites de frio onde muitos dormem, e outros morrem, ouviu? So chamados de indigentes pela sociedade. A maioria negros, j no segredo, nem novidade. Vivem como ratos jogados, homens, mulheres crianas, vtimas de uma ingrata herana, e sobrevive a cada dia a certeza da eterna misria, o que se espera

16

de uma pas decadente onde o sistema duro, cruel, intransigente10.

Cantar significa uma maneira de no ser um rejeitado. Mas rejeitado por quem? Por quais atores sociais efetivos? A letra prossegue, demonstrando quem so os que sofrem efetivamente com a desigualdade social, diz do cenrio da misria: o viaduto, os atores: na maioria negros... A pergunta ouviu? Na msica destina-se a que ouvidos? No decorrer da letra o grupo vai enfatizar o elemento da desigualdade social, da misria a ponto de fazer a pergunta: Fica perdida a pergunta, de quem a culpa, do poder, da mdia, minha, sua?. A letra diz tambm da burguesia, dos poderosos, o que demonstra parte do conflito e atores camuflados em conceitos. No fim a letra prope uma sada, uma soluo para o caos social que circunda a periferia:Atravesse essa muralha imaginria em sua cabea, sem ter medo de falhas. Se conseguirem derrubar uma muralha real, de pedra, voc pode conseguir derrubar esta. Leia, oua, escute, ache certo ou errado, meu amigo, no fique parado. Isso tudo vai ser apenas um grito solitrio. Em um poro fechado, tome cuidado, no esquea o grande ditado: cada um por si!11

Esta panacia de grande contribuio anlise nas Cincias Sociais, pois por a que detectamos atravs da perspectiva do materialismo histrico sob que forma e que condio se manifesta a histria do vencido. O grupo Racionais MCs representam a periferia porque representam uma forma de linguagem combativa e elucidativa, ou seja, enquanto representao da comunidade perifrica e os que de l provieram. No acusar exatamente os principais culpados significa propor uma superao que parta do indivduo e do indivduo solitrio e no enquanto coletivo. O que pode de longe parecer uma caracterstica da sociedade moderna, enquanto valores que se reestruturam.10 11

Beco sem sada. In Holocausto Urbano. Ibdem.

17

Segundo Boaventura a desigualdade social enquanto fenmeno das globalizaes sugere conflitos e, portanto vencedores e vencidos. O autor diz ainda das formas localizadas de resistncia globalizao hegemnica. Uma passagem nos deixa claro o paralelo de suas idias com o objeto aqui estudado:Tais iniciativas esto enraizadas no esprito do lugar, na especificidade dos contextos, dos atores e dos horizontes de vida localmente constitudos. No falam a linguagem da globalizao e nem sequer linguagens globalmente inteligveis12.

Status e Consumo na Metrpole Por status social entendemos a posio que uma pessoa ocupa na estratificao social, o status construdo coletivamente, ou seja, atravs de um consenso de um determinado grupo. Assim o status social tanto construdo, adquirido quanto atribudo a cada pessoa devido seu comportamento e contexto sociais prprios. Muitas vezes o status est associado com o poder aquisitivo elevado para este damos o nome de status posicional. Em meio a uma sociedade como a nossa, adquirir status est diretamente associado com a prpria dinmica capitalista de produo, em outras palavras, competio e disputa social. As noes de competio e disputa inserem-se num contexto social permeado por conflitos sociais, econmicos, polticos e mesmo culturais. O Hip Hop/Rap tm ele mesmo no interior de sua constituio forte elemento de competio, a dana break o que representa isso. Os grupos que aderem a cultura do hip-hop/rap fazem uma espcie de campeonato em que duas pessoas entram na roda de maneira a disputar quem faz a melhor performance para que assim possam ser premiados ou simplesmente aplaudidos pelo restante do grupo. Mas a parte isso, o que queremos visualizar aqui so, justamente, os conflitos sociais a partir da problematizao do status social e sua relao com a comunidade perifrica. Na letra intitulada Mano na Porta do Bar pudemos identificar o conflito que permeia nossa problemtica. Nesse sentido o status est intimamente ligado com o desejo de consumir cada vez mais. A letra conta a histria de um sujeito comum com certo status social, a letra diz:12

SANTOS, pp.75.

