descontaminaÇÃo do julgado- ticiano alves e silva

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  • 8/14/2019 DESCONTAMINAO DO JULGADO- TICIANO ALVES E SILVA

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    DESCONTAMINAO DO JULGADO

    Ticiano Alves e Silva

    Bacharel em Direito pela Universidade Catlica do Salvador

    Advogado

    Sumrio: 1. Introduo - 2. Sintticas consideraes sobre prova ilcita - 3. A

    descontaminao do julgado - 4. O vetado 4 do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008 - 5.

    Concluso - 6. Referncias.

    Palavras- chave: prova ilcita descontaminao do julgado veto ao 4 do art. 157

    da nova Lei 11.690/ 2008declarao de ofcio de suspeio por motivo ntimo.

    Resumo: este artigo pretende, aps brevssimas consideraes em torno do tema provas

    ilcitas, apresentar a teoria da descontaminao do julgado e comentar o inoportuno veto

    ao 4 do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008.

    1. Introduo

    A Lei 11.690, de 10 de junho de 2008, dentre outras tantas novidades, acrescentaria ao

    art. 157 do Cdigo de Processo Penal (CPP) o 4. No referido dispositivo legal, previa-

    se importante inovao na temtica de prova ilcita: a descontaminao do julgado.

    Ocorre que, conforme j anunciado no ttulo deste artigo, o dispositivo foi vetado.

    Pretende-se, assim, fazer uma crtica ao veto e sugerir um modode descontaminao,

    segundo as normas dispostas no sistema processual.

    2. Sintticas consideraes sobre prova ilcita

    Segundo o disposto no art. 5, LVI, da Constituio Federal (CF), so inadmissveis,

    no processo, as provas obtidas por meios ilcitos. Prevendo o direito fundamental

    inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilcitos, pretende-se, por via reflexa, a

    proteo de outros direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito privacidade,

    intimidade, vida privada (art. 5, X), inviolabilidade domiciliar (art. 5, XI),

    intangibilidade corprea (vedao tortura) (art. 5, III), ao sigilo de correspondncia,

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    de dados, das comunicaes telegrficas e, em regra, das comunicaes telefnicas1 (art.

    5, XII) etc.

    Quanto ao conceito de prova obtida por meio ilcito, acesas controvrsias existem em

    sede doutrinria2, muito em razo de o legislador ter sido omisso quanto ao tema.

    Entende-se, contudo, majoritariamente, que prova ilcita e prova ilegtima so espcies

    do gnero prova ilegal. Prova ilegal aquela obtida ao sacrifcio do Direito, seja

    material (prova ilcita), seja processual (prova ilegtima), enfim, por violao lei3.

    Posto isto, pode-se conceituar prova ilcita como aquela conseguida por meio de

    expedientes contrrios ao direito material. Tem-se, como exemplo, no processo penal, a

    confisso arrancada a frceps por tortura. Ou, no processo civil, a prova documental

    obtida mediante a violao de sigilo profissional.

    Deve-se anotar, ainda, que, de acordo com a teoria dos frutos da rvore envenenada

    (fruits of the poisonous tree), sobre as provas derivadas efetivamente das provas ilcitas

    tambm recai a pecha da ilegalidade, sendo, por isso, igualmente inadmissveis no

    processo4. A matria ganha regulamentao com nova Lei 11.690/2008 (ver art. 157 e

    pargrafos).

    Vem se admitindo, noutro contexto, a prova obtida ilicitamente quando aquele que a

    produz o faz amparado por alguma causa de excluso de ilicitude da conduta, a exemplo

    do estado de necessidade ou legtima defesa. Nesse caso, a prova ilcita convalidada,

    sendo plenamente vlida no processo e podendo influenciar na convico do

    magistrado5.