18

Voc viu aquele mano na porta do bar (...) cercado de uma p de camaradas, da rea uma das pessoas mais consideradas (...) um cidado comum com um pouco de ambio. Este sujeito comum passa a ter muita ambio para crescer financeiramente e para mudar sua vida pacata: Queria ter um carro confortvel, queria ser um cara mais notado. O conflito identificado passa por a, ou seja, a noo de status apresenta relao direta em consumir, j no se valoriza p.ex. a opinio do grupo em que est inserido. O sujeito comum da histria da letra era notado pelo grupo que freqentava nas palavras da letra ele era considerado. Ser considerado na periferia alcanar certo tipo de status social, mas ele queria mais... No prprio decorrer da letra a noo de status demonstra um pouco da mentalidade que perpassa a periferia, vejamos:Na lei da selva consumir necessrio. Compre mais, compre mais, supere o seu adversrio, o seu status depende da tragdia de algum13.

A prpria noo de status posicional sugere habilidades, capacidades e conhecimentos para atingi-lo. O sujeito comum da letra utilizou-se o quanto pde para que assim fosse: no mercado da droga o mais falado, o mais foda, em menos de um ano subiu de cotao (...) um traficante de estilo, bem peculiar. Talvez caiba aqui fazer a discusso da reflexividade, no sentido de que o sujeito comum da letra este que progrediu ou que alcanou certo status, teve que passar por um perodo de reflexividade, pois tudo aquilo que permeava sua vida mudou radicalmente: de sujeito simples traficante renomado h uma profunda distncia. Vale ressaltar que incito aqui a discusso da reflexividade para trazer tona o entendimento de que o conceito de reflexividade no apenas um mtodo das Cincias Sociais, mas tambm todo tipo de reflexo presente nos modos de vida das pessoas e em sua concepo tica. O negro Criminalidade

13

Mano na porta do bar In. Holocausto Urbano

19

A criminalidade, em suas mais variadas formas materiais e simblicas, compe grande parte do repertrio usufrudo pelos Racionais Mcs em suas letras, performances, vocabulrio, depoimentos e crticas. Para os fins dessa anlise consideraremos crime todo ato de infrao da legislao, ou seja, sujeito a pena. Alm desse aspecto ser considerado a importncia simblica do crime no interior da dinmica das periferias e suas diferentes conotaes sociais. O Racionais Mcs considerados pelos dos demais grupos, pela mdia e pela opinio pblica como um grupo de expresso contundente e, em certo ponto, inclinado para os temas relativos da criminalidade. Contudo, essa abordagem no est relacionado a uma apologia violncia e sim a uma investigao sobre a realidade social perifrica e compreenso simblica da dinmica da criminalidade no interior desse espao de convivncia. Segundo a concepo do grupo, crime a transgresso da norma que constitui uma linguagem que informa o modo de organizao social das periferias, seus valores fundamentais e do papel que ocupa na vida desses atores como princpios ordenadores da sociabilidade. Nesse ponto, os distintos atores so postos em relao, ou seja, em comunicao e sociabilidade. As letras ultrapassam a descrio do conflito entre polcia e bandido para realizarem uma investigao sociolgica dos fundamentos, valores e motivaes do comportamento social desses mltiplos atores. Alm desses aspectos, a criminalidade, dentro das periferias, produz um sistema moral particularizado que serve de suporte para a legitimao desses atos por um lado e, por outro, auxiliam no julgamento informal dos atores que porventura infringem esse sistema. Nesse sentido a msica Dirio de um Detento bastante ilustrativa:Homem homem, mulher mulher. Estuprador diferente, n? Toma soco toda hora, Ajoelha e beija os ps, E sangra at morrer na rua 10. (...) Ladro sangue bom, Tem moral na quebrada. Mas pro Estado s um nmero, mais nada.14

14

Dirio de um Detento. In: Sobrevivendo no Inferno.

20

Essa composio ilustra bem o cdigo moral desses atores que esto no sistema prisional, mas demonstra o cdigo externo da quebrada. O comportamento justiceiro desses presos com relao ao estuprador est em consonncia do que se espera deles, instituindo uma relao de dualidade entre os moradores da periferia e os tidos criminosos. Alis, essa atuao esperada tanto dentro do sistema prisional quanto nas prprias comunidade, os moradores esperam esse modo de justia quando crem que o poder estatal no capaz de lhe dar a devida reposta. Um exemplo clssico desse comportamento so os linchamentos que ocorrem com mais freqncia nos ambientes populares. O primeiro lbum de grande sucesso e repercusso dos Racionais Mcs foi o Holocausto Urbano. Nesse lbum, as letras traduzem a transconflitualidade da comunidade e aborda de maneira sociolgica o crime e, principalmente, seus atores. A transformao gerada pelo grupo no contexto dessas comunidade no consiste exatamente no estilo musical, mas em conceder voz nos grandes meios de comunicao a esses atores, eles se vem representados e justificados pelo Racionais Mcs que pelo fentipo, gestos, olhares, estilo e histria de vida so iguais a eles. Essa mediao entre as mltiplas identidades presentes na periferia de So Paulo com as msicas dos Racionais se d por meio de seu conhecimento de mundo. O crime em suas letras carregam variadas formas de identificao com esses sujeitos, desde sua prpria histria histria de vida de seus familiares, vizinhos e amigos, ou mesmo pelo simples olhar da janela. O constatar da realidade por parte desses indivduos que no se encaixava no padro moral hegemnico, ento, nessas comunidades criou-se um terreno frtil para a construo de um sistema moral mais prximo que antes dos Racionais no estava devidamente representado no contexto cultural e poltico. A expresso sistema moral mais prximo se deve ao acrscimo de comportamentos repelidos pelo sistema moral hegemnico, pois somente assim, o circulo de convivncia desses moradores no representaria a excluso moral de grande parte de seus familiares, vizinhos e amigos. Isso no significa que no existe uma conotao negativa do comportamento dos indivduos que violam a lei, o que existe de fato uma compreenso dessas atitudes diante da situao de pobreza e excluso da sociedade de consumo. Os trechos que seguem indicam essa compreenso:

21

Nascem, crescem, morrem, passam desapercebidos. E a sada esta na vida bandida que levam roubando, matando, morrendo, entre si se acabando. Ei mano, d-nos ouvidos!15 Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim, quero que meu filho nem se lembre daqui. Tenha uma vida segura, No quero que ele cresa com um oito na cintura e uma PT na cabea.16 Muitos morrem sim, sonhando alto assim, me digam quem feliz, Quem no se desespera, vendo nascer seu filho no bero da misria.17

Numa entrevista do Mano Brown, integrante do grupo, a revista ShowBizz quanto questionado sobre a juventude e o envolvimento com a criminalidade ele afirma entre outras coisa que So vrias pessoas, vrias situaes, no fcil a vida na quebrada. Fica evidente nessa declarao a compreenso por parte do grupo de que no se trata do jovem, mas de distintos jovens, que entram no campo do crime por diferentes caminhos e motivaes. Que possuem simultaneamente identificaes e singularidades num perodo histrico de dissoluo das identidades generalizadoras e totalizantes. A compreenso desses variados sujeitos e sua cosmologia prpria fica muito claro no lbum Sobrevivendo no Inferno, especialmente, na letra Dirio de um Detento:Cada detento uma me, uma crena. Cada crime uma sentena. Cada sentena um motivo, uma histria de lgrimas, sangue, vidas e glrias. Abandono, misria, dio, sofrimento, desprezo, desiluso, ao do tempo. Misture bem essa qumica,

15

Beco Sem Sada. In: Holocausto Urbano. Homem na Estrada. In: Raio X do Brasil. Idem, ibidem.