    1Diz-se em regra porque a prpria Constituio admite, em determinados casos (investigao criminal

    ou instruo processual penal) e preenchidos determinados requisitos (por ordem judicial etc.), a violaodo sigilo telefnico.2Sobre isso, conferir NERY JUNIOR, Nelson. Princpios do Processo Civil na Constituio Federal. 6.

    ed. So Paulo: RT, 2000. p. 1573Por todos, ver OLIVEIRA, Eugnio Pacelli. Curso de Processo Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen

    Juris, 2007. p. 309. Conferir, tambm, na doutrina constitucional, MORAES, Alexandre de. DireitoConstitucional. 14. ed. So Paulo: Atlas, 2003. p. 126.4"Fruits of the poisonous tree. (...) Assentou, ainda, que a ilicitude da interceptao telefnica falta

    da lei que, nos termos do referido dispositivo, venha a disciplin-la e viabiliz-la contamina outroselementos probatrios eventualmente coligidos, oriundos, direta ou indiretamente, das informaes

    obtidas na escuta." STF, HC 73.351, Rel. Min. Ilmar Galvo, julgamento em 9 5-96, DJde 19-3-99.5 Utilizao de gravao de conversa telefnica feita por terceiro com a autorizao de um dos

    interlocutores sem o conhecimento do outro quando h, para essa utilizao, excludente da

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    No que toca ao uso excepcional da prova ilcita por invocao da proporcionalidade,

    razoabilidade ou proibio de excesso, tendo em mira que nenhum direito absoluto

    (com exceo da proibio de tortura6) e a fora que tm as circunstncias singulares do

    caso, o Supremo Tribunal Federal (STF) a admite, mas, com muita razo, com bastantes

    restries7.

    Traado este panorama geral sobre as provas ilcitas, encerrasse-se este ponto, citando-

    se, com as vnias de estilo, o magistrio jurisprudencial do Ministro do STF Celso de

    Mello, que guarda muita pertinncia com tudo que acabou de ser dito:

    A ao persecutria do Estado, qualquer que seja a instncia de poderperante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, no podeapoiar-se em elementos probatrios ilicitamente obtidos, sob pena deofensa garantia constitucional do due process of law, que tem, nodogma da inadmissibilidade das provas ilcitas, uma de suas maisexpressivas projees concretizadoras no plano do nosso sistema dedireito positivo. A Exclusionary Rule consagrada pela jurisprudnciada Suprema Corte dos Estados Unidos da Amrica como limitao aopoder do Estado de produzir prova em sede processual penal. AConstituio da Repblica, em norma revestida de contedo vedatrio(CF, art. 5, LVI), desautoriza, por incompatvel com os postulados

    que regem uma sociedade fundada em bases democrticas (CF, art.1), qualquer prova cuja obteno, pelo Poder Pblico, derive detransgresso a clusulas de ordem constitucional, repelindo, por issomesmo, quaisquer elementos probatrios que resultem de violao dodireito material (ou, at mesmo, do direito processual), noprevalecendo, em conseqncia, no ordenamento normativo brasileiro,em matria de atividade probatria, a frmula autoritria do malecaptum, bene retentum. Doutrina. Precedentes8.

    antijuridicidade. Afastada a ilicitude de tal conduta a de, por legtima defesa, fazer gravar e divulgarconversa telefnica ainda que no haja o conhecimento do terceiro que est praticando crime , ela,por via de conseqncia, lcita e, tambm conseqentemente, essa gravao no pode ser tida como provailcita, para invocar-se o artigo 5, LVI, da Constituio com fundamento em que houve violao daintimidade (art. 5, X, da Carta Magna). STF, HC 74.678, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 10-6-97,DJde 15-8-97.6Nesse sentido, conferir: SILVA, Ticiano Alves; DANTAS, Rodrigo Tourinho; MASCARENHAS, Oacir

    Silva; RIBEIRO, Daniel Leite. Manifesto Contra Lei de Tortura dos EUA. Revista Jurdica dos

    Formandos em Direito da UCSal 2006.2. Ano I, n. I. nov./dez. de 2006. 7Da explcita proscrio da prova ilcita, sem distines quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5,

    LVI), resulta a prevalncia da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, daverdade real no processo: conseqente impertinncia de apelar-se ao princpio da proporcionalidade luz de teorias estrangeiras inadequadas ordem constitucional brasileira para sobrepor, vedaoconstitucional da admisso da prova ilcita, consideraes sobre a gravidade da infrao penal objeto da

    investigao ou da imputao. STF, HC 80.949, Rel. Min. Seplveda Pertence, julgamento em 30-10-01,DJde 14-12-01.8STF, HC 82.788, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-4-05, DJde 2-6-06.