16

17

22

pronto: eis um novo detento.18

No lbum anterior, Raio X do Brasil, os Racionais Mcs comeam a apontar de forma mais sistemtica e concisa o criminoso como ator social dentro da periferia, em certo ponto, comeam a realizar uma sociologia da formao do criminoso. Isso significa que do incio um apontamento das mais distintas motivaes desses jovens que entram no crime. O surpreendente no a iniciativa por parte do grupo, mas a formao de variados modelos interpretativos da realidade social que esboam os caminhos, as interferncias e a teia de relaes que descrevem. Assim como nos trechos selecionados:Voc viu aquele homem na porta do bar. (...) Da rea uma das pessoas mais consideradas. (...) Tem poucos bens, mais que nada, um fusca 73 e uma mina apaixonada. Ele feliz e tem o que sempre quis uma vida humilde porm sossegada. Um bom filho, um bom irmo Um cidado comum com um pouco de ambio.19

Aps a descrio desse homem, um sujeito comum e pacato, a letra prossegue e colocando em questo seus problemas:Ultimamente andei ouvindo ele reclamar da falta de dinheiro era problema, que a vida pacata j no vale a pena. (...) A lei da selva consumir necessrio compre mais, compre mais, supere o seu adversrio.20

Partindo de sua condio anterior e de sua transformao a msica oferece-nos como o crime modificou sua situao social e status na periferia.Vrias mulheres, vrios clientes, vrios artigos, vrios dlares e vrios inimigos.18

Dirio de Um Detento. In: Sobrevivendo no Inferno. Mano na Porta do Bar. In: Raio X do Brasil. Idem, ibidem.

19

20

23

No mercado da droga o mais falado.21

Ainda se referindo a sociologia praticada pelos Racionais MCs, uma outra msica do lbum Sobrevivendo no Inferno, T Ouvindo Algum me Chamar, consiste numa pesquisa sistemtica que busca a compreenso dos distintos elementos que incita os jovens ao crime. Entre as motivaes figuram problemas familiares, econmicos, culturais, a sociedade de consumo e a construo da subjetividade.Mas sem essa de sermo, mano, eu tambm quero ser assim. Vida de ladro no to ruim. Pensei, entrei, no outro assalto colei e pronto (...) Pela primeira vez eu vi o sistema aos meus ps.22

A composio dessa msica assemelha-se a uma construo cinematogrfica. Nos ltimos minutos de vida, um jovem recorda-se de sua histria desde o momento que entrou no crime. O trecho acima parte de sua argumentao para acompanhar o seu amigo Guina em um assalto. Sobre esse amigo, o jovem afirma:Lembro que um dia o Guina me falou que no sabia bem o que era amor. Falava que quando era criana, uma mistura de dio, frustrao e dor. De como era humilhante ir pra escola, usando a roupa dada de esmola. De ter um pai intil, digno de d, mais um bbado, filho da puta e s.23

Descrevendo os dois amigos e suas motivaes, a letra evidencia as distines entre os dois personagens que apesar de cometerem delitos juntos so distintos e compem uma histria em comum: a histria dos jovens da periferia de So Paulo que entram no crime. Esse jovem, no momento da morte, revisita sua histria e pensa no caminho que trilhou e afirma:Eu s queria ter moral e mais nada, mostrar pro meu irmo, pros caras da quebrada.21

Mano na Porta do Bar. In: Raio X do Brasil. T Ouvindo Algum me Chamar. In: Sobrevivendo no Inferno. Idem, ibidem.

22

23

24

Uma caranga e uma mina de esquema, algum dinheiro resolvia o meu problema. (...) Fiz dezessete tinha que sobreviver, agora eu era homem tinha que correr. No mundo voc vale o que tem, eu no podia contar com ningum. 24

Com relao ao contedo veiculado pela msica se distingue alguns elementos de seus variados personagem que retomam a construo desses atores presentes na periferia. Por um lado, tem o Guina, um jovem de famlia desestruturada que durante a infncia passou necessidade econmica e construiu sua subjetividade com base na revolta social que no tem amor a prpria vida nem pela vida de outras pessoas como aponta a msica. De um outro lado, esta o jovem que conta a histria, sua motivao esta relacionada a construo de sua subjetividade dentro da dinmica social da periferia, o desejo pelos produtos que no pode consumir e sua masculinidade. Mas existem nesse cenrio reconstrudo pela msica outros personagens tais como: o irmo do jovem que visa ascenso social por intermdio da educao, a me que sofre com suas escolhas, seus companheiros do crime, suas vtimas, entre outros. As letras do Racionais Mcs de modo geral visam a construo de modelos interpretativos da realidade. Essa construo se d por meio da voz no institucional ou veiculada cotidianamente nos meios de comunicao da vtima ou do poder repressivo estatal, mas do ator principal no momento da violncia: o criminoso. Um clssico exemplo dessa relao a msica Eu sou 157, j no ttulo se faz referncia ao cdigo penal. O artigo 157 legisla sobre assalto mo armada e serve nesse contexto de elemento distintivo e de construo da identidade do personagem.Hoje eu sou ladro, artigo 157. As cachorra me amam, os playboy se derretem, Hoje eu sou ladro, artigo 157. A polcia bola um plano, sou heri dos pivete.25

24

T Ouvindo Algum me Chamar. In: Sobrevivendo no Inferno. Eu sou 157. In: Nada como um dia aps o outro.