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    3. A descontaminao do julgado

    Quando se alude descontaminao do julgado, quer-se referir a um mecanismo

    processual que torne possvel o julgamento da demanda por outro juiz que no aquele

    que conheceu da prova tida, posteriormente, como ilcita. Em outros termos, trata-se de

    impedir que o juiz que conheceu de prova ilcita julgue a causa, porquanto, ainda que

    no queira, poder ser influenciado pelo contedo do material probatrio ilcito

    conhecido.

    No h, pela prpria condio humana, pelas prprias caractersticas que revestem

    qualquer tipo de interpretao, como garantir-se, no caso, uma pretensa imparcialidade.

    Ainda que o magistrado tente a todo custo mant-la, poder contrariar

    inconscientemente todo o conjunto probatrio vlido apenas para poder emitir um juzo

    de procedncia.

    Imagine-se, por exemplo9, uma ao ajuizada por uma mulher contra o ex-marido

    pedindo indenizao pelos danos extrapatrimoniais causados em virtude de

    espancamentos e tortura psicolgica sofridos por ela durante o casamento. Tendo tudo

    ocorrido h anos, a prova dos espancamentos torna-se de difcil obteno e a tortura

    psicolgica s provada por uma testemunha, a empregada domstica que at hoje

    trabalha com a mulher, no tendo a percia mdica chegado a qualquer concluso

    definitiva. At que a mulher junta gravaes ambientais entre ela e o ex-marido em que

    fica amplamente comprovado tudo que se disse. Porm, aps o conhecimento da prova

    pelo magistrado, alega o ex-marido que a mulher que fala na gravao no a autora,

    pedindo, por conseguinte, que a prova seja tida como ilcita, j que feita por quem no

    participou da conversa. O juiz ordena percia, que conclui positivamente ao ru. Omagistrado, ento, afasta a prova do processo, em face de sua constatada ilicitude.

    Pergunta-se: seria possvel ele, o juiz, julgar, ainda que inconscientemente,

    desconsiderando o que ele ouviu na gravao? Ser que toda a confisso do ex-marido

    na conversa, narrando outra pessoa em detalhes todo o mal que fez ex-mulher

    9O exemplo dado intencionalmente de natureza cvel, a se demonstrar a pertinncia do tema tambm

    para outros processos, que no o penal. Alm disso, parece claro que o exemplo dado repercute tambmna esfera criminal, a comprovar mais uma vez a comunicao existente entre processo e direito, e aconstante alimentao feita por este quele.

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    conseguiria ser desconsiderado? Pode-se afirmar que a condenao poderia se fundar

    exclusivamente na prova testemunhal. Mas ser que o juiz condenaria com base

    somente no depoimento da empregada se no tivesse conhecimento da gravao? E se

    no houvesse depoimento da testemunha, seria sadio para o juiz prolatar uma sentena

    sabidamente injusta? Ou, melhor ainda, ele no buscaria, no caso, ainda que de forma

    inconsciente, uma sentena de procedncia?

    Nesse sentido so as lies de Marinoni e Arenhart:

    No se quer dizer, note-se bem, que o juiz que se baseou na provailcita ir buscar uma sentena de procedncia a qualquer custo, aindaque inexistam outras provas vlidas, mas apenas que a valorao

    dessas outras provas dificilmente se livrar do conhecimento obtidoatravs da prova ilcita.Trata-se de situao que peculiar natureza humana, e assim algoque deve ser identificado para que a descontaminao do julgado sejaplena ou para que a sua descontaminao pelo tribunal elimine- ouprevina- qualquer possibilidade de infeco posterior. Portanto, se otribunal decide que uma das provas que a sentena se baseou ilcita,o julgamento de primeiro grau dever ser feito por outro juiz, que noaquele que proferiu a deciso anterior.10

    Por tudo isso que se faz prudente encontrar meios de se descontaminar o julgado, dando

    a outro juiz a atribuio de julgar aquela causa que teve prova ilcita afastada.

    Acreditvamos- e, com o veto, continuamos a acreditar- que isso poderia ser feito

    mediante a declarao de ofcio da suspeio do juiz por motivo ntimo, com

    fundamento no art. 135, pargrafo nico, do Cdigo de Processo Civil, ou nos arts. 97 e

    112 do CPP. a soluo que encontramos em nome da justia, ainda que no seja a

    ideal.

    4. O vetado 4 do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008

    O vetado 4 do art. 157 da nova Lei 11.690/ 2008 dispunha que o juiz que conhecer

    do contedo da prova declarada inadmissvel no poder proferir a sentena ou

    acrdo.

    10

    MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Srgio Cruz.Manual de Processo de Conhecimento. 5.ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 401. Rendem-se, aqui, loas aos citados processualistas porserem os nicos autores de obras gerais de processo civil a cuidarem do assunto.

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    Ia se consagrar, pois, no direito positivo, a teoria da descontaminao do julgado. Mas,

    como j dito, o referido dispositivo foi vetado. O veto se fundamenta, resumidamente,

    no descompasso existente entre o quanto previsto no 4 e os sentimentos que

    nortearam a criao da Lei 11.690/2008, que busca dar mais celeridade aos julgamentos.

    Alega-se que o tempo exigido para que o juiz substituto tomasse conhecimento de toda

    a instruo processual seria prejudicial celeridade almejada.

    Perdeu-se, assim, a oportunidade de inserir no sistema norma de mais alto valor, que,

    com certeza, espraiaria seus efeitos para alm do processo penal, visto tratar de tema

    comum ao processo como um todo. Afinal, onde h as mesmas razes de fato, deve

    haver, tambm e necessariamente, quando inexistente lei especfica, as mesmas razes

    de direito, sendo de rigor aplicar-se analogicamente11 o novo dispositivo tambm ao

    processo civil e ao processo administrativo.

    Mais uma vez, valores caros ordem constitucional- julgamentos imparciais e justos-

    so sacrificados pelo utilitarismo e por imposio de circunstncias no jurdicas. Toda

    a atividade do legislador atualmente guiada pela celeridade que se deve imprimir

    prestao jurisdicional e atividade judiciria, o que bem-vindo desde que no tenha

    como preo alto, que se diga- a desconsiderao de princpios estruturantes e

    garantsticos do sistema normativo de um Estado que Constitucional. Torna-se ainda

    pertinente, nesse sentido, o que j se disse em outra oportunidade. poca que

    proferidas, as seguintes palavras foram direcionadas contra os julgadores da

    jurisprudncia defensiva, mas encontram felizes destinatrios naqueles que alam a

    celeridade categoria suprema de objetivo maior a ser alcanado pelo Estado:

    sabido por todos que o Poder Judicirio encontra-seassoberbado, tendo que apreciar uma quantidade de demandasmuito acima do que sua estrutura pode suportar. No bastasse,os recursos financeiros disponveis no so suficientes parasatisfazer as necessidades da Justia. Ocorre que tal situao, emessncia poltica, no pode dar ensejo denegao da justia,sob pena de desvincular o sistema de seu fim maior: a

    11Conforme ensina Paulo Nader, a analogia um recurso tcnico que consiste em se aplicar, a uma

    mesma hiptese no prevista pelo legislador, a soluo por ele apresentada para um casofundamentalmente semelhante no prevista. NADER, Paulo. Introduo ao estudo do direito. 23. ed.Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 188.

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    SILVA, Ticiano Alves. Para alm de uma aplicao tradicional do princpio da fungibilidade: possibilidade de conhecimento do ato intempestivo no caso de

    existncia de dvida fundada sobre a natureza do prazo de art. 2, caput, da Lei

    9.800/99. Revista de Processo. Ano 32, n. 150, agosto de 2007. So Paulo: Revista dosTribunais, 2007.

    ______. DANTAS, Rodrigo Tourinho; MASCARENHAS, Oacir Silva; RIBEIRO,Daniel Leite. Manifesto Contra Lei de Tortura dos EUA. Revista Jurdica dosFormandos em Direito da UCSal 2006.2. Ano I, n. I. nov./dez. de 2006.