25

25

A voz do ladro no se limita ao seu status social. A letra dessa msica d uma dimenso mais humana a esse sujeito evidenciando seus aspectos emocionais, culturais, sociais e poltico. A questo central a revolta.Eu juro, me, que vou te prova que no foi em vo. Mais cumprir ordem de bacana no d mais no. (...) A vida sofrida, mais no vou chorar. Viver de que , eu vou me humilhar. E tudo uma questo de conhecer o lugar. Quanto tem, quanto vem minha parte quanto d.26

Richard Sennett em entrevista ao Le Monde intitulada O Indivduo e a Sociedade aponta que todo conflito na sociedade moderna ganha uma conotao propriamente poltica diante tanto do reconhecimento ou contestao da autoridade. (cf. SENNETT, 1989). Essa a dimenso da transconflitualidade abordada pelos Racionais Mcs no que toca a criminalidade, esse conflito torna-se intrinsecamente social, cultural e, acima de tudo, poltico. Os ttulos dos lbuns e as mais variadas msicas colocam em questo a poltica, ou seja, as relaes de poder nos quais os atores esto envolvidos.O consumo pra alguns uma ameaa vrios desanda, vacila e vira caa. (...) O pobre, o preto, no gueto sempre assim, o tempo no pra, a guerra no tem fim. O crime e a favela so lado a lado. que nem dois aliados, o isqueiro e o cigarro. (...) A mquina do desemprego fabrica criminoso.27

A abordagem da criminalidade no se limita ao contedo das letras, as performances e o vocabulrio esto repletos desse sentido, pois no interior da dinmica social das periferias26

Idem, ibidem. Crime Vai Crime Vem. In: Nada como um dia aps o outro.

27

26

de So Paulo esses atores usufruem desse material simblico com diferentes conotaes. Assim, comum encontrar um senhor ou senhora de quarenta ou cinqenta anos sem nenhum envolvimento com crime que utilize em seu vocabulrios grias criadas pelos criminosos, isso nos apresenta a extenso e a intensidade da construo do crime como material simblico das periferias. O Racionais Mcs com sua rara sensibilidade e revolta constatam essa dinmica sem realizar uma apologia ao crime, o materializa diante do caos social e apresenta a transconflitualidade do tema, desta forma rompe com as vises unilaterais, totalizadoras e generalizantes. Contradio Trabalho Emprego Uma voz masculina O grupo de Rap Racionais Mcs esboam um cenrio repleto de descontinuidades e transconflitualidades da periferia de So Paulo conforme sua vivncia e modo de vida. Esse cenrio descrito pelos Racionais contam de distintos elementos capazes de estabelecerem uma mediao de identificao do grupo com os atores da periferia. Contudo, essa identificao no aborda o ator feminino. Os conflitos partem do repertrio cultural e social desses agentes (Racionais Mcs) e dos atores sociais (moradores da periferia) e por este motivo realiza uma mediao independente do gnero ou mesmo da sexualidade. Contudo, no se pode ignorar que os conflitos descritos passa por uma viso masculina da sociedade. Deste modo, o ator, em sua maioria, constitui no masculino, ou seja, trata-se do criminoso no da criminosa, do drogado no da drogada, menino no da menina. O jovem da periferia descrito em conflito, em crise ou no caos social que cotidianamente manipulado e punido pela sociedade capitalista e de consumo o jovem do sexo masculino. Os conflitos das mulheres so ignorados, no esto presentes no interior da letras e nem das demais manifestaes do grupo. Quando se faz referncia a essas mulheres partem de sua viso estritamente masculina colocando-as como coadjuvante desses conflitos ou em sua posio nas relaes afetivas ou sexuais. Assim como no trecho selecionado:

27

Derivada de uma sociedade feminista que considera e dizem que somos todos machistas. No quer ser considerada smbolo sexual, luta pra chegar ao poder, provar a sua moral. Numa relao na qual no admite ser subjugada, passam a andar pra trs exige direitos iguais. E o outro lado da moeda, como que ?28

Na mesma msica, aps essa caracterizao do cenrio social contemporneo e da postura das mulheres diante desses contexto, afirmam:Pra ela, dinheiro o mais importante, sujeito vulgar, suas idias so repugnantes. uma cretina que se mostra nua como um objeto uma intil que ganha dinheiro fazendo sexo. Ela mais uma figura viva obscena, luta por um lugar ao sol, fama e dinheiro com rei de futebol!29

Essa msica dos Racionais no pretende, de modo algum, caracterizar todas as mulheres como que se comportassem desse modo ambicioso e sem carter, mas no se pode negar que a realidade da qual pretendem discursa existem outros modelos femininos distantes dessa postura que poderia servir de inspirao para letra. Ento, por qual motivo escolheram esse parmetro social para falarem das mulheres? Essa questo remete ao ttulo desse captulo. Os Racionais Mcs constitu uma voz estritamente masculina que parte dos conflitos masculinos, deste modo, diante da relao entre gneros propagam sua prpria viso. Cantam o conflito partindo de uma viso unilateral, partem de suas experincias e de seu repertrio para reconstruo daquilo que foram alvos, daquilo que o enojam e envergonham, ou seja, as mulheres vulgares. Essas relaes podem ser estabelecidas em vrias msicas e declaraes do grupo de rap. No lbum seguinte, Raio X do Brasil, a musica Parte II faz referncia uma mulher que seduz vrios homens, comprometida com um dos integrantes do grupo se insinua para outros dois integrantes do mesmo grupo. Nessa msica, a letra remete a imagem bblica de Eva que insere Ado no pecado, ou seja, os amigos no resistem a tentao da mulher que, assim como28

Mulheres Vulgares. In: Holocausto Urbano. Idem, ibidem.

29

28

na imagem religiosa, germina discrdia e competio no interior do grupo podendo lev-lo a destruio. Mas, assim como detalhamos nos demais temas no existe um discurso coeso ou mesmo uma postura rgida no interior das letras dos Racionais. No obstante, outros papis so desempenhados pela figura feminina, freqentemente a me, o objeto de desejo ou traidora compem o contedo das msicas. Nos trechos selecionados apontamos essas figuras respectivamente:So Paulo, terra de arranha cu, a garoa rasga a carne a torre de Babel, famlia brasileira, dois contra o mundo, me solteira de um promissor vagabundo. (...) Um bastardo, mais um filho pardo, sem pai. (...) Valeu, me, negro drama. (...) A, dona Ana, sem palavras, voc uma rainha, rainha.30 E quem no quer chegar de Honda preto em banco de couro, E ter a caminhada escrita em letra de ouro. A mulher mais linda, sensual e atraente, a pele cor da noite, lisa e reluzente.31 A confiana uma mulher ingrata, que te beija, te abraa, te rouba e te mata.32

Nesse ponto no h nenhuma ruptura com as imagens femininas veiculadas majoritariamente na sociedade moderna. A me aparece de modo sacramentado repleto de caractersticas valorativas, no vocabulrio do rap como uma guerreira, devido as dificuldades da situao social descrita. As demais mulheres representam objeto de desejo sexual e status ou como destrutiva do ser homem pela seduo.

30

Negro Drama. In: Sobrevivendo no Inferno. Da ponte pra C. In: Nada como um dia aps o outro. Vida Loka I. In: Nada como um dia aps o outro.

31

32

29

Apesar das distintas abordagens do gnero feminino podemos encontrar uma aspecto em comum, a viso estritamente masculina. Esse aspecto nos remetem a afirmao de Elisabeth Souza-Lobo:Em primeiro lugar, coloca-se a questo quase consensual de que falso problema buscar uma causa original para a subordinao das mulheres. Isso significa o abandono de uma lgica casual fundada numa estrutura fatalmente determinante, por uma anlise compreensiva que constri significaes. Trata-se, pois, de pesquisar como a subordinao das mulheres se construiu historicamente nas prticas, nas culturas, nas instituies. (SOUZA-LOBO, p.195).

Do mesmo modo que Souza-lobo desenvolve uma pesquisa que envolve a perspectiva de classe como uma categoria estritamente masculina. Nessa investigao sobre os elementos constitutivos das letras dos Racionais Mcs nos estica o fato de constituir uma perspectiva que parte diretamente pela representao masculina apesar ser sabido que a periferia de So Paulo constituda de dois sexos. Desse modo, nas letras as mulheres entram em cena para construo desse cenrio a partir da viso masculina, ou melhor, da construo de um cenrio social onde a voz da mulher no se faz presente. Sobre a questo das mulheres no espao pblico e, principalmente, na periferia cabe a reflexo sobre at que ponto o advento da modernidade com a industrializao, revoluo dos meios de comunicao, democracia, pluralidade e o feminismo transformaram a condio silenciosa das mulheres assim como a descrita por Michelle Perrot em Minha Histria das Mulheres. Nessa obra, Perrot descreve o cotidiano, parcialmente resgatado, das camponesas no incio do sculo XX e afirma:Essas mulheres, nossas antepassadas, que h trs ou quatros geraes, viviam nas aldeias, desapareceram com elas. (...) Deixamos que partissem sem registrar suas memrias. (PERROT, p. 111).

Cabe, por fim, frisar que a postura do grupo parte de uma condio objetiva, ou seja, so homens. Sua compreenso do mundo parte de suas experincias e pela ideologia predominante da sociedade. Contudo, o que buscamos nesse captulo inserir uma discusso sobre a viso do ser feminino tanto no interior das letras dos racionais quanto do rap nacional. E por outro lado, questionar a participao das mulheres dentro desse campo cultural. 30

Essa problemtica ainda continua viva. Essas mulheres, nosso objeto, moradoras da periferia, que criam seus filhos sozinhas, que trabalham em diferentes postos, mas principalmente, como domsticas, que lidam dia-a-dia com todos os conflitos salientados pelas letras dos Racionais Mcs, que vem seus filhos como promissores vagabundos, que so jovens e esto margem da sociedade de consumo, que lidam de maneiras to distintas com o sexo e com a afetividade, que usam drogas, que cometem crimes, negras, brancas ou pardas e tantas outras. Onde esto essas vozes? Deixaremos que partam sem registrar suas memrias? Consideraes Finais Nossa concluso consiste num levantamento dos conflitos que permeiam a realidade e que esto presentes em todos os temas pesquisados na disciplina de sociologia VII. Para alm das suas particularidades, em todos os temas, existe em comum a denncia ou explicitao da troca desigual de recursos materiais ou simblicos. Nos Racionais assim como o afirmado por Jos Machado Pais sobre a sociologia simmeliana e a pintura de Caravaggio e Valzquez: tudo parece provisrio, interno, experimental: nada nos dado como um produto acabado ou integrado num sistema nico ou totalitrio. (PAIS, p.27). Deste modo, fica evidente que o recurso de construo das letras e das msicas j se constitui como uma experincia de montagem de peas soltas que s se tornam legveis a partir do processo de construo, de montagem.

Bibliografia: BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de histria in Magia e tcnica, arte e poltica. So Paulo, Brasiliense, 1985. CONTIER, Arnaldo Daraya. O Rap Brasileiro e os Racionais MCs in 1 Simpsio Internacional do Adolescente, 2005. GIDDENS, Anthony. Introduo in As conseqncias da modernidade. So Paulo, editora Unesp, 1991. MARTINS, Jos. O senso comum e vida cotidiana in A sociabilidade do homem simples. So Paulo, Hucitec, 2000.

31

NEGRI, Antonio, O comunismo do capital global; Seno h justia h escrache, GLOBAL Brasil n7. Rio de Janeiro, 2007 PAIS, Jos Machado. Por uma sociologia da ps-linearidade in Ganchos, Tachos e biscates. Jovens, trabalho e futuro. Porto, MBAR, 2002. SANTOS, Boaventura de Sousa. A natureza das globalizaes in A globalizao e as Cincias Sociais. So Paulo, Cortez, 2002.

32